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Materialismo Lacaniano e Literatura:

e se o oposto fosse verdade?


978­65­999566­7­6
Materialismo Lacaniano e Literatura:
e se o oposto fosse verdade?
ÍNDICE
11 APRESENTAÇÃO
Profa. Dra. Érica Fernandes Alves

15 Parte I ­ Žižek, Lacan e literatura: uma conversa necessária

17 1. A FILOSOFIA POLÍTICA DE SLAVOJ ŽIŽEK COMO


CRÍTICA LITERÁRIA
Diego Luiz Miiller Fascina
Marisa Corrêa Silva

35 2. METODOLOGIA DE LEITURA DO TEXTO LITERÁRIO: O


MATERIALISMO LACANIANO COMO FERRAMENTA DE
FORMAÇÃO DO SUJEITO
Fernanda Garcia Cassiano
Renata Kelen da Rocha

51 Parte II ­ Literatura Portuguesa e outras literaturas


estrangeiras

53 3. A TINTA QUE FALTA: SEM NOME, DE HELDER MACEDO, E


A FUNÇÃO PATERNA NA REPRESENTAÇÃO DE UM
PORTUGAL CONTEMPORÂNEO
Phillip Rothwell

67 4. O DEJETO OBSCENO RONDA OHLSDORF: LENDO


THOMAS BERNHARD COM O MATERIALISMO
LACANIANO
Gabriela Bruschini Grecca
81 5. POR ENTRE UM CONTO, UMA CRÔNICA E UM
ROMANCE: REFLEXÕES LACANIANAS ACERCA DA
CONSTITUIÇÃO DO EU EM JOSÉ SARAMAGO
Isabela Padilha Papke

91 6. SARAMAGO “BRINCANDO” COM ŽIŽEK: O SIMBÓLICO E


O IMAGINÁRIO SE TRANSFORMAM
Diana Milena Heck

103 7. BONSAI, DE ALEJANDRO ZAMBRA: UMA LEITURA SOB A


ÓTICA DO MATERIALISMO LACANIANO
Bruno Henrique de Souza Silva

117 Parte III ­ a literatura brasileira

119 8. A “BRUTALIDADE DO REAL DA VIOLÊNCIA


DESREGRADA” EM UM ABATEDOURO: NO RASTRO DE UM
ASSASSINATO EM DE GADOS E HOMENS (2013), À LUZ DO
MATERIALISMO LACANIANO
Rafael Lucas Santos da Silva

137 9. O TRISTE FIM NAS TEIAS DA VIOLÊNCIA SISTÊMICA E


SIMBÓLICA DA LINGUAGEM: O ESSENCIAR DA
LINGUAGEM DE LIMA BARRETO
Maria Betânia da Rocha de Oliveira
155 10. A ESCRITA HISTÉRICA DE CLARICE LISPECTOR
Diego Luiz Miiller Fascina

181 11. O GRANDE OUTRO EM O PERU DE NATAL, DE MÁRIO


DE ANDRADE
Marcia Geralda de Almeida

195 12. A TRÍADE SIMBÓLICA NA OBRA PONCIÁ VICÊNCIO, DE


CONCEIÇÃO EVARISTO
Milene Vitória Ferreira da Silva
Maria Betânia da Rocha de Oliveira

209 13. A MULHER NA OBRA DE LIMA BARRETO: DIFERENTES


OLHARES SOBRE O CASAMENTO
Maria Betânia da Rocha de Oliveira

225 14. O MATERIALISMO LACANIANO DE ŽIŽEK NA OBRA


ANGÚSTIA, DE GRACILIANO RAMOS
Andressa Tayse de Oliveira Costa
Maria Betânia da Rocha de Oliveira

243 15. O CONTO AMOR, DE CLARICE LISPECTOR, À LUZ DO


MATERIALISMO LACANIANO
Késia Maria da Silva Florentino
Maria Betânia da Rocha de Oliveira
APRESENTAÇÃO

Entre os dias 16 e 17 de março de 2023, desdobrou­se na Universidade


Estadual de Maringá o colóquio intitulado “Qual Real que tivesse um vivo
mecanismo: Colóquio Materialismo Lacaniano”. Essa jornada teve como
objetivo principal celebrar os 12 anos de existência do Grupo de Estudos
em Materialismo Lacaniano no âmbito do Programa de Pós­Graduação em
Letras (PLE) da UEM, grupo coordenado pela professora Dra. Marisa Corrêa
Silva. O colóquio, além de celebrar, almejava estender, difundir e robustecer
as pesquisas que fluíam desse grupo.
Deste encontro entre mentes investigadoras, emergiu esta coletânea. Um
livro que é a colheita da confluência de diversos pensares, todos dedicados
a desvendar os segredos da teoria no Brasil. Composto por quinze
investigações, meticulosas e pioneiras, esta compilação assinala um marco
sólido no campo onde a teoria literária, a psicanálise e o materialismo
histórico­dialético se abraçam.
Ao longo dos anos, tive a honra de ser parte do Grupo de Estudos em
Materialismo Lacaniano, uma comunidade que se embrenhou com afinco
nas potencialidades do diálogo entre o pensamento de Slavoj Žižek e o
domínio literário, bem como na sua aplicação ao ensino da literatura e da

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arte de ler. A professora Marisa, enquanto professora da pós­graduação já
referida, corajosamente abriu caminho no país para algo inédito, uma teoria
que estremece as paredes de algumas teorias literárias e filosóficas já
sedimentadas, uma vez que questiona o pensamento linear, cartesiano. Os
alunos que se aventuraram a trilhar o caminho proposto pela professora,
um grupo coeso e paradoxal ao mesmo tempo, em sua união dialógica e
dialética, contribuíram para a pesquisa e a disseminação dos saberes
adquiridos em sua trajetória.
As páginas reunidas aqui são uma testemunha do compromisso e da
intelectualidade rigorosa dos pesquisadores envolvidos, indivíduos que se
aventuraram por territórios ainda pouco mapeados, presenteando­nos com
contribuições que têm valor inestimável tanto para a academia quanto para
a nossa apreensão das complexas ligações entre a linguagem, a
subjetividade e a sociedade.
A singularidade destas pesquisas reside na maneira como elas
mergulham fundo na teoria do materialismo lacaniano e a aplicam, de
forma original e instigante, ao universo literário. Enveredando­se na análise
cuidadosa de obras literárias selecionadas, os autores desvendam as
interseções entre os conceitos de Real, Simbólico e Imaginário e os
elementos narrativos, simbólicos e psicológicos presentes nas narrativas.
Nesse ato, desvelam­se novas perspectivas para interpretar e compreender
a literatura, desafiando­nos a repensar a forma como nos relacionamos com
as palavras e as narrativas que moldam nossa cultura e a de povos em
outras nações.
Além disso, não podemos subestimar a relevância desses estudos para o
ensino da literatura e da leitura. Ao trazer o Materialismo Lacaniano para o
contexto educacional, os autores enriquecem as abordagens pedagógicas e
oferecem ferramentas conceituais que podem alargar o processo de
aprendizado dos estudantes, incentivando uma compreensão mais
profunda e crítica das obras literárias.
Em síntese, este livro nos convida à reflexão profunda sobre as
interconexões entre a teoria psicanalítica, o materialismo histórico­

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dialético, a literatura e a sociedade. Ele é o resultado do comprometimento
de um grupo de pesquisadores que almeja alargar os confins do
conhecimento acadêmico. Esperamos que esses ensaios fomentem
debates, inspirem novas abordagens e, sobretudo, enriqueçam o campo da
pesquisa literária com uma perspectiva verdadeiramente inovadora e
esclarecedora. Aos leitores, desejo que saiam amadurecidos e renovados,
tendo, diante de si, uma nova perspectiva para olhar o mundo literário.

Maringá, 7 de outubro de 2023


Profa. Dra. Érica Fernandes Alves

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Žižek, Lacan e literatura:
uma conversa necessária

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A FILOSOFIA POLÍTICA DE SLAVOJ ŽIŽEK COMO
CRÍTICA LITERÁRIA
Diego Luiz Miiller Fascina
Marisa Corrêa Silva

O que é materialismo lacaniano


Essa aplicação de Lacan resgata o subjetivo, o psicanalítico e as
pressões do Inconsciente para o campo da coletividade, do
social. Ao fazê­lo, eles se propõem a retornar as propostas da
esquerda tradicional, ou seja, de buscar um humanismo
possível, de defender os grupos sociais e a humanidade da
lógica do Capitalismo, que vê no lucro a finalidade e o bem
maior, sacrificando a maioria dos seres humanos, os animais, o
meio ambiente, entre outros fatores, para cumprir suas
propostas. Por isso, a nova corrente recebeu o nome de
materialismo lacaniano (SILVA, 2009, p. 212).

Em oposição ao materialismo dialético, que sistematiza a matéria numa


relação dialética com o psicológico e o social, o materialismo lacaniano
propõe instaurar uma forma diferente de funcionamento do poder, que
ultrapasse os limites da democracia representativa, uma vez que
permanecer fiel à ideia tradicional de comunismo não é o bastante.
Destarte, Žižek, ao lado do francês de origem marroquina, Alain Badiou,

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inicia a base estrutural dessa teoria, localizando, na realidade histórica, os
antagonismos que fazem dessa ideia uma urgência prática.
A primeira transformação proposta gira em torno dos aparatos
conceituais de Karl Marx; no entanto, como afirma Silva (2009, p. 211),
esses pensadores não renegam o marxismo, mas, “aceitando as
contribuições do filósofo alemão para a história do pensamento, fazem a
ressalva de que a economia e a luta de classes apenas não são suficientes
para dar conta de tudo o que acontece”. Assim, Žižek despontou como
pensador capaz de renovar Marx, uma vez que a ortodoxia marxista
deixava brechas em determinadas análises de dimensão social.
O pensador esloveno travou contato com a psicanálise oriunda de
Jacques Lacan e com o idealismo alemão ainda na época em que
sedimentava sua formação filosófica. E é fundamentalmente dessas áreas
que Žižek retira o substrato teórico para a análise de nossa condição
contemporânea, ao mesmo tempo em que problematiza e revigora as
discussões a respeito dessa condição. Segundo Daly (2009),
o paradigma žižekiano – se é que podemos falar nesses termos
– extrai sua vitalidade de duas grandes fontes filosóficas: o
idealismo alemão e a psicanálise. Em ambos os casos, o
interesse central de Žižek recai sobre certa falta/excesso na
ordem do ser. No idealismo alemão, esse aspecto explicita­se
mais e mais através da referência ao que se poderia chamar de
uma ‘loucura’ inexplicável, que é inerente e constitutiva do
cógito e da subjetividade como tal [...] Na psicanálise, esse
aspecto temático da subjetividade deslocada é mais
desenvolvido com respeito ao conceito freudiano de pulsão de
morte. A pulsão de morte surge, precisamente como resultado
dessa lacuna ou furo na ordem do ser – uma lacuna que aponta,
ao mesmo tempo, para a autonomia radical do sujeito – e é algo
que ameaça constantemente sabotar ou derrubar a estrutura
simbólica da subjetividade (DALY, 2009, p. 9­10).

Žižek fundamenta suas discussões, especialmente, sob a doutrina


psicanalítica de Lacan, embora não seja proposta do materialismo
lacaniano psicanalisar seu objeto de estudo, mas sim analisar os efeitos
coletivos da aplicação desses conceitos. O esloveno afirma que “só hoje o
tempo da psicanálise está chegando” (ŽIŽEK, 2010, p. 9) e que, através do
“retorno a Freud”, Lacan propõe, arquitetando seu edifício psicanalítico

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com base em conceitos que fogem da psicanálise (a citar: a linguística de
Saussure, a antropologia de Lévi­Strauss, as filosofias de Platão, Heidegger,
Hegel, Kierkegaard, incluindo a teoria matemática dos conjuntos etc.),
entendemos que esta não é uma teoria clínica que busca compreender e
tratar distúrbios psíquicos,“mas uma teoria e prática que põe os indivíduos
diante da dimensão mais radical da existência humana. Ela não mostra a um
indivíduo como ele pode se acomodar às exigências da realidade social; em
vez disso, explica de que modo, antes de qualquer coisa, algo como
“realidade” se constitui” (ŽIŽEK, 2010, p. 10).
Sandro Bazzanella (2009), ao analisar os diversos estilos filosóficos de se
apresentar uma teoria, afirma que tais estilos não são gratuitos e que
possuem articulação direta com a visão de mundo de uma determinada
época. Assim, Platão escreveu em forma de diálogos, Montaigne através de
ensaios e Nietzsche basicamente por aforismos. Žižek possui um estilo que
articula, intimamente, a forma como a dinâmica social, política e
econômica se coloca numa contemporaneidade cética, em relação aos
projetos societários de igualdade e marcada pela fragmentação nas visões
de mundo. Dessa forma, usa um estilo que se comporta como uma
“guerrilha”, “na medida em que nos dá a impressão que procura não
enfrentar o problema em campo de batalha aberto, mas lança mão de
intrincados caminhos e atalhos, o que exige de seu intérprete esforços
significativos para seguir seus rastros” (BAZZANELLA, 2009, p. 16).
Dessa maneira, Žižek transita entremeio à psicanálise e à política radical,
fazendo uso desse estilo que, por vezes, denuncia as dificuldades e os
desafios teóricos da contemporaneidade, ao mesmo tempo em que remete
ao hermetismo advindo de Lacan, “que recusa as formas de pensamentos
fechadas, calcadas na lógica de origem grega” (SILVA, 2009, p. 212).
O esloveno realiza uma nova leitura que compreende desde a filosofia, a
sociologia, a literatura e política, passando pelo cinema hollywoodiano, o
espaço cibernético, a biogenética, a ficção popular, o atentado contra o
World Trade Center, a subjetividade na pós­modernidade, até assuntos
aparentemente banais, como, por exemplo, o Big Brother, o Kinder Ovo e

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os diferentes tipos de vasos sanitários; temas que recebem uma leitura, no
mínimo, inquietante e que nos guiam para significados implícitos por vezes
surpreendentes, mas que parecem óbvios uma vez descortinados pelo
pensamento ágil do filósofo.
Bazzanella (2009) articula o pensamento de Žižek em três linhas gerais:
inicialmente, o esloveno critica a hegemonia da democracia liberal do
capitalismo, que possui um discurso ideológico truncado e contraditório,
pois, ao mesmo tempo em que apregoa a liberdade como imperativo a ser
alcançado, apresenta um feedback punitivo para aqueles que se aventuram
na busca dessa liberdade. Daly (2009) afirma que esse tipo de crítica
funciona
apenas como ponto de partida de um compromisso ético­
político muito mais amplo com um universalismo
emancipatório radical, capaz de se opor à natureza cada vez
mais proibitiva do capitalismo contemporâneo e suas formas
correspondentes de correção política e
‘multiculturalismo’ (DALY, 2009, p. 7­8).

Em um segundo momento, encontram­se críticas em relação ao


posicionamento das esquerdas, que ficam presas a certas ortodoxias
marxistas e tentam sobreviver de propostas equivocadas, que só endossam
o discurso fundamentalista do capitalismo global e sua democracia liberal.
Em Bem­vindo ao deserto do Real!, Žižek (2003) analisa os atentados ao
World Trade Center e ao Pentágono no dia 11 de setembro de 2001. Com
isso, tenta despertar a esquerda para uma atitude renovada, a fim de
recuperar o terreno perdido e colocar­se como alternativa à ordem
hegemônica – representada pelos Estados Unidos e consolidada após a
queda do Muro de Berlim – e às profecias sobre o “fim da história”.
Com essa ‘esquerda’, quem precisa de direita? É natural então
que diante de loucuras ‘esquerdistas’ semelhantes, a facilidade
com que a ideologia hegemônica se apropriou da tragédia de
11 de setembro e impôs sua mensagem básica foi ainda maior
do que se poderia esperar dado o controle da direita e do
centro liberal sobre os meios de comunicação de massa:
acabaram­se os jogos fáceis, é preciso escolher lados – contra (o
terrorismo) ou a favor. E como ninguém se declara abertamente
a favor, a simples dúvida, uma atitude questionadora, é

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denunciada como apoio disfarçado ao terrorismo... É
precisamente essa tentação a que se deve resistir: é exatamente
nesses momentos de aparente clareza de escolha que a
mistificação é total. A escolha que nos é proposta não é a
verdadeira escolha (ŽIŽEK, 2003, p. 71).

E, finalmente, como terceira instância da filosofia de Žižek, Bazzanella


(2009, p. 20) cita o desafio em se “pensar o impensável”, “arriscar o
impossível”. Esse tipo de posicionamento advém da estrutura teórica de
Lacan que, como já dissemos, resgatou conceitos de outras áreas para sua
teoria psicanalítica. Ou seja, o retorno a Freud de Lacan partiu da linguística
e da antropologia e a releitura žižekiana de propostas políticas efetivas
desvencilha­se da carga histórica e da teleologia, para se ater à urgência
contemporânea, com conceitos revistos – todavia, bem cuidados.
Daly (2006, p. 22) afirma que, para Žižek, o foco da discussão não está
centrado no fato da Sociedade ser (im)possível ou não, mas no modo como
“a sociedade é impossível e como se entende politicamente a
impossibilidade”. O perigo potencial está em nos acostumarmos com uma
política que se mantém num nível de impossibilidade, sem a tentativa de
reverter ou “possibilitar o impossível”.

Materialismo lacaniano e Literatura

Terry Eagleton (2001) afirma que podemos dividir a crítica literária


psicanalítica em quatro tipos, dependendo de seu objetivo: ela pode se
voltar para o autor da obra, para o conteúdo, para a construção formal ou
para o leitor. Eagleton (2001) diz, ainda, que as duas primeiras modalidades
são as mais abordadas, por serem as mais limitadas e problemáticas. Assim,
chegamos ao seguinte questionamento: seria o materialismo lacaniano uma
modalidade da crítica psicanalítica? Ora, de acordo com o teórico britânico
a resposta é afirmativa. No entanto, não nos interessa, aqui, classificar a
perspectiva de Žižek. Apenas cumpre esclarecer que nosso
posicionamento é distinto. Embora o filósofo esloveno parta da psicanálise,
ele a transfigura; aplicar seus conceitos à forma e estrutura do texto

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literário não resulta, portanto, numa análise psicanalítica tout court.
Já havíamos esclarecido que sua abordagem não pretende elucidar um
problema clínico ou lançar luzes sobre as motivações inconscientes das
personagens, eliminando, dessa maneira, a psicanálise do autor e do
conteúdo, propostas por Eagleton. Mesmo que a leitura faça referências
diretas ao indivíduo, a aplicação do materialismo lacaniano ao texto exige
que pratiquemos novos olhares para questões que versem a respeito da
estrutura literária e, também, dos elementos teóricos que compõem a
narrativa, o drama ou a lírica, bem como os gêneros mistos ou limítrofes: a
maneira como a linguagem e o estilo são utilizados ou até do modo em que
as personagens funcionam como representação ou reflexo de uma
coletividade.
O materialismo lacaniano na crítica literária é relativamente recente.
Žižek já havia relido, dentre outros textos, o conto Bobók de Dostoiévski,
endossando a opinião de Lacan de que a verdadeira fórmula do ateísmo
não é de que Deus está morto, mas que Deus é inconsciente. O esloveno
também nos informa que Ricardo II é a peça fundamental de Shakespeare
a respeito da histericização, enquanto Hamlet é sobre a obsessão. Há ainda
leituras žižekianas de obras da ficção popular, a citar: Stephen King, Arthur
Conan Doyle e Agatha Christie etc.
A primeira experiência de aplicação de Žižek ao escopo literário que
encontramos é a do britânico Phillip Rothwell. Em A Canon of Empty
Fathers (2007), o pesquisador mostra que a história da Literatura
Portuguesa recebe uma nova interpretação quando o conceito de império
ultramarino é visto pela ótica lacaniana, especificamente sobre a função da
figura paterna autoritária e ameaçadora na psiquê coletiva e as
consequências desastrosas da falha nessa função paterna, apontando os
reflexos na representação literária e ligando­os aos estratos profundos da
cultura e da autorrepresentação de Portugal desde o século XV.
No Brasil, as primeiras experiências com o materialismo lacaniano no
campo literário foram feitas na Universidade Estadual de Maringá (UEM) e,
até o início de 2023, o Programa de Pós­Graduação em Letras (PLE) já conta

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com dezoito dissertações de Mestrado já defendidas e outras duas em
andamento, bem como seis teses de doutorado defendidas e mais seis em
andamento nessa linha específica; na UEM e na Uneal, vinte e quatro
projetos de iniciação científica finalizados; e quarenta e quatro artigos,
cinco livros, vinte e um capítulos de livro, dois dossiês em revistas
científicas e mais de cento e vinte comunicações e palestras diversas
apresentados em eventos, além deste livro, que reúne resultados de
integrantes do grupo de pesquisa intitulado “Aplicação do pensamento de
Slavoj Žižek na Literatura e em outras artes narrativas” apresentados no
Colóquio “Qual Real que tivesse/ um vivo mecanismo”: materialismo
lacaniano, que aconteceu em Março de 2023, na Universidade Estadual de
Maringá.

Lacan relido por Žižek e algumas aplicações na ficção de


Clarice Lispector

São muitos os conceitos lacanianos que receberam uma investidura


žižekiana. Embora o contato com o psicanalista francês seja
reconhecidamente difícil, o leitor precisa ter em mente que, ao se apropriar
e, geralmente, redigi­los, Žižek, por vezes, os aproxima de Lacan e, em
outros casos, atribui significados que pouco se assemelham aos sentidos
mais consensuais entre os lacanianos mais convencionais. Porém, como
afirma Silva (2009), apesar de sua complexidade, se for aplicada com
bastante rigor, a nova corrente é capaz de lançar luzes sobre os mais
diversificados temas e, especialmente neste caso, sobre a composição
literária.
Talvez o conceito lacaniano que possua maior aplicabilidade na releitura
do esloveno, seja o de Real. Por tratar­se de um termo bastante enigmático,
faz­se necessário entendermos a tríade que o sustenta e a maneira pela qual
o esloveno, normalmente, o aplica. Na psicanálise lacaniana, a tríade Real­
Simbólico­Imaginário, conhecida também como borromeana, constitui a
realidade do ser e, numa visão žižekiana, uma realidade social e/ou coletiva.

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Para o psicanalista francês, o que chamamos de realidade é a articulação
entre a significação (Simbólico) e as imagens (Imaginário). Daly (2009, p.
14) os diferencia, afirmando que o Simbólico é aberto e o Imaginário
“procura domesticar essa abertura pela imposição de uma paisagem
fantasística peculiar a cada indivíduo”. Silva (2009, p. 213) afirma que o
Simbólico “é o estágio no qual o indivíduo estruturou uma série de códigos,
leis e proibições que permitirão sua socialização”. Trata­se da
internalização do Nome­do­Pai, o qual estabelece uma castração, um corte
fundamental – uma vez que estrutura e serve como base para o processo
de individuação do sujeito – “com o tempo idílico em comunhão absoluta
com a mãe” (SILVA, 2009, p. 213). Importa notar que, para Lacan, pai e mãe
não precisam ser obrigatoriamente pais biológicos, podendo ser
identificados, inclusive, com instituições sociais.
Uma vez que o Simbólico é a ordem do significante, o Imaginário
corresponde ao significado, ao campo visual. Como se evidencia, o
psicanalista francês baseou­se na linguística estruturalista de Ferdinand de
Saussure para moldar esses conceitos: “a linguagem, portanto, tem relação
tanto com o Simbólico quanto com o Imaginário” (SILVA, 2009, p. 213).
O Real não pode ser incorporado nessa ordem. Embora inerente ao
processo de estruturação do indivíduo, esse conceito persiste como uma
dimensão eterna da falta, isto é, “funciona de modo a impor limites de
negação a qualquer ordem significante (discursiva), mas – pela própria
imposição desses limites – serve, simultaneamente, para constituir tal
ordem” (DALY, 2009, p. 15). Trata­se de uma instância traumática, indizível,
algo entre um vazio e um excesso, por sua característica de estar para além
da significação, ainda que possa ser aludido em certas situações de excesso
e horror. Nesses momentos de contato, “a vida perde o sentido, por assim
dizer, os laços simbólicos se desatam, deixando que mergulhemos no
caos” (SILVA, 2009, p. 213).
Os exemplos citados por Žižek são inúmeros, sendo alguns, no mínimo,
bastante inusitados. Citaremos quatro: em O amor impiedoso ou: sobre a
crença (2012), o teórico afirma que os debates em torno do Sudário de

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Turim acomodam tranquilamente essa tríade, de maneira que o Imaginário
questiona se a imagem discernível, ali, é a verdadeira reprodução da face de
Jesus Cristo, o Real encaixa­se nas inquietações a respeito de quando o
material foi feito e se o teste que mostrou que o linho fora tecido no século
XIV é conclusivo e, por fim, o Simbólico narra o complicado percurso do
Sudário através dos séculos. Em A visão em paralaxe (2008), o esloveno
afirma que o fundamentalismo encena um curto­circuito entre o Simbólico
e o Real, isto é, algum fragmento simbólico (por exemplo, o texto sagrado,
a Bíblia no caso dos fundamentalistas cristãos) é postulado em si mesmo
como Real (para ser lido “literalmente”, para não se brincar com ele, em
resumo: dispensado de qualquer dialética de leitura). Já na obra Em defesa
das causas perdidas (2011), Žižek afirma que determinados
comportamentos na internet podem funcionar como a encenação Real de
fantasias sádicas, enquanto na vida pública o Simbólico­Imaginário do
indivíduo é bem educado e cumpridor de regras.
Para concluirmos, em Como ler Lacan (2010), essa complexa tríade é
vista de uma maneira bastante simples, refletida em um jogo de xadrez:
As regras que temos de seguir para jogar são sua dimensão
simbólica: do ponto de vista simbólico puramente formal,
“cavalo” é definido apenas pelos movimentos que essa figura
pode fazer. Esse nível é claramente diferente do imaginário, a
saber, o modo como as diferentes peças são moldadas e
caracterizadas por seus nomes (rei, rainha, cavalo), e é fácil
imaginar um jogo com as mesmas regras, mas com um
imaginário diferente, em que esta figura seria chamada de
‘mensageiro’ ou ‘corredor’, ou de qualquer outro nome. Por fim,
o real é toda a série complexa de circunstâncias contingentes
que afetam o curso do jogo: a inteligência dos jogadores, os
acontecimentos imprevisíveis que podem confundir um
jogador ou encerrar imediatamente o jogo (ŽIŽEK, 2010, p. 17).

Especificamente a respeito do dinâmico conceito do Real, Žižek aponta


em Um mapa da ideologia (1996), por meio do termo “espectro”, que o
cerne “pré­ideológico” da ideologia consiste na aparição espectral que
preenche o buraco do Real. Dito de outro modo, não existe realidade sem o
espectro, pelo fato de que, ao tentar delimitar uma “verdadeira” realidade de
uma ilusão, deve ser levado em questão que “para que emerja (o que

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vivenciamos como) a ‘realidade’, algo tem que ser foracluído dela [...] e a
realidade, tal como a verdade, nunca é, por definição toda” (ŽIŽEK, 1996, p.
26). Dessa forma, o Real, que é a parte não simbolizada da realidade,
aparece em formas espectrais, justamente nessa rachadura que separa a
realidade do Real. O conceito marxista de luta de classes ilustra de maneira
inquietante uma aparição do Real, pois se configura como um empecilho
simbólico que nos esforçamos para integrar, mas que, ao mesmo tempo,
condena esses esforços ao fracasso. Assim, é impossível objetivá­la, já que
ela mesma nos impede de conceber a sociedade como uma totalidade
fechada.
Lacrimae rerum (2009) reflete uma das maiores paixões de Žižek, tema
sobre o qual ele escreveu extensivamente: o cinema. Em cinco ensaios, o
esloveno deixa transbordar sua preferência por Alfred Hitchcock, mas
passa por David Lynch, Kieslówski e Tarkowsky, até chegar a alguns filmes
atuais, de grande bilheteria, como é o caso de Matrix, que nos interessa
aqui. O filme dos irmãos Wachowski “funciona como a tela que nos separa
da realidade, que torna tolerável o deserto do real” (ŽIŽEK, 2009, p. 159).
Nesse filme, o Real lacaniano não funciona apenas como algo que deve ser
reformado pela fantasia; é também a própria tela como o obstáculo que já
distorce nossa visão de realidade lá fora. Em outras palavras, a Matrix em si
é o Real que desconexa nossa percepção de realidade. Žižek (2009) afirma
ainda que o problema em Matrix não está na ingenuidade científica de seus
truques, pois a ideia de passar de um mundo real para um virtual através de
um telefone faz sentido, há apenas a necessidade de um buraco por onde se
possa escapar. O problema se encontra numa “inconsistência fantasmática”,
que fica mais clara quando Morpheus tenta explicar a Neo o que é Matrix,
relacionando­a a uma falha na estrutura do universo. Com essa situação, o
filme propõe que essa experiência do vazio confirma que a realidade que
vivemos é, simplesmente, uma farsa.
Finalmente, mas sem esgotar as aplicações, em Bem­vindo ao deserto do
Real! (2003), Žižek nos apresenta sua aplicação mais conhecida e, a nosso
ver, a mais impactante: trata­se do atentado terrorista contra as torres
gêmeas do World Trade Center em 2001. Os norte­americanos viram no
fatídico 11/09 um de seus maiores símbolos caírem por terra. Desnorteado
e impossibilitado de expor aquele trauma em linguagem (Simbólica), os
Estados Unidos sofreu um contato chocante com o Real. Como afirma
Žižek,
antes do colapso do WTC, vivíamos nossa realidade vendo os
horrores do Terceiro Mundo como algo que na verdade não
fazia parte de nossa realidade social, como algo que (para nós)
só existia como um fantasma espectral na tela do televisor ­, o
que aconteceu foi que, no dia 11 de setembro, esse fantasma da
TV entrou na nossa realidade. Não foi a realidade que invadiu a
nossa imagem: foi a imagem que invadiu e destruiu nossa
realidade (ou seja, as coordenadas simbólicas que determinam
o que sentimos como realidade). (ŽIŽEK, 2003, p. 31).

Christopher Kul­Want (2012) aponta que Žižek interpretou esse ataque


da Al­Qaeda como um momento histórico em que os EUA, em vez de se
enxergarem, apenas, como vítimas, refletiram a respeito de suas ambições
imperialistas e suas consequências desastrosas que culminaram no 11 de
setembro. Os Estados Unidos deveriam aceitar sua própria vulnerabilidade
e fazer “da punição aos responsáveis uma triste tarefa e não uma retaliação
divertida” (KUL­WANT, 2012, p. 56).
Grande parte dos contos enfeixados em Laços de família, de Clarice
Lispector, servem como exemplos literários para abordarmos o conceito
do Real. Silva (2009) já havia usado o conto Amor para ilustrar a
possibilidade da aplicação. Aqui, utilizamos A imitação da rosa, que
também permite uma leitura relacionada ao processo epifânico
desencadeado em sua protagonista. Nesse conto, Laura se veste e reflete,
metodicamente, a respeito de seus afazeres domésticos, enquanto aguarda
o marido para jantarem com um casal de amigos, após longo tempo de sua
internação. Em meio às suas reflexões, a protagonista visualiza um jarro
com rosas. Como é comum na ficção clariceana, um acontecimento banal
toma enormes proporções internas e Laura se sente terrivelmente
perturbada com a perfeição dessas flores:
Nunca vi rosas tão bonitas, pensou com curiosidade. E como se
não tivesse acabado de pensar exatamente isso, vagamente
consciente de que acabara de pensar exatamente isso e rápida
por cima do embaraço em se reconhecer um pouco cacete,
pensou numa etapa mais nova de surpresa: ‘sinceramente,
nunca vi rosas tão bonitas’. Olhou­as com atenção. Mas a
atenção não podia se manter muito tempo como simples
atenção, transformava­se logo em suave prazer, e ela não
conseguia mais analisar as rosas, era obrigada a interromper­se
com a mesma exclamação de curiosidade submissa: como são
lindas (LISPECTOR, 1998, p. 43).

A visão das rosas pode ser lida, numa perspectiva žižekiana, como um
encontro com o Real. A epifania descortina uma “realidade” que as criaturas
de Lispector recusam, de modo que se sentem aliviadas com o afastamento
de tal situação, ao retornarem à normalidade. O trecho anterior aponta para
uma linguagem que destoa daquela que antecipa a visão incômoda.Trata­se
de uma tentativa textual “de ressimbolizar a experiência, arrastando­a, por
meio da palavra, para o domínio conhecido e seguro do Simbólico” (SILVA,
2009, p. 215). O Real precisa ser ressimbolizado; os Estados Unidos, por
exemplo, encontraram a âncora que os apoia, novamente, nas normativas
simbólicas revidando com mais violência, assumindo o papel de vítima e
também criando filmes e documentários que endossam essa visão. Situação
semelhante acontece na literatura, pois, após Laura se livrar das rosas e da
visão vertiginosa que elas causaram, voltando a se entreter com suas
preocupações cotidianas, a estrutura textual retoma a mesma linearidade
(segura) do início.
Na esteira das frutíferas discussões que o Real propõe, Žižek se apossa de
um conceito de Alain Badiou, a “paixão pelo Real” (passion du réel). Em
poucas palavras, trata­se do “Real em sua violência extrema como o preço a
ser pago pela retirada das camadas enganadoras da realidade” (ŽIŽEK, 2003,
p. 19), ou seja, a necessidade de se “(re)dominar a realidade”. Dentre os
vários exemplos citados – desde a exposição de certos sites pornográficos,
que reproduzem imagens de uma microcâmera inserida numa vagina,
transformando o objeto desejado num repugnante e Real encontro com a
carne exposta, ao terror fundamentalista atual que lança bombas nos
supermercados, com o intuito de acordar os cidadãos do Ocidente do
entorpecimento ideológico – que comprovam que essa é a principal
característica do século XX, Žižek (2003) também lança mão de um
exemplo claro: as pessoas que mutilam seus corpos com lâminas, na
tentativa de se “sentirem vivas”. Ao verem o sangue correndo, essas pessoas
sentem­se temporariamente re­enraizadas na realidade: seu
comportamento é característico de uma patologia que resulta em uma
busca desenfreada de retomar algum tipo de “normalidade”.
Sendo a epifania o estopim para o encontro traumático com o Real, e
observando a recorrência dessa técnica na ficção clariceana, podemos
supor que o conceito de “paixão pelo Real” pode ser facilmente aplicado na
estrutura de alguns de seus contos e romances. A trajetória de grande parte
de suas personagens está ligada à necessidade de experimentação de uma
revelação/crise/náusea que as expulsam da tranquilidade cotidiana. Esse
conhecimento súbito da “verdade”, que cria um rito de passagem perigoso
e sublime, arrebata não apenas suas criaturas, mas também o leitor e a
própria narradora. A visão do cego mascando chicletes ou das belas rosas
no vaso, ou ainda de um búfalo no jardim zoológico, não assumiriam a
carga introspectiva e existencial, e, numa perspectiva žižekiana, não seriam
lidos como o encontro com o Real, se a autora não fizesse uso do processo
epifânico em consonância com o monólogo interior e fluxo de consciência
– técnicas que servem para expor a linguagem denunciada pelo Real.
Para não ficarmos apenas na contística, o romance A paixão segundo
G.H. colabora nessa leitura proposta, pois é através do necessário contato
com a barata (e também com o núcleo duro do Real), que G.H. realiza um
percurso místico incrustado de tormento e muitos questionamentos
existenciais. A diegese focalizará o longo processo de ressimbolização, isto
é, a narradora­protagonista estrutura, sob forma de linguagem, a tentativa
de recontar o acontecido e suturar as lacunas da realidade que foram
rompidas no momento em que o Real (encontro com o inseto) “ofuscou”
seus olhos, para retornar à “organização anterior”, como ela bem afirma.
Vejamos:
­ ­ ­ ­ ­ ­ estou procurando, estou procurando. Estou tentando
entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem,
mas não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que
vivi, tenho medo dessa desorganização profunda. Não confio
no que me aconteceu.Aconteceu­me alguma coisa que eu, pelo
fato de não a saber como viver, vivi uma outra? A isso quereria
chamar desorganização, e teria a segurança de me aventurar,
porque saberia depois para onde voltar: para a organização
anterior. A isso prefiro chamar desorganização pois não quero
me confirmar no que vivi – na confirmação de mim eu perderia
o mundo como eu o tinha, e sei que não tenho capacidade para
outro (LISPECTOR, 1998, p. 11).

Sigamos para outro conceito: Inserido na ordem Simbólica, está o


Grande Outro (Big Other, em inglês e Autre, por oposição a autre, em
francês), conceito contemplado em inúmeras análises de Žižek. Pelo fato de
todos os indivíduos serem construídos e dominados pela linguagem, eles
operam em níveis simbólicos governados por um superego (freudiano)
autoritário, que Lacan chama de Big Other. Segundo Silva (2009, p. 214),
trata­se de “uma instância onipresente, criada pelo indivíduo no processo
de separar a si próprio do resto do mundo, ou seja, no processo de
individuação. Ele é invisível, mas está sempre em torno de nós”.
O espaço simbólico funciona como um padrão de comparação
contra o qual posso me medir. É por isso que o grande Outro
pode ser personificado ou reificado como um agente único: o
‘Deus’ que vela por mim do além, e sobre todos os indivíduos
reais, ou a Causa que me envolve (Liberdade, Comunismo,
Nação) e pela qual estou pronto a dar minha vida. Enquanto
falo, nunca sou meramente um ‘pequeno outro’ (indivíduo)
interagindo com outros ‘pequenos outros’: o grande Outro
deve estar sempre lá (ŽIŽEK, 2010, p. 17).

Žižek (2010, p. 18) lança mão de um exemplo cômico para nos


apresentar este conceito: trata­se da piada de um camponês náufrago que
se depara ilhado com a modelo Cindy Crawford. Depois do sexo, ele pede
mais um favor, questionando se ela poderia se vestir como seu melhor
amigo, usar calças e pintar um bigode no rosto. O camponês afirma não ser
um pervertido e, após ela aceitar o pedido, ele se aproxima do “amigo” e se
gaba de ter mantido relações com a beldade. Esse terceiro que se eleva
acima das interações dos indivíduos e funciona como testemunha é o
Grande Outro e, como bem aponta a piada, ele é subjetivamente virtual, ou
seja, “só existe na medida em que sujeitos agem como se ele
existisse” (ŽIŽEK, 2010, p. 18).
Os contos Feliz aniversário e Os laços de família exemplificam duas
maneiras diferentes de visualizarmos o Grande Outro na obra de Clarice
Lispector. No primeiro, a matriarca da família, D. Anita, completa 89 anos. A
família vai se juntando aos poucos para comemorar a data. Inerte,“e desde
as duas horas, a aniversariante estava sentada à cabeceira da longa mesa
vazia” (LISPECTOR, 1998, p. 54), sem demonstrar emoções nem interagir
com os convidados, apenas recebia cumprimentos enquanto a festa se
desenrolava.
A festa é descrita como uma tarefa mecânica, totalmente sem afeto, puro
pretexto para reunir a família num ato burocrático e vazio: “Vim para não
deixar de vir” (p. 54), afirma uma das noras. A decoração com “guardanapos
de papel colorido e copos de papelão alusivos à data” (p. 55) e ainda
“balões sungados polo teto em alguns dos quais estava escrito “Happy
Birthday!”, e em outros “Feliz Aniversário”! (p. 55), infantilizam e
ridicularizam o ambiente. As personagens parecem encenar papéis, num
misto de disfarces e dissimulações: “– Oitenta e nove anos!, ecoou Manoel
que era sócio de José. É um brotinho!, disse espirituoso e nervoso” (p. 56),
“– Nada de negócios, gritou José, hoje é o dia da mãe!” (p. 57).
Em determinado momento, o narrador, com sua postura divina, descarna
o pensamento da idosa e o leitor fica a par da insatisfação da matriarca, por
ter dado “à luz aqueles seres opacos, com braços moles e rostos
ansiosos” (p. 60), “pareciam ratos se acotovelando, a sua família” (p. 61).
Colérica e insatisfeita, a velha cospe no chão. Numa leitura materialista
lacaniana, o ato de cuspir pode ser lido como a maneira de informar ao
Grande Outro a falsa harmonia e as podridões escamoteadas pela família.
Nesse caso, essa instância funciona como o decoro das relações sociais,
afetivas, que normalmente são sufocadas pela fingida calma dos ambientes
familiares, e aponta para o fato de que os elos fraternais foram substituídos
por relações instrumentais. Apesar de surpresa, a família constrangida
prefere dissimular o acontecido, pois “a velha não passava agora de uma
criança” (p. 61) e a festa continua com planos para o próximo ano.
Já em Os Laços de Família, desde o princípio, o leitor conhece a relação
periclitante entre Catarina e sua mãe, Severina. Depois de uma visita à filha,
quando enche o neto de mimos, como uma avó tradicional e também
simula um bom relacionamento com o genro, Severina embarca de volta
para casa. No entanto, quando está com a filha no táxi, este dá uma freada
brusca e as lança uma contra a outra “numa intimidade de corpo há muito
esquecida, do tempo em que se tem pai e mãe” (p. 96).
Cria­se uma situação visivelmente constrangedora pelo contato físico
evitado desde a infância. A descoberta desse distanciamento é revelada, ao
leitor, pelas frases recorrentes que causam certo estranhamento: “– Não
esqueci de nada? Perguntava pela terceira vez a mãe. – Não, não, não
esqueceu de nada, respondia a filha” (p. 94).
O verbo esquecer não faz relação direta com o elemento bagagem, mas
sim com o elemento humano, com a ausência de relações afetivas entre
mãe e filha:“–... não esqueci de nada? perguntou a mãe. Também a Catarina
parecia que haviam esquecido alguma coisa [...], se realmente haviam
esquecido, agora era tarde demais” (p. 97).
Após o incidente, o narrador conduz as reflexões da filha, em que os
problemas familiares, num discurso repleto de queixas e mágoas, recebem
uma tônica. No entanto, o decoro social fala mais alto e a filha não explode
num ato repulsivo de violência, como foi o caso da anciã do conto anterior.
Prova disso é que ela mortifica seus pensamentos e, ao chegar à estação,
despede­se da mãe e espera o trem partir. Em outras palavras, esse conto
torna­se mais perturbador do que Feliz aniversário, pelo fato de que,
naquele, o Grande Outro é informado das más relações e, neste, apenas o
leitor o é, o qual funciona como espectador e assiste incomodado à relação
mal resolvida entre ambas.

Referências

BAZZANELA, Sandro. Os pressupostos da filosofia política de Slavoj


Žižek. In: TELES, Ildete; GUERRA, Elizabete. Lacunas do Real: Leituras de
Slavoj Žižek. Florianópolis: Nefipo, 2009.
EAGLETON, Terry. A Psicanálise. In: Teoria da literatura: Uma Introdução.
Tradução de Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

KUL­WANT, Christopher. [ilustrações de Piero]. Entendendo Slavoj


Žižek. Tradução de Adriana de Oliveira. São Paulo, Leya, 2012.

LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco,


1998.

LISPECTOR, Clarice. Laços de família. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

SILVA, Marisa Corrêa. Materialismo Lacaniano. In: BONNICI, Thomas;


ZOLIN, Lúcia Osana. Teoria literária: abordagens históricas e tendências
contemporâneas. Maringá: Eduem, 2009.

SILVA, Marisa Corrêa. O Percurso do outro ao mesmo: sagrado e


profano em Saramago e em Helder Macedo. São Paulo: Arte & Ciência,
2009.

ŽIŽEK, Slavoj. O amor impiedoso (ou: Sobre a crença). Tradução de


Lucas Mello Carvalho Ribeiro. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

ŽIŽEK, Slavoj. Em defesa das causas perdidas. Tradução de Maria


Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011.

ŽIŽEK, Slavoj. Um mapa da ideologia. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de


Janeiro: Contraponto, 2010a.

ŽIŽEK, Slavoj. Como ler Lacan. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges.


Rio de Janeiro: Zahar, 2010b.

ŽIŽEK, Slavoj. Lacrimae rerum: Ensaios sobre o Cinema Moderno.


Tradução de Isa Tavares e Ricardo Gozzi. São Paulo: Boitempo, 2009.

ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe. Tradução de Maria Beatriz de


Medina. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008.

ŽIŽEK, Slavoj; DALY, Glyn. Arriscar o impossível: Conversas com Žižek.


Tradução de Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

ŽIŽEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do Real!: Cinco Ensaios sobre o 11


de Setembro e Datas Relacionadas. Tradução de Paulo Cezar Castanheira.
São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.
METODOLOGIA DE LEITURA DO TEXTO LITERÁRIO: O
MATERIALISMO LACANIANO COMO FERRAMENTA DE
FORMAÇÃO DO SUJEITO
Fernanda Garcia Cassiano
Renata Kelen da Rocha

Em defesa do ensino teórico-prático

A reflexão deste capítulo pauta­se na demonstração sobre como


podemos realizar propostas de leituras que façam do texto literário um
material de concretude e visualização da formação social. Para
produzirmos uma leitura interpretativa do texto literário, pautamo­nos na
obra Como ler Lacan, de Slavoj Žižek (2010), e no capítulo de livro
“Materialismo Lacaniano”, escrito por Marisa Corrêa Silva (2019), presente
na obra Teoria Literária: abordagens históricas e tendências
contemporâneas, que expande a abordagem do filósofo esloveno para os
Estudos Literários. Nesse capítulo, Silva (2019) apresenta a leitura de um
conto de Clarice Lispector, cuja leitura é enviesada pela teoria discutida.
Com isso em vista, propusemos uma leitura coletiva e reflexiva de um

­ 35 ­
miniconto de Helena Parente Cunha, discutido com base na corrente de
pensamento estudada. Com isso, objetivamos propiciar ferramentas para a
leitura do texto literário que consideram não só questões sócio­históricas,
mas também as práticas intersubjetivas presentes na obra de arte. Os
resultados nos mostram que, quando aliada a uma prática colaborativa, a
leitura do objeto, diante de uma ótica, pode proporcionar insights
coletivos que fundamentam e justificam a sua relevância na formação do
pensamento crítico.
O materialismo lacaniano aplicado à literatura é uma abordagem teórica
que combina conceitos da psicanálise de Jacques Lacan com a crítica
literária e cultural. Se essa perspectiva busca analisar as relações entre o
sujeito, a linguagem e a sociedade, explorando como a estrutura simbólica
influencia a produção e a recepção literária, é compreensível que tal
proposta busque intimidade com as perspectivas dos sujeitos e corrobore
neste processo mútuo de formação. Inicialmente, atrelada à filosofia
política, articulando­se pelo viés da psicanálise de Lacan e do materialismo
histórico de Marx e Engels, a vertente busca extrapolar os limites dos
fenômenos políticos e ideológicos, dialogando com os estudos culturais
que, quando colocados em uma leitura metodológica ampla, reforma­se a si
própria. Essa aplicação teórica se concentra na dimensão simbólica dos
textos literários, examinando, portanto, como a linguagem e as estruturas
simbólicas presentes na obra literária moldam a subjetividade dos
personagens, refletem os conflitos e desejos humanos, e revelam aspectos
da cultura e da sociedade em que ela foi produzida.
Naturalmente, ao buscar desvendar as camadas simbólicas presentes nos
textos literários, de qualquer espécie simbólica, considerando a interação
entre o inconsciente, o simbólico e o social, explorar de que maneira as
estruturas linguísticas, os jogos de significados, os símbolos e as metáforas,
presentes na obra literária, pode revelar os processos de subjetivação, as
dinâmicas de poder, as questões de gênero, as tensões sociais e outras
dimensões culturais. A obra literária não deve ser vista apenas como um
objeto estético isolado, mas como um produto cultural que reflete e

­ 36 ­
influencia a psique individual e coletiva. Sendo assim, o materialismo
lacaniano proporciona uma abordagem crítica e interpretativa que permite
investigar os complexos nexos entre a literatura, a linguagem, a
subjetividade e a sociedade.
Compreender a pesquisa como uma ferramenta de investigação social
nos permite continuamente associar essas reflexões ao processo de ensino,
haja vista que é na didatização de uma teoria, que se alcança o terreno das
significâncias, das trocas colaborativas, do outro. Também por isso, há a
preocupação constante sobre como ensinar o pensamento científico
enquanto forma e metodologia de pensamento, em como coletivizar a
transformação de uma atmosfera social regida por valores simbólicos que,
quando questionados, fazem­nos pensar em nossa própria formação.
Enquanto a pesquisa caminha com o processo educativo na
possibilidade de vivenciar leituras, extrapolando o campo da materialidade,
é possível perceber a atuação do campo simbólico em toda a existência do
todo e, dentro dele, de produções culturais. Consideramos que a pesquisa
promove o desenvolvimento do pensamento crítico nos estudantes,
incentivando­os a questionar, analisar e avaliar informações; envolve a
capacidade de buscar e selecionar fontes. Nesta esteira, o minicurso
proposto objetivou a compreensão inicial de conceitos referentes à tríade
lacaniana, isto é, o Simbólico, o Imaginário e o Real, como uma possível
abordagem teórico­metodológica para leitura interpretativa de textos
literários contemporâneos e de autoria feminina. A metodologia se
relaciona com a possibilidade de interpretação subjetiva, porque aproxima
o pensamento do presente atual.
Com a metodologia do percurso de fazer linguístico, o objetivo final do
minicurso é o do alcance interpretativo, pois, ao alinhar o processo de
pesquisa­ensino, estamos, também, aprimorando as nossas práticas de
percepção com diferentes recursos que partem do processo
comunicativo.

O minicurso

­ 37 ­
Este minicurso foi realizado no dia 16 de março de 2023, durante o
evento Qual Real que tivesse um vivo mecanismo: Colóquio materialismo
lacaniano, na Universidade Estadual de Maringá, no formato virtual. Em uma
sala, com cerca de trinta pessoas presentes, iniciamos o encontro,
apresentando a aproximação da análise literária ao materialismo lacaniano.
Inicialmente, realizamos uma leitura do conto “Amor”, de Clarice
Lispector (1960), acionando o conhecimento prévio das pessoas presentes
sobre o texto apresentado, a autora, contexto e estilo dela.
Após o momento inicial, introduzimos os conceitos básicos de Jacques
Lacan e de Slavoj Žižek, apontando as possíveis interpretações que a teoria
escolhida proporciona e instigando os participantes a compartilharem as
suas considerações sobre o conto clariciano, bem como os insights que a
abordagem pode proporcionar. Essa interpretação do conto foi conduzida
em conformidade com o proposto por Silva (2019), no capítulo
“Materialismo Lacaniano”. Sintetizamos o processo, indicando que a
interpretação foi possível por acionarmos, como estratégia analítica, os
elementos da narrativa identificados no texto literário, interseccionando­os
com a teoria žižekiana.
Esclarecidos estes pontos, no segundo momento, reforçamos a
possibilidade transpor o mesmo movimento de leitura e análise, com base
na teoria apresentada, a outros textos narrativos. O que, de fato,
propusemo­nos a fazer, a partir do conto “A menina da calça rosa de
bolinhas cor­de­rosa (Ou a menina da calça cor­de­rosa de bolinhas
rosa?)” (2011), de Helena Parente Cunha, publicado na coletânea Falas e
falares: minicontos. Realizamos a leitura compartilhada do texto e, depois,
abrimos um espaço para discussão relativa à apreciação, impressão,
comentários, críticas, entre outros.
Passado o momento apreciativo, na esteira de Slavoj Žižek e em seu uso
da teoria lacaniana, expusemos breves conceitos da tríade lacaniana,
composta pelo Simbólico, Imaginário e Real, Big Other (Grande Outro),
Petit a, Desejo e Pulsão. Com isso, solicitamos que os participantes

­ 38 ­
identificassem quais elementos da narrativa, expressos na materialidade do
texto, poderiam ser interpretados à luz desses conceitos.
Foram as possíveis interpretações, os questionamentos e o
compartilhamento de dúvidas que formulam descrições da linguagem em
termos sintáticos e semânticos que abrem as portas para as interpretações
e, naturalmente, para a apreciação estética e afetiva no decorrer do trajeto.
Ao fim, questionamos: Há alguma inquietação que resta da leitura?
Ao propor análise conjunta de um texto, verbal ou não verbal,
percebemos os alcances e limitações do processo interpretativo, isso
porque, ver o material teórico como base de análise, exige o
direcionamento do olhar questionador, pois há diversas formas de
aproximações de símbolos e significados em uma narrativa de um texto
movida por diferentes exigências. Quando pontuamos, efetivamente, um
olhar analítico – que examina os detalhes e discute as possibilidades –
percebemos que a profundidade estética de um produto é imensa, não só
externamente, por conter cultura, informação e articular a imaginação, mas
em seu campo interno também, porque faz descobrir raízes, encontrar a
história.

As interpretações

O texto literário “A menina da calça rosa de bolinhas cor­de­rosa (Ou a


menina da calça cor­de­rosa de bolinhas rosa?)”, de Helena Parente Cunha,
o qual propusemos para uma análise conjunta, é sobre uma sobrinha que
deseja ter uma calça rosa de bolinhas­cor­de­rosa, mas que a tia não a
encontrara para dar­lhe como presente. No decorrer das fases da vida da
menina, depois mulher, a narradora­protagonista presenteia­lhe com outros
objetos, como sapato de salto alto, um esquadro eletrônico, bolo de
casamento etc., que podem ser indicativos daquilo que compõe as fases da
vida de uma mulher (amadurece, forma­se, casa­se, reproduz­se...). Após o
nascimento de uma sobrinha­neta, a tia encontrou a calça rosa de bolinhas­
cor­de­rosa que a sobrinha antigamente quisera, só que a nova criança

­ 39 ­
deseja uma calça cor­de­rosa de bolinhas rosa.
Diante da mudança de objetos que acompanham a vida não só da tia,
como, também, da sobrinha, as quais pensamos como mulheres, sejam elas
na fase adulta ou infantil, perguntamo­nos de que maneira o desejo das
personagens pode ser compreendido neste discurso narrativo?
Com o objetivo de propor uma interpretação para esse texto de Cunha
(2011), na esteira de Žižek (2010), consideramos a existência de uma
ambivalência na leitura do desejo. Isso porque, segundo o filósofo esloveno
para além do que o sujeito deseja, existe aquilo que o Grande Outro
predetermina, num espaço Simbólico, bem como aquilo que o Outro
(como alteridade) deseja e interpela o sujeito.
Por meio dessa leitura, alcançamos alguns resultados analíticos,
possibilitados, principalmente, pela introdução do tópico estrutural da
narrativa. Observemos, de início, a ambivalência já indicada no título:
temos, como o “oficial”, a menina da calça rosa de bolinhas cor­de­rosa,
para, entre parênteses, haver o questionamento: Ou a menina da calça cor­
de­rosa de bolinhas rosa? Com isso, sabemos que, apesar de denotar uma
semelhança ­ o que acarreta confusão devido às mesclas das cores e das
formas – as calças não são as mesmas, logo, as meninas também não. E, no
título, há a dúvida sobre quem é quem, quem quer o quê, a qual objeto uma
ou outra se liga.
Indo além, as especificidades das calças são bem claras na escrita. O jogo
com a linguagem, no texto, é nítido, não só pelo domínio linguístico da
autora, como também pela possibilidade das múltiplas imagens que ele
suscita. Rosa é uma cor derivada de uma flor, enquanto cor­de­rosa é a cor
da rosa. Se não houver a descrição da tonalidade, uma calça rosa de bolinha
cor­de­rosa torna­se apenas uma calça rosa, já uma calça cor­de­rosa de
bolinhas rosa, também. Apesar das especificidades estarem bem­marcadas
no registro simbólico, o seu objeto parece vazio de significado que o
diferencie materialmente. Então, o que se busca? O que a calça pode
representar? Poderíamos pressupor que ambas desejavam a mesma coisa,
embora com representações diferentes?

­ 40 ­
É interessante considerar uma análise cronologicamente linear e não
linear, pois é neste movimento temporal que podem habitar diversas
brechas do discurso. Para articular o conceito de Grande Outro, é bastante
interessante que pensemos como essa figura máxima e abstrata habita o
simbólico do sujeito e de suas narrativas, assim, ao considerar o Outro um
agente instigador do desejo e consequentemente do ato de desejar,
percebemos como essa instância atua no enlace da realidade.
O conto inicia­se com uma pergunta: “ah, minha querida, o que você
quer de presente no seu aniversário?” (CUNHA, 2011, p. 51). Alguém
responde: “ela quer uma calça rosa de bolinhas cor­de­rosa, uma graça,
tia” (CUNHA, 2011, p. 51). Notemos que quem enuncia o que se quer não é
a sobrinha diretamente, mas alguém que avisa a tia o que a criança deve
ganhar. Quem enunciou sobre o desejo? Apesar de não expresso, é possível
pressupor essa voz que vem “do além” e diz, de maneira virtual, a quem a tia
obedece sem pestanejar, como a voz do Grande Outro, aquele que ensinava
não só a menina sobre o que ela queria, isto é, apenas a calça rosa de
bolinhas cor­de­rosa, como também a tia, que, sendo ela a mulher
responsável a agradar a filha de sua irmã, como uma espécie de fada
madrinha que tudo faz, buscaria alcançar os quereres da sobrinha
desenfreadamente. A tia assumiu este querer, quando ela e a sobrinha vão
juntas comprar o presente. Logo, aqui teríamos vestígios de que o desejo
delas é também o desejo do Grande Outro.
Isso é tão sobressalente que, neste momento, o discurso narrativo sofre
uma alteração formal, pois, entre barras (sinal gráfico), a narradora­
protagonista descreve as suas ações, dúvidas, lugares, mescladas a um
discurso indireto que possibilita não só a pressuposição de uma busca
desenfreada, fora de orações ortograficamente grafadas (o que
representaria uma ruptura no registro Simbólico ou então uma certa rasura
dele, uma tentativa de contrariá­lo), como também a fragmentação desse
procurar:
/ vamos / indo / nesta loja / naquela / e / ali /??? / nesta rua /
naquela / depois da praça / do outro lado / e fomos / indo mais
do que se fôssemos / de lá / para lá / de cá / pra aqui / procurar

­ 41 ­
mais do que procurando, olhe esta aqui, esta?, rosa de bolinhas
brancas, tão bonitinha, tão gracinha, você, não?, NÃO (CUNHA,
2011, p. 51).

Por meio de uma escrita completamente imagética e sonora, com a


negativa da garota, é possível pressupor que ela tinha uma imagem do
objeto que gostaria de encontrar, apesar de ele não ser apreensível nesse
momento do conto para nenhuma das duas personagens.
Ao receber a negativa da sobrinha, a tia resolveu mudar a sua busca para
a cidade:
então vamos à cidade, muito mais do que ir ou iríamos já que
fomos, nem aqui / nem lá / nesta loja nem / naquela não de
nem, mas será possível que não se fabrica em lugar nenhum
calça rosa de bolinhas cor­de­rosa?, quando eu viajar para o Rio,
procuro e acho, então eu vou, eu procuro, eu não acho / ali /
aqui, será possível?, idem, vírgula, interrogação, barra / não se
importe não, meu amor, quando eu for a São Paulo no fim do
mês, garanto que vou encontrar, eu vou, eu fui, eu irei, eu iria,
aqui vocês vendem calça rosa de bolinhas cor­de­rosa?, não,
acho que você não vai encontrar, o quê?, como?, não existe?,
não, não insista, não, NÃO, NÃO, nunca? idem, vírgula,
interrogação, exclamação, ponto final (CUNHA, 2011, p. 51­52).

