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arte de ler. A professora Marisa, enquanto professora da pósgraduação já
referida, corajosamente abriu caminho no país para algo inédito, uma teoria
que estremece as paredes de algumas teorias literárias e filosóficas já
sedimentadas, uma vez que questiona o pensamento linear, cartesiano. Os
alunos que se aventuraram a trilhar o caminho proposto pela professora,
um grupo coeso e paradoxal ao mesmo tempo, em sua união dialógica e
dialética, contribuíram para a pesquisa e a disseminação dos saberes
adquiridos em sua trajetória.
As páginas reunidas aqui são uma testemunha do compromisso e da
intelectualidade rigorosa dos pesquisadores envolvidos, indivíduos que se
aventuraram por territórios ainda pouco mapeados, presenteandonos com
contribuições que têm valor inestimável tanto para a academia quanto para
a nossa apreensão das complexas ligações entre a linguagem, a
subjetividade e a sociedade.
A singularidade destas pesquisas reside na maneira como elas
mergulham fundo na teoria do materialismo lacaniano e a aplicam, de
forma original e instigante, ao universo literário. Enveredandose na análise
cuidadosa de obras literárias selecionadas, os autores desvendam as
interseções entre os conceitos de Real, Simbólico e Imaginário e os
elementos narrativos, simbólicos e psicológicos presentes nas narrativas.
Nesse ato, desvelamse novas perspectivas para interpretar e compreender
a literatura, desafiandonos a repensar a forma como nos relacionamos com
as palavras e as narrativas que moldam nossa cultura e a de povos em
outras nações.
Além disso, não podemos subestimar a relevância desses estudos para o
ensino da literatura e da leitura. Ao trazer o Materialismo Lacaniano para o
contexto educacional, os autores enriquecem as abordagens pedagógicas e
oferecem ferramentas conceituais que podem alargar o processo de
aprendizado dos estudantes, incentivando uma compreensão mais
profunda e crítica das obras literárias.
Em síntese, este livro nos convida à reflexão profunda sobre as
interconexões entre a teoria psicanalítica, o materialismo histórico
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dialético, a literatura e a sociedade. Ele é o resultado do comprometimento
de um grupo de pesquisadores que almeja alargar os confins do
conhecimento acadêmico. Esperamos que esses ensaios fomentem
debates, inspirem novas abordagens e, sobretudo, enriqueçam o campo da
pesquisa literária com uma perspectiva verdadeiramente inovadora e
esclarecedora. Aos leitores, desejo que saiam amadurecidos e renovados,
tendo, diante de si, uma nova perspectiva para olhar o mundo literário.
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Žižek, Lacan e literatura:
uma conversa necessária
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A FILOSOFIA POLÍTICA DE SLAVOJ ŽIŽEK COMO
CRÍTICA LITERÁRIA
Diego Luiz Miiller Fascina
Marisa Corrêa Silva
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inicia a base estrutural dessa teoria, localizando, na realidade histórica, os
antagonismos que fazem dessa ideia uma urgência prática.
A primeira transformação proposta gira em torno dos aparatos
conceituais de Karl Marx; no entanto, como afirma Silva (2009, p. 211),
esses pensadores não renegam o marxismo, mas, “aceitando as
contribuições do filósofo alemão para a história do pensamento, fazem a
ressalva de que a economia e a luta de classes apenas não são suficientes
para dar conta de tudo o que acontece”. Assim, Žižek despontou como
pensador capaz de renovar Marx, uma vez que a ortodoxia marxista
deixava brechas em determinadas análises de dimensão social.
O pensador esloveno travou contato com a psicanálise oriunda de
Jacques Lacan e com o idealismo alemão ainda na época em que
sedimentava sua formação filosófica. E é fundamentalmente dessas áreas
que Žižek retira o substrato teórico para a análise de nossa condição
contemporânea, ao mesmo tempo em que problematiza e revigora as
discussões a respeito dessa condição. Segundo Daly (2009),
o paradigma žižekiano – se é que podemos falar nesses termos
– extrai sua vitalidade de duas grandes fontes filosóficas: o
idealismo alemão e a psicanálise. Em ambos os casos, o
interesse central de Žižek recai sobre certa falta/excesso na
ordem do ser. No idealismo alemão, esse aspecto explicitase
mais e mais através da referência ao que se poderia chamar de
uma ‘loucura’ inexplicável, que é inerente e constitutiva do
cógito e da subjetividade como tal [...] Na psicanálise, esse
aspecto temático da subjetividade deslocada é mais
desenvolvido com respeito ao conceito freudiano de pulsão de
morte. A pulsão de morte surge, precisamente como resultado
dessa lacuna ou furo na ordem do ser – uma lacuna que aponta,
ao mesmo tempo, para a autonomia radical do sujeito – e é algo
que ameaça constantemente sabotar ou derrubar a estrutura
simbólica da subjetividade (DALY, 2009, p. 910).
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com base em conceitos que fogem da psicanálise (a citar: a linguística de
Saussure, a antropologia de LéviStrauss, as filosofias de Platão, Heidegger,
Hegel, Kierkegaard, incluindo a teoria matemática dos conjuntos etc.),
entendemos que esta não é uma teoria clínica que busca compreender e
tratar distúrbios psíquicos,“mas uma teoria e prática que põe os indivíduos
diante da dimensão mais radical da existência humana. Ela não mostra a um
indivíduo como ele pode se acomodar às exigências da realidade social; em
vez disso, explica de que modo, antes de qualquer coisa, algo como
“realidade” se constitui” (ŽIŽEK, 2010, p. 10).
Sandro Bazzanella (2009), ao analisar os diversos estilos filosóficos de se
apresentar uma teoria, afirma que tais estilos não são gratuitos e que
possuem articulação direta com a visão de mundo de uma determinada
época. Assim, Platão escreveu em forma de diálogos, Montaigne através de
ensaios e Nietzsche basicamente por aforismos. Žižek possui um estilo que
articula, intimamente, a forma como a dinâmica social, política e
econômica se coloca numa contemporaneidade cética, em relação aos
projetos societários de igualdade e marcada pela fragmentação nas visões
de mundo. Dessa forma, usa um estilo que se comporta como uma
“guerrilha”, “na medida em que nos dá a impressão que procura não
enfrentar o problema em campo de batalha aberto, mas lança mão de
intrincados caminhos e atalhos, o que exige de seu intérprete esforços
significativos para seguir seus rastros” (BAZZANELLA, 2009, p. 16).
Dessa maneira, Žižek transita entremeio à psicanálise e à política radical,
fazendo uso desse estilo que, por vezes, denuncia as dificuldades e os
desafios teóricos da contemporaneidade, ao mesmo tempo em que remete
ao hermetismo advindo de Lacan, “que recusa as formas de pensamentos
fechadas, calcadas na lógica de origem grega” (SILVA, 2009, p. 212).
O esloveno realiza uma nova leitura que compreende desde a filosofia, a
sociologia, a literatura e política, passando pelo cinema hollywoodiano, o
espaço cibernético, a biogenética, a ficção popular, o atentado contra o
World Trade Center, a subjetividade na pósmodernidade, até assuntos
aparentemente banais, como, por exemplo, o Big Brother, o Kinder Ovo e
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os diferentes tipos de vasos sanitários; temas que recebem uma leitura, no
mínimo, inquietante e que nos guiam para significados implícitos por vezes
surpreendentes, mas que parecem óbvios uma vez descortinados pelo
pensamento ágil do filósofo.
