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Há algum
O valor de educar 1
cepticismo sobre tudo o que se apresenta
aspirando a uma concepção global do mundo.
Fernando Savater
Essas pretensões totalizantes já, muitas
vezes, derivaram para o totalitarismo e em
qualquer caso estão sempre sujeitas a
controvérsias intermináveis que o afã
politicamente correcto do dia-a-dia prefere
deixar abertas para que cada qual escolha a seu
gosto.
Em sociedades multiétnicas — e cada vez
serão mais — resultam perigosas ou pelo menos
delicadas as excursões até às origens. Quanto aos
fins, sejam estes políticos ou estéticos, tão-pouco
parecem fáceis de executar. É mais seguro
deter-se sobre os meios, zona temperada da
1. Para uma Humanidade sem instrução, e no sólido território do pragmatismo,
humanidades? em que a grande maioria costuma coincidir.
Além disso, nalguns países como a Espanha,
No campo da educação, um fantasma é o
onde um clero propenso ao dogmatismo
hipotético desaparecimento das humanidades
monopolizou até há pouco tempo a oferta
dos planos de estudo, substituídas por
pedagógica, a pletora de letrados versados em
especialidades técnicas que mutilarão as
logomaquias contrasta tristemente com a
gerações futuras da visão histórica, literária e
escassez de investigadores científicos capazes,
filosófica, imprescindível para o cabal
parece lógico que as autoridades educativas, que
desenvolvimento da plena humanidade (…).
se consideram progressistas, decidam que
A questão merece ser considerada com
chegou o momento de inverter esta proporção
alguma detenção, porque a própria reflexão
(…).
sobre o ensino que queremos ou que recusamos
nos obriga também a meditar sobre a qualidade
Mas, o que são as humanidades?
da própria cultura em que hoje nos inserimos.
Suponho que ninguém sustente a sério que
Em certo sentido, o temor parece bem justificado.
estudar matemáticas ou física sejam tarefas
Os planos de ensino em geral tendem a reforçar
menos humanistas, não digamos menos
os conhecimentos científicos ou técnicos que,
«humanas», que dedicar-se ao grego ou à
supostamente, terão uma utilidade prática
filosofia. Nicolau de Siracusa, Descartes, Voltaire
imediata, isto é, uma aplicação laboral directa.
ou Goethe teriam ficado pasmados ao ouvir hoje
A inovação permanente, aquilo que é uma
tamanho disparate na boca de um literato
descoberta recente ou tudo quanto abre
pedante, daqueles que repetem vacuidades sobre
passagem para a tecnologia do futuro gozam do
a técnica «desumanizadora» (…). A separação
maior prestígio, enquanto a rememoração do
entre cultura científica e cultura literária é um
passado ou as grandes teorias especulativas
fenómeno que só se inicia nos finais do século
passado, para de imediato se consolidar no
1 Savater, F. (1997). O valor de Educar Lisboa. Edições nosso, dada a impossibilidade de abarcar saberes
Presença. cada vez mais técnicos e complexos, que
(A obra foi republicada pelas Edições Dom Quixote
em 2006) desafiam as capacidades de qualquer indivíduo,
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existiam as matérias em que, anos mais tarde, se precisamente, no ensaio dedicado à instrução
virão a converter em mestres (…). das crianças: «Constitui um erro enorme pintar a
François Closet (…) caracterizou este filosofia como algo de inacessível às crianças,
problema muito bem: «Pouco importa afinal o dotada com um rosto taciturno, exigente e
que se ensine, desde que se despertem a terrível. Quem a mascara com esse falso rosto,
curiosidade e o gosto de aprender (…) o pálido e repulsivo? Não há nada mais alegre,
importante não é o que se aprende, mas sim o festivo, regozijante e, atrevo-me mesmo a dizer,
modo como se aprende» (…). mais travesso. Não predica mais que festa e bons
Goethe, absolutamente insuspeito de anti- momentos. Uma cara triste e crispada demonstra
humanista, confessa que a forma memorística de que não tem cabimento aí».