Percebamos que o Simbólico deste conto delineia­se pautado,


principalmente, nas proibições acerca daquilo que a mulher e a sua
sobrinha buscavam.
Apesar de o registro simbólico ser permeado por rupturas ou
transgressões, bem como por indignação, ainda assim a narradora­
protagonista, em todos os lugares aonde foi, ia ou iria, desde o Rio de
Janeiro até São Paulo, só se deparava com negativas. Há um esgarçamento
do nível Simbólico, via registro escrito, embora ele não seja completamente
alterado. Ao ponto que as limitações das buscas se tornam tão “certas” e
“aceitáveis” que o período acaba com um “ponto final” escrito. Resignou­se
a não encontrar aquilo que queriam.
Vemos, além disso, que a “calça” permite observarmos que um objeto de
desejo salta entre objetos físicos, funcionando como um espaço vazio a ser
preenchido. Ao compreendermos que o sujeito, depois de inserido no
mundo, precisa buscar alguma coisa pra viver, como um mecanismo de

­ 42 ­
pulsão e próprio resultado da castração simbólica, consideramos que a
busca pela “calça” é, na verdade, uma articulação saudável do sujeito que se
manifesta nas diferentes esferas aqui apresentadas: 1 – na menina que
queria saciar seu desejo, alcançando seu objeto de desejo; 2 – na tia que
queria alcançar seu objeto de desejo que era fornecer à menina o objeto
por ela desejado.
No entanto, essa Coisa (tomada pela forma da calça, mas ocupada por
qualquer outro objeto) não se torna determinante, porque, mesmo sem
encontrá­la, a menina amadureceu saudavelmente, dentro das estruturas
previstas, direcionando a causa do desejo para outros objetos que recebia
da tia como uma troca mútua de saciedade. Claro que isso pode demonstrar
uma certa subserviência àquilo que o Grande Outro as ensinava a desejar,
como veremos em seguida.
Mesmo com as diversas negativas externas, a tia seguiu perguntando:“o
que você quer de presente no seu aniversário?”, para dar­lhe,
sucessivamente, ano após ano, objetos que preenchiam o espaço vazio
deixado pela calça rosa de bolinhas cor­de­rosa. Exemplo disso seria: o seu
primeiro sapato de salto alto, um esquadro eletrônico, indicando a
formatura da sobrinha como arquiteta, depois o bolo da noiva, já que há
uma convenção, no limite Simbólico do conto, de que esse alimento devia
ser oferecido pela titia madrinha.
Nessa sucessão de eventos, entrecortados por discurso indireto livre, há
uma certa resiliência da narradora­protagonista diante das etapas as quais a
sobrinha, já uma mulher, está submetida, o que se expressa, principalmente,
sob marcas de bom comportamento ou de etiqueta, aquilo que deve
ocorrer em determinada ocasião, como indica o trecho: “seu vestido está
lindo, parabéns, obrigada, que bolo bonito, que os noivos sejam muito
felizes, obrigada, muito obrigada, pois é, bem, e então?” (CUNHA, 2011, p.
52).
Todavia, com o enunciado: “pois é, bem, e então?”, é possível pressupor
duas interpretações: I) agora que está casada, a sobrinha forma um par com
outra pessoa, logo, não é a tia que lhe suprimiria os quereres: e então, o que

­ 43 ­
faria agora? II) Ou um e agora? Como quem diz, foi feito tudo o que
determinava a ordem Simbólica para uma mulher contemporânea: cresceu,
formou­se, casou­se, e então, qual é o próximo desejo? (algo muito próximo
à fada madrinha dos contos de fadas).
Foi quando a sobrinha neta nasceu, indicando que ainda haveria a fase da
reprodução, após o casamento. Isso possibilitou, assim, a continuidade de
estabelecer­se um novo par identitário, com o qual seria preciso suprir
novas demandas, embora elas ainda fossem desconhecidas: “eu ainda não
sei o que vou dar de presente para minha primeira sobrinha neta que vai
nascer, ela nasceu, fez um ano, outro ano, etc., etc., um presente, outro
presente, quantos anos se passaram?, e agora?,” (CUNHA, 2011, p. 52).
Quando o nó parece desatado, a tia encontrou numa loja uma calça rosa
de bolinhas cor­de­rosa. Ela entra, pede, paga e leva em um:
pacote de papel laminado rosa explosivo, fita rosa estampido, minha
queridíssima sobrinha neta vai adorar, aqui está, meu amor, um presentinho
para você, os brilhos em luzinhas do papel laminado rosa explosivo se
acenderam na fresta de sol e no redondo da pupila dela, oh, titia, muito
obrigada, é muito bonita esta calça rosa de bolinhas cor­de­rosa, mas você
sabe o que é mesmo que eu quero?, uma calça cor­de­rosa de bolinha rosa,
(CUNHA, 2011, p. 52).
Isso nos permite questionar: se a tia tivesse encontrado a calça antes,
para a menina, as duas ficariam felizes, mas, provavelmente, precisariam se
alimentar de outra busca depois, para seguirem a estrutura de constante
formação do sujeito. A tia satisfez seu desejo de encontrar a calça,
embrulhada em um papel luminoso e brilhante, revelando a sua
importância, porém temos um anticlímax. Ao oferecê­la para a sobrinha
neta, deparou­se com a realidade da causa de desejo: por ser um
mecanismo abstrato, ele atua de forma diferente nos diferentes sujeitos,
isso porque existem outros fatores, externos e internos, atuantes nessa
estrutura do desejo que é interminável.
O texto não termina precisamente em seu fim e sua última grafia formal
é o uso da vírgula. Ele finaliza com uma vírgula, antecipando a ideia cíclica

­ 44 ­
do não alcance. Ao trabalhar essas representações simbólicas, como a
cristalização material do objeto de desejo em uma calça rosa de bolinhas
cor­de­rosa ou de uma calça cor­de­rosa de bolinhas rosa, nós podemos
reafirmar que, apesar das calças serem muito parecidas, a causa não é
saciada, não porque o objeto não foi encontrado, mas, justamente, porque
esse mecanismo tem como função a pulsão em querer o que não se tem.
Dito isso, se considerarmos a conceituação de desejo conforme Žižek
(2010), baseado em Lacan, podemos pensar no desejo da narradora­
protagonista como aquele ensinado pelo Grande Outro, numa determinada
ordem Simbólica, revelando a necessidade não de comprar­se uma calça
impossível de encontrar, mas sim da necessidade da tia em manter o afeto
de sua sobrinha, por meio de bens materiais, os quais concernem às etapas
de uma mulher, seja a criança, que dizem o que ela deseja, seja a adulta que
se forma, casa­se, tem filhos. Como se uma fada madrinha estivesse ali,
tornando realidade os desejos de uma outra.
Além disso, é possível apreender que a tia se sentia desejante quando a
sobrinha desejava, ou seja, ela só reconhecia aquilo que a impulsionava a
agir, conforme o Outro atravessava­lhe como aquele que deseja, indicando
o que se era querido. Era estarrecedor, ao ponto de alterar a sua cadência
oracional, criar uma angústia que só um vazio que precisa ser preenchido é
capaz de causar, mas, ainda assim, movia­a, revelando que o seu desejo era o
desejo do Outro.
É claro que, numa outra superfície, principalmente quando lançamos luz
aos usos de pontos de interrogação ou perguntas direcionadas a alguém
(seria ao Grande Outro?) ou ainda ao sentimento de indignação diante das
negativas, percebemos um questionamento ou descredito à ordem das
coisas e àquilo que ela era “condicionada” a desejar/suprir. Isso nos
revelaria uma narradora­protagonista que, embora estivesse de acordo com
o desejo do Grande Outro, que lhes ensinava o que desejar como
representação de mulheres, crianças ou adultas, no discurso literário, há
uma pequena transgressão a ele e a ordem Simbólica que delimita, codifica
e nega.

­ 45 ­
Sobretudo, essas camadas analíticas levantadas anteriormente, sobre as
interações da materialidade estética na formação social, fazem­nos
perceber a dimensão da complexidade linguística em uma narrativa curta,
de núcleo único e característica descritiva.
Se existem várias formas de interpretação, pensemos que na
interpretação textual, referente à compreensão e análise de
textos escritos, há a busca pela compreensão do significado do
texto; assim, identificar temas, analisar a estrutura e elementos
literários, como metáforas, símbolos e personagens nos coloca
quase que em um lugar de interpretação de eventos, atribuindo
significados coletivos.

Algumas considerações

Ao propormos uma leitura interpretativa e colaborativa sobre as


disparidades compostas na narrativa de “A menina da calça rosa de bolinhas
cor­de­rosa (Ou a menina da calça cor­de­rosa de bolinhas rosa?)”,
percebemos que é possível transferir leituras que abordam uma
investigação sobre os sistemas literários, que se mostra continua. Para além
da composição dos elementos da narrativa em si, é também factual a
possibilidade de transferência dessa estratégia analítica para outras obras.
Pensemos que essa escolha não convém em uma tentativa de atribuir juízo
de valor no sentido do conteúdo proposto, visto que este sempre será
único e diverso, mas que é potencializado pelas escolhas discursivas da
narrativa.
Ora, se compreendemos que, no decorrer das fases da sobrinha, a tia
presenteia­lhe com outros objetos, os quais podem ser indicativos ou pistas
daquilo que compõe as fases da vida de uma mulher, tornamos essa leitura
um espelho moral. Nesse sentido, após o nascimento de uma sobrinha­neta,
a tia encontrou a calça rosa de bolinhas­cor­de­rosa que a sobrinha
antigamente quisera, só que a nova criança deseja uma calça cor­de­rosa de
bolinhas rosa. Se o nosso questionamento inicial se apresenta a fim de
compreendermos de que maneira o desejo das personagens pode ser lido

­ 46 ­
neste discurso narrativo, o objetivo de propor uma interpretação para esse
texto de Cunha (2011) justifica­se pela compreensão da existência de uma
ambivalência na leitura do desejo.
É possível notar que as estruturas ideológicas corroboram a formação
desse sujeito desejante que também é um indivíduo, mas, além disso, é um
representante histórico­cultural. Ademais, são as instâncias psicológicas
que proporcionam essa visualização pois, apesar de serem estruturas
abstratas, são também socialmente fundamentadas.
Neste recorte, buscamos averiguar como as vozes e as representações
destas mulheres ecoam e corroboram o desencontro com o objeto de
desejo, que, por possuir traços materialmente singulares, tornam­se
desejados pela causa de desejo impulsionada pelo papel do Grande Outro,
enquanto uma instância reguladora. Assim, o desejo representa, de forma
abrangente, as identidades – ou a busca pela completude – das mulheres da
narrativa que, apesar de mostrarem­se como seres desejantes, não
conseguem.
Por fim, a proposta de leitura se alinha com o que Žižek (2014) reflete:
há uma influência do sistema para a formação social, pois, para ele, o
capitalismo contemporâneo se relaciona, de forma bem específica, aos
fetiches do mercado, os quais são como um motor de pulsão para as trocas
pessoais e posicionamentos de valor, ou seja, funcionam como um
acelerador das relações. E essa apropriação das lutas sociais é uma
estratégia cultural/mercadológica.
Apesar de ser fundamental recusar a distância entre a cultura “oficial” e a
cultura “alternativa” – aqui, integrando o desejo de ter uma calça rosa (ou
de permanecer em um estágio de constante busca), de encontrar uma calça
rosa (ou de permanecer em um estágio de constante busca) – é mais
importante enxergar o poder ideológico presente em cada produto
cultural. Isso porque ele se mascara na própria estrutura da causa de desejo,
que atua não somente no âmbito de uma troca afetiva de presentes entre
tia­sobrinhas, mas também se envereda por todo o contexto de formação
do sujeito que é desejante. Portanto, essa manifestação do desejo é

­ 47 ­
ambivalente pelo próprio preenchimento de um vazio material ou, então,
pela submissão frente aos costumes e às fases formadoras dos sujeitos e das
mulheres.
É certo que a relevância desta leitura literária está no seu desempenho
em proporcionar ferramentas fundamentais na compreensão e apreciação
tanto de forma quanto de conteúdo narrativo, o que pode ser verificado,
inclusive, na condução do minicurso, a partir da recepção do público.
Ficou claro que, de forma imagética, ao mergulharmos nas camadas mais
profundas das obras, é possível desvendar os significados ocultos, os temas
universais, propostos em uma narrativa com suas próprias motivações e
jornada de desenvolvimento. Quando exploramos as estruturas narrativas,
os estilos de escrita e os recursos linguísticos empregados, buscamos
contextualizar a produção de forma histórica, cultural e social, ou seja,
construímos uma leitura coletivizada e colaborativa por meio da troca com
outros leitores.

Referências

CUNHA, Helena Parente. Falas e falares: minicontos. Mulheres, 2011.

CUNHA, Helena Parente. Mulheres inventadas: leitura psicanalítica de


textos na voz masculina. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro: 1994.

LACAN, Jacques. (1956­1957). O seminário, livro 4: a relação de objeto.


Texto estabelecido por Jacques Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1995.

LISPECTOR, Clarice. Amor. In: LISPECTOR, Clarice. Laços de família. Rio


de Janeiro: Rocco, 2009. p. 19­29.

SILVA, M. C. Materialismo Lacaniano. In: BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia


Osana (orgs.). Teoria Literária: abordagens históricas e tendências
contemporâneas. 3. ed. Maringá: Eduem, 2009. p. 211­216.

ŽIŽEK, S. Como ler Lacan. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de


Janeiro: Zahar, 2010.

ŽIŽEK, Slavoj. Violência: seis reflexões laterais. Trad. Felipe da Silva

­ 48 ­
Polydoro e Thiago Siqueira Venanzoni. São Paulo: Boitempo, 2014.

­ 49 ­
­ 50 ­
Literatura Portuguesa
e outras literaturas estrangeiras

­ 51 ­
­ 52 ­
A TINTA QUE FALTA: SEM NOME, DE HELDER MACEDO, E
A FUNÇÃO PATERNA NA REPRESENTAÇÃO DE UM
PORTUGAL CONTEMPORÂNEO
Phillip Rothwell

Em sua introdução a uma reflexão sobre os acontecimentos do 11 de


Setembro de 2001, “A Tinta que Falta” (The Missing Ink), Slavoj Žižek
lembra de uma piada dos tempos da Alemanha Oriental. Na piada, um
trabalhador é transferido para a Sibéria, onde ele sabe que toda a sua
correspondência será controlada. Para enganar os censores, ele formula um
código para ser usado em todas as cartas para os amigos. Se a carta for
escrita em tinta vermelha, tudo o que estiver nela é mentira; se a tinta usada
for azul, o que ele escreveu é verdadeiro. Pouco tempo depois da chegada à
Sibéria, os amigos dele recebem a primeira carta, em tinta azul, na qual a
imagem projetada é da Sibéria como o Paraíso. A ambiguidade chave reside
na última linha da carta: “a única coisa que não se consegue achar aqui é
tinta vermelha” (ŽIŽEK, 2002, p. 1). Žižek diz que a moral da história é que
o mundo, tal como ele foi configurado, especialmente no Ocidente, no
assim chamado “mundo livre”, sente­se livre porque “nós não temos a
linguagem mesma para articular nossa falta de liberdade” (Idem, p. 2).

­ 53 ­
Essa preocupação materialista de que, de algum modo, a linguagem
tenha sido manipulada para forçar escolhas, para fazer­nos enunciar nossa
própria servidão como se fosse nossa livre escolha fazê­lo, tornar­nos
cúmplices numa escravização, permanece há tempos entre os elementos
mais críticos da esquerda. Adorno e seus colegas da Escola de Frankfurt
criticaram reiteradamente a maneira que o discurso cultural tenta negar ao
sujeito o direito de articular sua “desliberdade”, um mecanismo astuto para
negar a possibilidade de quaisquer alternativas para o status quo
(ADORNO, 1991). A diferença agora – uma diferença abordada com muita
força por Helder Macedo em seu romance de 2005, Sem Nome – reside na
tendência aparentemente todo­poderosa nos dias de hoje pelo “tanto faz”,
ao menos na corrente central da cultura de shopping center. Esse “tanto
faz” tem seu equivalente no que Noam Chomsky denomina “filosofia da
futilidade” (CHOMSKY, 2005, pp. 19­43). Com a perda da tinta vermelha, a
linguagem beira o sem sentido e a total indiferença se segue rapidamente.
Em Sem Nome, Macedo toma uma posição abertamente política. Ele
reflete sobre o desapontamento que o Portugal pós­revolucionário se
tornou em seu fracasso de apoiar alternativas sociais que ainda precisam
ser nomeadas: eis uma das inflexões do título nessa narrativa de múltiplas
camadas. A luta de hoje “tem de ser outra” (p. 124) – não outras ideias
requentadas, que nunca funcionaram e que, entretanto, são
constantemente apresentadas como regeneradoras. Essa nova luta é “ainda
sem nome (p. 124)”. O que Macedo está propondo, por meio de uma
narrativa sofisticadamente estruturada, na qual verdades estabelecidas em
um capítulo são em seguida reveladas como mentiras gritantes, é para
localizarmos a tinta que falta – a tinta vermelha que permite a articulação
do que está errado, porque ela restaura o valor da tinta azul.
Para Macedo, um dos pré­requisitos para encontrar a tinta desaparecida
é restringir a sombra de Freud, tal como o pai da psicanálise a lança em seu
retrato fundamentalmente pessimista da condição humana em O Mal­Estar
na Civilização (Civilization and Its Discontents). É lá que Freud afirma
que “a vida, tal como a encontramos, é muito dura para nós; ela nos traz

­ 54 ­
dores demais, desapontamentos e tarefas impossíveis” (FREUD, 1989, p. 23).
Tanto nossos corpos quanto nossas naturezas estão além do nosso controle
e, embora possamos encontrar alívio na comunidade, desde o momento em
que saímos do “ventre da mãe, o primeiro abrigo, pelo qual com toda a
probabilidade o ser humano ainda anseia, e onde ele estava seguro e à
vontade” (Idem, p. 43.), somos forçados a aceitar o fato de que “humanos
não são criaturas gentis que desejam ser amados e que podem, no máximo,
defender­se se atacados; ao contrário, são criaturas entre cujos dotes
instintivos é preciso reconhecer uma poderosa dose de
agressividade” (Idem, p. 68). Esse raciocínio, junto com a asserção de que a
natureza dotou cada “indivíduo com atributos físicos e capacidades
mentais extremamente desiguais” e “introduziu injustiças para as quais não
há remédio” (Idem, p. 71, nota 7) levou Freud a concluir que “as premissas
psicológicas”, nas quais os sistemas socialistas ou comunistas são baseados,
“são uma ilusão insustentável” (Idem, p. 71). Esse é o escrito que levou
Lacan a afirmar, repetidamente, que “Freud não era um progressista”, o que
significava que, enquanto Freud era profundamente humanitário, ele estava
convencido que qualquer ideologia baseada em princípios marxistas
estava condenada ao fracasso, por causa da natureza dos seres humanos
(Jacques Lacan, The Ethics of Psychoanalysis, 208).
Macedo não é marxista e, como Freud, é profundamente humanitário.
Onde Sem Nome desafia O Mal Estar na Civilização e Freud em geral, é na
resignação do psicanalista – a posição de Freud é a de que a tinta que falta
nunca pode ser encontrada. Uma vez que seremos sempre prisioneiros de
uma natureza obscura que não pode ser superada, o melhor a que podemos
aspirar é sermos contidos dentro de uma ordem simbólica que protege
contra o excesso. Nessa ordem simbólica, está se tornando impossível
conceituar justiça verdadeira, igualdade verdadeira ou um amanhã
realmente melhor, porque nós fomos levados a crer que apenas um tipo de
tinta está disponível, de maneira que todos os discursos têm o mesmo valor
e apenas reintroduzem os fundamentos da dinâmica da capacidade
humana desigual com uma cara mais ou menos humana.

­ 55 ­
Um dos tropos­chave dessa resignação é colocar tudo o que se possa
imaginar como uma recorrência perpétua do passado em vez de uma
(im)possibilidade potencialmente realizável no futuro. É aí que Sem Nome
adota uma linha mais otimista que Freud, colocando o psicanalista e o que
considera ser sua estrutura de nostalgia ao lado de Artemidoro, “uma
espécie de Freud pagão … um anti­Freud antes do tempo” (p. 42). O
romance também flerta com uma neutralização de Édipo e uma
renegociação de Hamlet, recusando abrir mão da esperança e, ao mesmo
tempo, sem se iludir. Ele exige que as coisas sejam chamadas pelos nomes e
recupera a distinção entre tinta azul e vermelha como aquela entre
fantasmas exorcizados e potencialidades assumidas – entre as restrições do
passado e as chances do futuro.
O romance é estruturado em torno de um caso de identidade
equivocada. Um advogado português que vive em Londres é chamado pela
polícia de imigração para ajudar a solucionar o caso de uma mulher que
eles detiveram no aeroporto porque os documentos portugueses dela
apresentam uma data de nascimento trinta anos antes do que poderia ser.
O interesse do advogado, José Viana, é imediatamente despertado quando
ele descobre que o nome da detida é Marta Bernardo (ou Martha Barnardo,
como a polícia britânica pronuncia), uma mulher que indicou o número do
telefone de Viana à polícia, e cuja voz ao telefone é a voz da amante que ele
perdera trinta anos atrás. Quando se encontram, ela não o reconhece, mas
ele vê Marta tal qual ela era quando ele a deixou e perdeu. Como se vê ao
longo da leitura, uma série de equívocos transformou Júlia de Sousa em
Marta Bernardo e, por obra do destino, Júlia, uma jornalista de vinte e seis
anos, vive no mesmo apartamento que Marta havia ocupado nos anos 1970.
O romance segue para contar como José supera a memória da perda de
Marta. Ele só consegue, finalmente, deixar o fantasma dela descansar depois
que pode lembrar da pessoa dela, entendendo que ela, cuja imagem
fotográfica não existe, não se parece em nada com Júlia. É outra instância da
injunção de Žižek que “para realmente esquecer um acontecimento,
primeiro temos de encontrar forças para lembrá­lo corretamente” (ŽIŽEK,

­ 56 ­
2002, p. 22). Para esquecer Marta, ele precisa relembrá­la adequadamente,
consignando a história a seu lugar apropriado para que uma nova ordem
possa ser imaginada.
Durante o processo de Marta ser esquecida por José, Júlia imagina que
vira Marta. Isso se torna uma de suas fantasias mais íntimas e a leva a um ato
de crueldade hipócrita, pois ela mente de forma muito calculada a José
sobre a morte da única mulher que ele, aparentemente, amou. Apesar disso,
a mentira funciona para o advogado de Londres como uma verdade
estratégica, uma mentira necessária através da qual ele deve passar e na
qual ele deve acreditar para aceitar o futuro e abandonar o passado. É uma
tinta vermelha que dá a ele a tinta azul.
A ironia da mentira de Júlia é composta duplamente. Numa primeira
instância, ela é a mesma jornalista que lança uma diatribe contra o
sensacionalismo do espetáculo midiático contemporâneo, o qual barateou
tanto o discurso político que este faz surgir figuras como Santana Lopes,
um “playboy” (p. 110) que seria também o Primeiro Ministro de Portugal
quando o livro foi escrito, e seu ministro da Defesa, Paulo Portas, “uma
espécie de salazarista pós­moderno” (p. 111). Como diz o título do livro,
eles permanecem “sem nome”, embora claramente identificados. Ambos
epitomizam a aparente derrota das promessas progressivas de Portugal.
Ambos se beneficiam da sociedade do espetáculo que Portugal se tornou,
na qual a mídia pode e, em Portugal, frequentemente faz, destruir as vidas e
carreiras de pessoas vendendo boatos ou meias verdades, resultando em
que apenas os indivíduos mais ideologicamente anódinos ou então
evidentemente corruptos, assumem o manto da liderança política. Ao
mesmo tempo em que Júlia é inflexível em sua condenação do papel
nefasto do jornalismo português em neutralizar a sociedade, ela se inspira
nas convenções da invenção sensacionalista disfarçadas no discurso de um
relato imparcial escrito em linguagem jornalística para fazer José crer que
Marta morreu.
A segunda ironia é que José só vem a acreditar, realmente, na descrição
gráfica que Júlia fez de como a PIDE espancou Marta até a morte na noite

­ 57 ­
em que ele fugiu de Portugal no momento em que sua secretária, Lisa
Costa, “um erro” (p. 17) que ele havia levado para a cama e depois
compensado com o emprego, tenta desiludi­lo da mentira de Júlia. A
verdade de Lisa (ou talvez sua pura invenção, como José se convence de
que foi) prova que Júlia tem de estar mentindo. Apresentado ao relato de
Lisa, em um dos momentos mais importantes do romance, ele escolhe
acreditar em Júlia. Através da verdade descartada de Lisa, José perpetra um
verdadeiro ato de conhecimento lacaniano – o cerne de um ato ético – no
qual “apenas o sujeito possui a garantia em um ato de antecipação”, e no
qual não há nenhum Outro “sempre­já ali, pronto para oferecer uma
garantia para a afirmativa do sujeito” (ZUPAN I , 2000, p. 203). Em outras
palavras, José assume a responsabilidade pela primeira vez em sua vida, ao
escolher uma verdade estratégica que subsequentemente possibilitará que
ele enxergue um futuro.
A competição entre Freud e Artemidoro é crucial para a escolha final de
José. É uma escolha entre sonhos enquanto memórias do passado ou
enquanto possibilidades do futuro. Sonhos são uma parte fundamental da
narrativa, literalmente dando o título do capítulo quatro, “A Chave dos
Sonhos”. É um sonho que impele José a viajar para Lisboa e encontrar Júlia
novamente, e sonhos recorrentes são parte integral da vida de José. Sua
afirmativa de que “afinal os sonhos não eram mais do que imagens
emanadas do passado, e ele sempre preferira desejar o futuro a lastimar o
passado” (p. 41) vem antes do tempo na narrativa (no capítulo quatro,
muito antes de José fazer as pazes com os fantasmas do seu passado). A voz
do narrador aponta precisamente para o problema que aflige José em sua
negação de como os seus sonhos­enquanto­passado o debilitam: “o
problema dos sonhos, no entanto, é que neles nunca se sabe o que de facto
é passado e o que pretende ser futuro, o que é memória e o que é
desejo” (p. 41), e é precisamente por isso que Freud, tal como apresentado
em Sem Nome, é posto lado a lado com Artemidoro. Enquanto Freud afirma
que não há tempo organizado no universo onírico – não há passado,
presente e futuro – Artemidoro localiza um futuro, não apenas como desejo

­ 58 ­
(o que seria uma interpretação freudiana) mas, precisamente, como
mensagens visualizando realidades alternadas.
Como aprendemos no romance, Artemidoro praticou a interpretação de
sonhos no que mais tarde veio a ser a Turquia e escreveu vários tomos
sobre o assunto, coletivamente intitulados “Oneirocritica”. Uma tradução
inglesa do século XVII, The Interpretation of Dreams: Digested into Five
Books by the Ancient and Excellent Philosopher Artemidorus foi baseada
em traduções anteriores, francesa e latina, do original grego “anti­
freudiano” (London: Bernard Alsop, 1644). Se prestarmos atenção a uma
tradução francesa do texto, La clef des songes: Onirocriticon, vemos a
primazia que Macedo concede ao projeto de Artemidoro pelo título do
capítulo, La clef des songes = Onirocriticon (Paris: J. Vrin, 1975). Onde o
título da tradução inglesa prevê e, de fato, é apagada por, Freud, a francesa
retém uma distinção. Essa distinção é transferida para o português, pois
Macedo nomeia o seu capítulo “A Chave dos Sonhos,” ecoando Artemidoro
e evitando o apagamento de Freud.
Artemidoro viveu no século II DC e dividiu os sonhos em dois tipos:
pessoais e objetivos. Os sonhos pessoais estavam fundamentados em
experiências passadas e pouco o interessavam. Esse viria a ser o domínio
que Freud, mais tarde, viria a privilegiar. A outra categoria de Artemidoro
era a dos sonhos objetivos, que não eram explicáveis por referências ao
passado do sujeito e, portanto, eram muito mais interessantes, pois
constituíam “chaves do futuro” (p. 42). Uma parte integral do método de
Artemidoro era que a posição do sonhador determinava o significado do
sonho. Se o sonho revelasse “uma manifesta impossibilidade” (p. 43), ele
poderia prever um futuro favorável no qual o sonhador “ia conseguir
controlar o seu próprio destino” (p. 43). Em contrapartida, quando um
sonho apenas apontava para o que um sonhador pode fazer e faz, ele
cessava de interessar. O ponto chave não é tanto a previsão, mas a
capacidade do sujeito de praticar um ato verdadeiramente ético ao
imaginar o impossível: um ato que muda o conhecimento do passado
através de um conhecimento do futuro garantido pelo sujeito, porque

­ 59 ­
apenas o sujeito “possui a garantia num ato de antecipação” (ZUPAN I ,
2000, p. 203). O Artemidoro descrito por Macedo não permite nenhum
Outro que garanta o conhecimento e acaba por representar a capacidade
de sonhar o impossível na existência. Se um sonho é, apenas, um desejo
realizável, não se ultrapassou os limites do vocabulário: ainda não teremos
entrado no território de “Sem Nome”.
Para José, sonhar vem a tornar­se precursor de tomar posse de um futuro,
imaginar algo diferente, realizar um ato. Sua conclusão inicial, de que seus
sonhos são explicáveis como “a história de um homem velho – corrigiu­se,
de um homem de meia­idade – com medo de se libertar do passado, com
medo de já não ter futuro” (p. 49) vai ceder à imaginação de um novo
começo no qual ele “podia finalmente voltar para Portugal” (p. 173). Esse
começo não será regenerativo – no sentido de repetição do mesmo – mas,
sim, um onde os fantasmas não têm mais poder para manter o presente
como refém.
Um desses fantasmas, como se poderia esperar, é o do pai de José. Junto
com a esposa, ele simplesmente não espera pela chegada do filho num
restaurante onde eles deveriam encontrar Marta em um dos sonhos de José.
Este interpreta o sonho como apontando para sua própria culpa no
passado por ter fugido de Portugal sem avisar seus pais. Ele é responsável
por tê­los perdido, junto com Marta. Suas ações custam a ele sua relação
com o pai que, quando José fugiu, “estava doente, andava com
dificuldade” (p. 37). Ele sequer deu pistas do seu plano de abandonar
Portugal para não ser mandado para a guerra na África, de modo que o
choque foi agravado para esses pais que descobriram, após a fuga, um filho
que eles mal conheciam. Para José,“o pai era a lei” (p. 45) e, como tal, o alvo
“clandestinidade” (p. 45) do filho. Cada vez mais, ele dirigiu a própria vida
de maneira a excluir o pai, deixando­o de lado em vez de desafiá­lo ou se
conformar com as opiniões dele. Seu problema, como o de Hamlet, é que,
quando o pai morre, José é deixado com uma enorme dívida simbólica pela
“mágoa” (p. 45) que causou ao genitor. O crime de seu pai foi produzir um
filho que ele não reconhece; que pode, apenas, causar dor ao pai em pleno

­ 60 ­
conhecimento do que está fazendo. Pior ainda, o filho conhece a fraqueza
do pai: ele é uma lei que pode ser facilmente burlada via exclusão e reserva.
Ele é uma lei que não existe.
A culpa de Hamlet é, precisamente, saber o crime do pai. Em uma crítica
da produção de Peter Brook para Hamlet, Júlia reinterpreta o clássico de
Shakespeare usando um modelo que se aplica a um par de relações entre
personagens de Sem Nome. Sua interpretação não se limita a encaixar­se
num paradigma de aprovação do prazer que sua própria mãe encontrou
com o amante que substituiu o pai de Júlia, embora ela veja Claudius como
o homem que provê a Gertrudes o prazer sexual de que o pai de Hamlet
era incapaz: os paralelos entre a vida de Júlia e sua crítica da peça são
óbvios. Apesar disso, sua interpretação também é uma na qual a trama de
Shakespeare se torna uma reflexão sobre “o filho inadequado de um rei
inadequado” (p. 59) – a história de José e de seu próprio pai. O filho é
destinado a continuar a mediocridade do pai, tornando­se uma extensão
deste que, simultaneamente, o nega, por meio de sua incapacidade de agir.
O pai de José é uma lei que não existe para o filho e, como tal, não existe de
modo algum. Esse fracasso da lei paterna é o que faz com que o romance
como um todo ecoe a asserção de Hamlet de que “o tempo está fora de
eixo” (time is out of joint). Para José, ignorar conscientemente a lei, que era
(e não era) seu pai, é parte integrante de estar preso numa bolha do tempo.
Isso explica sua crença inicial de que o tempo parou e Marta ainda existe
no corpo de Júlia, inalterada em mais de trinta anos.
O que, então, salva José, o que o traz de volta ao presente? Para ele, Édipo
falha em trazer alívio. Como somos lembrados em Sem Nome, Édipo é
culpado de nada mais do que ocultar a morte de um homem que o atacou
quando ele cuidava da própria vida. Ele não sabia que “aquele senhor
arrogante que afinal nem pai tinha sabido ser” (p. 40) o faria cumprir
metade da profecia maldita. No romance de Macedo, Édipo não nos impele
a odiar nem a desejar a morte do pai que conhecemos. Em vez disso, somos
alertados a evitar o comprometimento com as profecias alheias. Nesse
sentido, Édipo vai contra Artemidoro e mostra as limitações de uma

­ 61 ­
interpretação profética dos sonhos. A chave, é claro, está no presente. A
redenção de José vem com o preço de colocar o tempo de volta no eixo,
não de pagar a dívida simbólica do pai como Hamlet faz. Em vez disso, ele
coloca o tempo de volta ao seu devido lugar ao perceber uma preocupação
com o presente – deixando de lado o “tanto faz” que é a marca do Portugal
contemporâneo. Ele cessa de ser um homem para quem “as aparências” são
“o único modo inteligível de viver” (p. 13) – o modus operandi da
Sociedade do Espetáculo – e torna­se um homem que sabe que é preciso
cumprir um papel para melhorar a sociedade. Não é simplesmente questão
de repetir ou de “duplicações” (p. 145), um ponto que o romance ironiza ao
evidenciar a intertextualidade de toda a literatura, incluindo muito
conscientemente o próprio Sem Nome, com seus ecos de várias outras
obras literárias, de Teixeira­Gomes a Saramago. Repetir não libertaria José.
Ele permaneceria prisioneiro daquilo que ele já havia perdido (vendo
Marta repetida em Júlia; vendo o Partido Comunista do passado repetido na
política do presente).
O argumento contra as repetições na vida real, se não na literatura, é que
se adquire muito pouco de novo através delas, mas também não se obtém
o original. O caso exemplar é o das “restaurações” que ecoaram pela
história portuguesa, como repetições da mesma coisa velha mascarando
simultaneamente em nome de uma nova ordem e da antiga. O problema
com as restaurações, como José Viana descobre, é que elas simplesmente
não são possíveis. Elas jamais capturam aquilo que almejam restaurar
porque, se conseguissem fazê­lo, isso jogaria o tempo para fora do eixo.
“Visam sempre a impor o passado no presente” (p. 122) e, assim, tornam­se
meras “aparências”. A redenção de José, tendo compreendido isso, é
arriscar no “Sem Nome” – o discurso ainda­por­ser­nomeado, mas
necessitado, hoje, mais do que nunca, pela sociedade portuguesa. Esse Sem
Nome precisa ter sua dose justa de “Os Nãos e Os Sins” (p. 158). Através da
concatenação apropriada de negação e de afirmação, como uma criança
transformando­se em adulto, sugere o romance, o discurso adquirirá uma
nova identidade ao perceber um nome.

­ 62 ­
Assim, retornamos ao território do Nome do Pai, apenas desta vez numa
era na qual o pai – e toda o seu simbolismo – foi permanentemente
desacreditado. O que Sem Nome deixa claro é que, enquanto esse for o
caso, a função paterna ainda é de importância vital se a apatia social deve
ser superada. O que Júlia tem que aprender no decurso da narrativa,
enquanto produto de uma mãe revolucionária “sem saber como nem
porquê” (p. 180), e de um pai conservador, de direita, que se torna cada vez
mais ausente da vida dela, é que, às vezes, deve­se “dizer não só porque
não” (p. 160). Em uma passagem crucial que indica a estrutura pela qual um
novo discurso pode nascer, aprendemos “que dizer não é sempre muito
mais importante do que dizer sim. Saber o que se não pode querer.
Reconhecer a tempo quais são os nãos que é preciso dizer. Depois, com
sorte, os sins possíveis organizam­se sozinhos, não precisam da nossa ajuda.
O pior é quando não há um sim alternativo, um sim possível no reverso do
não. Quando entre os nãos e os sins há só um tanto faz” (p. 160). Macedo
coloca a lição de que, para qualquer discurso significativo surgir, a negação
é o pré­requisito. Sem o NÃO, o SIM nunca faz sentido. Sem tinta vermelha,
a tinta azul não vale nada. Sem a função paterna, nunca adquirimos um
nome, nem conquistamos uma posição da qual enunciamos um presente
significativo. Tornamo­nos, como a maioria das personagens de Sem Nome,
seres apáticos, vazios e instáveis.
De fato, a pletora de nomes que perpassa o texto, de José Viana/Xose Vai­
ana/Bernardo a Marta/Maria/Júlia e a todos os codinomes que ofuscaram a
comunicação nas células comunistas do Estado Novo, ao Doutor Sereno/
Severo/Prudente, aponta, novamente, para nenhum nome, para uma falta
de identidade se espiralando de forma colossal até coalescer em uma
traição daqueles que lutaram em nome da liberdade individual. É aí que
Sem Nome se torna mais pungente, em seu ato de elogio à primeira e única
mulher Primeira Ministra de Portugal, em cujo gabinete Macedo serviu.
Maria de Lourdes Pintasilgo, a cuja memória o romance é dedicado, era,
conforme a lembrança do autor, alguém que ousou sonhar que as coisas
podiam realmente ser diferentes, “uma religiosa a querer corrigir as

­ 63 ­
injustiças de Deus na matéria do mundo” (p. 117), precisamente porque ela
era capaz de formular o que não queria, como primeiro passo para tornar a
mudança real possível. A curta duração de seu mandato, à frente do
governo de Portugal, foi um sintoma de ela estar, também, à frente de seu
tempo, porque “o que ela queria talvez tivesse sido possível, tivesse sido
viável” (p. 160). Mas daí o tempo depois dela pareceu descambar,
restaurando, rapidamente, a era dos “barões” de Garrett, os quais haviam
traído a própria revolução mais de um século antes. O elogio a ela é
compartilhado até certo ponto pelos “militares da revolução” (p. 160) que
também desejaram um futuro diferente, imaginando que os sacrifícios que
fizeram na guerra colonial que antecedeu a queda do regime de Salazar e
de Caetano poderiam servir como a lição de que, como a congressista em
Pedro e Paula, é preciso saber o que não se deseja, a fim de descobrir o que
se deseja. Será que esses militares e essa primeira­ministra, essa “espécie de
freira e a tropa treinada em tiro ao preto”, realmente imaginaram que o
mundo pelo qual eles lutaram iria terminar no espetáculo de consumo que
hoje devasta Portugal? O “sim” sem o não que é equivalente ao “tanto faz”?
Se seguirmos a lógica de Sem Nome, e se a era da lei paterna acabou, a
necessidade dos NÃOS antes dos SINS, os NÃOS que permitem os SINS, é
mais forte, hoje, em Portugal do que jamais foi antes.

Referências

ADORNO, Theodor W. The Culture Industry: Selected Essays on Mass


Culture. Editado por J.M. Bernstein. New York: Routledge, 1991.

CHOMSKY, Noam. Globalization and War. In: Arguments Against G8.


Editado por Gill Hubbard e David Miller. London: Pluto Press, 2005.

DEBORD, Guy. The Society of the Spectacle. Traduzido por Donald


Nicholson­Smith. New York: Zone Books, 1994.

FREUD, Sigmund. Civilization and Its Discontents. Traduzido e editado


por James Strachey. London: Norton, 1989.

LACAN, Jacques. The ethics of psychoanalysis: 1959­1960. Editado por

­ 64 ­
Jacques­Alain Miller. Traduzido por Denis Porter. New York: Norton, 1997.

MACEDO, Helder. Sem nome. Barcarena: Presença, 2005.

ŽIŽEK, Slavoj. Welcome to the Desert of the Real. London: Verso, 2002.

ZUPAN I , Alenka. Ethics of the Real: Kant and Lacan. London:Verso,


2000.

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­ 66 ­
O DEJETO OBSCENO RONDA OHLSDORF: LENDO
THOMAS BERNHARD COM O MATERIALISMO
LACANIANO
Gabriela Bruschini Grecca

Considerações iniciais

Este breve texto é uma das contribuições iniciais de minha pesquisa de


Residência Pós­Doutoral, que recebe em seu projeto o título “Elaboração da
história austríaca em Thomas Bernhard: uma análise materialista lacaniana
de escritos autobiográficos”1. Nele, busco situar obras de cunho
autobiográfico do escritor austríaco Thomas Bernhard como fontes
escriturais de manifestação (in)consciente de sintomas de um sujeito
atravessado pela barbárie do nazismo e pelo recalcamento da mesma
barbárie socializado pelo silêncio da sociedade austríaca em relação ao
envolvimento nos inúmeros desdobramentos do horror da guerra e do
genocídio. Para a exequibilidade de uma primeira aproximação à
1. Agradeço, assim, ao meu supervisor Prof. Dr. Volker Karl Lothar Jaeckel e ao Programa de Pós­
Graduação em Literatura da FALE/UFMG por acolherem o Pós­Doutorado e ao apoio do edital de
Pesquisador Produtividade da UEMG – PQ/UEMG.

­ 67 ­
problemática, selecionei a obra Origem, publicação pela Companhia das
Letras de 2006, que sintetiza nesse único volume os cinco relatos
autobiográficos escritos entre 1975 e 1982, sendo eles: Die Ursache [A
causa, 1975]; Der Keller [O porão, 1976]; Der Atem [A respiração, 1978];
Die Kälte [O frio, 1981]; e Ein Kind [Uma criança, 1982], cuja ordem é
rearranjada pela editora de Ein Kind até Die Kälte para dar preferência à
cronologia dos relatos à data de publicação.
Situando as possíveis relações entre o materialismo lacaniano de Slavoj
Žižek e o escritor austríaco Thomas Bernhard (1931­1989), começo por
trazer um excerto do livro Violência: seis reflexões laterais. Não raro, as
obras teóricas de Žižek comentam o Holocausto e o nazismo; trago, porém,
as constatações que se seguem dirigem­se nominalmente a descrever o
fetiche onírico alemão durante o Terceiro Reich e seu despertar pós­maio
de 1945 por um viés de classe que nos será interessante para a
compreensão da escrita de Thomas Bernhard. Assim, cito:
Todas as suas ações foram fundamentalmente reações: agiu
para evitar que nada fosse realmente mudado; agiu para
impedir a ameaça comunista de uma mudança real. Quando
tomou por alvo os judeus, procedeu em última análise a um
deslocamento por meio do qual evitava o seu verdadeiro
inimigo – o núcleo das relações sociais capitalistas em si. Hitler
encenou o espetáculo de uma revolução a fim de que a ordem
capitalista pudesse sobreviver.A ironia aqui é que foram os seus
grandes gestos de desprezo pela autocomplacência burguesa
que permitiram a essa mesma complacência se manter: longe
de perturbar a muito denunciada ordem burguesa “decadente”,
longe de despertar os alemães, o nazismo foi um sonho que
lhes permitiu que adiassem o momento do despertar. A
Alemanha só despertou de fato após a derrota de 1945 (ŽIŽEK,
2014, p. 133).

Thomas Bernhard, nascido em 1931 e morto em 1989 em decorrência


da pleurisia, uma doença pulmonar que lhe perseguiu ao longo de toda a
vida, dedicou a vida para dizer ao mundo que esse despertar alemão pós­
1945 passou longe de ser a realidade no que diz respeito à Áustria. Anexada
ao Terceiro Reich em 1938, em um movimento político­militar conhecido
por Anschluß, a Áustria perde estatuto de país, torna­se subdivisão da
Alemanha Nazista e seu território passa a ganhar outras denominações

­ 68 ­
burocráticas até 1955, dez anos após a queda de Hitler, quando finalmente
foi desocupada e reconhecida como país independente novamente.
Não bastasse essa “prorrogação” oficial do Estado nazista na Áustria,
Bernhard, ao dar (raríssimas) entrevistas e dar voz a seus narradores já na
década de 1980, jamais cedeu o tom ao reafirmar que persistia
vigorosamente em seu país a nazificação dos costumes. No romance
Extinção ­ uma derrotada [Auslöschung – ein Zerfall (1986)],
considerado o magnum opus do autor por sua recepção crítica, Bernhard
escreve em seus anos finais de vida, por meio das palavras do narrador e
protagonista Franz Josef Murau, que os austríacos, assim como os próprios
pais do protagonista,
sempre foram oportunistas, seu caráter pode ser
tranquilamente definido como baixo. Eles [seus pais] sempre se
ajustaram à situação política do momento, e todos os meios
lhes convinham para auferir vantagens, fosse qual fosse o
regime [...] e, como austríacos natos, dominaram como
ninguém a arte do oportunismo (2000, p. 145).

Este exemplo é um dos muitos que nos mostra que um dos projetos de
vida de Thomas Bernhard foi interseccionar, na literatura, o grito de quem
projeta para si próprio a tarefa de escancarar o Real, cuja fuga é uma
constante da população austríaca, e o fez em cada romance e obra teatral
que produziu. Esse grito é a busca pela responsabilização dos austríacos em
não terem passado por um processo de reparação contra o legado nazista
tal como ocorreu de maneira mais ampla e coletiva na Alemanha.
Lembremos, por exemplo, julgamentos de Nuremberg entre 1945 e 1946 e,
já em 1962, da exposição mundial das filmagens ao vivo do julgamento de
Adolf Eichmann em Jerusalém, mostrando como um funcionário do
governo alemão, escondendo­se por trás de um vocabulário de tecnocrata,
foi também a mesma pessoa a arquitetar a fase do genocídio da população
judaica conhecida como “A Solução Final”, isto é, a fase de extermínio
massivo direto de judeus, comunistas e outros inimigos ideológicos do
Estado, via industrialização da morte, isto é, campos de concentração e/ou
extermínio.
Essa revisitação dolorosa do Shoah e de todas as ações vizinhas a ele

­ 69 ­
passou longe da Áustria moderna, sobre a qual Bernhard enfatiza pelas
lentes do legado antissemita, moralista e de nacionalismo ufanista. Em sua
polêmica peça Praça dos Heróis [Heldenplatz], de 1988, a personagem
Ana nos conta enfaticamente que

a situação de hoje é igual


à de 1938
há hoje mais nazistas em Viena
que em 1938 [...]
basta conversar com qualquer pessoa
que em pouco tempo se percebe
que ela é nazista
tanto faz se você vai à padaria
ou à lavandaria ou à farmácia
ou ao mercado
na Biblioteca Nacional
creio estar em meio a um monte de nazistas
eles só estão esperando o sinal
para agir abertamente contra nós (BERNHARD, 2020, p. 79­80).

Essas afirmações ditas “pesadas” poderiam render vários comentários –


mas eu estendo a questão: o que é, em literatura, dizer algo pesado? Um
tema pesado? Existe peso na forma? Onde está o peso na linguagem que
evoca pela nomeação da barbárie através de apelar menos para a dor
individual e mais para a negligência coletiva? Na adjetivação? Na amplitude
do excesso de “vocês” e “eles” que, ao mesmo tempo, infere que todos sejam
nazistas, embora não se saiba exatamente quem são “todos” e quão amplos
“todos” podem ser?
Sem saber explicá­lo, a população vienense não se coibiu de atribuir um
apelido a Thomas Bernhard: Nestbeschmutzer, aquele que suja o próprio
ninho. Em uma de suas raras entrevistas concedida a Asta Scheib e,
posteriormente, publicada pela revista Quimera e traduzida por Michel
Laub para a revista Bravo! em maio de 2000, ou seja, um pouco mais de 10
anos da morte de Bernhard, Scheib pergunta ao autor se ele já recebera
reações contra seus livros, uma vez que estes transmitem “a impressão de
um ajuste de contas brutal” (palavras de Asta Scheib).Ao que este responde:
Sim. Às vezes, torna­se quase insuportável. Ontem, quando

­ 70 ­
estava na cidade, uma mulher se atirou literalmente em cima de
mim. Começou a gritar:“Se o sr. continuar por esse caminho, vai
se arrebentar”. [...] Ou, por exemplo, a gente está
tranquilamente sentado em um banco do parque e recebe, de
repente, um golpe nas costas. [...]. Já não posso continuar
vivendo em Ohlsdorf [adendo].As pessoas sobem no muro que
cerca minha casa. Quando, pela manhã, desço até o portal, já há
pessoas trepadas no muro. Dizem que querem falar comigo. Ou,
nos fins de semana, as pessoas vão ver o escritor, como antes
iam ao parque ver os macacos. [...]. Chegam a Ohlsdorf e
assediam minha casa. Eu as observo escondido atrás das
cortinas como um preso ou um louco. Insuportável. (2000, p.
109).

Instiga­me, assim, como um escritor que, nas palavras de Alexandre


Villibor Flory (2006) citando Philipp Schmidt­Dengler,“fez a Áustria falar” e
se tornou um dos maiores expoentes da geração de escritores de língua
alemã pós­47 foi o mesmo autor cuja incitação da violência subjetiva sobre
sua figura tornou­se uma constante. A tese de Flory, obviamente, nos
ilumina com maestria sobre o procedimento de Bernhard nomeado por
“provocação formal”, isto é, os textos ficcionais de Bernhard possuem
momentos em que é possível mergulhar na forma social quase diretamente,
deixando [cito] “‘impura’ a forma do texto em prol de um contexto que
exija força explosiva”, em que “a sociedade se vê citada e incitada ao
debate” (2006, p. 12). Por outro lado, o que quero trazer como hipótese de
leitura é a contradição do fato de que a brutalidade que existe na escrita
bernhardiana, indigesta e escandalosa para um bom segmento da recepção
de seus contemporâneos austríacos, só pode existir dessa forma porque o
autor capta e traduz esteticamente a mesma violência que vem de dentro
da sociedade em que habita e a estetiza na forma de produção literária. Mas,
curiosamente, seus contemporâneos que o perseguiam, no lugar de
levarem a percepção sobre a violência da escrita a uma percepção da
violência constitutiva, ligada aos rumos da manutenção dos ritos
identitários austríacos – ou, por que não dizer à travessia da fantasia? –
deram seguimento a reações autoritárias, coléricas e defensivas.
Estas, por sua vez, traduzem um instinto de autopreservação e de
projeção de onipotência do lugar ocupado pelos setores de dominação

­ 71 ­
cultural que não são também mérito somente do legado nazista na Áustria,
mas também do autoritarismo e das tendências protofascisas subjacentes
ao capitalismo contemporâneo. O ciclo entre (1) a violência como material
de contexto de produção do autor (Bernhard), para (2) a tradução desse
material em uma escrita que também evoca uma linguagem que, pela
incitação e pelo imediatismo do real, também não deixa de ser uma
experiência de violência, posto que liquida a idealização de uma relação de
univocidade entre sujeito e sociedade, e (3) a sociedade que reage
violentamente à escrita também nos faz pensar sobre o ciclo da violência
pelo qual passa qualquer sujeito que busca vocalizar o lugar dos obscenos
sociais apagados pelos donos do poder. Utiliza­se a violência como matéria
bruta, discursa­se sobre essa violência e tem­se, como consequência, o
retorno da violência que era matéria bruta em primeiro lugar. Se a ideia,
aqui, é falar sobre Áustria para brasileiros, é necessário afirmar
peremptoriamente o quanto nosso país é mestre em fazer parte desse
mencionado ciclo, vide exemplo que completou cinco anos nesta mesma
terça­feira, o assassinato de Mariele Franco, que segue absolutamente sem
respostas.

Breves notas sobre a violência e a criação de um excesso


social obsceno em Ein Kind

Que é o obsceno e que gérmen de significação o tornaria um conceito


produtivo para pensar metaforicamente as lições autobiográficas que
podemos extrair dessas consequências presentes na vida de Thomas
Bernhard, enquanto autor de obras que sempre tencionaram os limites
entre realidade e ficção? O excesso (ou suplemento) obsceno é uma
criação sutil e perversa que se difere da ideia de “bode expiatório”, pois, no
lugar de centralizar um grupo para dizimá­lo ou torturá­lo, trata­se de
selecionar internamente, ao sistema, quaisquer pessoas que deixem de
servir aos interesses do Estado e, para isso, precisam ser combatidos por
meio do cinismo da ideologia dominante com relação à existência dessas

­ 72 ­
pessoas. Inserindo o sujeito em uma posição excrementícia, este é
submetido sempre ao modo como seus traços (físicos, psíquicos, de classe
e/ou psicológico) provocam uma lembrança de algo que precisa ser
reprimido para um bom funcionamento social.
Nas palavras de Marisa Corrêa Silva, na representação do excesso
obsceno “situações e imagens que parecem antagonísticas estão, na
verdade, numa relação de suporte: uma corresponde ao suplemento oculto
(obsceno) da outra, aquilo que dá suporte para que a outra se
constitua” (SILVA, 2011, p. 42). No nazismo, por exemplo, o caso já
mencionado do controle, do encarceramento e do extermínio das vidas
desidênticas à ordem em campos de concentração é um exemplo explícito
de como a reação contra um excesso obsceno pode levar mesmo à
dizimação de populações inteiras. No entanto, outras formas de destilação
do ódio, tão perversas quanto o caso do Shoah, podem ser mantidas como
prática cotidiana de negação do outro. Conforme explorado uma vez no
artigo “O feminino como excesso obsceno em O Conto da Aia, de Margaret
Atwood”, acredito que “relacionar­se com o outro como um excesso
obsceno leva “ao repúdio à pluralidade, à negação da voz do outro, à
apropriação e, em termos benjaminianos, ao fechamento da história, ou
seja, à defesa de uma versão única da verdade, do relato do ponto de vista
do vencedor” (GRECCA, 2018, p. 57).
Seria interessante pensar, assim, o quanto a escrita “desenfreada” de
Thomas Bernhard, lida usualmente na chave da verborragia e da
redundância, no caso de sua autobiografia, pode também revelar a criação
de um espaço para a manifestação das revoltas e das angústias de um
sujeito que, desde a mais tenra infância, entrou para o catálogo dos
excessos obscenos da sociedade austríaca ­ filho ilegítimo de uma mulher
sem marido, criado por um avô escritor, assumidamente anarquista e
envolvido até a medula desde o início com as precariedades, os conflitos e
as misérias parte de seu dia a dia de envolvimento com uma família de
lumpemproletariado. Em Ein Kind, relato que compreende o nascimento
de Bernhard até um pouco antes dos primeiros bombardeiros próximos ao

­ 73 ­
internato nacional­socialista Johanneum, em Salzburgo, “[...] eu me
levantava todo dia num mundo de cuja monstruosidade tinha apenas uma
vaga ideia, estava determinado a investigá­lo, esclarecê­lo, decifrá­lo. Eu
tinha três anos de idade e havia visto mais do que outras crianças da minha
idade” (2006, p. 52).
É sobre este relato, Ein Kind, que chego na última parte de minha breve
exposição e trago alguns excertos que exemplificam como a construção
paulatina do suplemento obsceno do autoritarismo são matéria­prima
possível de ser mapeada nos relatos autobiográficos do autor, e que, se não
restringem as interpretações de seu romance (como jamais deve sê­lo), nos
mostram vivências formativas de um sujeito que representou, a vida toda,
uma contrapartida inconveniente ao ritmo disfarçado de naturalidade do
andar da História e que descortinou, via ficção, as engrenagens de suas
ações frenéticas para a manutenção do funcionamento das instituições e
do autocentramento identitário austríaco.
Uma dessa passagens dá­se no ano de 1943, em que Bernhard, aos 12
anos, é encaminhado a um reformatório nacional­socialista em Saalfeld por
uma assistente social ligada a repartições públicas nazistas. Isso ocorre
devido a uma soma de fatores: o péssimo desempenho escolar do jovem
Thomas Bernhard; inúmeras correções punitivas de seus professores (que
era chamado desde “o desordeiro” a, em uma espécie de injúria racial, “o
austríaco”, de forma pejorativa, uma vez que a Áustria já não existia mais
como país independente); uma antipatia de professores e colegas de sala
por ser, nas palavras de Bernhard, “o rebento de gente pobre, filho de
ninguém” (2006, p. 83); tentativas já precoces de suicídio e, por fim, por, de
repente, ter desenvolvido um hábito incontrolável de urinar na cama à
noite, durante o sono, sem conseguir controlá­lo e sem que as repreensões
(muitas vezes públicas) de sua mãe fizessem efeito. É quando se fazem
presentes as primeiras menções ao suicídio, também manifestas nos cinco
relatos unidos em Origem e em praticamente toda a sua produção literária.
Como um desabafo, Bernhard nos revela:“[f]oi só por amor a meu avô que
não me matei na infância; não fosse isso, teria sido fácil para mim, afinal o

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mundo não passava de uma carga inumana que, havia anos, não fazia senão
ameaçar me sufocar” (2006, p. 92).
Uma vez que a assistente social recomenda que Bernhard precisava, com
urgência, de uma casa de repouso destinada a crianças, a família de
Bernhard entusiasma­se com a notícia e providencia sua viagem. No
entanto, a família equivoca­se ao confundir o nome do lugar recomendado
por uma assistente social para sua recuperação: acreditam ser Saalfelden,
cidade da região de Salzburgo, mas Bernhard é levado a Saalfeld, localizado
na Turíngia, extremamente distante de sua casa. Este só descobre dentro do
trem junto às outras crianças de “rostos pálidos, verdadeiros filhos de
proletários falando seu dialeto grosseiro” (2006, p. 94). ouvindo da
assistente que, cito, “[m]eninos não choram” (p. 93). Além disso, ao chegar
no local do destino descobre que nunca existiu a tal casa de repouso para
crianças, mas, sim, um denominado Lar de Reeducação Infantil, isto é, uma
escola de educação nazista no meio de uma floresta destinada ao único
objetivo de “reparar o caráter” de crianças e jovens pobres antes que sua
completa desorientação causasse a perda de cesta básica e donativos do
governo para suas famílias ­ ou pior.
Dentre descrições aterrorizantes de experiências traumáticas que
revelaram a Bernhard uma das faces mais excruciantes da violência do
Estado nazista, destaco, apenas, algumas passagens. Sobre o problema de
urina de Bernhard, que era um dos maiores fatores a serem reparados o
mais brevemente possível, reproduzo algumas passagens que sintetizam
esta parte do relato:
O método empregado em Saalfeld era o seguinte: meu lençol,
com sua grande mancha era dito que aquele lençol era o meu.
Mas essa não era a única punição ao mijão, que, ao contrário
dos outros, era ainda privado da chamada sopa doce, na
verdade, de todo o café da manhã [...]. Eu era uma vergonha, e
os companheiros que tivera ainda nos primeiros dias
desapareceram. Observaram­me com desconfiança e não sem
sentir prazer com minha desgraça [...]. De estômago vazio, eu
gritava o Heil Hitler quando a bandeira era arriada, marchava
com os outros e tinha nos lábios a música sobre Steigerwald.
Havia mergulhado num novo inferno. Mas tinha também um
companheiro de sofrimento. Seu nome era Quehenberger [...]

­ 75 ­
sofria do chamado raquitismo e tinha as pernas estropiadas.
Com ele, acontecia algo muito pior do que o que se passava
comigo: ele sujava a cama com suas fezes. Lembro­me com a
máxima exatidão desta cena terrível: na lavanderia, lá embaixo,
onde ficavam apenas o porão e os mantimentos, embrulhavam
a cabeça de Quehenberger no lençol sujo de fezes ao mesmo
tempo em que eu, a seu lado, recebia tratamento para as coxas
esfoladas, um pó branco aplicado na virilha, junto aos testículos.
[...] Um menino alemão não chora! E chorar foi praticamente a
única coisa que fiz na Turíngia. (BERNHARD, 2006, p. 99­100).