Bazzanella (2009) articula o pensamento de Žižek em três linhas gerais:
inicialmente, o esloveno critica a hegemonia da democracia liberal do
capitalismo, que possui um discurso ideológico truncado e contraditório,
pois, ao mesmo tempo em que apregoa a liberdade como imperativo a ser
alcançado, apresenta um feedback punitivo para aqueles que se aventuram
na busca dessa liberdade. Daly (2009) afirma que esse tipo de crítica
funciona
apenas como ponto de partida de um compromisso ético
político muito mais amplo com um universalismo
emancipatório radical, capaz de se opor à natureza cada vez
mais proibitiva do capitalismo contemporâneo e suas formas
correspondentes de correção política e
‘multiculturalismo’ (DALY, 2009, p. 78).
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denunciada como apoio disfarçado ao terrorismo... É
precisamente essa tentação a que se deve resistir: é exatamente
nesses momentos de aparente clareza de escolha que a
mistificação é total. A escolha que nos é proposta não é a
verdadeira escolha (ŽIŽEK, 2003, p. 71).
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literário não resulta, portanto, numa análise psicanalítica tout court.
Já havíamos esclarecido que sua abordagem não pretende elucidar um
problema clínico ou lançar luzes sobre as motivações inconscientes das
personagens, eliminando, dessa maneira, a psicanálise do autor e do
conteúdo, propostas por Eagleton. Mesmo que a leitura faça referências
diretas ao indivíduo, a aplicação do materialismo lacaniano ao texto exige
que pratiquemos novos olhares para questões que versem a respeito da
estrutura literária e, também, dos elementos teóricos que compõem a
narrativa, o drama ou a lírica, bem como os gêneros mistos ou limítrofes: a
maneira como a linguagem e o estilo são utilizados ou até do modo em que
as personagens funcionam como representação ou reflexo de uma
coletividade.
O materialismo lacaniano na crítica literária é relativamente recente.
Žižek já havia relido, dentre outros textos, o conto Bobók de Dostoiévski,
endossando a opinião de Lacan de que a verdadeira fórmula do ateísmo
não é de que Deus está morto, mas que Deus é inconsciente. O esloveno
também nos informa que Ricardo II é a peça fundamental de Shakespeare
a respeito da histericização, enquanto Hamlet é sobre a obsessão. Há ainda
leituras žižekianas de obras da ficção popular, a citar: Stephen King, Arthur
Conan Doyle e Agatha Christie etc.
A primeira experiência de aplicação de Žižek ao escopo literário que
encontramos é a do britânico Phillip Rothwell. Em A Canon of Empty
Fathers (2007), o pesquisador mostra que a história da Literatura
Portuguesa recebe uma nova interpretação quando o conceito de império
ultramarino é visto pela ótica lacaniana, especificamente sobre a função da
figura paterna autoritária e ameaçadora na psiquê coletiva e as
consequências desastrosas da falha nessa função paterna, apontando os
reflexos na representação literária e ligandoos aos estratos profundos da
cultura e da autorrepresentação de Portugal desde o século XV.
No Brasil, as primeiras experiências com o materialismo lacaniano no
campo literário foram feitas na Universidade Estadual de Maringá (UEM) e,
até o início de 2023, o Programa de PósGraduação em Letras (PLE) já conta
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com dezoito dissertações de Mestrado já defendidas e outras duas em
andamento, bem como seis teses de doutorado defendidas e mais seis em
andamento nessa linha específica; na UEM e na Uneal, vinte e quatro
projetos de iniciação científica finalizados; e quarenta e quatro artigos,
cinco livros, vinte e um capítulos de livro, dois dossiês em revistas
científicas e mais de cento e vinte comunicações e palestras diversas
apresentados em eventos, além deste livro, que reúne resultados de
integrantes do grupo de pesquisa intitulado “Aplicação do pensamento de
Slavoj Žižek na Literatura e em outras artes narrativas” apresentados no
Colóquio “Qual Real que tivesse/ um vivo mecanismo”: materialismo
lacaniano, que aconteceu em Março de 2023, na Universidade Estadual de
Maringá.
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Para o psicanalista francês, o que chamamos de realidade é a articulação
entre a significação (Simbólico) e as imagens (Imaginário). Daly (2009, p.
14) os diferencia, afirmando que o Simbólico é aberto e o Imaginário
“procura domesticar essa abertura pela imposição de uma paisagem
fantasística peculiar a cada indivíduo”. Silva (2009, p. 213) afirma que o
Simbólico “é o estágio no qual o indivíduo estruturou uma série de códigos,
leis e proibições que permitirão sua socialização”. Tratase da
internalização do NomedoPai, o qual estabelece uma castração, um corte
fundamental – uma vez que estrutura e serve como base para o processo
de individuação do sujeito – “com o tempo idílico em comunhão absoluta
com a mãe” (SILVA, 2009, p. 213). Importa notar que, para Lacan, pai e mãe
não precisam ser obrigatoriamente pais biológicos, podendo ser
identificados, inclusive, com instituições sociais.
Uma vez que o Simbólico é a ordem do significante, o Imaginário
corresponde ao significado, ao campo visual. Como se evidencia, o
psicanalista francês baseouse na linguística estruturalista de Ferdinand de
Saussure para moldar esses conceitos: “a linguagem, portanto, tem relação
tanto com o Simbólico quanto com o Imaginário” (SILVA, 2009, p. 213).
O Real não pode ser incorporado nessa ordem. Embora inerente ao
processo de estruturação do indivíduo, esse conceito persiste como uma
dimensão eterna da falta, isto é, “funciona de modo a impor limites de
negação a qualquer ordem significante (discursiva), mas – pela própria
imposição desses limites – serve, simultaneamente, para constituir tal
ordem” (DALY, 2009, p. 15). Tratase de uma instância traumática, indizível,
algo entre um vazio e um excesso, por sua característica de estar para além
da significação, ainda que possa ser aludido em certas situações de excesso
e horror. Nesses momentos de contato, “a vida perde o sentido, por assim
dizer, os laços simbólicos se desatam, deixando que mergulhemos no
caos” (SILVA, 2009, p. 213).
Os exemplos citados por Žižek são inúmeros, sendo alguns, no mínimo,
bastante inusitados. Citaremos quatro: em O amor impiedoso ou: sobre a
crença (2012), o teórico afirma que os debates em torno do Sudário de
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Turim acomodam tranquilamente essa tríade, de maneira que o Imaginário
questiona se a imagem discernível, ali, é a verdadeira reprodução da face de
Jesus Cristo, o Real encaixase nas inquietações a respeito de quando o
material foi feito e se o teste que mostrou que o linho fora tecido no século
XIV é conclusivo e, por fim, o Simbólico narra o complicado percurso do
Sudário através dos séculos. Em A visão em paralaxe (2008), o esloveno
afirma que o fundamentalismo encena um curtocircuito entre o Simbólico
e o Real, isto é, algum fragmento simbólico (por exemplo, o texto sagrado,
a Bíblia no caso dos fundamentalistas cristãos) é postulado em si mesmo
como Real (para ser lido “literalmente”, para não se brincar com ele, em
resumo: dispensado de qualquer dialética de leitura). Já na obra Em defesa
das causas perdidas (2011), Žižek afirma que determinados
comportamentos na internet podem funcionar como a encenação Real de
fantasias sádicas, enquanto na vida pública o SimbólicoImaginário do
indivíduo é bem educado e cumpridor de regras.