ensinar o grego converteu essa aprendizagem na Aqueles que tentam romper a máscara
mais estéril e aborrecida da sua formação. O triste e seduzir, em vez de intimidar, sofrem o
mesmo ocorre também com as matemáticas — menosprezo dos colegas, ainda que a ampla
talvez a disciplina básica que mais aceitação popular de humildes esforços
«experiências» pedagógicas desastrosas divulgadores como O Mundo de Sofia de Jostein
suportou nos últimos lustres — que na mãos de Gaarder ou a minha Ética para um jovem provem
lúgubres mestres conseguem tornar-se, que há formas de abordar os temas filosóficos
frequentemente, de uma aridez repelente para que despertam cumplicidade e não enfado nos
muitos, enquanto nas mãos de Lewis Carrol ou neófitos, único meio de os estimular para que
de Martin Gardner estimulam a imaginação e o depois prossigam, por si mesmos, o estudo
humor. começado. Os sisudos professores de latim
E que dizer da filosofia, cujos manuais de consideram trivial tudo quanto é dito com
bacharelato oferecem séries de nomes agrupados simplicidade (…) trivialidade é o que fica na
em equipas opostas (estóicos contra epicuristas, cabeça de um imbecil quando ouve algo dito
idealistas contra materialistas, etc.) que parecem, com simplicidade.
muitas vezes, a lista telefónica dos grandes
filósofos, com a diferença de que não figura Porque é que as matérias docentes, sejam
nenhum número para onde lhes falar, para elas quais forem, são amiudadas vezes ensinadas
resgatar os jovens do fastio e da confusão? de um modo — para falar de maneira suave —
Para não mencionar o deleite académico ineficaz, que angustia sem ilustrar e que expulsa
com uma gíria, o mais obscura e artificiosa do conhecimento em vez de atrair para ele?
possível, porventura própria para iniciados, mas Deixemos de lado a incompetência
de maneira nenhuma para os que tentam eventual de um ou outro professor ou a não
iniciar-se. Tive conhecimento de um livro menos episódica dificuldade de entendimento de
introdutório, tão simpático que já no segundo alguns alunos, afastemos ou púnhamos entre
tema enchia as páginas de fórmulas algébricas parêntesis as más influências sociais que tanto se
triunfalmente impostas, à primeira vista, para injuriam, como são a sedução hipnótica da
desanimar os indolentes. Nada de concessões televisão que afasta dos livros, a pressa em obter
demagógicas à curiosidade adolescente cujas resultados rentáveis a curto prazo que impede a
perguntas, na sua maioria, são espontaneamente necessária paz escolar, os grandes exames de
metafísicas. Mais vale que fujam se não estão estado, tipo selectividade, cujo carácter crucial
dispostos a submeter-se ao ascetismo do destrói fatalmente toda a aprendizagem (…).
enigmático ou do árduo… Examinando esses Sem rejeitar o apoio de todas as outras, eu creio
guisados insuportáveis vem-nos à memória a que a principal causa da ineficácia docente é a
resplandecente lição de Montaigne, exposta, pedantaria pedagógica.
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aprendizagem, inteirar-se das descobertas mais esquecer nunca que a sua obrigação consiste em
recentes e até descobrir por si mesmo. mostrar, para cada disciplina, um panorama
Adoptar desde o começo os ares geral e um método de trabalho a pessoas que, na
enfadados do tecnicismo (talvez vitais para o sua maioria, não voltarão a interessar-se
especialista, mas que têm muito pouco que ver profissionalmente por esses temas. Não deve
com a vitalidade de quem o não é) não só não o limitar-se apenas a informar sobre os factos e
convencerá da importância do estudo que lhe é teorias essenciais, mas deve também tentar
proposto mas dissuadi-lo-á dele, persuadindo-o apontar os caminhos metodológicos como se
de que é algo alheio aos seus interesses ou chegou a eles e como podem ser prolongados
prazeres. frutuosamente (…). Ambas as tarefas são
imprescindíveis, porque não pode haver
O pedante dirige-se aos seus alunos «criadores» sem notícias do fundamental que os
como se estivesse apresentando uma precede — todo o conhecimento é transmissão
comunicação perante um congresso em que de uma tradição intelectual — nem serve para
estivessem presentes os seus mais distintos e nada memorizar fórmulas ou nomes se se
exigentes colegas, todos eles dedicados há longos carecer de guia para indagação pessoal.
