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Obras Selecionadas
Volume 4
Debates e Controvérsias, II
Da Ceia de Cristo — Confissão
produto de suas cabeças, contra o claro teor das palavras, nem nos queremos
dar por vencidos. Pois, se é que devemos apegar-nos a palavras nuas e simples,
preferimos ater-nos ao texto nu e simples que Deus mesmo pronuniou, do que
a glosas nuas e sem fundamento, inventadas por homens. Ainda que batizem
e chamem essas glosas de abonaçâo da Escritura e as tenham como expressão
de fé, isso não nos incomodará, até que também provem que se trata de expres-
são da Escritura e da fé, como erroneamente o denominam. Pois deveriam ad-
mitir que nós, tampouco quanto" eles, não queremos defender ensinamentos
errados, como, aliás, graças a Deus, o comprovamos com fatos melhor e mais
do que eles, de m odo que não podem gloriar-se de só eles terem essa mentali-
dade. Cristo será juiz de todos os que mentem e enganam.
Quero vangloriar-me em Deus que no presente Íivrinho esclareci amplamen-
te não poder haver tropo na Santa Ceia. Pelo contrário, as palavras devem ser
entendidas ao pé da letra: “ Isto é meu corpo, isto é meu sangue” ; disso tenho
certeza. Se fossem tropos, deveriam sê-lo em todas as passagens em que se fala
da Santa Ceia. Vimos, no entanto, que os próprios entusiastas ensinam e ad-
mitem que não há tropos nas palavras de Paulo: “ Quem comer e beber indig-
namente é reu do corpo e do sangue de Cristo” [1 Co 11.29], e, portanto, tam -
bém não na seguinte frase: “ O cálice da bênção que abençoamos é a comu-
nhão do sangue de Cristo, etc.” [1 Co 10.16], Em relação a isso nada há o
que possam contrapor-nos. Portanto, se não há tropo na Santa Ceia, está sufi-
cientemente claro que nossa interpretação está correta e a dos entusiastas equi-
vocada e errada. O sexto capítulo de João fica para outra oportunidade, vis-
to que nada diz a respeito da Santa Ceia e porque já foi tratado por outros,
como Filipe Melanchthon e João Brenz e outros mais, se bem que pretendo
tratar dele num sermão e dar assim minha contribuição224.
Terceira parte225
Vejo que, a cada dia que passa, há mais sectarismo e equívoco, e não luí
fim para a raiva e fúria de Satanás. P ara que não aconteça que, durante mi-
nha vida ou depois de minha morte, alguém invoque e cite meus escritos inade-
quadamente para confirmar seu engano, como, aliás, os entusiastas do Sacra-
mento e do Batismo já começaram a fazer, quero, com este livro, confessar
perante Deus e o mundo todo, ponto por ponto, minha fé, na qual pretendo
224 I.u lc ro não conseguiu c u m p rir seu p ro p ós lio desta fo rm a. Som ente ocupou-sc co m o assunto
cm sermões sobre J o 6.26-28, proferido s entre 5 de no ve m b ro de 1530 a 9 de mai\'o de 15.12.
0 lexto enconlra-sc cm W A 33, lss. As A n n a ta tio n e s in E v vn g eliu in Jo lu um in , de M ela ucltliio ii,
1 .ulcro m a nd ara p ublica r cm 1523 co m u m a carta anexa (cf. W A 12,53ss.). Hrvn/. p ub lic aia sua
Iixcficsis in E vM iffclinm Jo lu m n is — (Kxplieaç âo d o Kvangelho segundo J o ã o ) em 157.7.
?.?.5 < T. In tro d ução .
Da Ceia de Cristo — Confissão
permanecer até minha morte, nela partir deste mundo (que Deus me ajude) e
comparecer ao tribunal de nosso Senhor Jesus Cristo. E se alguém, depois de
minha morte, disser: Se Lutero vivesse hoje, ele entenderia e ensinaria este ou
aquele artigo de form a diferente, porque, à época, não o havia analisado sufi-
cientemente, etc. — digo agora, uma vez por todas: pela graça de Deus, anali-
sei todos esses artigos reiteradas vezes, com o maior zelo possível, à base das
Escrituras, e os defenderei com a mesma convicção com que aqui defendi o
Sacramentio do Altar. Não estou embriagado nem procedo de modo impruden-
te. Sei muito bem o que estou dizendo; também tenho consciência do que is-
so significa para mim no juízo final de nosso Senhor Jesus Cristo; por isso
não admito que alguém tome isso por brincadeira ou conversa tola. Estou fa-
lando sério. Pela graça de Deus, conheço o demônio um bocado. Se é capaz
de perverter e embaralhar a palavra de Deus e as Escrituras, que não haveria
de fazer com minhas palavras ou com as de qualquer outra pessoa?