Para concluirmos, em Como ler Lacan (2010), essa complexa tríade é
vista de uma maneira bastante simples, refletida em um jogo de xadrez:
As regras que temos de seguir para jogar são sua dimensão
simbólica: do ponto de vista simbólico puramente formal,
“cavalo” é definido apenas pelos movimentos que essa figura
pode fazer. Esse nível é claramente diferente do imaginário, a
saber, o modo como as diferentes peças são moldadas e
caracterizadas por seus nomes (rei, rainha, cavalo), e é fácil
imaginar um jogo com as mesmas regras, mas com um
imaginário diferente, em que esta figura seria chamada de
‘mensageiro’ ou ‘corredor’, ou de qualquer outro nome. Por fim,
o real é toda a série complexa de circunstâncias contingentes
que afetam o curso do jogo: a inteligência dos jogadores, os
acontecimentos imprevisíveis que podem confundir um
jogador ou encerrar imediatamente o jogo (ŽIŽEK, 2010, p. 17).
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vivenciamos como) a ‘realidade’, algo tem que ser foracluído dela [...] e a
realidade, tal como a verdade, nunca é, por definição toda” (ŽIŽEK, 1996, p.
26). Dessa forma, o Real, que é a parte não simbolizada da realidade,
aparece em formas espectrais, justamente nessa rachadura que separa a
realidade do Real. O conceito marxista de luta de classes ilustra de maneira
inquietante uma aparição do Real, pois se configura como um empecilho
simbólico que nos esforçamos para integrar, mas que, ao mesmo tempo,
condena esses esforços ao fracasso. Assim, é impossível objetivála, já que
ela mesma nos impede de conceber a sociedade como uma totalidade
fechada.
Lacrimae rerum (2009) reflete uma das maiores paixões de Žižek, tema
sobre o qual ele escreveu extensivamente: o cinema. Em cinco ensaios, o
esloveno deixa transbordar sua preferência por Alfred Hitchcock, mas
passa por David Lynch, Kieslówski e Tarkowsky, até chegar a alguns filmes
atuais, de grande bilheteria, como é o caso de Matrix, que nos interessa
aqui. O filme dos irmãos Wachowski “funciona como a tela que nos separa
da realidade, que torna tolerável o deserto do real” (ŽIŽEK, 2009, p. 159).
Nesse filme, o Real lacaniano não funciona apenas como algo que deve ser
reformado pela fantasia; é também a própria tela como o obstáculo que já
distorce nossa visão de realidade lá fora. Em outras palavras, a Matrix em si
é o Real que desconexa nossa percepção de realidade. Žižek (2009) afirma
ainda que o problema em Matrix não está na ingenuidade científica de seus
truques, pois a ideia de passar de um mundo real para um virtual através de
um telefone faz sentido, há apenas a necessidade de um buraco por onde se
possa escapar. O problema se encontra numa “inconsistência fantasmática”,
que fica mais clara quando Morpheus tenta explicar a Neo o que é Matrix,
relacionandoa a uma falha na estrutura do universo. Com essa situação, o
filme propõe que essa experiência do vazio confirma que a realidade que
vivemos é, simplesmente, uma farsa.
Finalmente, mas sem esgotar as aplicações, em Bemvindo ao deserto do
Real! (2003), Žižek nos apresenta sua aplicação mais conhecida e, a nosso
ver, a mais impactante: tratase do atentado terrorista contra as torres
gêmeas do World Trade Center em 2001. Os norteamericanos viram no
fatídico 11/09 um de seus maiores símbolos caírem por terra. Desnorteado
e impossibilitado de expor aquele trauma em linguagem (Simbólica), os
Estados Unidos sofreu um contato chocante com o Real. Como afirma
Žižek,
antes do colapso do WTC, vivíamos nossa realidade vendo os
horrores do Terceiro Mundo como algo que na verdade não
fazia parte de nossa realidade social, como algo que (para nós)
só existia como um fantasma espectral na tela do televisor , o
que aconteceu foi que, no dia 11 de setembro, esse fantasma da
TV entrou na nossa realidade. Não foi a realidade que invadiu a
nossa imagem: foi a imagem que invadiu e destruiu nossa
realidade (ou seja, as coordenadas simbólicas que determinam
o que sentimos como realidade). (ŽIŽEK, 2003, p. 31).
A visão das rosas pode ser lida, numa perspectiva žižekiana, como um
encontro com o Real. A epifania descortina uma “realidade” que as criaturas
de Lispector recusam, de modo que se sentem aliviadas com o afastamento
de tal situação, ao retornarem à normalidade. O trecho anterior aponta para
uma linguagem que destoa daquela que antecipa a visão incômoda.Tratase
de uma tentativa textual “de ressimbolizar a experiência, arrastandoa, por
meio da palavra, para o domínio conhecido e seguro do Simbólico” (SILVA,
2009, p. 215). O Real precisa ser ressimbolizado; os Estados Unidos, por
exemplo, encontraram a âncora que os apoia, novamente, nas normativas
simbólicas revidando com mais violência, assumindo o papel de vítima e
também criando filmes e documentários que endossam essa visão. Situação
semelhante acontece na literatura, pois, após Laura se livrar das rosas e da
visão vertiginosa que elas causaram, voltando a se entreter com suas
preocupações cotidianas, a estrutura textual retoma a mesma linearidade
(segura) do início.
Na esteira das frutíferas discussões que o Real propõe, Žižek se apossa de
um conceito de Alain Badiou, a “paixão pelo Real” (passion du réel). Em
poucas palavras, tratase do “Real em sua violência extrema como o preço a
ser pago pela retirada das camadas enganadoras da realidade” (ŽIŽEK, 2003,
p. 19), ou seja, a necessidade de se “(re)dominar a realidade”. Dentre os
vários exemplos citados – desde a exposição de certos sites pornográficos,
que reproduzem imagens de uma microcâmera inserida numa vagina,
transformando o objeto desejado num repugnante e Real encontro com a
carne exposta, ao terror fundamentalista atual que lança bombas nos
supermercados, com o intuito de acordar os cidadãos do Ocidente do
entorpecimento ideológico – que comprovam que essa é a principal
característica do século XX, Žižek (2003) também lança mão de um
exemplo claro: as pessoas que mutilam seus corpos com lâminas, na
tentativa de se “sentirem vivas”. Ao verem o sangue correndo, essas pessoas
sentemse temporariamente reenraizadas na realidade: seu
comportamento é característico de uma patologia que resulta em uma
busca desenfreada de retomar algum tipo de “normalidade”.
Sendo a epifania o estopim para o encontro traumático com o Real, e
observando a recorrência dessa técnica na ficção clariceana, podemos
supor que o conceito de “paixão pelo Real” pode ser facilmente aplicado na
estrutura de alguns de seus contos e romances. A trajetória de grande parte
de suas personagens está ligada à necessidade de experimentação de uma
revelação/crise/náusea que as expulsam da tranquilidade cotidiana. Esse
conhecimento súbito da “verdade”, que cria um rito de passagem perigoso
e sublime, arrebata não apenas suas criaturas, mas também o leitor e a
própria narradora. A visão do cego mascando chicletes ou das belas rosas
no vaso, ou ainda de um búfalo no jardim zoológico, não assumiriam a
carga introspectiva e existencial, e, numa perspectiva žižekiana, não seriam
lidos como o encontro com o Real, se a autora não fizesse uso do processo
epifânico em consonância com o monólogo interior e fluxo de consciência
– técnicas que servem para expor a linguagem denunciada pelo Real.