anos à disciplina dos seus desvelos. Mas, como a A pedagogia contemporânea justificando
maioria dos jovens não demonstra o devido a sua recusa de um ensino decrépito constituído
entusiasmo nem a compreensão requerida, por litanias memorísticas, tende, em excesso, a
desespera e amaldiçoa-os. Conheci professores minimizar a importância do treino da memória,
de bacharelato indignados com a ignorância dos chegando até a satanizá-la como um resíduo
seus alunos, como se a obrigação de os tirar obsoleto de épocas educativamente obscuras.
dessa ignorância não fosse sua. No fundo, o Todavia, não existe inteligência sem
problema do pedante é que não quer ensinar os memória; não se pode desenvolver a primeira
neófitos, mas sim ser admirado pelos sábios e sem treinar e alimentar também a segunda. O
provar a si mesmo que vale tanto ou mais do que exercício de recordar ajuda a entender melhor,
eles. ainda que não possa substituir a compreensão
A humildade do mestre, pelo contrário, quando esta está completamente ausente (…).
consiste em renunciar a demonstrar que está
acima dos outros e em esforçar-se por ajudar a Mas sobretudo o professor tem de
subir os outros. O seu dever é estimular para que fomentar as paixões intelectuais, porque são o
todos façam descobertas, não pavonear-se pelas contrário da apatia esterilizadora que se refugia
que ele próprio realizou. na rotina e que é o mais oposto que existe à
Mas será que uma criança pode fazer cultura. E essas paixões brotam de baixo, não
descobertas? Naturalmente que sim, quanto caem do céu dos que crêem já saber tudo. Por
menos se sabe, mais se pode descobrir, se isso, não se deve desdenhar a linguagem
alguém lhe ensinar com arte e paciência. Não acessível, nem as referências ao popular, nem o
serão provavelmente descobertas a partir da humor, sem o qual a inteligência mais não é do
perspectiva própria da ciência, mas sim do ponto que um guisado de imbecilidades elevadas.
de vista de quem se está iniciando nela. Mas são No campo das letras isto é particularmente
essas descobertas pessoais de coisas que «já toda importante (ou talvez me pareça a mim, porque
a gente sabe» como comentam sarcasticamente não estou familiarizado de igual modo com os
os maus professores, que levam os adolescentes estudos científicos). Não se pode passar do nada
a procurar, a inquirir e a prosseguir o seu estudo. para o sublime sem paragens intermédias, não se
O professor de bacharelato não deve deve exigir que quem nunca leu comece por
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saber pensar correctamente, de forma a saber numa simples perspectiva entre outras, sem
actuar. Para lutar eficazmente contra as coisas e direito a um reconhecimento educativo especial
contra os homens, são necessárias armas sólidas e suspeita de dogmatismo quando reclama esse
e não esses brilhantes ornamentos com que reconhecimento.
pedagogos humanistas estão tão ocupados a
enfeitar a mente». Aqui sim dá-se uma quebra das
humanidades, porque não há humanidades sem
Os estudos humanísticos (…), parece-me respeito sem preferência pelo racional, sem
importante recordar, que nasceram de uma fundamentação racional através da controvérsia
disposição laica e profana (no sentido que se do que deve ser respeitado e preferido. É
opõe a «sagrado») recuperando e apreciando o frequente ouvir reprovar este racionalismo por
magistério intelectual de nossos semelhantes ter uma fé cega na omnipotência da razão, como
mais ilustres, em lugar de o esperar apenas da se semelhante credulidade fosse compartilhada
divindade através dos seus porta-vozes com o uso crítico dessa capacidade ou pudesse
oficialmente autorizados. É certo que também os desmentir-se sem recorrer a ela. A razão só
ancestrais gregos e romanos acreditavam em resulta beatificada pelos que a utilizam pouco,
deuses, mas em deuses que não pretendiam não pelos que a empregam com assiduidade
saber escrever: só os homens escreviam, pelo que exigente. Não menos comum é a recusa do
os seus textos — até os mais teológicos — foram racional em nome da condenação do
sempre marcadamente humanos (…). O etnocentrismo, censurando-o derrogatoriamente
analfabetismo dos deuses greco-latinos deu de «razão ocidental», como se os conhecimentos
origem a um magnífico caldo de cultura para as empíricos e as reflexões teóricas — não as
