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UERJ – IFCH

Especialização em Filosofia Moderna e Contemporânea


Ética
Prof. Dr. Fabiano Lemos
Aluno: Afrânio Santiago

Immanuel Kant é um homem que não teme a morte. Pudera. Em oposição ao dito popular,
em que se nos informa que sempre tememos o desconhecido, aqui, com Kant, não podemos temer
justo o que não podemos conhecer. Tomemos-lhe emprestadas algumas poucas palavras, em
passagem do prefácio de 1978 à obra “O Conflito das faculdades”:

“ Por fim, como sempre e acima de tudo recomendei a outros adeptos da fé uma
sinceridade escrupulosa , para não asserir e impor a outros como artigos de fé mais do que aquilos
de que eles estão certos, sempre imaginei em mim mesmo, na redação de meus escritos, este juiz
como estando ao meu lado não só para me desviar de todo erro prejudicial à alma, mas até de todo
ímpeto que gerasse imprudência no estilo; por isso, agora nos meus 71 anos de idade, em que
facilmente desponta o pensamento de que pode muito bem acontecer ter eu de responder em breve
por tudo isto perante um juiz do mundo como perscrutador dos corações, posso entregar a presente
justificação de mim exigida a propósito da minha doutrina, como redigida candidamente com toda
retidão” (Kant, 1993).

Sua alma, então diante de Deus - cujas ideias assombrosas simplesmente pairam além dos
limites da pura razão, estaria então “candidamente” disposta a oferecer defesa. Não é pouco. Trata-
se de um imenso postar-se diante da tradição metafísica ocidental. Esta postura, ou melhor, esta
impostura, inaugura uma tendência essencialmente moderna. Ela abre as portas do pensamento
filosófico à possibilidade de pensar a secularização. Isso traz enormes dificuldades e desafios; mais:
isso traz à tona uma certa angústia que sem justificação apropriada e rigorosa leva o homem a uma
situação existencial intolerável. Como justificar as ações humanas sem a presença da ideia de um
Criador absoluto, infinito e perfeito, sem a imponência metafísica de um - como bem diz Kant,
“Grande Juiz do mundo como perscrutador de corações? Como justificar toda grande e pequena
ação humana sem a ideia de uma existência transcendental, planificada por este Criador e Juiz
Todo-Poderoso, perfeito, onisciente e onipotente, onde se situaria um lugar garantidor da
justificação necessária, da explicação final e até mesmo da retificação ou punição daquelas? Se até
aqui podia-se imputar o erro – e mesmo o absurdo – à condição imperfeita de uma criatura deste
criador que, com Descartes, produzia-o por um mau uso de sua liberdade 1, mantendo impune e
1 Descartes, René. Meditações metafísicas, Meditação 4ª, §10. Vale aqui a trascrição de parte precisa do parágrafo:
“Por tudo isso reconhecço que nem a potência de querer, que recebi de Deus, é por si mesma a causa de meus erros,
pois ela é muito ampla e muito perfeita em sua espécie; nem também a potência de entender ou de conceber; pois
intacta estas ideias pacificadoras, como, daqui por diante, justificá-lo sem essas grandes ideias a que
se podia confiar responsabilidades e poderes infinitos. O homem, agora só, terá que realizar o
enorme exercício de introduzir no pensamento filosófico a explicação para a má conduta sem essas
grandes ideias pacificadoras; a justificação para a injustiça cotidianamente encontrada; a origem,
enfim, do erro moral. Kant então terá que dar conta da ética moderna.

O objetivo deste trabalho é apenas tentar palmilhar esse ethos moderno kantiano a partir de
dois pequenos textos do filósofo, a saber, “Resposta à pergunta: Que é o Esclarecimento?”, de 1783,
e “O Conflito das faculdades”. Ambos os textos situam-se já na fase criticista do pensamento de
Kant. No entanto, não estão costumeiramente inseridos na tradição dos estudos sobre ética em Kant,
já que esta considera principalmente as obras capitas “Fundamentação da metafísica dos costumes”,
de 1785, e “Crítica da razão prática, de 1788” em suas análises. Nessas obras, Kant desenvolve os
conceitos centrais em sua filosofia moral de boa vontade e imperativo categórico. Toda essa
extensa e espinhosa problemática não será abordada neste pequeno trabalho, o qual, como dito
acima, se restringirá aos dois pequenos menos conhecidos.

Kant situa-se historicamente no apogeu do movimento iluminista. A “Crítica da razão pura”,


de 1781, aparece no final do século XVIII; o século das Luzes. A esta época, já estão consolidadas
na intelectualidade européia as obras de pensadores como Locke, Hume, Montesquieu, Voltaire,
Rousseau e os enciclopedistas D'Alembert e Diderot. Grosso modo, o Iluminismo, que vem destruir
a nova metafísica erguida no século passado pelos grandes modernos Descartes, Espinosa e Leibniz
em oposição a metafísica medieval e antiga, caracteriza-se “ numa profunda crença na Razão
humana e nos seus poderes”, como o define Luiz Roberto Salinas Fortes (Fortes, 1986). Vale à pena
citar aqui, uma passagem um tanto longa de François Châtelet em seu prefácio ao Volume 4 da
“História da filosofia” por ele organizada, a respeito dessa atitude dos iluministas a que poderíamos
chamar “herdeiros ingratos” do pensamento moderno do século XVII.