Para não ficarmos apenas na contística, o romance A paixão segundo
G.H. colabora nessa leitura proposta, pois é através do necessário contato
com a barata (e também com o núcleo duro do Real), que G.H. realiza um
percurso místico incrustado de tormento e muitos questionamentos
existenciais. A diegese focalizará o longo processo de ressimbolização, isto
é, a narradoraprotagonista estrutura, sob forma de linguagem, a tentativa
de recontar o acontecido e suturar as lacunas da realidade que foram
rompidas no momento em que o Real (encontro com o inseto) “ofuscou”
seus olhos, para retornar à “organização anterior”, como ela bem afirma.
Vejamos:
estou procurando, estou procurando. Estou tentando
entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem,
mas não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que
vivi, tenho medo dessa desorganização profunda. Não confio
no que me aconteceu.Aconteceume alguma coisa que eu, pelo
fato de não a saber como viver, vivi uma outra? A isso quereria
chamar desorganização, e teria a segurança de me aventurar,
porque saberia depois para onde voltar: para a organização
anterior. A isso prefiro chamar desorganização pois não quero
me confirmar no que vivi – na confirmação de mim eu perderia
o mundo como eu o tinha, e sei que não tenho capacidade para
outro (LISPECTOR, 1998, p. 11).
Referências
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miniconto de Helena Parente Cunha, discutido com base na corrente de
pensamento estudada. Com isso, objetivamos propiciar ferramentas para a
leitura do texto literário que consideram não só questões sóciohistóricas,
mas também as práticas intersubjetivas presentes na obra de arte. Os
resultados nos mostram que, quando aliada a uma prática colaborativa, a
leitura do objeto, diante de uma ótica, pode proporcionar insights
coletivos que fundamentam e justificam a sua relevância na formação do
pensamento crítico.
O materialismo lacaniano aplicado à literatura é uma abordagem teórica
que combina conceitos da psicanálise de Jacques Lacan com a crítica
literária e cultural. Se essa perspectiva busca analisar as relações entre o
sujeito, a linguagem e a sociedade, explorando como a estrutura simbólica
influencia a produção e a recepção literária, é compreensível que tal
proposta busque intimidade com as perspectivas dos sujeitos e corrobore
neste processo mútuo de formação. Inicialmente, atrelada à filosofia
política, articulandose pelo viés da psicanálise de Lacan e do materialismo
histórico de Marx e Engels, a vertente busca extrapolar os limites dos
fenômenos políticos e ideológicos, dialogando com os estudos culturais
que, quando colocados em uma leitura metodológica ampla, reformase a si
própria. Essa aplicação teórica se concentra na dimensão simbólica dos
textos literários, examinando, portanto, como a linguagem e as estruturas
simbólicas presentes na obra literária moldam a subjetividade dos
personagens, refletem os conflitos e desejos humanos, e revelam aspectos
da cultura e da sociedade em que ela foi produzida.
Naturalmente, ao buscar desvendar as camadas simbólicas presentes nos
textos literários, de qualquer espécie simbólica, considerando a interação
entre o inconsciente, o simbólico e o social, explorar de que maneira as
estruturas linguísticas, os jogos de significados, os símbolos e as metáforas,
presentes na obra literária, pode revelar os processos de subjetivação, as
dinâmicas de poder, as questões de gênero, as tensões sociais e outras
dimensões culturais. A obra literária não deve ser vista apenas como um
objeto estético isolado, mas como um produto cultural que reflete e
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influencia a psique individual e coletiva. Sendo assim, o materialismo
lacaniano proporciona uma abordagem crítica e interpretativa que permite
investigar os complexos nexos entre a literatura, a linguagem, a
subjetividade e a sociedade.
Compreender a pesquisa como uma ferramenta de investigação social
nos permite continuamente associar essas reflexões ao processo de ensino,
haja vista que é na didatização de uma teoria, que se alcança o terreno das
significâncias, das trocas colaborativas, do outro. Também por isso, há a
preocupação constante sobre como ensinar o pensamento científico
enquanto forma e metodologia de pensamento, em como coletivizar a
transformação de uma atmosfera social regida por valores simbólicos que,
quando questionados, fazemnos pensar em nossa própria formação.
Enquanto a pesquisa caminha com o processo educativo na
possibilidade de vivenciar leituras, extrapolando o campo da materialidade,
é possível perceber a atuação do campo simbólico em toda a existência do
todo e, dentro dele, de produções culturais. Consideramos que a pesquisa
promove o desenvolvimento do pensamento crítico nos estudantes,
incentivandoos a questionar, analisar e avaliar informações; envolve a
capacidade de buscar e selecionar fontes. Nesta esteira, o minicurso
proposto objetivou a compreensão inicial de conceitos referentes à tríade
lacaniana, isto é, o Simbólico, o Imaginário e o Real, como uma possível
abordagem teóricometodológica para leitura interpretativa de textos
literários contemporâneos e de autoria feminina. A metodologia se
relaciona com a possibilidade de interpretação subjetiva, porque aproxima
o pensamento do presente atual.
Com a metodologia do percurso de fazer linguístico, o objetivo final do
minicurso é o do alcance interpretativo, pois, ao alinhar o processo de
pesquisaensino, estamos, também, aprimorando as nossas práticas de
percepção com diferentes recursos que partem do processo
comunicativo.
O minicurso
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Este minicurso foi realizado no dia 16 de março de 2023, durante o
evento Qual Real que tivesse um vivo mecanismo: Colóquio materialismo
lacaniano, na Universidade Estadual de Maringá, no formato virtual. Em uma
sala, com cerca de trinta pessoas presentes, iniciamos o encontro,
apresentando a aproximação da análise literária ao materialismo lacaniano.
Inicialmente, realizamos uma leitura do conto “Amor”, de Clarice
Lispector (1960), acionando o conhecimento prévio das pessoas presentes
sobre o texto apresentado, a autora, contexto e estilo dela.
Após o momento inicial, introduzimos os conceitos básicos de Jacques
Lacan e de Slavoj Žižek, apontando as possíveis interpretações que a teoria
escolhida proporciona e instigando os participantes a compartilharem as
suas considerações sobre o conto clariciano, bem como os insights que a
abordagem pode proporcionar. Essa interpretação do conto foi conduzida
em conformidade com o proposto por Silva (2019), no capítulo
“Materialismo Lacaniano”. Sintetizamos o processo, indicando que a
interpretação foi possível por acionarmos, como estratégia analítica, os
elementos da narrativa identificados no texto literário, interseccionandoos
com a teoria žižekiana.
Esclarecidos estes pontos, no segundo momento, reforçamos a
possibilidade transpor o mesmo movimento de leitura e análise, com base
na teoria apresentada, a outros textos narrativos. O que, de fato,
propusemonos a fazer, a partir do conto “A menina da calça rosa de
bolinhas corderosa (Ou a menina da calça corderosa de bolinhas
rosa?)” (2011), de Helena Parente Cunha, publicado na coletânea Falas e
falares: minicontos. Realizamos a leitura compartilhada do texto e, depois,
abrimos um espaço para discussão relativa à apreciação, impressão,
comentários, críticas, entre outros.
Passado o momento apreciativo, na esteira de Slavoj Žižek e em seu uso
da teoria lacaniana, expusemos breves conceitos da tríade lacaniana,
composta pelo Simbólico, Imaginário e Real, Big Other (Grande Outro),
Petit a, Desejo e Pulsão. Com isso, solicitamos que os participantes
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identificassem quais elementos da narrativa, expressos na materialidade do
texto, poderiam ser interpretados à luz desses conceitos.
Foram as possíveis interpretações, os questionamentos e o
compartilhamento de dúvidas que formulam descrições da linguagem em
termos sintáticos e semânticos que abrem as portas para as interpretações
e, naturalmente, para a apreciação estética e afetiva no decorrer do trajeto.