letras humanistas, que romperam assim com a superstições, que também abundam no Ocidente
angústia esterilizadora de escrituras com — que acontecem noutras latitudes não
dogmático o copright celestial. Mas, se os antigos correspondessem a parâmetros racionais (…)
deuses não escreviam nem tinham promulgado
ortodoxia alguma que devesse ser respeitada,
onde iam buscar aqueles filósofos e sábios de Não há educação se não há verdade a
tempos pretéritos a sua autoridade intelectual? transmitir, se tudo é mais ou menos verdade, se
Pois, sem dúvida, o respeito racional que cada um tem a sua verdade, igualmente
inspiravam aqueles que lhes dedicavam as suas respeitável, e se não se pode decidir
horas de estudo. racionalmente entre tanta diversidade. Nada
Este respeito racional, que é respeito pela pode ser ensinado se nem sequer o professor
razão à margem da fé e às vezes acredita na verdade que ensina e no quanto é
sub-repticiamente contra ela, configura o importante saber verdadeiramente. O
verdadeiro ponto de partida das humanidades e pensamento moderno, com Nietzsche à cabeça,
do humanismo. sublinhou com razão a parte de construção social
que há nas verdades que assumimos e a sua
Estou-me a referir aqui a uma batalha vinculação à perspectiva ditada pelos diversos
defendida e ganha pelo racionalismo já lá vai interesses sociais em conflito.
tanto tempo que já não tem sentido voltar a ela A metodologia científica e, inclusive, a
nos nossos dias? Não estou tão seguro, porque simples prudência indicam que as verdades não
hoje abundam não só a superstição e os contos são absolutas ainda que assim nos pareçam. São
milagrosos (nem sempre de cunho religioso) mas frágeis, passíveis de serem revistas, sujeitas a
também o menosprezo pela razão, convertida controvérsia e por fim perecíveis, mas nem por
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isso deixam de ser verdades, isto é, mais sólidas, qualquer desenvolvimento intelectual ou social
mais justificadas e mais úteis que outras crenças da humanidade.
que se lhes opõem. São também mais dignas de Para não falar do «direito a ter a sua
serem estudadas, ainda que o mestre que as própria opinião» que não é o direito de pensar
explica não deva ocultar a possível dúvida crítica por si mesmo e submeter a uma confrontação
que as acompanha (qualquer mestre recorda as racional o pensado, mas sim o de manter a
verdades que aprendeu e que não o serão mais própria crença, sem que ninguém interfira com
para os seus alunos). incómodas objecções.
A verdade esvoaça por entre as dúvidas Este subjectivismo irracional convence
como a pomba de Kant voa no ar que lhe oferece mais rapidamente as crianças e os adolescentes,
resistência mas que, ao mesmo tempo, a que se habituam a supor que todas as opiniões
sustenta. Falando de voar, Richard Dawkins dá o — isto é, não só a do mestre que sabe do que está
exemplo da aviação como prova intuitiva de que a falar como também a deles que parte da
nem todas as verdades são aceites como simples ignorância — valem o mesmo e que não dar o
convenções culturais do momento; se não braço a torcer é sinal de personalidade autónoma
concedêssemos aos seus princípios mais e que tentar convencer o outro do seu erro, com
veracidade que a que costumamos atribuir aos argumentos e informação adequada, é exemplo
discursos dos políticos ou às prédicas dos curas, de tirania.
nenhum de nós subiria jamais a um avião. A tendência para converter as opiniões em
parte simbólica do nosso organismo e para
A busca racional da verdade, melhor considerar tudo quanto as desmente como uma
dizendo, das verdades sempre fragmentárias agressão física («feriu as minhas convicções»)
(…), tropeça na prática pedagógica com dois não constitui uma dificuldade apenas para a
grandes obstáculos inter-relacionados, a educação humanista como também para a
sacralização das opiniões e a capacidade de convivência democrática. Viver numa sociedade
abstracção. plural impõe assumir que o que é
Em vez de serem consideradas propostas verdadeiramente importante são as pessoas, não
imprecisas, limitadas pela insuficiência de as suas opiniões, e que estas devem ser escutadas
conhecimentos ou pela aceleração, as opiniões e discutidas e que não nos devemos limitar a
convertem-se em expressão irrebatível da vê-las passar, sem as tocar, como se fossem vacas
personalidade do sujeito («esta é a minha sagradas.