Em primeiro lugar, creio de todo o coração no sublime artigo da majesta-
de de Deus: que Pai, Filho e Espírito Santo, três pessoas distintas, é o verda-
deiro, único, natural e genuíno Deus, criador do céu e da terra, em completa
oposição aos arianos, macedônianos, sabelianos226 e outras heresias semelhan-
tes, com base em Cln 1, como está sendo sustentado até aqui tanto na Igreja
Romana como também nas Igrejas cristãs do mundo todo.
Em segundo lugar, creio e sei que a Escritura nos ensina que a segunda
pessoa da divindade, o Filho, foi o único a se tornar verdadeiro homem, con-
cebido do Espírito Santo, sem o concurso de um homem, e dado à luz pela
pura e santa virgem Maria, como de mãe verdadeira e natural, como Lucas o
relata claramente [Lc 1.26ss.] e os profetas o anunciaram. De modo que não
foi o Pai nem o Espírito Santo que se fez homem, como ensinaram alguns he-
reges227. [Creio também] que Deus Filho não assumiu apenas o corpo sem a
alma (como disseram alguns hereges228), mas inclusive a alma, ou seja, uma
humanide completa e verdadeira, e que nasceu como o verdadeiro descenden-
te ou filho de Abraão prometido, e como filho natural de Maria, verdadeiro
homem sob todos os aspectos e formas, como o sou eu e todos os outros; no
entanto, que veio sem pecado, somente da virgem, pelo Espírito Santo. E
226 Arianos: adeptos da d o u trin a de Á rio (m . depois de 335), sacerdote (presbitero) em A lex an dria
(lig ito ); essa d o utrina negava a divinda de do Lo go s (C risto), p o r isso f o i co n d en ad a pe lo C o n
cilio de N icéia, em 325 (cf. O bras Se le cio nada s, v. 3, p p . 337ss.). — M a ce do nia no s: adeptos
ila d o u trin a de M a ce d ô nio (de 342 a 360 bisp o d c C o ns tan tin o pla ); esta d o u trin a negava a d i
vinda de d o E spírito San to , p o r isso fo i co n de nad a pelo C o ncilio de C o ns ta ntin o p la , em 3X1
(cf. Obras S eleciona da s, v. 3, p p . 362ss.). — Sabeliano s: adeptos da d o u trina de Sa hclio (des
de 215, apro xim a da m e nte, em R o m a); esta d o u trin a ensinava que Deus P a i, F ilh o e Kspírilo
Santo n ão são três pessoas, m as três m o do s de D eus se revelar (“ m o d a lis m o ” ); Sab élio foi o
co m u n g ad o pelo bispo r o m a n o C alixto I (217-222).
227 O s “ m o d alis las ” , c o m o Sabélio , p. ex. (cf. n. anterior).
22X ( c a . 310-3911), b i s p o d c l .a o d ic é i a ( 3 6 0 ) ; s u a d o n l r i n a f u i c o n d e n a d a v á r ia s v c / c s , | >.
e x ., p e l o ( ' o n c íl io d c A l e x a n d i ia |l c .i lo ) , c m 3 6 2 , c p e l o ( 'o n c í li o d e < ' o n s l a n l i n o p l a , c m I N I.
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D a Ceia de Cristo — Confissão
que este homem é verdadeiro Deus, que de Deus e homem se fez uma só eter-
na pessoa indivisível, de modo que Maria, a santa virgem, é verdadeira mãe,
não somente do homem Cristo, como ensinam os nestorianos229, mas do Filho
de Deus, como diz Lucas: “ O que há de nascer de ti será chamado Filho de
Deus” [Lc 1.35]. Este é meu Senhor e Senhor de todos, Jesus Cristo,.Filho
único, verdadeiro e natural de Deus e Maria, verdadeiro Deus e homem.
Creio também que este Filho de Deus e Maria, nosso Senhor Jesus Cristo,
sofreu por nós pobres pecadores, foi crucificado, morto e sepultado, para que
nos livrasse dos pecados, da morte e da ira eterna de Deus, por seu sangue ino-
cente; e que no terceiro dia ressurgiu da morte, subiu ao céu e está sentado à
direita de Deus, Pai todo-poderoso, como Senhor sobre todos os senhores,
Rei sobre todos os reis e todas as criaturas no céu, na terra e debaixo da ter-
ra, sobre morte e vida, pecado e injustiça. Pois confesso e sei comprovar a
partir das Escrituras que todos os homens descendem de um só homem Adão
e dele trazem e herdam, por meio do nascimento, a queda, culpa e pecado,
que o mesmo Adão cometeu no paraíso pela maldade do diabo, e que, junta-
mente com ele, todos nascem, vivem e morrem em pecado e seriam culpados
da morte eterna, se Cristo nâo nos tivesse socorrido, assumindo, como cordei-
rinho inocente, tal culpa e pecado, pagando por nós com seu sofrimento e de-
fendendo-nos ainda diariamente, como fiel e misericordioso Mediador, Salva-
dor, único Sacerdote e Bispo de nossas almas.
