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Aula pós-graduação. 2020.

1 – Filosofia da Arte I – Aula 3

18.08.20: Transfiguração do corpo I: hibridismo

1. A emergência de uma nova forma de experiência.

Da leitura da filosofia crítica de Kant, toda uma geração imediatamente posterior


(que incluía Schiller e Fichte, por exemplo) parece ter se ressentido da operação de cisão
entre o domínio da subjetividade e o das coisas em si, ou entre a liberdade da criação
subjetiva e a efetividade da natureza. Esse caráter cindido da experiência humana foi
continuamente criticado pelo classicismo, que se ocupou em pensar as condições de uma
reunificação das esferas experienciais a partir da possibilidade de uma totalidade
veiculada através da arte. A recusa da artificialidade e do maneirismo, a busca por um
princípio simples, natural e unificador para as ciências e a filosofia, capaz de reincorporar
a dimensão corporal e particular, rejeitada pelo privilégio do entendimento e da
universalidade abstrata, são características do pensamento clássico que viriam a nutrir o
Romantismo com uma crítica a Kant e, a princípio, aos modernos. Ao ser humano
cindido, cuja imagem a Crítica da razão pura havia, segundo os autores do classicismo,
produzido, Herder, Goethe e Schiller opunham uma humanidade reconciliada com seu
corpo. Esse reencontro é marcado como signo de uma totalidade, de uma comunhão
luminosa com a natureza. Uma vez que a artificialidade moderna é expulsa da
antropologia classicista, o ser humano volta a funcionar integralmente, de acordo com um
modelo que, desde os gregos e romanos, estava perdido.
O problema é visado pelo jovem Friedrich Schlegel em um texto que assinala seus
compromissos e suas primeiras rupturas com o classicismo, especilamente com a
perspectiva de Scullher. Sobre o estudo sobre a poesia grega é publicado em 1797 como
primeira parte de um volume intitulado Os gregos e os romanos. A segunda parte seria a
História da poesia dos gregos e romanos, que apareceu muito modificada em 1798. No
Estudo, a dívida com o classicismo se revela na maneira como Schlegel pensa a poética
da modernidade como fragmentária e até mesmo improdutiva. Mas, diferentemente de
Schiller, essa caracterização é desestabilizada por uma certa preocupação em conceituar
a condição da antropologia moderna, ou seja, em não simplesmente pensá-la como avesso
da unidade greco-romana, mas em sua positividade. O Estudo parece oscilar, assim, entre
o diagnóstico de incompletude da modernidade, de um lado, e, de outro, uma primeira
tentativa de pensar essa incompletude como categoria estética e experiencial.
Sintomaticamente, a condição fundamental da humanidade aparece como híbrida, e a
abertura da forma passa a caracterizar, paradoxalmente, a própria forma da experiência
humana. Em um movimento que vai se radicalizar pouco tempo depois (e que vai se
manifestar plenamente nos textos da Athenäum), Schlegel alcança aqui uma primeira
formulação do fragmento como premissa do pensamento, e, ao mesmo tempo, do corpo
como lugar de produção.
TEXTO 1: Friedrich Schiller, Sobre a educação estética do ser humano. Em uma série
de cartas. Carta VI (1795):

“Ewig nur an ein einzelnes kleines Bruckstück des Ganzen gefesselt, bildet sich der
Mensch selbst nur als Bruckstück aus, ewig nur das eintönige Geräusch des Rades, das er
umtreibt, im Ohre, entwickelt er nie die Harmonie seines Wesens, und anstatt die
Menschheit in seiner Natur auszuprägen, wird er bloß zu einem Abdruck seines
Geschäfts, seiner Wissenschaft. Aber selbst der karge fragmentarische Anteil, der die
einzelnen Glieder noch an das Ganze knüpft, hängt nicht von Formen ab, die sie sich
selbsttätig geben (denn wie dürfte man ihrer Freiheit ein so künstliches und lichtscheues
Uhrwerk vertrauen?), sondern wird ihnen mit skrupulöser Strenge durch ein Formular
vorgeschrieben, in welchem man ihre freie Einsicht gebunden hält. Der tote Buchstabe
vertritt den lebendigen Verstand, und ein geübtes Gedächtnis leitet sicherer als Genie und
Empfindung” (Sämtliche Werke, vol. 5, p. 583)

“Eternamente atado apenas a um pequeno pedaço do todo, o ser humano só pode se


formar enquanto pedaço, eternamente no ouvido apenas o ruído monótono da engrenagem
que ele aciona, ele nunca desenvolve a harmonia do seu ser, e, ao invés de imprimir a
humanidade em sua natureza, ele se torna meramente uma reimpressão de seus negócios,
de sua ciência. Mas mesmo a escassa e fragmentária parcela que amarra os membros
individuais ainda a um todo, não depende de formas que eles autonomamente se dão (pois,
como alguém confiaria sua liberdade a um mecanismo tão artificial e resistente à luz?),
mas, antes, lhes é prescrita com força escrupulosa através de um formulário, no qual se
mantem vinculada sua livre perspectiva. A letra morta representa o entendimento vivo, e
uma memória exercitada guia mais certamente que o gênio e o sentimento”.