opinião», «essa é a sua opinião») como se o
relevante delas fosse a quem pertencem, e não o O que o mestre deve fomentar nos seus
que as fundamenta. A velha e deselegante frase alunos é a disposição para conseguirem
que os tipos duros de algumas películas estabelecer a não irrevogabilidade do que
americana, costumam dizer – «as opiniões são escolheram para pensar (a «voz da sua
como os cus, cada um tem o seu» – ganha força, espontaneidade», a sua «auto-expressão», etc.) e
porque nem sobre as opiniões nem sobre os sim, a capacidade de participar frutuosamente
traseiros, pelos vistos, é possível existir qualquer numa controvérsia razoável, ainda que isso
discussão e ninguém pode desprender-se de «fira» os dogmas pessoais ou familiares de
umas ou do outro, ainda que o queira. alguns dos seus alunos.
A isso, junta-se uma obrigação beatífica de É aqui que reside a alarmante falta de
«respeitar as opiniões alheias», que, se na hábito de abstracção dos neófitos, cuja ausência
verdade se pusesse em prática, paralisaria todo e também os professores de matérias
_______________________________________________________________ Documentos anexos. O valor de educar 9
sempre uma actividade, em si mesma, dois momentos diferentes da história. Ontem era
intelectual, um esboço de pensamento, algo mais a valentia que tinha a primazia com todas as
activamente mental que ver imagens. Depois da faculdades que implicam as virtudes militares,
palavra falada, a palavra escrita é o remédio hoje em dia (Durkheim escreve em finais do
mais potente que se inventou para o crescimento século passado 2) é o pensamento e a reflexão,
intelectual (…). porventura amanhã será o refinamento do gosto
e a sensibilidade, até mesmo as coisas da arte.
Assim, o nosso ideal pedagógico é, até nos seus
2. Educar é universalizar mais pequenos detalhes, obra da sociedade.»
prejudiciais (…). Com a sua habitual coragem Platão e seguindo por Abelardo, Erasmo, Luís
intelectual, Hannah Arendt formulou-o sem Vives, Tomás Moro, Rabelais, etc. (…)
rodeios: «Parece-me que o conservadorismo,
tomado no sentido de conservação, é a própria Quem pretende educar converte-se, de
essência da educação, que tem sempre como certo modo, em responsável pelo mundo face ao
tarefa envolver e proteger alguma coisa, seja a neófito, como muito bem assinalou Hannah
criança contra o mundo, o mundo contra a Arendt, se lhe repugna esta responsabilidade,
criança, o novo contra o velho ou o velho contra mais vale que se dedique a outra coisa e que não
o novo». estorve. Tornar-se responsável do mundo não é
Em resumo, a educação é, antes de tudo, aprová-lo tal como ele é, mas sim, assumi-lo
transmissão de alguma coisa, e só se transmite conscientemente porque é e porque, só a partir
aquilo que quem vai transmitir considera digno do que é, pode ser emendado. Para que haja
de ser conservado (…). Educamos para satisfazer futuro, alguém deve aceitar a tarefa de
um pedido que corresponde a um estereótipo — reconhecer o passado como próprio e oferecê-lo
social, pessoal — mas nesse processo de àqueles que vêm depois de nós.
formação criamos uma insatisfação que nunca Logo à partida, essa transmissão não deve
conforma completamente... Constatação excluir a dúvida crítica sobre determinados
estimulante, ainda que, do ponto de vista conteúdos de conhecimentos e a informação
conservador, isso constitua um certo escândalo. sobre opiniões «heréticas» que se opõem com
Ora acontece que, em segundo lugar, a argumentos racionais à forma de pensar
sociedade nunca é um todo fixo, acabado em maioritária. Acredito que o professor não pode
equilíbrio mortal. Em caso algum deixa de curto-circuitar o ânimo rebelde do jovem com a
incluir tendências diversas que também fazem exibição desavergonhada de si próprio. Não há
parte da tradição que as aprendizagens pior desgraça para os alunos que o educador
comunicam. Por mais oficialista que seja a empenhado em compensar com os seus comícios
pretensão pedagógica, acaba sempre por as frustrações políticas que não sabe ou não pode
acontecer o que Huhert Hannoun aponta em expor frente a outro público melhor preparado.