Não foi coincidência minha assertiva, na subseção anterior, dizer que o


suplemento obsceno é colocado em posição excrementícia, abjeta. Assim
como os excessos de fluidos e os dejetos humanos precisam ser feitos em
locais próprios e nada se falar sobre eles para não ofender a moral e os
bons costumes, os rituais de humilhação e repúdio partem do sistema
educacional nacional­socialista feitos em um Lar de Reeducação Infantil
no meio de uma floresta na Turíngia também representam a ideia de não se
demonstrar a repressão explícita às crianças pobres e de origem austríaca
durante o Terceiro Reich. Em seu lugar, movem­se os sujeitos para o subsolo
da civilização e minar suas práticas uma a uma, do controle do choro ao
controle da urina. Retomando os ensaios de Violência, ao falar sobre as
torturas cometidas no complexo penitenciário de Abu Ghraib, no Iraque,
Žižek nos diz que os rituais de tortura “não eram um preço que os
prisioneiros tinham de pagar a fim de serem admitidos como um de nós,
mas, pelo contrário, eram justamente a marca da sua exclusão” (2014, p.
112).
Žižek nos lembra que a violência subjetiva, isto é, direcionada a uma
pessoa por meio de atos de terror e confronto, faz parte de uma tríade
junto à “violência ‘simbólica’ encarnada na linguagem e em suas formas [...]
uma forma ainda mais fundamental de violência que pertence à linguagem
enquanto tal, à imposição de um certo universo de sentido” e a “aquilo a
que eu chamo violência “sistêmica”, que consiste nas consequências
muitas vezes catastróficas do funcionamento regular de nossos sistemas
econômico e político” (2014, p. 17). Logo, fazendo uso dessa tipologia de
Žižek, observa­se que a violência sistêmica, a de raiz política­econômica, se

­ 76 ­
faz presente nos acontecimentos pessoais de Bernhard e de seu colega
Quehenberger: é uma violência enraizada nas condições sociais e
econômicas das crianças excluídas das classes dominantes, portanto, é um
produto que mantém a pobreza sistemática da sociedade e a pune.
Por outro lado, há também a violência simbólica, a da linguagem: para
cada ato de violência sistêmica, há também uma manifestação da
linguagem, tal como na repetição da frase “meninos não choram” que
sempre retorna diversas vezes no relato Ein Kind. Fato que tornou até
mesmo a palavra “Turíngia” indizível para o autor:
Em vez de melhorarmos, nosso estado piorou [...]. Até hoje as
palavras Turíngia e, mais ainda, floresta da Turíngia, me inspiram
terror. Há três anos, a caminho de Weimar e Leipzig, revisitei
essa sede do meu desespero supremo. De início, não acreditei
que fosse conseguir reencontrar o local. Mas de fato, lá estava
ele, e não mudara em nada (BERNHARD, 2006, p. 101).

Nessa dimensão, percebe­se como o estabelecimento das práticas de


violência geram movimentos que atuam ao “não mudar diretamente o
texto explícito da lei, mas, antes, intervir sobre seu obsceno suplemento
virtual” (ŽIŽEK, 2014, p. 151). Assim como, no contexto da ditadura militar
brasileira, o slogan “Brasil: Ame­o ou Deixe­o” não representa uma situação
de escolha aberta para que o sujeito possa se posicionar, e, sim, uma relação
necessariamente de que “Deixe­o” se torna o suplemento obsceno de “Ame­
o”, contrapondo antipatriotismo ao patriotismo, e justificando as
atrocidades para com o primeiro para que sobreviva ao segundo, o não­
pertencimento de Bernhard a lugar algum e a constante submissão à
violência da sociedade austríaca gera o efeito de um constante não­lugar
atravessado por experiências de sufocamento na infância do autor. Essa
constante emboscada gerada para quem vivencia essas práticas
diariamente acaba se desembocando em um sintoma que atravessa o
tempo e o espaço. Já na adolescência, em seu próprio relato em Die
Ursache, que foi mais um acúmulo de experiências negativas trazidas pela
guerra (e a própria guerra em si, em sua forma física, nos bombardeios em
Salzburgo), Bernhard­adulto interfere, mais uma vez, em sua própria
narrativa trazendo uma revisitação seguida do terror:

­ 77 ­
Um estado mental ou emocional, ou mental e emocional, sempre
deprimente ou no mínimo irritante me acomete de pronto quando chego
hoje à cidade [Salzburgo], com a queda violenta da pressão barométrica
que me fere mesmo depois de vinte anos, e eu me pergunto pela causa
desse estado mental ou emocional, ou, melhor dizendo, desse meu estado
mental e de ânimo. Nada mais me obriga a isso, e no entanto, muitas vezes
sem saber por que e ainda alimentando expectativas, embora eu saiba que
nada tenha a esperar daí, vivo entrando (na realidade e em pensamento) de
um momento para outro nesse estado mental e emocional que nada mais é
do que um estado de ânimo devastador [...]. Uma mente clara e um
pensamento que [...] nela se concretiza acerca da arquitetura [...] não
bastam para fazer frente à fraqueza mental que me acomete, contrária a
toda razão [...]. Aquilo que, até o momento da chegada, revela­se fácil,
transparente [...] pesa em minha cabeça [....] e graças a toda uma carga de
origem que ainda hoje desperta medo em minha mente, insuportável [...]
conduzindo apenas a uma perturbação depressiva (BERNHARD, 2006, p.
206).
Se voltarmos à frase da peça Praça dos heróis, em que Ana nos confessa
que “basta conversar com qualquer pessoa que em pouco tempo se
descobre que ela é nazista [...] eles só estão esperando o sinal para agir
abertamente contra nós”, observamos que o relato autoficcional de Ein
Kind enfatiza a dilatação das práticas totalitárias em torno do narcisismo
subjacente do autoritarismo. Este possui, como fim último, provar a própria
onipotência e a impossibilidade de seu desaparecimento completo, mas
também é locus privilegiado para as visões de bastidor do surgimento de
uma relação com a linguagem que será transversal a toda produção
ficcional do autor.
Tal linguagem é a mesma que produz narradores e personagens em suas
peças e romances que, longe de se colocarem no lugar de vítimas da
história austríaca, reconhecem­se enquanto seres obscenos de uma
sociedade que vivenciou um fetiche onírico de remodelação total da
identidade pós­1945. Por assumirem a posição desse reconhecimento, são

­ 78 ­
personagens e narradores capazes de revelar a tradição austríaca de fazer o
possível para dirimir suas contradições e unir forças em torno de um
imobilismo, alvos persistentes de Thomas Bernhard, que foi, na violência
subjetiva em torno de sua figura como “aquele que suja o próprio ninho”, o
dejeto obsceno de Ohlsdorf que acreditava na reparação.

Considerações finais

À luz do exposto, compreende­se que o Materialismo Lacaniano, em sua


união do materialismo com a psicanálise, deve renunciar à intenção de
conciliar o inconsciente e a sociedade. Conservando a tensão entre eles,
esta corrente filosófica permite uma análise que se debruce sobre os
componentes deste movimento contínuo e ineliminável. No mesmo
sentido, quando se torna método de aplicação na autobiografia de
Bernhard, como se propôs trazendo o relato Ein Kind, propus pontuar
recorrências na linguagem – seja para falar sobre a violência simbólica, seja
para falar da simultaneidade de tempos­espaços das vivências de Bernhard
nos seus relatos – e como isso provoca reflexões de maneira irrepetível,
justificando o amparo teórico hoje encontrado nesta corrente.
É justamente isso que desemboca em minha hipótese de pesquisa de
que é possível interpretar a construção da linguagem de Bernhard junto a
uma elaboração da história austríaca e que vai para além do projeto
consciente do autor. Supondo, assim como expus, que existam gérmens de
significação produtivos em ideias de “excesso obsceno” e “sintoma”, os
problemas e as mediações conceituais para lidar com os questionamentos
que vêm surgindo serão trabalhados ao longo da condução da pesquisa.

Referências

BERNHARD, Thomas. Extinção – uma derrocada. Tradução de José Marcos


Mariani de Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

BERNHARD, Thomas. Praça dos Heróis. Tradução de Christine Röhrig.

­ 79 ­
São Paulo: Temporal, 2020.

BERNHARD, Thomas. Origem. Tradução de Sergio Tellaroli. São Paulo:


Companhia das Letras, 2006.

BERNHARD, Thomas. O niilista que acreditava [Entrevista concedida a Asta


Scheib e traduzida por Michel Laub]. In: Revista Bravo! n° 32, ano 3.
Maio 2000.

FLORY, Alexandre Villibor. Sopa de Letras Nazista: a apropriação


imediata do real e a mediação pela forma na ficção de Thomas Bernhard.
Tese [Doutorado em Letras – Língua e Literatura Alemã]. 386f. FFLCH/USP.
São Paulo, 2006.

GRECCA, G. B. O feminino como excesso obsceno em o conto da


Aia, de Margeret Atwood. Travessias. Cascavel, v. 12, n. 2, p. e19763,
2018. Disponível em: https://saber.unioeste.br/index.php/travessias/
article/view/19763. Acesso em: 15 maio. 2023.

SILVA, Marisa Corrêa. Autores, narradores, não-autores: a experiência


de “Partes da África”. Revista de Literatura, História e Memória. v. 7. n. 10.
2011. Disponível em:http://e­revista.unioeste.br/index.php/rlhm/article/
view/5890/472. Acesso em 05 de março de 2023. p. 33­45.

ŽIŽEK, Slavoj. Violência: seis reflexões laterais. Tradção de Miguel Serras


Pereira. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014.

­ 80 ­
POR ENTRE UM CONTO, UMA CRÔNICA E UM
ROMANCE: REFLEXÕES LACANIANAS ACERCA DA
CONSTITUIÇÃO DO EU EM JOSÉ SARAMAGO
“Eu não reconheço mais, olhando as fotos do passado
O habitante do meu corpo, este estranho doublé de retratos
Talvez até eu já vivesse em algum corpo emprestado
Esperando só por você pra reunir meus pedaços” (Leoni)

Isabela Padilha Papke

José Saramago, escritor português e vencedor do prêmio Nobel de 1998,


tem uma literatura vasta e conhecida internacionalmente. Entre todos os
seus temas, uma constante prevalece, ele sempre tentou refletir sobre os
seres humanos e suas individualidades como um todo dentro de seus
projetos. Em entrevista ao Jornal, O Globo no Rio de Janeiro, em 1997, ele
comentou que a literatura tem um poder de entregar consciência aos seus
leitores e, também, para aquele que escreve, afinal este também se faz leitor
para poder escrever: “isso é o prodígio da literatura, poder ser capaz de
chegar mais fundo na consciência dos leitores, mesmo falando sobre uma
outra coisa” (AGUILERA,2010, p.121) Com toda certeza, os textos dele
mesmo são a prova viva de que essas reflexões fazem­se verdadeiras.

­ 81 ­
Das múltiplas temáticas e análises que podem criar corpo dentro do
vasto universo da literatura do escritor, no presente capítulo, observaremos
um romance, um conto e uma crônica, comparando­os de modo a ter em
vista a possibilidade de investigar como se efetivam alguns processos de
autoconhecimento na literatura saramaguiana, por meio das teorias acerca
da constituição do eu propostas por Jacques Lacan.
O primeiro texto com o qual lidaremos em nosso panorama de análise é
o romance O Homem Duplicado, publicado, pela primeira vez, em 2002. A
narrativa constrói­se em torno do protagonista Tertuliano Máximo Afonso,
um professor de história, divorciado, depressivo, que possui uma rotina
repetitiva e acaba por se ver duplicado em um ator coadjuvante de filmes.
A obra gira em torno da busca que Tertuliano faz para descobrir quem é seu
duplo e quais são as relações dele com sua vida. O que chama a atenção
nessa história é como o comportamento de Tertuliano vai se modificando
no decorrer dessa saga.
Tenho dias, hoje veio encontrar­me de boa maré, ou talvez seja
por me ter sentido na pele da personagem de um romance,
Que romance, que personagem, Não tem importância,
voltemos à vida real, deixemo­nos de fantasias e ficções
(SARAMAGO, 2019, p. 127).

Temos, introdutoriamente, uma exposição do cotidiano do personagem,


mostrando como este possui uma vida monótona, regrada e passiva.
Contudo, no delongar narrativo, o que se explicita é que, por uma quebra
nessa rotina, ele passa a refletir mais sobre sua realidade e a ter consciência
de quem é. Ao ver um filme, por incentivo de um colega de trabalho, na
intenção de sair de sua desgastante rotina, o personagem se vê duplicado
em um dos atores coadjuvantes e passa a ter outra conduta perante sua
realidade, adquirindo inconstâncias em sua personalidade, as quais
materializam sua crise identitária. Seus discursos passam a contradizer­se,
tornando­se incoerentes, como pontua o próprio narrador. Tertuliano, na
insuportável lucidez de ser materializado em outro, com uma realidade
mais próspera, passa a perceber algo que já lhe pairava na mente: de que
sua vida podia ser melhor e mais interessante do que de fato é. Ver esse

­ 82 ­
outro traz à tona um sentimento oculto de insatisfação pessoal e isso é o
que propulsiona uma mudança de comportamento em Tertuliano.
Esse evento da trajetória de Tertuliano pode ser compreendido mediante
o alicerce teórico do estágio do espelho de Jacques Lacan. O psicanalista
concebe o fenômeno do duplo alinhado à formação identitária do
indivíduo, pois este remete ao momento em que o sujeito, em sua infância,
pela primeira vez, enxerga­se no espelho, vendo­se externalizado de si
mesmo.
Este é um momento de constituição da imagem do próprio corpo como
unidade e da formação do indivíduo. A matriz do eu se localiza no campo
do imaginário, desfazendo a fronteira entre o que pertence ao próprio
corpo e ao corpo do outro, fundindo e confundindo os corpos.A quebra do
limite entre o corpo de um e o corpo do outro é o que Lacan chama de
transitividade. Ao ver sua imagem refletida, o indivíduo choca­se com a
realidade duplicada, pois tal fato revela a estrutura ontológica do mundo
humano, inserida em nossas reflexões acerca do conhecimento paranoico.
O estágio do espelho é tido como um processo de identificação, pois é o
que caracteriza uma transformação produzida no sujeito quando ele
assume uma imagem de si mesmo.
Mas o ponto importante é que essa forma situa a instância do
eu, desde antes de sua determinação social, numa linha de
ficção, para sempre irredutível para o indivíduo isolado ou
melhor, que só se unirá assintoticamente ao devir do sujeito,
qualquer que seja o sucesso das sínteses dialéticas pelas quais
ele tenha que se resolver, na condição de eu, sua discordância
de sua própria realidade (LACAN, 1998, p. 98).

O teórico aponta que o sujeito antecipa o reconhecimento da


maturidade de sua potência em uma miragem. A imagem especular parece
ser o limiar que insere o sujeito no mundo visível, apresentado na
alucinação transfigurada da imagem de seu próprio corpo.
O estádio do espelho é um drama cujo impulso interno
precipita­se da insuficiência para a antecipação e que fabrica
para o sujeito apanhado no engodo social as fantasias que se
sucedem desde uma imagem despedaçada do corpo até uma
forma de sua totalidade que chamaremos de ortopédica e para

­ 83 ­
a armadura enfim assumida de uma identidade alienante, que
marcará com sua estrutura rígida todo o seu desenvolvimento
mental (LACAN,1998, p. 100)

Outro grande exemplo do estágio do espelho, na literatura saramaguiana,


é a crônica denominada A Cidade. Neste texto, temos uma narrativa que
gira em torno da história de um homem que fica o tempo todo
condicionado a viver fora de uma cidade, imaginando o que teria dentro do
local e, quando ele adentra no município, temos uma grata surpresa de que
a cidade se tratava do próprio homem. Como se fizesse uma cartografia do
espelho lacaniano, o sujeito vislumbra­se como alheio de si, em um
processo de transição, no qual tenta compreender que esse si mesmo
existe, também, externamente, enquanto um outro. Dentro da crônica,
Saramago vai tecendo as pistas para que leitor perceba do que fala:
Não sabia o homem que antes da batalha pela conquista da
cidade outro combate teria de travar e vencer. E que nesta
primeira luta teria de lutar consigo mesmo. Ninguém sabe nada
de si antes da ação em que tiver de empenhar­se todo. Não
conhecemos a força do mar enquanto ele não se move. Não
conhecemos o amor antes do amor (SARAMAGO, 1999, p. 5).

Durante o texto, o narrador comenta que, para conseguir adentrar na


cidade, o homem teria que vencer batalhas pessoais, teria que possuir a
postura dos heróis de um poema de Homero, vencer a própria mente, a
própria incapacidade para alcançar a cidade, como se, para se reconhecer,
ele tivesse que primeiro se libertar da parte dele que se via incapaz de
vencer as próprias batalhas, porque, no final das contas, sua batalha contra
a cidade era uma
batalha contra si mesmo.
Ainda amedrontado, o homem avançou. A seu lado, o deus.
Entraram — e foi só depois que entraram que a cidade se
tornou habitada. Era uma vez um homem que vivia fora dos
muros da cidade. E a cidade era ele próprio. Cidade de José se
lhe quisermos dar um nome (SARAMAGO, 1999, p. 5).

Esse reconhecimento do sujeito de sua impotência mediante a própria


vida está, também, em Tertuliano Máximo Afonso de O Homem Duplicado.
Nota­se um espectro dessa condição da não suficiência do sujeito alinhada

­ 84 ­
com a crise identitária que se estabelece no personagem protagonista da
obra, pois o momento de encontro com seu duplo, causa­lhe aflição, como
se ele pudesse vislumbrar a si mesmo diante dos próprios olhos, só que
com uma realidade vivente muito melhor do que a dele.
Cuidado com a soberba, Tertuliano, repara no que tens andado
a perder não sendo actor, poderiam ter feito da tua pessoa um
director de escola, um professor de Matemática, para
professora de Inglês é evidente que não darias, terias de ser
professor. Satisfeito consigo mesmo pelo tom da advertência, o
senso comum, aproveitando que o ferro estava quente,
descarregou outra vez o malho em cima dele, Obviamente,
terias de ser dotado de um mínimo de talento para a
representação, além disso, meu caro, tão certo como chamar­
me eu Senso Comum, obrigar­te­iam a mudar de nome, nenhum
actor que se preze ousaria apresentar­se em público com esse
ridículo Tertuliano, não terias outro remédio que adoptar um
pseudónimo bonito, ou talvez, pensando melhor, não fosse
necessário, Máximo Afonso não estaria mal, vai pensando nisso
(SARAMAGO, 2019, p. 94­95).

Christian Dunker, Daniela Chatelard e Márcia Maesso (2017), em seu


artigo Formação do eu, constituição do sujeito e construção da fantasia
argumentam que, no estágio do espelho, há um reconhecimento da forma
enquanto rival: ao observar­se duplicado no espelho, o indivíduo sofre uma
ruptura vital em sua adaptação ao meio, bem como em sua noção de
unidade. O sujeito, desse modo, passa a buscar uma restauração de sua
unidade corporal e a imagem especular passa a ser representação de sua
identidade, que permite um reconhecimento do ideal de imago do duplo.
O corpo encontra sua unidade corporal na imagem do outro, que acaba por
antecipar sua imagem, em uma situação dual e não simétrica. “A formação
do eu decorre, portanto, de uma separação inicial entre o eu enquanto
idealidade e as formas dos objetos de sua realidade” (DUNKER;
CHATELARD; MAESSO, 2017, p. 35).
O fato de o primeiro outro, do qual ao tomar conhecimento, o ser
humano, acaba tendo um choque, ser ele mesmo é emblemático e
elucidativo. Esse processo pode levar o indivíduo ao conflito e ao
desenvolvimento de uma certa agressividade, como podemos ver no artigo
O insólito é o estranho de Nadiá Paulo Ferreira (2009). Nele, a estudiosa

­ 85 ­
comenta que, para Lacan, a matriz do eu se localiza no campo do
imaginário, rompendo a fronteira entre o que pertence ao próprio corpo e
ao corpo do outro, de modo a confundir e fundir os corpos. A quebra desse
limite entre um corpo e outro é o que Lacan chama de transitividade. A
teórica comenta que, no estágio do espelho, instaura­se no sujeito um
sentimento de enxergar o outro como um igual, que suplanta e possui o
que o sujeito deveria ter, o que propulsiona uma espécie de rivalidade
especular.
Conseguimos, por meio desses processos, compreender os dilemas
abordados em O Homem Duplicado de forma mais intrínseca. Há uma
ofensa do protagonista mediante a existência de seu duplo que se
materializa em uma preocupação de ter sua originalidade roubada, como
se, o fato de ter visto “especulado” em outro, ele pudesse apenas se tratar de
um reflexo. Neste sentido, Saramago usa da data de nascimento de ambos
para saber quem nasceu antes e, dessa forma, identificar qual deles poderia
ser o original.
A sagacidade da narrativa encontra­se no fato de o indivíduo tido como
cópia ser, justamente, o protagonista que, mediante sua conduta passiva já
antes aqui mencionada, acaba por tornar­se subserviente do sujeito do qual
se viu duplicado, sendo impelido a trocar de identidade com esse outro por
um dia, mediante sua abordagem agressiva. No fim de tudo, há inclusive um
desfecho inesperado da narrativa: Tertuliano acaba por ter que assumir a
identidade de seu outro, visto que, durante a troca, o outro falece portando
a identificação dele.
Podemos perceber que Saramago, de forma magistral, retira de
Tertuliano todas as suas bases sólidas. Inicia removendo sua rotina
cotidiana, depois sua autenticidade e, por fim, sua identidade por completo,
fazendo seu protagonista assumir a identidade de seu duplo, do
coadjuvante da história. Temos, portanto, um sujeito que se vê
completamente despersonalizado, diferentemente do sujeito da crônica
que acaba por encontrar a si mesmo, ao elucidar­se a que a cidade era ele,
ou os sujeitos do conto, que tem a lucidez de que é necessário sair de si

­ 86 ­
mesmo para enxergar­se. No romance, a externalização não dá conta de
provocar no sujeito uma elucidação acerca de sua existência, há apenas um
processo de perda de si mesmo, ou melhor de transmutação de si no outro.
Em sua obra O Conto da ilha desconhecida (2000), o autor vista essa
questão por um novo prisma. Nesta narrativa, temos a história de um
homem que vai ao rei de sua pátria pedir um barco e, quando é
questionado pela majestade sobre a necessidade de possuir um barco,
responde que é porque gostaria de encontrar uma ilha desconhecida.
Mesmo que aparentasse ser uma tarefa difícil encontrar uma ilha que ainda
não tinha sido descoberta, o personagem acaba por encontrá­la no
decorrer da narrativa, que retrata os percaussos dessa busca.
Que ilha desconhecida, perguntou o rei disfarçando o riso,
como se tivesse na sua frente um louco varrido dos que têm a
mania das navegações, a quem não seria bom contrariar logo de
entrada, A ilha desconhecida, repetiu o homem, Disparate, já
não há ilhas desconhecidas, Quem foi que te disse, rei, que já
não há ilhas desconhecidas, Estão todas nos mapas, Nos mapas
só estão as ilhas conhecidas, E que ilha desconhecida é essa que
queres ir à procura, Se to pudesse dizer, então não seria
desconhecida, A quem ouviste tu falar dela, perguntou o rei,
agora mais sério, A ninguém, Nesse caso, por que teimas em
dizer que ela existe, Simplesmente porque é impossível que
não exista uma ilha desconhecida, E vieste aqui para me pedires
um barco, Sim, vim aqui para pedir­te um barco, E tu quem és,
para que eu to dê, E tu, quem és, para que não mo dês, Sou o rei
deste reino, e os barcos do reino pertencem­me todos, Mais lhes
pertencerás tu a eles do que eles a ti (SARAMAGO, 2000, p. 16­
17).

Por meio dos espaços em que as personagens atravessam, há uma


construção de um processo identitário de sujeitos, que são colocados em
zonas de desconforto com o desconhecido, na busca de uma ilha nunca
vista, mas que possuem a intenção do maravilhamento de lidar com o novo,
como recompensa. Uma das maiores metáforas que se instauram por
dentro do conto é a reflexão de que a ilha, muitas vezes desconhecida,
somos nós mesmos e que, ainda que tenhamos um barco, não a vemos se
não saímos de nós.
E eu, Tens com certeza um mester, um ofício, uma profissão,

­ 87 ­
como, agora se diz, Tenho, tive, terei se for preciso, mas quero
encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou quando
nela estiver, não o sabes, Se não sais de ti, não chegas a saber
quem és (SARAMAGO, 2000, p. 41).

Se retornarmos ao romance veremos que, como na ilha desconhecida,


Tertuliano também sai em busca de um desconhecido: seu duplo e acaba
por perceber que também era um desconhecido, porque não se
reconhecia mais, após ver o seu outro nele. Deste modo Tertuliano, ao
reconhecer a latência de todas as suas lacunas particulares, muitas vezes
recalcadas por ele mesmo, ao ver­se externalizado em seu duplo, tem todas
elas sendo retornadas, colocadas à prova. Entretanto, o grande ponto que
diferencia o romance das outras duas narrativas aqui explicitadas é a
relação de enxergar a si mesmo em um outro ser. Na metáfora da ilha
desconhecida ou na cidade, há sempre um si mesmo externalizado, mas
sempre essa identificação é feita em objetos, locais. Já em O Homem
Duplicado, temos um ser que vê a si mesmo em outro ser externo a si
mesmo, o que fere sua noção de individualidade e autenticidade.
Rememorando Lacan (1986, p. 164):
O outro que somos está fora de nós, a forma humana; esta
forma está fora de nós, não enquanto feita para captar um
comportamento sexual, mas enquanto fundamentalmente
ligada à impotência primitiva; o ser humano não vê sua forma
realizada, total, a miragem de si mesmo, a não ser fora de si.

Paulo Arantes (2003) pontua que Lacan argumenta que existe um


abismo entre o “ser­para­si” e o “ser­para­outrem”, e que esse é um dos
enigmas incontornáveis da subjetividade, que é o fato de o ser, ao separar­
se do exterior, acabar por separar­se de si mesmo, de modo que, o ver­se de
fora implica uma deficiência ou uma fratura do próprio ser, tornando­o,
também, uma maneira de não ser. Portanto, por mais que a questão da
identidade dos sujeitos se faça materializada por formas alegóricas no
conto e na crônica, é por meio da externalização do si mesmo em um outro
ser humano que Saramago atinge o ápice dessa materialização psicanalítica
em sua ficção.
Entretanto é inegável o trabalho exímio construído na crônica e no

­ 88 ­
conto que, inclusive, antecederam o romance em data de publicação.
Podemos vislumbrar, deste modo, que o autor constrói um caminho por
suas obras. Há algo em comum entre a ilha avistada apenas quando se está
fora dela, a cidade misteriosa que era o próprio ser e a transfiguração de um
homem em um outro idêntico: Temos, nessas diferentes modalidades da
narrativa saramaguiana, uma semelhança, isto é, a necessidade de se ver
fora de si mesmo na constituição de uma identidade. Todos os sujeitos
retratados necessitaram de verem­se externalizados de si mesmos para se
conhecerem, revelando algo complexo, mas coerente: é mais fácil
compreender a natureza de um outro do que a sua própria natureza, por
isso a necessidade de se ver no outro é tão crucial, porque talvez, desse
modo, possamos nos reconhecer com mais precisão.
Em tese, uma reflexão que podemos fazer, por meio de todos os textos
lidos, é a de que o modo como o sujeito compreende o mundo se dá por
meio dos contatos que exerce com outros indivíduos, pois esta é a forma
que possibilita que o sujeito conheça a si mesmo, ao reconhecer­se no
outro. Neste sentido, concluímos que as compreensões de Lacan sobre a
constituição do eu nos auxiliam a perceber os processos da mente humana
com mais vigor e, quando vinculadas a literaturas de autores potentes
como a de Saramago, fazem­se exímias no sentido potencializar a
capacidade que um texto literário tem de realizar uma mimese da vida e
dos sentimentos humanos.

Referências

AGUILERA, F. G. As palavras de Saramago. São Paulo: Companhia das


Letras, 2010.

ARANTES, Paulo. Hegel no espelho do Dr. Lacan in SAFATLE, Vladimir


(Ed.). Um limite tenso: Lacan entre a filosofia e a psicanálise. Unesp,
2002.

DUNKER, Christian Ingo Lenz; CHATELARD, Daniela Scheinkman;


MAESSO, Márcia Cristina. Formação do Eu, constituição do sujeito e
construção da fantasia. Psicologia Clínica e Cultura Contemporânea 3, p.

­ 89 ­
30.

FERREIRA, N. P. O insólito é o estranho. O insólito em questão, p. 124,


2009.

LACAN, J. O estágio do espelho como formador da função do eu.


Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

SARAMAGO, José, Deste Mundo e do Outro – Crónicas, Ed. Caminho,


1999

SARAMAGO, José. O conto da ilha desconhecida. 5. ed. São Paulo:


Companhia das Letras, 2000.
SARAMAGO, J. O Homem Duplicado. Lisboa. Porto Editora.2019.

­ 90 ­
SARAMAGO “BRINCANDO” COM ŽIŽEK: O SIMBÓLICO E
O IMAGINÁRIO SE TRANSFORMAM
Diana Milena Heck

Apresentação: Žižek relê Lacan

A realidade humana, segundo Lacan (1998)2, é constituída por três níveis:


Real, Simbólico e Imaginário, também conhecida como a tríade lacaniana.
Cada elemento tem uma significação própria e pode ser identificado
separadamente e pela maneira como o ser humano mesmo lida com
diversas situações do cotidiano.
O Real lacaniano é diferente do que se entende por real, no sentido
comum da palavra. O conceito proposto por Lacan é uma instância que
pode ser vivida pelo ser humano, mas, ao mesmo tempo, torna­se algo
insuportável. Segundo Silva (2009),
o Real é o que está para além do que pode ser representado na
rede do Simbolismo. Se o que chamamos realidade é um
produto distorcido das nossas percepções, o Real é um excesso

2. Lembrando que trata­se da releitura que Žižek fez dos conceitos lacanianos.

­ 91 ­
(surplus) que não cabe nessa realidade, só pode ser percebido
pelo seu brilho, para o qual não se pode olhar diretamente,
como o brilho do Sol. É indizível e, portanto, chocante,
traumático (SILVA, 2009, p. 213).

Como o Real é insuportável para o humano, este necessita ressimbolizar


seu trauma para continuar vivendo. Tal efeito ocorre quando o indivíduo
passa a saber como lidar com seu trauma, pelo fato de já ter conseguido
encontrar em seu mundo simbólico os elementos necessários para explicar
o que foi vivenciado. No caso de uma vítima de estupro, por exemplo, a
ressimbolização do contato com o Real ocorre quando esta passa a falar
sobre o ocorrido, aceita algum tipo de tratamento médico específico etc.
Ou seja, não é que a pessoa esqueça o que sofreu, mas aprende a lidar com
o trauma, pois, caso contrário, a vida se tornaria insuportável.
O Simbólico é o plano no qual a vida do ser humano é estruturada. É
através do campo do Simbólico que o indivíduo estrutura os códigos, leis,
proibições, enfim, o que garante sua socialização. O Simbólico é a ordem do
significante e o Imaginário, último elemento da tríade, está na ordem do
significado. O Imaginário é a instância em que o ser humano projeta e
visualiza objetos e situações na psique.
O Imaginário é estruturado pelo plano do Simbólico, ou seja, é a partir
do que está no Simbólico que o indivíduo consegue imaginar no campo
visual. A linguagem pertence tanto ao campo do Simbólico quanto do
Imaginário.
Desse modo, objetiva­se para o trabalho aprofundar os planos do
Simbólico e do Imaginário a fim de entender como a imagem da morte
(evento) e da Morte (personagem) foram modificadas no decorrer do
romance As intermitências da morte (2005), de José Saramago.

A morte em José Saramago: o Simbólico e o Imaginário se


transformam

Saramago, ao apresentar As intermitências da morte, não anuncia nada


de novo ou que já não tivesse sido inexplorado pela literatura. O tema da

­ 92 ­
morte é debatido pelo autor a partir de dois aspectos: a morte como evento
e como personagem. A partir da ficção, o escritor desenvolve o enredo a
partir da Morte3 (personagem) anunciado uma greve para que os humanos
entendessem a importância de sua função biológica, social e econômica.
Com a paralisação das mortes, os humanos passaram a sentir os efeitos
sociais e econômicos de uma vida eterna com o acúmulo de doentes e
moribundos que jamais morreriam, mas que ainda necessitariam de
cuidados, de hospitais e casas de repouso abarrotadas e comércios que
lucravam com a morte falirem, o que rapidamente transformou a alegria da
imortalidade em pesadelo.
Sentidos os efeitos da grave, a Morte resolve pronunciar seu retorno ao
trabalho, mas com algumas condições. Daquele momento em diante,
avisaria quem morreria através de uma carta. O indivíduo teria alguns dias
para resolver suas pendências, realizar desejos ou simplesmente se
despedir até que seu prazo expirasse. Novamente, tal engendro causou
comoção e revolta na população, pois, mais uma vez, a Morte demonstrava
que não haveria nenhuma forma do ser humano se sobrepor a ela.
A Morte seguiu burocraticamente formalizando a demissão de diversos
sujeitos do mundo através da entrega dos temidos envelopes de cor violeta.
No entanto, certo sobrescrito retorna ao remetente e a Morte precisa
investigar pessoalmente o motivo pelo qual sua próxima vítima não
recebia sua carta. Nesse momento percebemos uma transformação da
personagem que, por amor, engata uma nova greve tornando o dia seguinte
sem mortes.
A partir do enredo, entende­se que a morte se apresenta de duas
maneiras no romance. Primeiro, ela é imaginada pelas pessoas ­ pois não se
deixa ver pelo ser humano ­ de uma maneira que se tornou comum em suas
representações, principalmente no Ocidente. A morte é costumeiramente
descrita como “[...] um esqueleto embrulhado num lençol, [que] mora
numa sala fria em companhia de uma velha e ferrugenta gadanha que não

3. Manter­se­á a grafia em maiúsculo para diferenciar a personagem do ato de morrer.

­ 93 ­
responde a perguntas [...]” (SARAMAGO, 2009, p.145). Até aqui, a descrição
da morte é a mesma que todos os habitantes do país em que ninguém
morria tinham.
A morte, além de ser imaginada dessa forma, era adjetivada
(negativamente). Quando a Morte, já personagem, resolve mandar cartas às
suas vítimas, fazendo com que elas fossem avisadas de seu fim, os jornais do
país a acusaram de:
[...] impiedosa, cruel, tirana, malvada, sanguinária, vampira,
imperatriz do mal, drácula de saias, inimiga do género humano,
desleal, assassina, traidora, serial killer outra vez, e houve até um
semanário, dos humorísticos, que, espremendo o mais que
pôde o espírito sarcástico dos seus criativos, conseguiu
chamar­lhe filha­da­puta (SARAMAGO, 2009, p. 126).

Todas as acusações feitas contra a Morte são de caráter pejorativo. Até na


própria História da morte percebemos que ela foi duramente difamada até
o ponto de se tornar um tema interdito no Ocidente, como explica Ariès
(2003), tamanho o medo e pavor que o fenômeno provoca no ser humano.
A partir do primeiro pronunciamento oficial da Morte­personagem, é
possível perceber seu primeiro traço de humanização. Na carta, a Morte
tenta explicar e justificar a sua decisão de entrar em greve, a fim de fazer
com que os humanos a entendam e anuncia seu retorno. Ao final da carta,
como se costuma fazer,“só me resta pedir­lhe que faça chegar hoje mesmo
a todos os lares do país esta minha mensagem autografa, que assino com o
nome que geralmente se me conhece, morte” (SARAMAGO, 2009, p.100).
O primeiro­ministro, após ler a carta, debocha da Morte por ela não
saber que um nome sempre se assina com letra maiúscula e não com
minúscula, como ela fez. A Morte manda uma nova carta, enfurecida com as
piadas feitas a seu respeito, explicando que ela assina seu nome com letra
minúscula, pois a verdadeira Morte não era ela, mas só uma parcela, e exige
que seja feita uma retificação do mal­entendido com as seguintes palavras:
[...] convido­o instantemente a cumprir aquelas honradas
disposições da lei de imprensa que mandam rectificar no
mesmo lugar e com a mesma valorização gráfica o erro, a
omissão ou o lapso cometidos, arriscando­se neste caso o
senhor diretor, se esta carta não for publicada na íntegra, a que

­ 94 ­
eu lhe despache, amanhã mesmo [...] (SARAMAGO, 2009, p.
112).

O fato de se importar com o que pensavam a seu respeito, tanto pela


greve, como pela sua assinatura, demonstra características humanas e,
apesar de ela não se render, continuar a exercer o papel de soberana, deixa
transparecer que se importa com a opinião dos humanos.
Apesar de toda a população do romance imaginar a morte como um
esqueleto embrulhado em um lençol, acredita­se que “a morte sempre foi
uma pessoa do sexo feminino” (SARAMAGO, 2009, p. 128) e que seria uma
mulher jovem e muito bonita. Aqui surge mais um elemento caraterizador
da Morte, mas é algo imaginado e ainda não materializado ou visto. Se há a
hipótese, por parte dos humanos, da Morte sempre ter sido do sexo
feminino, o Imaginário aqui já começa a se transformar, pois se pensam a
Morte como mulher, teoricamente não a imaginariam como um esqueleto
feminino, mas já a veem em forma de mulher.
Há uma passagem em que o narrador insinua que a Morte possa ter sido
um dia uma humana no trecho em que diz que ela nunca sorri, pois,
obviamente, não tem lábios. Ao invés de um sorriso, “ela traz à vista é um
esgar de sofrimento, porque a recordação do tempo em que tinha boca, e a
boca língua, e a língua saliva, a persegue continuamente” (SARAMAGO,
2009, p. 139). Essa passagem pode representar um aspecto humano da
morte, pois se há sofrimento na recordação de um dia já ter sido humana,
poderia também haver uma capacidade de sentimento por parte da Morte.
No capítulo onze, a Morte ainda tem o mesmo aspecto de um esqueleto
embrulhado em um lençol, que mora em uma sala fria, na companhia de
uma gadanha e que não gosta de ser vista pelas pessoas, sendo muito
discreta quando necessita sair à rua. O narrador argumenta que o motivo de
ser tão reclusa são questões estéticas, já que qualquer ser humano
provavelmente se assustaria se a visse assim.
Quando a Morte decide ir à cidade para ver de perto porque o
violoncelista não recebia sua carta, ocorre a primeira mudança significativa
em relação à forma física, ou seja, ela decide adquirir aparência humana.
Com o processo de humanização da Morte, esta começa a experimentar

­ 95 ­
sensações e formas humanas que vão culminar com sua total
transformação em mulher.
A partir do momento em que a Morte passa a sofrer essas mudanças, a
própria representação da Morte no que Lacan chama de Imaginário
também se transforma, pois Saramago vai descrevendo uma série de
momentos em que o processo de humanização ocorre, o que não acontece
repentinamente, uma vez que até para a Morte essa transição é estranha. Ela
passa a experimentar sensações humanas e admira sua forma de mulher,
como se sua autoestima fosse melhorada com o novo aspecto, pois sendo
esqueleto ela jamais seria elogiada e desejada, mas, como mulher, o próprio
final da história vai provar que isso será possível.
Segue abaixo a passagem em que ocorre a primeira transformação. Para
isso, a Morte se despiu de seu lençol e:
[...] perdeu outra vez altura, terá, quando muito, em medidas
humanas, um metro e sessenta e sete, e, estando nua, sem um fio
de roupa em cima, ainda mais pequena nos parece, quase um
esqueletozinho de adolescente. Ninguém diria que esta é a
mesma morte que com tanta violência nos sacudiu a mão do
ombro quando, movidos de uma imerecida piedade, a
pretendemos consolar do seu desgosto (SARAMAGO, 2009,
p.146).

O momento em que ocorre sua total transformação humana,


fisicamente, é descrito da seguinte forma:
Então aconteceu algo nunca visto, algo não imaginável, a morte
deixou­se cair de joelhos, era toda ela, agora, um corpo refeito,
por isso é que tinha joelhos, e pernas, e pés, e braços, e mãos, e
uma cara que entre as mãos se escondia, e uns ombros que
tremiam não se sabe porquê, chorar não será, não se pode pedir
tanto a quem sempre deixa um rasto de lágrimas por onde
passa, mas nenhuma delas que seja sua (SARAMAGO, 2009, p.
152­153).

Apesar de ter acontecido sua total transformação física, há uma oscilação


entre ser e não ser humana, pois, assim como pode mudar sua forma,
novamente sendo um esqueleto, não adquire os sentidos e sensações
humanas de uma vez. O narrador descreve algumas passagens em que a

­ 96 ­
morte experimenta ou reflete sobre alguns hábitos e percepções humanas
que ela nunca havia experimentado e, com o desenrolar da história, a
Morte vai se humanizando cada vez mais, como ocorre na última passagem.
No copo tinha ficado um pouco de água. A morte olhou­a, fez
um esforço para imaginar o que seria ter sede, mas não o
conseguiu (SARAMAGO, 2009, p.154).
Muito mais tarde, o cão levantou­se do tapete e subiu para o
sofá. Pela primeira vez na sua vida a morte soube o que era ter
um cão no regaço (SARAMAGO, 2009, p.154).
[...] fizeste com os ombros aqueles movimentos rápidos que
nos seres humanos costumam acompanhar o choro convulsivo,
foi então, com os teus duros joelhos fincados no duro soalho,
que a tua exasperação de repente se esvaiu com a
imponderável névoa em que às vezes te transformas quando
não queres ser de todo visível (SARAMAGO, 2009, p. 156).

E ocorre também a sua desumanização, ou seja, “a morte é novamente


um esqueleto envolvido numa mortalha, com o capuz meio descaído para a
frente, de modo que o pior da caveira lhe fique tapado[...]” (SARAMAGO,
2009, p. 157).
Também há características da morte como algo além da humanização
como quando o narrador afirma que “a morte está, não anda. Ao mesmo
tempo, e em toda a parte” (SARAMAGO, 2009, p.166) ou quando diz que “a
morte, escusado será dizer, enche o teatro todo até ao alto, até às pinturas
alegóricas do tecto [...]” (SARAMAGO, 2009, p. 166). Neste sentido, não é a
Morte, em sua forma, que prevalece, mas o sentido da morte, enquanto
fenômeno, que toca a todo ser humano, animal e vegetal.
Após voltar a sua forma de esqueleto e voltar para seu habitat, a Morte
resolve voltar à cidade novamente, mas não se transforma em humana desta
vez, permanecendo invisível. Segue todos os passos do violoncelista a fim
de tentar encontrar uma maneira de lhe entregar a carta. Ao olhar para o
músico, em um primeiro momento, não consegue distinguir se o rosto que
lhe aparece à frente é feio ou bonito. Para a Morte, até o momento, todo ser
humano é feio da mesma maneira.

­ 97 ­
Como houve certa “convivência”4 com o violoncelista, a Morte passa a
reparar em coisas que vão além de somente tentar encontrar uma maneira
de liquidá­lo. Vê, por exemplo, que em toda a casa do músico não há uma
foto de mulher, a não ser por um retrato de uma senhora de idade, que a
Morte julgou ser a mãe. Ao perceber este detalhe, é revelada mais uma
característica humana na Morte, que tentando encontrar uma maneira de
levar o músico, observou algo que é comum em humanos que se sentem
atraídos por outros.
Até então, a Morte ainda permanecia na forma de um esqueleto, mas,
como plano para concluir sua tarefa de entregar a carta ao músico, resolve
passar uma semana na cidade a fim de finalizar seu trabalho. Para isso, deixa
por encargo da gadanha o envio das outras cartas de cor violeta e vai para
uma porta, na sala fria, que nunca havia sido aberta. Após meia hora
fechada,
[...] a porta se abriu e uma mulher apareceu no limiar. A
gadanha tinha ouvido dizer que isto podia acontecer,
transformar­se a morte em um ser humano, de preferência
mulher por essa cousa dos géneros, mas pensava que se tratava
de uma historieta [...] (SARAMAGO, 2009, p.180).
Estás muito bonita, comentou a gadanha, e era verdade, a morte
estava muito bonita e era jovem, teria trinta e seis ou trinta e
sete anos como haviam calculado os antropólogos [...]
(SARAMAGO, 2009, p. 181).

Ao se misturar entre os vivos,“[...] tira da bolsa uns óculos escuros e com


eles defende os seus olhos agora humanos dos perigos de uma oftalmia
mais do que provável em quem ainda terá de habituar­se às refulgências de
uma manhã de verão” (SARAMAGO, 2009, p.183), ou seja, adquire mais um
aspecto que é comum aos seres humanos, que é o da fragilidade da visão
diante do sol, mas como a total humanização ainda não se concretizou,
permanecem resquícios de sua identidade, como a incapacidade de dormir.
No último capítulo, Saramago ainda lança alguns indícios de que a Morte,
apesar de já ter forma humana, ainda não se humanizou totalmente. Porém,

4. Aqui a convivência não era mútua, pois a Morte, apesar de estar no apartamento do
violoncelista, não permitia que este a visse, portanto, era como se ela convivesse com ele,
podendo descobrir coisas sobre sua vida, mas ele era privado do mesmo, pois nem sabia que ela
estava em sua casa.

­ 98 ­
como a personagem resolve fazer um jogo de sedução com o violoncelista
de modo que fosse mais fácil entregar­lhe a carta de cor violeta, acaba
também sendo seduzida pelo músico, assim como ele se apaixona por ela.
Após terem se visto e conversado, o músico lembra que eles nunca haviam
se tocado. Ela nunca havia deixado o homem se aproximar tanto, pois,
sendo a morte, tem o corpo frio e, caso o músico a tocasse, poderia
perceber que algo naquela mulher não era de todo humano.
Como a Morte já havia se envolvido sentimentalmente com o
violoncelista e tentara várias vezes lhe entregar a carta, sempre adiando a
chance, percebe­se claramente que esta seria a motivação para sua total
humanização, que acontece na última cena do romance da seguinte forma:
Quando ele terminou, as mãos dela já não estavam frias, as suas
ardiam, por isso foi que as mãos se deram às mãos e não se
estranharam. Passava muito da uma hora da madrugada quando
o violoncelista perguntou, Quer que chame um táxi para a levar
ao hotel, e a mulher respondeu, Não, ficarei contigo, e ofereceu­
lhe a boca. Entraram no quarto, despiram­se e o que estava
escrito que aconteceria, aconteceu enfim, e outra vez, e outra
ainda. [...] A morte voltou para a cama, abraçou­se ao homem e,
sem compreender o que lhe estava a suceder, ela que nunca
dormia, sentiu que o sono lhe fazia descair suavemente as
pálpebras. No dia seguinte ninguém morreu (SARAMAGO,
2009, p.207).

Totalmente humanizada, o Imaginário em relação à Morte também se


modifica completamente. No fim do romance, não há mais a possibilidade
de simplesmente imaginar a Morte como sendo um esqueleto embrulhado
em um lençol, morando em uma sala fria, pois Saramago a apresenta como
uma mulher bonita e apaixonada e quem a vê, o violoncelista, por exemplo,
não imagina que esta é a Morte, agora em carne e osso e forma humana.
Para não ser mais identificada como a Morte, foi necessário que
Saramago realizasse uma transformação do Imaginário (lacaniano) humano,
ao mesmo tempo em que também houve uma modificação do plano
Simbólico dessa personagem ao longo do enredo.
Se é no plano Simbólico que o sujeito estrutura os códigos,
estabelecendo o que é certo ou errado, bem ou mal, então é neste campo
que o indivíduo vê a morte como má. O romance mostra que essa

­ 99 ­
concepção da morte como uma inimiga dos humanos é verdadeira, uma
vez que quando a personagem entra em greve, houve muita comemoração
pelo fato de os humanos terem se livrado dela, mas não se altera a
impressão de que ela seja má, pois os habitantes pensam que a greve não
ocorreu por bondade da Morte, mas por obra divina.
Se, por um momento, os habitantes do país quisessem que a morte
regressasse, pois as consequências da greve eram piores do que ter de lidar
com a perda de entes queridos, a partir do momento em que ela retoma seu
trabalho, com a distribuição das cartas de cor violeta, anunciando a morte
das pessoas, tornou a ser a pior inimiga da humanidade.
Para os habitantes do país, a morte continuou a ser inimiga até o final do
romance, pois eles nunca saberiam que ela havia se humanizado. O fato de
suspender a morte novamente, no fim do romance, não faria com que eles
a amassem, pois já sabiam como era enfrentar uma greve. Somente o
violoncelista pôde ver a Morte transformada em mulher e acompanhar sua
total humanização, pois teve um envolvimento amoroso com a mesma e foi
peça fundamental para que sua transformação ocorresse. Entretanto, não
há indício no romance de que em algum momento ele tenha tido
consciência que aquela mulher era a Morte. Sua estrutura Simbólica em
relação à Morte mudou, pois ele se apaixona por ela, mas como ele não
sabe quem a mulher é na realidade, portanto, não tem consciência dessa
mudança.

Considerações Finais

Saramago altera o Simbólico do leitor da obra, mas não mexe na


estrutura simbólica das personagens em relação à morte, pois se os
mesmos não souberam que ela havia se humanizado, adquirindo
sentimentos e sensações humanas, não puderam perceber que a Morte não
mata por prazer ou por querer o sofrimento dos humanos, mas que o faz
por ser seu trabalho e porque é preciso “renovar o estoque humano” na
Terra, para que não fosse necessária, como os habitantes estavam prevendo

­ 100 ­
com a primeira greve, a construção de verdadeiras torres de babel para
comportar o número de idosos, doentes e moribundos que se acumulariam
ao longo da eternidade.
Ao final do romance, o leitor não consegue mais imaginar a Morte na
forma de um esqueleto e associá­la à frieza e medo, passando, ao contrário,
a torcer para que ela consiga viver seu amor com o violoncelista.

Referências

ARIÈS, Philippe. História da Morte no Ocidente. Trad. Priscila Viana de


Siqueira. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.

LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

SARAMAGO, José. As Intermitências da Morte. São Paulo: Companhia


das Letras, 2009.

SILVA, Marisa Corrêa. O Percurso do Outro ao Mesmo: Sagrado e


profano em Saramago e em Helder Macedo. São Paulo: Arte & Ciência,
2009.

ŽIŽEK, Slavoj. Bem- vendo ao deserto do real!: cinco ensaios sobre 11


de Setembro e datas relacionadas. Trad. Paulo Cezar Castanheira. São Paulo:
Boitempo, 2003.

ŽIŽEK, Slavoj. Como ler Lacan. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de
Janeiro: Zahar, 2010.

­ 101 ­
­ 102 ­
BONSAI, DE ALEJANDRO ZAMBRA: UMA LEITURA SOB A
ÓTICA DO MATERIALISMO LACANIANO
Bruno Henrique de Souza Silva

Introdução

Considerado um dos principais expoentes da literatura latino­americana


contemporânea, Alejandro Zambra, escritor chileno que por muito tempo
atuou também como crítico literário e professor universitário, foi eleito em
2010 pela revista Granta como um dos 22 melhores escritores de língua
espanhola com menos de 35 anos, reconhecimento creditado, sobretudo, a
partir da publicação de seu romance de estreia, Bonsai, que lhe rendeu
distinções como o “Premio de la Crítica de Chile” e o “Premio del Consejo
Nacional del Libro", ambos de 2007. Hoje, mais de uma década depois da
publicação do romance que o tornaria um escritor celebrado, confirmou as
previsões da revista literária britânica e de outros veículos que, desde cedo,
reconheceram seu talento, consolidando­se como um dos grandes nomes
da literatura produzida na América Latina.
Dono de uma obra ostensivamente metalinguística e autorreferente

­ 103 ­
(ANGIOLILLO, 2021), além de, por vezes, autobiográfica, os textos de
Zambra sempre reservam à própria literatura um lugar de destaque, seus
protagonistas, apaixonados pela arte de contar histórias são, eles mesmos,
muitas vezes, escritores, alguns mais frustrados do que outros, mas todos
verdadeiramente fascinados pela magia da ficção.
Bonsai, primeiro romance do escritor chileno, pode ser creditado, como
o próprio nome sugere, como um trabalho minimalista. Em não mais do
que umas poucas dezenas de páginas, pelas quais se distribuem capítulos
curtos e sentenças incisivas, o autor dá conta de criar uma história
encantadora ­ e de difícil classificação, até para os mais experientes
apreciadores da literatura.
A concisão é uma característica de boa parte da produção literária de
Zambra, que teve início na poesia, com a coletânea Bahia inútil, de 1998.
Porém, foi com a publicação de Bonsai, obra sobre a qual se debruça o
presente trabalho, que o autor ganhou projeção internacional.
O romance, publicado pela primeira vez em 2006 pela editora espanhola
Anagrama, conta a história de Julio e Emilia, um casal cujo relacionamento
é embalado pelo amor que ambos nutrem pela literatura, e que só
consegue ir para a cama depois de compartilhar a leitura de alguma obra
literária, a qual passa a fazer a ponte para a intimidade entre os dois.
O escopo teórico sobre o qual se fundamenta o presente artigo e a partir
do qual busca­se analisar o romance de Alejandro Zambra é o materialismo
lacaniano, que tem como um de seus principais representantes o filósofo
esloveno Slavoj Žižek. Inicialmente ligada à filosofia política, a corrente foi
criada como uma crítica ao pensamento marxista tradicional. Seus teóricos
não rejeitam Marx, mas “aceitando as contribuições do filósofo alemão para
a história do pensamento, fazem a ressalva de que a economia e a luta de
classes apenas não são suficientes para dar conta de tudo o que
acontece” (SILVA, 2009, p. 211).
Estudioso das teorias de Lacan, como se infere do próprio nome
“materialismo lacaniano”, Žižek faz uma releitura da obra do psicanalista
francês, aproximando­a do quotidiano.

­ 104 ­
O materialismo lacaniano é complexo, mas sua aplicação é
vasta. Žižek levou o tema para além da filosofia política e
aplicou os conceitos em campos como os Estudos Culturais,
analisando fenômenos como os atentados de 11 de Setembro,
manifestações da chamada Cultura de Massa como os filmes de
Alfred Hitchcock etc. (SILVA, 2009, p. 212).

Dentro dos estudos de literatura, diversos trabalhos também têm


aplicado essa corrente, sendo o que propõe o presente artigo, que
pretende analisar de que modo conceitos como objeto a e o postulado não
há relação sexual, aparecem em Bonsai, romance de estreia de Alejandro
Zambra.

A literatura como elemento fantasístico e objeto causa de


desejo

Em que pese o aparente paradoxo, ler um romance, embora seja quase


que necessariamente uma experiência solitária (BENJAMIN, 1987, p. 213), é
também sempre um processo de cocriação, já que o leitor, ao mergulhar
numa história, participa, de modo bastante particular, de sua construção.
Certamente, a Emma Bovary lida por um pescador de um vilarejo no
sudoeste asiático do início do século XX – na hipótese romântica de que
naquelas condições de tempo e lugar pescadores tivessem acesso à
alfabetização e a literatura – é bastante diferente daquela imaginada por
uma militante do movimento feminista na Paris dos dias atuais, e
possivelmente guarda pouca relação com a personagem criada por
Flaubert, tal qual ela se desenhava na imaginação do autor enquanto ele a
transpunha para as páginas do clássico romance escrito na segunda metade
do século XIX.Tal noção acerca da participação ativa do leitor no processo
de construção das interpretações possíveis ao texto literário, levando em
conta sua constante transformação ao longo do processo histórico é
bastante explorada desde a década de 1960 pelos teóricos da estética da
recepção, teoria que passa a “encarar o leitor como um processo ativo
dentro do campo das relações exercidas pela literatura, situando­o como
parte integrante do sistema no qual a obra está inserida” (FERNANDES,

­ 105 ­
MORAIS 2012, p. 100).
Tendo como um de seus principais representantes o alemão Hans
Robert Jauss (1978, p. 314), segundo quem “a percepção estética não é um
código universal atemporal, mas, como toda experiência estética, está
ligada a experiência histórica”, a estética da recepção situa o leitor e o
momento histórico no centro da interpretação do objeto literário.
Mas não é apenas na psique de um aldeão da Indochina ou de uma
parisiense contemporânea que uma mesma história ganha diferentes
contornos. Cada leitor, ao entrar em contato com um texto de ficção,
extrairá dele cenários completamente distintos, reconstruindo a obra à sua
própria maneira. É isso o que fazem os protagonistas de Bonsai, ao longo
de sua maratona literária e sexual, combinando erotismo e literatura e
transformando o livro num elemento central de seu relacionamento, do
qual a obra participa quase que como um terceiro parceiro, numa espécie
de ménage à trois em que cada obra representa também o componente
fantasístico que torna a relação sexual possível.
“Não há relação sexual”, sentenciou Jacques Lacan em um de seus mais
famosos e polêmicos postulados e, a partir da releitura feita por Žižek da
obra do psicanalista francês, é possível estabelecer diálogos entre a
controversa premissa e a história vivida pelo casal protagonista do
romance de Alejandro Zambra.
Segundo Žižek (2010, p. 62),“não há nenhuma garantia universal de uma
relação sexual harmoniosa com nosso parceiro. Cada sujeito tem de
inventar uma fantasia própria, uma fórmula ‘privada’ para a relação sexual”.
No caso específico de Julio e Emilia, os protagonistas, era justamente nos
livros que ambos mergulhavam na busca da tal fórmula. Por muito tempo,
eles a encontraram.
As extravagâncias de Julio e Emilia não eram apenas sexuais
(que existiam) nem emocionais (que eram muitas), mas
também, digamos, literárias. Numa noite especialmente feliz,
Julio leu, meio de brincadeira, um poema de Rubén Darío que
Emilia dramatizou e banalizou até transformar num verdadeiro
poema sexual, um poema de sexo explícito, com gritos, com
orgasmos. Então virou um hábito o lance de ler em voz alta ­ e

­ 106 ­
em voz baixa ­ toda noite, antes de trepar. (ZAMBRA, 2018, p.
32).

O conceito proposto por Žižek, não é apenas aplicável, mas pode ser
lido claramente a partir da relação incomum estabelecida entre o casal
protagonista criado por Zambra, que só é capaz de transar depois de
devorarem juntos algumas das páginas do romance ou da coletânea da vez,
retirando da literatura a fantasia que irá embalar a próxima relação sexual.
Muito embora compartilhem sempre a mesma leitura, de fato, é inegável
que Julio e Emilia, criam, cada qual, uma imagem própria com a matéria
prima de que dispõem, já que não dividem a mesma mente, e é a partir dela,
ou seja, dessa matéria ficcional, que ambos constroem individualmente,
ainda que partindo de um objeto comum (livro), a atmosfera adequada para
o que virá em seguida.
Em Como ler Lacan, uma das principais obras escritas pelo filósofo
esloveno, na qual se investe do papel de guia, orientando o leitor pelo
labirinto das ideias do mestre francês da psicanálise, Žižek (2010, p. 64­65)
se vale de vários exemplos, alguns dos mais significativos retirados do
cinema, para ilustrar a controversa frase que sentencia a impossibilidade da
relação sexual. Esses exemplos vão desde o barulho de uma cachoeira, que
abafa os ruídos embaraçosos do ato sexual ao ar livre entre os
protagonistas de A filha de Ryan, de David Lean, ao som da Internacional,
que serve de pano de fundo para as cenas tórridas entre Diane Keaton e
Warren Beatty, em Reds. Enquanto nos dois filmes a trilha sonora
representa o filtro fantasístico que “permite suportar o real do ato
sexual” (ŽIŽEK, 2010, p. 64), em Bonsai, são os livros que se incumbem
desse papel.
Como a sexualidade é o domínio em que chegamos mais perto
da intimidade de outro ser humano, expondo­nos totalmente a
ele, o gozo sexual é real para Lacan: algo traumático em sua
assombrosa intensidade, contudo impossível no sentido de que
não podemos jamais compreendê­lo. É por isso que uma
relação sexual, para funcionar, precisa ser filtrada por alguma
fantasia. (ŽIŽEK, 2010, p. 64).

Sem a intermediação do livro, fonte do elemento fantasístico que torna o

­ 107 ­
contato íntimo tolerável, o sexo entre Julio e Emilia não é possível, tanto é
assim que, ao perderem o apreço por um de seus autores favoritos, o
relacionamento passa por um processo de deterioração que irá culminar
num rompimento definitivo.
A importância da literatura, enquanto objeto que serve de crivo
fantasístico para a relação entre os personagens principais no romance de
Zambra é um traço, aliás, que permeia toda a história e, na verdade,
estrutura cada aspecto do relacionamento entre Julio e Emilia. Sem a ajuda
da ponte que se estende entre os textos e o próprio relacionamento, os
dois fatalmente despencariam no abismo aterrorizante do real que, para
Lacan, estaria ligado à ordem do impossível, daquilo que não pode ser
simbolizado, ao passo que a realidade é simbólico­imaginária, ou seja, da
ordem da fantasia (ZIZEK, 2010). Daí a necessidade dos personagens de
encontrar meios para manter a estrutura em pé, valendo­se da fantasia a fim
de que possam atravessar em segurança o precipício do real.
Nem sempre é fácil encontrar nos textos algum motivo,
mínimo que seja, para trepar, mas no fim sempre conseguem
isolar um parágrafo ou um verso que, caprichosamente
estendido ou pervertido, funciona, aquece­os. (Gostavam desta
expressão, “aquecer­se”, por isso a registro. Gostavam quase
tanto como aquecer­se de fato.) (ZAMBRA, 2018, p. 33).