Ao fim, questionamos: Há alguma inquietação que resta da leitura?
Ao propor análise conjunta de um texto, verbal ou não verbal,
percebemos os alcances e limitações do processo interpretativo, isso
porque, ver o material teórico como base de análise, exige o
direcionamento do olhar questionador, pois há diversas formas de
aproximações de símbolos e significados em uma narrativa de um texto
movida por diferentes exigências. Quando pontuamos, efetivamente, um
olhar analítico – que examina os detalhes e discute as possibilidades –
percebemos que a profundidade estética de um produto é imensa, não só
externamente, por conter cultura, informação e articular a imaginação, mas
em seu campo interno também, porque faz descobrir raízes, encontrar a
história.
As interpretações
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deseja uma calça corderosa de bolinhas rosa.
Diante da mudança de objetos que acompanham a vida não só da tia,
como, também, da sobrinha, as quais pensamos como mulheres, sejam elas
na fase adulta ou infantil, perguntamonos de que maneira o desejo das
personagens pode ser compreendido neste discurso narrativo?
Com o objetivo de propor uma interpretação para esse texto de Cunha
(2011), na esteira de Žižek (2010), consideramos a existência de uma
ambivalência na leitura do desejo. Isso porque, segundo o filósofo esloveno
para além do que o sujeito deseja, existe aquilo que o Grande Outro
predetermina, num espaço Simbólico, bem como aquilo que o Outro
(como alteridade) deseja e interpela o sujeito.
Por meio dessa leitura, alcançamos alguns resultados analíticos,
possibilitados, principalmente, pela introdução do tópico estrutural da
narrativa. Observemos, de início, a ambivalência já indicada no título:
temos, como o “oficial”, a menina da calça rosa de bolinhas corderosa,
para, entre parênteses, haver o questionamento: Ou a menina da calça cor
derosa de bolinhas rosa? Com isso, sabemos que, apesar de denotar uma
semelhança o que acarreta confusão devido às mesclas das cores e das
formas – as calças não são as mesmas, logo, as meninas também não. E, no
título, há a dúvida sobre quem é quem, quem quer o quê, a qual objeto uma
ou outra se liga.
Indo além, as especificidades das calças são bem claras na escrita. O jogo
com a linguagem, no texto, é nítido, não só pelo domínio linguístico da
autora, como também pela possibilidade das múltiplas imagens que ele
suscita. Rosa é uma cor derivada de uma flor, enquanto corderosa é a cor
da rosa. Se não houver a descrição da tonalidade, uma calça rosa de bolinha
corderosa tornase apenas uma calça rosa, já uma calça corderosa de
bolinhas rosa, também. Apesar das especificidades estarem bemmarcadas
no registro simbólico, o seu objeto parece vazio de significado que o
diferencie materialmente. Então, o que se busca? O que a calça pode
representar? Poderíamos pressupor que ambas desejavam a mesma coisa,
embora com representações diferentes?
40
É interessante considerar uma análise cronologicamente linear e não
linear, pois é neste movimento temporal que podem habitar diversas
brechas do discurso. Para articular o conceito de Grande Outro, é bastante
interessante que pensemos como essa figura máxima e abstrata habita o
simbólico do sujeito e de suas narrativas, assim, ao considerar o Outro um
agente instigador do desejo e consequentemente do ato de desejar,
percebemos como essa instância atua no enlace da realidade.
O conto iniciase com uma pergunta: “ah, minha querida, o que você
quer de presente no seu aniversário?” (CUNHA, 2011, p. 51). Alguém
responde: “ela quer uma calça rosa de bolinhas corderosa, uma graça,
tia” (CUNHA, 2011, p. 51). Notemos que quem enuncia o que se quer não é
a sobrinha diretamente, mas alguém que avisa a tia o que a criança deve
ganhar. Quem enunciou sobre o desejo? Apesar de não expresso, é possível
pressupor essa voz que vem “do além” e diz, de maneira virtual, a quem a tia
obedece sem pestanejar, como a voz do Grande Outro, aquele que ensinava
não só a menina sobre o que ela queria, isto é, apenas a calça rosa de
bolinhas corderosa, como também a tia, que, sendo ela a mulher
responsável a agradar a filha de sua irmã, como uma espécie de fada
madrinha que tudo faz, buscaria alcançar os quereres da sobrinha
desenfreadamente. A tia assumiu este querer, quando ela e a sobrinha vão
juntas comprar o presente. Logo, aqui teríamos vestígios de que o desejo
delas é também o desejo do Grande Outro.
Isso é tão sobressalente que, neste momento, o discurso narrativo sofre
uma alteração formal, pois, entre barras (sinal gráfico), a narradora
protagonista descreve as suas ações, dúvidas, lugares, mescladas a um
discurso indireto que possibilita não só a pressuposição de uma busca
desenfreada, fora de orações ortograficamente grafadas (o que
representaria uma ruptura no registro Simbólico ou então uma certa rasura
dele, uma tentativa de contrariálo), como também a fragmentação desse
procurar:
/ vamos / indo / nesta loja / naquela / e / ali /??? / nesta rua /
naquela / depois da praça / do outro lado / e fomos / indo mais
do que se fôssemos / de lá / para lá / de cá / pra aqui / procurar
41
mais do que procurando, olhe esta aqui, esta?, rosa de bolinhas
brancas, tão bonitinha, tão gracinha, você, não?, NÃO (CUNHA,
2011, p. 51).
42
pulsão e próprio resultado da castração simbólica, consideramos que a
busca pela “calça” é, na verdade, uma articulação saudável do sujeito que se
manifesta nas diferentes esferas aqui apresentadas: 1 – na menina que
queria saciar seu desejo, alcançando seu objeto de desejo; 2 – na tia que
queria alcançar seu objeto de desejo que era fornecer à menina o objeto
por ela desejado.
No entanto, essa Coisa (tomada pela forma da calça, mas ocupada por
qualquer outro objeto) não se torna determinante, porque, mesmo sem
encontrála, a menina amadureceu saudavelmente, dentro das estruturas
previstas, direcionando a causa do desejo para outros objetos que recebia
da tia como uma troca mútua de saciedade. Claro que isso pode demonstrar
uma certa subserviência àquilo que o Grande Outro as ensinava a desejar,
como veremos em seguida.
Mesmo com as diversas negativas externas, a tia seguiu perguntando:“o
que você quer de presente no seu aniversário?”, para darlhe,
sucessivamente, ano após ano, objetos que preenchiam o espaço vazio
deixado pela calça rosa de bolinhas corderosa. Exemplo disso seria: o seu
primeiro sapato de salto alto, um esquadro eletrônico, indicando a
formatura da sobrinha como arquiteta, depois o bolo da noiva, já que há
uma convenção, no limite Simbólico do conto, de que esse alimento devia
ser oferecido pela titia madrinha.
Nessa sucessão de eventos, entrecortados por discurso indireto livre, há
uma certa resiliência da narradoraprotagonista diante das etapas as quais a
sobrinha, já uma mulher, está submetida, o que se expressa, principalmente,
sob marcas de bom comportamento ou de etiqueta, aquilo que deve
ocorrer em determinada ocasião, como indica o trecho: “seu vestido está
lindo, parabéns, obrigada, que bolo bonito, que os noivos sejam muito
felizes, obrigada, muito obrigada, pois é, bem, e então?” (CUNHA, 2011, p.
52).
