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MARTINHO LUTERO

Obras Selecionadas

Volume 4
Debates e Controvérsias, II
Da Ceia de Cristo — Confissão

produto de suas cabeças, contra o claro teor das palavras, nem nos queremos
dar por vencidos. Pois, se é que devemos apegar-nos a palavras nuas e simples,
preferimos ater-nos ao texto nu e simples que Deus mesmo pronuniou, do que
a glosas nuas e sem fundamento, inventadas por homens. Ainda que batizem
e chamem essas glosas de abonaçâo da Escritura e as tenham como expressão
de fé, isso não nos incomodará, até que também provem que se trata de expres-
são da Escritura e da fé, como erroneamente o denominam. Pois deveriam ad-
mitir que nós, tampouco quanto" eles, não queremos defender ensinamentos
errados, como, aliás, graças a Deus, o comprovamos com fatos melhor e mais
do que eles, de m odo que não podem gloriar-se de só eles terem essa mentali-
dade. Cristo será juiz de todos os que mentem e enganam.
Quero vangloriar-me em Deus que no presente Íivrinho esclareci amplamen-
te não poder haver tropo na Santa Ceia. Pelo contrário, as palavras devem ser
entendidas ao pé da letra: “ Isto é meu corpo, isto é meu sangue” ; disso tenho
certeza. Se fossem tropos, deveriam sê-lo em todas as passagens em que se fala
da Santa Ceia. Vimos, no entanto, que os próprios entusiastas ensinam e ad-
mitem que não há tropos nas palavras de Paulo: “ Quem comer e beber indig-
namente é reu do corpo e do sangue de Cristo” [1 Co 11.29], e, portanto, tam -
bém não na seguinte frase: “ O cálice da bênção que abençoamos é a comu-
nhão do sangue de Cristo, etc.” [1 Co 10.16], Em relação a isso nada há o
que possam contrapor-nos. Portanto, se não há tropo na Santa Ceia, está sufi-
cientemente claro que nossa interpretação está correta e a dos entusiastas equi-
vocada e errada. O sexto capítulo de João fica para outra oportunidade, vis-
to que nada diz a respeito da Santa Ceia e porque já foi tratado por outros,
como Filipe Melanchthon e João Brenz e outros mais, se bem que pretendo
tratar dele num sermão e dar assim minha contribuição224.

Terceira parte225

Vejo que, a cada dia que passa, há mais sectarismo e equívoco, e não luí
fim para a raiva e fúria de Satanás. P ara que não aconteça que, durante mi-
nha vida ou depois de minha morte, alguém invoque e cite meus escritos inade-
quadamente para confirmar seu engano, como, aliás, os entusiastas do Sacra-
mento e do Batismo já começaram a fazer, quero, com este livro, confessar
perante Deus e o mundo todo, ponto por ponto, minha fé, na qual pretendo

224 I.u lc ro não conseguiu c u m p rir seu p ro p ós lio desta fo rm a. Som ente ocupou-sc co m o assunto
cm sermões sobre J o 6.26-28, proferido s entre 5 de no ve m b ro de 1530 a 9 de mai\'o de 15.12.
0 lexto enconlra-sc cm W A 33, lss. As A n n a ta tio n e s in E v vn g eliu in Jo lu um in , de M ela ucltliio ii,
1 .ulcro m a nd ara p ublica r cm 1523 co m u m a carta anexa (cf. W A 12,53ss.). Hrvn/. p ub lic aia sua
Iixcficsis in E vM iffclinm Jo lu m n is — (Kxplieaç âo d o Kvangelho segundo J o ã o ) em 157.7.
?.?.5 < T. In tro d ução .
Da Ceia de Cristo — Confissão