Se, como assevera o famoso postulado, não há relação sexual, o texto


de Zambra não dá margem a dúvidas quanto ao papel exercido pela
literatura dentro da história do casal protagonista de Bonsai. Ela “funciona
como o crivo fantasístico que exclui o real do ato sexual” (ŽIŽEK, 2010, p.
64). Por essa razão os personagens precisam desesperadamente erotizar
tudo o que leem, aquecer­se com os textos, desenvolver a partir deles a
fantasia que irá intermediar a relação.
Cada capítulo da história de amor entre os personagens deixa clara essa
necessidade de intermediação da relação por um elemento que os concilie,
já que, nas palavras de Žižek (2010, p. 65), o próprio sexo real, “para ser
palatável, precisa ser filtrado através do crivo assexuado” que, no romance
de Alejandro Zambra, é representado pela literatura. Isso se faz notório no
fato de que os personagens precisam se “aquecer”, pela leitura de um texto

­ 108 ­
literário, antes de qualquer relação sexual. É dos livros que é retirada a
fantasia que irá permitir que o contato íntimo se estabeleça de forma não
traumática, pela fuga do Real executada a partir da literatura.
Discutiram, como todos os diletantes do mundo um dia
discutiram, os primeiros capítulos de Madame Bovary.
Classificaram seus amigos como Charles ou Emma e discutiram
também se eles mesmos eram comparáveis à trágica família
Bovary. Na cama, não havia problema, já que ambos se
esmeravam para parecer Emma, ser como Emma, trepar como
Emma, pois sem dúvida nenhuma, pensavam, Emma trepava
inusitadamente bem, e poderia até trepar melhor nas
condições atuais; em Santiago, no final do século XX, Emma
poderia trepar ainda melhor do que no livro. Nessas noites, o
quarto se transformava numa carruagem blindada que rodava
sem cocheiro, às cegas, por uma cidade bela e irreal. O resto, o
povo, murmurava invejosamente detalhes do romance
escandaloso e fascinante que acontecia portas adentro
(ZAMBRA, 2018, p. 35).

Julio e Emilia estão unidos pela paixão pelos livros, é ela que os faz
superar inclusive as diferenças irreconciliáveis que existiam entre os dois.
Basta pensar, por exemplo, que antes de descobrirem suas afinidades
literárias, a dupla concebida pela imaginação do escritor chileno não se
suportava. Mais tarde, unidos por um fascínio em comum, até mesmo a
primeira mentira contada um ao outro, longe de implicar em algum
rompimento do pacto de fidelidade tácito que se estabelece entre todo
casal, na verdade, envolve o fato de afirmarem terem lido Proust, quando
nenhum dos dois o fizera.
A primeira mentira que Julio contou a Emilia foi que tinha lido
Marcel Proust. Não costumava mentir sobre suas leituras, mas
naquela segunda noite, quando os dois sabiam que alguma
coisa estava começando entre eles, e que essa coisa, durasse o
quanto durasse, ia ser importante, naquela noite Julio empostou
a voz, fingiu intimidade e disse que sim, que tinha lido Proust,
aos dezessete anos, num verão, em Quintero.
(...)
Naquela mesma noite, Emilia mentiu pela primeira vez para
Julio, e a mentira foi a mesma, que tinha lido Marcel Proust
(ZAMBRA, 2018, p. 25).

Essa simples mentira revela que o status assumido pela literatura no

­ 109 ­
relacionamento do casal protagonista é tão elevado que é impensável para
os dois admitirem, por exemplo, que não leram um de seus maiores
clássicos. Como se depreende do próprio texto, essa coisa que estava
começando entre eles ia ser importante, e a literatura funcionaria como
seu alicerce, o crivo fantasístico responsável por sustentar todo o peso do
que seria construído a partir de então, o objeto sobre o qual os dois
assentariam sua própria história.
Adotando ainda uma outra discussão trabalhada por Žižek, é possível
pensar a íntima conexão com a literatura compartilhada pelos personagens
como o objeto que é a causa do desejo entres os dois, a partir do conceito
de objeto a, proposto por Lacan.
Enquanto o objeto de desejo é simplesmente o objeto desejado,
a causa de desejo é o traço em razão do qual desejamos o
objeto, algum detalhe ou tique de que em geral somos
inconscientes, e que por vezes até percebemos como um
obstáculo apesar do qual desejamos o objeto. (ŽIŽEK, 2010, p.
85­86).

No caso de Julio e Emilia, é o entusiasmo pela literatura o atributo que dá


origem ao interesse que um sente pelo outro. É esse atributo o que sustenta
toda a relação, e a partir do momento em que ele sai de cena, o próprio
relacionamento entra em colapso.
Numa noite, durante uma das sessões de leitura compartilhada que,
como de hábito, antecede o ato sexual, o casal se depara com um texto
especialmente desconcertante, embaraçoso num nível muito mais
profundo do que a sexualização calculada que corriqueiramente faziam de
outras obras a fim de criar o nível de tensão sexual perfeito para a
intimidade entre os dois, o filtro fantasístico necessário para o sucesso da
relação. O texto escolhido na noite fatídica que irá mudar os rumos do
relacionamento é um conto do escritor argentino Macedonio Fernández,
intitulado Tantalia.
“Tantalia” é a história de um casal que decide comprar uma
plantinha para conservá­la como símbolo do amor que os une.
Percebem, tardiamente, que, se a plantinha morrer, morrerá
com ela o amor que os une. E como o amor que os une é
imenso e por nenhum motivo estão dispostos a sacrificá­lo,

­ 110 ­
decidem fazer a plantinha se perder entre uma multidão de
plantas idênticas. Depois ficam inconsoláveis, infelizes por
saber que nunca mais poderão encontrá­la. (ZAMBRA, 2018, p.
33).

A leitura do conto de Macedonio Fernández faz com que o Julio e Emilia


se vejam confrontados com a fragilidade do próprio relacionamento; longe
de oferecer o elemento fantasístico ideal, o texto entrega o encontro com a
imagem traumática de um futuro no qual o amor entre eles definha até a
morte. Talvez os personagens de Zambra não sejam imediatamente
conscientes desse cenário mas, enquanto no conto de Macedonio, o
aniquilamento do amor é simbolizado pelo perecer de uma planta, no caso
de Julio e Emilia é a própria literatura, representada pelo conto, que
vaticina a morte do relacionamento dos dois.
Os protagonistas de Bonsai não sabem o que exatamente os incomoda
no conto de Macedonio, porque a mensagem perturbadora contida no
texto foi absorvida num nível inconsciente; eles não querem falar sobre o
assunto, decidem evitar Macedonio, concordam que, após o contato com
Tantalia, não gostam mais do autor; porém, já é tarde demais. Rapidamente,
a semente da plantinha nefasta que tanto os atordoou germina e não
demorará a criar raízes, crescer e frutificar.
Receosos de que uma nova incursão por solos pouco explorados
provoque outros encontros traumáticos, os personagens decidem
abandonar qualquer leitura mais ousada, recorrendo exclusivamente aos
clássicos, a fim de não serem surpreendidos por nenhum detalhe
desagradável. Ao adotarem o terreno confortável das obras já conhecidas,
ficam a salvo do risco de repetirem um encontro indesejado, mas em
contrapartida, estacionam o relacionamento num marasmo que irá
provocar sua total aniquilação. Buscando escapar ao destino profetizado
pelo texto de Macedonio Fernández, Julio e Emilia também fazem sua
“plantinha” se perder em meio a homogenia de tantas outras, e acabam,
sem querer, realizando o presságio.
Não há qualquer possibilidade de o relacionamento sobreviver sem a
presença do papel fundamental representado pela literatura; Julio e Emilia

­ 111 ­
ainda têm um ao outro, ou seja, ainda conservam o objeto de desejo, porém,
há algo que se perdeu, e esse elemento é justamente a viga que sustentava
todo o edifício. Sem ele, o desejo é frustrado, porque muito embora
preservem o objeto, este os decepciona, já que a substância que os atraia,
agora está ausente (ŽIŽEK, 2010, p. 85).
Eles ainda tentam salvar as estruturas em ruínas do relacionamento,
abaladas pelo terremoto provocado por Tantalia, se demoram nas páginas
de alguns clássicos, pelo entusiasmo e descoberta das obras literárias; a
leitura dos clássicos é uma releitura, o signo da falta de crescimento e de
surpresa. Engaiolado na repetição, o amor definha; o casal adia o desfecho
das obras, a fim de prolongar ao máximo o fio de vida do amor que agoniza
depois de ser fatalmente ferido pelo conto. A estratégia, embora não de
todo errada, apenas acompanha a relação em seus estertores.
Por vezes o caminho mais curto para realizar um desejo é evitar
o objeto­meta, fazer um desvio, adiar seu encontro. O que Lacan
chama de objeto a é o agente desse encurvamento: o
insondável X que faz com que, ao nos confrontarmos com o
objeto de nosso desejo, obtenhamos mais satisfação ao dançar
em torno deste do que nos dirigindo diretamente a ele. (ŽIŽEK,
2010, p. 97).

Julio e Emilia intuem que cruzaram uma fronteira da qual não poderão
retornar. Os efeitos provocados pela leitura de Tantalia representam um
caminho sem volta. Apesar disso, buscam inutilmente se recuperar do
trauma, o que só será possível com o rompimento entre os dois.
O desconforto dos protagonistas provocado pelo conto de Macedonio
Fernández permite uma série de interpretações dentro das teorias
trabalhadas por Zizek, desde uma ruptura com o elemento fantasístico
representado pela literatura, enquanto filtro que possibilita a relação sexual
entre os personagens, passando pela ideia de objeto causa de desejo,
esgotado pela experiência desconcertante do contato com Tantalia, que
os afastou da causa do desejo, culminando no trauma pelo confronto com
o real, ancorado no receio da morte do amor cultivado pelos dois,
vagamente conscientes de que esse receio indica a própria morte
enquanto algo iminente e inevitável, pois o golpe fatal já fora dado.

­ 112 ­
Não é porque se sabe de uma coisa que se pode impedi­la, mas
há ilusões, e esta história, que vem sendo uma história de
ilusões, prossegue assim:
Ambos sabiam que, como se diz, o final já estava escrito, o final
deles, dos jovens tristes que leem romances juntos, que
acordam com livros perdidos entre as cobertas, que fumam
muita maconha e ouvem canções que não são as mesmas que
preferem individualmente (de Ella Fitzgerald, por exemplo: têm
consciência de que nessa idade ainda é aceitável ter acabado de
descobrir Ella Fitzgerald). A fantasia dos dois era ao menos
terminar Proust, esticar a corda por sete volumes, e que a
última palavra (a palavra “tempo”) fosse também a última
prevista entre eles. Ficaram lendo juntos, lamentavelmente,
pouco mais de um mês, cerca de dez páginas por dia. Pararam
na página 373, e o livro, desde então, ficou aberto. (ZAMBRA,
2018, p. 38).

É significativo que o livro que encerra a história de amor entre os


personagens seja justamente Em busca do tempo perdido, de Marcel
Proust. A despeito do acordo velado firmado entre o casal de que se
manterão numa zona pacata, livre de grandes surpresas, buscando assim
evitar novos confrontos desagradáveis, como aquele provocado por
Tantalia, Julio e Emilia não se sentem confortáveis com a leitura do
clássico francês, já que, ao contrário do que disseram um ao outro, jamais
leram Proust. Com essa nova incursão pelo desconhecido, ainda
fragilizados pelo traumático encontro com o real, o relacionamento não
resiste, e o livro fica em aberto, indicando que a história dos dois, assim
como a leitura do romance de Proust, não foi encerrada.
A história de Julio e Emilia continua, mas não prossegue.
Vai terminar alguns anos mais tarde, com a morte de Emilia;
Julio, que não morre, que não morrerá, que não morreu,
continua, mas decide não prosseguir. Emilia também: por ora,
decide não prosseguir, mas continua. Dentro de alguns anos
não continuará nem prosseguirá mais. (ZAMBRA, 2018, p. 37).

Incapazes de seguir adiante uma vez privados do elemento que os unia,


a história de amor entre Julio e Emilia fica interrompida, apontando que,
despojados da causa de desejo, ambos também se perdem um do outro.
Além disso, sem a mediação da fantasia representada pela literatura, a

­ 113 ­
intimidade entre os dois tornou­se impossível.

Considerações finais

A partir da análise proposta, torna­se possível constatar o papel


fundamental interpretado pela literatura no contexto do relacionamento
entre Julio e Emilia, casal protagonista do romance de estreia de Alejandro
Zambra. Nele, a arte de contar histórias executa a função de crivo
fantasístico capaz de tornar a intimidade entre os personagens algo
tolerável, poupando­os do trauma de um encontro com o real do ato sexual,
que só é possível quando intermediado pela fantasia.
Munidos do escudo que não apenas os protege de um confronto com o
real traumático, mas que é a própria base do relacionamento entre os dois,
os personagens viajam pelas páginas dos livros que fornecem o clima, o
cenário e a inspiração para suas aventuras sexuais, transportando­os, a cada
noite, para um universo diferente, que, embora compartilhado, também é
pessoal, já que “cada sujeito tem de inventar uma fantasia própria” (ŽIŽEK,
2010, p. 62) para suportar a realidade.
Nesse mesmo contexto, a literatura aparece ainda como o objeto que é a
causa do desejo entre os personagens, o traço a partir do qual se origina o
interesse que um nutre pelo outro. A perda desse objeto, por sua vez, os
afasta, já que, tão logo esse elemento se esvazia, o objeto fim deixa de ter a
força que outrora os fazia gravitar em torno um do outro.
Todos esses elementos evidenciam que, na economia do texto de
Zambra, é a literatura que providencia a fantasia, “impedindo que sejamos
diretamente esmagados pelo real cru” (ŽIŽEK, 2010, p. 73).

Referências

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que virou cult com literatura sussurrante. Folha de São Paulo, São
Paulo, 3 de outubro de 2021. Disponível em: <https://
www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/10/quem­e­alejandro­zambra­

­ 114 ­
autor­chileno­que­virou­cult­com­literatura­sussurrante.shtml >. Acesso em:
15 de novembro de 2021.

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FERNANDES, Renan; MORAES, Julierme. Hans Robert Jauss e os


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2012. Disponível em: <https://www.revista.ueg.br/index.php/sapiencia/
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JAUSS, Hans Robert. O texto poético na mudança de horizonte da leitura.


In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da literatura em suas fontes. 2. ed. Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 1983, p. 305­357.

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ZAMBRA, Alejandro. Bonsai & A vida privada das árvores. São Paulo:
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ŽIŽEK, Slavoj. Como ler Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

ŽIŽEK, Slavok. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da


ideologia. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.

­ 115 ­
­ 116 ­
A literatura brasileira

­ 117 ­
­ 118 ­
A “BRUTALIDADE DO REAL DA VIOLÊNCIA DESREGRADA”
EM UM ABATEDOURO: NO RASTRO DE UM ASSASSINATO
EM DE GADOS E HOMENS (2013), À LUZ DO
MATERIALISMO LACANIANO
Rafael Lucas Santos da Silva

A percepção ideológica atual é que o trabalho em si (o trabalho


manual em contraposição à atividade “simbólica”) e não o sexo,
tornou­se o lugar da indecência obscena que é preciso esconder do
olhar do público.
Slavoj Žižek (2003)

[...] não é por meio das sobrevivências da Ilustração, cara ao


liberalismo burguês, que poderemos dar validade humana às
instituições de cultura superior. Mas sim por meio da luta popular,
em favor de uma inversão estrutural que permita quebrar o ritmo
de dança macabra dos extremos.
Antonio Candido (1985)

Um assassinato e seus dilemas

A cena do crime: o abatedouro Touro de Milo. Esse é o mesmo espaço em


que o assassino, Edgar Wilson, e o assassinado, Zeca, trabalham. O
abatedouro é o espaço privilegiado onde se desenvolve a perspectiva

­ 119 ­
diegética do romance De gados e homens. A trama é relativamente simples
e envolve uma espécie de comportamento dos gados que beira o
sobrenatural, que culmina em suicídio coletivo de alguns rebanhos.
A descrição do assassinato, em um único parágrafo, é seca e lacônica, o
que o distingue do estilo “brutalista” pelo qual Ana Paula Maia se
consolidou no campo literário brasileiro, o que levou a cena passar
despercebida, sendo lembrada apenas em caráter negativo. Zeca é o
personagem que morre, embora não houvesse rivalidade entre ele e Edgar
Wilson. O motivo aparente seria apenas uma divergência entre o melhor
procedimento para atordoar o gado antes do abate, por cuja simplicidade
facilmente poderia ser considerado como um gesto inapreensível e
imotivado, sem peso decisivo para compreensão da composição do
romance.
Acreditamos que o gesto do assassinato envolve uma forma de
subjetividade de Edgar Wilson que exige atenção, embora este não seja o
conflito central da perspectiva diegética delineada no romance. A hipótese
que subjaz a este ensaio, o qual faz parte de uma pesquisa mais ampla, é que
o assassinato está relacionado ao modo de filiação do protagonista ao
trabalho, no atrito que se realiza entre a subjetividade e a experiência
precarizada de seu trabalho no abatedouro. O assassinato evidencia a
tensão social irresolvida que de fato atravessa o romance desde o início e,
visto desse ângulo, convida­nos a uma reflexão substanciosa de um artifício
narrativo cifrado numa equação em que a incógnita é o narrador, para o
qual o assassinato também é uma incógnita, sendo que ambas tornaram­se
uma só para os leitores. O procedimento analítico para desatar esse nó é,
pois, conduzido pelo viés do Materialismo Lacaniano, compreendendo­o
como uma corrente teórico­crítica que visa explorar a influência da
economia libidinal em esferas individuais e sociais (SILVA, 2009), o que
permitirá utilizá­lo também para mediação dialética entre forma literária e
processo histórico­social.
O assassinato ocorre quando Edgar volta para o abatedouro, após ter que
ir fazer uma cobrança para o patrão na fábrica de hambúrguer. Retornando

­ 120 ­
ao fim da tarde, a primeira atitude de Edgar é encontrar Zeca:
É hora do canto das cigarras.A noite se aproxima, envolvendo o
firmamento e engolindo o crepúsculo. Algumas estrelas já
apareceram. Edgar Wilson entra no banheiro do alojamento.
Espera que reste apenas o Zeca no banho. Com a marreta, sua
ferramenta de trabalho, acerta precisamente a fronte do rapaz,
que cai no chão em espasmos violentos e geme baixinho. Edgar
Wilson faz o sinal da cruz antes de suspender o corpo morto de
Zeca e o enrolar num cobertor. Nenhuma gota de sangue foi
derramada. Seu trabalho é limpo. No fundo do rio, com restos
de sangue e vísceras de gado, é onde deixa o corpo de Zeca,
que, com o fluxo das águas, assim como o rio, também seguirá
para o mar (MAIA, 2013, p. 21).

A cena do assassinato é concisa, rápida e sem o recurso de choque ao


leitor (“Com a marreta, sua ferramenta de trabalho, acerta precisamente a
fronte do rapaz. Seu trabalho é limpo”).
A concisão, atrelada à opção de descrição, aparenta ser uma particular
elaboração que não visa valorizar dramaticamente a cena desse assassinato.
Por isso, o leitor pode facilmente, à primeira vista, considerar algo redutor,
como foi o caso de Fischer (2014). Na sua recepção crítica acerca do
romance, publicada no Jornal Folha de São Paulo, considera que o
assassinato é “imotivado”. Assim, o crítico expôs que “todo o romance é
esquemático. O matador é mau, mas mau de filme infantil. Chega a
assassinar imotivadamente um companheiro de trabalho, jogando­o no
fundo do rio. Motivo: o sujeito mata errado os bois, os faz sofrer. Simples
assim” (FISCHER, 2014, s/p.).
O apontamento crítico é lacônico, mas dele podemos derivar algumas
implicações para organização da narrativa. Assim, questionamos: realmente
foi “imotivado” esse assassinato? Sabemos que essa não foi a primeira vez
que Zeca precisou atordoar os gados e que também o próprio patrão Milo
não se preocupa com o “sofrimento” dos animais. Por sua vez, a
preocupação de Edgar Wilson com o fato de Zeca não se importar com o
“sofrimento” dos bovinos não pode também ser estendida aos outros
companheiros de trabalho, conforme podemos apreender ao longo da
perspectiva diegética. Exemplo claro disso é o momento em que conversa
com Helmuth, quem lhe diz que não há motivo para preocupação, pois “são

­ 121 ­
apenas animais”:
Somente o som delicado do cigarro queimando ao ser tragado
pode ser ouvido.
— Edgar, são apenas animais. Estão debaixo da nossa
autoridade.
— Pra viver e pra morrer?
— Pra nos servir.
Edgar Wilson apaga a ponta do cigarro na cerca de madeira em
que está apoiado e se retira em silêncio direto para o banheiro
(MAIA, 2013, p. 94).

Helmuth expressa não haver motivos para preocupação, tendo em vista


que os animais não humanos são inferiores. Em outro momento, Edgar
também precisa se ausentar, a pedido de Bronco Gil, surgindo novamente
sua preocupação:
[Bronco Gil] Entra no boxe de atordoamento onde Edgar
Wilson se prepara.
— Vou precisar de você e do Helmuth.
— Quem vai abater o gado?
— Vou deixar por conta do Zé Filho.
— Ele tem pouca experiência.
— Mas sabe se virar.
Edgar tira o boné e os óculos de esqui.
— Vamos pegar esses desgraçados, Edgar. Conto com você.
Ninguém me rouba desse jeito e fica por isso mesmo (MAIA,
2013, p. 99).

Temos a preocupação em relação a quem irá substituí­lo durante a


ausência. Zé Filho não possui experiência, pressupondo que o golpe não
será preciso, levando ao sofrimento dos bovinos. Contudo, Zé Filho não
possui o mesmo destino de Zeca, nem vemos Edgar orientando­o acerca da
necessidade de dar um golpe preciso e nem será assassinado.
Assim, com esses exemplos, a colocação de Fischer (2014) também não
fica descabida. Para conseguirmos divergir desse argumento, precisamos
ter em vista que a crítica de Fischer (2014) corresponderia meramente à
violência física e direta, a qual é mais visível aos nossos olhos. Essa violência
facilmente visível é apenas uma taxionomia das três — sistêmica, simbólica
e subjetiva — que são estabelecidas pelo filósofo Slavoj Žižek, o qual
advoga a necessidade de “desembaraçar­nos do engodo fascinante desta

­ 122 ­
violência ‘subjetiva’ diretamente visível, exercida por um agente
claramente identificável” (ŽIŽEK, 2014, p. 17).
Ou seja, embora possamos, apenas focalizando o primeiro capítulo,
averiguar que não existiria, na dinâmica da intriga, o motivo para o
assassinato de Zeca, quando, por sua vez, focalizamos no conjunto, o
assassinato já aparenta possuir articulação no desenvolvimento da
perspectiva diegética, no tangente a uma dinâmica de espoliação de gozo
que Edgar está submetido em sua rotina de trabalho precarizado, que
funciona como uma violência objetiva na realidade Simbólica do
personagem.

“Brutalidade do Real da violência desregrada”

“O trabalho é pesado mesmo”, comenta Santiago com Edgar Wilson, ao


final do seu primeiro dia no abatedouro, indicando o desgaste pelo intenso
trabalho manual executado (MAIA, 2013, p. 59). Ambos exercem a primeira
etapa do processo de abate de bovinos dentro do abatedouro. Dentre os
avanços tecnológicos, o método considerado mais eficaz e mais utilizado
constitui de métodos mecânicos, com a ação pneumática como pistolas de
dardo cativo com penetração, a partir da qual se considera haver a imediata
perda de consciência dos bovinos (NEVES, 2008).
Contudo, no abatedouro em De gados e homens a função de Edgar é
exercida de maneira rudimentar, através de golpes com uma marreta como
ferramenta. Procedimento considerado ilegal por Legislação Federal, por
isso utilizado apenas em lugares clandestinos. A clandestinidade traz a
reboque a precariedade do local, bem como faz que a atividade laboral se
torne mais intensificada e desgastante, que, de forma muito instigante,
implica que os trabalhadores no abatedouro, "longe de representarem o
atraso", estão sofrendo "o caráter excludente das novas forças produtivas"
como "resultado do progresso" (SCHWARZ, 1999, p. 171; 184).
Essa é uma peculiaridade nas narrativas de Ana Paula Maia, quando traz à
baila seus personagens trabalhadores. Não apenas a presença, “uma coisa

­ 123 ­
rara numa literatura [brasileira] que quase sempre o desprezou e evitou
representá­lo”, como sublinha Lafetá (2004), como também o recorte é
feito a partir de atividades profissionais tidas como subalternas,
invisibilizadas e vistas muitas vezes com preconceito, direta e
significativamente implicadas na clivagem de classes sociais brasileiras.
A escritora promove, assim, uma importante abertura para um discurso
complexo da dimensão da precariedade a que estão sujeitas as
personagens de suas narrativas, o que, por sua vez, também envolve a
necessidade de identificação e compreensão do lugar ocupado pelo
narrador frente à matéria narrada.Assumindo uma posição de observador, o
narrador em De gados e homens se depara com uma experiência precária
difícil de abarcar, que vai se constituindo, a seu próprio despeito, como “o
Real lacaniano”, no sentido de uma “traumática ‘espinha na garganta’ que
contamina toda idealidade do simbólico, tornando­o contingente e
inconsistente” (ŽIŽEK, 2017, p. 342).
Quando menciona sobre o hambúrguer, a voz narrativa declara que “não
se pode vislumbrar o horror desmedido que há por trás de algo saboroso e
delicado” (MAIA, 2013, p. 21). O enunciado desliza para uma peculiar
asserção, marcada por uma entoação expressiva: “horror desmedido”. Não
só não é possível contemplar sem horror, como é posto pela voz narrativa
que “não se pode [até mesmo] vislumbrar” esse “horror desmedido” que
perpassa o cotidiano desses trabalhadores.
Essa perplexidade horrorizada já marca uma relação fundante na
instância narrativa como força disruptiva irrepresentável, com implicações
formais para os demais capítulos do romance, em que “essa cisão entre
realidade simbolizada e o excesso do Real, no entanto, representa apenas a
matriz de como o Simbólico e o Real estão interligados” (ŽIŽEK, 2017, p.
162). Afinal, como buscar representar uma existência que “não se pode
vislumbrar”? Hobsbawm (2000a) já foi enfático ao assinalar que existiu um
desconhecimento sobre a classe trabalhadora e que, mesmo ao escritor
interessado,“a maior parte da vida do trabalhador — seu trabalho diário —
era totalmente desconhecida” (HOBSBAWM, 2000, p. 258). Argumento

­ 124 ­
semelhante também é tecido por Žižek (1992), ao assinalar que
[...] encontramos a admiração de Charles Dickens pela “gente
do povo", a identificação imaginária com seu mundo pobre,
mas feliz, fechado, virgem, livre de qualquer combate cruel pelo
dinheiro ou pelo poder; mas ­ e é nisso que se encontra a
falsidade de Dickens ­, de onde vem o olhar de Dickens para a
“boa gente do povo", para que ela nos pareça agradável? De
onde, a não ser do ponto de vista de um mundo corrompido
pelo dinheiro e pelo poder? Aí encontramos a mesma
separação vista nas pinturas idílicas de Bruegel, mostrando
cenas tranquilas da vida (festas no campo, ceifeiros na hora do
almoço etc.): essas pinturas são tão distantes quanto possível
de uma verdadeira atitude popular, de uma relação qualquer
com as classes trabalhadoras; o olhar que elas pressupõem é, ao
contrário, o olhar externo da aristocracia para o campesinato
idílico, e não o dos camponeses sobre sua vida (ŽIŽEK, 1992, p.
186).

Os dois autores convergem, assim, ao sublinharem um desconhecimento


da própria experiência que os escritores buscam representar. O historiador
assinala: “mesmo romancistas que deliberadamente escreveram sobre a
vida dos trabalhadores permanecem horrorizados do lado de fora dos
portões atrás dos quais o verdadeiro trabalho das classes trabalhadoras
acontecia” (HOBSBAWM, 2000, p. 258, grifo nosso).
“Horrorizados” é como sublinha o Hobsbawm (2000), condição que atua
como assombro diante de uma realidade indesejada, que também causa
repulsa à percepção do narrador em De gados e homens, bem como se
estende à própria autopercepção de Edgar Wilson, na construção da
composição do romance.
Surge, então, Zeca, cujo comportamento de trabalho na função de
atordoar vai explicitar a tensão social irresolvida de relações de exploração
que subjazem à ação do romance, mas não ganham nomeação direta na
perspectiva diegética porque ocorre uma contenção da voz narrativa como
índice do “Real do antagonismo” (ŽIŽEK, 2017). Conforme assinala o
esloveno, a explosão da violência subjetiva é também “condicionada por
impasse simbólico”, surgindo “quando a ficção simbólica que garante a vida
está em perigo” (ŽIŽEK, 2017, p. 250). Ou seja, uma condição claramente
observável no que tange ao “ritual como atordoador” (MAIA, 2013, p. 11) de

­ 125 ­
Edgar em relação aos bovinos.
A abertura da narrativa é com o patrão de Edgar Wilson requerendo que
exerça uma atividade que não faz parte das suas atribuições como
atordoador no abatedouro, estabelecendo um avanço no conflito entre
Edgar e Zeca, bem como corresponderá a uma importante caracterização
da experiência do trabalho na estrutura narrativa. A posição de
subordinação em que se encontra Edgar Wilson em face de Milo assume
uma oposição em relação ao modo como serão executados os bovinos. Ele
tem a função de atordoar o gado com um intenso golpe de marreta, para
que durante o desnorteamento do animal a sua garganta seja cortada. Para
isso, é preciso “uma pegada boa”, conforme insistiu com o patrão,
considerando que Zeca não a possui, pois “ele deixa o bicho acordado
ainda. O boi sofre muito, Seu Milo” (MAIA, 2013, p. 10).
Essa preocupação de que “o boi sofre muito” será algo que atravessará a
perspectiva diegética do romance. Quando é Zeca que terá que atordoar os
bovinos na sua ausência, Edgar fica com “o coração pesaroso” pela situação.
(MAIA, 2013, p. 12). Assim, elabora­se uma apresentação do quanto a
preocupação de Edgar Wilson é verdadeira, a qual o leva até a possuir um
“ritual como atordoador”:
Edgar permanece imperturbável, com o olhar cinzento sobre o
patrão. O telefone toca. Milo atende e pede um instante.
— Edgar, aqui está a ordem de cobrança. O endereço tá escrito
aí. Pega as chaves da caminhonete com o Tonho e manda o Zeca
vir até aqui falar comigo.
Edgar Wilson acena com a cabeça e apanha a ordem de
cobrança. Milo volta ao telefone. Edgar hesita pouco antes de
sair, mas atravessa a porta do escritório e fecha­a ao passar.
Segue por um corredor fétido e mal iluminado e ao virar à
direita entra no boxe de atordoamento, local em que trabalha
muitas horas por dia. A fila de bois e vacas é sempre longa. Um
funcionário abre a portinhola e o boi que já passou pela
inspeção e pelo banho entra devagar, desconfiado, olhando ao
redor. Edgar apanha a marreta. O boi caminha até bem perto
dele. Edgar olha nos olhos do animal e acaricia a sua fronte. O
boi bate uma das patas, abana o rabo e bufa. Edgar cicia e o
animal abranda seus movimentos. Há algo nesse cicio que deixa
o gado sonolento, intimamente ligado a Edgar Wilson, e dessa
forma estabelecem confiança mútua. Com o polegar
lambuzado de cal, faz o sinal da cruz entre os olhos do

­ 126 ­
ruminante e se afasta dois passos para trás. É o seu ritual como
atordoador. Suspende a marreta e acerta a fronte com precisão,
provocando um desmaio causado por uma hemorragia
cerebral. O boi caído no chão sofre de breves espasmos até se
aquietar. Não haverá sofrimento, ele acredita. Agora o bicho
descansa sereno, inconsciente, enquanto é levado para a etapa
seguinte por outro funcionário, que o suspenderá de cabeça
para baixo e o degolará (MAIA, 2013, p. 11­12).

A narração do seu “ritual como atordoador” encadeada do


acontecimento da ordem recebida prova a relevância assumida da relação
entre Edgar e sua função no abatedouro. Assim, não é algo que pode ser
dimensionado como esperado pelo próprio ambiente de trabalho
enquanto ordem Simbólica. “A fila de bois e vacas é sempre longa”,
implicando que o mais rápido e produtivo será não se preocupar se “haverá
sofrimento”. Logo, encontramos um atrito que se estabelece com a
condição precária da sua função, no qual é possível apreender “uma tensão
entre Imaginário e Real” (ŽIŽEK, 2017, p. 169). Interessante destacar que,
dessa maneira, o Materialismo Lacaniano possibilita abrir um horizonte
para se conceber consequências de como modalidades de constituição de
subjetividades se relacionam com contradições imanentes da vida social,
em uma dinâmica analítica que Adorno (1993) sintetizava, de maneira
instigante, como o desafio de que “quem quiser saber a verdade acerca da
vida imediata tem que investigar sua configuração alienada, investigar os
poderes objetivos que determinam a existência individual no mais
recôndito dela (ADORNO, 1993, p. 7).
A preocupação de Edgar transcende essa preocupação propriamente
material, é uma preocupação com a “alma” (MAIA, 2013, p. 13) desses
animais. Por isso,“com golpe lambuzado de cal, faz o sinal da cruz entre os
olhos dos ruminantes” (MAIA, 2013, p. 11). A finalidade desse “ritual” não é
o PH para qualidade da carne, o que se pretende “é encomendar a alma de
cada animal que abate” (MAIA, 2013, p. 13).
Essa caracterização de Edgar Wilson e a narração de seu “ritual”, na
dinâmica da intriga, assume a funcionalidade de preparação da sequência
narrativa que culminará, ao final do capítulo, no assassinato de Zeca. Este

­ 127 ­
personagem é posicionado pela voz narrativa como quem “gosta de ver o
animal sofrer” (MAIA, 2013, p. 12). Quando Zeca vai ao setor para substituí­
lo, a voz narrativa apresenta que não se esforça para ter precisão ao acertar
os golpes nos bovinos, inclusive mesmo na frente de Edgar:
Edgar sinaliza para que o funcionário não deixe o boi seguinte
entrar no boxe.Vai até o setor de triparia e chama por Zeca, que
imediatamente acata sua ordem. É com o coração pesaroso que
Edgar vê, minutos depois, o rapaz, sorridente, seguir até o boxe
de atordoamento ao sair da sala de Milo. Zeca é um garoto de
dezoito anos, perturbado. Gosta de ver o animal sofrer. Gosta de
matar. Se prepara para a tarefa quando Edgar entra no boxe e o
adverte:
— Zeca, coloca o boi pra dormir, entendeu? Não deixa o bicho
sofrer.
Zeca apanha a marreta, faz sinal para que o funcionário deixe o
boi entrar. Quando o animal fica frente a frente com ele, a
marretada propositalmente não é certeira, e o boi, gemendo,
caído no chão, se debate em espasmos agonizantes. Zeca
suspende a marreta e arrebenta a cabeça do animal com duas
pancadas seguidas, fazendo o sangue respingar em seu rosto.
— Assim, Edgar? Ele tá dormindo agora, não tá? — Zeca pisca
diversas vezes os olhos com força e puxa a saliva entre os
dentes, ruidosamente.
Edgar Wilson não responde à afronta de Zeca. Vira de costas e
caminha até o banheiro, onde troca de roupa. Veste uma calça
jeans e uma camisa quadriculada de botões. Após apanhar as
chaves com Tonho, segue até a caminhonete e lamenta o rádio
quebrado do carro (MAIA, 2013, p. 13).

Zeca tipifica uma conduta completamente avessa a qualquer


preocupação com o possível bem­estar dos animais.A voz narrativa confere
à descrição da cena uma espécie de perversidade indesmentível, sem
brecha para que o leitor pudesse suspeitar de um possível exagero de
Edgar em relação ao “garoto”. Zeca é considerado “perturbado”, como
quem “gosta de matar”, por isso sua “marretada propositalmente não é
certeira”. Condição que é acentuada ao vê­lo “sorridente”, após a ordem de
Milo para cobrir a ausência de Edgar no setor, como se já estivesse contente
por saber que terá essa oportunidade de ver os animais “em espasmos
agonizantes” e matá­los.
A força que impele Edgar Wilson é devidamente localizada, pois, na

­ 128 ­
própria experiência de trabalho, de modo que o assassinato “ganha sua
coerência apenas retrospectivamente, visto de dentro do horizonte
simbólico” (ŽIŽEK, 2005, p. 53, tradução nossa). E isto significa, justamente,
nos debruçarmos no horizonte simbólico da experiência de trabalho
exercido no abatedouro.
A lógica exploratória desse lugar pede passagem na fatura, implicando aí
uma dinâmica de reprodução social presente na perspectiva diegética.
Sendo Zeca também um trabalhador do abatedouro, na intriga do
assassinato podemos verificar uma inflexão que vai assumindo uma
enunciação em torno da reificação do sujeito dentro do funcionamento da
produção do abatedouro. Lukács (2013), tratando da reificação, assinala
apreender historicamente um movimento de “eliminação das propriedades
qualitativas” do trabalhador:
Se perseguirmos o caminho percorrido pelo desenvolvimento
do processo de trabalho desde o artesanato, passando pela
cooperação e pela manufatura, até a indústria mecânica,
descobriremos uma racionalização continuamente crescente,
uma eliminação cada vez maior das propriedades qualitativas,
humanas e individuais do trabalhador (LUKÁCS, 2013, p. 201).

O trabalhador braçal em busca de produtividade e lucro no abatedouro


é a busca da instância narrativa para problematização da exploração sofrida
por essa categoria de trabalhador, em que, no caso de Zeca, podemos
aquilatar como injunção obscena e perversa como “parte inerente da
maneira como a instituição [abatedouro] se reproduz [...] como sistema
‘reificado’ de coordenadas simbólicas” (ŽIŽEK, 2011, p. 58).
Nessa virada de ângulo, a pergunta fica: o que há no ato de Zeca que
perturba o equilíbrio psíquico de Edgar? A exploração do trabalho é
também uma espoliação psíquica, uma falta de gozo, em que o sujeito
busca um equilíbrio no laço social. Zeca é a presença de um excesso
obsceno, como “instrumento­objeto” (ŽIŽEK, 2010) do próprio poder de
exploração do abatedouro. Quer dizer, não é apenas “uma mancha de
obscenidade” (ŽIŽEK, 2017) no funcionamento da rede simbólica do
abatedouro; assim, acreditamos, que o que está formalizado esteticamente é
mais agudo do que “uma distinção entre a Lei pública simbólica e seus

­ 129 ­
complementos obscenos”, conforme assinala Žižek (2017), no sentido em
que a “injunção [obscena] tem de continuar invisível aos olhos públicos
para o Poder continuar funcionando” (ŽIŽEK, 2017, p. 293).
Zeca expressaria, dentro de uma própria dinâmica de precarização do
trabalho à margem do mercado de trabalho dito legal, essa ausência de
mediação entre Lei pública e obscenidade, com a qual encontramos no seu
ato de desprezo com o sofrimento a “relação conturbada com a Lei,
relacionando­se com a perversão” (ŽIŽEK, 2016, p. 381). Nesse aspecto, o
filósofo esloveno pontua que a passagem para perversão está “na relação
entre Lei e jouissance”, em que, “para o perverso, a Lei emana da própria
figura que encarna a jouissance (portanto ele pode assumir diretamente o
papel de Outro obsceno como instrumento de jouissance)” (ŽIŽEK, 2016,
p. 380).
Vimos anteriormente que a voz narrativa pontua que Edgar Wilson
indica a Zeca para que se dirija ao escritório do Milo. Podemos
compreender que ele mesmo opta por não fazer o pedido, solicitando que
Zeca converse com Milo para que receba a ordem de cobrir a ausência dele
pelo próprio patrão, momento este que não é focalizado. A narração é
lacônica: “[Edgar] Vai até o setor de triparia e chama por Zeca, que
imediatamente acata sua ordem. É com o coração pesaroso que Edgar vê,
minutos depois, o rapaz, sorridente, seguir até o boxe de atordoamento ao
sair da sala de Milo” (MAIA, 2013, p. 12).
“Sorridente” é o modo como Zeca recebe a ordem, expressando que não
se incomodou de ser retirado do seu setor, mesmo com o provável acúmulo
de trabalho que isso resultará, pois sabe que nesse momento no setor de
atordoamento será uma satisfação excedente que obterá. O adjetivo
“sorridente” expressa o índice da atitude perversa, em que Žižek (2010)
assinala que o sujeito “encontra prazer no que lhe é imposto” (ŽIŽEK, 2010,
p. 130). Tratando sobre esse aspecto, o filósofo utiliza a seguinte passagem
de Lacan:
É o sujeito que se determina a si mesmo como objeto, em seu
encontro com a divisão da subjetividade. […] É no que o sujeito
se faz objeto de uma vontade outra, que não somente se fecha

­ 130 ­
mas se constitui a pulsão sadomasoquista. […] O sádico ocupa
ele próprio o lugar do objeto, mas sem saber disto, em
benefício de um outro, pelo gozo do qual ele exerce sua ação
de perverso sádico (LACAN apud ŽIŽEK, 2010, p. 130).

A passagem é utilizada visando esclarecer essa compreensão de que a


atitude perversa adota uma posição de “puro instrumento”. Através dessa
dimensão, evidencia­se que a atitude de Zeca que acompanhamos nada tem
de transgressora em relação à lógica exploratória do abatedouro. “A
perversão já não é subversiva: os excessos chocantes são parte do próprio
sistema, o sistema alimenta­se deles para se reproduzir”, destaca, com
efeito, Žižek (2018, p. 50).
Dessa forma, parece­nos agora ganhar peso a expressão “coração
pesaroso” do narrador em relação a Edgar Wilson, em que a preocupação
com o “sofrimento” dos animais torna­se aquilatável como modo de obter
um equilíbrio psíquico em face da obscena lógica exploratória na qual está
inserido, que Zeca, por sua vez, reafirma como “objeto­instrumento”. De
uma perspectiva lacaniana, a intriga do assassinato está além de apenas
uma dimensão em que Zeca “mata errado os bois”, conforme colocado por
Fischer (2014); temos, ao contrário, uma intriga que perpassa o termo da
“extimidade”, expressão utilizada pelo psicanalista Lacan (2008) para
combinar os termos exterioridade e intimidade, que no horizonte
Simbólico que a intriga situa­se está vincada na precarização e exploração
desses trabalhadores. Sobre a “extimidade”, Lacan (2008) se refere a “algo
estranho para mim, embora esteja no meu coração” (LACAN, 2008, p. 89).
Na objetividade da matéria narrada, temos a degradação do trabalho
instalado reificamente no seu íntimo, ao mesmo tempo em que busca certa
resistência, um equilíbrio por meio do Imaginário que é desestabilizado
pelo ato perverso de Zeca. Motivo pelo qual acreditamos dar plausibilidade,
então, ao fato de a concisão da cena do assassinato é a instância narrativa
esforçando­se pela representação que não acomodasse na violência
subjetiva. Conseguimos reforçar, diante o exposto, que, tendo em vista
ainda os procedimentos narrativos do primeiro capítulo, a violência
subjetiva fica em segundo plano, enquanto a violência sistêmica pede

­ 131 ­
passagem. Desse modo, esperamos ter esclarecido que o assassinato não
surge “imotivadamente” (FISCHER, 2014), pois implica, precisamente, que
“a violência não é uma propriedade exclusiva de certos atos, distribuindo­
se entre os atos e seus contextos, entre atividade e inatividade” (ŽIŽEK,
2010, p. 166).
Que sentido assume esse “contexto” sinalizado pelo filósofo esloveno e
que, aqui, estamos vinculando à lógica exploratória? Percebemos a função
do “ritual” como a busca de um “escudo imaginário contra o encontro
traumático com a realidade social” (ŽIŽEK, 2015, p. 82). Contudo, é um
“escudo” (ritual) pouco eficaz, tendo em vista o “horror desmedido”
contido no cotidiano como “brutalidade do Real da violência
desregrada” (ŽIŽEK, 2015, p. 82) da sua experiência de trabalho, como
resultado de uma violência sistêmica, que visa “a criação de indivíduos
excluídos e dispensáveis, uma violência que determina o que se passa na
realidade social dos indivíduos imbricados em interações e processos
produtivos” (ŽIŽEK, 2014, p. 26).
Assim sendo, verifica­se na questão do assassinato que a “desproporção
entre brevidade e importância do episódio é um fato eloquente de
composição”, para utilizar uma expressão de Schwarz (2014, p. 80) que
cabe como uma luva nesse contexto. Diante do exposto, esperamos ter
evidenciado que a leitura do assassinato de Zeca em chave materialista
lacaniana possibilita um ganho crítico, como ponto de partida para uma
interpretação que venha a demonstrar a importância da matéria ficcional
do trabalho para compreensão da composição do romance, uma vez que a
questão propriamente da atividade laboral passou muito tempo
desapercebida como tal para a crítica preocupada em esquadrinhar a
violência subjetiva das obras de Ana Paula Maia.

É o colapso, seu Edgar

O sentido político em De gados e homens, assim, conjuga, não sem


contradições, dilemas de uma economia libidinal em face de um mercado

­ 132 ­
de trabalho excludente, caracterizado por uma fragilização da condição
salarial e por uma precariedade do trabalho tão intensa que as fronteiras
entre o legal e o ilegal se tornaram cada vez mais tênues. Encarar o
processo histórico da consolidação do mercado de trabalho é também
pensar as estruturas autoritárias de nossa experiência social. Com efeito, na
trajetória de Edgar Wilson encontramos índices de uma experiência
atravessada por uma “brutalidade do Real da violência desregrada” (ŽIŽEK,
2015, p. 82), em contexto de “colapso da modernização”.
Conforme sinaliza Žižek (2014), a violência sistêmica “consiste nas
consequências muitas vezes catastróficas do funcionamento regular de
nossos sistemas econômico e político” (ŽIŽEK, 2014, p. 12). Para o caso da
sociedade brasileira, esse aspecto precisará ser balizado dentro do
contexto do colapso do processo de modernização, que implica formas
regressivas de sociabilidade como índice da “impossibilidade crescente,
para os países atrasados, de se incorporarem enquanto nações e de modo
socialmente coeso ao progresso e ao capitalismo” (SCHWARZ, 1999, p.
160).
O conjunto das narrativas de Ana Paula Maia tem em Edgar Wilson uma
de suas personagens mais representativas. Alcançou espaço privilegiado na
construção artística da escritora, tornando­se paradigmático da
experiência crônica de precariedade, de modo que a figura de Edgar Wilson
articula uma rede de ligações temáticas e formais que atravessam a obra
ficcional de Ana Paula Maia. É um personagem que possui uma forma de
subjetividade ainda a ser deslindada pela recepção crítica, e que por nossa
vez pretendemos realizar, aprofundando o que até agora expomos, via
Materialismo Lacaniano, tendo em vista, conforme bem sintetizou Safatle
(2020), que é importante reconhecer que “o trabalho nunca foi apenas uma
questão de produção de riqueza e de valor”, esclarecendo ainda que “a
dominação no trabalho não está ligada apenas à impossibilidade de os
produtores imediatos disporem de sua própria produção e dos produtos
por eles gerados” (SAFATLE, 2020, p. 160, 162), de modo que a prática social
do trabalho desenvolve formas de vida e modos de socialização e

­ 133 ­
subjetivação interconstitutivos.

Referências

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ed. São Paulo: Ática, 1993.

FISCHER, Luís Augusto. Romance "De gados e Homens" falha no


engenho e também na arte. Folha de São Paulo. São Paulo, Ilustrada,
2014.

HOBSBAWM, Eric. Mundos do Trabalho: novos estudos sobre a história


operária. Tradução de Waldea Barcellos e Sandra Bedran. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 2000.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Tradução


Antônio Quinet. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

LAFETÁ, João Luiz. O romance atual: considerações sobre Oswaldo


França Júnior, Rui Mourão e Ivan Ângelo. In: A dimensão da noite. São
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LUKÁCS, Georg. História e Consciência de Classe: Estudos sobre a


dialética marxista. Tradução de Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins
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NEVES, Julia Eumira Gomes. Influências de métodos de abate no bem-


estar e na qualidade da carne de bovinos. 69 f. Dissertação (Mestrado
em Zootecnia) ­ Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias ­ UNESP,
Campus de Jaboticabal, São Paulo, 2008.

SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos. Corpos políticos,


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ZOLIN, Lúcia Osana (Orgs.). Teoria literária: abordagens históricas e
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SCHWARZ, Roberto. Sequências brasileiras: ensaios. São Paulo:


Companhia das Letras, 1999.

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ŽIŽEK, Slavoj. Como ler Lacan. Tradução de Maria Luiza X. Borges. Rio de
Janeiro: Zahar, 2010.

ŽIŽEK, Slavoj. Em defesa das causas perdidas. Tradução de Maria


Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo, 2011.

ŽIŽEK, Slavoj. Violência: seis reflexões laterais. Tradução de Miguel Serras


Pereira. São Paulo: Boitempo, 2014.

ŽIŽEK, Slavoj. O absoluto frágil: ou por que vale a pena lutar pelo legado
cristão? Tradução de Rogério Bettoni. Rio de Janeiro: Zahar, 2015.

ŽIŽEK, Slavoj. O sujeito incômodo: o centro ausente da ontologia


política. Tradução de Luigi Barichello. São Paulo: Boitempo, 2016.

ŽIŽEK, Slavoj. Interrogando o Real. Tradução de Rogério Bettoni. Belo


Horizonte: Autêntica, 2017.

ŽIŽEK, Slavoj. Lacrimae rerum: ensaios sobre o cinema moderno. 2ª ed.


Tradução de Isa Tavares e Ricardo Gozzi. São Paulo: Boitempo, 2018.

­ 135 ­
­ 136 ­
O TRISTE FIM NAS TEIAS DA VIOLÊNCIA SISTÊMICA E
SIMBÓLICA DA LINGUAGEM: O ESSENCIAR DA
LINGUAGEM DE LIMA BARRETO
Maria Betânia da Rocha de Oliveira

Considerações Iniciais

Minhas pesquisas sobre Lima Barreto (1881­1922) me acompanham


desde a graduação. E cada vez que leio suas obras, descubro fatos
diferentes. O mais recente contato com esse autor foi em minha Tese de
Doutorado, Policarpo Quaresma entre o Imaginário e o Real de Žižek: o
Triste Fim nas teias da violência sistêmica e simbólica da linguagem.
Foram quatro anos de muitas descobertas, principalmente porque a linha
seguida foi o Materialismo Lacaniano, uma linha teórica totalmente
desconhecida para mim. Minha orientadora foi a professora Marisa Corrêa
Silva, da Universidade Estadual de Maringá­PR.
Busquei, em Triste Fim de Policarpo Quaresma, romance de Lima Barreto
escrito em 1911 e publicado em 1915, as peculiaridades que revelam, de
modo geral, a literatura como uma forma de uma representação histórica

­ 137 ­
de um país que transitava de um sistema monárquico para a República “a
custas de graves desequilíbrios” políticos, econômicos e sociais. Esses
aspectos foram primordiais para as minhas pesquisas.
O processo metodológico de construção desta pesquisa seguiu o
percurso de seleção e revisão da bibliografia a partir das leituras e dos
estudos de obras impressas e digitais que forneceram os dados essenciais
para a construção do texto. Por se tratar de uma pesquisa de cunho
qualitativo, recorremos às leituras da Literatura e do Materialismo
Lacaniano, como também fizemos – mas não em profundidade –, estudos
da Filosofia, Sociologia e Psicologia, cujo objetivo era averiguar a relação
entre mundo, pessoas, acontecimentos e lugares, em suas formas de
representação social e literária.
A partir dessa concepção, relacionei as violências expostas na narrativa
com o funcionamento da Tríade – Simbólico, Imaginário e Real – para
observar o essenciar da linguagem utilizada de Lima Barreto, a partir da
relação que Žižek faz com as palavras e sua capacidade de “essenciar”.
“Tradicionalmente, a ‘essência’ se refere a um núcleo estável que garante a
identidade de uma coisa e o ‘essenciar’ é o ato de criar essências, que é o
trabalho da linguagem” (ŽIŽEK, 2014, p. 63).
Em O destino da literatura5, texto publicado em 1921, Lima Barreto
afirma que a literatura enquanto “Arte” é um fenômeno social e que, nisso,
reside sua importância, uma vez que os atributos externos da forma devem
formar uma unidade com “a exteriorização de um certo e determinado
pensamento de interesse humano, que fale do problema angustioso do
destino em face do Infinito e do Mistério que nos cerca, e alude às questões
de nossa conduta de vida” (BARRETO, 2017, p. 272).
Em outras palavras, a literatura, para Lima Barreto, é uma arte que deve,
por meio da forma, transformar o texto para além da interpretação: “mais

5. O destino da literatura foi o texto que Lima Barreto escrevera para ministrar aquela que seria
a sua primeira palestra que seria realizada em São José do Rio Preto, espécie de sede da Comarca
da cidade Mirassol, onde estivera hospedado por alguns dias na casa do então amigo, dr. Ranulfo.
A palestra não ocorreu, mas foi publicada na Revista Souza Cruz, na edição de outubro­novembro
de 1921. (SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto: triste visionário. 1. ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 2017.)

­ 138 ­
que isso, torná­lo assimilável à memória, de incorporá­lo ao leitor, em
auxílio dos seus recursos próprios, em auxílio de sua técnica” (2017, p.
275). Ademais, nesse texto, Lima Barreto registra a literatura como uma
forma de Arte capaz de contribuir para a felicidade de um povo, de uma
nação e da humanidade, daí a justificativa de que todo fenômeno artístico é
um fenômeno social ou sociológico, conforme veremos a seguir.

A linguagem de Lima Barreto entre a violência e a


poeticidade

A literatura Lima Barreto (1888­1922) caracteriza­se como uma


representação dos limites do homem em face das problemáticas do mundo
moderno, cujos estilos se voltam menos para os aspectos formais e mais
para as temáticas que envolvem o povo brasileiro dentro de um panorama
de perdas e buscas pelos interesses da história nacional em oposição aos
valores e interesses europeus.
Em correspondência com esse panorama social, a produção cultural e
artística das elites urbanas do litoral reflete, de um lado, a crise de um Brasil
arcaico e agrário e, de outro, o nascimento de um país moderno e
industrial, como descreve o narrador Isaías Caminha (2005) quando de sua
chegada ao Rio de Janeiro:“Nos confins da minha aldeia natal, eu não podia
adivinhar que o Rio contivesse exemplar tão curiosa do gênero humano,
uma desencontrada mistura de porco e de símio adiantado, [...] exuberante
de gestos inéditos e frases imprevistas” (BARRETO, 2005, p. 15).
Os fatos decorrentes do novo cenário que a República provocava na
sociedade brasileira oscilavam entre o imobilismo e a modernização, cujas
características foram, prontamente, transferidas por Lima Barreto para a
literatura, principalmente porque, além de ser constituída de percepções
divergentes sobre as ações humanas, a arte literária apresentava­se como
um campo fértil para a análise do próprio modo de pensar do homem e do
processo interpretativo que as narrativas exigem por causa da sua
complexa constituição, semelhante à própria existência humana dentro de

­ 139 ­
um determinado período histórico e social.
Sobre a escrita de Lima Barreto, Candido (2000, p. 41) declara que a
representação direta da realidade corresponde à junção dos seus
princípios ideológicos às problemáticas sociais e políticas da época. Esse
teórico destaca essas características como responsáveis pela elevação do
seu processo de criação literária e o define como um ficcionista do outro,
cuja escrita revela “uma inteligência voltada com lucidez para o
desmascaramento da sociedade e a análise das próprias emoções, por meio
de uma linguagem cheia de calor” (CANDIDO, 2000, p. 39), conforme
podemos atestar na passagem em que o narrador de Policarpo Quaresma
descreve o momento em que o personagem percebe as mazelas que
circundam a vida dos que vivem à mercê de um sistema capitalista e
excludente:
Pelos seus olhos passaram num instante aquelas faces
amareladas e chupadas que se encostavam nos portais das
vendas preguiçosamente; viu também aquelas crianças
maltrapilhas e sujas, d'olhos baixos, a esmolar disfarçadamente
pelas estradas; viu aquelas terras abandonadas, improdutivas,
entregues às ervas e insetos daninhos; viu ainda o desespero de
Felizardo, homem bom, ativo e trabalhador, sem ânimo de
plantar um grão de milho em casa e bebendo todo o dinheiro
que lhe passava pelas mãos – este quadro passou­lhe pelos
olhos com a rapidez e o brilho sinistro do relâmpago; e só se
apagou de todo, quando teve que ler a carta que a sua afilhada
lhe mandara (BARRETO, 1993, p. 114).

E, nessa perspectiva, na literatura de Lima Barreto, o conteúdo vale mais


que a forma, já que esta é a “substância da obra” e é ela que garante a beleza
estética traduzida no pensamento do artista (OAKLEY, 2011, p. 4). Nos
textos de Lima Barreto, as ideias se movimentam em palavras que se
agrupam no espaço social que emerge dos problemas do cotidiano das
cidades, especificamente, dos subúrbios do Rio de Janeiro.
Por meio de uma lente que tudo observa e analisa, a narrativa dialoga
com o homem (de todos os tempos), que busca, “por intermédio da Arte,
não ficar restrito aos preceitos e preconceitos de seu tempo, de seu
nascimento, de sua pátria, de sua raça; ele vai além disso, mais longe que
pode, para alcançar a vida total do Universo e incorporar a sua vida na do

­ 140 ­
Mundo” (BARRETO, 2017, p. 279). Sobre o recurso utilizado por Lima
Barreto para transformar as experiências humanas em literatura,
destacamos as concepções de Oakley (2011, p. 5) quando faz referência ao
desejo barretiano de comunicar ideias à humanidade e pela humanidade
por meio de uma inteligência considerável que é expressa por meio da
linguagem, fato esse que marca a superioridade dos homens sobre os
animais.
Para Lima Barreto, é a inteligência que, por meio da linguagem, fornece
ao homem a capacidade de progredir e se desenvolver na sociedade, já que
a linguagem é o seu maior instrumento de comunicação. Além disso, a
linguagem permite “a multiplicação do pensamento do homem, da família,
das nações e das raças, e, até mesmo, das gerações passadas graças à escrita
e à tradição oral que guardam as cogitações e conquistas mentais delas e as
ligam às subsequentes” (BARRETO, 2017, p. 279). A linguagem, enquanto
literatura, amplia “qualquer forma da palavra escrita.” Na literatura de Lima
Barreto, o processo criativo se apresenta como um meio para garantir a
própria unidade da narrativa.
O conjunto da obra do escritor apresenta personagens que representam
indivíduos em conflito com o sistema e, quando são postos em conflitos, se
misturam entre as camadas sociais e as esferas culturais, destacando­se
como menos favorecidos em busca de uma vida diferente das regras
impostas pela classe dominante, conforme observamos na passagem que
expõe a reação de Policarpo quando ele fora, severamente, insultado pelo
coronel durante o trabalho. A linguagem expressa pelo narrador atesta o
processo criativo que envolve as formas de violências, o que é, ao mesmo
tempo, uma violência do Sistema e da linguagem, mas que registra um certo
grau de poeticidade.
Saiu abatido, como um criminoso, do gabinete do coronel, que
não deixava de olhá­lo furiosamente, indignadamente,
ferozmente, como quem foi ferido em todas as fibras do seu
ser. Saiu afinal. Chegando à sala do trabalho nada disse: pegou
no chapéu, na bengala e atirou­se pela porta afora,
cambaleando como um bêbado. Deu umas voltas, foi ao livreiro
buscar uns livros (BARRETO, 1993, p. 61, grifos nossos).