Todavia, com o enunciado: “pois é, bem, e então?”, é possível pressupor
duas interpretações: I) agora que está casada, a sobrinha forma um par com
outra pessoa, logo, não é a tia que lhe suprimiria os quereres: e então, o que
43
faria agora? II) Ou um e agora? Como quem diz, foi feito tudo o que
determinava a ordem Simbólica para uma mulher contemporânea: cresceu,
formouse, casouse, e então, qual é o próximo desejo? (algo muito próximo
à fada madrinha dos contos de fadas).
Foi quando a sobrinha neta nasceu, indicando que ainda haveria a fase da
reprodução, após o casamento. Isso possibilitou, assim, a continuidade de
estabelecerse um novo par identitário, com o qual seria preciso suprir
novas demandas, embora elas ainda fossem desconhecidas: “eu ainda não
sei o que vou dar de presente para minha primeira sobrinha neta que vai
nascer, ela nasceu, fez um ano, outro ano, etc., etc., um presente, outro
presente, quantos anos se passaram?, e agora?,” (CUNHA, 2011, p. 52).
Quando o nó parece desatado, a tia encontrou numa loja uma calça rosa
de bolinhas corderosa. Ela entra, pede, paga e leva em um:
pacote de papel laminado rosa explosivo, fita rosa estampido, minha
queridíssima sobrinha neta vai adorar, aqui está, meu amor, um presentinho
para você, os brilhos em luzinhas do papel laminado rosa explosivo se
acenderam na fresta de sol e no redondo da pupila dela, oh, titia, muito
obrigada, é muito bonita esta calça rosa de bolinhas corderosa, mas você
sabe o que é mesmo que eu quero?, uma calça corderosa de bolinha rosa,
(CUNHA, 2011, p. 52).
Isso nos permite questionar: se a tia tivesse encontrado a calça antes,
para a menina, as duas ficariam felizes, mas, provavelmente, precisariam se
alimentar de outra busca depois, para seguirem a estrutura de constante
formação do sujeito. A tia satisfez seu desejo de encontrar a calça,
embrulhada em um papel luminoso e brilhante, revelando a sua
importância, porém temos um anticlímax. Ao oferecêla para a sobrinha
neta, deparouse com a realidade da causa de desejo: por ser um
mecanismo abstrato, ele atua de forma diferente nos diferentes sujeitos,
isso porque existem outros fatores, externos e internos, atuantes nessa
estrutura do desejo que é interminável.
O texto não termina precisamente em seu fim e sua última grafia formal
é o uso da vírgula. Ele finaliza com uma vírgula, antecipando a ideia cíclica
44
do não alcance. Ao trabalhar essas representações simbólicas, como a
cristalização material do objeto de desejo em uma calça rosa de bolinhas
corderosa ou de uma calça corderosa de bolinhas rosa, nós podemos
reafirmar que, apesar das calças serem muito parecidas, a causa não é
saciada, não porque o objeto não foi encontrado, mas, justamente, porque
esse mecanismo tem como função a pulsão em querer o que não se tem.
Dito isso, se considerarmos a conceituação de desejo conforme Žižek
(2010), baseado em Lacan, podemos pensar no desejo da narradora
protagonista como aquele ensinado pelo Grande Outro, numa determinada
ordem Simbólica, revelando a necessidade não de comprarse uma calça
impossível de encontrar, mas sim da necessidade da tia em manter o afeto
de sua sobrinha, por meio de bens materiais, os quais concernem às etapas
de uma mulher, seja a criança, que dizem o que ela deseja, seja a adulta que
se forma, casase, tem filhos. Como se uma fada madrinha estivesse ali,
tornando realidade os desejos de uma outra.
Além disso, é possível apreender que a tia se sentia desejante quando a
sobrinha desejava, ou seja, ela só reconhecia aquilo que a impulsionava a
agir, conforme o Outro atravessavalhe como aquele que deseja, indicando
o que se era querido. Era estarrecedor, ao ponto de alterar a sua cadência
oracional, criar uma angústia que só um vazio que precisa ser preenchido é
capaz de causar, mas, ainda assim, moviaa, revelando que o seu desejo era o
desejo do Outro.
É claro que, numa outra superfície, principalmente quando lançamos luz
aos usos de pontos de interrogação ou perguntas direcionadas a alguém
(seria ao Grande Outro?) ou ainda ao sentimento de indignação diante das
negativas, percebemos um questionamento ou descredito à ordem das
coisas e àquilo que ela era “condicionada” a desejar/suprir. Isso nos
revelaria uma narradoraprotagonista que, embora estivesse de acordo com
o desejo do Grande Outro, que lhes ensinava o que desejar como
representação de mulheres, crianças ou adultas, no discurso literário, há
uma pequena transgressão a ele e a ordem Simbólica que delimita, codifica
e nega.
45
Sobretudo, essas camadas analíticas levantadas anteriormente, sobre as
interações da materialidade estética na formação social, fazemnos
perceber a dimensão da complexidade linguística em uma narrativa curta,
de núcleo único e característica descritiva.
Se existem várias formas de interpretação, pensemos que na
interpretação textual, referente à compreensão e análise de
textos escritos, há a busca pela compreensão do significado do
texto; assim, identificar temas, analisar a estrutura e elementos
literários, como metáforas, símbolos e personagens nos coloca
quase que em um lugar de interpretação de eventos, atribuindo
significados coletivos.
Algumas considerações
46
neste discurso narrativo, o objetivo de propor uma interpretação para esse
texto de Cunha (2011) justificase pela compreensão da existência de uma
ambivalência na leitura do desejo.
É possível notar que as estruturas ideológicas corroboram a formação
desse sujeito desejante que também é um indivíduo, mas, além disso, é um
representante históricocultural. Ademais, são as instâncias psicológicas
que proporcionam essa visualização pois, apesar de serem estruturas
abstratas, são também socialmente fundamentadas.
Neste recorte, buscamos averiguar como as vozes e as representações
destas mulheres ecoam e corroboram o desencontro com o objeto de
desejo, que, por possuir traços materialmente singulares, tornamse
desejados pela causa de desejo impulsionada pelo papel do Grande Outro,
enquanto uma instância reguladora. Assim, o desejo representa, de forma
abrangente, as identidades – ou a busca pela completude – das mulheres da
narrativa que, apesar de mostraremse como seres desejantes, não
conseguem.
Por fim, a proposta de leitura se alinha com o que Žižek (2014) reflete:
há uma influência do sistema para a formação social, pois, para ele, o
capitalismo contemporâneo se relaciona, de forma bem específica, aos
fetiches do mercado, os quais são como um motor de pulsão para as trocas
pessoais e posicionamentos de valor, ou seja, funcionam como um
acelerador das relações. E essa apropriação das lutas sociais é uma
estratégia cultural/mercadológica.
Apesar de ser fundamental recusar a distância entre a cultura “oficial” e a
cultura “alternativa” – aqui, integrando o desejo de ter uma calça rosa (ou
de permanecer em um estágio de constante busca), de encontrar uma calça
rosa (ou de permanecer em um estágio de constante busca) – é mais
importante enxergar o poder ideológico presente em cada produto
cultural. Isso porque ele se mascara na própria estrutura da causa de desejo,
que atua não somente no âmbito de uma troca afetiva de presentes entre
tiasobrinhas, mas também se envereda por todo o contexto de formação
do sujeito que é desejante. Portanto, essa manifestação do desejo é
47
ambivalente pelo próprio preenchimento de um vazio material ou, então,
pela submissão frente aos costumes e às fases formadoras dos sujeitos e das
mulheres.
É certo que a relevância desta leitura literária está no seu desempenho
em proporcionar ferramentas fundamentais na compreensão e apreciação
tanto de forma quanto de conteúdo narrativo, o que pode ser verificado,
inclusive, na condução do minicurso, a partir da recepção do público.
