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Ein philosophischen Problem hat die Form: “Ich kenne mich nicht aus”.

L. Wittgenstein

“Amigos”,
Talvez eu precisasse começar pela importância de me dirigir a vocês nesses
termos, informar-lhes, caso não saibam, que a amizade sempre foi, para mim, a coisa
mais rara e mais difícil – e não se trata de nenhum mérito seletivo, mas de uma
disposição emocional que tende sempre a me sabotar. E se começo por dar testemunho
de mim, é porque, na verdade, foi a Noéli que, tantas vezes, me impôs, paciente, o
mecanismo amoroso e político desse endereçamento, pelo qual, de novo, e
sinceramente, eu me dirijo a vocês:

“Meus amigos”,
Somos tragados, às vezes, para esse lugar paradoxal no qual uma ausência nos
reúne. Obviamente, não me refiro à forma protocolar com que alguns se juntam em
torno de uma pessoa querida que faleceu. Eu me refiro a um acontecimento inusual, a
uma espécie de dádiva, a um presente dado pela ausência mesma dessa pessoa que,
prolongando sua vida para além de si, nos toca e de fato nos coloca juntos. Não tendo
capacidade de discutir com profundidade os temas filosóficos aos quais Noéli dedicou
boa parte de sua carreira, o que me resta é somente dar um testemunho, impossível
como todo testemunho, uma vez que, sendo sobre alguém – sobretudo alguém que
persiste em sua ausência – retorna a mim como exigência de que também minha
linguagem seja outra, mesmo que eu mantenha a aparência de uma confissão. O que eu
tenho a dizer aqui expressa, antes de tudo, uma demanda da linguagem com que a Noéli
me fala, agora, quando eu digo “eu”, na tarefa impossível de me tornar ausente pela voz
dela, que continua falando. “Eu” me limito, portanto, a falar rapidamente sobre essa
postura, esse ethos, que sustentava não só sua relação conosco, amigos, professores,
alunos e funcionários, mas com a própria filosofia: a busca, certamente difícil, pela
dádiva do convívio.
“Eu” já conhecia Noéli de vista quando, há dez anos atrás, fizemos um concurso
juntos para a UFF, para o qual, afinal, não passamos. Nos intervalos, conversamos sobre
amenidades, nunca sobre filosofia, falamos mal de algumas pessoas, rimos um pouco,
mas estávamos nervosos. No dia em que faríamos a prova de aula, “eu” e ela nos
recolhemos a uma daquelas salas da UFF que têm vista para a baía esperando que nos
chamassem e ficamos quietos quase todo o tempo – “eu”, fingindo que revisava meu
material, ela também impaciente. Mas houve um momento que hoje, olhando para trás,
“eu” entendo que definia a atitude da Noéli sob muitos aspectos na filosofia: depois de
uma pausa enorme contemplando a paisagem, ela me disse: “Seria bom mesmo se todo
mundo passasse”. Mas vejam: não se trata aqui de uma generosidade pueril, de um
espírito de fraternidade cristã, nem nada disso, mas de algo que “eu” levei muitos anos
para entender, e que era o princípio de sua prática durante o tempo em que ela foi
coordenadora da pós-graduação e “eu”, seu adjunto – para Noéli, as disputas internas da
filosofia, as competições entre nossas vaidades, sempre mal disfarçadas, eram o pior dos
venenos. Contra ele, ela adotou uma posição – às vezes quase destituída pelos
imperativos institucionais – com que procurava criar condições para estarmos juntos.
Em sua gestão, reformamos nosso regimento da pós-graduação, tornamos nossa área de
concentração mais ampla, organizamos processos administrativos com os quais
ninguém antes quis se ocupar, firmamos convênios, aumentamos o número de
funcionários da secretaria, reorganizamos seu espaço – tudo isso a que ela deu início, e
que o Marcos e “eu” tentamos continuar, foi no sentido de resgatar um convívio que há
muito perdemos. Esse modo de pensar nossa existência no espaço continuamente
ameaçado que é a universidade, se expressava também na Noéli sob a forma de uma
efetiva generosidade intelectual, característica igualmente rara entre os filósofos, mas
nunca como condescendência. Quando conversávamos sobre filosofia, para meu
espanto, ela de fato ouvia o que dizíamos. Por outro lado, Noéli nunca se interessou
pelos monólogos disfarçados de diálogos e tinha muita sensibilidade para detectar
quando isso ocorria. Tal atenção com outras formas de pensar foi também o motivo para
ela frequentar colóquios e seminários que, muitas vezes, tinham por tema questões
aparentemente longínquas para seu campo de investigações. Foi, enfim, essa a razão – e
isso nos unia muito fortemente – pela qual ela gostava de estudar coisas novas, de dar
cursos com os quais ela mesma pudesse aprender. Nos últimos meses antes dela saber
da doença, organizamos juntos o Colóquio Permanente de Filosofia da Religião e seu
desejo era transformá-lo em uma linha de pesquisa. Em muitas ocasiões, deu cursos na
pós-graduação em conjunto com outros professores, daqui e de fora. Semanas antes de
sua doença se manifestar, estávamos animados em dividir um curso sobre Filosofia no
Brasil – um tema que ela já havia explorado em aulas na graduação anteriormente.
Sendo assim, sempre me pareceu um grande enigma como Noéli e “eu”
podíamos nos dar tão bem, considerando minha tendência beligerante, meu niilismo
cínico, minha impaciência. Contudo, acho que nos encontrávamos em um lugar não
muito fácil de se constituir; ou melhor, ela me resgatava lá, me levava até lá, onde as
recusas e o ímpeto da diferença não se contradiziam pela expectativa de estarmos
juntos, uma vez que tudo isso era pensado pela perspectiva do combate (encarniçado, no
meu caso, amoroso, no caso da Noéli) contra o autoritarismo, contra a destruição do
espaço comum da universidade, contra os monólogos intermináveis ou os falsos
diálogos. No final, mesmo quando, de minha parte, essa luta assumia a forma de um
discurso áspero e histriônico, Noéli teve a paciência e a generosidade de me ouvir. Esse
resgate era quase uma mania, ela o fez com muitos de nós. Eis aí a dádiva, o presente
que também sua ausência nos abre. Por isso “eu” gostaria de terminar com um texto que
resume o meu lugar de encontro com a Noéli, em que o NÃO se ouve como um SIM,
como ela queria, muitas vezes. Sintomaticamente, é um texto anônimo, escrito em
italiano provavelmente na década de 1970 e se chama “A ferro curto” (pp. 73-74).

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