Com isso rejeito e condeno como puro engano toda doutrina que engran-
dece nosso livre-arbítrio, posto que se opõe diametralmente a esse auxílio e gra-
ça de nosso Senhor Jesus Cristo. Pois, visto que, fora de Cristo, a morte e o
pecado são nossos senhores e o diabo, nosso deus e príncipe, não existe força
nem poder, sabedoria ou esperteza com que pudéssemos preparar-nos para a
justiça e a vida ou para procurá-las; pelo contrário, somos forçados à ceguei-
ra e ao cativeiro, propriedade do demônio e do pecado, para fazermos e pen-
sarmos o que agrada a ele e afrontar a Deus e seus ensinamentos.
De modo que repudio tanto os novos quanto os antigos pelagianos230, que
não querem admitir que o pecado original seja pecado, dizendo que seria ape-
nas um a deficiência ou falha. Visto, porém, que a morte abrange a todos os
homens, o pecado original não pode ser entendido como uma deficiência, mas,
229 N esto ria no s: adeptos d a d o utrin a de N e stório, co nd enad a no C o nc ilio de Éfeso, em 431 (cf.
O b ra s S e lecio na da s, v. 3, p p , 367ss.). N es tório, nasc. depois de 381, em A n t io q u ia (Síria), sa
cerdote em sua cidade natal, de 428 a 431 m e tro p o lita de C o ns tantin o pla , deposto pelo C o ncilio
tlc 431, m . ca. 451.
230 P ela gian os: adeptos da do utrin a d o asceta b ritân ico P elágio (m . depois de 418). S u a do utrina
fo i co m b atid a p o r A g o s tin h o (354-430), bispo de H ip o n a , na Á f ric a d o No rte, e o m ais impor-
ta nlc tios pais latinos (da p arle ocidental da Igreja A n tig a ), c co nde nada po r vários concílios,
ctilrc cle.s o de C a rla g o , na Á fric a d o N orte, em 418, c cie lllc s o , em 431. N eopclagiattos (pota
C.ianos novos) são os delensorcs d n livre-arbílrio d a épo ca da k c fo n n a , entre eles um a parte
dos Iniinaiiislas.
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três meios, exercitando em nós o sofrimento de Cristo e fazendo com que re-
dunde para a salvação.
Por isso sustento e sei que, tão bem como não há mais de um Evangelho
e Cristo, também não há mais de um Batismo, e que o Batismo é, em si mes-
mo, uma instituição divina, como seu Evangelho também o é. E como o Evan-
gelho não passa a ser falso e incorreto só porque alguns o usam e ensinam er-
radamente ou não crêem nele, assim também o Batismo não é errado e im pro-
cedente, ainda que alguns o tenham recebido ou administrado sem fé ou te-
nham abusado dele de outra maneira. Por isso rejeito e condeno decididamen-
te a doutrina dos anabatistas, donatistas231 e a todos que costumam rebatizar.
D a mesma forma digo e confesso em relação ao Sacramento do A ltar que ali
de fato são comidos e bebidos oralmente o corpo e o sangue em pão e vinho,
ainda que os sacerdotes que o administram ou os comungantes não creiam
ou pratiquem qualquer outro abuso. Pois ele não se baseia em fé ou falta de
fé humana, mas na palavra e instituição divinas. A não ser que mudem pri-
meiro a palavra e a instituição de Deus, e a interpretem de outra maneira, co-
mo o fazem os atuais inimigos do Sacramento, que, evidentemente, têm ape-
nas pão e vinho, pois também não preservam as palavras e a ordem instituída
por Deus, mas mudaram e perverteram-nas segundo seu próprio juízo.
Além disso creio que haja na terra uma Santa Igreja Cristã, que é a comu-
nidade e a soma ou reunião de todos os cristãos em todo o m undo, a única
noiva de Cristo e seu corpo espiritual, do qual ele também é a única cabeça.
Os bispos e pastores não são cabeças, nem donos, nem noivos da mesma, mas
servidores, amigos e, como sugere a palavra “ bispo” , supervisores, curadores
e administradores. E essa cristandade não existe somente na Igreja Rom ana
sob o papa, mas no mundo todo, como anunciaram os profetas: que o Evan-
gelho de Cristo deveria espalhar-se pelo mundo inteiro (Salmo 2.7ss.; 19.4).