permanecer até minha morte, nela partir deste mundo (que Deus me ajude) e
comparecer ao tribunal de nosso Senhor Jesus Cristo. E se alguém, depois de
minha morte, disser: Se Lutero vivesse hoje, ele entenderia e ensinaria este ou
aquele artigo de form a diferente, porque, à época, não o havia analisado sufi-
cientemente, etc. — digo agora, uma vez por todas: pela graça de Deus, anali-
sei todos esses artigos reiteradas vezes, com o maior zelo possível, à base das
Escrituras, e os defenderei com a mesma convicção com que aqui defendi o
Sacramentio do Altar. Não estou embriagado nem procedo de modo impruden-
te. Sei muito bem o que estou dizendo; também tenho consciência do que is-
so significa para mim no juízo final de nosso Senhor Jesus Cristo; por isso
não admito que alguém tome isso por brincadeira ou conversa tola. Estou fa-
lando sério. Pela graça de Deus, conheço o demônio um bocado. Se é capaz
de perverter e embaralhar a palavra de Deus e as Escrituras, que não haveria
de fazer com minhas palavras ou com as de qualquer outra pessoa?
Em primeiro lugar, creio de todo o coração no sublime artigo da majesta-
de de Deus: que Pai, Filho e Espírito Santo, três pessoas distintas, é o verda-
deiro, único, natural e genuíno Deus, criador do céu e da terra, em completa
oposição aos arianos, macedônianos, sabelianos226 e outras heresias semelhan-
tes, com base em Cln 1, como está sendo sustentado até aqui tanto na Igreja
Romana como também nas Igrejas cristãs do mundo todo.
Em segundo lugar, creio e sei que a Escritura nos ensina que a segunda
pessoa da divindade, o Filho, foi o único a se tornar verdadeiro homem, con-
cebido do Espírito Santo, sem o concurso de um homem, e dado à luz pela
pura e santa virgem Maria, como de mãe verdadeira e natural, como Lucas o
relata claramente [Lc 1.26ss.] e os profetas o anunciaram. De modo que não
foi o Pai nem o Espírito Santo que se fez homem, como ensinaram alguns he-
reges227. [Creio também] que Deus Filho não assumiu apenas o corpo sem a
alma (como disseram alguns hereges228), mas inclusive a alma, ou seja, uma
humanide completa e verdadeira, e que nasceu como o verdadeiro descenden-
te ou filho de Abraão prometido, e como filho natural de Maria, verdadeiro
homem sob todos os aspectos e formas, como o sou eu e todos os outros; no
entanto, que veio sem pecado, somente da virgem, pelo Espírito Santo. E

226 Arianos: adeptos da d o u trin a de Á rio (m . depois de 335), sacerdote (presbitero) em A lex an dria
(lig ito ); essa d o utrina negava a divinda de do Lo go s (C risto), p o r isso f o i co n d en ad a pe lo C o n ­
cilio de N icéia, em 325 (cf. O bras Se le cio nada s, v. 3, p p . 337ss.). — M a ce do nia no s: adeptos
ila d o u trin a de M a ce d ô nio (de 342 a 360 bisp o d c C o ns tan tin o pla ); esta d o u trin a negava a d i­
vinda de d o E spírito San to , p o r isso fo i co n de nad a pelo C o ncilio de C o ns ta ntin o p la , em 3X1
(cf. Obras S eleciona da s, v. 3, p p . 362ss.). — Sabeliano s: adeptos da d o u trina de Sa hclio (des­
de 215, apro xim a da m e nte, em R o m a); esta d o u trin a ensinava que Deus P a i, F ilh o e Kspírilo
Santo n ão são três pessoas, m as três m o do s de D eus se revelar (“ m o d a lis m o ” ); Sab élio foi o
co m u n g ad o pelo bispo r o m a n o C alixto I (217-222).
227 O s “ m o d alis las ” , c o m o Sabélio , p. ex. (cf. n. anterior).
22X ( c a . 310-3911), b i s p o d c l .a o d ic é i a ( 3 6 0 ) ; s u a d o n l r i n a f u i c o n d e n a d a v á r ia s v c / c s , | >.
e x ., p e l o ( ' o n c íl io d c A l e x a n d i ia |l c .i lo ) , c m 3 6 2 , c p e l o ( 'o n c í li o d e < ' o n s l a n l i n o p l a , c m I N I.