­ 141 ­
Faz­se necessário destacar, nessas passagens, o recurso utilizado por Lima
Barreto para transformar as experiências humanas em literatura, por meio
da linguagem utilizada para marcar a superioridade de alguns homens
sobre outros em seus atos de comunicação. A linguagem é o maior
instrumento de comunicação, mas, segundo Žižek (2010), para se
movimentar no mundo Simbólico, o homem, ao interagir com os outros,
deve obedecer a certas regras exteriores de forma “mecânica”, sem
partilhar o seu mundo interior. E isso observamos nas ações do
personagem diante da situação a que foi exposta. Žižek (2010) reitera que
“de vez em quando uma certa dose de alienação se torna indispensável
para uma coexistência pacífica”, principalmente quando a linguagem, em
sua infinita possibilidade de aplicação, coloniza o homem ao lhe dar uma
falsa sensação de coesão à realidade (ŽIŽEK, 2014, p. 58).
Segundo Lima Barreto (2017, p. 279), quando aplicada à literatura, a
linguagem amplia “qualquer forma da palavra escrita”. Assim, a formação do
personagem Policarpo Quaresma se constitui ao longo da narrativa a partir
de uma linguagem simbólica que explora o homem, em seu ambiente
social, como produto de dominação e exploração dos mais fortes sobre os
mais fracos, social, intelectual e financeiramente.
Uma tarde de sol – sol de março, forte e implacável – aí pelas
cercanias das quatro horas, as janelas de uma erma rua de São
Januário povoaram­se rápida e repentinamente, de um e de
outro lado. Até a casa do general vieram moças à janela! Que
era? Um batalhão? Um incêndio? Nada disso: o Major Quaresma,
de cabeça baixa, com pequenos passos de boi de carro,
subia a rua, tendo debaixo do braço um violão impudico.
(BARRETO, 1993, p. 20 grifos nossos).

Por exemplo, há no excerto acima, o registro de uma violência objetiva,


que é invisível, isto é, apesar da visibilidade do ‘alvoroço’, a violência
expressa, de fato, não é visível na descrição do “alvoroço” que os vizinhos,
mais especificamente as vizinhas, fazem quando da chegada de Policarpo
com um “embrulho” debaixo do braço,“as janelas de uma erma rua de São
Januário povoaram­se rápida e repentinamente, de um e de outro lado”.
Os termos ‘rápida’ e ‘repentinamente’ dão a dimensão da forma como uma

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violência subjetiva, que é visível, se alastra, e “Até da casa do general vieram
moças à janela!”; enquanto a palavra ‘até’, ao delimitar, amplia o espaço que
o evento atingira, já que, paradoxalmente, funciona como preposição,
indicando o espaço final e, ao mesmo tempo, funciona como advérbio de
inclusão, no sentido de que também vêm moças da casa do General. Já as
expressões interrogativas ‘Que era? Um batalhão? Um incêndio?’ fazem
alusão ao engodo fascinante dessa forma de violência subjetiva que torna
invisíveis os contornos desses cenários realmente violentos:“Nada disso: o
Major Quaresma, de cabeça baixa, com pequenos passos de boi de
carro, subia a rua, tendo debaixo do braço um violão
impudico.” (BARRETO, 1993, p. 20, grifos nossos).
Mas se, por um lado, essa forma de linguagem adotada pelo narrador
parece negar a sua postura de narrador­onisciente que demonstra
conhecer tudo, inclusive os pensamentos mais íntimos de Policarpo, por
outro ângulo, esse mesmo narrador “dá o passo para trás que nos permite
identificar a violência objetiva, que é invisível” (ŽIŽEK, 2010, p. 17), que
perpassa a realidade social de seu personagem quando confronta sua
fraqueza moral, como em: “de cabeça baixa, com pequenos passos de
boi de carro”, com as expressões adjetivadas de dominação: “forte e
implacável” era o sol e “impudico” o violão. A pequenez do personagem
expressa no trecho, ainda é, violentamente, acentuada pela diminuição do
respeito e da consideração que os vizinhos lhe dedicam quando já se
manifesta a perda de sua lucidez. Fatos como esses sustentam a análise da
obra na perspectiva žižekiana, pois problematizam os mecanismos de
estruturação da linguagem, mostrando que as ideologias dominam o
indivíduo sem que ele se dê conta disso.
Tais observações comprovam a viabilidade de analisar uma obra do
início do século XX a partir de uma teoria contemporânea, como reforçam
o trabalho criativo nas produções barretianas, o que chamamos aqui de o
“essenciar da linguagem”. No trecho a seguir, observamos mais esse
processo de criação artística.
É verdade que a guitarra vinha decentemente embrulhada em
papel, mas o vestuário não lhe escondia inteiramente as formas.

­ 143 ­
À vista de tão escandaloso fato, a consideração e o
respeito que o Major Policarpo Quaresma merecia nos
arredores de sua casa, diminuíram um pouco. Estava
perdido, maluco, diziam (BARRETO, 1993, p. 20, grifos
nossos).

Alheio aos interesses da ordem Simbólica, Policarpo “continuou


serenamente nos seus estudos, mesmo porque não percebeu essa
diminuição” (BARRETO, 1993, p. 20). Em outras palavras, ele não percebe
a violência subjetiva que esconde, naquele momento, a vitória da ordem
Simbólica. O narrador segue confirmando a teia de violência que envolve
Policarpo Quaresma, e, como que contrariando todas as suas qualidades de
homem pacífico, sua alma ligava­se aos contornos dos atos violentos. Essa
dualidade expressa a essência da existência humana diante de um cenário
que oscilava, historicamente, entre a aceitação de uma nova era e a
resistência às forças de dominação que insistiam em imperar.
Logo aos dezoito anos quis fazer­se militar; mas a junta de saúde
julgou­o incapaz. Desgostou­se, sofreu, mas não maldisse a
Pátria. O ministério era liberal, ele se fez conservador e
continuou mais do que nunca a amar a “terra que o viu nascer”.
Impossibilitado de evoluir­se sob os dourados do exército,
procurou a administração e dos seus ramos escolheu o militar
(BARRETO, 1993, p. 22).

Nesse trecho, o narrador nos apresenta, por meio da linguagem, toda a


violência subjetiva que o ambiente militar carrega: “Era onde [Policarpo]
estava bem. No meio de soldados, de canhões, onde aspirava diariamente
aquele hálito de guerra, de bravura, de vitória, de triunfo, que é bem o hálito
da Pátria”. A estrutura linguística dessa passagem confirma a ideia que
permeia toda a trama – “Vivemos numa sociedade em que existe uma
espécie de identidade especulativa hegeliana dos opostos” (ŽIŽEK, 2014, p.
41), ou seja, em Policarpo, “a violência simbólica social na sua forma mais
pura manifesta­se como o seu contrário, como a espontaneidade do meio
que habitamos, do ar que respiramos”. Žižek se refere a fatos dessa natureza
como a dialética de ‘coincidência’ dos contrários que, em seu grau mais
puro, se configura como não­ideologia, como, por exemplo, quando
analisamos a violência objetiva, que é uma violência invisível, “mas é

­ 144 ­
precisamente ela que sustenta a normalidade do nível zero contra a qual
percebemos algo como subjetivamente violento”. Para Žižek, é por causa
da ideologia subjacente ao discurso liberal que a violência intrínseca ao
sistema capitalista pode ser ocultada e percebida como paz. Isto é, a
própria ideologia é um modo de violência, vista como um mal necessário a
ser suportado.“Na era contemporânea, é o próprio capital que cria o pano
de fundo essencial da realidade” (ŽIŽEK; DALY, 2006, p. 16).
Dentro dessa mesma violência simbólica da linguagem, observamos que
a exposta pacificidade de Policarpo Quaresma se confronta com a aparente
recusa aos atos de violência que permeiam sua vida, justamente porque são
essas formas de violência que definem o núcleo violento da existência
humana, quando de sua entrada no Simbólico. Nesse viés, o fato de
Policarpo ser de natureza calma, tranquila e pacífica, além de destoar de
suas convicções de força e de poder quanto à organização política da
pátria, confirma que os atos de não­violência fornecem o pano de fundo
necessário para formação de sua preferência pelos intentos violentos
(ŽIŽEK, 2014, p. 59). Na narrativa, percebemos como os eventos violentos
estavam impregnados em Policarpo, em sua forma subjetiva, de forma que
não só sustentavam a aparente normalidade, como também referenciavam
seu ideal de patriotismo.
Após sofrer todas as agressões quando de sua internação no hospício,
nosso protagonista surge ressignificado e, novamente, empenhado em seu
projeto de reformar a Pátria, aceita a ideia da afilhada Olga e compra um
sítio, cujo terreno ‘amanhado’ só precisava de boas sementes.
De origem controversa, ‘amanhado’ – de a + manha + ar – pode ser
aplicado, dependendo da regência verbal, a diversos contextos: “cultivar”,
“colocar em ordem”, “preparar para determinado fim”, “arranjar”, tanto no
sentido de melhorar a aparência quanto no intuito de obter algo; além
desses significados, amanhar pode fazer referência a “adaptar­se” e/ou “tirar
proveito”, e todos se encaixam aos projetos de Policarpo.
O termo utilizado para definir o terreno por onde Policarpo pisaria nos
próximos dias confirma o princípio estabelecido para colocar em ação o

­ 145 ­
projeto do personagem para atingir o seu ideal de pátria pela reforma
agrária e, ainda, comprova as inconstâncias e as dualidades que envolviam a
vida do personagem, uma vez que a forma adjetivada como o verbo se
apresenta coloca toda carga de significação na oração seguinte: “só
precisava de boas sementes”. Isto é, ao limitar o estado do terreno à
utilização de “boas sementes”, a linguagem reafirma a dialética da violência
versus paz que envolvia a existência de Policarpo Quaresma.
A segunda parte da trama apresenta, no título do primeiro capítulo,“No
sossego”, uma imagem oposta à representação da violência objetiva –
sistêmica e simbólica – que Policarpo sofrera no final da primeira unidade.
Essa forma de violência ainda é acentuada com o uso do elemento
prepositivo “no”, cujo significado pode fazer referência ao lugar – o sítio
que Policarpo adquirira –, como também pode se referir ao fato de que ele
estava ali para viver “sossegadamente”, logo após ter presenciado e sofrido
a mais terrível das violências:“Saiu o major mais triste ainda do que vivera
toda a vida. De todas as coisas mais tristes de ver, no mundo, a mais triste é
a loucura; é a mais depressora e pungente” (BARRETO, 1993, p. 74). Em
outras palavras, o sítio, cujo nome é “Sossego”, era o lugar ideal para
Policarpo viver sossegadamente, como expresso no título “No sossego”.
Novamente, engajado em um projeto nacional, Policarpo não vê a força
destruidora do capital que age por trás das condições existentes, cuja
visibilidade mantém a força da violência sistêmica na invisibilidade, como
percebemos na citação a seguir:
Ele foi contente. Como era tão simples viver na nossa
terra! Quatro contos de réis por ano, tirados da terra,
facilmente, docemente, alegremente! Oh, terra abençoada!
Como é que toda a gente queria ser empregado público,
apodrecer numa banca, sofrer na sua independência e no seu
orgulho? Como é que preferia viver em casas apertadas,
sem ar, sem luz, respirar um ambiente epidêmico, sustentar­se
de maus alimentos, quando se podia tão facilmente obter uma
vida feliz, farta, livre, alegre e saudável? (BARRETO, 1993, p. 75­
76, grifos nossos).

A linguagem utilizada pelo escritor é simples, direta. É a linguagem do


cotidiano que deixa transparecer o ideal nacionalista de Policarpo

­ 146 ­
Quaresma amparado, dessa vez, no trabalho com a terra, isto é, se o homem
poderia ser feliz longe da cidade, afastado dos malefícios que o serviço
público oferecia, por que não opta pela vida simples e feliz no campo? A
linguagem utilizada é a linguagem do mundo moderno, que seduz e
violenta o indivíduo. É negativa. O narrador aponta os benefícios da vida no
campo, por meio dos advérbios “facilmente, docemente, alegremente”, cuja
sequência é evidenciada no final do período com os adjetivos “feliz, farta,
livre, alegre e saudável”. A vida na cidade é descrita a partir das condições
do trabalho – o carreirismo político – que condiciona o indivíduo a
“apodrecer numa banca”, preso a falsos conceitos de privilégios, ou seja,
para permanecer no trabalho e garantir o posto e/os recursos, tudo fazia. O
homem torna­se dependente da classe dominante e esquece seus valores,
como observamos em: “O doutor Florêncio era o único paisano da roda.
Engenheiro e empregado público, os anos e o sossego da vida lhe tinham
feito perder todo o saber que porventura pudesse ter tido ao sair da escola.
Era mais um guarda de encanamentos do que mesmo um
engenheiro” (BARRETO, 1993, p. 75­76).
A violência da linguagem também pode ser percebida nas expressões
“viver em casas apertadas, sem ar, sem luz, respirar um ambiente
epidêmico” (BARRETO, 1993, p. 63, grifos nossos), uma vez que o problema
não está na materialidade dos termos e sim na imagem projetada sobre
como o indivíduo experiencia a si mesmo nesse contexto – o
funcionalismo público prende, sufoca e cega o homem, eis aqui o trabalho
de “essenciar” da linguagem de Lima Barreto. Isso pode ser explicado a
partir da relação que Žižek faz com as palavras e sua capacidade de
“essenciar”. “Tradicionalmente, a ‘essência’ se refere a um núcleo estável
que garante a identidade de uma coisa e o ‘essenciar’ é o ato de criar
essências, que é o trabalho da linguagem” (ŽIŽEK, 2014, p. 63). E a escrita de
Barreto demonstra esse trabalho da linguagem que se faz violenta por meio
de expressões aparentemente pacíficas e sem grandes estruturações
linguísticas.
Indiferente à violência que a vida no campo provoca, Policarpo segue

­ 147 ­
seu plano de reformar a agricultura: compra livros, estuda­os, compra
instrumentos, tenta utilizá­los, mas muitos ficam “jogados”,“esquecidos”, e,
numa linguagem poética, os instrumentos adquiridos para ajudar a
reformar a pátria, assim como Policarpo, eram igualmente violentados pela
indiferença e pela solidão que envolviam suas “tristes” vidas:
O barômetro aneroide continuava a um canto a dançar o seu
ponteiro sem ser percebido; o termômetro de máxima e
mínima, legítimo Caselha, jazia dependurado na varanda sem
receber um olhar amigo; a caçamba do pluviômetro estava no
galinheiro e servia de bebedouro às aves; só o anemômetro
continuava teimosamente a rodar, a rodar, já sem fio, no
alto do mastro, como se protestasse contra aquele desprezo
pela ciência que Policarpo representava (BARRETO, 1993, p.
107, grifos nossos).

A linguagem de Lima Barreto é referencial, sem excessos linguísticos,


sem ambiguidades de sentidos, mas a forma como, dela, o escritor se
apropria garante a plurissignificação dos sentidos das palavras, o seu
essenciar da linguagem. O trecho expressa, na linguagem simbólica, a
existência “sem sentido” de Policarpo, que, analogamente, corresponde ao
vazio do anemômetro, que continuava, mesmo sem força (sem fio) e “só”,“a
rodar”, “a rodar”, lutando contra a violência que o mundo Simbólico (o
anemômetro e Policarpo) envolvia por meio de uma situação real que só
ganha um sentido através da linguagem, que é utilizada para explicar a
dinâmica das relações sociais, econômicas e políticas.
A linguagem da narrativa, ao expressar o espírito inquietante do
personagem, luta para “criar” uma realidade em que as ações dele se
contradizem, mas nem por isso devemos simplesmente condená­lo por seu
temperamento orgulhoso ou agressivo, nem dele nos apiedar. As
contradições são parte do Sujeito lacaniano, por isso, Policarpo é um
exemplo do sujeito barrado6, que, em busca de sua subjetivação, tudo
6. O sujeito caracterizado como barrado é vazio e, na teoria lacaniana é representado pelo signo
“$”, que representa o sujeito barrado – irremediavelmente dividido pelo significante em sua
relação com um objeto –, cuja fantasia pode ser vista como uma estrutura que o constitui na
ordem de ser. O sujeito “$” é assim denominado porque representa o vazio de sua existência
dentro da ordem Simbólica. É o sujeito que, sem “nome”, transita pelo Simbólico em busca de
preencher “O hiato entre sua identidade psicológica e a sua identidade simbólica (a máscara ou o
título simbólico que usa, definindo o que ele é para e dentro do grande Outro) é o que Lacan
chama de castração simbólica” (ŽIŽEK, 2010, p. 46, grifos do autor).

­ 148 ­
contornava, ou se exaltava, ora se resignava e se reconfortava, por isso
precisa “explodir”, como nos primeiros dias em que tentava, em vão, usar a
enxada:“O major enfurecia­se, tentava outra, fatigava­se, suava, enchia­se de
raiva e batia com toda a força” (BARRETO, 1993, p. 78). Os conhecimentos
adquiridos às custas de muita dedicação não condiziam com a brutalidade
que o trabalho braçal exigia dele naquele projeto, e, dessa forma, a natureza
dessa narrativa é violenta em sua linguagem simbólica e sistêmica.
Em outro momento, quando Policarpo estava tranquilo, sempre
depois do jantar, quando ia atirar migalhas de pão às aves, o
narrador nos presenteia com os arroubos de violência que
agradavam ao personagem: “Ele gostava desse espetáculo,
daquela luta encarniçada entre patos, gansos, galinhas,
pequenos e grandes. Dava­lhe uma imagem reduzida da vida e
dos prêmios que ela comporta” (BARRETO, 1993, p. 79, grifos
nossos). Tal como no seu interesse em ficar próximo às coisas
bélicas, Policarpo encontrara no sítio um evento em que podia
associar à luta sangrenta os dois polos que separam os homens
em sua existência social – os que vencem e os vencidos: “Era
onde estava bem ao aspirar aquele hálito de guerra” (BARRETO,
1993, p. 79).

Essa passagem também colabora para explicar a estrutura da narrativa


construída a partir da dialética dos contrários, que Žižek (2014) atualizou
de Hegel, a qual funciona como um dispositivo frequentemente utilizado
para esconder o exercício sistemático da violência – aquela que não
produz impacto na sensibilidade humanitária das sociedades modernas. A
existência de Policarpo liga­se, diretamente, a essa dialética dos contrários,
uma vez que seu comportamento e suas ações remetem à paz, mas os
efeitos chamam atenção para uma violência não problematizada, que é
efeito também – mas não ousamos dizer que é exclusivamente do
capitalismo vigente. O mesmo processo verificamos quando o narrador de
Policarpo apresenta a passagem em que empregador e empregado
descansam à sombra de uma árvore:
Então, aí por depois do meio­dia, quando o calor parecia
narcotizar tudo e mergulhar em silêncio a vida inteira, é que o
velho major percebia bem a alma dos trópicos, feita de
desencontros como aquele que se via agora, de um sol alto,
claro, olímpico, a brilhar sobre um torpor de morte, que

­ 149 ­
ele mesmo provocava (BARRETO, 1993, p. 78, grifos nossos).

Em meio ao trabalho braçal que envolve a narrativa, mais uma vez, a


linguagem se faz simbólica para registrar a violência do momento. São
fortes e claras as manifestações da violência sistêmica, cuja linguagem, a
partir de descrições minuciosas, acentua violentamente a distância entre
pobres e ricos.
A literatura de Lima Barreto, cujos personagens sofrem por não se
ajustarem às condições de vida proporcionadas pela República recém­
proclamada, coaduna­se às ideias de que a existência dos indivíduos está
condicionada a uma constante angústia, materializada nos diversos
confrontos que surgem em meio aos processos de ajuste e de aceitação dos
valores socialmente estabelecidos. A história dos personagens em meio aos
espaços históricos, especificamente na cidade do Rio de Janeiro, aparece
na prosa barretiana como pano de fundo para “amarrar” as especificidades
– históricas e sociais – contraditórias da sua época aos demais elementos
estruturantes da narrativa enquanto categoria literária de representação do
homem e de sua história, por meio de uma linguagem, cuja essência traduz
o processo criativo de um escritor que priorizou a arte em todas suas
potencialidades.

Considerações finais

A escrita de Barreto aponta a condição humana como uma espécie de


ponto de partida como um ser individual e, ao mesmo tempo, coletivo,
exatamente porque os aspectos exteriores da realidade são substituídos
pelos conceitos da verdade da essência do ser, os quais foram incorporados
aos trabalhos artísticos com as palavras. Lima Barreto sempre fora
apontado como um escritor autobiográfico, mas o conjunto de sua obra
ultrapassa os conceitos da descrição da realidade vista ou vivenciada por
ele, uma vez que a verdade do autor confunde­se com a verdade da arte, tal
qual expressa por Badiou (2002, p. 22):“Tanto no caso de Platão quanto no
caso de Brecht, a tendência didática mede a relação entre arte e a verdade

­ 150 ­
a partir da capacidade – ou incapacidade – da arte de sair fora de si mesma”.
Ou seja, a literatura real de Lima Barreto se mistura com a ficção, de forma
que a verdade da arte ultrapassa os limites do imaginário. E isso confere ao
texto a essência do real sob o ponto de vista ideológico do autor.
A sua literatura, como expressão de liberdade, já nasce comprometida
com os valores ideológicos que o autor espontaneamente incorporou à sua
visão do mundo, que pode ser analisada a partir das relações entre
ideologia e obra de arte literária em sua ficção, embora ideologia, para
Badiou (2002), não seja obra de arte literária, mas pode uma ideologia gerar
uma obra de arte literária autêntica, desde que se resguarde a autonomia do
processo estético, como ocorre na ficção barretiana, já que a realidade de
seus personagens representa uma nova realidade, que é resultado de uma
criação estética.
Nessa perspectiva, apresentamos as concepções de Magalhães (2002)
quando associa o fazer estético da literatura às condições das práticas de
produção na sociedade. Para essa estudiosa da literatura, “a estética, a
ciência e a prática cotidiana refletem a mesma realidade objetiva. Embora
os resultados sejam distintos quanto à forma e ao conteúdo, há relações
fecundas e recíprocas entre esses campos que, inclusive, exercem
estímulos uns sobre os outros” (MAGALHÃES, 2002, p. 68­69).
Nessa perspectiva, destacamos que o fazer estético de Lima Barreto não
é apenas um trabalho com a escrita, mas também um modo particular de
expressão da arte, e essa característica explica a elaboração especial (arte)
das palavras num determinado texto, pois elas ganham significados amplos,
figurados e simbólicos que servem não apenas para informar um fato, mas
também para sensibilizar e ultrapassar os limites da simples reprodução da
realidade, isto é, Lima Barreto vai além da mera informação ou de uma
proposta de reflexão sobre a condição humana.
Enfim, só a arte permite, ao homem, a descoberta de novas dimensões e
novos sentidos para a palavra. Mas, enquanto arte, há, na literatura, uma
relação muito forte entre o homem e sua conjuntura histórica. É o homem
que constrói a sua história, porém ele está sujeito a receber noções

­ 151 ­
coletivas de verdades, instituições, moralidades e conceitos, e estes estão
sempre se renovando, o que provoca uma relação interativa entre o
homem e o seu tempo, acarretando, consequentemente, uma
transformação artística constante, que, em Lima Barreto, permanece atual.
Numa sociedade dividida em classes desiguais, o reflexo da vida que
proporciona a literatura leva necessariamente a marca das ideias e das
posições ideológicas do seu autor. Em outras palavras, a literatura de Lima
Barreto atua e participa, a seu modo, como é evidente, na luta de classes, e,
apesar de não ser sempre de forma consciente, amplia os significados, cria
um universo particular, o que caracteriza uma realidade subjetiva e
ficcional.

Referências

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Appenzeller. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.

BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. 11. ed. São Paulo:
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Ática, 1998.

BARRETO, Lima. O destino da literatura. In: RESENDE, Beatriz (Org.). Lima


Barreto: Impressões de Leitura e outros textos críticos. 1. ed. São
Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2017. p. 265­282.

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 8. ed. São Paulo: T. A.


Queirós; Publifolha; Cia. Ed. Nacional, 2000. (Grandes nomes do
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OAKLEY, Robert John. Lima Barreto e o destino da literatura. São


Paulo: Editora Unesp, 2011.

OLIVEIRA, Maria Betânia da Rocha de Oliveira. Policarpo Quaresma

­ 152 ­
entre o Imaginário e o Real de Zizek: O triste fim nas teias da
violência sistêmica e simbólica da linguagem. 166 f. Tese (Doutorado em
Letras) ­ Universidade Estadual de Maringá, Programa de Pós­Graduação
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­ 153 ­
­ 154 ­
A ESCRITA HISTÉRICA DE CLARICE LISPECTOR
Diego Luiz Miiller Fascina

Pelo olhar de Slavoj Žižek e de outros estudiosos da obra lacaniana, que


transportam as questões da clínica para o escopo social , é possível
perceber que há, na obra de Lispector, dois momentos distintos, quando o
tema é a linguagem: há um “rabisco” (no sentido de esboço de um estilo em
gestação) iniciado em 1943, com a publicação do romance inaugural, Perto
do coração selvagem, e que, de certa maneira, percorrerá toda a ficção da
autora, permitindo uma contínua releitura de temas e situações comuns.
No entanto, nota­se com mais rigor que, a partir de A maçã no escuro, de
1961, Lispector inicia um percurso de amadurecimento instrumental, em
que os problemas consequentes de uma não “completamente clara
colocação do problema ontológico” (CASTRO, 1976, p. 264) se despojam
dos últimos dados naturalistas para enriquecerem expressivamente a
ficção moderna brasileira.
Do rabisco inicial, a linguagem de Clarice Lispector assume, a partir
desse romance, um risco claro que permeará as publicações seguintes. A
palavra risco assume duplo sentido. O primeiro, no sentido de seta que,

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nessa jornada, terá a linguagem longamente indagada em A paixão
segundo G.H e uma posterior radicalização da mesma em Água viva. No
entanto, risco também se refere ao projeto audacioso de uma escrita que se
propõe a dizer o indizível.
Esse amadurecimento artístico, como afirmamos anteriormente, pode
ser visto pelo prisma do materialismo lacaniano. Ao nos apossarmos dos
estudos a respeito dos quatro discursos lacanianos, é possível
compreender que os três primeiros romances funcionam como Discurso
do Mestre, situados tranquilamente na posição revolucionária que o
movimento modernista pregou. No entanto, a linguagem da autora passa
por um processo de histericização e, a partir de A maçã no escuro, vemos,
crescentemente, o Discurso do Mestre ser substituído pelo Discurso da
Histérica, questionando essa linguagem já estabelecida, indagando novas,
bem como o próprio processo ficcional.
Em determinado ponto de sua teoria, Jacques Lacan (1992) se
questionou acerca do que significa tomar e fazer uso da palavra e quais as
implicações desse ato. Para o psicanalista francês, afirmar que alguém toma
a palavra implica considerar que este alguém se coloca num determinado
espaço, ocupando certo lugar e que, ao usar a palavra, faz uso da língua,
endereçando­a a alguém. Há também certo poder, no sentido de que um
controle é exercido enquanto se age sobre o outro.
Partindo dessa realidade, Lacan (1992) construiu uma proposição
teórica, apresentando os quatro discursos que organizam, sem
necessariamente nos darmos conta, as nossas palavras e que criam/
questionam relações de poder a partir do lugar ocupado pela voz
questionadora. São eles: o Discurso do Mestre (ou do Senhor ou Amo), o
Discurso Universitário (ou do Saber), o Discurso do Analista e o Discurso
da Histérica. A noção de discurso visa à inscrição daquilo que funda a
palavra nos seus efeitos. Ele permite a percepção do que se passa quando
se faz uso da palavra.
Roberto Harari (1990) afirma que os quatro discursos permitem
entender a posição que o analista ocupa. Como o crítico aponta:

­ 156 ­
o analista deseja parecer aquilo que não é, o que não implica a
subjetividade, nem os afetos, e nem sequer a situar­se como
primeira pessoa que se encarrega do enunciado – quando se
“interpreta” a partir da contratransferência e se produzem
somente confissões que pouco ou nada têm a fazer na direção
da cura analítica. Porque, se o usamos como exceção, é devido a
uma manobra tática incluída numa estratégia. O desejo do
analista pressupõe uma estrutura da interpretação na qual o
analista se “submerge”; assim não mantém relação alguma com
uma inefável, inobjetivável contratransferência afetiva
(HARARI, 1990, p. 43).

Na esteira dessa discussão, Bruce Fink (1998) salienta que as mudanças


que o analista faz, ao situar­se nos discursos, precisam respeitar algumas
condições. Ele diz que o analista nem sempre funciona no Discurso
Analítico, podendo assumir a posição do Discurso da Universidade, do
Mestre e, mesmo de maneira mais problemática, o Discurso da Histérica
Para entendermos a configuração que o Discurso da Histérica propõe a
esses corpora, é preciso esclarecer a relação que tal discurso mantém com
os demais. Para Lacan (1992), os discursos constituem diferentes tipos de
laços sociais. O psicanalista buscou, na teoria matemática, a noção de
algoritmo para apresentar, formalmente, quatro posições: o agente, o outro,
a produção e a verdade. Essas posições são ocupadas por quatro termos
diferentes: S, significante­mestre; S², o saber; $, o sujeito barrado; e a, o
pequeno objeto a, também conhecido como objeto causa do desejo e mais
gozar. Com ordem fixa, os movimentos em um quarto de volta resultam nas
quatro modalidades já citadas.
O psicanalista francês não se preocupou em lançar um esquema de
interpretação histórica quando aciona a teoria dos quatro discursos,
embora seja possível associar determinados fenômenos históricos a
determinados discursos, como o próprio Lacan fez ao relacionar o
capitalismo, a ciência moderna e a burocracia ao Discurso da Universidade.
O Discurso do Mestre é o primeiro utilizado por Lacan e, por isso, ocupa
um lugar privilegiado, sendo considerado a matriz de todo vínculo social
estabelecido pela palavra. Fink (1998) aponta que esse discurso incorpora
a função alienadora do significante ao qual estamos todos assujeitados e,
consequentemente, “o mestre deve ser obedecido – não porque nos

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beneficiaremos com isso ou por alguma outra razão desse tipo – mas
porque ele assim o diz. Não há razão para que ele tenha poder: ele
simplesmente tem” (FINK, 2009, p. 161).
No Discurso da Universidade, o saber ocupa o lugar de agente para
controlar o objeto, enquanto o mestre ocupa o lugar da verdade. O saber
desse tipo de discurso vai, inteiramente, contra a ideia de inconsciente,
imperando, no lugar, todo tipo de razão. A princípio, Lacan (apud FINK,
1998) associa esse discurso com a formalização científica e,
posteriormente, faz ligações com o Discurso da Histérica. As instituições de
tipo clerical ou burocrática são exemplos significativos desse tipo de
discurso.
Mais um quarto de rotação e há o Discurso do Analista. Nesse discurso, é
o analista que funciona como objeto a, provocando a palavra do
analisando. A análise supõe um saber no lugar da verdade e o analista
interroga o sujeito na sua divisão, “precisamente naqueles pontos onde a
clivagem entre o consciente e o inconsciente aparece: lapsos de língua,
atos falhos e involuntários, fala ininteligível, sonhos etc.” (FINK, 2009, p.
166).
Finalmente, e para nosso interesse concreto, o Discurso da Histérica é o
quarto gerado pela sucessão de voltas. Os três discursos citados
preocupam­se em estabelecer formas particulares de vínculos sociais por
meio da relação de palavras. É problemático situar a Histérica diante deles
pelo fato de que, na clínica, a histeria tem uma postura que mais parece a
recusa de um vínculo.
É certo que o Discurso da Histérica ultrapassa a histeria como neurose,
pelo fato de que o sujeito barrado corresponde não a uma histérica, mas a
qualquer sujeito desejante que interroga o Mestre por um suposto saber
acerca do objeto. No entanto, Lacan não exclui esta, utilizando­a na
estrutura elementar desse quarto discurso. Dessa maneira, ao considerar a
estrutura clínica, o psicanalista não pretende discutir questões a respeito
de perfis patológicos, mas, sim, a respeito do laço discursivo em jogo.
Não importa, para tal fim, que “seja”, por exemplo, histérico ou
obsessivo; o que importa é que o dispositivo analítico funcione.

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Se funciona, deve histerizar o analisando, sem que se trate de
nenhum tipo de manobra em particular. Em virtude do desejo
do analista como suporte, com suas quedas, desfalecimentos
etc., se produz a histerificação do analisando, para além de sua
patologia singular. Assim, colocar­se­á na posição do
questionador, do demandante, o que fica indicado pelo fato de
ele ser, no matema, atravessado por uma barra (HARARI, 1990,
p. 44).

Talvez a razão que justifique a transposição da histérica como agente de


um discurso seja o fato de que Lacan a enxerga como um enigma que exige
uma resposta. Fink (1998) salienta que esse enigma se instaura porque a
histérica instiga o Discurso do Mestre até concluir que falta saber ao
mestre e, nesse processo de demanda, tenta invalidar suas teorias.
Para Žižek (2012), os quatro discursos lacanianos são transportados da
relação empreendida entre analista e analisante e alcançam o escopo social
– e é essa transposição que permite tal aplicação na linguagem literária. Ele
coteja à historicidade inscrita na matriz dos quatro discursos a
historicidade do desenvolvimento moderno na Europa.
Dessa maneira, o Discurso do Mestre não representa o mestre
pré­moderno, mas a monarquia absolutista, essa primeira figura
da modernidade que efetivamente minou a rede de articulação
das relações e interdependências feudais: É o “Rei­Sol” Luís XIV
com o seu l’état, c’est moi que é o mestre, adulado por
excelência. O Discurso da Histérica e o do Universitário
desdobram duas consequências da vacilação do reino direto do
Mestre: o governo técnico da burocracia que culmina na
biopolítica, reduzindo a população a uma coleção de Homo
Sacer; e o estouro da subjetividade capitalista histérica que se
reproduz por meio da permanente autorrevolução, mediante a
reintegração do excesso no funcionamento “normal” do liame
social. A fórmula de Lacan dos quatro discursos nos permite
desdobrar as duas faces da modernidade (administração total e
dinâmica capitalista­individualista) como duas maneiras de
minar o discurso do Mestre: a dúvida sobre a eficácia da figura
do poder ser suplementada pelo governo direto
dos experts legitimados por seu saber, ou o excesso de dúvidas,
de permanente questionamento, pode ser diretamente
integrado na reprodução social. Finalmente, o discurso do
Analista representa a emergência da subjetividade
revolucionária­emancipatória que resolve a divisão da
universidade e da histeria. Nele, o agente revolucionário –
objeto a – se dirige ao sujeito a partir de uma posição de saber

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que ocupa o lugar da verdade, e o objetivo é isolar, se livrar do
significante mestre que estruturou o inconsciente (político­
ideológico) do sujeito (ZIZEK, 2012, s/p.).

Com base no exposto, vejamos como o Discurso da Histérica lança luzes


para compreendermos as transformações que a linguagem do romance de
Clarice Lispector sofreu no decorrer de sua evolução.
Afirmar que a linguagem ficcional de Lispector pode ser globalmente
visualizada por meio do Discurso da Histérica nos parece inexato. Fazemos
essa afirmação pelo fato de que, em um primeiro momento – que
contempla desde a publicação de Perto do coração selvagem à de A
cidade sitiada, o terceiro romance, –, sua escrita revolucionária, como já
citamos, segue à risca a renovação proposta pelo movimento modernista.
Percebe­se que seus três primeiros romances são estilisticamente
parecidos e, em maior ou menor grau, cumprem a proposta de exibir um
intimismo que se reflete em uma espécie de conflito linguístico:
“vocábulos que perdem o sentido comum e ganham uma expressão sutil,
de tal forma que a língua adquire o mesmo caráter dramático do
enredo” (SÁ, 1979, p. 103).
Mas é com a publicação de A maçã no escuro que a autora dá um salto
em sua proposta inicial. Podemos aproximar a linguagem desse romance
do Discurso da Histérica a fim de visualizarmos a vacuidade do signo
linguístico, exposto por meio das inadaptações do protagonista que se
sente estrangeiro em sua língua. Com visão panorâmica, percebe­se que
esse discurso serve para apontar a maturidade que a escritora atingiu após
a publicação de tal romance e a revolução que sua obra causou no
panorama da literatura brasileira.
Curiosamente, o narrador de A maçã no escuro, ao apresentar o
percurso de Martim, nomeia de “grande pulo” o ato do protagonista. O
grande pulo tem duplo sentido, uma vez que também pode ser entendido e
usado para apontar a evolução entre a linguagem anterior e a que viria a ser
utilizada após a publicação desse romance.
O crime do protagonista corta sua vida em dois blocos: o primeiro é
construído por convenções sociais e gastas palavras, que denunciam um

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mundo automatizado e repleto de medo em se rebelar contra o que é
historicamente cultuado. A tentativa de assassinar a esposa se transforma
em um ato decisivo e a linguagem põe­se como denunciadora dessa
tentativa de reconstruir seu modelo de vida. Isolando­se da vida urbana e
refugiando­se na fazenda, o narrador aponta o itinerário do homem:
Sua reconstrução tinha de começar pelas próprias palavras,
pois palavras eram a voz de um homem. Isso sem falar que
havia em Martim uma cautela de ordem meramente prática: do
momento em que admitisse as palavras alheias,
automaticamente estaria admitindo a palavra “crime” – e ele se
tornaria apenas um criminoso vulgar em fuga. E ainda era muito
cedo para ele se dar um nome, e para dar um nome ao que
queria (LISPECTOR, 1972, p. 144).

O Discurso da Histérica questiona as convenções linguísticas durante o


percurso de Martim. As palavras, com seus significados culturalmente
estabelecidos, precisam ser dessubstancializadas para que narrem o novo
mundo do protagonista. Em termos lacanianos, trata­se do movimento da
Histérica se dirigindo ao Discurso do Mestre e questionando não apenas
sua posição privilegiada, mas, também, querendo assumir o patamar de
linguagem oficial, fato que ocorrerá, na visão global da obra da autora,
como veremos nas análises seguintes.
O início da tentativa de se desamarrar do terreno já conhecido e seguro
da linguagem é o momento em que Martim encontra um pássaro ferido,
quando inicia sua fuga rumo ao descampado. Ao segurar a ave, o homem
afirma: “não sei mais falar” (LISPECTOR, 1972, p. 25). Essa constatação
coloca o protagonista no trampolim de seu movimento de renovação e nos
guia ao seu próximo pensamento: “perdi a linguagem dos
outros” (LISPECTOR, 1972, p. 25).
Por não compartilhar com a linguagem corrente, seus atos posteriores
serão fluidos, mais aludidos do que concretos; isso quer dizer que a
aproximação com as demais personagens deve ser, para Martim, devagar e
penosa. Observa­se que o leitor também ocupa papel difícil nessa narrativa,
pois a gestação de uma nova linguagem exige dele uma percepção mais
aguçada dos fatos narrados, caso contrário, poderá se perder nos

­ 161 ­
entremeios do romance.
O próprio silêncio que perpassa a narrativa de A maçã no escuro pode
ser entendido como um enfrentamento do Discurso da Histérica à
linguagem padrão. Como diz Eni Orlandi (1997), o silêncio não fala, ele
significa. Há, no romance, a recorrência de elipses, implícitos e outras
figuras que colaboram para o mutismo de Martim e das primas.Todavia, é a
incompletude que cria a atmosfera nebulosa do texto, isto é, o silêncio
preside a possibilidade de histericizar a linguagem, pois quanto mais falta,
mais possibilidades de sentidos se apresenta, de modo que o Discurso do
Mestre se anula mediante a polissemia não apenas das palavras “crime”,
“salvação”, “piedade”, mas também dessa dispersão de sentidos que o
silêncio ocasiona.
Os fragmentos a seguir comprovam o que estamos a discutir: “aquele
homem rejeitara a linguagem dos outros [...] e no entanto, oco, mudo,
rejubilava­se” (LISPECTOR, 1972, p.28), pois “nunca se lembrara de
organizar sua alma em linguagem, ele não acreditava em falar – talvez com
medo de, ao falar, ele próprio terminar por não reconhecer a mesa sobre a
qual comia” (LISPECTOR, 1972, p. 34).
Ainda sobre o silêncio, importa dizer que este se desenvolve não apenas
nas relações humanas. Martim teve de apreender as vontades dos animais
no curral num difícil quietismo, e Vitória, ao observar as flores do jardim,
diz a Ermelinda: “já que moramos junto tive que aprender sua
linguagem” (LISPECTOR, 1972, p. 66).
A respeito do jardim, era lá que o protagonista passava boa parte do
tempo, pois “o silêncio das plantas estava no seu próprio diapasão: ele
grunhia aprovando. Ele que não tinha uma palavra a dizer. E que não queria
falar nunca mais” (LISPECTOR, 1972, p. 71). Em relação às palavras, a
primeira desconstrução proposta por Martim é a de “crime”. O
protagonista só conseguirá passar por ela quando crime não for mais crime
no sentido sociocultural, mas, sim, um ato transgressor e necessário:
“Crime”? Não. “O grande pulo” – estas sim pareciam palavras
dele, obscuras com o nó de um sonho. Seu crime fora um

­ 162 ­
movimento vital involuntário como o reflexo do joelho à
pancada: todo o organismo se reunira para que a perna, de
súbito incoercível, tivesse dado o pontapé. E ele não sentira
horror depois do crime. O que sentira então? A espantada
vitória (LISPECTOR, 1972, p. 29).

Martim titubeia na construção da nova forma de comunicação. No


discurso lacaniano, a Histérica anima o Outro a produzir um saber, e é dessa
maneira que a linguagem vai despontando no romance: era preciso rigor e
leve tato nesse novo mundo que, gradativamente, ia sendo preenchido por
uma linguagem inovadora que trazia consigo estranhamento, mas
simultaneamente esclarecia o rumo de Martim e das primas.
É a partir do novo entendimento de “crime” que a diegese caminha de
maneira mais expressiva. Essa é a palavra­chave da vida do protagonista, por
meio da qual ele se torna apto para amadurecer outras palavras e
sentimentos desconhecidos. Esse amadurecimento funciona como via
crucis para Martim que, em uma perspectiva lacaniana, inicia sua entrada
no Simbólico, por intermédio de contatos com os vegetais, o bosque e o
descampado, mugidos com as vacas e uma relação marcada de silêncio e
solidão com os demais seres humanos que habitam a fazenda. Expulsando
o Real, Martim sente­se seguro e amparado por sua linguagem clandestina:
Mas “crime”? A palavra ressoou vazia no descampado, e
também a voz da palavra não era sua. Então, finalmente
convencido de que não seria capturado pela linguagem antiga,
ele experimentou ir um pouco mais longe: sentira por acaso
horror depois de seu crime? O homem apalpou com minúcia
sua memória. Horror? E no entanto era o que a linguagem
esperaria dele. Mas também horror se tornara palavra de antes
do grande pulo cego que ele dera com o seu crime. O pulo
tinha sido dado. E o salto fora tão grande que terminara se
transformando no único acontecimento com o qual ele podia e
queria lidar. E até os motivos do crime haviam perdido a
importância. A verdade é que o homem com sabedoria abolira
os motivos. E abolira o próprio crime. Tendo certa prática de
culpa, sabia viver com ela sem ser incomodado (LISPECTOR,
1972, p. 29).

Assim se inicia a nova vida de Martim, transformada em nova maneira de


se expressar. Trata­se, nesse momento, do Discurso da Histérica
questionando a posição do Mestre e indagando, por meio dessa nova

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linguagem, os próximos passos e as relações do protagonista, pois, como já
afirmamos, a questão do sujeito ancorado nesse discurso é animar o Outro
a produzir um saber, fazê­lo trabalhar.
A introdução do Discurso da Histérica, no romance, dá início ao
reconhecimento de Martim como novo ser. Após a palavra “crime”, outras
palavras ganham novos significados. Não apenas o protagonista, mas as
demais personagens também passarão por esse ato de histericizar o
discurso vigente, como podemos perceber no momento em que Vitória,
sem conseguir distinguir o sentimento pelo forasteiro, era “tocada por
aquilo a que não se sabe que nome dar” (LISPECTOR, 1972, p. 205) e, em
outros momentos, quando alude a seu estado de espírito:“acho que isso é
ser feliz” (LISPECTOR, 1972, p. 255).
No entanto, percebe­se que o questionamento oriundo desse discurso
faz com que o protagonista tenha dúvidas sobre o poder dessas palavras,
bem como sobre a reapropriação delas em sua vida:
Salvação? Seu coração então bateu com força como se os
limites tivessem caído. Pois, quem sabe, talvez fosse esta a
grande barganha que ele poderia fazer – a salvação.Tudo então
que em Martim era individual, cessou. Ele só queria agora se
agregar aos salvos e pertencer – o medo levara­o a isso. À
salvação. E com o coração ferido de surpresa e alegria, pareceu­
lhe por um instante que acabara de encontrar a palavra. Seria à
procura dessa palavra que ele saíra de casa? Ou de novo seriam
apenas os restos de uma palavra antiga? Salvação – que palavra
estranha e inventada, e o escuro o rodeava. Salvação? Ele se
espantou. E se fosse esta a palavra – seria então assim que ela
acontecia? Então tivera ele que viver tudo o que vivera para
experimentar o que poderia ter sido dito numa só palavra? Se
essa palavra pudesse ser dita, e ele ainda não a dissera. Andara
ele o mundo inteiro, somente porque era mais difícil dar um só
e único passo? Se esse passo pudesse jamais ser dado!
(LISPECTOR, 1972, p. 195)

Após esse e outros questionamentos, Martim compreende que o


percurso iniciado estaria se unindo ao começo, como num “círculo fatal
perfeito” (LISPECTOR, 1972, p. 122) e que, apesar de sua tentativa de
renovação, as palavras não seriam suficientes para preencher suas
vontades. Desde o princípio do romance, nota­se que a linguagem não seria

­ 164 ­
capaz de abarcar a aventura de Martim. Primeiramente, pelo fato de negar o
uso de diálogos, preferindo aludir ou imitar os sons dos animais. Mesmo
perdendo o interesse pela linguagem convencional, pois sabia o quão vazia
de significado ela pode ser, pretende esquecê­la; no entanto, negando o
diálogo, faz uso do monólogo interior com as mesmas gastas palavras,
duplicando­as, dessa forma, em seus próprios diálogos.
Em termos lacanianos, é o Discurso da Histérica querendo saber sempre
mais e expondo, de forma mais evidente, esse furo no significante. Tal
discurso quer saber sobre a verdade de seu gozo; no entanto, a dramática
falência da linguagem é própria do Discurso da Histérica, que, ao
questionar o tempo todo essa verdade, se dá conta de que o Outro não sabe
de nada. Para clarificar esse exemplo, podemos imaginar um paciente
questionando, incessantemente, seu analista e que, por fim, percebe que
este não pode adivinhar, de fato, seus pensamentos.
Em outras palavras, e endossando o que Benedito Nunes (1995) discute
a respeito da linguagem de A maçã no escuro, percebemos que, na “busca
de palavras novas ou de novos significados para seu ato, à luz dos quais
reinterpreta um passado comprometedor, o herói apenas conquista, por
toda identidade, uma máscara verbal, retórica” (NUNES, 1995, p. 51), de
maneira que as palavras, ao mesmo tempo em que o formam, o deformam,
pois a linguagem desse romance equilibra­se num misto de simulação e
ocultamento – características que, também, podem ser lidas como
presentes no Discurso da Histérica – apontando para uma linguagem que
não pode se mostrar sem se inventar.
Isso quer dizer, de maneira mais simplista, que o Discurso da Histérica
funciona, nesse romance, como fonte de indagação. Martim e as primas
questionam a existência e a linguagem; esta não dá conta de reproduzir os
desejos das personagens, de modo que o que se cria é uma linguagem
anticonvencional, que é mais bem representada quando cunhada de
Histérica, justamente, porque tenta invalidar as teorias do Mestre (neste
caso, a linguagem utilizada naquele mundo amorfo, com a qual Martim
rompe e, de maneira geral, também remodela a linguagem utilizada nos três

­ 165 ­
primeiros romances da autora).
Assim, podemos supor que A maçã no escuro é um marco entre os
romances antecedentes e chave de leitura para os que surgirão na
sequência. A linguagem dá um salto na estrutura psicológica dos fatos
narrados, o que tonifica as características modernas iniciadas com Perto do
coração selvagem. Dito em outras palavras, o mundo subjetivo que se
inicia com o primeiro romance toma proporção fortemente acentuada em
A maçã no escuro, que, por sua vez, apontará a maneira pela qual G.H. e
Lóri, de Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, empreenderão suas
maneiras de verificar a vida e transformá­la em linguagem, nem sempre
compreendida de imediato.
O passo que se segue é, então, a linguagem de A paixão segundo G.H.,
romance publicado em 1964. A protagonista, assim como Martim, também
realizará um percurso. No entanto, salientemos as diferenças: em A maçã
no escuro, há a histerização do signo linguístico para, posteriormente,
criar­se uma tentativa de substancializá­lo com novos significados e, ainda,
há o silêncio como forma de demandar o discurso do Mestre.
Em A paixão segundo G.H., a preocupação com a linguagem centra­se
em solidificar a posição de Histérica como discurso privilegiado. Isso
também culminará na mesma preocupação em demandar dessa linguagem:
ao manipular a palavra e não encontrar no código verbal recursos para uma
expressão de seu mundo, postula­se um total ceticismo em relação à
eficácia do mesmo signo. Ao contrário de Martim, a narradora G.H. fará uso,
especialmente, de repetições, estruturas cíclicas e desgaste dos registros
interjetivos para fazer minguar a linguagem.
Embora esse romance pareça, num primeiro momento, um caminho
novo, percebe­se, por meio de uma visão panorâmica, que se trata do
resultado mais concreto que a autora já havia arquitetado em A maçã no
escuro. Em A paixão segundo G.H., o contato com o inseto pode ser
compreendido como possível encontro com o Real e visto, aqui, como o
estopim para a cristalização do Discurso da Histérica. O ato da protagonista
em comer a “essência da barata”, isto é, de “devorar a vida, a essência, a

­ 166 ­
entidade e, por extensão, a deidade, já num sentido religioso
estratificado” (BRASIL, 1973, p. 72) encontra, na relação de Martim com as
vacas, seu modelo de iniciar uma peregrinação.
Martim inicia, de fato, o zero de sua linguagem por intermédio de uma
aproximação estreita com o curral. Lá, ele pode perceber que “materializar­
se para as vacas foi um grande trabalho íntimo de
concretização” (LISPECTOR, 1972, p. 90), ou seja, por meio de mugidos, o
narrador nos apresenta dois mundos distintos que “se olham e se
conversam”, fazendo com que haja o trânsito entre essas identidades.
Toda essa transmutação ocorreu por meio de um incidente dos mais
rotineiros. A barata, em A paixão segundo G.H., funciona, de certa maneira,
como o Alien do filme de Ridley Scott, já comentado por Žižek (2010). O
alienígena monstruoso e o inseto repugnante conferem ao olhar humano a
aproximação com o Real em sua dureza mais traumática, pois distorcem,
categoricamente, as percepções simbólicas tanto dos espectadores do
filme quanto da protagonista do romance, tamanho o choque conferido
por essas visões. A diferença consiste em Alien ser uma criação
cinematográfica e a barata o “real” inseto doméstico.
O fato é que o confronto com a barata faz com que G.H. crie uma
muralha de linguagem, como ato necessariamente defensivo, e é a partir
desse bloqueio que a narradora verticaliza o uso de um discurso de tom
histérico. Seria esse, na esteira de A maçã no escuro, o momento em que
esse discurso se fixa de maneira mais rígida e inquieta.
Mas, em termos que versam a respeito de estilo e linguagem, quais são as
principais modificações alcançadas no período entre A maçã no escuro e
A paixão segundo G.H., dois romances publicados em um curto espaço de
tempo? E ainda: o que difere esses dois romances dos demais, uma vez que
Lispector foi cunhada, de maneira geral, como escritora, desde sempre,
preocupada em contestar a linguagem padronizada e exibir as camadas
mais fundas e existenciais de suas personagens? Certamente, a aplicação do
Discurso da Histérica – e toda a constante indagação que tal discurso
estrutura – cria uma possibilidade de resposta.

­ 167 ­
Por comungar com a natureza da barata, traindo a repugnância e
provando o núcleo do inseto, a náusea colore todo o processo de descida
de G.H. ao seu mais íntimo ser. Nessa descida, que marca uma ruptura com
seu antigo modo de viver – semelhante ao de Martim –, G.H. desconstrói
sua vida falsamente erigida sob valores burgueses e mergulha em um
movimento que, gradativamente, faz com que ela se desaposse de seu eu.
Assim, a autora arquiteta uma obra sem princípio ou fim, em que narra essa
contínua busca, longe do mundo condicionado e asséptico. Vejamos o que
a narradora propõe a respeito da linguagem utilizada para narrar o
acontecido:
Mas como me reviver? Se não tenho uma palavra natural a dizer.
Terei que fazer a palavra como se fosse criar o que me
aconteceu? Vou criar o que me aconteceu. Ó porque viver não
é relatável.Viver não é vivível.Terei que criar sobre a vida. E sem
mentir. Criar sim, mentir não. Criar não é imaginação, é correr o
grande risco de se ter a realidade. Entender é uma criação, meu
único modo. Precisarei com esforço traduzir sinais de telégrafo
– traduzir o desconhecido para uma língua que desconheço, e
sem sequer entender para que valem os sinais. Falarei nessa
linguagem sonâmbula que se eu estivesse acordada não seria
linguagem (LISPECTOR, 1998, p. 21).

Nota­se que, antes de tomar coragem para relatar o acontecido, G.H. adia
a narrativa na tentativa de fugir do trauma causado pelo encontro. Todavia,
percebemos que, ao contrário de Martim, ela consegue utilizar da
linguagem corrente para transmitir o acontecido: “Se eu ainda quiser
poderei, dentro de nossa linguagem, me perguntar de outro modo o que
me aconteceu. E, se desse modo eu perguntar, ainda terei uma resposta de
recuperação” (LISPECTOR, 1998, p. 68).
Assim, o que faz com que esse romance acomode o Discurso da
Histérica de maneira mais expressiva do que o anterior é o fato de que o
signo linguístico não precisa passar por um processo de
dessubstancialização para dar conta de iluminar a infernal trajetória da
protagonista, ainda que a linguagem passe por um processo de
revitalização, funcionando como questionadora daquela padronizada e
cristalizando o estilo da autora.

­ 168 ­
Esse ato de criar o que aconteceu é narrado, freneticamente, por meio de
um monólogo interior que permeia toda a diegese. Percebe­se que, nos
romances anteriores e também em A maçã no escuro, as personagens se
apoiam em pequenos fragmentos espaciais de uma realidade concreta e,
também, em parcos acontecimentos objetivos, o que faz com que seus
devaneios e impressões sejam amenizados: há a fazenda que sustenta os
anseios de Martim, São Geraldo que aliena Lucrécia, em A cidade sitiada, e,
ainda, a granja que serve de apoio para os segredos dos irmãos Virgínia e
Daniel, em O lustre. Em A paixão segundo G.H., há o apartamento luxuoso.
No entanto, esse espaço é meramente ilustrativo, pois, na verdade, não há,
propriamente, uma história que se narra, já que a obra se concentra,
basicamente, no confronto da mulher com a barata, sem interferências
externas. Cria­se, dessa maneira, uma forte tensão na linguagem que
arrebataria aquela iniciada em A maçã no escuro.
O monólogo interior de G.H. encapsula todo um inconsciente
fragmentado com altos momentos vertiginosos e, por meio de um
interlocutor imaginário, a fraseologia clariciana encontra, no romance, seu
cume. Nesse ápice, o Discurso da Histérica encontra sua posição mais
confortável, pois a protagonista “abre as portas” de sua subjetividade e
deixa jorrar, de maneira altamente fluida, suas indagações existenciais, o
que acaba culminando em sua desistência, ainda que parcial, da linguagem.
A exacerbada introspecção desse romance tonificou o desvio da
consciência da linguagem proposto em A maçã no escuro.
Segundo Nunes, em A paixão segundo G.H., a “consciência da
linguagem enquanto simbolização que não pode ser inteiramente
verbalizada incorpora­se à ficção regida pelo movimento da
escrita” (NUNES, 1988, p. 27). Em outras palavras, a protagonista tenta dizer
a coisa sem nome, aquilo que surge no momento do êxtase e que,
sutilmente, surge no silêncio entre as palavras.Trata­se, pois, da tentativa de
ressimbolizar textualmente a matéria deflagrada pelo Real.
Vejamos alguns excertos do romance que contam com a presença de
figuras metafóricas inovadoras: “o quarto era o retrato de um estômago

­ 169 ­
vazio” (LISPECTOR, 1998, p. 42); de fluxos de consciências altamente
vertiginosos: “contigo nadei de suas profundezas escuras até hoje, nadei
com meus cílios inúmeros – eu era o petróleo que só hoje
jorrou” (LISPECTOR, 1998, p. 114); paradoxos:“por não ser, eu era. Até o fim
daquilo que eu não era, eu era. O que eu não sou, eu sou” (LISPECTOR,
1998, p. 178); estruturas cíclicas que evidenciam a repetição, além de um
sistema de leixa­pren extraordinariamente bem utilizado: “sei o que
precisar, precisar, precisar. E é um precisar novo, num plano que só posso
chamar de neutro e terrível. É um precisar sem nenhuma piedade pelo meu
precisar e sem piedade pelo precisar da barata” (LISPECTOR, 1998, p. 86­
87); e a interrogação, denunciando a fragmentação e o questionamento
histérico da protagonista:“aconteceu­me alguma coisa que eu, pelo fato de
não a saber como viver, vivi uma outra?” (LISPECTOR, 1998, p. 9).
Citamos alguns exemplos a título de ilustração, no entanto eles
permeiam todo o romance e são pontos que possibilitam uma nova feição
ao instrumento literário de Lispector. Em uma visão žižekiana, trata­se de o
Discurso da Histérica que propõe, desde o princípio, figuras absurdas na
construção desse romance: como já vimos, o confronto pouco
convencional entre mulher e barata é descrito por meio de uma linguagem
que denuncia, de maneira catastrófica, esse encontro; daí as frases serem
subversivas ao próprio estilo da autora. A lógica que caminha
paradoxalmente ao lado da ilógica, e os prefixos, raramente vistos antes,
insistem em chocar e desorganizar o leitor e salientam essa linguagem
extremamente insólita.
A utilização desses recursos de estilo, apesar de reafirmar os moldes
literários da autora, leva a linguagem para um campo quase inatingível, que
busca construir­se num percurso às avessas. A “realidade” descrita nesse
romance é mais densa, mais fluida, do que aquela descrita por Martim. A
linguagem de Lispector atinge seu ponto nevrálgico, transformando o
discurso narrativo em poéticas de ensinamento existencial e psicanalítico.
Dessa maneira, a performance de A paixão segundo G.H. permite que o
sofrimento psíquico da protagonista e as marcas indeléveis, causadas na

­ 170 ­
sintaxe da língua e no corpo dessa narrativa, sejam vistos à maneira
lacaniana. O Discurso da Histérica permite compreender a lógica presente
em cenas mais amplas da vida social, nas quais, por exemplo, posições de
demanda, provocação ou sedução, são encarnadas por indivíduos ou por
grupos diante de representantes de saberes oficiais. É no nível da
potencialidade linguística desse romance que Clarice Lispector assume sua
posição mais arrojada como escritora e propõe uma modalidade de
linguagem que ultrapassaria a diegese, colocando­a no rol dos maiores
escritores brasileiros e a obra em questão como um dos romances mais
originais do século XX.
No final da narrativa, após o desapossamento do eu, G.H. diz:“não estou
entendendo o que estou dizendo, nunca! Nunca mais compreenderei o que
eu disser. Pois como poderia eu dizer sem que a palavra mentisse por
mim?” (LISPECTOR, 1998, p. 179). Segundo Nunes (1995), no caso de A
paixão segundo G.H., o sujeito que narra é o sujeito que se desagrega, e o
sentido de sua narrativa vai se tornando fugidio. Em outras palavras,
significa que o drama da linguagem iniciado em A maçã no escuro tonifica­
se nesse romance:“a narrativa é o espaço agônico do sujeito e do sentido –
espaço onde ele erra, isto é, onde ele se busca –, o deserto em que se perde
e se reencontra para de novo perder­se, juntamente com o sentido daquilo
que narra, num processo em círculo” (NUNES, 1995, p. 76).
Quando se pensa que Lispector já teria construído um painel de imagens
opulentas, transfiguradas, líricas, todas enfeixadas em um enredo denso e
em permanente descontínuo, eis que a autora publica, em 1973, um texto
que radicaliza esse percurso: Água viva.
Lispector parecia prever a gama de estudos que suas obras acarretariam
e pensa, inicialmente, num título que, logo depois, descartaria, mas que se
torna bastante emblemático para esta pesquisa: objeto gritante.
Retomaremos a importância desse título no decorrer da análise. A respeito
do título oficial, Sá diz: “É coisa que borbulha na fonte. É também medusa,
corpo mole, gelatinoso [...], dá picadas ardidas na pele do homem e dos
animais [...] é, portanto, água, mar, medusa, fogo, matéria viva escaldante,

­ 171 ­
plasma plástico e cromático” (SÁ, 1979, p. 205). Acrescentamos, ainda, que
Água viva pode fazer referência à água batismal, fonte de vida. Esse texto
líquido em que a narrativa se derrama em uma fluidez altamente poética é,
também, uma espécie de texto placenta, já que alimenta e dá origem à
narrativa, cujo sentido é captar e questionar as inúmeras sensações do ato
comunicativo.
Percebe­se que o percurso da protagonista, radicalmente existencial,
encontra sua partida em Martim. No entanto, aproxima­se com mais
exatidão de G.H., pelo fato de não iniciar ou findar qualquer ciclo, mas, sim,
continuar uma experiência de redescoberta e captação de si. No entanto,
ultrapassando A maçã no escuro e mesmo A paixão segundo G.H., esse
texto narra, de maneira radical, o processo de escrita ligado à extrema
liberdade do viver,“porque ninguém me prende mais” (LISPECTOR, 1994, p.
13).
Água viva funciona, em uma leitura žižekiana, como exemplo mais
disseminado de aplicação do Discurso da Histérica na ficção de Clarice
Lispector, pois mescla, em alguns momentos, tal como em A maçã no
escuro, a necessidade de encontrar a palavra que expresse a importância
das coisas narradas e, por vezes, o percurso de G.H., que faz uso da
linguagem padrão, no entanto, de maneira transfigurada. Constrói­se, dessa
maneira, uma coisa/objeto por meio da percepção do fracasso de uma
ordem de palavras. Vejamos um exemplo:
E eis que percebo que quero para mim o substrato vibrante da
palavra repetida em canto gregoriano. Estou consciente de que
tudo o que sei não posso dizer, só sei pintando ou
pronunciando, sílabas cegas de sentido. E se tenho aqui que
usar­te palavras, elas têm que fazer um sentido quase que só
corpóreo, estou em luta com a vibração última. Para te dizer o
meu substrato faço uma frase de palavras feitas apenas dos
instantes­já. Lê então o meu invento de pura vibração sem
significado senão o de cada esfuziante sílaba, lê o que agora se
segue: “com o correr dos séculos perdi o segredo do Egito,
quando eu me movia em longitude, latitude e altitude com ação
energética dos elétrons, prótons, nêutrons, no fascínio que é a
palavra e a sua sombra”. Isso que te escrevi é um desenho
eletrônico e não tem passado ou futuro: é simplesmente já.
Também tenho que te escrever porque tua seara é a das

­ 172 ­
palavras discursivas e não o direto de minha pintura. Sei que
são primárias as minhas frases, escrevo com amor demais por
elas e esse amor supre as faltas, mas amor demais prejudica os
trabalhos. Este não é um livro porque não é assim que se
escreve. O que escrevo é um só clímax? Meus dias são um só
clímax: vivo à beira (LISPECTOR, 1994, p. 15­16).