Assim a cristandade está fisicamente dispersa sob o papa, os turcos, persas,
tártaros e em toda parte, mas está espiritualmente unificada num só Evangelho
e fé, sob uma só cabeça, que é Jesus Cristo. Pois o papado é, sem dúvida, o
verdadeiro regime anticristão dos tempos finais e a real tirania anticristã, que
está sentado no templo de Deus e governa com mandamentos humanos, co-
mo diz Cristo em Mt 24,24 e Paulo em 2 Ts 2.4. Se bem que estão incluídos
nessa abominação os turcos e toda heresia, onde quer que esteja, e das quais
foi profetizado que se instalariam no lugar sagrado; mas não são iguais ao papado.
Nesta cristandade, e onde quer que ela exista, há perdão dos pecados, is-
so é, há um reino da graça e da verdadeira indulgência, pois ali está o Evange-
lho, o Batismo e o Sacramento do Altar, nos quais se oferece, é procurado e
recebido o perdão dos pecados. Nela também está Cristo e seu Espírito, c
Deus. Fora dessa cristandade não há salvação nem perdão dos pecados, nias
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do, não mandou dizer ou escrevê-lo, por isso também não quer que se acredite
nisso. No entanto, eu conheço o purgatório muito bem. Mas não é apropria-
do falar sobre isso na comunidade nem tampouco lutar contra ele com doa-
ções e vigílias.
Antes de mim já outros criticaram a invocação dos santos; agrada-me e
também creio que somente Cristo deve ser invocado como nosso Mediador.
As Escrituras são claras e inequívocas a esse respeito. Da invocação dos santos
nada consta, pelo que deve ser considerada duvidosa e não pode ser objeto de fé.
As unções, desde que praticadas conforme Mc 6.13 e Tiago 5.14, eu aceita-
ria; mas que se faça delas um sacramento, isso não tem base. Pois assim co-
mo em lugar das vigílias e missas pelas almas se poderia pregar sobre a morte
e a vida eterna, orando, portanto, no enterro e refletindo sobre nosso fim (co-
mo os antigos, ao que parece, fizeram), assim também ficaria bem que se visi-
tasse o doente, para orar com ele e exortá-lo; se, além disso, alguém quiser un-
gir o enfermo com óleo, que seja permitido, em nome de Deus.
Tampouco se deve fazer um sacramento do matrimônio e do sacerdócio.
Eles são disposições suficientemente sagradas em si mesmas. Assim como a
penitência outra coisa não é do que exercício e poder do Batismo. De manei-
ra que sobram estes dois sacramentos do Batismo e da Santa Ceia do Senhor,
ao lado do Evangelho, nos quais o Espírito Santo nos oferece, dá e pratica ri-
camente o perdão dos pecados.
Considero a maior de todas as abominações a missa rezada e vendida co-
mo um sacrifício ou boa obra; nela se baseiam, hoje em dia, todos os conven-
tos e mosteiros. Mas, se Deus quiser, eles vão cair. Eu próprio fui um grande,
grave e acintoso pecador; passei e gastei minha juventude de form a abominá-
vel. Meu maior pecado, porém, foi que me fiz um desses monges santos e que,
com missas incontáveis, ao longo de quinze anos, irritei, afligi e torturei meu
querido Senhor. Mas graças e louvor sejam dados eternamente a sua indizível
misericórdia, que ele me tirou dessa abominação e que, diariamente, apesar
de minha ingratidão, me conserva e fortalece na verdadeira fé.
De resto, tenho aconselhado e ainda aconselho a abandonar os conventos
e mosteiros juntamente com os votos proferidos, e integrar-se nas verdadeiras
ordens cristãs, para escapar dessas abominações das missas e da santidade blas-
fema da castidade, pobreza e obediência, pelas quais se pretende alcançar a
salvação. Pois, por mais digno que tenha sido, no início da cristandade, con-
servar a virgindade, hoje é abominável que por esse meio se repudie o auxílio
c a graça de Cristo. Pois é possível viver em estado de virgindade, de viuvez c
castidade também sem essas abominações blasfemas.
Imagens, sinos, estola, decorações da igreja, altar, velas e coisas semelhan-
tes considero livres. Quem quiser pode aboli-las. Quadros bíblicos e boas histó-
rias, no entanto, considero bastante úteis, mas livres e opcionais, pois não sou
partidário dos iconoclastas.
Por último, creio na ressurreição de todos os mortos no dia derradeiro,
lanlo dc bons quanto dc maus, para que cada qual receba ali, cm seu corpo,
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