KtK
D a Ceia de Cristo — Confissão

que este homem é verdadeiro Deus, que de Deus e homem se fez uma só eter-
na pessoa indivisível, de modo que Maria, a santa virgem, é verdadeira mãe,
não somente do homem Cristo, como ensinam os nestorianos229, mas do Filho
de Deus, como diz Lucas: “ O que há de nascer de ti será chamado Filho de
Deus” [Lc 1.35]. Este é meu Senhor e Senhor de todos, Jesus Cristo,.Filho
único, verdadeiro e natural de Deus e Maria, verdadeiro Deus e homem.
Creio também que este Filho de Deus e Maria, nosso Senhor Jesus Cristo,
sofreu por nós pobres pecadores, foi crucificado, morto e sepultado, para que
nos livrasse dos pecados, da morte e da ira eterna de Deus, por seu sangue ino-
cente; e que no terceiro dia ressurgiu da morte, subiu ao céu e está sentado à
direita de Deus, Pai todo-poderoso, como Senhor sobre todos os senhores,
Rei sobre todos os reis e todas as criaturas no céu, na terra e debaixo da ter-
ra, sobre morte e vida, pecado e injustiça. Pois confesso e sei comprovar a
partir das Escrituras que todos os homens descendem de um só homem Adão
e dele trazem e herdam, por meio do nascimento, a queda, culpa e pecado,
que o mesmo Adão cometeu no paraíso pela maldade do diabo, e que, junta-
mente com ele, todos nascem, vivem e morrem em pecado e seriam culpados
da morte eterna, se Cristo nâo nos tivesse socorrido, assumindo, como cordei-
rinho inocente, tal culpa e pecado, pagando por nós com seu sofrimento e de-
fendendo-nos ainda diariamente, como fiel e misericordioso Mediador, Salva-
dor, único Sacerdote e Bispo de nossas almas.
Com isso rejeito e condeno como puro engano toda doutrina que engran-
dece nosso livre-arbítrio, posto que se opõe diametralmente a esse auxílio e gra-
ça de nosso Senhor Jesus Cristo. Pois, visto que, fora de Cristo, a morte e o
pecado são nossos senhores e o diabo, nosso deus e príncipe, não existe força
nem poder, sabedoria ou esperteza com que pudéssemos preparar-nos para a
justiça e a vida ou para procurá-las; pelo contrário, somos forçados à ceguei-
ra e ao cativeiro, propriedade do demônio e do pecado, para fazermos e pen-
sarmos o que agrada a ele e afrontar a Deus e seus ensinamentos.
De modo que repudio tanto os novos quanto os antigos pelagianos230, que
não querem admitir que o pecado original seja pecado, dizendo que seria ape-
nas um a deficiência ou falha. Visto, porém, que a morte abrange a todos os
homens, o pecado original não pode ser entendido como uma deficiência, mas,

229 N esto ria no s: adeptos d a d o utrin a de N e stório, co nd enad a no C o nc ilio de Éfeso, em 431 (cf.
O b ra s S e lecio na da s, v. 3, p p , 367ss.). N es tório, nasc. depois de 381, em A n t io q u ia (Síria), sa­
cerdote em sua cidade natal, de 428 a 431 m e tro p o lita de C o ns tantin o pla , deposto pelo C o ncilio
tlc 431, m . ca. 451.
230 P ela gian os: adeptos da do utrin a d o asceta b ritân ico P elágio (m . depois de 418). S u a do utrina
fo i co m b atid a p o r A g o s tin h o (354-430), bispo de H ip o n a , na Á f ric a d o No rte, e o m ais impor-
ta nlc tios pais latinos (da p arle ocidental da Igreja A n tig a ), c co nde nada po r vários concílios,
ctilrc cle.s o de C a rla g o , na Á fric a d o N orte, em 418, c cie lllc s o , em 431. N eopclagiattos (pota
C.ianos novos) são os delensorcs d n livre-arbílrio d a épo ca da k c fo n n a , entre eles um a parte
dos Iniinaiiislas.
D a Ceia de C risto — C onfissão