Esse exercício de criação da narradora­protagonista exige um


movimento incessante de ir e vir da tela ao corpo e vice­versa. Dessa
maneira, o que se escreve é uma dolorosa confissão de linguagem e de
impossibilidade de se colocar em palavras o que é indizível.
A presentificação do tempo, descrita por meio do “instante­já”, sintetiza
“um passado que se tornou presente, presente que se tornou passado e
futuro que se tornou presente e passado” (LIBANORI, 1996, p. 20),
colaborando para a ideia de que o discurso narrativo de Água viva é
fortemente sentido pela protagonista num momento eterno, independente
da temporalidade em que os fatos acontecem: “estou no seu âmago. Ainda
estou. Estou no centro vivo e mole. Ainda” (LISPECTOR, 1994, p. 32).
O fluxo de consciência acolhe essa confissão e, radicalizando G.H., que
se constrói sustentada por um monólogo interior, a narrativa passa a ser
mais vertiginosa. Há um desejo incansável de tocar no “âmago do
é” (LISPECTOR, 1994, p. 32), de modo que o Discurso da Histérica ressaltará
a necessidade do ato de demandar, de exigir do Discurso do Mestre um
saber inalcançável. A opulência da linguagem – muito bem explicada
quando lhe atribuímos o termo Discurso da Histérica – é o que exprime a
desestruturação romanesca.
Poderíamos aventar que, no percurso de questionamento da linguagem
e da identidade das personagens, o gênero romanesco utilizado por
Lispector passou por uma histericização culminando em Água viva, texto
de difícil generalização, que funciona como um jorrar intencional de ideias
propositalmente construídas de maneira desconexa, tal qual um discurso
desarticulado, a céu aberto, similar a uma fenda no Inconsciente.
Realizando uma leitura que contempla o “corpo” narrativo, notamos que
essa estrutura pulverizada, a qual chamaremos de romanesca, guarda
também semelhanças com o corpo feminino das neuróticas histéricas. Já

­ 173 ­
citamos que o psicanalista francês inclui, nesse discurso, alguns ecos da
histeria como estrutura, daí a justificativa do nome. Como diz Lacan (1999),
“a histérica é, precisamente, o sujeito para quem é difícil estabelecer com a
constituição do Outro como grande Outro, portador do signo falado, uma
relação que lhe permita preservar seu lugar de sujeito” (LACAN, 1999, p.
376). Assim, o sujeito histérico quer um desejo insatisfeito, pois enquanto
não reconhece que o desejo do Outro é barrado, ele não pode reconhecer­
se barrado e não reconhece seu desejo marcado pela castração.
A histeria como neurose eclode por ocasião de acontecimentos
marcantes ou em períodos críticos da vida de um sujeito, por exemplo, a
adolescência. A manifestação dessa neurose se dá sob a forma de diversos
distúrbios, geralmente passageiros, cujos sintomas mais clássicos são os
somáticos, como as perturbações da motricidade (contraturas musculares,
paralisias), de sensibilidade (dores localizadas, regiões anestesiadas) e
distúrbios sensoriais (cegueira, surdez). Junta­se a isso a possibilidade de
recorrência de alterações de consciência, de memória, de inteligência,
insônia e desmaios benignos.
J. D. Násio (1991) complementa dizendo que “o histérico, como qualquer
sujeito neurótico, é aquele que, sem ter conhecimento disso, impõe na
relação afetiva com o outro a lógica doentia de sua fantasia
inconsciente” (NASIO, 1991, p. 15), uma fantasia em que ele desempenha
sempre o papel de vítima infeliz e insatisfeita e é justamente essa
insatisfação que marca a vida de um histérico
Transpondo o saber psicanalítico para Água viva, nota­se que a
“liquidez” discursiva da narradora cria uma estrutura romanesca bastante
peculiar: frases desconexas, períodos truncados, aforismos, mudanças
abruptas de temas discutidos e mescla de gêneros. Essas características, de
certo modo, não se assemelham a alguns sintomas histéricos? Assim como
pacientes de estudos clássicos da psicanálise, que tiveram seus membros
paralisados devido a suas fantasias histéricas, o corpo de Água viva possui
a coluna vertebral toda estilhaçada, é todo chamativo, cria, além de um
desconforto para quem o lê, um embaraço visual, tamanho é o devaneio de

­ 174 ­
quem o narra. Eis um trecho:
Custa­me crer que eu morra. Pois estou borbulhante numa
frescura frígida.
Minha vida vai ser longuíssima porque cada instante é. A
impressão é que
estou por nascer e não consigo.
Sou um coração batendo no mundo.
Você que me lê que me ajude a nascer.
Espere: está ficando escuro. Mais.
Mais escuro.
O instante é de um escuro total.
Continua.
Espere: começo a vislumbrar uma coisa. Uma forma
luminescente. Barriga
leitosa com umbigo: Espere – pois sairei desta escuridão onde
tenho medo,
escuridão e êxtase. Sou o coração da treva.
O problema é que na janela de meu quarto há um defeito na
cortina. Ela não
corre e não se fecha portanto. Então a lua cheia entra toda e
vem fosforecer de
silêncios o quarto: é horrível.
Agora as trevas vão se dissipando.
Nasci.
Pausa.
Maravilhoso escândalo: nasço. (LISPECTOR, 1994, p. 41).

Instaura­se um texto enigmático que, assim como as histéricas e como


próprio Discurso da Histérica propõe, necessita ser decifrado. O título
descartado por Lispector, objeto gritante, faz todo o sentido nesta análise.
O grito, o “uivo humano” (LISPECTOR, 1994, p. 13), não pode ser lido como
o grito de uma histérica que espraia suas fantasias para a malha literária e
para a forma do texto e, dotada de aguda sensibilidade, recria/reapropria
uma linguagem que sustente essas absurdas fantasias? De acordo com o
materialismo lacaniano, essa leitura é plenamente possível. O corpo de
Água viva, tal qual o de um histérico, é um “corpo­sensação­pura, aberto
para o exterior como um animal vivo, uma espécie de ameba
extremamente voraz que se estende para o outro, toca­o, desperta nele uma
sensação intensa e dele se alimenta” (NASIO, 1991, p. 17). O trecho a seguir
também exemplifica o que estamos a dizer:

­ 175 ­
Fico me assistindo pensar. O que me pergunto é: quem em mim
é que está fora de pensar? Escrevo­te tudo isto pois é um
desafio que sou obrigada com humildade a aceitar. Sou
assombrada pelos meus fantasmas, pelo o que é mítico e
sobrenatural – a vida é sobrenatural. E eu caminho em corda­
bamba até o limite de meu sonho (LISPECTOR, 1994, p. 73).

De acordo com Evely Libanori (1996), Água viva se recusa a ser


ordenada de forma linear. No domínio do texto, tudo pede para ser
destruído e novamente organizado. Essa recusa é típica da histeria, pois a
narradora­personagem procura uma verdade sobre o seu gozo em sua
aventura pela linguagem, o que é impossível, porque ela é insatisfeita. Daí,
pode­se justificar, em uma visão lacaniana, essa desenfreada caminhada pela
busca de uma linguagem e pela experimentação formal.
Para a sustentação de um corpo histérico, a linguagem também
necessitaria passar por um processo de histericização, como já
comentamos. Libanori (1996) diz que o conteúdo temático desse texto nos
mostra a procura de entendimento para o inexplicável, para um desejo de
achar a natureza das coisas. É um livro aberto para o nada:“poderia dizer do
tudo, mas tudo é quantidade, e quantidade tem limite no seu próprio
começo” (LIBANORI, 1996, p. 95).
Não há, em Água viva, um itinerário como percebemos nos romances
anteriores, solapando, inclusive, a ciclicidade de A paixão segundo G.H.:“O
que te escrevo não tem começo: é uma continuação. Das palavras deste
canto, canto que é meu e teu, evola­se um halo que transcende as frases,
você sente?” (LISPECTOR, 1994, p. 53). O que existe, como vimos, é um
despertar de sensações, de vibrações, em que a narradora tenta fotografar o
perfume das flores, captar os traços geométricos dos sons, da escrita, das
tintas de suas pinturas. Para que essas impressões sejam narradas, o ato da
escrita é visto como uma selva composta de “cipós”, “madressilvas”,
“palavras”:“estou consciente de que tudo o que sei não posso dizer, só sei
pintando ou pronunciando, sílabas cegas de sentido” (LISPECTOR, 1994, p.
15).
Para essa representação, a narradora parte de sua arte, não no intuito de
representar a realidade, mas para construir uma verdade possível. De

­ 176 ­
acordo com o materialismo lacaniano, seria a histericização da linguagem
empírica para abrir margem à reprodução de uma linguagem labiríntica,
em que no “it”, elemento rico e de muitos significados, o eu defronta­se
com o ato solidário de criação de si mesmo, de modo que uma linguagem e
uma estrutura linear seriam rejeitadas
“X” é o sopro do it? é a sua irradiante respiração fria? “X” é a
palavra? A palavra apenas se refere a uma coisa e esta é sempre
inalcançável por mim. Cada um de nós é um símbolo que lida
com símbolos – tudo ponto de apenas referência ao real [...] E
se nos entendemos através do símbolo é porque temos os
mesmos símbolos e a mesma experiência da coisa em si: mas a
realidade não tem sinônimos (LISPECTOR, 1994, p. 72).

“X” é algo impronunciável, existe no mais abissal da narradora e é esse


elemento que instala uma nova ordem para as coisas narradas. É por meio
desse “X” que ela penetrará no mistério das palavras, sem a necessidade de
se preocupar com quaisquer instâncias narrativas organizadas, tendo,
apenas, a tarefa árdua e a angústia de se aventurar por essa criação que
acompanha um movimento de reflexo/reflexão da coisa em si.
Esse X, que está no mais profundo da narradora, não pode fazer
referência ao pequeno objeto a, a única invenção lacaniana? O X, assim
como esse conceito, direciona o caminho desejante da narradora, por meio
dos inúmeros objetos metonímicos que dão conta de tamponar a crueza do
Real. A relação estabelecida entre os símbolos, conforme aponta o excerto,
marca o suporte que a linguagem erige para permitir que a narradora não
mergulhe em um caos profundo.
A descoberta das coisas gera inquietudes e “dói”. Mas é dor do parto:
nasce uma coisa que é. É­se” (LISPECTOR, 1994, p. 50). A palavra/pincelada
mescla também o “it” dos animais, a dolência das flores, as águas
abundantes, Deus, o raciocínio lógico da matemática, a vida oblíqua e os
cristais, pois, de acordo com a narradora,“ocorreu­me de repente que não é
preciso ter ordem para viver. Não há padrão a seguir e nem há o próprio
padrão: nasço” (LISPECTOR, 1994, p. 55).
Trata­se do nascimento de uma linguagem sem padrão, caleidoscópica e
vertiginosa. É o Discurso da Histérica apossando­se da posição do Discurso

­ 177 ­
do Mestre. Após a incursão cometida no mais escuro dessa nova linguagem,
por meio de um percurso pleno de ausências, de silêncio e de excesso,
percebe­se que há um gozo que não está incluso no saber desse discurso,
pois ele aparece como perda, de modo que nunca há uma última verdade
sobre ele mesmo.
Em outras palavras, e para fins de considerações finais, assim como em A
maçã no escuro e em A paixão segundo G.H., em que a linguagem falhou,
percebe­se que há em Água viva uma insatisfação com a linguagem, por
ainda necessitar de mais demanda para continuar seu movimento de
histericização. Verificamos as palavras da narradora já no fechar do texto:
“O que te escrevo é um “isto”. Não vai parar: continua [...]. O que te escrevo
continua e estou enfeitiçada” (LISPECTOR, 1994, p. 101).

Referências

BRASIL, A. Clarice Lispector: Ensaio. Rio de Janeiro: Organizações Simões,


1969.

CASTRO, S. Clarice Lispector. In: A revolução da palavra: Origens e


estrutura da literatura brasileira moderna. Petrópolis: Vozes, 1976.

FINK, B. O sujeito lacaniano: entre a linguagem e o gozo. Tradução de


Maria de Lourdes Duarte Sette. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

HARARI, R. Uma introdução aos quatro conceitos fundamentais de


Lacan. Tradução de Marta M. Okamoto e Luiz Gonzaga B. Filho. Campinas,
Papirus, 1990.

LIBANORI, E. Água viva: O processo criador de Clarice Lispector e o


papel do leitor. Dissertação de Mestrado. Universidade Estadual Paulista,
1996.

LACAN, J. O seminário. Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da


psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

LACAN, J. O seminário. Livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar, 1992.

LISPECTOR, C. A maçã no escuro. São Paulo: Círculo do Livro, 1972.

­ 178 ­
LISPECTOR, C. A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994

NASIO, J.D. A histeria. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1991

NUNES, B. O drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector. São


Paulo: Ática, 1995.

ORLANDI, E. As formas do silêncio no movimento dos sentidos.


Campinas: Unicamp, 1997.

SÁ, Olga de. A escritura de Clarice Lispector. São Paulo: Vozes, 1979.

ŽIŽEK, S. Como ler Lacan. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio


de Janeiro: Zahar, 2010.

ŽIŽEK, S. Os quatro discursos de Jacques Lacan. Tradução de Rodrigo


Nunes Lopes Pereira. Disponível em: http://www.lacan.com/zizfour.htm.
Acesso em: 10 jul. 2017.

­ 179 ­
­ 180 ­
O GRANDE OUTRO EM O PERU DE NATAL, DE MÁRIO DE
ANDRADE
Marcia Geralda de Almeida

Introdução

Este artigo apresenta uma interpretação do conto O peru de Natal, de


Mário de Andrade (1893­1945), publicado pela primeira vez na Revista da
Academia Paulista de Letras, em 1942. Posteriormente, o conto foi
republicado na coletânea póstuma intitulada Contos Novos (1947). Tendo
em vista o enredo do conto, ou seja, as relações familiares em torno do luto
e da festividade natalina, o objetivo deste artigo foi analisar o
funcionamento da instância virtual da ordem simbólica chamada de grande
Outro.Trata­se de um estudo qualitativo e de base interpretativa, que utiliza
como base o pensamento do filósofo esloveno Slavoj Žižek e outros
autores que discorrem a respeito do grande Outro.
Como fundamentação teórica, adotamos o materialismo lacaniano, uma
corrente teórica baseada na psicanálise lacaniana, ou seja, nos estudos do
psicanalista francês Jacques Lacan, e no materialismo histórico de Marx. De

­ 181 ­
acordo com Silva (2009), o materialismo lacaniano não rejeita o
materialismo histórico, porém entende que esta teoria é insuficiente para
explicar a diversidade dos fenômenos sociais e humanos, de modo que
atrela o materialismo histórico à psicanálise de Lacan, o que resultou nessa
nova teoria que será adotada neste texto.
Mário de Andrade foi um dos mais importantes escritores do
modernismo brasileiro, tendo sido um dos organizadores da Semana de
Arte Moderna de 1922. Autor de Paulicéia Desvairada (1922) e
Macunaíma (1928), foi o primeiro brasileiro a utilizar o verso livre e seu
fazer artístico estava voltado para a busca da identidade nacional e
valorização da cultura popular.
O conto adotado como objeto de análise traz um enredo em que
acreditamos ser possível perceber o funcionamento da ordem simbólica,
bem como o grande Outro, a partir das relações familiares representadas
pela narrativa. A seguir discorreremos brevemente sobre o conceito de
grande Outro e, posteriormente, apresentaremos a interpretação do conto.

Fundamentação teórica

Segundo o filósofo esloveno Slavoj Žižek (2010), o grande Outro é uma


instância virtual que nos vigia e regula nosso comportamento e nossa
convivência em sociedade e, sendo virtual, ele só existe se acreditarmos em
sua existência e agirmos como se ele existisse. Partindo do princípio
lacaniano de que a realidade está estruturada em três níveis (Simbólico,
Imaginário e Real), o grande Outro situa­se no nível Simbólico, o qual
corresponde às regras que regem o bom funcionamento da ordem social.
Com base em Žižek, Silva (2009) e Santos (2017) explicam que o
Simbólico é estruturado a partir da castração simbólica ou corte
fundamental, isto é, o processo por meio do qual um ser se constitui como
sujeito e é lançado na linguagem. A castração simbólica é “a ligação
rompida entre mim e o universo, que era a mãe. A partir de então, passamos
a estar sob o olhar do grande Outro, a ordem simbólica que regula meu ser

­ 182 ­
e o meu modo de agir e interagir” (SANTOS, 2017, p. 454).
Segundo Silva (2009, p. 213), o Simbólico é “o estágio no qual o
indivíduo estruturou uma série de códigos, leis e proibições que permitirão
sua socialização”. A esse respeito, Santos (2017, p. 454) escreve que “existe
um sistema de regras simbólicas que regula nossa interação social, regras
explícitas (as leis) e regras ‘implícitas’ (não registradas ou escritas) que
regulam nosso modo de agir e de falar”.
Žižek afirma que, quando interagimos com outros sujeitos, nossa
interação nunca é unicamente com um outro sujeito, pois estamos
enredados em uma complexa trama de regras em que estão presentes
muitas outras variáveis. Assim existem:
As regras que eu sigo estão marcadas por uma profunda divisão:
há regras (e significados) que sigo cegamente, por hábito, mas
das quais, se reflito, posso me tornar ao menos parcialmente
consciente (como as regras gramaticais comuns); e há regras
que ignoro que sigo, significados que ignoro que me
perseguem (como proibições inconscientes). E há regras e
significados cujo conhecimento não devo revelar que tenho ­
insinuações sujas ou obscenas que silenciamos para manter o
decoro (ŽIŽEK, 2010, p. 17).

De acordo com Žižek (2010, p. 16), o grande Outro funciona como


mecanismo da “ordem simbólica, a constituição não escrita da sociedade, é
a segunda natureza de todo ser falante: ela está aqui, dirigindo e
controlando os meus atos; é o mar em que nado, mas permanece
essencialmente impenetrável ­ nunca posso pô­la diante de mim e segurá­
la”. Silva (2009, p. 214), por seu turno, explica que o grande Outro é “uma
instância onipresente, criada pelo indivíduo no processo de separar a si
próprio do resto do mundo, ou seja, no processo de individuação”.
Alves e Ferreira (2018, p. 38) inferem que a existência do grande Outro
cria:
[...] uma espécie de tensão entre os indivíduos e também entre
os indivíduos e as leis/regras existentes, quando se dão conta de
que nem sempre é possível realizar todos os seus desejos, pois
o Outro está observando e não permite – não no sentido estrito
da palavra, uma vez que é possível realizar algo que fira o
reconhecimento do grande Outro. Entretanto, a quebra das

­ 183 ­
regras implica desconforto e (auto)punições.

Embora crie essa referida tensão, a ordem simbólica é necessária para


que haja o mínimo de estabilidade nas relações interpessoais e a sociedade
não se torne um caos, por isso a transgressão da ordem simbólica gera
desconforto e autocorreção por parte do próprio transgressor, o que quer
dizer que a trama que sustenta a realidade ainda funciona.

Análise

O peru de Natal é um conto breve e bem­humorado que narra as


relações cotidianas de uma família pequeno­burguesa, descendente de
bandeirantes, em torno da realização da ceia de Natal e do luto pela morte
recente do patriarca da família. Juca é o filho mais novo e também narrador
dos eventos ocorridos e, para ele, os natais de sua família sempre haviam
sido realizados, em virtude de uma obrigação social em relação aos
parentes, os quais são descritos pelo narrador como verdadeiros
sanguessugas e aproveitadores. Após a morte do pai, Juca propõe que a ceia
de Natal deveria ser realizada sem a intromissão dos parentes
inconvenientes que o pai sempre convidava para os festejos da casa e que,
pela primeira vez na vida, sua família teria o direito de degustar um peru de
Natal.
Já no início do conto, há certo estranhamento na associação das palavras
Natal, morte e felicidade na mesma sentença: “O nosso primeiro Natal de
família, depois da morte de meu pai acontecida cinco meses antes, foi de
consequências decisivas para a felicidade familiar” (ANDRADE, 1996, p. 71).
O estranhamento está no fato de o personagem afirmar que o primeiro
Natal de família ocorreu após a morte do pai, bem como na impressão de
que a felicidade familiar só foi possível na ausência dele. Contudo, o
desenrolar do conto faz compreender que as celebrações natalinas
realizadas quando o pai estava vivo não eram para a felicidade familiar, de
modo que, em virtude de uma convenção não escrita, a festa servia para o
desfrute de parentes, ao passo que a própria família nunca havia saboreado

­ 184 ­
peru de verdade.
Juca não nega o descontentamento em relação ao pai, pois, para ele, o
“pai fora de um bom errado”, porque ele era bom para muitas pessoas,
exceto para a própria família. Assim, apesar da condição financeira estável,
a família de Juca nunca se dava o direito de ter regalias como “um vinho
bom, uma estação de águas, aquisição de geladeira, coisas assim” por conta
da “exemplaridade incapaz” do pai (ANDRADE, 1996, p. 71), isto é, incapaz
de desviar­se das normas sociais.
Na perspectiva do materialismo lacaniano, compreendemos que esse
conto exemplifica bem o funcionamento da ordem simbólica, ou seja, as
regras escritas e não escritas funcionando para regular o comportamento
em sociedade, o que se evidencia nos dizeres do narrador, a seguir: “Nós
sempre fôramos familiarmente felizes, nesse sentido muito abstrato da
felicidade: gente honesta, sem crimes, lar sem brigas internas nem graves
dificuldades econômicas” (ANDRADE, 1996, p. 71). As características
utilizadas para descrever a família parecem corroborar a imagem de um lar
em que a observação das convenções é determinante, já que os termos
honestidade, ausência de crimes ou brigas remetem às regras escritas (leis);
por outro ângulo, as expressões ‘familiarmente felizes’ ou ‘sentido abstrato
da felicidade’ podem ser atreladas às normas sociais não escritas que fazem
com que a família se conforme com o modo de realização das celebrações
natalinas, em uma felicidade apenas aparente.
Por outro lado, a narrativa insinua que tanto o narrador quanto os demais
personagens não estavam satisfeitos com as tradicionais reuniões de
família, em que as mulheres da casa “três dias antes, já não sabiam da vida
senão trabalhar, trabalhar no preparo de doces e frios finíssimos e bem
feitos, a parentagem devorava tudo e ainda levava embrulhinhos pros que
não tinham podido vir”; não bastasse isso, essas mulheres esgotadas pelo
trabalho aproveitavam do “peru, só no enterro dos ossos, no dia seguinte,
[...] um naco de perna, vago, escuro, perdido no arroz alvo (ANDRADE,
1996, p. 72). Ainda assim, essa família continua a reproduzir essa tradição
durante anos, o que significa que as leis, códigos e proibições estão bem

­ 185 ­
estruturados, para que o convívio seja possível.
Conforme explicado anteriormente, o grande Outro só existe à medida
que agimos como se ele existisse para sondar e regular nossas atitudes. Ao
retomar o exemplo de Žižek sobre o conto A roupa nova do imperador,
em que todos percebem que o imperador está nu, mas agem como se
estivesse vestido, Cindy Zeiher (2015, p. 205) explica que “agir ‘como se’ é
um ato de negação que garante que os sujeitos possam coexistir com
outros no mundo social. A ideologia oferece um espetáculo para o grande
Outro apresentado pelos costumes e práticas sociais, apesar de suas
inconsistências, contradições”. Em certa medida, podemos dizer que a
narração de Juca leva a entender que as condições das festividades
familiares são injustas, tanto pelo trabalho demasiado das mulheres que não
desfrutam da festa, quanto pelo comportamento abusivo dos parentes.
Contudo, essas inconsistências são naturalizadas e todos agem como se
estivesse tudo bem, mantendo as aparências que possibilitam o convívio.
Para Žižek (2018, p. 133), “As aparências são importantes. Podemos ter
nossas múltiplas fantasias obscenas, mas é importante saber quais vão se
integrar no domínio público da Lei simbólica, do grande Outro”, isto é, a
observação das regras simbólicas é essencial para a manutenção da ordem,
mesmo que seja apenas na aparência.
Após a morte do patriarca, Juca decide subverter a tradição familiar e
realizar uma vontade secreta de todos da família: comer peru de Natal. Sua
proposta é comprar o peru e não convidar ninguém para a ceia, de forma
que apenas a mãe, a tia, a irmã e o irmão possam desfrutar da iguaria.
Conforme Amora (2015, p. 8), não se trata do peru, mas do “sentimento de
felicidade compartilhado por todos os integrantes da família. Percebe­se
que o prato principal não é um fim para a felicidade, mas toda a comunhão
que a ceia proporciona”. Na perspectiva do materialismo lacaniano, mais
do que felicidade compartilhada, a vontade de comer peru pode ser
entendida como uma metáfora para o desejo obsceno de transgredir a
ordem simbólica, uma vez que os atos de esquecer, ainda que brevemente,
o luto, e de excluir os parentes da ceia, vão contra a tradição e as normas da

­ 186 ­
família.
A ideia do narrador é recebida pelos familiares com um misto de
assombro e euforia: assombro, em virtude do luto recente e da lembrança
do pai austero e controlador, que parece funcionar como uma
corporificação do grande Outro, à medida que a lembrança dele traz um
sentimento de culpa; euforia, devido à felicidade que a ideia de, finalmente,
comer peru, ter um verdadeiro Natal (ou quebrar as regras) trazia para cada
um. Aceitar a proposta de Juca significa ir contra as regras simbólicas,
portanto essa espécie de transgressão da ordem só é possível sob a égide
da loucura atribuída ao narrador, considerado o doido da família desde
menino.
Desde cedinho, desde os tempos de ginásio, em que arranjava
regularmente uma reprovação todos os anos; desde o beijo às
escondidas, numa prima, aos dez anos, descoberto por Tia Velha,
uma detestável de tia; e principalmente desde as lições que dei
ou recebi, não sei, duma criada de parentes: eu consegui no
reformatório do lar e na vasta parentagem, a fama conciliatória
de ‘louco’. ‘É doido, coitado!’ falavam. Pois foi o que me salvou,
essa fama. Fiz tudo o que a vida me apresentou e o meu ser
exigia para se realizar com integridade. E me deixaram fazer
tudo, porque eu era doido, coitado. Resultou disso uma
existência sem complexos, de que não posso me queixar um
nada (ANDRADE, 1996, p. 71­72, grifo nosso).

Ao se esconderem sob a loucura de Juca, os demais personagens podem


transgredir sem que a responsabilidade recaia sobre eles, porque, para o
grande Outro ou instância que os vigia, a decisão partiu de Juca. Essa
possibilidade é expressa na fala do próprio narrador:“Bem que sabiam, era
loucura sim, mas todos se faziam imaginar que eu sozinho é que estava
desejando muito aquilo e havia jeito fácil de empurrarem pra cima de
mim... a culpa de seus desejos enormes” (ANDRADE, 1996, p. 73). Não por
acaso, a decisão final verbalizada pela irmã, que afasta dos personagens a
culpa pela transgressão e a substitui pela felicidade, ampara­se justamente
na loucura de Juca: ‘Sorriam se entreolhando, tímidos como pombas
desgarradas, até que minha irmã resolveu o consentimento geral: ­ É louco
mesmo!...” (ANDRADE, 1996, p. 73)
Em uma análise do conto Feliz aniversário, de Clarice Lispector, a partir

­ 187 ­
do materialismo lacaniano, Diego Fascina (2020, p. 54) demonstra que um
recurso semelhante é usado para invalidar a atitude contrária às normas,
diante do olhar do grande Outro. Quando a aniversariante de 89 anos cospe
no chão e começa a dizer palavrões e xingamentos, abalando as estruturas
do decoro social, a família “prefere dissimular o acontecido, pois ‘a velha
não passava agora de uma criança’, ou seja, retirando do ato da idosa sua
autonomia e significado, ‘acalmando’ o grande Outro”.
Compreendemos que tanto a infantilização ou atribuição de demência à
matriarca, no conto clariciano, quanto a atribuição da loucura ao
personagem de Mário de Andrade são meios de informar e acalmar o
grande outro e impedir que as teias do simbólico se esfacelem. No primeiro
caso,“O Big Other foi devidamente informado de que os atos da velha não
refletiam senão a gradativa perda de consciência e de domínio da realidade
que acomete alguns idosos” (FASCINA, 2020, p. 55). No segundo caso, o
grande Outro foi informado de que Juca não se encontra em perfeito juízo
e, portanto, não se deve levá­lo a sério, o que ameniza o peso da ação
desencadeada por ele.
Entretanto, esse recurso parece não ser totalmente eficaz em O peru de
Natal, pois a figura do patriarca surge durante a ceia, trazendo de volta a
culpa, a tristeza, a necessidade do luto e do respeito às regras.
Aparentemente, a desobediência gera desconforto, porque a família sabe
que o grande Outro está olhando, conforme propõem Alves e Ferreira
(2018).
Não é só a realização da ceia sem os parentes que foge às regras
observadas pelo pai, mas também a pausa no luto familiar obrigatório que
deveria impedir qualquer celebração ou demonstração de felicidade, ao
menos por um período. E, assim, conforme o narrador, “Todos se
esforçavam por sorrir, mas agora é que a alegria se tornara impossível. É que
o pranto evocara por associação a imagem indesejável de meu pai morto.
Meu pai com sua figura cinzenta, vinha pra sempre estragar nosso Natal.
Fiquei danado” (ANDRADE, 1996, p. 74).
Embora o grande Outro seja uma instância virtual, por vezes, é possível

­ 188 ­
que essa instância seja corporificada ou subjetivada. Para Žižek (2010, p.
54), deus é um exemplo de subjetivação da ordem simbólica, “o grande
Outro personificado, dirigindo­se a nós como uma pessoa maior que a
vida”, dizendo o que é certo e errado e como devemos viver. Até esse
momento do conto, o grande Outro permanecia virtual, intangível, porém o
choro da mãe traz consigo a lembrança do pai para a mesa de jantar e o
grande Outro começa a ser corporificado pela imagem dele. É interessante
como essa imagem vai, aos poucos, crescendo diante dos personagens
sentados à mesa e se tornando cada vez mais poderosa:“Mas papai sentado
ali, gigantesco, incompleto, uma censura, uma chaga, uma incapacidade. E o
peru, estava tão gostoso, mamãe por fim sabendo que peru era manjar
mesmo digno de Jesusinho nascido” (ANDRADE, 1996, p. 74).
Nesse momento, o conto revela tensão entre a disposição em
desobedecer a lei e o respeito à figura do pai enquanto instância
reguladora do bom comportamento familiar. Como a própria narrativa faz
perceber, apesar da consciência da necessidade do luto, o peru estava
delicioso e a felicidade desse núcleo familiar se tornara um fato, misturando
prazer e culpa. A cobrança do luto parece trazer para a mesa de jantar uma
atmosfera de tristeza em todos os personagens, exceto Juca.
Principiou uma luta baixa entre o peru e o vulto de papai.
Imaginei que gabar o peru era fortalece­lo na luta, e, está claro,
eu tomara decididamente o partido do peru. Mas os defuntos
têm meios visguentos, muito hipócritas de vencer: nem bem
gabei o peru a imagem de papai cresceu vitoriosa,
insuportavelmente obstruidora. – Só falta seu pai...
(ANDRADE, 1996, p. 74, grifo nosso).

Mais interessante é observar que é por meio da linguagem que o grande


Outro é definitivamente corporificado pelo patriarca morto, pois, até este
momento, mesmo com o choro da mãe, da tia e da irmã, nada fora
verbalizado, portanto o grande Outro continua insubstancial. Quando Juca
elogia o peru, a fim de afastar a lembrança do pai e a atmosfera de tristeza,
uma fala proferida pela mãe é definitiva: ­ Só falta seu pai... De repente, é
como se o grande Outro tivesse sido informado da transgressão da ordem
simbólica, por meio dessa verbalização, de modo que a celebração se torna

­ 189 ­
impossível, pois a figura do pai, enquanto grande Outro corporificado, está
definitivamente lá para lembrá­los do luto familiar obrigatório e da
convenção das celebrações em família.
Para explicar melhor nosso raciocínio, adotamos o seguinte exemplo
utilizado por Žižek (2010, p. 35):
Lembremos a típica situação difícil em que todas as pessoas
num grupo fechado sabem de algum detalhe sórdido (e sabem
também que todas as outras sabem), mas quando uma delas
inadvertidamente deixa escapar esse detalhe todas se sentem
constrangidas apesar de tudo ­ por quê? Se ninguém ficou
sabendo de nada que seja novo, por que todas se sentem
constrangidas? Porque não podem mais fingir que não sabem
disso (agir como se não soubessem) ­ em outras palavras,
porque agora o grande Outro sabe.

A partir do exemplo de Žižek, compreendemos que a diferença entre o


choro das mulheres pela lembrança do patriarca e a verbalização da falta
dele, pronunciada pela mãe, é que, a partir do momento da fala, o grande
Outro é informado da transgressão em curso e os personagens não podem
mais agir como se não soubessem das regras simbólicas, portanto não estão
mais protegidos pela loucura de Juca e precisam prestar contas ao grande
Outro.
A saída que Juca encontra para lidar com o agigantamento da imagem
acusadora sentada à mesa é, de certa forma, santificar a lembrança do pai,
fazendo entender que uma pessoa tão boa quanto ele não se oporia à
felicidade da própria família.
Eu nem comia, nem podia mais gostar daquele peru perfeito,
tanto que me interessava aquela luta entre os dois mortos.
Cheguei a odiar papai. E nem sei que inspiração genial, de
repente me tornou hipócrita e político. Naquele instante que
hoje me parece decisivo da nossa família, tomei aparentemente
o partido de meu pai. Fingi, triste:
­ É mesmo... Mas papai, que queria tanto bem a gente, que
morreu de tanto trabalhar para nós, papai lá no céu há de estar
contente... (hesitei, mas resolvi não mencionar mais o peru)
contente de ver nós todos reunidos em família (ANDRADE,
1996, p. 74).

De certo modo, é como se as palavras proferidas por Juca acalmassem

­ 190 ­
novamente o grande Outro, por meio da santificação da lembrança do pai,
que se torna “uma estrelinha no céu” e fica livre da tarefa de regular o
comportamento da esposa e dos filhos, porque se tornou um santo incapaz
de julgar. Dessa forma, o grande Outro volta a ser intangível, insubstancial,
mais fortalecido que antes, pois agora a família está autorizada a terminar a
festa em respeito à boa alma do pai. Destacamos como o sentimento de
culpa vai se atenuando na mesma medida em que a imagem paterna vai
diminuindo, diminuindo.
E todos principiaram muito calmos, falando de papai. A
imagem dele foi diminuindo, diminuindo e virou uma
estrelinha brilhante do céu. Agora todos comiam o peru
com sensualidade, porque papai fora muito bom, sempre se
sacrificara por nós, fora um santo que ‘vocês meus filhos, nunca
poderão pagar o que devem a seu pai’, um santo. Papai virara
um santo, uma contemplação agradável, uma inestorvável
estrelinha do céu. Não prejudicava mais ninguém, puro objeto
de contemplação suave. O único morto ali era o peru,
dominador, completamente vitorioso [...] E foi, sei que foi
aquele primeiro peru comido no recesso da família, o início de
um amor novo, reacomodado, mais completo, mais rico e
inventivo, mais complacente e cuidadoso de si” (ANDRADE,
1996, p. 75, grifo nosso).

Aparentemente, Juca é a figura transgressora da narrativa; contudo,


precisamos lembrar que é o grande Outro que ensina o sujeito a desejar, de
modo que o desejo nunca é o desejo do sujeito, mas o desejo do outro.
Assim, Žižek (2010, p. 55) afirma que “o que eu desejo é predeterminado
pelo grande Outro, o espaço simbólico em que habito. Mesmo quando
meus desejos são transgressivos, mesmo quando eles violam normas
sociais, essa própria transgressão depende do que ela transgride”. A
afirmação de Žižek leva a refletir até que ponto o ato aparentemente
transgressor da família de Juca é uma ameaça para a ordem simbólica, uma
vez que a própria lei tem seu percentual da transgressão inerente.
A pesquisa de Fascina (2021, p. 58) também pondera essa questão na
análise dos contos de Clarice, ao afirmar que “a norma é fundada
justamente pela possibilidade incessante de transgressão. A tara, o incesto,
o adultério – tudo isso forma o pano de fundo invisível, mas previsto pela

­ 191 ­
norma: seu fundamento obsceno. Transgredir não é romper com a norma,
mas afirmá­la de outra maneira [...]”.
Com base nos escritos de Žižek sobre transgressão inerente, Christine
Evans (2015, p. 136, tradução livre) explica que:
Ao negar a função estruturante da Lei Simbólica Pública, o
sujeito pode aparentemente agir livremente e transgredir a Lei.
No entanto, essa liberdade é ilusória; quando o sujeito se
posiciona “contra” a ordem simbólica e tenta desestabilizá­la
transgredindo seus limites, o grande Outro mais do que
antecipou esse ataque – ele, de fato, pré­inscreveu a
perturbação em sua própria constituição, e oferece a
transgressão como uma escolha forçada. O conteúdo da
transgressão não prejudica a lei simbólica pública, mas
funciona como seu “suporte não reconhecido e obsceno”.

A partir da citação, pontuamos que, em O peru de Natal, a transgressão


não se configura como uma ameaça à ordem simbólica, porque funciona
como o suporte obsceno que sustenta as relações familiares burguesas na
sociedade do século XX. Podemos dizer que, apesar da rigidez paterna, Juca
sempre foi o filho que fez tudo o que quis e cresceu sem complexos: beijou
a prima às escondidas aos dez anos, saía para beber, mantinha um romance
com uma mulher chamada Rose, alimentava pensamentos nada nobres em
relação ao pai. Mais do que isso, todos sabem de tudo isso, mas agem como
se não soubessem, mantendo as aparências:“O diabo é que a Rose, católica
antes de ser Rose, prometera me esperar com uma champanha. Pra poder
sair, menti, falei que ia a uma festa de amigo, beijei mamãe e pisquei pra ela,
modo de contar onde é que ia e fazê­la sofrer seu bocado” (ANDRADE,
1996, p. 75).
Conforme Evans (2015, p. 136), “Žižek explica que alguém só pode
pertencer adequadamente a uma comunidade quando está preparado para
violar suas regras explícitas, participando assim das ‘regras obscenas não
escritas que regulam a transgressão inerente da comunidade’”. O conto
demonstra que não é apenas Juca que está disposto a descumprir as regras,
pois todos esquecem o luto por certo momento para aproveitar o delicioso
peru só deles. Ademais, todos sabem das “loucuras” do jovem, mas são
coniventes, o que leva a crer que ele pode agir de modo desregrado, desde

­ 192 ­
que isso não “ultrapasse os limites do domínio público” (ŽIŽEK, 2010, p.
104), ou seja, desde que as aparências sejam mantidas. Assim, apesar do
potencial transgressor de Juca, ele se torna apenas o elemento estabilizador
da ordem, pois seu comportamento desviante, embora possa contrariar as
normas sociais (códigos e proibições), está previsto pelas regras não
escritas que constituem a transgressão inerente a toda lei.

Considerações Finais

As reflexões elaboradas no decorrer deste texto não pretendem ser


definitivas, mas ampliar os estudos literários à luz do materialismo
lacaniano, tendo em vista suas contribuições no âmbito da literatura. Assim,
esperamos que tais reflexões possam fomentar novas pesquisas que
abordem temas como o grande Outro em outros contos ou romances, de
modo a possibilitar diferentes e novas compreensões da realidade.
Verificamos, a partir da análise, que existe uma ordem simbólica que
regula o comportamento dos personagens. O grande Outro surge,
inicialmente, como instância virtual, intangível, para lembrá­los das regras
da boa convivência familiar. Posteriormente, o grande Outro é
corporificado na imagem do pai de Juca, causando desconforto e culpa.
Isso demonstra que a ordem simbólica da narrativa se sustenta mesmo
quando surge a possibilidade de transgredi­la, uma vez que o grande Outro,
tendo antecipado a ação transgressora, encontra uma maneira de
reestruturar o simbólico dos personagens.
A trama do Simbólico funciona inclusive para Juca, que parece
transgredir as regras simbólicas, mas se torna tão somente o elemento
estabilizador da ordem, pois seu comportamento desviante, embora possa
contrariar as normas sociais (códigos e proibições), está previsto pelas
regras não escritas que constituem a transgressão inerente a toda lei.

­ 193 ­
Referências

ALVES, Érica F. FERREIRA, Geniane D. F. 1984, de George Orwell, a


manipulação da linguagem e o materialismo lacaniano. Travessias,
Cascavel, v. 12, n. 2, p. 28 – 43, maio/ago. 2018.

AMORA, André Luiz A. C. De Mário de Andrade e de Epicuro: uma


análise de O peru de Natal. VI ENLETRARTE ­ Encontro Nacional de
Professores de Letras e Artes. Campos dos Goytacazes/Rio de Janeiro,
2015.

ANDRADE, Mário de. O peru de natal. In: Contos Novos. Belo Horizonte:
Vila Rica Editoras Reunidas Limitadas, 1996.

EVANS, Christine. Inherent Transgression. In: BUTLER, Rex (org.). The


Žižek Dictionary. Routledge, 2015. E­book.pp. 136­139.

FASCINA, Diego L. M. Clarice Lispector: uma leitura materialista


lacaniana. Curitiba: Brazil Publishing, 2020.

SANTOS, Estela P. Regras simbólicas e incitação ao “Goze!” no conto


“Apenas um saxofone”, de Lygia Fagundes Telles. In: Anais do 1º
Encontro Nacional de Diálogos Literários: um olhar para as poéticas
contemporâneas. Campo Mourão: UNESPAR, agosto/2017, pp. 452­457.

SILVA, Marisa C. Materialismo Lacaniano. In: BONICCI, Thomas & ZOLIN,


Lucia O. (org.). Teoria Literária: Abordagens históricas e tendências
contemporâneas. 3. ed. Maringá: Eduem, 2009. p. 211­216.

ZEIHER, Cindy. Other/Big Other. In: BUTLER, Rex (org.). The Žižek
Dictionary. Routledge, 2015. E­book. pp. 205­208.

ŽIŽEK, Slavoj. Como ler Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

ŽIŽEK, Slavoj. Lacrimae rerum: ensaios sobre cinema moderno. São


Paulo: Boitempo, 2018.

­ 194 ­
A TRÍADE SIMBÓLICA NA OBRA PONCIÁ VICÊNCIO, DE
CONCEIÇÃO EVARISTO
Milene Vitória Ferreira da Silva
Maria Betânia da Rocha de Oliveira

Considerações iniciais

Muito se tem discutido acerca do materialismo lacaniano, uma teoria


ampla que possui muitos conceitos, dentre eles, o da tríade simbólica que
corresponde ao Simbólico, Imaginário e Real. Essas dimensões formam o
nó borromeano, perspectiva na qual respaldamos os nossos estudos. O
filósofo esloveno Slavoj Žižek foi o precursor da teoria, que sempre está
estudando e publicando para levar aos seus leitores mais explicações sobre
o assunto.
Os estudos a respeito da Tríade simbólica e do materialismo lacaniano
surgiram a partir do interesse em analisar o Simbólico, o Imaginário e o
Real, na obra Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo. O romance aborda a
vida de Ponciá e sua família, retratando a infância e parte da juventude da
moça e os efeitos da escravidão e da pobreza na vida destes personagens.

­ 195 ­
Ao unir essa realidade à tríade simbólica e aplicar na vivência da
personagem Ponciá Vicêncio, foi possível observar muitas explicações
acerca da existência humana, uma vez que a personagem está sempre
buscando escapar da realidade em que vive para um mundo onde possa se
sentir completa.Todavia, frustra­se ao não conseguir preencher seus vazios,
visto que muitas das suas idealizações não se concretizam, provocando dor
e eventos traumáticos.
No decorrer deste texto, discorremos sobre Slavoj Žižek e sobre as bases
do materialismo lacaniano; apresentamos alguns conceitos do
materialismo de Žižek; em seguida, discutimos, brevemente, sobre a vida e
as obras de Conceição Evaristo; por fim, analisamos a tríade Simbólico,
Imaginário e Real, no romance Ponciá Vicêncio.

Sobre Slavoj Žižek e suas bases do materialismo lacaniano

Slavoj Žižek nasceu no dia 21 de março de 1949, na cidade de Liubliana,


Eslovênia (antiga Iugoslávia). É formado em Letras e em Filosofia, e manteve
sua referência academicista às ideias de Hegel e Heidegger, por intermédio
de Lacan, levando em conta a atualização do marxismo e a compreensão
única do conjunto de teorias idealistas alemãs. Sendo assim, pode­se notar
que, mesmo apesar de sua originalidade, Žižek traz consigo concepções
advindas de seus estudos sobre outros pensadores.
Žižek fez dois cursos de Doutorado, sendo o primeiro em Filosofia, pois,
ao se ver preocupado com as várias transformações políticas da Liubliana,
suas concepções traziam reflexões acerca das áreas sociais e políticas que
já apresentavam convergências com Hegel e Heidegger. O segundo
doutorado foi em Psicanálise, em meados de 1970, com Jacques­Alain Miller
e François Regnault, em uma época de inúmeras transformações na história
política da Liubliana/Iugoslávia. O que o motivou a fazer um segundo
doutorado foram os acontecimentos da época, que tornaram ainda mais
resistentes as ideias de um comunismo de posições mais rigorosas. (ŽIŽEK;
GLYN, 2006).

­ 196 ­
Em ‘Arriscar o impossível: conversas com Žižek’ (2006), Žižek confessa
para Glyn Daly que era difícil se posicionar em meio ao contexto histórico
de seu país, uma vez que possuía um pensamento heterodoxo, que não era
bem visto; isso lhe serviu como combustível para que pudesse se
posicionar veementemente. O filósofo esloveno mantém sua teoria crítica
e seus estudos nas áreas da psicanálise, cultura popular e política. Sua teoria
consiste em uma visão marxista crítica da sociedade capitalista e dos seus
modos de coerção.
A teoria de Žižek aponta para a relevância da psicanálise (mas sem o viés
clínico especificamente) como meio para se entender melhor a cultura e a
política. Em suas obras, o pesquisador reflete como as nossas aspirações e
individualidades são ajustadas por procedimentos psicanaliticamente
funcionais que influenciam em nossas preferências sociais e políticas. Em
síntese, a teoria de Slavoj Žižek mantém uma crítica radical ao capitalismo
e um estudo psicanalítico cultural e de interesse público. Suas concepções
têm influenciado a filosofia moderna e a esquerda política mundialmente
falando.
Conhecido por difundir o materialismo lacaniano, cujas bases são a
psicanálise e a teoria marxista, Slavoj Žižek mantém a opinião de que o
materialismo lacaniano não é uma colocação inferior que reduz o mundo a
um assunto de dimensões físicas, mas uma linha teoria que destaca a
relevância que a tríade ­ Simbólico, Imaginário e Real, para a análise da
existência humana.
Para o filósofo, o materialismo, acrescido de Lacan, remete a uma
interpretação mais aprofundada do surgimento do desejo humano e da
maneira como este é modelado e fundamentado pelas vertentes simbólicas
e sociais. Para ele, o desejo não é algo totalmente orgânico, mas sim
resultado do simbólico, uma vez que ocupa uma posição fundamental na
construção e no direcionamento do desejo humano.
No mais, Žižek (2006) pontua que o materialismo lacaniano colabora
para que o ser humano consiga enxergar a falácia de divisões
convencionais entre mente e corpo, sujeito e instrumentos, e

­ 197 ­
originalidades e costumes. Ele argumenta que essas vertentes não possuem
individualidades, isto é, elas são dependentes, recíprocas e/ou
convergentes.
De acordo com Oliveira (2020), o materialismo lacaniano mantém sua
atenção voltada ao estudo das relações entre as áreas da linguística, da
teoria social, da psicologia e dos estudos culturais. O materialismo
lacaniano defende que não é possível analisar o ser humano como um
indivíduo separado, pois deve ser levado em conta todo o contexto de seu
círculo social, político, histórico, linguístico e cultural. Sendo assim,
reconhece­se que a conduta e as emoções do ser humano são definidas
pelos costumes e regras que o rodeiam.
De acordo com essa corrente, a conversação e linguagem são recursos
pelos quais criamos e produzimos nossa percepção de “eu”, por vezes
chamada de “personalidade”, e nossa interpretação do universo. A maneira
como discursamos influi em nosso modo de enxergar o mundo e na
construção de vínculos com os outros.
Ademais, o materialismo lacaniano ressalta a relevância do exânime em
nossa rotina. Em concordância com esse pensamento, o inconsciente é
uma potência que atua em nossas vivências e motiva nossas vontades e
atos, conforme é expresso em alguns dos conceitos dessa linha teórica, os
quais discutimos na próxima seção.

Alguns conceitos de Žižek

Para Žižek (2010), a existência de um sujeito humano está relacionada ao


funcionamento de uma Tríade Simbólica, que é formada por três níveis
entrelaçados (Simbólico, Imaginário e Real), que constituem a realidade
dos seres humanos. Para isso, foi usada a imagem de três anéis entrelaçados
que, no caso da ruptura de apenas um deles, há o desligamento de todos.
Esses anéis formam o nó borromeano, um nó perfeito que possibilita a
movimentação da vida humana.
Para explicar o funcionamento dessa tríade, Žižek (2010, p. 16­17) faz

­ 198 ­
uma analogia com o jogo de xadrez:
As regras que temos de seguir para jogar são sua dimensão
simbólica: do ponto de vista simbólico puramente formal,
“cavalo” é definido apenas pelos movimentos que essa figura
pode fazer. Esse nível é claramente diferente do imaginário, a
saber, o modo como as diferentes peças são moldadas e
caracterizadas por seus nomes (rei, rainha, cavalo), e é fácil
imaginar um jogo com as mesmas regras, mas com um
imaginário diferente, em que esta figura
seria chamada de “mensageiro”, ou “corredor”, ou de qualquer
outro nome. Por fim, o real é toda a série complexa de
circunstâncias contingentes que afetam o curso do jogo: a
inteligência dos jogadores, os acontecimentos imprevisíveis
que podem confundir um jogador ou encerrar imediatamente
o jogo.

O funcionamento da tríade mantém uma estreita relação entre o


significante, em seus aspectos visuais/formais; e o significado, em seus
aspectos conceituais, cujas regras devem ser conhecidas por todos
(Simbólico), uma vez que o Imaginário se relaciona com os conceitos e as
ideias que o indivíduo faz uso para viver no mundo, em conformidade com
as regras do Simbólico. Esses dois níveis estão no plano da linguagem, no
entanto, além desse terreno seguro, há o Real: o excesso que também
compõe a realidade e sua irrupção é sempre traumática e catastrófica. Nas
palavras de Oliveira (2020, p. 64),
Simbólico, Imaginário e Real – os três níveis entrelaçados que
compõem a existência do homem – formam redes de
significados, que variam conforme os diferentes contextos
sociais e históricos que constituem a ordem Simbólica, a qual é
composta por um conjunto de regras que determinam o
movimento do ser na sociedade.

O Simbólico está ligado ao conjunto de regras, leis ou normas de uma


sociedade, ou seja, ao lugar no qual se situa algo ou um indivíduo, está
inserido na linguagem e na cultura do ser. O Imaginário é o conjunto de
imagens ideais que cristalizam certos conceitos de forma concentrada e
que podem ser supra linguísticos (como um frame de cinema tornado
famoso em todo o mundo, por exemplo).
O Real é muito mais complexo e profundo: trata­se de um estágio

­ 199 ­
incompreensível, uma vez que está situado fora do Simbólico e do
Imaginário. Em outras palavras, é um excesso da realidade e, via de regra,
apenas o encontro com algo traumático, uma grande perda, um sofrimento,
algo que nos tire do prumo, como muita gente fala ao passar por uma
situação extremamente ruim. O Real é inenarrável, indizível e irrompe
quando o imaginário não consegue mais sustentar a integração da vida.
(OLIVEIRA, 2020).
Sobre o movimento do ser humano em relação ao funcionamento da
tríade, Žižek (2010) faz referência à composição da ordem simbólica que
da realidade e destaca a importância do grande Outro, uma instância virtual
que opera no nível simbólico: “Quando falamos (ou quando ouvimos),
nunca interagimos simplesmente com outros; nossa atividade de fala é
fundada em nossa aceitação e dependência de uma complexa rede de
regras e outros tipos de pressupostos”. (ŽIŽEK, 2010, p. 17).
O grande Outro não existe de fato, mas exerce um poder sobre o ser
humano quando passa a agir como se ele existisse. O grande Outro é o
“olhar sem olho” das regras que estruturam a convivência social. As
organizações e instituições, bem como a própria linguagem, modelam a
vivência do homem e determinam as chances e as continências de suas
atitudes e preferências. Com uma forma abstrata, o grande Outro retrata
uma motivação deliberativa nas vivências do ser humano dentro da ordem
simbólica.

Ponciá Vivêncio: uma análise da obra de Conceição Evaristo


Sobre a autora
Nascida em 1946, em Belo Horizonte ­ MG, Maria Conceição Evaristo de
Brito se formou no Ensino Médio em 1970. Mudou­se para o Rio de Janeiro
com o foco no magistério público e percebeu que, naquela região, o
movimento negro tinha maior força e profundidade. Em 1976, Conceição
Evaristo iniciou a faculdade de Letras pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro, a qual só foi possível terminar anos depois, em razão do
nascimento da sua filha Ianá. Além de ter se formado em Letras, Conceição

­ 200 ­
Evaristo é mestra em Literatura Brasileira pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (1996) e doutora em Literatura Comparada pela
Universidade Federal Fluminense (2011). (MACHADO, 2014).
Conceição Evaristo concebe seus textos a partir de sua condição de
mulher negra na sociedade brasileira. Vinda de uma família pobre,
enfrentou diversos obstáculos para conseguir chegar aonde chegou e teve
que dividir seu tempo entre o trabalho doméstico e os estudos. Dessa
forma, sua produção literária, seu campo imaginário e sua ficcionalização
vêm à tona por intermédio de sua própria autorrepresentação, que
também gera uma representação coletiva de incontáveis afro­brasileiros.
Suas obras narram histórias de personagens que lutam como ela contra o
racismo e contra a desigualdade de gênero. Além disso, a autora escreve
sobre o mundo pós­abolição e suas sequelas.
Dentro do movimento negro brasileiro contemporâneo, é possível
observar que a vida e a produção literária de Conceição têm o objetivo de
trazer à tona questões raciais, de gênero e de classe, como nas obras: Ponciá
Vicêncio (2003), Becos da memória (2006), Poemas de recordação e
outros movimentos (2008), Insubmissas lágrimas de mulheres (2011),
Histórias de leves enganos e parecenças (2014) e Canção para ninar
menino grande (2018).
Por considerarmos Conceição Evaristo um dos grandes nomes da
literatura, com um trabalho conscientizador no que diz respeito à
identidade nacional, neste artigo, analisamos uma de suas obras (Ponciá
Vicêncio), por intermédio da teoria da tríade Simbólica.

Sobre a tríade simbólica na obra


O romance Ponciá Vicêncio (2017) fala sobre a infância e parte da vida
adulta de Ponciá, uma jovem que teve a vida marcada pelos efeitos da
escravidão e da pobreza, o que lhe causou inúmeros sofrimentos. Ponciá
sofreu com a dor de várias perdas: primeiro, a morte do avô que, mesmo ela
sendo uma criança de colo, deixara marcas profundas; posteriormente, a
morte do pai; e a viagem do irmão e da mãe. Além de outras que ocorrem
no decorrer da narrativa.