Comprendre l'education: «a escola não transmite Em vez de explicar o passado a que
exclusivamente a cultura dominante, mas sim o pertence, desliga-se dele como se fosse um
conjunto de culturas em conflito no grupo em recém-chegado e bloqueia a perspectiva crítica
que nasce». que os neófitos deveriam exercer, ensinando-lhes
A mensagem da educação abarca sem- a recusar o que ainda não tiveram oportunidade
pre, ainda que seja como anátema, o seu reverso de entender. Fomenta-se assim o pior
ou, pelo menos, algumas das suas alternativas. conservadorismo docente, o da seita que segue
Isto é particularmente evidente na modernidade, com dócil sublevação, o guru iconoclasta. (…)
quando a complexidade de saberes e quereres «Precisamente para preservar o que é novo e
sociais tende a converter os centros de estudo em revolucionário, em cada criança, a educação
âmbitos de contestação social ao vigente, se bem deve ser conservadora — sustenta Hannah
que isso sempre tenha ocorrido. Pedagogos como Arendt» (…).
Rousseau, Max Stirner, Marx, Bakunine ou John
Dewey marcaram linhas de dissidência colectiva O que se segue dirige-se àqueles que,
por vezes tão espectaculares como as que como eu, estão convencidos da expectativa social
confluíram em 1968, mas a história da educação de formar indivíduos autónomos, capazes de
conheceu anteriormente numerosos participar em comunidades, que saibam
revolucionários, começando por Sócrates ou transformar-se, sem se renegarem a si próprias,
12 Cadernos de Pedagogia _________________________________________________________________________
que se abram e ampliem sem perecer (…). Gente, sentido, o esforço educativo é sempre rebelião
enfim, convencida de que o principal bem que contra o destino, sublevação contra o fatum, a
temos que produzir e aumentar é a humanidade educação é a antifatalidade não a adaptação
compartilhada, semelhante no fundamental, programada (…).
apesar das tribos e privilégios com que também
muito humanamente nos identificamos. De No passado, o peso da origem baseava-se
acordo com este argumento, parece-me que o sobretudo na linhagem socioeconómica de cada
ideal básico que a educação actualmente deve um (e, certamente, na separação dos sexos, que é
conservar e promover é a universalidade a discriminação básica em quase todas as
democrática. (…). culturas). Hoje continuam vigentes ambos os
critérios antiuniversalistas em demasiados
Comecemos pela universalidade. lugares do nosso mundo. Donde, um Estado sem
Significa pôr a acção humana — linguística, preocupação social não corrige os efeitos das
racional, artística… — acima dos seus modismos, escandalosas diferenças de fortuna: uns nascem
valorizá-la no seu conjunto, antes de começar a para ser educados e os outros devem contentar-
ressaltar as suas peculiaridades locais e se com uma domesticação sucinta que os
sobretudo não excluir ninguém à priori do capacite para as tarefas ancestrais que os
processo educativo que a potencia e desenvolve. superiores nunca concordariam em realizar.
Durante séculos, o ensino serviu para Deste modo o ensino converte-se numa
discriminar uns grupos humanos face a outros, perpetuação da fatal hierarquia socioeconómica
os homens face às mulheres, os poderosos face em lugar de oferecer possibilidades de
aos indigentes, os citadinos face aos camponeses, mobilidade social e de um equilíbrio mais justo
os clérigos face aos guerreiros, os burgueses face (…). Mas, nas sociedades democráticas mais
aos operários, os «civilizados» face aos desenvolvidas socialmente, a educação básica
«selvagens», os «sensatos» face aos «tontos», as costuma estar garantida para todos e, em
castas superiores face e contra as inferiores. conformidade, as mulheres têm o mesmo direito
Universalizar a educação consiste em que os homens ao estudo (obtendo,
acabar com essas manipulações discriminatórias, normalmente, melhores resultados que estes).