sim, como pecado gravíssimo, como diz S. Paulo: “ O salário do pecado é a


m orte” [Rm 6.23], e ainda: “ O aguilhão da morte é o pecado” [1 Co 15.56],
Assim também diz Davi, no Salmo 51.5: “ Eu fui concebido em pecado, e mi-
nha mãe me gerou em pecado” . Ele não diz: “ Minha mãe me concebeu em
pecado” , mas: “ Eu, eu, eu fui concebido em pecado, e minha mãe me gerou
em pecado” , ou seja, que me formei no ventre materno de semente pecamino-
sa, como o expressa o texto hebraico.
Depois rechaço e condeno como meros sectarismos e distorções diabólicas
todas as ordens, regras, conventos, fundações e o que mais foi inventado por
homens e instituído além das Escrituras e vinculado a votos e compromissos,
ainda que neles tenham vivido muitos santos e que, como eleitos de Deus, a
seu tempo foram seduzidos por essas coisas, mas salvos finalmente e libertos
pela fé em Jesus Cristo. Pois, se essas ordens, fundações e seitas são observa-
das e mantidas na convicção de que com tais procedimentos e obras se poderia
ser salvo, escapar do pecado e da morte, isso se constitui em blsafêmia públi-
ca e horrenda, e em negação do auxílio e da graça exclusiva de nosso único
Salvador e Mediador Jesus Cristo. “ Pois não nos foi dado outro nome pelo
qual possamos ser salvos do que este que se chama Jesus Cristo” [At 4.12]. É
impossível, portanto, que haja mais salvadores, caminhos ou maneiras para
salvar-se do que a única justiça que é o nosso Senhor Jesus Cristo e que no-
la presenteou, colocando-se diante de Deus como nosso único trono da graça
(Rm 3.25).
Certamente seria bom que se mantivessem mosteiros e fundações com o
objetivo de neles instruir jovens na palavra de Deus, nas Escrituras e na disci-
plina cristã. Com isso se preparariam e habilitariam homens distintos e capa-
zes para as funções de bispo, pastor e outros serviços da Igreja, como também
para o regime civil, e ainda mulheres educadas e instruídas que pudessem ad-
ministrar suas casas e educar seus filhos no espírito cristão. No entanto, procu-
rar ali um caminho de salvação é doutrina e crença do diabo (1 Tm 4.1ss.).
As sagradas ordens e verdadeiras fundações instituídas por Deus são estas
três: o ministério sacerdotal, o estado matrimonial e a autoridade secular. Io -
dos quantos se encontram no ministério pastoral ou a serviço da Palavra en-
contram-se numa ordem e num estado santo, correto, bom e agradável a Deus,
tais como os que pregam, administram os sacramentos, administram a tesoura-
ria comunitária, e também seus auxiliares, os sacristãos, mensageiros ou empre-
gados, etc. Todas essas são atividades manifestamente santas para Deus. Da
mesma forma, quem é pai ou mãe, que administra bem sua casa e gera filhos
para servirem a Deus, também isso se constitui em santuário e em obra e or-
dem santa. Igualmente onde filhos e empregados forem obedientes aos pais e
senhores existe santidade e quem nisso for encontrado é um santo vivo na ter-
ra. O mesmo vale para o príncipe ou governante, juiz, delegados, secretários
dc estado, escrivães, empregados e empregadas e os que servem aos primeiros,
c ainda todos que obedecem submissamente. Tudo isso é santidade c vida san-
tificada dianie dc Deus, posto que essas três instituições ou ordens estão bnsc-