­ 201 ­
Quando cresceu, Ponciá percebeu que morar na Vila Vicêncio não lhe
proporcionaria um futuro melhor, assim, decidiu ir embora de trem para a
cidade grande, a fim de resolver seus problemas. Seu sonho era trabalhar,
juntar dinheiro e comprar uma casa na cidade para viver com a mãe e o
irmão. No entanto, isso não aconteceu, pois, com o passar do tempo, Ponciá
não conseguiu um bom emprego, não foi feliz em seu casamento e ainda
sofrera sete abortos.
Tempos depois, a moça se encontra com a mãe e o irmão, na estação de
trem, pois eles também foram para a cidade. O irmão, que foi levado pelo
destino a trabalhar em uma delegacia, chegou a ser soldado; e sua mãe,
guiada por Nêngua Kainda (uma mulher sábia)7, partiu em busca dos filhos.
O encontro dos três marca a volta de Ponciá para a Vila Vicêncio.
Após esse breve resumo da narrativa, apresentamos alguns trechos do
romance para analisá­los, sob a perspectiva da tríade simbólica (Simbólico,
Imaginário e Real), aplicando esses conceitos na vida da personagem
principal.
O Simbólico se aplica à narrativa da vida de Ponciá no que diz respeito
ao seu lugar de mulher negra na sociedade. Ademais, verificamos a
presença do Simbólico na questão da escravidão sofrida pelos ancestrais e
na dura realidade vivida pela personagem e por sua família que, mesmo
após conquistar a liberdade, ainda se viam presos ao passado, ao nome do
“Coronel Vicêncio” e ao trabalho árduo na terra dos brancos.
Ponciá não gostava de seu nome, ao longo da narrativa, ela almeja mudar
de nome diversas vezes, pois acreditava que isso mudaria a sua vida; a
personagem fugia das regras que eram impostas pela sociedade, ao ver
todo o sofrimento da família, o homicídio da avó, a morte do avô e a morte
do pai.
O movimento de Ponciá, dentro da ordem simbólica, se relaciona às
instâncias do Simbólico e do Imaginário. Na primeira, observamos as
normas impostas à personagem protagonista e ao seu povo: todos

7. Nêngua Kainda aparece na narrativa como uma mulher velha e sábia. É respeitada por todos
por sua sabedoria e pelas curas realizadas com a mistura de ervas e rezas. Nela, são evidenciadas
as marcas da ancestralidade, da religião, da espiritualidade e do misticismo do povo africano.

­ 202 ­
carregavam o fardo do sobrenome Vicêncio, herdado de um estranho, um
homem que nunca fizera parte da família, era um dono de escravos, o dono
do “Vô Vicêncio”.
Nessa perspectiva, Ponciá carregava essa realidade, a de um passado com
o qual era impossível se reconciliar. Apesar disso, por meio das muitas
indagações, buscava estabelecer uma relação entre a vida privada de toda
liberdade e a falta de perspectiva em uma vida mais justa, pois vivia sob o
jugo da escravidão. A realidade a conduzia a repetir os passos de seus
antepassados, mesmo após a assinatura da carta de alforria. Portanto,
compreendemos que o nome da personagem funciona dentro do
Simbólico como uma carga da tradição escravagista que oprimiu seus
antepassados e da qual ela desejava se libertar.
Ponciá Vicêncio sabia que o sobrenome dela tinha vindo desde
antes do avô de seu avô, o homem que ela havia copiado de sua
memória para o barro e que a mãe não gostava de encarar. O
pai, a mãe, todos continuavam Vicêncio. Na assinatura dela a
reminiscência do poderio do senhor, um tal coronel Vicêncio. O
tempo passou deixando a marca daqueles que se fizeram donos
das terras e dos homens. E Ponciá? De onde teria surgido
Ponciá? Por quê? Em que memória do tempo estaria escrito o
significado do nome dela? Ponciá Vicêncio era para ela um
nome que não tinha dono. (EVARISTO, 2017, p. 26­27).

As indagações de Ponciá remetem à aceitação e à dependência das


regras impostas pela ordem simbólica em sua relação com os outros.
Parafraseando Žižek (2010), podemos afirmar que, para Ponciá, há regras
que devem ser seguidas cegamente, pelas circunstâncias históricas, sociais
e culturais, mas existe a possibilidade de reflexão, para que observe essas
situações de forma consciente.
O pai de Ponciá aprendeu a escrever o nome, mas não levou os estudos
à frente, pois, sem apoio, teve que continuar o trabalho do pai (avô de
Ponciá), de quem tinha rancor, pelos acontecimentos do passado. O
Simbólico pode ser observado quando Ponciá e sua família ocupam o
trabalho que lhes foi destinado sem poder se opor: eram as leis que regiam
uma sociedade marcada pela dominação da escravidão.
No fragmento abaixo, apresentamos outra situação na qual é possível

­ 203 ­
verificar esse movimento da tríade. Desde cedo, Ponciá via o pai e o irmão
trabalharem arduamente para garantir o sustento da família, passando
inúmeros dias fora de casa, era um trabalho herdado que lhes fora imposto.
(...) Ponciá Vicêncio se lembrava pouco do pai. O homem não
parava em casa. Vivia constantemente no trabalho da roça, nas
terras dos brancos. Nem tempo para ficar com a mulher e filhos
o homem tinha. Quando não era tempo de semear, era tempo
de colheita, e ele passava o tempo todo lá na fazenda.
(EVARISTO, 2017, p. 16).

Nesse interim, verificamos a relação entre o Simbólico e o Imaginário,


principalmente, quando observamos a forma como Ponciá se movimenta
entre o que está posto – a opressão e a privação da liberdade ­ e os vários
significados que ela busca para se ajustar àquela realidade. Observemos
que para aquelas pessoas que viviam na Vila Vicêncio, em especial, para a
própria Ponciá, aprender a ler e a escrever poderia ser a porta de saída
daquele lugar, bem como a porta de entrada para um lugar melhor, uma
fuga da herança de opressão passada de geração em geração.
Ponciá tinha consciência disso desde cedo e, ao buscar esse
conhecimento, provocava novos significados na ordem Simbólica que a
envolvia, pois, ao invés da roça, a cidade passa a ser a imagem almejada:
Na roça, não! Outro saber se fazia necessário. O importante na
roça era conhecer as fases da lua, o tempo de plantio e de
colheita, o tempo das águas e das secas. A garrafada para o mal
da pele, do estômago, do intestino e para as excelências das
mulheres. Saber a benzedura para o cobreiro, para o osso
quebrado ou rendido, para o vento virado das crianças. O saber
que se precisa na roça difere em tudo do da cidade. (EVARISTO,
2017, p. 25).

Dessa forma, ela acreditava que se saísse da Vila Vicêncio e fosse para a
cidade grande teria um futuro melhor, estaria livre do passado, descobriria
sua identidade, daria a si mesma um novo nome, uma vida melhor para a
família, iria trabalhar e comprar uma casa. Enquanto, neste trecho, o
Simbólico se relaciona de forma mais próxima às leis que estruturam a
realidade de Ponciá; o Imaginário se liga à questão da imagem que ela
projetava da roça e da cidade. Calcada nessa projeção, a menina parte em
busca de novos significados para sua existência.

­ 204 ­
Por aqueles tempos, pelo interior andavam uns missionários.
Um dia a notícia correu. Eles iriam demorar por ali e montariam
uma escola. Quem quisesse ir aprender a ler, poderia. Ponciá
obteve o consentimento da mãe. Quem sabe a menina um dia
sairia da roça e iria para a cidade. Então carecia aprender a ler.
(EVARISTO, 2017, p. 25).

No campo do significado, o Imaginário pode ser alterado, permitindo


que Ponciá continue se movimentando no Simbólico. Esses movimentos
fornecem as coordenadas para que ela continue transitando no Simbólico
sem perder as regras que lhe são impostas.
Cansa da luta insana, sem glória, a que todos se entregavam para
amanhecer cada dia mais pobres, enquanto alguns conseguiam
enriquecer todos os dias. Ela acreditava que poderia traçar
outros caminhos, inventar uma vida nova. E, avançando sobre o
futuro, Ponciá partiu no trem do outro dia, pois tão cedo a
máquina não votaria no povoado. Nem tempo de se despedir
do irmão teve. (EVARISTO, 2017, p. 30).

Ponciá parte para a cidade, mas seu movimento dentro da ordem


Simbólica continua atestando que o vazio, a lacuna, as angústias continuam
lá, em seu íntimo. A tão sonhada liberdade não fora efetivada longe da Vila.
Os seus semelhantes continuavam sob a dominação dos poderosos.A partir
desse momento, Ponciá atesta que há algo não resolvido; há um conflito
que se manifesta naquilo que a teoria lacaniana chama de “um excesso de
vida”.
O conflito é existencial e se instala nas próprias tentativas de se afastar
daquilo que lhe é negado (a liberdade). Ponciá se aproxima das mazelas
que os resquícios da escravidão deixaram como herança para ela e seu
povo. Ela é, ao mesmo tempo, o excesso dentro da ordem simbólica e o
impulso que busca se afastar dela, como podemos perceber no seguinte
excerto: “(...) Lá estava ela agora com seu homem, sem filhos e sem ter
encontrado um modo de ser feliz. Talvez o erro nem fosse dele, fosse dela,
somente dela”. (EVARISTO, 2017, p. 47).
Conforme destacamos anteriormente, Ponciá teve muitas perdas e todas
poderiam ocupar a função de um encontro com o Real na narrativa, mas
observamos que as três instâncias permaneceram “amarradas”. Isto é,
Simbólico, Imaginário e Real garantiram o movimento da existência da

­ 205 ­
protagonista em um perfeito entrelaçamento: os eventos traumáticos não
foram suficientes para desintegrar a realidade, de modo que a psique da
moça não se desintegra.
A existência humana, caracterizada pelas atividades contínuas
dos indivíduos dentro de uma relação formal que estabelece as
ações e as escolhas do homem, bem como suas consequências,
é concebida nas dimensões do Simbólico, do Imaginário e do
Real, em que o Real é o excesso resultante das tentativas do
homem de se ajustar ao mundo simbólico, por meio da
linguagem, a qual estrutura a relação entre o significante (o
Simbólico) e o significado (o Imaginário). Fora do âmbito da
linguagem, o Real é, além de aterrorizante, inenarrável e,
conforme já dissemos anteriormente, o Real irrompe quando o
imaginário não consegue mais “sustentar” a integração
simbólica da vida. (OLIVEIRA, 2020, p. 65).

Ponciá carregou a dor da morte de sete filhos – sete abortos tiraram a


sua vontade de ser mãe. A existência de um filho seria como perpetuar a
herança da dominação escrava, fazendo com que ela questionasse se valia a
pena trazer um filho ao mundo para dar­lhe a mesma vida sofrida que ela
tinha.A atitude de não desejar ser mãe por medo, nos remete a uma ideia de
trauma em relação ao passado.
A frustração pesou o coração e a mente de Ponciá. O fato de não poder
alcançar a estabilidade financeira fez com que a jovem optasse por não
querer mais ser mãe. Em outras palavras, apesar das perdas, Ponciá
conseguiu sustentar a integração da sua vida simbólica.
Ela sofreu muito. Depois, com o passar do tempo, a cada
gravidez, a cada parto, ela chegava mesmo a desejar que a
criança não sobrevivesse. Valeria a pena pôr um filho no
mundo? Lembrava de sua infância pobre, muito pobre na roça e
temia a repetição de uma mesma vida para seus filhos.
(EVARISTO, 2017, p. 70).

A personagem vivenciou muitas situações de dor e de sofrimento, mas


este momento foi um dos mais marcantes, porque Ponciá reviveu suas
memórias e as memórias de seus entes queridos, como em uma peça
teatral. Aliás, ela representou a mesma cena que o avô: sorriu, gargalhou,
chorou e quis voltar para casa, voltar ao rio, voltar ao início de tudo, num
movimento circular que não resolve os dilemas nem o sofrimento, mas que

­ 206 ­
indiciam a perenidade dos problemas sociais enfrentados pela
protagonista.
Um dia, depois de olhar para o homem como se não o visse,
depois de tantos anos recolhida, enterrada, morta­viva dentro
de casa, Ponciá Vicêncio sorriu, gargalhou, chorou dizendo que
sabia o que devia fazer. Ia tomar o trem, voltar ao povoado.
Voltar ao rio. Dizendo isto apanhou debaixo do banco a
estatueta do homem­barro. Pegou ainda uns panos e com um
gesto antigo, com um modo rememorativo de sua mãe,
perguntou se havia folhas de bananeira secas e palhas de milho
para embrulhar o barro. Em seguida fez uma pequena trouxa e
lentamente saiu. (EVARISTO, 2017, p. 104).

Considerações finais

Estudar sobre a obra de Conceição Evaristo proporcionou um


conhecimento mais aprofundado acerca das sequelas que a escravidão
deixou na vida da personagem principal. Mesmo não vivendo no período
da escravidão, Ponciá e toda a sua família foram extremamente afetados.
O fato de receber o sobrenome daquele que foi o “dono” de seus
ancestrais não agradava Ponciá que, a todo momento, almejava uma nova
realidade, um novo nome, uma vida diferente, fazendo com que ela
buscasse não só reconstruir suas condições materiais de vida, mas também
a sua estrutura existencial, para que não permanecesse inexoravelmente na
extrema pobreza, na humilhação e na condição de explorada. O trauma do
encontro com o Real não é apresentado num ponto fulcral, mas sim na
constatação dolorosa e cotidiana de que nada mudaria. Assim, só resta a ela
retornar ao ponto de partida.
Aplicar a teoria do Materialismo Lacaniano, observando o
funcionamento da tríade (Simbólico, Imaginário e Real), na obra Ponciá
Vicêncio, possibilitou um aprofundamento acerca das regras, leis e normas
impostas pela sociedade no nível do Simbólico e do Imaginário, e, por
último, o Real que vem como um nível mais complexo e profundo e que
remete a um efeito de trauma, dor e sofrimento. Contudo, em Ponciá
Vicêncio, esse Real fora ressignificado, uma vez que a cada perda, a

­ 207 ­
personagem conseguiu retornar ao convívio com a realidade que a
cercava.

Referências

MACHADO, Bárbara Araújo. “Escrevivência”: a trajetória de Conceição


Evaristo. História Oral, v. 17, n. 1, p. 243­265, jan./jun. 2014.

EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. 3 ed. Rio de Janeiro: Pallas,


2017.

OLIVEIRA, Maria Betânia da Rocha de. Policarpo Quaresma entre o


Imaginário e o Real de Žižek: O triste fim nas teias da violência
sistêmica e simbólica da linguagem. 166 f. Tese (Doutorado em Letras) ­
Universidade Estadual de Maringá, Programa de Pós­Graduação em Letras ­
PLE. Tese de Doutorado. Maringá, 2020.

ŽIŽEK, Slavoj. Como ler Lacan. Tradução Maria Luzia Borges. Rio de
Janeiro: Zahar, 2010.

ŽIŽEK, Slavoj; GLYN, Daly. Arriscar o impossível: conversas com Žižek.


Tradução Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

­ 208 ­
A MULHER NA OBRA DE LIMA BARRETO: DIFERENTES
OLHARES SOBRE O CASAMENTO
Maria Betânia da Rocha de Oliveira

Considerações iniciais

É curioso como nós, mulheres, não somos instigadas a pensar sobre a


história de nossa existência. O cotidiano nos consome e as ideias nele
difundidas faz percebermo­nos apenas com o olhar, ideologicamente
difundido, de seres frágeis, dependentes, incapazes de ações para além dos
cuidados da casa, dentre tantos desígnios a nós atribuídos. A fragilidade, a
dependência, o trabalho fora de casa etc., são fatos que podem ser
vivenciados por qualquer humano.
Neste capítulo, discutiremos a respeito do casamento, principalmente,
sobre como este é percebido pelas personagens de Lima Barreto, em seu
romance Triste Fim de Policarpo Quaresma8. Tentaremos demonstrar, por
meio da Tríade Simbólica (Simbólico, Imaginário e Real), como uma
8. O romance foi escrito em 1911, mas a primeira publicação data de 1915. A versão utilizada
neste capítulo é a: BARRETO, Lima. Triste Fim de Policarpo Quaresma. 5 ed. São Paulo: Martin
Claret, 2011.

­ 209 ­
categoria social adquire rigidez ou flexibilidade, dependendo do contexto
histórico e, inclusive, do sujeito que incorpora ou não tal (tais) crença(s).
Diferente das leis naturais (lei da gravidade), as leis socialmente
constituídas adquirem uma aparente rigidez que leva à impressão de
imutabilidade de algo que, na verdade, foi construído pelos humanos e que,
portanto, por eles pode ser destruído.
A desconstrução de ideias que desenham as mulheres como seres
inferiores é um trabalho árduo que persiste até os dias atuais. Diversos
nomes compõem a história de luta da sexo feminino, que tem sido tratado
como secundário. Conforme as concepções de Simone de Beauvoir (1980),
essa inferiorização da mulher é visível não apenas em registros antigos,
como o texto bíblico, no qual a primeira mulher foi criada da costela do
homem, mas ainda hoje, em pleno século XXI.
Ao longo desse trajeto, observamos algumas mudanças, contudo, ainda é
necessário contestarmos tal secundarização e combatermos as violências
que a mulher sofre e que têm se revelado com uma força assustadora nos
dias que correm. Por tudo que suportam, a existência feminina só revela
resistência e fortaleza que, portanto, contradiz a ideia tantas vezes repetida,
que identifica todas as mulheres como frágeis.
Havendo condições suficientes, a mulher consegue demonstrar a sua
capacidade de responder das necessidades mais simples às mais
complexas, no ambiente familiar, profissional ou na academia, realizando
pesquisas nos mais variados campos. Quando inseridas nesses espaços, as
mulheres realizam seu trabalho com eficiência e com competência.
Dito isto, pretendemos analisar a percepção do casamento, a partir dos
escritos de Lima Barreto, à luz do Materialismo Lacaniano. O referido
escritor viveu no final do século XIX e início do século XX, um momento
no qual a luta feminina no Ocidente estava nos seus primórdios e, na
maioria das culturas, a mulher “bem educada” se destinava apenas ao
casamento.
Convém ressaltar que Barreto trata dessa categoria em outros textos
pois, ao construir seus escritos, deu forma a personagens que, de maneira

­ 210 ­
fictícia, retratavam a realidade encontrada na sociedade brasileira,
particularmente a do Rio de Janeiro, local onde o autor nasceu e morreu.
Nosso corpus de estudo são as personagens Olga, Ismênia e Adelaide, da
obra Triste Fim de Policarpo Quaresma (2011).

Casamento: caminho da liberdade ou reafirmação da prisão?

Escrever sobre a inserção da mulher na sociedade em um momento


histórico em que a ela era cobrado o casamento, representa uma
dificuldade por não termos a verdadeira dimensão da existência das nossas
congêneres pela cobrança por elas enfrentada, uma vez que suas vidas se
destinavam ao matrimônio.
Nessa perspectiva, buscamos relacionar os postulados de Žižek (2010)
sobre a existência humana, a partir do funcionamento da tríade de Lacan –
Simbólico, Imaginário e Real, tal qual o uso das regras que determinam o
funcionamento do jogo de xadrez, para analisar a existência feminina a
partir da realidade e da forma como ela se apresentava outrora em sua
relação com o mundo.
De acordo com este filósofo, as regras que os seres humanos têm de
seguir para jogar são a dimensão Simbólica, porque estão no plano do
significante, determinado apenas pelos movimentos previamente
estabelecidos, assim como os movimentos das peças no jogo do xadrez. Em
outras palavras, todos os jogadores devem conhecer as regras para seguir o
curso do jogo, assim deve ser o movimento da mulher/homem na
sociedade.
O Imaginário relaciona­se com a forma (conceito/ideia), isto é, tem a ver
com o modo como as peças se movimentam no jogo do xadrez e a forma
como as pessoas se movimentam dentro da ordem vigente. Simbólico e
Imaginário mantêm uma estreita relação entre o significado em seus
aspectos visuais/formais e em seus aspectos conceituais, cujas regras do
Simbólico devem ser conhecidas por todos. O Imaginário pode ser
alterado, substituído, mas os seres humanos seguirão se movimentando

­ 211 ­
conforme as regras Simbólicas, que se manterão conforme o estabelecido
formalmente.
Da mesma forma que as ações dos jogadores podem afetar o curso em
um jogo de xadrez, acontecimentos inesperados ou traumáticos podem
provocar um excesso na realidade que circundam a existência humana.
Quando isso acontece, o indivíduo escapa do terreno seguro do Imaginário
e do Simbólico e se depara com o Real – terceira instância da tríade. O Real
é um excesso na realidade e sua irrupção é sempre traumática e
catastrófica. (ŽIŽEK, 2010, p. 16­17).
Nessa perspectiva, elegemos quatro personagens femininas de Lima
Barreto para analisar como os elementos do Simbólico, do Imaginário e do
Real permeiam a realidade ficcionalmente representada nos espaços em
que Olga, Ismênia e Adelaide revelam suas histórias de lutas, de
acomodação e de resistência em uma sociedade que reduzia a mulher à sua
condição de submissão e aos afazeres do lar.
Embora este fosse o objetivo da existência de todas as mulheres, é um
equívoco silenciar diferenças importantes. Essas diferenças se expressavam
na classe social e na sua cor. Vasconcellos (1999, p. 58) destaca que “o
casamento era uma forma de comércio”. Às mulheres de classe alta ou
média exigia­se o casamento; mas era apenas uma transação comercial –
um contrato entre dois homens (o pai e o futuro marido) e uma mulher
que não tinha nem direitos e nem voz. No caso das mulheres pobres, era
comum o concubinato. Vasconcellos (1999, p. 62) ressalta que “nas uniões
das classes mais pobres, carinho e amor eram imprescindíveis”.
À mulher era permitido um trabalho (mal) remunerado, caso houvesse
uma separação. Àquelas mais bem posicionadas na sociedade não era
permitido o trabalho fora de casa; no caso das mulheres pobres, era
cobrado o seu trabalho fora de casa, para garantir uma condição mínima de
existência, porque, muitas vezes, elas e seus filhos eram abandonados à
própria sorte.
Em Triste fim de Policarpo Quaresma, Barreto mostra a importância do
casamento na existência das mulheres, pois, ao permanecer solteira, além

­ 212 ­
do desprestígio social, a mulher era considerada uma fracassada, era
obrigada a viver subjugada a algum parente, submetendo­se a todas as suas
vontades. No texto, Ismênia9 afirma que a fala da mãe a respeito dessa
instituição era constante.
[…] Desde menina ouvia a mamãe dizer:“Aprenda a fazer isso,
porque quando você se casar...”, ou senão: “Você precisa
aprender a pregar botões, porque quando você se casar...”

A todo instante e a toda hora, lá vinha aquele – “porque, quando


você se casar...” – e a menina foi se convencendo de que toda a
existência só tendia para o casamento. A instrução, as
satisfações íntimas, a alegria, tudo isso era inútil; a vida se
resumia numa coisa: casar. (BARRETO, 2011, p. 46).

É visível o horizonte estreito imposto à existência da mulher. Não havia


individualidade feminina. A possibilidade de externar seus quereres, seus
pensamentos, era tolhida. Instruir­se não compunha o universo feminino
ou, quando havia alguma educação, destinava­se a administrar seu futuro
lar. É importante salientar que até mesmo Policarpo era criticado por ter
sua biblioteca pessoal, como se o conhecimento devesse ser privilégio de
poucos.
Nesse contexto, observamos o movimento dos personagens no nível do
Simbólico e do Imaginário. Em outras palavras, essas instâncias da tríade,
que estão situadas no plano da linguagem, funcionam como uma estratégia
para a mulher/homem pensar a sua existência a partir da realidade e da
forma como ela se apresenta em sua relação com o mundo.
Encontramos expressões como “fulana, esposa de tal senhor”, ou “quem
está falando? É a esposa do senhor João”. Muitas vezes, reproduzimos essas
falas sem perceber que realimentamos o lugar de sombra em que nos
colocaram. Esse lugar persiste, mesmo hoje, mas a luta contra o
apagamento social da mulher é algo necessário, e sua contribuição para a
sociedade é real, mesmo quando se limita ao universo doméstico, porque é

9. Ismênia era uma das filhas do general Albernaz com Dona Maricota, mulher apresentada
como uma esposa que, além de administrar a casa, exerce algum ‘poder’ sobre o marido, mesmo
que sutil, é ela que dita algumas das regras e decisões da família que deseja muito casar as quatro
moças da casa.

­ 213 ­
isso o que as crianças das classes desfavorecidas são: mão­de obra para a
sociedade. Quando essas mulheres saem para trabalhar, seus filhos ficam
com a avó, com a vizinha, com a tia... Novamente, mulheres. O cuidar das
crianças era, e ainda hoje é predominantemente, papel das mulheres.
Quando Barreto explicita a educação das mulheres para serem esposas e
donas de casa, sua crítica nos leva a refletir sobre a amplitude de sua visão
social: “De resto, não era só dentro de sua família que ela [Ismênia]
encontrava aquela preocupação. No colégio, na rua, em casa das famílias
conhecidas, só se falava em casar.” (BARRETO, 2011, p. 46­47, grifo nosso).
Ou seja, a cobrança pelo casamento não era uma particularidade da família
de Ismênia, mas um traço encontrado nos diversos ambientes da
sociedade.
O narrador de Triste fim... revela essa limitação de Ismênia:
A vida, o mundo, a variedade intensa dos sentimentos, das
ideias, o nosso próprio direito à felicidade, foram parecendo
ninharias para aquele cerebrozinho; e de tal forma casar­se se
lhe representou coisa importante, uma espécie de dever, que
não se casar, ficar solteira, “tia”, parecia­lhe um crime, uma
vergonha. De natureza muito pobre, sem capacidade para sentir
qualquer coisa profunda e intensamente, sem quantidade
emocional para a paixão ou para um grande afeto, na sua
inteligência a ideia de casar­se incrustou­se teimosamente
como uma obsessão. […] Aos 19 anos arranjou namoro com o
Cavalcânti, e à fraqueza de sua vontade e ao temor de não
encontrar marido não foi estranha a facilidade com que o
futuro dentista a conquistou. (BARRETO, 2011, p. 47, grifo do
autor).

Após cinco anos de namoro, Cavalcânti viaja e não volta mais. Ismênia,
sem qualquer outro interesse que a fizesse superar sua tristeza, sequer
encontra forças para tentar um outro relacionamento. Morre e é enterrada
com um vestido de noiva, como foi seu desejo.
O perfil que o narrador oferece sobre Ismênia nos faz refletir sobre o
efeito da educação específica dos gêneros, que compõe um humano
menos rico de horizontes e perspectivas ­ ou mais rico. Se meu papel na
sociedade é lavar roupas, costurar ou faxinar, minha relação com todo o
universo limita­se a essa função. Perdendo­a, perco minha conexão com o

­ 214 ­
mundo. Percebem a pobreza do meu mundo? Como ele é estreito? Diante
da diversidade que constitui a existência humana, ater a vida a um aspecto
extenua algo que poderia ser vigoroso e intenso. A sociedade, com sua
dupla moral, matava (hoje com menos intensidade, mas ainda o faz),
intelectual e fisicamente a mulher, como Barreto registra na personagem de
Ismênia.
Observamos que as três instâncias da tríade permeiam a construção da
história de Ismênia. Seu movimento dentro da ordem Simbólica atesta que
há algo não resolvido; há um conflito que se manifesta naquilo que a teoria
lacaniana chama de “um excesso de vida”, isto é, Ismênia colocara o sentido
de sua vida no casamento. O conflito é existencial e este se instala nas
próprias tentativas de buscar aquilo que lhe é negado. Este conflito é o
excesso que a desestrutura dentro da ordem simbólica.
Simbólico, Imaginário e Real – os três níveis entrelaçados que compõem
a existência da personagem Ismênia – formam redes de significados, que
variam conforme os diferentes contextos sociais e históricos que
constituem a ordem Simbólica, a qual é composta por um conjunto de
regras que determinam o seu movimento na sociedade. Esse movimento de
Ismênia corresponde ao nó borromeano – o perfeito entrelaçamento entre
os três níveis. É ele que garante o movimento da vida humana. Em outras
palavras, as imagens construídas no plano do Imaginário de Ismênia sobre
o casamento conseguiram adiar o encontro com o Real até certo ponto.
Quando ela não mais conseguiu sustentar o Real na instância do Simbólico,
ele se ‘soltou’ e com ele toda a estrutura (e, portanto, a psique) se
desintegrou.
De acordo com Žižek (2010), a existência humana, caracterizada pelas
atividades contínuas dos indivíduos dentro de uma relação formal que
estabelece as ações e as escolhas do homem, bem como suas
consequências, é concebida nas dimensões do Simbólico, do Imaginário e
do Real. O Real pode ser entendido como excesso resultante das tentativas
do homem de se ajustar ao mundo simbólico, por meio da linguagem, a
qual estrutura a relação entre o significante (o Simbólico) e o significado (o

­ 215 ­
Imaginário). Fora do âmbito da linguagem, o Real é, além de aterrorizante,
inenarrável e, conforme dissemos anteriormente, irrompe quando o
imaginário não consegue mais “sustentar” a integração simbólica da vida.
Segundo Vasconcellos (1999, p. 138, grifos da autora),
Se o romancista não conseguiu libertar suas personagens
femininas da pressão social do casamento, o cronista, apesar de
solteiro, colocou a sua caneta a favor do chamado sexo frágil.
Soube, com sensibilidade, perceber que o matrimônio era,
muitas vezes, uma cínica troca de interesses, em que o amor
entre os cônjuges pouco valia. A mulher, por sua inexperiência,
viciada pelas bobagens da educação das irmãs de caridade,
casando­se normalmente cedo, deixava­se levar. Quando
amadurecia, percebia que estava prisioneira e nada mais podia
fazer senão sujeitar­se a ficar unida ao marido até o final de seus
dias. Por esta razão, Lima Barreto, jornalista, advoga uma
mudança radical nas leis que regem o casamento. É um dos
primeiros a reivindicar a lei do divórcio, pois só assim a mulher
poderia se libertar e amar quem lhe aprouvesse.

Barreto, mesmo sendo marcado pelo patriarcado, é capaz de usar sua


escrita em defesa das mulheres que, como diz Vasconcellos (1999), têm
como finalidade única de sua existência o casamento ­ ideia reforçada na
educação dada pelas freiras, difundida na sociedade e realimentada pela
família. Como exemplo, podemos citar dona Maricota, mãe de Ismênia que,
numa conversa com seu marido Albernaz, diz: “enfim – dizia Albernaz à
mulher, na noite do pedido, quando já recolhidos – ‘a coisa vai acabar.’
‘Felizmente’ – respondia­lhe dona Maricota – ‘vamos descontar esta
letra.” (BARRETO, 2011, p. 48).
Verificamos outra face perversa das relações burguesas: o tratamento
dos humanos como mercadorias. Nesse caso específico, as mulheres no
processo de casamento. As filhas eram oferecidas aos seus pretendentes
que levavam o dote da família da noiva que, por sua vez, deixava de ser
responsável pelas jovens e pelos gastos com sua sobrevivência, a partir do
casamento. A questão não é a felicidade dos envolvidos, mas os lucros
obtidos na negociação, como também o status adquirido com o
casamento.
Antes de ilustrar esta situação com Armando Borges, casado com Olga,

­ 216 ­
citemos a passagem que registra o contentamento de dona Maricota,
durante os preparativos para o pedido de Ismênia por Cavalcanti: “[…] A
alegria de dona Maricota era grande: ela não compreendia que uma mulher
pudesse viver sem estar casada”. (BARRETO, 2011, p. 49). Compreendemos,
dessa forma, o comportamento de Ismênia: reproduz o que a sociedade
estabelece e o que a mãe reforça na sua formação. Os limites atribuídos
pela sociedade às mulheres são fortemente incorporados pelas duas
mulheres do romance. O problema é que, longe de uma mera ficção, tal
comportamento era o cotidiano daquelas mulheres. Nesse sentido, cabe o
seguinte questionamento: tais ideias sucumbiram ou ainda povoam o
universo de algumas mulheres?
O narrador de Triste fim... conta­nos sobre o dia do casamento de Olga
com Armando Borges e a reação de cada um sobre o enlace. Sobre Olga é
dito:“[…] Continuava a não encontrar dentro de si motivo para aquele ato,
mas, aparentemente, nenhuma vontade estranha à sua influíra para
isso.” (BARRETO, 2011, p. 109). Ou antes, “[…] casava­se por hábito de
sociedade, um pouco por curiosidade e para alargar o campo de sua vida e
aguçar a sensibilidade.” (BARRETO, 2011, p. 76).
Nessas passagens, percebemos o tema do casamento como imposição
social às mulheres. Mas, é interessante perceber, na segunda citação, um fio
de liberdade aos olhos de Olga:“... alargar o campo de sua vida e aguçar a
sensibilidade”. Mesmo sem demonstrar empolgação com o casamento,
Olga vislumbra a possibilidade de descobrir aspectos da existência aos
quais ainda não tivera acesso, além de poder, após o casamento, permitir­se
sensações físicas, antes tolhidas.
Em relação à Borges, a reação no que diz respeito ao seu casamento foi
outra:
[…] O marido é que estava contente. Não seria muito com a
noiva, mas com a volta que a sua vida ia tomar. Ficando rico e
sendo médico, cheio de talento nas notas e recompensas
escolares, via diante de si uma larga estrada de triunfos nas
posições e na indústria clínica. Não tinha fortuna alguma, mas
julgava o seu banal título um foral de nobreza, equivalente

­ 217 ­
àqueles com que os autênticos fidalgos da Europa brunem10 o
nascimento das filhas dos salsicheiros yankees. Apesar de ser
seu pai um importante fazendeiro por aí, em algum lugar deste
Brasil, o sogro lhe dera tudo [...]. (BARRETO, 2011, p. 109).

Essa passagem também revela que os interesses masculinos estavam


mais voltados aos ganhos financeiros e ao status, do que com o sentimento
que o liga à esposa. Os olhos se voltam para a ascensão de novos patamares
sociais. Ainda, segundo o narrador, Borges “julgava que a noiva o aceitara
pelo seu maravilhoso título, o pergaminho; é verdade que foi, não tanto
pelo título, mas pela sua simulação de inteligência, de amor à ciência, de
desmedidos sonhos de sábio.” (BARRETO, 2011, p. 109).
A percepção que Olga e Borges tinham um do outro era limitada ­ ou um
total engano. No primeiro caso, Borges acredita que seu título servia como
motivo para Olga casar­se com ele quando, na verdade, a filha de Albernaz e
dona Maricota, ao querer ampliar seus horizontes, admirava a inteligência
do seu esposo, assim como sua suposta dedicação à ciência. Contudo,
Tal imagem que dele fizera durara instantes em Olga; depois foi
a inércia da sociedade, a sua tirania, e a timidez natural da moça
em romper, que a levaram ao casamento.Tanto mais que ela, de
si para si, pensava que, se não fosse este, seria outro a ele igual e
o melhor era não adiar. (BARRETO, 2011, p. 109­110).

O conjunto de elementos limitadores à existência feminina adquire um


aspecto congelante. Parece­nos que a sociedade tem regras imutáveis, tal
qual as leis naturais. Dessa forma, por que esperar outro homem, se em
nada seria diferente? Se assim não fosse, a ela caberia o destino das
mulheres pouco valorizadas na sociedade de então: as “titias”.
Em relação à personagem Adelaide, ela se apresentava como um ser
contraditório. Foi descrita da seguinte forma:
Para dona Adelaide, a vida era coisa simples, era viver, isto é, ter
uma casa, jantar e almoço, vestuário, tudo modesto, médio. Não
tinha ambições, paixões, desejos. Moça, não sonhara príncipes,
belezas, triunfos, nem mesmo um marido. Se não casou, foi
porque não sentiu necessidade disso; o sexo não lhe pesava e
de alma e corpo ela sempre se sentiu completa. (BARRETO,

10. No texto original, encontramos o cuidado de identificar o sentido da palavra em uma nota
de rodapé, onde é dito que brunem significa apurar, aprimorar. (BARRETO, 2011, p. 109).

­ 218 ­
2011, p. 124).

Há, certamente, uma simplicidade no existir de Adelaide. Não houve


grandes aspirações. Sequer os livros do irmão ou suas atitudes
investigativas, levaram­na a ampliar os horizontes de sua existência. No
entanto, subestimaríamos a presença dessa personagem se não
considerássemos sua relação com o casamento. Esta imposição não atingiu
Adelaide, uma vez que esta instituição não fazia parte de suas necessidades.
Neste momento, observamos algo revolucionário no que tange ao
comportamento das mulheres daquele período histórico, mais ainda,
quando é dito que “ela sempre se sentiu completa”!
Adelaide nunca precisou de um homem que a completasse. Obviamente,
a ausência de satisfação sexual não deixa de ser problemática, porém
Barreto retrata algo que é um dos requisitos mais importantes no
movimento feminista: contestar o conceito de que a mulher é incompleta,
“órgão sem corpo”, sem um homem. O estatuto de seres autônomos, com
vida própria, capazes de gerir a própria existência. Contraditoriamente,
para Adelaide, a insubmissão ao casamento não significou independência
em todos os aspectos, como podemos constatar: “[…] A velha irmã,
atarantada, atordoada, sem direção, […]. Educada em casa sempre com um
homem ao lado, o pai, depois o irmão, ela não sabia lidar com o mundo,
com os negócios, com as autoridades e pessoas influentes”. (BARRETO,
2011, p. 73).
No período em que Policarpo fica hospitalizado, Adelaide fica perdida,
pois estava acostumada a ter o irmão a frente das decisões. Com isso, sente­
se desnorteada com a necessidade de dar uma direção à existência que
extrapolava a administração da casa, afinal, não tinha sido preparada para
isso. Assim, conta com o auxílio de dois amigos do irmão e frequentadores
de sua casa: Ricardo Coração dos Outros e Vicente Coleoni.
Embora Barreto (2011) provoque uma discussão sobre a
obrigatoriedade do casamento para as mulheres, também sugere a quebra
desse paradigma. Suas personagens reproduzem os papéis destinados às
mulheres pela sociedade, mas há as que apresentam traços violadores

­ 219 ­
dessas regras. Com isto, as regras aparentemente rígidas e inquebrantáveis
sofrem fissuras, mesmo que leves, mas que abrem possibilidades para uma
história diferente.
Por que fazer do casamento o fim último de sua existência? Por que a
liberdade de escolha é privilégio apenas dos homens? Por que o
conhecimento deve ser limitado para as mulheres, restringindo­se à
administração e à execução de tarefas domésticas? São perguntas que as
produções de Barreto suscitam ao abordar o tratamento destinado a
homens e mulheres no seu tempo, e que ainda rebatem na atualidade, na
medida em que estas últimas continuam sendo violentadas em vários
aspectos de sua existência.
A secundarização da mulher ainda é algo presente, por isso, faz­se
necessário seu combate diuturno. Se o casamento não é mais considerado
uma obrigação inescapável para as mulheres, sua ruptura, às vezes, provoca
o desequilíbrio masculino que, achando­se dono de sua companheira,
concebe como legítimo agredi­la ou matá­la, trazendo à tona a visão
machista e patriarcal que ainda assombra a existência feminina.

Considerações finais

Ao proferirmos frases sem entender o que de fato representam,


assumimos uma postura estranha diante da nossa existência, uma vez que o
que nos faz humanas é o fato de nos apropriarmos das produções sociais,
materiais (objetos produzidos) ou imateriais (cultura). Nesse sentido, não
basta dizer que “a mulher é o que ela quiser” ou que “lugar de mulher é
onde ela quiser estar”, é necessário, pois, observar que essas questões são
frutos de um longo processo histórico que, quando ignorado, esvazia o
sentido desses discursos.
A abordagem de um romance do início do século XX, por meio de uma
teoria contemporânea, revela dois aspectos importantes: o primeiro é a
atualidade da obra de Lima Barreto; o segundo reforça a importância de
reconhecer, aceitar e legitimar o espaço que cabe à mulher na sociedade,

­ 220 ­
perspectiva descrita pelo escritor em muitas de suas obras, especialmente,
em Triste Fim de Policarpo Quaresma, nosso objeto de estudo.
Neste capítulo, abordamos a categoria casamento que, por sua vez, foi
usado socialmente para controlar nosso comportamento, legitimando “o
poder do macho” (SAFFIOTI, 1987). Vimos, a partir do funcionamento da
tríade – Simbólico, Imaginário e Real, como Ismênia e sua mãe
incorporaram a ideia, socialmente estabelecida, de que o destino de todas
as mulheres era o casamento. Não havia sentido nas suas existências sem o
enlace matrimonial, a ponto de levar Ismênia à morte por ter sido
abandonada e não ter mais esperança de encontrar outro possível marido.
A personagem Maricota explicita um aspecto que recrudesce a
problemática do tratamento das mulheres: eram tratadas como objetos de
troca. Uma mercadoria que recebia nomes diferentes (Maricota, Ismênia,
Olga...), mas que cumpriam o papel de enriquecer seu marido ou de, pelo
menos, elevar seu status social.
Mesmo Olga, mulher inteligente, se submete ao casamento com Borges,
médico oportunista, por crer que nenhum homem seria diferente. Nesse
sentido, observamos que a pressão social é tanta que ela segue as normas
vigentes para não receber um tratamento desvalorizante.
Adelaide representa uma ruptura, pois consegue quebrar a imposição do
casamento. Ela não se angustia pela falta do casamento, bastando­se a si
mesma. Contudo, vimos que, se a irmã de Policarpo consegue apresentar
esse aspecto inovador, em contrapartida, precisa do apoio masculino para
tomar decisões que se relacionam com o mundo exterior e o seu ambiente
doméstico.
Embora a dupla moral ainda exista: os homens são mais livres, podem ter
relações fora do casamento, recebem salários maiores, etc., a cobrança da
união matrimonial como uma relação inquebrantável (“até que a morte os
separe”) ruiu. Somos, individual e coletivo, seres em processo. A submissão
existe por diversas fatores e buscá­los, investigá­los, discutir sobre eles, é
uma necessidade real. Por que o fato de ser mulher leva à necessidade da
criação de leis que nos protejam? Por que o fato de casarmos leva o homem

­ 221 ­
a crer que somos sua propriedade?
Felizmente, assim como desejou Barreto, o divórcio foi legitimado. Não
precisamos manter vínculo com alguém que não corresponde ao
companheiro que desejamos. Diferente do sentimento de Olga, todos os
homens não são iguais e, mesmo que o machismo e o patriarcado ainda
componham nossas relações, perpassando a todos, o movimento feminista
suscitou mudanças de ideias e comportamentos.
A realidade social é composta por contradições, na medida em que é
constituída por classes radicalmente (de raiz) antagônicas, que hoje se
expressam nas relações entre burguesia e proletariado. Tal antagonismo
rebate, de maneira mediada, em todas as esferas das nossas relações,
inclusive na afetiva. Há uma relação desigual de poder do homem sobre a
mulher; do branco sobre os negros; de crenças religiosas que se julgam
superiores a outras.
É preciso entender que os séculos XIX, XX e XXI têm em comum as
relações regidas pelo capital, uma vez que este existe a partir da exploração
do burguês sobre os trabalhadores. Nesse contexto, acontece uma
desigualdade que é recrudescida, no caso das mulheres, pela coexistência
com o patriarcado. Portanto, nossa luta não pode perder de vista as diversas
formas de opressão com as quais lidamos.
A ideia de superioridade entre humanos por conta de sua etnia, da sua
vivência sexual, do seu gênero, da sua crença religiosa ou da sua descrença
é inconcebível, pois tudo isso é construto social, assim como o casamento.
Diante disso, é possível alterarmos nossa compreensão que legitima o
comportamento preconceituoso, o qual considera os outros seres como
menores e sujeitos à vida ou à morte, dependendo da vontade desses
senhores.
Por fim, é importante compreender como a literatura auxilia na
revelação do comportamento humano, entendendo que a ficção não é
mera criação oriunda de uma mente desconectada do real. Se não podemos
igualar literatura e realidade, a primeira torna­se grande quando nos ensina
a olhar com mais cuidado as relações nas quais estamos mergulhadas e

­ 222 ­
tecermos as críticas necessárias no sentido de superar uma realidade que
nos limita, que nos tolhe, que nos impede de ser quem podemos e
queremos.

Referências

BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. 5 ed. São Paulo:


Martin Claret, 2011.

BEAUVOIR, Simone. O Segundo sexo: fatos e mitos. Tradução de Sérgio


Milliet. 4 ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1980.

SAFFIOTI, Heleieth. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987.

VASCONCELOS, Eliane. Entre a agulha e a caneta: a mulher na obra de


Lima Barreto. Rio de Janeiro: Lacerda Ed., 1999.

ŽIŽEK, Slavoj. Como ler Lacan. Tradução Maria Luzia X. de A. Borges. Rio
de Janeiro: Zahar, 2010.

­ 223 ­
­ 224 ­
O MATERIALISMO LACANIANO DE ŽIŽEK NA OBRA
ANGÚSTIA, DE GRACILIANO RAMOS
Andressa Tayse de Oliveira Costa
Maria Betânia da Rocha de Oliveira

Considerações iniciais

O romance Angústia (1995), de Graciliano Ramos, traz uma


representação do contexto social, político e cultural que marcou a década
de 1930. A história de um funcionário público que almeja ser escritor se
apresenta a partir de um relato das lembranças que marcaram sua
existência desde os fatos da infância na fazenda do avô, rico e conceituado
na região, cuja riqueza não sobrevivera às mudanças advindas com os
novos rumos que tomavam o Brasil, logo após a abolição da escravatura e a
Proclamação da República.
Os conflitos vivenciados pelo narrador personagem são demarcados
desde o nascimento que coincidiu com a decadência do avô e a existência
problemática do pai que, além da fortuna perdida, não recebera o
sobrenome ilustre ­ Pereira de Aquino Cavalcante e Silva, uma vez que a

­ 225 ­
falência social revelada em Camilo Pereira da Silva se estendia na
constatação de que o neto, que deveria ser bem­nascido, fora reduzido a
Luís da Silva.
Na obra, a angústia anunciada desde o título, permeia todas as
lembranças que o protagonista relata, de forma intimista e sem obedecer a
ordem cronológica dos fatos, visto que a sua vida se resume entre os
conflitos e as inquietações de sobreviver em um país onde as relações são
permeadas pela desigualdade entre ricos e pobres.
Essas características justificam a análise da obra a partir do materialismo
lacaniano proposto por Žižek. Trata­se de uma proposta que estuda a obra
de Graciliano na perspectiva social e filosófica, aliada ao viés estético
literário, em que o escritor expõe os conflitos do homem da época como
representação de um mundo que é, além de tudo, um corpo social. Dessa
forma, Angústia (1995) admite, em sua análise, considerar o vai e vem dos
fatores que condicionam as concepções históricas e literárias, e que
permitem uma análise do homem à luz de uma teoria contemporânea.
Nessa concepção, este trabalho tem como objetivo Angústia (1995), de
Graciliano Ramos, pelo viés do Materialismo Lacaniano. Esta corrente
filosófica tem como principais representantes o francês Alain Badiou
(2002) e o esloveno Slavoj Žižek (2010), e teve origem na filosofia política.
Atualmente, esta corrente de estudos avança em diversas áreas do
conhecimento e atinge os estudos culturais, por meio da proposta de ler
textos literários a partir da aplicação dos conceitos de Lacan propostos por
Žižek.
Para tanto, apresentamos Angústia como um romance que evidencia o
entrelaçamento dos vários aspectos que compõem a realidade do ser, pois
os aspectos exteriores da realidade são substituídos pelos conceitos do que
é Simbólico, Imaginário e Real. A partir da análise do protagonista Luís da
Silva, atentamo­nos aos traços psicológicos que envolvem seu
descontentamento social, sentimental e econômico, uma vez que a
narrativa oscila entre os conflitos presentes no cotidiano e a resistência de
Luís da Silva diante delas.

­ 226 ­
A pesquisa foi estruturada em três seções: na primeira, apresentamos os
dados que justificam a escrita social de Graciliano Ramos, bem como a
diversidade de suas obras; na segunda, discorremos sobre o filósofo Žižek e
as suas concepções; e na terceira seção, analisamos a obra sob o viés da
tríade simbólica.

Graciliano Ramos: as diversas faces de um romancista social

Segundo Bosi (2013, p. 428), Graciliano Ramos de Oliveira nasceu no


município de Quebrangulo, dia 27 de outubro de 1892 e faleceu no Rio de
Janeiro, em 20 de março de 1953. Tornou­se uma importante figura do
cenário literário, político e cultural, que transitou por diversos gêneros
literários: memórias, romance, crônica e conto, sendo que, muitas dessas
obras, focavam na realidade do nordeste.
Filho de uma família de classe média, o escritor viveu em diversas
cidades do nordeste brasileiro: Viçosa (AL), Palmeira dos Índios (AL),
Maceió (AL) e Buíque (PE), e é um dos autores marcantes das tendências
contemporâneas. Entre as obras de Graciliano, destacamos: Caetés (1933),
São Bernardo (1934), Angústia (1936), Vidas Secas (1938), A Terra dos
Meninos Pelados (1939), Histórias de Alexandre (1944), Contos infanto­
juvenis (1962), Dois dedos de infância (1945), Histórias Incompletas
(1946), Insônia (1947) e Memórias do Cárcere (1953) ­ obra póstuma.
Nos textos de Graciliano, a literatura aparece como uma forma do
homem liberar seus pensamentos sobre os dados da realidade, uma vez que
seus personagens criticam, de forma explícita e implícita, as agruras do
homem frente às problemáticas sociais de um país que cresce
desordenadamente social e culturalmente.
A literatura graciliânica é assim – numa linguagem que oscila entre a
objetividade e a brutalidade, as categorias da narrativa aparecem
demarcadas pelo viés social, psicológico e político, como observamos em
Paulo Honório. Por vezes, a linguagem é intimista, em tom melancólico,
como no livro Angústia.

­ 227 ­
Outra temática muito analisada em pesquisas sobre o autor é a questão
do poder que emana do sistema capitalista, originário do processo de
colonização e formação do Brasil. Verificamos esses elementos nas obras
São Bernardo (2001) e Angústia (1936), cujos personagens representam a
relação de poder entre as classes mais favorecidas sociais e
profissionalmente, e os que precisam trabalhar para fortalecer e enriquecer
essa pequena parcela da sociedade brasileira. (BOSI, 2013).
Para Bosi (2013, p. 429), “o realismo de Graciliano não é orgânico nem
espontâneo, é crítico. O ‘herói’ é sempre um problema: não aceita o mundo,
nem os outros, nem a si mesmo.” O estudioso afirma que a principal
característica da literatura graciliânica é a representação analítica que ele
faz das tensões sociais de sua época, por meio das ações e dos sentimentos
das personagens, cuja linguagem configura os ideais do modernismo. No
entanto, a escrita de Graciliano vai além da reivindicação, uma vez que
transforma e reconfigura o momento literário vivido na época e rompe
com os padrões que o sistema impõe.
Em Angústia (1995), o narrador protagonista se remete à sua história
anterior, mas o processo da escrita é a memória – não a escrita de suas
memórias, pois as lembranças vêm à tona numa ordem que não obedece a
cronologia (presente e passado se fundem) ­, mas as marcas de um eu que
sofre por não se ajustar ao meio pessoal, social e profissional em que vive.
Nesse romance, o ato de escrever é colocado em pauta. Se, por um lado,
Paulo Honório deseja ser escritor e falha; por outro, Luís da Silva sofre
porque “sabe” e quer escrever livremente, porém as condições financeiras
o obrigam a “escrever por encomenda”.
Diante disso, elegemos o romance Angústia (1995) para uma análise sob
a ótica do Materialismo Lacaniano proposto por Žižek (2010). Antes de
passarmos para as análises, apresentaremos o autor dessa linha teórica
recentemente chegada ao Brasil.

Slavoj Žižek: o teórico da atualidade

­ 228 ­
Slavoj Žižek é um filósofo atual e contemporâneo que questiona as crises
que assolam o mundo atual nas diversas esferas da sociedade – social,
política, educacional, entre tantas outras peculiaridades deste tão
conturbado século XXI. É um pensador bastante atuante ­ Žižek chega a
publicar de um a três livros por ano e, ainda por ministrar palestras
polêmicas, ­ este filósofo encontra­se, na atualidade, como o centro dos
holofotes nos meios acadêmicos e nas mídias em geral. Admirado por
muitos e questionado por alguns, as ideias que costuma propagar pelo
mundo a fora são tidas como revolucionárias e “perigosas”.
De acordo com Santos (2018), Slavoj Žižek nasceu no dia 21 de março de
1949, em Liubliana ­ Eslovênia. Estudou e graduou­se em Letras e Filosofia
numa época em que o contexto histórico fora marcado pela orientação
socialista soviética. Os estudos de filosofia tiveram influência do idealismo
alemão de Hegel11 e Schelling12, dos quais Žižek estudou as concepções
acerca do materialismo dialético e histórico.
Žižek concluiu o Doutorado em Filosofia (1981), mas estes estudos não
deram conta de suas concepções acerca dos pensamentos socialistas
existentes na Iugoslávia naquela década, ou seja, a Filosofia não atendia às
inquietações oriundas dos problemas existenciais ligados ao homem em
circulação numa sociedade capitalista. Sendo assim, Žižek fez outro
doutorado, agora em Psicanálise, sob o viés lacaniano. (ŽIŽEK; DALY, 2006).
Conforme discutimos anteriormente, as concepções teóricas de Žižek
são marcadas por uma variedade de áreas do conhecimento e suas ideias
seguem uma linha de posicionamentos ousados e transgressores. O
pensamento žižekiano abrange áreas como a filosofia, a política, a
economia, a psicanálise, a sociologia (embora ele afirme que nada tem a ver

11. Friedrich Hegel (1770­1831) foi um filósofo alemão. Um dos criadores do sistema filosófico
chamado idealismo absoluto. Foi precursor do existencialismo e do marxismo. Fonte: https://
educacao.uol.com.br/biografias.
12. Friedrich Wilhelm Joseph Schelling foi condiscípulo e amigo de Hölderlin e Hegel. Em
Leipzig, estudou matemática e ciências naturais, e em Jena frequentou os cursos de filosofia de
Fichte. Sua primeira filosofia utilizou as descobertas científicas de seu tempo e restabeleceu a
objetividade da natureza, concebendo­a como uma realidade que se basta e se explica a si
mesma, dotada de vida própria, criadora e autônoma. Fonte: https://educacao.uol.com.br/
biografias.

­ 229 ­
com essa área de conhecimento), a literatura, o cinema e o teatro.
(BAZZANELA, 2008).
Ler Žižek trata­se, pois, de um grande desafio, uma vez que suas
produções teóricas exigem um leitor dotado de conhecimento acerca de
várias áreas de conhecimento e que esteja antenado às questões culturais e
artísticas, que vão desde a literatura canônica a filmes de Hollywood.
Oliveira (2017) ressalta que Žižek consegue falar da literatura de
Stephen King à grande música de Mozart, passando pela física quântica e
por Kafka, além de inserir muitos insights sobre política, psicanálise e
filosofia. Muito além da metafísica, teologia e positivismo, para este filósofo,
a verdade passa a ser uma compreensão das relações de poder reais que
controlam a sociedade e das ideologias que impedem a sociedade de
atingir a liberdade. Desse modo, a questão da ideologia ganha uma nova
roupagem.
Silva (2009b, p. 18), uma das pioneiras nos estudos da teoria deste
filósofo no Brasil, ressalta que
A velocidade com ele troca de assuntos pode nos surpreender,
mas, quando lido com cuidado, Žižek se revela um excelente
provocador: suas considerações sobre aspectos aparentemente
banais, ou já estudados até a exaustão, da vida cotidiana, são
sempre surpreendentes e iluminadoras. Na pior das hipóteses,
ele nos obriga a repensar, mesmo quando discordamos. Na
melhor, ele chega a criar impressões epifânicas em seu leitor.

No Brasil, pouco se tem relatos de estudiosos no campo das Letras que


seguem o pensamento de Žižek. No Sul do país, Marisa Corrêa Silva,
professora da Universidade Estadual de Maringá (UEM), dedica seus
estudos ao materialismo lacaniano aplicado à análise de textos literários.
Na região Nordeste, temos como referência os estudos da professora Maria
Betânia Rocha de Oliveira, orientadora do grupo de pesquisa Literatura e o
materialismo de Žižek, grupo este no qual desenvolvemos pesquisas
relacionadas à corrente teórica proposta por Žižek.