ainda que as etapas mais avançadas do ensino Então, a exclusão pela origem tenta
possam ser selectivas e favoreçam a afirma-se de uma maneira diferente e
especialização de cada um de acordo com a sua supostamente mais «científica». Trata-se das
peculiar vocação; a aprendizagem básica dos disposições genéticas, a herança biológica
primeiros anos não deve ser regateada a recebida por cada um, que condiciona os bons
ninguém, nem deverá dar, antecipadamente resultados escolares de uns, enquanto condena
como certo que alguém «nasceu» para muito, outros ao fracasso. Se existem pessoas ou grupos
para pouco ou para nada. Esta questão da étnicos geneticamente condenados à ineficiência
origem é o principal obstáculo que tenta demolir escolar porquê dar-se ao incómodo de os
a educação universal e universalizadora. Cada escolarizar? Um teste de inteligência aplicado
qual é o que demonstra que sabe ser com o seu atempadamente pouparia ao Estado muitos
empenhamento e habilidade, não o que seu custos que poderiam ser utilizado mais
berço — esse berço biológico racial, familiar frutiferamente noutras tarefas de interesse
cultural, nacional, de classe social, etc. — o público (novos aviões de combate, por exemplo).
predestina para ser, segundo a hierarquia de Não é por acaso que as deficiências do sistema
oportunidades estabelecida por outros. Neste educativo dos Estados Unidos o tornam
_______________________________________________________________ Documentos anexos. O valor de educar 13
como um ideal valioso, promovido mas também nação podem compreender as outras pessoas
espezinhado inúmeras vezes pelo ocidente dessa mesma nação, que só os negros podem
(signifique o que significar este confuso termo). entender os negros, os amarelos os amarelos e os
Não. A universalidade não é património brancos os brancos, que só os cristãos
exclusivo de nenhuma cultura – o que seria compreendem os cristãos e os muçulmanos os
contraditório – mas sim uma tendência que muçulmanos, que só as mulheres entendem as
existe em todas mas que também em toda a parte mulheres, os homossexuais os homossexuais e os
é obrigada a confrontar-se com o provincianismo heterossexuais os heterossexuais. Cada tribo
cultural do idiossincrático insolúvel, igualmente deve permanecer fechada em si mesma, idêntica
presente nas latitudes aparentemente mais de acordo com a sua «identidade», estabelecida
opostas. A tarefa educativa mais apropriada pelos patriarcas ou caciques do grupo,
para o nosso mundo hipercomunicacional ensimesmada na sua pureza de pacotilha.
consiste precisamente em potenciar essa
tendência comum e ameaçada para a variedade, E que, portanto, deve haver uma educa-
mas não para o tribalismo (…). ção diferente para cada um destes grupos que
Porventura, o afã histérico de ser os «respeite», isto é, que confirme os seus
inconfundível e impenetrável para os outros seja preconceitos e não lhes permita abrir-se e ser
apenas uma reacção face à evidência, cada vez contagiado pelos outros. Em resumo, as nossas
mais óbvia, de que os homens se parecem circunstâncias condicionam o nosso juízo, de tal
demasiado, evidência que antes só era sentida modo que nunca é um juízo intelectualmente
por alguns espíritos mais avisados e que hoje é livre, se é verdade, como Nietzsche acreditava,
colocada ao alcance de todos através dos meios que o homem livre é «aquele que pensa de modo
de comunicação social. Perderam-se assim diferente daquele que seria possível esperar-se
muitos matizes? Espreita-nos a homogeneidade tendo em vista a sua origem, o seu meio, o seu
universal? Não o creio (…). A diversidade está estado e a sua função ou as opiniões vigentes no
assegurada, ainda que, provavelmente, seja, cada seu tempo».
vez mais, desconcertantemente diversa e se vá Todos aqueles que pensam desta maneira
parecendo, cada vez menos, com as diversidades são considerados pelos colectivizadores do
purificadas com que estamos familiarizados. pensamento idêntico não como livres mas sim
Para esse processo inovador é bom que a como «traidores» ao seu grupo de pertença. Pois
educação prepare também as gerações que vão bem, aqui temos outra tarefa para a educação
vivê-lo. universalizadora, ensinar a atraiçoar,
Mas não nos enganemos, o sentido racionalmente, em nome da nossa única
sociológico da nossa actualidade não aponta verdadeira pertença essencial — a humana —,
para o inevitável triunfo «uniformizador» do tudo o que de exclusivo, fechado e maníaco
universalismo. Muito pelo contrário, são exista nas nossas filiações acidentais, por muito
angustiantes as demonstrações, aqui e ali, do acolhedoras que estas possam ser para os
êxito crescente das atitudes antiuniversalistas, espíritos comodistas que não querem mudar de
que aliás costumam proclamar-se vítimas da rotinas ou procurar conflitos.