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Da Ceia de Cristo — Confissão

adas na palavra de Deus. O que estiver fundamentado na palavra de Deus c


necessariamente coisa santa, pois a palavra de Deus é santa e santifica a tudo
quanto a ela estiver ligado ou nela contido.
Acima dessas três instituições ou ordens está somente a instituição univer-
sal do amor cristão, na qual não se serve apenas àquelas três ordens, mas tam-
bém, de uma forma geral, a qualquer necessitado com todo tipo de benefícios,
tais como: alimentar famintos, dar de beber aos sedentos, perdoar aos inimi-
gos, rogar por todos os homens na terra, suportar todo tipo de mal na terra,
etc. Vê, todas essas são obras santas e boas. Mesmo assim, nenhuma dessas
instituições se constitui em caminho de salvação; acima de todas elas permane-
ce o caminho único, ou seja, a fé em Jesus Cristo. Pois há uma grande diferen-
ça entre ser santo e ser salvo. Salvos seremos apenas por Cristo. Santos nos
tornamos pelas duas coisas, pela fé e por essas instituições e ordens divinas.
Até os ateus podem ter muita coisa de santo, mas nem por isso são salvos.
Pois Deus quer essas obras de nós para seu louvor e para sua honra; e todos
aqueles que estão salvos na fé em Cristo praticam tais obras e respeitam essas
ordens. O que, porém, foi dito a respeito do estado matrimonial também va-
le para as viúvas e as virgens, pois elas fazem parte da casa e da vida familiar,
etc. Se no entanto, essas ordens e instituições divinas não salvam, que é que
poderiam realizar os mosteiros e conventos do diabo, que surgiram à margem
da palavra de Deus e ainda contendem e esbravejam contra o caminho único da fé?
Em terceiro lugar, creio no Espírito Santo, que, junto com o Pai e o Filho,
é verdadeiramente Deus e procede do Pai e do Filho desde a eternidade, sen-
do, no entanto, uma pessoa distinta em uma essência e natureza divina. Atra-
vés dele, qual dádiva viva, eterna e divina, todos os crentes são agraciados com
a fé e outros dons espirituais, são ressuscitados dos mortos, libertados dos pe-
cados e feitos alegres e consolados, livres e tranqüilos de consciência; pois es-
ta é nossa força: que sentimos em nossos corações esse testemunho do Espíri-
to, que Deus quer ser nosso Pai, perdoai' os pecados e conceder vida eterna.
As três pessoas são um só Deus que a todos nós se entregou totalmente,
com tudo que ele é e tem. O Pai se nos dá com céus e terra e todas as criatu-
ras, para que nos sirvam e nos sejam proveitosas. Essa doação, no entanto,
foi obscurecida e inutilizada pela queda de Adão. Por isso depois também o
Filho se nos deu, presenteou-nos todas as suas obras, seu sofrimento, sua sabe-
doria e justiça, reconciliando-nos com o Pai, para que nós, novamente vivos
e justos, reconhecêssemos e tivéssemos o Pai com suas dádivas. Como, porém,
essa graça não seria de proveito para ninguém se ficasse oculta e não pudesse
vir até nós, vem o Espírito Santo e também se nos dá completamente. Ele nos
ensina a reconhecer a misericórdia de Cristo para conosco, ajuda-nos a rece-
ber e conservá-la, a utilizar e compartilhá-la proveitosamente, a desenvolver c
promovê-la. Ele o faz de duas maneiras, interior e exteriormente: interiormen
Io, pela fé e oulros dons espirituais.
Exteriormente, no entanto, [ele o faz] pelo Evangelho, pelo Batismo e pc
1o Sacramento do Aliar, através dos quais vem até nós como que através dc
Da Ceia de Cristo — Confissão