As bases teóricas do Materialismo Lacaniano

­ 230 ­
O materialismo lacaniano é uma corrente ligada, inicialmente, à filosofia
política. Atualmente, esta linha teórica criada por Slavoj Žižek atinge as
mais diversas áreas do conhecimento, principalmente porque, segundo
este filósofo contemporâneo, as concepções filosóficas do passado acerca
do materialismo dialético e histórico baseadas apenas no marxismo não
mais contemplavam as problemáticas da atualidade.
Silva (2009b) destaca que a teoria de Žižek corresponde à uma
reconstrução histórica a partir dos estudos que relacionam,
simultaneamente, o marxismo, a psicanálise de Lacan e a crítica social.
Sobre essa reconstrução, Silva explica que foram os impasses advindos da
crise por que passou a União Soviética que aceleram o início dos
pensamentos do filósofo acerca da instalação de uma “democracia liberal”.
O Materialismo Lacaniano não só despontou como uma nova corrente
filosófica, como “relativou certezas outrora inabaláveis e novas perguntas
foram elaboradas no grande vácuo que as incertezas agora, novas, traziam”.
(SILVA, 2009a, p. 211). Esta pesquisadora reitera que, além de Žižek, o
francês Alain Badiou e Alenka Zupan i também são representantes do
materialismo lacaniano. Dessa maneira, “esses pesquisadores formularam
suas teorias para criticar o pensamento marxista convencional”, mas eles
não rejeitam as ideias de Marx, apenas asseguram que para dar contar do
atual cenário mundial, em constantes crises e transformações, é preciso ir
além da perspectiva do materialismo histórico de Marx.
Para Žižek, a teoria marxista negligencia a dimensão social da realidade
representativa, por isso, urge que o poder funcione além dos limites da
democracia. Ele destaca que devemos encontrar os antagonismos que
fazem do comunismo uma urgência prática na realidade histórica.
Oliveira (2019) enfatiza que sem as bases do materialismo lacaniano,
retornar ao pensamento de Marx é aceitar, na atualidade, a existência de
uma nova esquerda, mas que traz os princípios do capitalismo em sua
essência. Žižek fala sobre a crise do marxismo e explica que ela deve ser
avaliada a partir “de um ponto de vista sempre mutável entre dois pontos
entre os quais não há síntese nem mediação possível” (ŽIŽEK, 2008, p. 14),

­ 231 ­
o que ele denomina de uma “visão em paralaxe”.
Nesse sentido, é necessário observar a crise não apenas pelas derrotas
sociopolíticas dos movimentos marxistas, mas também pelo viés do
declínio do próprio materialismo dialético enquanto base filosófica, que
deve ser diferenciado da “dialética materialista”, visto que esta é “mais
aceitável e menos embaraçosa”. Portanto, aplicar os princípios do
materialismo dialético ao estudo da vida social também não contempla os
fenômenos da vida da sociedade em sua realidade objetiva, fato que o leva
a incorporar a dialética do materialismo à psicanálise de Lacan, utilizada
“para cobrir as lacunas que o materialismo dialético não contempla”.
(SILVA, 2009a, p. 211).
O pensamento materialista lacaniano de Žižek foi concebido por três
grandes áreas do conhecimento: a filosofia, a política e a psicanálise. As
ideias sobre política foram concebidas a partir do pensamento de Marx, as
quais o filósofo agregou às concepções de economia. Quanto às
concepções da psicanálise de Jacques Lacan, Žižek propôs uma revisão dos
conceitos que, segundo ele, “são vagos e indefinidos”. Este filósofo ainda
explica que a psicanálise de Lacan é uma área muito complexa e, por isso,
está sempre aberta a novos significados. Esta proposta de análise de Žižek
permite uma atualização dos próprios conceitos, uma leitura criativa e
aberta a novos jogos de palavras, significados e definições. (SILVA, 2009a, p.
212).
Nas palavras do filósofo, a junção das três áreas ­ social, econômica e
política, sob a perspectiva dialética e histórica ­ relacionada às teorias de
Lacan, pode “pensar” os problemas do homem numa dimensão que exclui o
tratamento clínico. E reitera:“porque o clínico está em toda parte, podemos
contornar o processo e nos concentrar, em vez disso, em seus efeitos, no
modo como ele colore tudo que parece não clínico” (ŽIŽEK, 2010, p. 12).
Com essa concepção, ele ultrapassa as fronteiras do marxismo e,
principalmente, da psicanálise.
O materialismo lacaniano surge como uma corrente de ampla
abordagem que, em sua estrutura teórica, apresenta­se como uma

­ 232 ­
ferramenta eficaz e capaz “para explicar nossas agruras sociais e libidinais”.
(ŽIŽEK, 2010, p. 12). Para entender essas “agruras sociais”, este filósofo,
leitor de Lacan, explica que a existência humana é oriunda da própria ação
humana dentro de um espaço que ele denomina de ordem simbólica, cujas
ações são decorrentes da própria estrutura de “uma ordem simbólica, a
constituição não escrita da sociedade”, que controla todos os atos do
homem.
Os principais conceitos do materialismo lacaniano formam a tríade
simbólica: Simbólico, Imaginário e Real. O entrelaçamento desses três
níveis garante a constituição da realidade dos seres humanos, uma vez que
a existência do ser humano só se completa na unificação dos três níveis
numa estreita relação de sentidos.
Conhecer a tríade lacaniana é muito importante para entender as bases
do materialismo. Tal como expressamos anteriormente, o estilo adotado
por Žižek é inovador, pois ele fala de temáticas “velhas” com uma “nova”
roupagem. Seguindo essa linha, o filósofo explica como funcionam as
instâncias da tríade, por meio de uma analogia com o jogo do xadrez, cujas
regras representam o Simbólico; o movimento das peças, realizado pelos
jogadores, se encaixa no Imaginário; e os acontecimentos inesperados
durante o jogo constituem o Real.
Relacionado ao universo humano, o simbólico são todas as regras, todos
os nossos comportamentos, são as normas que nos permitem viver em
sociedade. Žižek utiliza o conceito “Simbólico” no sentido lacaniano, que
pouco tem a ver com a definição que os dicionários trazem da palavra. No
senso comum, o termo simbólico remete ao funcionamento por meio de
símbolos; na perspectiva de Lacan, refere­se “ao estágio no qual cada
indivíduo estrutura uma série de códigos, leis e proibições, diretamente
responsáveis pela socialização do indivíduo e funciona como um padrão de
comportamento contra o qual posso me medir. (ŽIŽEK, 2010, p. 17).
Oliveira (2017) destaca que o Simbólico, enquanto significante, é
responsável pela criação do Imaginário. O Simbólico corresponde ao
significante e se aproxima da realidade externa, mas não é a realidade. Na

­ 233 ­
tríade, é o Imaginário que corresponde ao significado e que sustenta o
Simbólico, pois é na relação com mundo e com os outros seres que o
homem se constitui enquanto sujeito da linguagem. Em outras palavras, o
Simbólico e Imaginário funcionam como significante e significado,
respectivamente.
O Imaginário se relaciona com as representações mentais das coisas, isto
é, tem a ver com a imagem que fazemos das pessoas e dos fatos. Ademais,
corresponde ao Imaginário a imagem idealizada que um indivíduo faz de si
mesmo, no qual se baseia para tentar formar uma noção de identidade. Da
mesma forma, a interação social entre indivíduos se baseia no Imaginário
que cada um cria, de modo que, quando se fala ou se dirige a alguém, nunca
é um contato direto, mas intermediado pela visualização que um possui do
outro.
O Simbólico e o Imaginário atuam no campo da linguagem, porém o
Real (com R maiúsculo) não pode ser expresso por meio de palavras.
Oliveira (2017) destaca que o Real funciona além do Simbólico e do
Imaginário porque não se materializa nem pela linguagem nem na
linguagem. Esse nível corresponde ao momento em que há um excesso,
uma sobra ou há algo que escapa daquilo que nós conseguimos simbolizar.
Esse excesso faz parte da nossa realidade, mas não conseguimos nem
enxergar e nem pensar, porque para pensar, precisamos de palavras ou de
imagens. O Real é indizível.
Quando o homem entra no Real, o mundo não faz mais sentido. Ele quer
sair dali porque o encontro com o Real é pavoroso. Ninguém quer entrar
em contato com o Real porque ele acontece quando alguém sofre algum
tipo de violência traumática, um acidente, um assalto etc. Quando o
homem consegue traduzir em palavras, ele ressimboliza aquele momento
de frustração e volta para a dimensão simbólica, pois precisa seguir o curso
da Ordem Simbólica – a Tríade Lacaniana.
Neste momento, convém ressaltar que, conforme já dissemos
anteriormente, a análise do materialismo lacaniano não é psicanalítica, uma
vez esta teoria não se volta para o tratamento clínico do indivíduo. O que

­ 234 ­
importa para Žižek (2010) não são as questões individuais (análise
psicanalítica), mas a dimensão social que determinada realidade provoca
no homem enquanto ser integrante da sociedade.
A partir da ideia de que “o sujeito existe como uma dimensão eterna de
resistência­excesso em relação a todas as formas de subjetivação” (ŽIŽEK;
DALY, 2006, p. 11), apresentamos, a seguir, a análise da obra Angústia, de
Graciliano.

O romance Angústia e a tríade do materialismo de Žižek

O romance Angústia foi publicado em 1936. Com narração em primeira


pessoa, o enredo apresenta o protagonista Luís da Silva em um relato
fragmentado de sua vida sofrida. O relato, em tom memorialístico, não
obedece a uma ordem cronológica, pois os fatos, as emoções e os
sentimentos de perda que permeiam sua vida no passado são misturados
com as injustiças, e a não realização profissional e sentimental do presente.
Luís da Silva é o narrador da sua história, uma história de solidão e tão
conflitante quanto é a linguagem utilizada. Este protagonista é um
funcionário público que trabalha na redação de um jornal, mas se mostra
insatisfeito porque deseja escrever literatura, escrever por prazer e não por
ofício. O processo de escrita a que é imposto é sua maior amargura. Em
suas lembranças, que mistura passado e presente, percebemos o estado da
alma desse ser que se questiona o tempo todo sobre si mesmo e a sua
relação com o mundo, conforme descrito no trecho:
Às vezes punha­me a tossir, para me convencer de que não
tinha ficado surdo. Era como se a gente houvesse deixado a
Terra. De repente surgiam vozes estranhas. Que eram? Ainda
hoje não sei. (...) Tenho­me esforçado por tornar­me criança – e
em consequência misturo coisas atuais a coisas antigas.
(RAMOS, p. 1995, p. 17).

Ao associarmos as concepções de Žižek (2010) ao mundo do


protagonista Luís da Silva, percebemos que o narrador protagonista transita
pelos níveis que compõem a Ordem Simbólica, uma vez que o seu mundo

­ 235 ­
é composto pelas instâncias do Simbólico, do Imaginário e do Real
presentes desde o primeiro parágrafo do enredo:“Levantei­me há cerca de
trinta dias, mas julgo que ainda não me restabeleci completamente. Das
visões que me perseguiam naquelas noites compridas umas sombras
permanecem, sombras que se misturam à realidade e me produzem
calafrios”. (RAMOS, 1995, p. 7).
Oliveira (2019, p. 25) afirma que “este momento inicia a narrativa,
entretanto, acontece logo após a uma fase de ‘tormento’ que o personagem
passou quando cometeu o assassinato de um homem. E para não ser ‘pego’
pela ordem Simbólica, montou a cena para que parecesse um suicídio por
enforcamento”. Esta passagem pode ser explicada a partir do conceito de
Simbólico, que se configura como um “estágio no qual cada um estrutura
uma série de códigos, leis e proibições, diretamente responsáveis pela
socialização do indivíduo”. (SILVA, 2009b, p. 19).
O momento do assassinato corresponde ao encontro com o Real da
tríade, pois desestruturou o narrador:“a ideia de que Julião Tavares era um
cadáver estarreceu­me”. (RAMOS, 1995, p. 194). Todo o relato da morte do
inimigo revela quão doloroso foi matar um homem, mesmo que este fosse
um “isso não vale nada”.
Luís da Silva seguia um padrão de vida imposto pelo Simbólico – as
normas de uma sociedade excludente e que valorizava o dinheiro, o nome
e a posição social ganhavam significados diferentes a cada situação
vivenciada. Ao cometer o assassinato do rival, era preciso esconder as
evidências: “parecer” não ter cometido crime, embora as imagens (que
correspondem ao Imaginário) atestassem a sua culpa: “vivo agitado, cheio
de terrores, uma tremura nas mãos, que emagreceram. As mãos já não são
minhas: são mãos de velho, fracas e inúteis. As escoriações das palmas
cicatrizaram”. (RAMOS, 1995, p. 7). Relacionamos as feridas cicatrizadas
com o que Žižek (2008) chama de “ressimbolização” daquele momento de
frustração – o encontro com o Real.
O Real não pode ser manifestado pela linguagem, quando Luís da Silva
consegue “traduzir” em palavras esse Real, por meio da rememoração desse

­ 236 ­
momento, ele ressimboliza aquele “tormento” na dimensão simbólica,
porque precisa seguir a vida regida pela Ordem Simbólica (OLIVEIRA,
2019). Observamos essa situação no excerto a seguir, quando Luís da Silva
discorre sobre o momento em que se prepara para ir trabalhar.
O sino da igrejinha bate a primeira pancada das ave­marias. Não,
não é o sino da igreja, é o relógio da sala de jantar. Oito e meia.
Preciso vestir­me depressa, chegar à repartição às nove horas.
Apronto­me, calço as meias pelo avesso e saio correndo.
(RAMOS, 1995, p. 36).

Segundo a teoria žižekiana, verificamos que Luís da Silva, apesar de


insatisfeito com o meio e com sua própria existência, precisa se
movimentar dentro do espaço Simbólico. As ações que “movem” o
personagem correspondem às normas que o permite viver em sociedade,
mesmo que esta não lhe agrade. Assim, o Imaginário é evidenciado a partir
dos questionamentos acerca dos sentimentos que evocam suas lembranças:
“penso em mestre Domingos, no velho Trajano, em meu pai. Não sei por
que mexi com eles, tão remotos, diluídos em tantos anos de separação. Não
tem nenhuma relação com as pessoas e as coisas que me cercam. (RAMOS,
1995, p. 14).
As concepções de solidão, de amor e de sofrimento advindas em cada
estágio da vida de Luís da Silva eram responsáveis por sua constituição
fragmentada. Todos os conflitos da sua existência, passada e no tempo
presente, estão relacionados às condições financeiras, resultante da falência
dos negócios de seu avô.
Segundo Oliveira (2019, p. 26), o avô aparece no enredo como o último
descendente rico e poderoso da família:“Volto a ser criança, revejo a figura
de meu avô, Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva, que alcancei
velhíssimo. Os negócios na fazenda andavam mal. E meu pai, reduzido a
Camila Pereira da Silva”. (RAMOS, 1995, p. 11). Oliveira (2019, p. 27) destaca
que o nome do avô representa o poder capitalista da época. Além disso, a
falência financeira também representa a falência social que é traduzida na
diminuição do nome do pai e, principalmente, no último descendente,
reduzido a Luís da Silva.

­ 237 ­
A história se passa nos anos de 1930 e Luís da Silva está preso às
engrenagens de uma sociedade considerada pré­capitalista:
para os bem­nascidos, a terra reserva fatura e progresso, mas
para os menos favorecidos social e economicamente, como
Luís da Silva, restava a dura tarefa de sobreviver. (OLIVEIRA,
2019, p. 27).

A figura do avô representa o poder capitalista, enquanto o protagonista é


um simples morador dentro desse sistema, como ele mesmo se define:“por
fora devo ser um cidadão como os outros, um diminuto cidadão que vai
para o trabalho maçador, um Luís da Silva qualquer”. (RAMOS, 1995, p. 22).
As concepções propostas pelo materialismo lacaniano ultrapassam o viés
da psicanálise, para tanto, em nossa análise, não buscamos explicar os
conflitos internos e subjetivos dos sentimentos do protagonista.
Nossos estudos atestam que Luís da Silva, enquanto representante do
homem de uma dada realidade histórica, transita pelas normas que o
mundo Simbólico determina para os que pertencem à classe trabalhadora.
Por meio do relato de suas lembranças, observamos o Imaginário de uma
realidade idealizada dentro da ordem Simbólica e do meio em que transita,
“ou seja, o presente violento de Luís da Silva é reflexo do poder do capital
e das forças políticas que regiam a distribuição de classes divididas entre os
muitos ricos e os muitos pobres”. (OLIVEIRA, 2019, p. 27).
Em relação ao Imaginário, Luís da Silva é representado por passagens
que mostram que o narrador mantinha a maior parte de sua existência
dentro de seus anseios e ideias: “certos lugares que me davam prazer
tornaram­se odiosos. Passo diante de uma livraria, olho com desgosto as
vitrinas, tenho a impressão de que se acham ali pessoas exibindo títulos e
preços nos rostos, vendendo­se. É uma espécie de prostituição”. (RAMOS,
1995, p. 7).
O Real pode ser verificado nas passagens que refletem o momento de
intensa dor e sofrimento, logo após Luís da Silva matar Julião Tavares: “o
pensamento partia­se. Ia cair de cama, delirar, morrer.A carne estremecia, os
pés dos cabelos doíam­me”. (RAMOS, 1995, p. 264).
A obra Angústia promove um misto de sentimentos dispostos na
narrativa do próprio Luís da Silva, que descreve sua existência de forma

­ 238 ­
profunda e amargurada. Em sua concepção, o mundo a sua volta está
tomado pela tristeza e pelos conflitos originados de sua posição social,
resultante das condições financeiras em que nascera e que carregava até
então.
Luís da Silva desejava escrever, mas como não podia escrever o que
quisesse, o trabalho com a escrita era árduo: “Não consigo escrever.
Dinheiro e propriedades, que me dão sempre desejos violentos de
mortandade e outras destruições, as duas colunas mal impressas (...)”.
Assim, produzia artigos “sem vida” para o jornal onde trabalhava: “à noite
fecho as portas, sento­me à mesa da sala de jantar, a munheca emperrada, o
pensamento vadio longe do artigo que me pediram para o jornal”. (RAMOS,
1995, p. 8). A partir desse trecho, percebemos que essa situação
representava um tormento diário, pois tudo a sua volta era motivo de
desprezo e questionamento.
Com base na perspectiva lacaniana, identificamos, em Luís da Silva, a
existência da tríade lacaniana representada pelo Real, Simbólico e
Imaginário. As três instâncias da vida real, respectivamente, não existem
isoladamente, sendo necessária a análise do conjunto. A partir do momento
em que observamos Luís como um indivíduo pertencente a um sistema
regido por normas e que anseia por mudança, verificamos o
entrelaçamento dos três níveis que ocasionam momentos de intensa dor,
revoltas internas e desastres que são refletidos em sua vida, uma vez que, ao
recuar e se isolar, Luís pensa, ressignifica e retorna ao mundo Simbólico.

Considerações finais

Analisar a obra de Graciliano Ramos, sob o viés do Materialismo


Lacaniano, representou um exercício constante entre a leitura de literária e
a leitura da existência humana. Além de outros fatores relevantes para a
construção deste trabalho, destacamos a importância de repensar a
construção do sujeito a partir de uma nova possibilidade de interpretação,
uma vez que a trajetória angustiante de Luís da Silva, nos permitiu

­ 239 ­
confrontar as questões relacionadas aos conceitos desenvolvidos por
Lacan e retomados por Žižek, a partir de sua história dentro do
funcionamento da tríade: o Simbólico, o Imaginário e o Real.
Como propusemos um viés diferente para a leitura da obra, julgamos
pertinente relacionar algumas informações da vida e da obra do escritor,
principalmente, no que se refere às características da linguagem, pois
Graciliano expressa, de forma peculiar e inovadora, o homem em uma
sociedade elitista e excludente.
As concepções de Žižek sobre o materialismo de Marx foram
pertinentes para a análise do mundo e da realidade subjetiva expostos na
narrativa. Nessa perspectiva, observamos que o personagem narrador
passou por diferentes conflitos ­ desde a figura ilustre do avô, que
representava a classe alta da qual Luís da Silva desejava fazer parte, até os
dissabores advindos com a decadência e morte do pai. Tudo girava,
angustiosamente, em torno de sua relação com o mundo da realidade
vivenciada, como ser pertencente à classe menos favorecida.
Nesse contexto, partimos do pressuposto de que a vida na sociedade se
materializa nos processos de exclusão e opressão, resultantes da
dominação, tais como os experimentados pelo personagem protagonista
de Angústia que vivenciara todas as formas de aceitação, negação e
resistência dentro do sistema capitalista da época. Luís da Silva passou pelo
Simbólico, pelo Imaginário e desembocou no Real, e, enfim, ressimbolizou
e voltou a seguir os padrões de comportamento da Ordem Simbólica que
regem o mundo.
Por fim, constatamos que a aplicação do materialismo lacaniano na
literatura proporcionou uma visão diferenciada da obra, observando que as
questões relacionadas à vida pessoal partem, sobretudo, dos conflitos
originários da sociedade. Dessa forma, o personagem protagonista passou
por diferentes traumas na realidade exposta na narrativa. Os vários
momentos de frustração confirmam a tese de que a realidade do sujeito
não pode ser desvinculada da tríade apresentada por Žižek, uma vez que
Luís da Silva não pode apenas viver no mundo Simbólico e Imaginário, ele

­ 240 ­
precisa passar pelo Real para se tornar sujeito de sua própria existência.

Referências

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Appenzeller. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.

BAZZANELLA, Sandro. Os pressupostos da filosofia de Žižek. In: GUERRA,


Elizabete; TELES, Idete. (Orgs.). Lacunas do real: leituras de Slavoj Žižek.
Florianópolis: NEFIPO, 2008.

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Editora Cultriz, 2013.

OLIVEIRA, Maria Betânia da Rocha de. Angústia de Graciliano Ramos, a


partir do materialismo lacaniano. In: Anais do V Conali. Universidade
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Angústia de Graciliano Ramos, a partir do materialismo Lacaniano. In:
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literários e linguísticos. Arapiraca: EDUNEAL, 2019.

RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 5 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1995.

RAMOS, Graciliano. São Bernardo. 71 ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.

SANTOS, Estela Pereira dos. Manifestações de Violência: um estudo


comparativo entre Não Verás País Nenhum, de Ignacio de Loyola
Brandão, e Eles Eram Muitos Cavalos, de Luiz Ruffato. Dissertação de
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ZOLIN, Lúcia Osana (Orgs.). Teoria Literária: abordagens históricas e
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ŽIŽEK, Slavoj. Como ler Lacan. Tradução de Maria Luzia Borges. Rio de
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­ 241 ­
ŽIŽEK, Slavoj e DALY, Glyn. Arriscar o impossível: Conversas com Žižek.
Tradução de Vera Ribeiro. Editora Martins Fontes. 2006.

ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008

­ 242 ­
O CONTO AMOR, DE CLARICE LISPECTOR, À LUZ DO
MATERIALISMO LACANIANO
Késia Maria da Silva Florentino
Maria Betânia da Rocha de Oliveira

Considerações iniciais

Este capítulo é resultado de uma pesquisa de caráter literário que


buscou dialogar com os estudos históricos, culturais e sociais do
pensamento brasileiro, evidenciando a relevância da escritora Clarice
Lispector, por meio de uma análise do livro de contos Laços de Família,
publicado em 1960.
Para realizar um estudo de natureza literária e histórica, não podemos
nos restringir às concepções que explicam apenas os fatores externos, uma
vez que se faz necessário levar em consideração a predominância do
aspecto sincrônico sobre o diacrônico da obra. Nesse viés, respaldamo­nos
em Candido (2000), que ensina que o elemento externo de uma obra
literária – nesse caso, o social – é relevante, não como causa ou
consequência, tampouco como significado, mas como componente que
desempenha um papel significativo na constituição da estrutura da obra,

­ 243 ­
tornando­se interno.
A literatura é uma instituição social e, por isso, precisa ser entendida
como um processo. Processo este que deve partir de um dado da realidade
que se apresenta, transcedendo o texto, ou seja, quando assume um
discurso, a literatura conta com outras instâncias, tais como os aspectos
estruturais que compõem a obra. Oliveira (2020, p. 16) afirma que “a
literatura, desse modo, não pode estar apenas no texto, como não está no
autor, nem no leitor. Ela se constitui num processo que envolve e
compromete a todos, numa unidade de movimento intensamente
dialética”.
A construção dos sentidos está intrinsecamente relacionada à
elaboração de um sistema simbólico, que transmite visões do mundo por
meio de instrumentos expressivos adequados, principalmente quando se
reporta ao estabelecimento de relações sociais, na satisfação de
necessidades espirituais e materiais, na manutenção ou na mudança da
ordem social. Nesse interim, convém destacar que a unidade textual não se
encontra apenas no autor, uma vez que é a interação com o leitor e com
outros fatores externos que se dá a efetiva organização literária.
Partindo desse pressuposto, fizemos uma breve apresentação da
literatura clariceana, destacando seu estilo, bem como algumas de suas
obras mais estudadas no meio acadêmico. Além disso, discorremos sobre o
que alguns dos especialistas, que se debruçaram sobre a literatura de
Clarice, têm a nos dizer sobre suas tendências contemporâneas.
Finalmente, destacamos de que forma essa produção, de cunho intimista e
carregado de subjetividade, dialoga com a sociedade burguesa, cujos temas
permanencem tão atuais quanto à epoca em que foram escritos.
Em seguida, prosseguimos com a apresentação do materialismo
lacaniano, tomando como caminho de estudo a pesquisa qualitativa e de
caráter indutivo, recorrendo ao cruzamento de dados coletados que
propõem um diálogo entre o objeto de pesquisa e os significados no texto,
a partir da análise da personagem feminina, sob a ótica do materialismo
lacaniano.

­ 244 ­
Para a análise, utilizamos o conto Amor, terceiro dos treze contos de
Laços de Família (1998). Desse modo, recuperamos as características
literárias presentes no conto, com foco no cotidiano da personagem Ana, e
as relacionamos à tríade – Simbólico, Imaginário e Real, de Lacan, revisitada
por Žižek (2010). Nos trechos analisados, verificamos a forma como o
sujeito (a personagem) transita pelo espaço Simbólico e como a instância
do Imaginário conduz os passos da personagem para o afastamento do
encontro com o Real.
De acordo com o funcionamento da tríade, tal qual a concepção de
Žižek, a personagem Ana se constitui no vazio, na lacuna de sua própria
subjetividade, em meio às concepções de um contexto histórico, cultural e
social de que o destino da mulher é ser esposa prendada e mãe dedicada
aos afazeres do lar.

Literatura clariciana: breves considerações

Clarice Lispector nasceu em 1926, na Ucrânia. Veio para o Brasil recém­


nascida juntamente com os pais, que se estabeleceram em Recife. Em 1934,
a família foi para o Rio de Janeiro onde Clarice estudou e se formou em
Direito. Depois de casada, viajou para a Suíça (Berna) e também para os
Estados Unidos. Quando voltou para o Brasil, em 1959, fixou residência no
Rio de Janeiro, até a sua morte, em 1977.
A escritora se destacou na prosa, conhecida por sua maneira peculiar de
escrita, principalmente por apresentar uma linguagem simples com
construções de metáforas inimagináveis, conforme podemos observar no
trecho extraído do conto ‘Devaneio e Embriaguez duma Rapariga’, da obra
Laços de Família: “E, como entrefechara os olhos toldados, tudo ficou de
carne, o pé da cama de carne, a janela de carne, na cadeira o fato de carne
que o marido jogara, e tudo quase doía”. (LISPECTOR, 1998, p. 16).
Sobre o estilo de Clarice Lispector, Bosi (2013, p. 452) destaca que, da
primeira até a última publicação, a escritora se manteve fiel às suas raízes
formais: “uso intensivo da metáfora insólita, a entrega ao fluxo da

­ 245 ­
consciência, a ruptura com o enredo factual”. Em sua época, Lispector fez
sucesso e também se destacou por escrever sobre temas polêmicos, como:
conflitos psicólogos, questões existenciais e sobre o papel da mulher na
sociedade. Sobre o sucesso da escrita clariciana, Bosi (2013, p. 452) destaca:
Os analistas à caça de estruturas não deixarão tão cedo em paz
os textos complexos e abstratos de Clarice Lispector que
parecem às vezes escritos adrede para provocar esse gênero de
deleitação crítica. Limito­me aqui a ensaiar algumas ideias sobre
o que me parece ser o significado da sua obra no contexto da
nova literatura Brasileira.

O estilo de Clarice se caracteriza por uma escrita intimista e epifânica e


pela presença de narradores em primeira pessoa, com linguagem simples e
temas cotidianos, raramente apresentados em ordem cronológica. A
escritora se destaca por estar à frente de seu tempo e por discutir sobre
temas delicados e, até aquele momento, não explorados.
Em 1944, a literatura brasileira estava se preparando para novas
tendências do período do Modernismo, uma vez que a renovação proposta
pela Semana de 1922 se estabelecera, consolidando o romance regionalista
de 1930. Nesse momento, de acordo com Bosi (2013, p. 415),
“condicionaram novos estilos ficcionais marcados pela rudeza, pela
captação direta dos fatos, enfim, por uma tomada do naturalismo, bastante
funcional no plano da narração­documento que então prevaleceria”. Ou
seja, em 1945, a literatura brasileira passava por mais um período de
renovação – com Guimarães Rosa e Clarice Lispector, surgia o regionalismo
e o intimismo.
Fascina (2020, p. 21) escreve:
Como precursores do intimismo de Clarice Lispector, havia,
dentre outros, Lúcio Cardoso, Cyro dos Anjos e Cornélio Pena,
os quais registraram o início de uma prosa com forte notação
psicológica. No entanto, são Guimarães Rosa e Clarice
Lispector que renovaram ou aperfeiçoaram a narrativa daquele
decênio, preocupando­se não muito com os fatos a serem
tratados, mas com a maneira como são tratados esses assuntos.

Nesse sentido, não se tratava apenas de uma questão formal e de


estrutura, por outro lado, partia­se da concepção de que essa nova

­ 246 ­
tendência interpreta a vida e a História para poder dar um novo sentido aos
novos enredos e aos personagens. Exemplo disso é obra A Paixão segundo
G.H. (1964), pois, antes mesmo da narrativa, a autora anuncia que gostaria
que o romance fosse lido por uma pessoa de “alma já formada”.
O leitor – aquele de alma formada – só entenderá essa mensagem no
decorrer da narrativa quando se deparar com o momento chocante da
narradora que, ao chegar no limite da entrada em seu mundo interior,
esmaga uma barata e depois engole a massa branca e pastosa da barata
morta. É o momento da epifania clariceana; o encontro da personagem
com uma desmontagem de si mesma para si mesma.
Nas palavras de Candido (1970, p. 160), a escrita de Clarice “se
desprendia das suas matrizes mais contingentes, como o regionalismo, a
obsessão imediata com os problemas sociais e pessoais, para entrar numa
fase de consciência estética generalizada”. Assim, cabe a seguinte reflexão:
por que aprendemos literatura com Clarice? Porque a literatura de Clarice
é rica em reflexões um tanto complexas, mas, ao mesmo tempo, apresenta
linguagem simples, com facilidade de penetração em diversos temas, que
atingem faixas etárias diversas. Portanto, os recursos linguísticos conduzem
os leitores a conjunturas corriqueiras que abrigam sentidos e que se
comunicam com os personagens e com os leitores.
Como já citado, a escritora discorria sobre temas cotidianos, com grande
facilidade em expressar suas experiências e peculiaridades, embutindo, em
seus textos, metáforas em histórias aparentemente simples, como podemos
citar o caso do conto Uma Galinha: “Era uma galinha de domingo. Ainda
viva porque não passava de nove horas da manhã”. Uma narrativa tão
simples quanto pede o cotidiano de uma família, em um dia de domingo, se
preparando para matar uma galinha para o almoço. No entanto, logo em
seguida, Clarice anuncia algo mais complexo e metafórico nessa narrativa:
[A galinha] Parecia calma. Desde sábado encolhera­se num
canto da cozinha. Não olhava para ninguém, ninguém olhava
para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua
intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda
ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio. (LISPECTOR,
1998, p. 30).

­ 247 ­
A escritora apresenta a transmissão da experiência pessoal como uma de
suas características essenciais, seja das coisas em si mesmas ou dos seres
em sua relação com o outro. Percebemos, na literatura de Clarice, duas
características primordiais: uma história que se desenrola sem palavras e o
um fenômeno que se materializa por meio de um trabalho com a
linguagem. Nas palavras de Júnior (2019, p. 5): “(...) um dos projetos
artísticos que se pode reconhecer no trabalho da autora é a reflexão sobre
os limites da linguagem, outro modo de nomear a sua poética da coisa”.
Na relação entre o papel e a alma, Clarice revela seu estilo carregado por
uma poética da linguagem, cujo foco está no drama psicológico, nos
desvaneios, nas fantasiais e nas questões do feminino.

Materialismo lacaniano: uma nova dimensão para a


literatura

Antes de adentrarmos no universo do materialismo lacaniano, corrente


teórica e filosófica que será utilizada neste capítulo, é necessária uma breve
apresentação das referências biográficas do filósofo que formulou esta
teoria, a qual vem ganhando espaço no meio acadêmico. Segundo Oliveira
(2020), Slavoj Žižek nasceu na Eslovênia, no dia 21 de março de 1949, na
cidade de Liubliana. Trata­se de um filósofo contemporâneo que publica
obras com muita frequência – média de 2 a 3 livros por ano, além de muitos
artigos e ensaios.
Žižek concluiu dois Doutorados, um em Filosofia e o outro em
Psicanálise. Sua formação acadêmica lhe deu base para o desdobramento
dessa teoria à qual está alicerçada na união das ideias do Materialismo
dialético e dos estudos psicanalíticos de Jacques Lacan. Žižek apresenta
preocupações voltadas ao meio político e social, bem como para os
acontecimentos contemporâneos e para as problemáticas sociais.
O materialismo lacaniano é uma corrente que está no âmbito da filosofia
moderna e vem sendo aplicado em diversas áreas do conhecimento, tais
como História, Estudos Culturais, Física, Teatro, Cinema e Literatura. De

­ 248 ­
acordo com Silva (2009, p. 211),
Esses pesquisadores [Žižek e Badiou] formularam suas teorias
para criticar o pensamento marxista convencional. Isso não
significa que eles rejeitam Marx, mas que, aceitando as
contribuições do filósofo alemão para a história do
pensamento, fazem a ressalva de que a economia e a luta de
classes apenas não são suficientes para dar conta de tudo que
acontece na atualidade.

Essa corrente contemporânea está sempre em construção, sendo


ressignificada de acordo com os textos em suas múltiplas leituras,
considerando o ser humano enquanto sujeito de uma dada sociedade.
Conforme afirma Fabreti (2013, p. 29),
Žižek se baseia no mesmo estilo de escrita e de raciocínio de
Lacan para oferecer novos ângulos sobre assuntos
contemporâneos. O esloveno utiliza uma teórica fluida, sem
conceitos fixos, que podem mudar de um texto para o outro,
porém, sem mera intenção iconoclasta.

Este filósofo está engajado, principalmente, na análise de questões


políticas e na crítica à ideologia. De acordo com Oliveira (2020, p. 60), “a
ambição do filósofo lacaniano é intervir no discurso político por acreditar
que isso pode afetar as ideias das pessoas e ajudar a transformar a
realidade”. Entretanto, convém ressaltar que o materialismo lacaniano toma
as referências sociais, políticas e econômicas a partir de uma visão dialética
e histórica para, em seguida, analisar os problemas do homem em uma
dimensão social e não clínica. Nas palavras de Žižek (2010, p. 12),“porque
o clínico está em toda parte, podemos contornar o processo e nos
concentrar, em vez disso, em seus efeitos, no modo como ele colore tudo
que parece não clínico”.
Sobre isso, Oliveira (2020, p. 59­60) destaca que
Žižek assegura que os postulados de Lacan são essenciais para a
atualização das noções de proletariado, de comunismo e das
concepções de liberdade da política atual, mas enfatiza que não
adota o viés da psicanálise clínica, já que é o caráter social que
amplia, por meio da ideologia, a dimensão de análise da
existência do ser, por isso urge “arriscar o impossível”. Para
Žižek, a teoria marxista negligencia a dimensão social da
realidade representativa, logo é preciso que o poder funcione

­ 249 ­
além dos limites da democracia: ele destaca que devemos
encontrar os antagonismos que fazem do comunismo, ou de
uma forma alternativa de organização das relações político­
econômico­sociais, uma urgência prática na realidade histórica.

Em outras palavras, o materialismo lacaniano fornece os elementos


essenciais para uma análise da humanidade, visto que ele parte do inferior
para o mais elevado, principalmente quando trabalha a diferença entre o
universal e o particular.
A proposta do materialismo lacaniano aplicada à própria estruturação
literária de um texto (narrativo, lírico ou dramático) abre novas
possibilidades de análise no campo da literatura. Nessa linha de
pensamento, tomamos como base a estrutura da narrativa da obra Laços de
Família, de Clarice Lispector, revisitando­a pelo viés do materialismo
lacaniano.

Principais conceitos de Žižek

Para pensar o homem, suas atitudes, comportamentos e ações em


sociedade, Žižek (2010) apresenta a tríade (Simbólico, Imaginário e Real),
por meio de uma comparação dessas três instâncias com o processo de
funcionamento do jogo de xadrez. As regras, que correspondem à instância
do Simbólico, devem ser do conhecimento dos jogadores para a execução
do jogo. A segunda instância é o Imaginário, a imagem projetada, ou as
possíveis movimentações das peças durante o jogo. P or último, temos o
Real, algo inesperado, aquilo que foge do alcance, ou do controle dos
jogadores – que seria, por exemplo, a ação não prevista do oponente.
(ŽIŽEK, 2010, p. 16­17). É preciso lembrar que o Real lacaniano é
irrepresentável e traumático.
Na vida em sociedade, o Simbólico pode ser entendido como as normas
ou os costumes que os indivíduos necessitam conhecer e seguir para assim
viver . A esfera do Imaginário seria a da ilustração, do conceito ou ainda da
materialização daquilo a que o Simbólico se refere. O Real caracteriza­se
como algo traumático, um choque, um sentimento ou uma sensação

­ 250 ­
indizível.
De acordo com Fabreti (2013, p. 34), o indivíduo está conectado a este
conceito da tríade, pois, de acordo com estas camadas pisíquicas, o sujeito
se relaciona e atua no âmbito social. A autora também afirma que, para
simbolizar a correlação entre os níveis, Lacan faz menç ão ao Nó
borromeano, o qual é constituído por três anéis vinculados que dependem
um do outro e trabalham em conjunto, formando, portanto, uma tríade.

Figura 1 ­ Nó borromeano

Fonte: adaptado de Lacan (1974­75, p. 19)13

Neste exemplo, verificamos a constituição dos anéis e a relação de


dependência entre eles. De acordo com Grecca (2016, p. 44),
Tanto o Imaginário quanto o Simbólico são englobados pela
linguagem, funcionando de maneira semelhante,
respectivamente, ao significante e ao significado saussureanos.
Sendo assim, o que os difere do Real é o fato de possuírem uma
estrutura discursivas de manisfestação, enquanto este último
não consegue ser traduzido por nenhum tipo de lógica, apesar
de uma presença ser inconscientemente sentida.

Em sua dissertação, a autora afirma que o Imaginário e o Simbólico estão

13. Disponível em: https://www.researchgate.net/figure/.

­ 251 ­
presentes na formação do ser como sujeito, possibilitando suporte para a
socialização e situações cotidianas, bem como regras de convivência
doméstica ou em sociedade. O Imaginário se constitui como forma
particular da materialização dos elementos, ou uma visão particular dos
acontecimentos, de forma visual e sonora. Assim, o Real se caracteriza por
um rompimento da linha do Simbólico e do Imaginário, uma abundância
de imagens e de conceitos impensáveis, pois são irredutíveis à linguagem.
Esse rompimento ou quebra ocasiona um choque traumático, um
contato com o indizível, algo que não pode ser expresso por meio de
códigos. Nesse sentido, manifesta­se por meio de traumas agressivos na
instância individual ou através de grandes catástrofes na esfera social,
conforme destaca Silva (2009, p. 213): “Segundo Žižek, o Real pode
irromper na vida do sujeito através de um evento traumático, seja ele físico
ou psicológico. Essa irrupção cria o momento em que ‘a vida perde o
sentido’, por assim dizer, em que os laços simbólicos que desatam,
deixando que mergulhemos no caos”.
O Real, portanto, não pode ser traduzido por meio de códigos, mas pode
ser indicado por manifestações que fogem do plano da linguagem, o que
Lacan nomeou de a “C oisa”. S ão essas as evidências que apontam a
presença do Real.

A tríade simbólica no conto Amor

O conto Amor é um dos treze contos da obra Laços de Família (1998),


publicado em 1960. Neste conto, o narrador retrata a história de Ana, uma
mulher burguesa e muito dedicada a sua casa e a sua família. A personagem
Ana é uma exímia dona de casa que preza por realizar seus afazeres
domésticos e cuida para que tudo esteja na mais perfeita ordem. Esposa e
mãe dedicada, zela pelo marido e pelos filhos.
Em sua rotina, Ana mantinha­se sempre ocupada e os afazeres
preenchiam­lhes as horas como uma necessidade de se manter o tempo
quase todo ocupada, “mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma

­ 252 ­
cortara lembrava­lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando
o calmo horizonte.” (LISPECTOR, 1998, p. 19). O narrador destaca a
aparente “força” e poder que aquela mulher tem sobre o seu próprio
destino, pois ela não precisava descansar, mesmo “um pouco cansada”,
depois das compras – é assim que o conto inicia.
Ana fazia tudo crescer:“os filhos cresciam, cresciam as árvores, cresciam
sua rápida conversa com o cobrador, crescia a água enchendo o tanque,
crescia a mesa com comidas”. (LISPECTOR, 1998, p. 19). As metáforas
utilizadas são a confirmação de que tudo em seu espaço Simbólico era
consolidado por meio da sua tarefa de esposa e de mãe dedicada. Nas
palavras de Fascina (2020, p. 38), a ilustraçao de uma vida aparentemente
sólida, [é] identificada no estágio Simbólico da personagem, [é] tecido
seguro que possibilita a ela reconhecer­se em seu papel de mãe e esposa,
bem como suas tentativas de manter­se nesse registro”.
A personagem tinha medo de que lhe sobrasse um tempo para si,
principalmente à tardezinha, quando havia realizado todas as suas tarefas.
Tratava­se de uma “a hora perigosa”, porque sem ocupação, esse mundo
“aparentemente” feliz poderia desmoronar:“certa hora da tarde, as árvores
que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força,
inquietava­se.” (LISPECTOR, 1998, p. 19).
Todas as referências aos filhos e à organização da casa remetem ao
funcionamento da tríade: as normas de convivência da personagem
feminina, em seu mundo, criada para casar, cuidar da casa e dos filhos são
da instância do Simbólico – são as regras que Ana precisa seguir para
cumprir seu destino de forma tranquila. As imagens que ela projeta desse
mundo, tais como manter tudo o mais perfeito possível, de forma que não
sobre tempo para si mesma, são do Imaginário, isto é, são as formas que ela
selecionou para se mover “confortavelmente” dentro desse espaço
Simbólico, que funciona como uma barreira que a impede de se encontrar
com o Real.
O narrador relata que a dona de casa realizada, prendada e infeliz
escolhera ela mesma aquela vida, pois antes do casamento “sua juventude

­ 253 ­
anterior parecia­lhe estranha como uma doença de vida”, uma vida que
descobrira ser possível viver sem a felicidade, quando tudo podia ser
resumido ao trabalho – “com persistência, continuidade, alegria”. Por isso,
“se abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam
transmitido.” (LISPECTOR, 1998, p. 20­21).
Certo dia, Ana saiu para fazer compras para um jantar com seus
familiares e, quando estava voltando, o narrador anuncia que havia algo
diferente, pois “o bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo
um vento mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim
da hora instável.” (LISPECTOR, 1998, p. 21). Após um profundo suspiro, Ana
se acomodou no bonde e, em seu rosto, vislumbrou­se o ar de grande
aceitação de ser mulher. Por instantes, foi­se a dona de casa resignada e, se
até Humaitá havia tempo de descansar, ela também teria. Nesse momento,
ela avistou avistou um cego mascando chiclete na calçada. Aquela imagem
a desestabilizou ao ponto de derrubar as sacolas que segurava e fez com
que perdesse o ponto onde iria descer.
Quando percebeu que tinha passado do ponto, gritou para o motorista
parar e, ainda desorientada, desceu e começou a caminhar, confusa, cheia
de inquietações, até que chega ao jardim botânico, onde se sentou e
começou a observar o espaço em que estava, tudo descrito com riqueza de
detalhes: as belezas da natureza, algumas flores como tulipas, aléias e
outras. Os animais que ali estavam eram apresentados em seus permenores.
No entanto, ao mesmo tempo, percebe­se a decomposição presente no
espaço. Ana permaneceu naquele local a tarde inteira, e, ao escurecer,
voltou para casa.
Estremecida e espantada com pensamentos sobre ajudar pessoas e
lugares necessitados, Ana continuou inquieta. Q uando entrou em casa,
avistou seu filho e abraçou­o fortemente, sentindo amor e medo ao mesmo
tempo. Apesar disso, foi ajudar a cozinheira com o jantar. Quando os
convidados chegam, o jantar é servido e Ana começa a se familiarizar
novamente com a sua vida, sente a segurança do lar, o aconchego e sua casa
em ordem. Assim, encerra seu momento de epifania e vai descansar com

­ 254 ­
seu marido. Assim,“antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a
pequena flama do dia.” (LISPECTOR, 1998, p. 29).
Sobre o recurso da epifania, Fascina (2020, p. 38) afirma que
a epifania, técnica narrativa comumente encontrada na ficção
de Lispector, é o estopim para o encontro com o Real. A
epifania descortina uma “realidade” que as criaturas de
Lispector recusam, de modo que se sentem aliviadas com o
afastamento de tal situação ao retornarem à normalidade. A
trajetória de grande parte de suas personagens está ligada à
necessidade de experimentação de uma revelação/crise/
náusea que as expulsam da tranquilidade cotidiana. Esse
conhecimento súbito da “verdade”, que cria um rito de
passagem, arrebata não apenas suas criaturas, mas também o
leitor e a própria narradora.

Como citado anteriormente, este conto descreve a história de Ana, uma


mulher que preenche seus dias cuidando para que tudo esteja bem em sua
casa, com seu marido e com seu filho, o que se relaciona diretamente com
o conceito da tríade de Žižek (2010), mais especificamente, com a instância
do S imbólico. Ana está inserida na sociedade, é respeitada e desempenha
bem o papel a ela atribuído. Contudo, o modo como a personagem se
comporta diante desses deveres está associado ao Imaginário, ou seja, à
forma como a própria personagem se vê, a maneira como ela desempenha
suas tarefas domésticas, sempre trabalhando para deixar tudo impecável, se
ocupando para, na verdade, suprimir seus pensamentos.
O narrador é onisciente e narra a vida cotidiana da protagonista, a qual
“tudo estava no lugar”. Para enfatizar isso, observamos o recurso de
repetição da frase: “assim ela o quisera e escolhera” (LISPECTOR, 1998, p.
20­21). Em contrapartida, durante a tarde, sobrava­lhe um tempo, “A hora
perigosa”, no qual ela poderia pensar sobre a própria vida e sobre os
caminhos que a levaram até aquela situação . O narrador mergulha na
mente de Ana, demonstrando como os sentimentos e os pensamentos
contraditórios caracterizam a personagem em seu movimento pela ordem
simbólica.
No momento em que avistou o cego, Ana se desestabilizou, perdeu o
controle, como se ele a representasse na perspectiva da vida limitada que

­ 255 ­
levava; estava perplexa com tantos questionamentos em sua mente, e a
visão daquele cego a provocava, suscitando dúvidas a respeito de sua falsa
paz e comodismo. Um detalhe tão simples e diferente da rotina diária
ganha uma grande dimensão, uma vez que Ana transita do estado de
aceitação e dependência da complexa rede de regras que compõem a
ordem simbólica para o estado de reflexão sobre sua relação com outros
seres.
Sobre esse processo de interação, Žižek (2010) afirma que o ser humano
nunca interage simplesmente com outros, pois, nesse processo, há uma
série de regras e pressupostos que funcionam como um padrão de
comparação contra o qual o indivíduo pode se medir.
Primeiro há as regras da gramática, que tenho de dominar de
maneira cega e espontânea: se eu tivesse de ter essas regras em
mente o tempo todo, minha fala se desarticularia. Depois, há o
pano de fundo de participar do mesmo mundo/vida que
permite que eu e meu parceiro na conversação
compreendamos um ao outro. (ŽIŽEK, 2010, p. 17).

Ao analisarmos o movimento da personagem Ana dentro do espaço


simbólico, observamos que há regras que ela segue por hábito, mas em
dados momentos, ao refletir sobre os significados postos, ela se torna,
momentaneamente, consciente.
O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora
de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se
confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo
enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e
escolhera. (LISPECTOR, 1998, p. 13).

Percebemos que algumas regras e significados perseguem a personagem,


mas ela os ignora. Além disso, existem outras regras, cujos significados
caracterizam a profundidade psicológica, uma vez que ela os conhece, mas
são silenciados, pois é preciso manter o decoro.
Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não
explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava
uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para
serem usadas e podia­se escolher pelo jornal o filme da noite —
tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um
cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da

­ 256 ­
piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a
boca. (LISPECTOR, 1998, p. 13).

Este momento pode ser compreendido como o encontro com o Real,


uma vez que ali,Ana se deparou com uma verdade despida e intolerável. Era
um choque, como se, até o momento, vivesse com uma venda nos olhos,
naquele mundo particular que construíra para transitar confortavelmente
no plano do Simbólico.
Žižek (2010) ressalta que o Real se configura a partir de “qualquer ação
ou acontecimentos inesperados que afetam o curso preestabelecido no
espaço simbólico”. (ŽIŽEK, 2010, p. 16­17). O Real é um excesso da
realidade que circunda a existência do ser e que escapa ao terreno seguro
do Imaginário e do Simbólico, uma vez que o encontro com o Real é
sempre traumático, conforme aconteceu com a personagem Ana.
Segundo Oliveira (2020, p. 66),
Real não pertence ao campo da linguagem, porque não pode
ser manifestado pelas palavras: estas estão no Simbólico e no
Imaginário. Esse Real, apesar de fazer parte da realidade
humana, corresponde a algo que, devido à dimensão do trauma
ou da dor que o caracteriza, é indizível, incapaz de ser expresso,
nem mesmo por imagens.

Como componente da tríade em um enlaçamento perfeito, a visão do


cego mascando chiclete marca o encontro com o Real, momento em que
Ana “se desintegra”. A realidade do personagem se unifica na estrutura da
linguagem expressa no romance quando ela entra na instância do Real, que
é terrível, mas que precisa ser vivenciado para dar sentido à ressignificação
da Ordem Simbólica.
Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de
descida. Na fraqueza em que estava tudo a atingia com um
susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de
si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não
conseguia orientar­se. Parecia ter saltado no meio da noite.
(LISPECTOR, 1998, p. 13).

Para Ana, a vida cotidiana perde o sentido no encontro com o Real, pois,
de acordo com Žižek (2010), quando o homem consegue traduzir em
palavras esse Real, ele ressimboliza aquele momento, ou seja, volta para a

­ 257 ­
dimensão Simbólica, fato que aconteceu com a personagem.

Considerações finais

A pesquisa em literatura é um campo de (re)construção de significados,


e esses significados estão tanto no campo linguístico quanto no literário. A
pesquisa nessa área, a nosso ver, discute o próprio texto, metaforizando a
própria obra. O caminho selecionado (pesquisa qualitativa e indutiva), nos
assegurou um reconhecimento dos campos da linguagem, da filosofia, da
sociologia, da história e, obviamente, do campo teórico em literatura.
Com base nos pressupostos de Žižek, podemos afirmar que a pesquisa
qualitativa corrobora com o estudo analítico do texto, uma vez que propõe
uma fuga à visão superficial que a obra literária, tão artimanhosamente,
pode sugerir.
Esta pesquisa realizou um estudo na linha Literatura e Historicidade,
cujo objeto foi a obra de Clarice Lispector em diálogo com os estudos
socioculturais e com a filosofia, a partir do materialismo lacaniano,
tomando como referencial o funcionamento da tríade Real, Imaginário e
Simbólico.
Nesse sentido, propomos uma relação entre a forma e o conteúdo,
discussão largamente difundida por Candido (2000), de modo que os
conceitos basilares da teoria žižekiana pudessem dar sustentação à análise
da personagem protagonista em sua trajetória dentro da ordem Simbólica.

Referências

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Paulo: Cultrix, 2013.

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 8 ed. São Paulo: T. A. Queirós;


Publifolha; Cia. Ed. Nacional, 2000. (Grandes nomes do pensamento
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ŽIŽEK, Slavoj. Como ler Lacan. Tradução Maria Luzia Borges. Rio de
Janeiro: Zahar, 2010.

­ 259 ­
­ 260 ­
SOBRE OS AUTORES

Andressa Tayse de Oliveira Costa é graduada do Curso de Graduação


- Licenciatura em Letras-Português, do Campus IV da Universidade Estadual
de Alagoas - UNEAL. Tem especialização em Metodologia do Ensino de
Língua Portuguesa e Arte. Participa, como voluntária, do Grupo de Pesquisa
Literatura e o Materialismo Lacaniano de Žižek (LIMALAZ), sob a
coordenação da Professora Dra. Maria Betânia da Rocha de Oliveira e
desenvolve pesquisa sobre a obra de Graciliano Ramos. Tem experiência
em educação básica - ensino fundamental II. Trabalha, há cinco anos, na
educação pública e privada, na cidade de Boca da Mata-AL.

Bruno Henrique de Souza Silva possui graduação em Direito pela


Universidade Paranaense (2018); e pós-graduação em Direito
Previdenciário pela Faculdade Venda Nova do Imigrante (2020). É
mestrando em Literatura, área de Estudos Literários, pela Universidade
Estadual de Maringá (UEM). Atua nas áreas de Direito Civil, Penal e
Previdenciário.

Diana Milena Heck é Doutora em Letras (Literatura Comparada) pelo

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Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual do Oeste
do Paraná. Mestra em Estudos Literários pela Universidade Estadual de
Maringá (2014). Especialização em Língua Portuguesa e Literatura
Brasileira pela FAG (2011) Graduação em Letras Português/Espanhol pela
Universidade Estadual do Oeste do Paraná (2009). Docente na
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).

Diego Luiz Miiller Fascina faz estágio pós-doutoral em Literatura pela


UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob a supervisão de
Regina Zilberman). Fez estágio de Pós-Doutorado em Psicanálise pela
UNESP (Universidade Estadual Paulista (campus Assis), sob a supervisão de
Gustavo Henrique Dionísio), e em Ciências da Linguagem pela Unisul
(Universidade do Sul de Santa Catarina (campus Tubarão), sob a supervisão
de Jussara Bittencourt de Sá). Possui graduação em Letras pela
Universidade Estadual de Maringá, especialização em Letras com ênfase em
História da Arte pela Fundação Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de
Mandaguari, e Mestrado e Doutorado em Letras (área de concentração:
Estudos Literários) pela Universidade Estadual de Maringá. É pesquisador
líder do grupo "Estudos Literários", do Centro Universitário de Maringá e
coordenador do projeto de pesquisa Materialismo lacaniano, literatura e
outras artes, da Unespar (campus Paranaguá). Participa dos seguintes
projetos de pesquisa: Lacanianismo, Literatura e Cultura (UEM) e
"Animalidade e Humanidade na Literatura" (UEM) cadastrados no CNPq.
Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira e
Portuguesa e em Teoria e Crítica literária, e suas pesquisas contemplam os
seguintes temas: Clarice Lispector, Cazuza, materialismo lacaniano de Slavoj
Zizek,crítica psicanalítica, história da arte, rock brasileiro, relações entre
literatura e outras linguagens, e construção de identidades. Foi professor
colaborador do DTL, da Universidade Estadual de Maringá. Atualmente é
professor do UniCesumar - Centro Universitário de Maringá e professor
colaborador da Unespar (campus Paranaguá). Faz formação continuada em
Psicanálise (freudiana e lacaniana).

- 262 -
Fernanda Garcia Cassiano é Doutoranda no Programa de Pós-
Graduação em Letras (PLE) da Universidade Estadual de Maringá (UEM), é
Mestra em Letras na linha de pesquisa Literatura e Historicidade, associada
à Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC) e vinculada aos
projetos de pesquisa: Lacanianismo, literatura e cultura e Nada de errado
em nossa etnia: tradição, cultura e identidade em literaturas de caráter pós-
coloniais e decoloniais e ao projeto de extensão Outras Palavras (POP).
Graduada em Letras, com habilitação em Língua Portuguesa e Literaturas
Correspondentes, pela Universidade Estadual de Maringá (UEM).

Gabriela Bruschini Grecca é professora do Departamento de Letras


da UEMG. Possui Mestrado pela UEM, com mobilidade acadêmica na
Louisiana State University; Doutorado pela UNESP, com estágio doutoral na
University of Florida (CAPES/PDSE); e Pós-Doutorado (2023/2024) pela
UFMG. Coordena o Núcleo de Estudos do Romance - NER (CNPq),
direcionando orientações, trabalhos e publicações para a área de teoria e
crítica do romance.

Isabela Padilha Papke é Doutoranda na área de Estudos Literários, na


Linha de Pesquisa de Literatura, Sociedade e História da Literatura, no
Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. É Mestra na área de Estudos Literários pela Universidade
Estadual de Maringá (2019-2021), tendo realizado sua pesquisa com a obra
O Homem Duplicado de José Saramago, é também Licenciada em Letras
Habilitação Única - Português e Literaturas correspondentes pela mesma
Universidade (2018). É revisora e membro do corpo editorial da revista
acadêmica História em Curso, do Curso de História da PUC-MINAS,
membro do Grupo de Estudos em História e Literatura (GEHISLIT),
também da PUC-MINAS, membro do Grupo de Estudos Literatura e
Ditaduras (GELD) da PUC-SP e membro do grupo de pesquisa "Saramago,
Leitor de Karl Marx" da PUC-MINAS.

- 263 -
Késia Maria da Silva Florentino é graduada do Curso de Graduação -
Licenciatura em Letras-Português, do Campus IV da Universidade Estadual
de Alagoas - UNEAL. Atualmente, é aluna do curso de pós-graduação Lato
Sensu “Linguagem, Ensino e Pluriletramento” no Campus IV da
Universidade Estadual de Alagoas; participa, como voluntária, do Grupo de
Pesquisa Literatura e o Materialismo Lacaniano de Žižek (LIMALAZ), sob a
coordenação da Professora Dra. Maria Betânia da Rocha de Oliveira e
desenvolve pesquisa sobre a obra de Clarice Lispector.Tem experiência em
educação básica - ensino fundamental II.Trabalha como professora na rede
de educação pública de Campo Alegre-AL.

Marcia Geralda de Almeida é Doutoranda em Estudos Literários, no


Programa de Pós-graduação em Letras, da Universidade Estadual de
Maringá. Integrante do grupo de estudos Materialismo Lacaniano. Foi
professora do ensino regular e EJA, no Estado do Paraná. Publicou artigos
em revistas científicas e capítulos de livros sobre os temas: estudos
culturais, literatura brasileira de autoria feminina e psicanálise.

Maria Betânia da Rocha de Oliveira é doutora em Estudos Literários


pela Universidade Estadual de Maringá (UEM).Tem experiência na área de
Literatura e Historicidade, com ênfase na aplicação do Materialismo
Lacaniano; Estudos Culturais; Romance Lírico e Ensino de leitura de textos
literários. Publicou três livros: Doces histórias e encantos acadêmicos – a
trajetória de Betânia Rocha (2023); Entre o amor à Pátria e as teias da
violência – o triste fim (2022) e Policarpo Quaresma: entre o ideal e o real
– o triste fim (2006). Publicou, também, muitos capítulos de livros.
Atualmente, é Professora Titular do Campus IV, da Universidade Estadual de
Alagoas (UNEAL), onde, além de ministrar aulas de Literatura, coordena o
Grupo de Pesquisa “Literatura e o Materialismo Lacaniano de
Žižek” (LIMALAZ); é Docente Orientadora do Programa Residência
Pedagógica (PRP), núcleo de Língua Portuguesa, com o subprojeto “Ler e

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escrever sem doer – o sabor do texto revelado pela literatura”; é professora
e coordenadora do Curso de Especialização Lato Sensu em Ensino,
Linguagem e Pluriletramento (Campus IV/UNEAL).

Marisa Corrêa Silva é Graduada em Letras pela Unicamp, mestre em


Comunicação pela Unesp de Bauru e doutora em Letras pela Unesp de
Assis, com semestre de pesquisa na Universidade de Coimbra. Fez pós-
doutorado na Rutgers - the State University of New Jersey, com Phillip
Rothwell. Sua experiência na área de Letras inclui as Literaturas brasileira e
portuguesa, publicando e organizando livros e publicando artigos
científicos e capítulos sobre os seguintes temas: Helder Macedo,
materialismo lacaniano, Saramago, teoria literária, poesia e leituras
intersemióticas. Pioneira no Brasil na aplicação sistemática do materialismo
lacaniano de Slavoj Zizek e de Alain Badiou na análise literária, bem como
no desenvolvimento de metodologia para efetuar tal aplicação, desde 2009.
Foi vice-presidente da ANPOLL na gestão 2018 - 2021. Coordena o grupo de
pesquisa "Aplicação do pensamento de S. Zizek na análise literária e em
outras artes narrativas", cadastrado no CNPq. Atua no Programa de Pós-
Graduação em Letras (PLE) da Universidade Estadual de Maringá (UEM).

Milene Vitória Ferreira da Silva é estudante do curso de Licenciatura


em Letras Português do Campus IV da Universidade Estadual de Alagoas.
Foi integrante do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência
(PIBID) entre 2020 e 2021.Atualmente, participa do Grupo de Pesquisa em
Estudos Literários (registrado no Diretório Nacional dos Grupos de
Pesquisa CNPq e certificado pela UNEAL), sob a coordenação da professora
Dra. Maria Betânia da Rocha de Oliveira e desenvolve pesquisas na linha de
pesquisa “Literatura e o Materialismo Lacaniano de Žižek” (LIMALAZ).
Também participa do Programa Residência Pedagógica no projeto “Ler sem
doer: o sabor do texto revelado pela literatura”.

Phillip Rothwell tem graduação em Matemática pelo Trinity College,


na Universidade de Cambridge, Inglaterra. Ensinou em Xai-xai. província de
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Gaza, Moçambique, em 1994-95 como parte do programa VSO (Serviço
Voluntário no Além- Mar), onde se apaixonou pela língua portuguesa e pela
literatura africana lusófona.Também trabalhou em Eshowe, Kwazulu-Natal,
na África do Sul. Retornando a Cambridge, defendeu sua tese, que depois
foi publicada como livro: A Postmodern Nationalist: Truth, Orality and
Gender in the work of Mia Couto". Em 2000, foi trabalhar na Rutger's- the
State University of New Jersey, onde iniciou suas publicações na linha de
materialismo lacaniano. Hoje, ocupa a cátedra King John II na Faculdade de
Línguas Medievais e Modernas, na Universidade de Oxford, Inglaterra. É
fellow do St. Peter's College e diretor do European Humanities Research
Centre.

Rafael Lucas Santos da Silva é Doutorando em Letras (2020-2024), na


área de Estudos Literários, pela Universidade Estadual de Maringá (UEM),
em Maringá, PR, Brasil. Participa do Projeto de Pesquisa “Lacanianismo,
Literatura e Cultura”, coordenado pela professora Dr.ª Marisa Corrêa Silva, e
sob cuja orientação desenvolve pesquisa sobre o pensamento de Slavoj
Žižek e suas aplicações aos Estudos Literários, a partir da qual já publicou,
entre outros, os artigos “As vicissitudes da pseudoatividade na mentalidade
industrial de Inácio e Benedito” (Revista Letrônica, 2020) e “Violência
sistêmico­simbólica e precarização do trabalho em ‘Passageiro do fim do
Dia’, de Rubens Figueiredo” (Revista Letras, UFSM, 2021).

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