“O século XVIII filosófico é estranho e disparatado. Eis que surge, após as grandes
construções do século precedente – de Descartes, de Malebranche, de Espinosa, de Leibniz -, uma
profusão de ideias e de invenções que ocorrem por toda parte, inquietas, e se interrogam sobre o
próprio estatuto, mas que, seguras de si também, definem seu projeto global (…). Como Roland

nada concebendo senão por meio dessa potência que que Deus me deu para conceber, sem dúvida tudo o que
concebo concebo-o corretamente, e não e possível que nisso me engane. De onde nascem meus erros? A saber, só do
fato de que, sendo a vontade muito mais ampla do que o entendimento, não a contenho nos mesmos limites, mas a
estendo também às coisas que não entendo; sendo por si indiferente a elas, (…)”. Notando que o verbo 'conter'
encontra-se aqui na 1ª pessoa do singular, fica patente que a origem das ações 'erradas' encerram-se no homem, de
tal modo garantido pelo Deus-Juiz-Criador. Grifos meus. (Descartes, 2005)
Desné mostra com precisão em sua análise da filosofia francesa do século XVIII, os mestres estão
presentes: Descartes, Gassendi, Hobbes, Espinosa; eles garantem a proteção contra o pesado
passado do discurso filosófico medieval; eles introduziram o que doravante deve ser o problema do
pensamento: a atividade científica, a realidade política. Eles desmascararam a teologia e seus
alcance efetivo; deslocaram a questão filosófica substituindo a equação Deus/Mundo/Homem pela
do sujeito cognoscente/natureza unificada/saber universal. No entanto, ao operar essa inversão, nada
mudaram na norma estilística da filosofia. Mantiveram o que criticavam. Das grandes descobertas –
da América à revolução galileu-copernicana – só conservaram o que lhes convinha. Esses escritores
“filosofantes” do século XVIII consideram, no final das contas, que a nova metafísica é uma
retomada da antiga. Eles querem ir além” (Châtelet, 1974).

Uma vez esboçado o panorama histórico-cultural no qual se insere Kant, adentremos agora
em seus textos, sempre com as questões suscitadas acima em mente: na falta de uma metafísica, seja
medieval ou moderna – o que deve orientar as ações do homem? Como será, numa abordagem
inicial e tão somente restrita aos textos mencionados, elaborada a ética do maior filósofo iluminista?
A palavra de ordem do Iluminismo levantada por Luiz Roberto Salinas Fortes, a saber, a Razão, nos
dá boa pista sobre o caminho a ser trabalhado por Kant. Afinal, não é Kant o filósofo que leva a
Razão ao Tribunal da Razão? Não é justamente ele quem melhor pretende definir os contornos e os
limites da Razão? Aliás, como veremos adiante, é justamente a descoberta e a ênfase dada a esses
limites que consistirá na chave para a solução de nosso problema Comecemos então por uma análise
da primeira parte da obra “O Conflito das Faculdades”, intitulada “Questão renovada: estará o
gênero humano em constante progresso para o melhor?”.
Aqui, Kant já mostra com toda evidência o quão limitada é a razão quando opera em certas
questões, no caso, a questão do progresso. Para saber se a humanidade está em constante progressão
para o melhor, o filósofo afirma que há duas maneiras. Ou se faz uma história profética, ou uma
história divinatória. No primeiro caso, estamos no âmbito da revelação, do influxo sobrenatural,
que afirma o progresso para o melhor porque de tal ou tal modo pode antever as ações do homem.
Ora, nada mais afastado do pensamento kantiano do que semelhantes posturas diretamente
relacionadas à fé. No entanto, ao refutar a possibilidade da razão realizar uma história divinatória, é
à história profética que Kant irá associar um dado acontecimento histórico – um dado da
experiência – para poder chegar a alguma conclusão quanto ao problema do progresso da
humanidade. Este acontecimento é a Revolução Francesa, e sua lição quanto ao progresso mostra-se
na participação desinteressada no limite do entusiasmo de todo um conjunto de homens diante da
Revolução. Mas, por ora, vejamos o outro texto aqui trabalhado. Só assim poderemos entender
melhor e voltar ao significado histórico dessa participação desinteressada.
De imediato, imitemos o autor e definamos sem mais o conceito de esclarecimento (ou
iluminação, em outra tradução possível). Esclarecimento (Aufklärung) é a saída do homem de sua
menoridade da qual ele próprio é culpado. Ora, para entender melhor o que quer dizer o filósofo
temos também que definir menoridade. Para Kant, menoridade é a heteronomia, a dependência de
um indivíduo em relação a outrem. Em outras palavras, é a incapacidade de fazer uso da própria
razão, de se tornar autônomo, de empreender a realização da autonomia da razão.
Acreditamos que a ideia de autonomia é central para a compreensão da ética desenvolvida
por Kant. Na própria definição do imperativo categórico, ela aparece muito claramente: age de tal
modo que a máxima de tua ação possa pela tua vontade converter-se em Lei universal da natureza.
Também aqui, na definição do conceito de esclarecimento, vemos que ela é de suma importância,
pois que a saída da menoridade nada mais é que o exercício da própria razão. Em poucas palavras, é
esclarecido quem é autônomo. Dessa necessidade de autonomia decorrerá, posteriormente, a
exigência de Kant quanto a convergência da figura do legislador e do legislado em um Estado ou
sociedade que se quer esclarecida.
Neste ponto, Kant pontua que o esclarecimento do indivíduo é muito incerto e, ademais,
pouco interessa à filosofia. Entretanto, o esclarecimento da espécie humana é inevitável, desde que
lhe seja dada uma única pré-condição, a saber, a liberdade. Mais uma vez, encontramos a noção de
autonomia como que permeando o pensamento kantiano. A liberdade, aqui, é o uso público da
própria razão. Como Kant define e separa um uso privado da razão e um seu uso público, temos que
só é verdadeiramente autônomo aquele que usa sua razão em questões variadas dirigindo-se a um
vasto público, ou melhor, ao verdadeiro público: o mundo. Por mais erudito que seja o indivíduo, se
ele não ousa – Sapere aude! - elevar-se e se dirigir ao grande público, ele não estará no exercício do
esclarecimento, pois que como mero funcionário de uma instituição ele não deixa de pensar com
ferramentas alheias, não é, por fim, autônomo.
Fica agora mais claro o que aquela “participação desinteressada” pode significar. Os
homens, ainda que não aqueles diretamente envolvidos na Revolução, traem, por sua própria
vontade, um apoio aos acontecimentos que se desenrolam. Voltemos ao texto:

“Este acontecimento não consta de ações ou crimes importantes, cometidos pelos


homens, pelos quais o que era grande entre os homens se tornou pequeno, ou o que era pequeno se
fez grande; e que assim, como por magia, se desvanecem antigos e brilhantes edifícios políticos e,
em seu lugar, brotam outros, como das profundezas da terra. Não, nada disso. É simplesmente o
modo de pensar dos espectadores que se trai publicamente neste jogo de grandes transformações, e
manifesta, no entanto, uma participação tão universal e, apesar de tudo, desinteressada dos
jogadores num dos lados, contra os do outro, inclusive com o perigo de se lhes tornar muito
desvantajosa esta parcialidade, demonstra assim (por causa da universalidade) um caráter do genero
humano no seu conjunto e, ao mesmo tempo (por causa do desinteresse), um seu caráter moral,
caráter que não só permite esperar a progressão para o melhor, mas até constitui já tal progressão,
na medida em que se pode por agora obter o poder para tal”. (Kant, 1993)

Deste modo, da análise destes dois textos de Kant, vemos como que a ética por ele
desenvolvida, agora totalmente afastada da metafísica antiga assim como também daquela que
acabaram por edificar os pensadores do século XVII, está baseada na centralidade e autonomia do
homem. Doravante, a justificação de suas ações está inscrita no princípio racional do dever. Vemos
também como que essa “autonomia” opera importante função. Do “ousa saber” no uso público da
razão à “participação desinteressada do conjunto do gênero humano num dado acontecimento
histórico, é ela, a autonomia, que vem a ser sempre exigida. Então a razão, por si, comanda o rumo
das ações.
Se Descartes imputa a origem do erro e das más ações no homem, este, no entanto, enquanto
não estiver só, permanece heterônomo em relação a este Algo que lhe faz permanente compania.
Pensar como os modernos do século XVII, isto é, deixar subsistir por último uma ideia como a de
“Deus”, é ser precisamente o contrário dessa premissa kantiana: “Ousa saber por si!”. Poderíamos
nos ver tentados então a sentenciar: reina então a Razão no Império da Lei. Sim, é quase isso, se
Kant não fosse grande o bastante para enxergar que no homem – afinal, aquilo que lhe interessa – a
razão deve guardar limites, pois há algo de estranho nela própria e que noutra época dará ensejo e
impulso a movimentos filosóficos contrários ao rigorismo racionalista kantiano. Mas isso já não
cabe nos também estreitos limites do presente trabalho.
REFERÊNCIAS:

Immanuel Kant, - O Conflito das faculdades. Edições 70, Lisboa, 1993.


– Resposta à Pergunta: Que é “Esclarecimento”? (“Aufklärung”). Vozes,
Petrópolis, 1985.

René Descartes, Meditações metafísicas. Martins Fontes, São Paulo, 2005.

Fortes, Luiz R. Salinas, O Iluminismo e os reis filósofos. São Paulo, Brasiliense, 1986.

Châtelet, François (org.), História da filosofia: Ideias, doutrinas. Rio de Janeiro, Zahar
Editores, 1974.

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