três meios, exercitando em nós o sofrimento de Cristo e fazendo com que re-
dunde para a salvação.
Por isso sustento e sei que, tão bem como não há mais de um Evangelho
e Cristo, também não há mais de um Batismo, e que o Batismo é, em si mes-
mo, uma instituição divina, como seu Evangelho também o é. E como o Evan-
gelho não passa a ser falso e incorreto só porque alguns o usam e ensinam er-
radamente ou não crêem nele, assim também o Batismo não é errado e im pro-
cedente, ainda que alguns o tenham recebido ou administrado sem fé ou te-
nham abusado dele de outra maneira. Por isso rejeito e condeno decididamen-
te a doutrina dos anabatistas, donatistas231 e a todos que costumam rebatizar.
D a mesma forma digo e confesso em relação ao Sacramento do A ltar que ali
de fato são comidos e bebidos oralmente o corpo e o sangue em pão e vinho,
ainda que os sacerdotes que o administram ou os comungantes não creiam
ou pratiquem qualquer outro abuso. Pois ele não se baseia em fé ou falta de
fé humana, mas na palavra e instituição divinas. A não ser que mudem pri-
meiro a palavra e a instituição de Deus, e a interpretem de outra maneira, co-
mo o fazem os atuais inimigos do Sacramento, que, evidentemente, têm ape-
nas pão e vinho, pois também não preservam as palavras e a ordem instituída
por Deus, mas mudaram e perverteram-nas segundo seu próprio juízo.
Além disso creio que haja na terra uma Santa Igreja Cristã, que é a comu-
nidade e a soma ou reunião de todos os cristãos em todo o m undo, a única
noiva de Cristo e seu corpo espiritual, do qual ele também é a única cabeça.
Os bispos e pastores não são cabeças, nem donos, nem noivos da mesma, mas
servidores, amigos e, como sugere a palavra “ bispo” , supervisores, curadores
e administradores. E essa cristandade não existe somente na Igreja Rom ana
sob o papa, mas no mundo todo, como anunciaram os profetas: que o Evan-
gelho de Cristo deveria espalhar-se pelo mundo inteiro (Salmo 2.7ss.; 19.4).
Assim a cristandade está fisicamente dispersa sob o papa, os turcos, persas,
tártaros e em toda parte, mas está espiritualmente unificada num só Evangelho
e fé, sob uma só cabeça, que é Jesus Cristo. Pois o papado é, sem dúvida, o
verdadeiro regime anticristão dos tempos finais e a real tirania anticristã, que
está sentado no templo de Deus e governa com mandamentos humanos, co-
mo diz Cristo em Mt 24,24 e Paulo em 2 Ts 2.4. Se bem que estão incluídos
nessa abominação os turcos e toda heresia, onde quer que esteja, e das quais
foi profetizado que se instalariam no lugar sagrado; mas não são iguais ao papado.
Nesta cristandade, e onde quer que ela exista, há perdão dos pecados, is-
so é, há um reino da graça e da verdadeira indulgência, pois ali está o Evange-
lho, o Batismo e o Sacramento do Altar, nos quais se oferece, é procurado e
recebido o perdão dos pecados. Nela também está Cristo e seu Espírito, c
Deus. Fora dessa cristandade não há salvação nem perdão dos pecados, nias

,’J I A w ib utistu s: literalm ente “ rebati/adores” , designação ilacla a prnpos c c o rre n te da U c lo m ia


d o séc. X V I que praticavam o lia lis in o de ad ultos , e ic liatizav am .