TEXTO 2: Friedrich Schlegel, Sobre o estudo da poesia grega (1797):

“Es springt in die Augen, daß die moderne Poesie das Ziel, nach welchem sie
strebt, entweder noch nicht erreicht hat; oder daß ihr Streben überhaupt kein festes Ziel,
ihre Bildung keine bestimmte Richtung, die Masse ihrer Geschichte keinen
gesetzmäßigen Zusammenhang, das Ganze keine Einheit hat” (Kritische Friedrich-
Schlegel-Ausgabe. Vol. 1, p. 217).

“Salta aos olhos que ou a poesia moderna ainda não alcançou o fim em direção ao qual
se empenha, ou que seu empenho não tem absolutamente nenhum fim fixo, sua formação,
nenhuma direção determinada, a massa de sua história, nenhuma articulação regular, o
todo, nenhuma unidade” (Estudo, p. 35, tradução modificada).

***

“Beinahe überall werdet Ihr eher jedes andre Prinzip als höchstes Ziel und erstes Gesetz
der Kunst, als letzten Maßstab für den Wert ihrer Werke stillschweigend vorausgesetzt
oder ausdrücklich aufgestellt finden; nur nicht das Schöne. Dies ist so wenig das
herrschende Prinzip der modernen Poesie, daß viele ihrer trefflichsten Werke ganz
offenbar Darstellungen des Häßlichen sind, und man wird es wohl endlich, wenngleich
ungern, eingestehen müssen, daß es eine Darstellung der Verwirrung in höchster Fülle,
der Verzweiflung im Überfluß aller Kräfte gibt, welche eine gleiche wo nicht eine höhere
Schöpferkraft und künstlerische Weisheit erfordert, wie die Darstellung der Fülle und
Kraft in vollständiger Übereinstimmung” (Kritische Friedrich-Schlegel-Ausgabe. Vol. 1,
p. 218).

“Em quase toda parte, encontrareis logo qualquer princípio como fim mais elevado e
como lei primeira da arte, como medida última para o valor de suas obras, pressuposto
em silêncio contido ou encontrado erguido de modo expressivo; apenas não o belo. Esse
é tão pouco o princípio dominante da poesia moderna, que muitas de suas mais exclenetes
obras são, de modo inteiramente explícito, apresentações do feio, e se terá bem de admitir,
finalmente, ainda que contra a vontade, que há uma apresentação da confusão em mais
elevada plenitude, do desespero na profusão de todas as forças, que requer uma mesma –
senão maior – força de criação e uma sabedoria artística como a apresentação da
plenitude e da força na harmonização plena” (Estudos, p. 37, tradução modificada).

***
“Es ist schon oft bemerkt worden: die Menschheit sei eine zwitterhafte Spielart, eine
zweideutige Mischung der Gottheit und der Tierheit. Man hat es richtig gefühlt, daß es
ihr ewiger, notwendiger Charakter sei, die unauflöslichen Widersprüche, die
unbegreiflichen Rätsel in sich zu vereinigen, welche aus der Zusammensetzung des
unendlich Entgegengesetzten entspringen. Der Mensch ist eine aus seinem reinen Selbst
und einem fremdartigen Wesen gemischte Natur. Er kann mit dem Schicksal nie reine
Abrechnung halten, und bestimmt sagen: jenes ist dein, dies ist mein” (Kritische
Friedrich-Schlegel-Ausgabe. Vol. 1, p. 229).

“Já se notou com frequência: a humanidade é um tipo andrógino [zwitterhafte Spielart],


uma mistura ambivalente de divindade e animalidade. Sentiu-se corretamente que é seu
caráter eterno, necessário, a contradição insolúvel, o enigma inapreensível, que derivam
da concatenação de infindáveis contrapostos. O ser humano é uma natureza misturada a
partir de seu puro Si-mesmo e uma essência estranha. Ele nunca pode acertar as contas
de vez com o destino e dizer determinadamente: isso é teu, isso é meu” (Estudo, p. 48,
tradução modificada).

TEXTO 3: Dorothea Schlegel, fragmento (1802-1804):


“10. Estrabismo não é nada físico, mas um verdadeiro defeito de caráter; e é produzido
na infância por causa do mau hábito, de modo que, na sequência, se torna um erro de
caráter. Por que não deveria um estrabismo do corpo se deixar imprimir tão bem no
espírito quanto o contrário [?]”. (Briefwechsel I, pp. 122-123).

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