suposta omnipotência universalizante. O que
realmente está hoje em perigosa alta é, de novo, É compreensível o temor face a um ensino
o recurso às origens como condicionamento sobrecarregado de conteúdos ideológicos, face a
inexorável da forma de pensar, isto é, dividir o uma escola mais preocupada em suscitar
mundo em duetos estanques de índole fervores e adesões inquebrantáveis do que em
intelectual. Quer dizer, só os nacionais de uma favorecer o pensamento crítico autónomo. A
16 Cadernos de Pedagogia _________________________________________________________________________
formação em valores cívicos pode converter-se, nosso mínimo denominador comum não deve,
muito facilmente, em doutrinamento para uma de modo algum, ser desperdiçada.
docilidade bem pensante, que levaria ao
marasmo se chegasse a triunfar; a explicação Não pode nem deve haver neutralidade,
necessária dos nossos principais valores políticos por exemplo, no que corresponde à recusa da
pode, também facilmente, resvalar para a tortura, do racismo, do terrorismo, da pena de
propaganda, reforçada pelas manias castradoras morte, da prevaricação dos juízes ou da
do «politicamente correcto» (…). impunidade da corrupção em cargos públicos,
Daqui que alguma «neutralidade» escolar nem tão-pouco na defesa das protecções sociais
seja justificadamente desejável, face às opções da saúde ou da educação, da velhice ou da
eleitorais concretas, oferecidas pelos partidos infância, nem no ideal de uma sociedade que
políticos, face às diversas confissões religiosas, corrija o mais possível o abismo entre opulência
face a propostas estéticas ou existenciais que e miséria. Por quê? Porque não se trata de
surjam na sociedade. Terá de ser uma simples opções partidárias mas sim de benefícios
neutralidade relativa, sem dúvida, porque não da civilização humanizadora que já não é possível
pode recusar a consideração crítica dos temas do renunciar sem se incorrer em concessão à
momento (que os próprios alunos, barbárie.
frequentemente, irão solicitar e que o mestre O próprio sistema democrático não é algo
competente terá de fazer, sem pretender situar- natural e espontâneo nos seres humanos, mas
se fora, mas declarando a sua tomada de sim algo conquistado, através de muitos esforços
posição, enquanto fomenta a exposição razoável revolucionários no campo intelectual e político:
das outras) ainda que deva evitar converter a portanto, não pode ser dado como certo, mas
sala de aulas numa fastidiosa e logomaquia deve ser ensinado com a maior persuasão
sucursal do Parlamento. É importante que na didáctica compatível com o espírito de
escola se ensine a discutir mas é imprescindível autonomia crítica. A socialização política
deixar bem claro que a escola não é um foro de demteinerocrática é um esforço complicado e
debates nem um púlpito. resvaladiço, mas irrenunciável (…).
Não obstante, essa mesma neutralidade A recomendação racional de tais valores
crítica corresponde, por sua vez, a uma não deve ser uma mera litania edificante que, no
determinada forma política, perante a qual não é melhor dos casos, acabará por aborrecê-los. Será
possível ser neutral no ensino democrático: preferível mostrar como conseguiram ser
refiro-me à própria democracia. Seria suicida historicamente imprescindíveis, e o que ocorre
que a escola renunciasse a formar cidadãos onde, por exemplo, não há eleições livres,
democratas, inconformistas mas em tolerância religiosa ou os juízes são venais. Seria
conformidade com o que o modelo democrático absurdo mostrar às crianças as falhas do mundo
estabelece, inquietos pelo seu destino pessoal em que vivemos (…) [sem lhes inspirar] uma
mas não desconhecendo as exigências prudente confiança nos mecanismos previstos
harmonizadoras do público. Na desejável para emendá-las.
complexidade ideológica e étnica da sociedade
moderna (…) fica a escola como o único âmbito
geral que pode fomentar o apreço racional por
aqueles valores que permitem a convivência
conjunta aos que são satisfatoriamente diversos.
E essa oportunidade de inculcar o respeito pelo