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Da Ceia de Cristo — Confissão

morte e condenação eterna; ainda que haja grande aparência de santidade c


muitas boas obras, tudo está perdido. Esse perdão dos pecados, porém, não
se recebe de uma só vez por ocasião do Batismo, como ensinam os novacia-
nos232, mas tantas vezes quantas dele se precisa, até a morte.
Por essa razão tenho especial apreço pela confissão sigilosa, porque
ali se comunica a cada qual a palavra de Deus e a absolvição dos peca-
dos pessoalmente e em sigilo. E nela cada um poderá obter esse perdão,
ou então, consolo, conselho e orientação, sempre que quiser, de modo
que se constitui em coisa preciosa para as almas, desde que não se impo-
nha essa confissão a ninguém com leis e disposições, mas que seja opcio-
nal conforme as necessidades de cada um, quando e onde quiser fazer
uso dela; da mesma forma como é de livre escolha procurar conselho c
consolo, orientação ou informação, quando e onde a situação e o dese-
jo recomendam; tampouco se deve obrigar a enumerar e confessar todos
os pecados, mas aqueles que mais pesam na consciência, ou os que al-
guém queira confessar, como já escrevi no Íivrinho sobre a oração233.
No entanto, a indulgência que a igreja papal usa é uma trapaça blasfema.
Não somente porque inventa e institui um perdão especial acima daquele que
é dado em toda a cristandade pelo Evangelho e pelo sacramento, desmerecen-
do e destruindo com isso o perdão universal, mas também porque estabelece
uma satisfação pelo pecado e se fundamenta nas obras dos homens e nos méri-
tos dos santos, quando somente Cristo pode fazer satisfação por nós, e tam -
bém o fez.
Quanto aos mortos, como as Escrituras nada dizem a respeito, creio que
não é pecado pedir, em livre devoção, mais ou menos da seguinte forma: “ Nos-
so bom Deus, se o estado das almas é tal que se lhes possa ajudar, tem miseri-
córdia delas” . Feito isso um a ou duas vezes, deixa que baste. Porque as vigí-
lias e missas pelas almas e comemorações anuais não têm valor e são merca-
do do diabo. Nas Escrituras nada encontramos [a respeito disso] e também,
nada sobre o purgatório. Evidentemente é uma invenção de duendes. Por isso
não acho necessário acreditar nisso, ainda que, sendo tudo possível a Deus, ele
poderia mandar castigar as almas depois de sua separação do corpo. Contu-

2.12 Novacianoy. seguidores de N o v ac ian o (séc. I I I ) , presbítero e teólo go de R o m a , rigorista da d is ­


c ip lin a eclesiástica. Q u e ria que os cristãos “ lapsos” (os que h a v ia m neg ado sua fé na persegui­
ção aos cristãos) n ã o fossem readm itido s à Ig reja. M a is tarde os no vacianos defenderam essa
po sição em relação a todos os pecados mo rtais. P a ra eles n ã o hav ia mais p erdão dos pecados
ap ós o B atism o. O bispo ro m a n o C o rn élio (251-253), o bispo C ip ria no (200/210-258), dc < 'ai Ia
g o , e outros bispos d o Norte da Á fric a re a d m itiam os “ lap so s " após a devida penitência. U m
co ncilio ro m a n o de 60 bispos c o nd e no u N o va cia n o . A pes ar disso, a Igreja no vaciana (aulo de
signação: “ cátaros” ; os puros) difundiu-se em to d o o Im p é rio R o m a n o , existindo no Ociden
lc alé o séc. V , no O ricn le alé o séc. V II.
.’. H C'f. W A 10/11,375ss.: V.m (icbetbüchlcin. Lissc p a rág rafo foi acrcsccrrlado a o loxlo or iginal ,|iu n
d o da ed ição cia “ lérecirn Parte ” etrr separado.
Da Ceia de Cristo — Confissão