Ficou claro que, de forma imagética, ao mergulharmos nas camadas mais
profundas das obras, é possível desvendar os significados ocultos, os temas
universais, propostos em uma narrativa com suas próprias motivações e
jornada de desenvolvimento. Quando exploramos as estruturas narrativas,
os estilos de escrita e os recursos linguísticos empregados, buscamos
contextualizar a produção de forma histórica, cultural e social, ou seja,
construímos uma leitura coletivizada e colaborativa por meio da troca com
outros leitores.
Referências
48
Polydoro e Thiago Siqueira Venanzoni. São Paulo: Boitempo, 2014.
49
50
Literatura Portuguesa
e outras literaturas estrangeiras
51
52
A TINTA QUE FALTA: SEM NOME, DE HELDER MACEDO, E
A FUNÇÃO PATERNA NA REPRESENTAÇÃO DE UM
PORTUGAL CONTEMPORÂNEO
Phillip Rothwell
53
Essa preocupação materialista de que, de algum modo, a linguagem
tenha sido manipulada para forçar escolhas, para fazernos enunciar nossa
própria servidão como se fosse nossa livre escolha fazêlo, tornarnos
cúmplices numa escravização, permanece há tempos entre os elementos
mais críticos da esquerda. Adorno e seus colegas da Escola de Frankfurt
criticaram reiteradamente a maneira que o discurso cultural tenta negar ao
sujeito o direito de articular sua “desliberdade”, um mecanismo astuto para
negar a possibilidade de quaisquer alternativas para o status quo
(ADORNO, 1991). A diferença agora – uma diferença abordada com muita
força por Helder Macedo em seu romance de 2005, Sem Nome – reside na
tendência aparentemente todopoderosa nos dias de hoje pelo “tanto faz”,
ao menos na corrente central da cultura de shopping center. Esse “tanto
faz” tem seu equivalente no que Noam Chomsky denomina “filosofia da
futilidade” (CHOMSKY, 2005, pp. 1943). Com a perda da tinta vermelha, a
linguagem beira o sem sentido e a total indiferença se segue rapidamente.
Em Sem Nome, Macedo toma uma posição abertamente política. Ele
reflete sobre o desapontamento que o Portugal pósrevolucionário se
tornou em seu fracasso de apoiar alternativas sociais que ainda precisam
ser nomeadas: eis uma das inflexões do título nessa narrativa de múltiplas
camadas. A luta de hoje “tem de ser outra” (p. 124) – não outras ideias
requentadas, que nunca funcionaram e que, entretanto, são
constantemente apresentadas como regeneradoras. Essa nova luta é “ainda
sem nome (p. 124)”. O que Macedo está propondo, por meio de uma
narrativa sofisticadamente estruturada, na qual verdades estabelecidas em
um capítulo são em seguida reveladas como mentiras gritantes, é para
localizarmos a tinta que falta – a tinta vermelha que permite a articulação
do que está errado, porque ela restaura o valor da tinta azul.
Para Macedo, um dos prérequisitos para encontrar a tinta desaparecida
é restringir a sombra de Freud, tal como o pai da psicanálise a lança em seu
retrato fundamentalmente pessimista da condição humana em O MalEstar
na Civilização (Civilization and Its Discontents). É lá que Freud afirma
que “a vida, tal como a encontramos, é muito dura para nós; ela nos traz
54
dores demais, desapontamentos e tarefas impossíveis” (FREUD, 1989, p. 23).
Tanto nossos corpos quanto nossas naturezas estão além do nosso controle
e, embora possamos encontrar alívio na comunidade, desde o momento em
que saímos do “ventre da mãe, o primeiro abrigo, pelo qual com toda a
probabilidade o ser humano ainda anseia, e onde ele estava seguro e à
vontade” (Idem, p. 43.), somos forçados a aceitar o fato de que “humanos
não são criaturas gentis que desejam ser amados e que podem, no máximo,
defenderse se atacados; ao contrário, são criaturas entre cujos dotes
instintivos é preciso reconhecer uma poderosa dose de
agressividade” (Idem, p. 68). Esse raciocínio, junto com a asserção de que a
natureza dotou cada “indivíduo com atributos físicos e capacidades
mentais extremamente desiguais” e “introduziu injustiças para as quais não
há remédio” (Idem, p. 71, nota 7) levou Freud a concluir que “as premissas
psicológicas”, nas quais os sistemas socialistas ou comunistas são baseados,
“são uma ilusão insustentável” (Idem, p. 71). Esse é o escrito que levou
Lacan a afirmar, repetidamente, que “Freud não era um progressista”, o que
significava que, enquanto Freud era profundamente humanitário, ele estava
convencido que qualquer ideologia baseada em princípios marxistas
estava condenada ao fracasso, por causa da natureza dos seres humanos
(Jacques Lacan, The Ethics of Psychoanalysis, 208).
Macedo não é marxista e, como Freud, é profundamente humanitário.
Onde Sem Nome desafia O Mal Estar na Civilização e Freud em geral, é na
resignação do psicanalista – a posição de Freud é a de que a tinta que falta
nunca pode ser encontrada. Uma vez que seremos sempre prisioneiros de
uma natureza obscura que não pode ser superada, o melhor a que podemos
aspirar é sermos contidos dentro de uma ordem simbólica que protege
contra o excesso. Nessa ordem simbólica, está se tornando impossível
conceituar justiça verdadeira, igualdade verdadeira ou um amanhã
realmente melhor, porque nós fomos levados a crer que apenas um tipo de
tinta está disponível, de maneira que todos os discursos têm o mesmo valor
e apenas reintroduzem os fundamentos da dinâmica da capacidade
humana desigual com uma cara mais ou menos humana.
55
Um dos troposchave dessa resignação é colocar tudo o que se possa
imaginar como uma recorrência perpétua do passado em vez de uma
(im)possibilidade potencialmente realizável no futuro. É aí que Sem Nome
adota uma linha mais otimista que Freud, colocando o psicanalista e o que
considera ser sua estrutura de nostalgia ao lado de Artemidoro, “uma
espécie de Freud pagão … um antiFreud antes do tempo” (p. 42). O
romance também flerta com uma neutralização de Édipo e uma
renegociação de Hamlet, recusando abrir mão da esperança e, ao mesmo
tempo, sem se iludir. Ele exige que as coisas sejam chamadas pelos nomes e
recupera a distinção entre tinta azul e vermelha como aquela entre
fantasmas exorcizados e potencialidades assumidas – entre as restrições do
passado e as chances do futuro.
O romance é estruturado em torno de um caso de identidade
equivocada. Um advogado português que vive em Londres é chamado pela
polícia de imigração para ajudar a solucionar o caso de uma mulher que
eles detiveram no aeroporto porque os documentos portugueses dela
apresentam uma data de nascimento trinta anos antes do que poderia ser.
O interesse do advogado, José Viana, é imediatamente despertado quando
ele descobre que o nome da detida é Marta Bernardo (ou Martha Barnardo,
como a polícia britânica pronuncia), uma mulher que indicou o número do
telefone de Viana à polícia, e cuja voz ao telefone é a voz da amante que ele
perdera trinta anos atrás. Quando se encontram, ela não o reconhece, mas
ele vê Marta tal qual ela era quando ele a deixou e perdeu. Como se vê ao
longo da leitura, uma série de equívocos transformou Júlia de Sousa em
Marta Bernardo e, por obra do destino, Júlia, uma jornalista de vinte e seis
anos, vive no mesmo apartamento que Marta havia ocupado nos anos 1970.