do, não mandou dizer ou escrevê-lo, por isso também não quer que se acredite
nisso. No entanto, eu conheço o purgatório muito bem. Mas não é apropria-
do falar sobre isso na comunidade nem tampouco lutar contra ele com doa-
ções e vigílias.
Antes de mim já outros criticaram a invocação dos santos; agrada-me e
também creio que somente Cristo deve ser invocado como nosso Mediador.
As Escrituras são claras e inequívocas a esse respeito. Da invocação dos santos
nada consta, pelo que deve ser considerada duvidosa e não pode ser objeto de fé.
As unções, desde que praticadas conforme Mc 6.13 e Tiago 5.14, eu aceita-
ria; mas que se faça delas um sacramento, isso não tem base. Pois assim co-
mo em lugar das vigílias e missas pelas almas se poderia pregar sobre a morte
e a vida eterna, orando, portanto, no enterro e refletindo sobre nosso fim (co-
mo os antigos, ao que parece, fizeram), assim também ficaria bem que se visi-
tasse o doente, para orar com ele e exortá-lo; se, além disso, alguém quiser un-
gir o enfermo com óleo, que seja permitido, em nome de Deus.
Tampouco se deve fazer um sacramento do matrimônio e do sacerdócio.
Eles são disposições suficientemente sagradas em si mesmas. Assim como a
penitência outra coisa não é do que exercício e poder do Batismo. De manei-
ra que sobram estes dois sacramentos do Batismo e da Santa Ceia do Senhor,
ao lado do Evangelho, nos quais o Espírito Santo nos oferece, dá e pratica ri-
camente o perdão dos pecados.
Considero a maior de todas as abominações a missa rezada e vendida co-
mo um sacrifício ou boa obra; nela se baseiam, hoje em dia, todos os conven-
tos e mosteiros. Mas, se Deus quiser, eles vão cair. Eu próprio fui um grande,
grave e acintoso pecador; passei e gastei minha juventude de form a abominá-
vel. Meu maior pecado, porém, foi que me fiz um desses monges santos e que,
com missas incontáveis, ao longo de quinze anos, irritei, afligi e torturei meu
querido Senhor. Mas graças e louvor sejam dados eternamente a sua indizível
misericórdia, que ele me tirou dessa abominação e que, diariamente, apesar
de minha ingratidão, me conserva e fortalece na verdadeira fé.
De resto, tenho aconselhado e ainda aconselho a abandonar os conventos
e mosteiros juntamente com os votos proferidos, e integrar-se nas verdadeiras
ordens cristãs, para escapar dessas abominações das missas e da santidade blas-
fema da castidade, pobreza e obediência, pelas quais se pretende alcançar a
salvação. Pois, por mais digno que tenha sido, no início da cristandade, con-
servar a virgindade, hoje é abominável que por esse meio se repudie o auxílio
c a graça de Cristo. Pois é possível viver em estado de virgindade, de viuvez c
castidade também sem essas abominações blasfemas.
Imagens, sinos, estola, decorações da igreja, altar, velas e coisas semelhan-
tes considero livres. Quem quiser pode aboli-las. Quadros bíblicos e boas histó-
rias, no entanto, considero bastante úteis, mas livres e opcionais, pois não sou
partidário dos iconoclastas.
Por último, creio na ressurreição de todos os mortos no dia derradeiro,
lanlo dc bons quanto dc maus, para que cada qual receba ali, cm seu corpo,

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Da Ceia de Cristo — Coníissão

o que mereceu, de modo que os piedosos viverão eternamente com Cristo, c


os maus tenham morte eterna com o diabo e seus anjos. Pois não acompanho
aqueles que ensinam que, no final, também os demônios sejam salvos.
Esta é minha fé, porque assim crêem todos os verdadeiros cristãos e assim
nos ensinam as Escrituras. Das coisas que aqui expliquei pouco, meus livros
falam suficientemente, em especial os publicados nos últimos quatro ou cinco
anos. Peço a todos os corações piedosos que sejam minhas testemunhas e re-
zem por mim que eu permaneça firme nessa fé e nela conclua meus dias. Pois
se (o que Deus permita), ainda que em tribulação e angústia de morte, venha
a dizer algo diferente, isso de nada valerá; quero ter confessado publicamente
que isso não será verdade e que terá sido inspiração do diabo. P ara tanto me
assista meu Senhor Jesus Cristo, bendito eternamente. Amém.

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