O romance segue para contar como José supera a memória da perda de
Marta. Ele só consegue, finalmente, deixar o fantasma dela descansar depois
que pode lembrar da pessoa dela, entendendo que ela, cuja imagem
fotográfica não existe, não se parece em nada com Júlia. É outra instância da
injunção de Žižek que “para realmente esquecer um acontecimento,
primeiro temos de encontrar forças para lembrálo corretamente” (ŽIŽEK,
56
2002, p. 22). Para esquecer Marta, ele precisa relembrála adequadamente,
consignando a história a seu lugar apropriado para que uma nova ordem
possa ser imaginada.
Durante o processo de Marta ser esquecida por José, Júlia imagina que
vira Marta. Isso se torna uma de suas fantasias mais íntimas e a leva a um ato
de crueldade hipócrita, pois ela mente de forma muito calculada a José
sobre a morte da única mulher que ele, aparentemente, amou. Apesar disso,
a mentira funciona para o advogado de Londres como uma verdade
estratégica, uma mentira necessária através da qual ele deve passar e na
qual ele deve acreditar para aceitar o futuro e abandonar o passado. É uma
tinta vermelha que dá a ele a tinta azul.
A ironia da mentira de Júlia é composta duplamente. Numa primeira
instância, ela é a mesma jornalista que lança uma diatribe contra o
sensacionalismo do espetáculo midiático contemporâneo, o qual barateou
tanto o discurso político que este faz surgir figuras como Santana Lopes,
um “playboy” (p. 110) que seria também o Primeiro Ministro de Portugal
quando o livro foi escrito, e seu ministro da Defesa, Paulo Portas, “uma
espécie de salazarista pósmoderno” (p. 111). Como diz o título do livro,
eles permanecem “sem nome”, embora claramente identificados. Ambos
epitomizam a aparente derrota das promessas progressivas de Portugal.
Ambos se beneficiam da sociedade do espetáculo que Portugal se tornou,
na qual a mídia pode e, em Portugal, frequentemente faz, destruir as vidas e
carreiras de pessoas vendendo boatos ou meias verdades, resultando em
que apenas os indivíduos mais ideologicamente anódinos ou então
evidentemente corruptos, assumem o manto da liderança política. Ao
mesmo tempo em que Júlia é inflexível em sua condenação do papel
nefasto do jornalismo português em neutralizar a sociedade, ela se inspira
nas convenções da invenção sensacionalista disfarçadas no discurso de um
relato imparcial escrito em linguagem jornalística para fazer José crer que
Marta morreu.
A segunda ironia é que José só vem a acreditar, realmente, na descrição
gráfica que Júlia fez de como a PIDE espancou Marta até a morte na noite
57
em que ele fugiu de Portugal no momento em que sua secretária, Lisa
Costa, “um erro” (p. 17) que ele havia levado para a cama e depois
compensado com o emprego, tenta desiludilo da mentira de Júlia. A
verdade de Lisa (ou talvez sua pura invenção, como José se convence de
que foi) prova que Júlia tem de estar mentindo. Apresentado ao relato de
Lisa, em um dos momentos mais importantes do romance, ele escolhe
acreditar em Júlia. Através da verdade descartada de Lisa, José perpetra um
verdadeiro ato de conhecimento lacaniano – o cerne de um ato ético – no
qual “apenas o sujeito possui a garantia em um ato de antecipação”, e no
qual não há nenhum Outro “semprejá ali, pronto para oferecer uma
garantia para a afirmativa do sujeito” (ZUPAN I , 2000, p. 203). Em outras
palavras, José assume a responsabilidade pela primeira vez em sua vida, ao
escolher uma verdade estratégica que subsequentemente possibilitará que
ele enxergue um futuro.
A competição entre Freud e Artemidoro é crucial para a escolha final de
José. É uma escolha entre sonhos enquanto memórias do passado ou
enquanto possibilidades do futuro. Sonhos são uma parte fundamental da
narrativa, literalmente dando o título do capítulo quatro, “A Chave dos
Sonhos”. É um sonho que impele José a viajar para Lisboa e encontrar Júlia
novamente, e sonhos recorrentes são parte integral da vida de José. Sua
afirmativa de que “afinal os sonhos não eram mais do que imagens
emanadas do passado, e ele sempre preferira desejar o futuro a lastimar o
passado” (p. 41) vem antes do tempo na narrativa (no capítulo quatro,
muito antes de José fazer as pazes com os fantasmas do seu passado). A voz
do narrador aponta precisamente para o problema que aflige José em sua
negação de como os seus sonhosenquantopassado o debilitam: “o
problema dos sonhos, no entanto, é que neles nunca se sabe o que de facto
é passado e o que pretende ser futuro, o que é memória e o que é
desejo” (p. 41), e é precisamente por isso que Freud, tal como apresentado
em Sem Nome, é posto lado a lado com Artemidoro. Enquanto Freud afirma
que não há tempo organizado no universo onírico – não há passado,
presente e futuro – Artemidoro localiza um futuro, não apenas como desejo
58
(o que seria uma interpretação freudiana) mas, precisamente, como
mensagens visualizando realidades alternadas.
Como aprendemos no romance, Artemidoro praticou a interpretação de
sonhos no que mais tarde veio a ser a Turquia e escreveu vários tomos
sobre o assunto, coletivamente intitulados “Oneirocritica”. Uma tradução
inglesa do século XVII, The Interpretation of Dreams: Digested into Five
Books by the Ancient and Excellent Philosopher Artemidorus foi baseada
em traduções anteriores, francesa e latina, do original grego “anti
freudiano” (London: Bernard Alsop, 1644). Se prestarmos atenção a uma
tradução francesa do texto, La clef des songes: Onirocriticon, vemos a
primazia que Macedo concede ao projeto de Artemidoro pelo título do
capítulo, La clef des songes = Onirocriticon (Paris: J. Vrin, 1975). Onde o
título da tradução inglesa prevê e, de fato, é apagada por, Freud, a francesa
retém uma distinção. Essa distinção é transferida para o português, pois
Macedo nomeia o seu capítulo “A Chave dos Sonhos,” ecoando Artemidoro
e evitando o apagamento de Freud.
Artemidoro viveu no século II DC e dividiu os sonhos em dois tipos:
pessoais e objetivos. Os sonhos pessoais estavam fundamentados em
experiências passadas e pouco o interessavam. Esse viria a ser o domínio
que Freud, mais tarde, viria a privilegiar. A outra categoria de Artemidoro
era a dos sonhos objetivos, que não eram explicáveis por referências ao
passado do sujeito e, portanto, eram muito mais interessantes, pois
constituíam “chaves do futuro” (p. 42). Uma parte integral do método de
Artemidoro era que a posição do sonhador determinava o significado do
sonho. Se o sonho revelasse “uma manifesta impossibilidade” (p. 43), ele
poderia prever um futuro favorável no qual o sonhador “ia conseguir
controlar o seu próprio destino” (p. 43). Em contrapartida, quando um
sonho apenas apontava para o que um sonhador pode fazer e faz, ele
cessava de interessar. O ponto chave não é tanto a previsão, mas a
capacidade do sujeito de praticar um ato verdadeiramente ético ao
imaginar o impossível: um ato que muda o conhecimento do passado
através de um conhecimento do futuro garantido pelo sujeito, porque
59
apenas o sujeito “possui a garantia num ato de antecipação” (ZUPAN I ,
2000, p. 203). O Artemidoro descrito por Macedo não permite nenhum
Outro que garanta o conhecimento e acaba por representar a capacidade
de sonhar o impossível na existência. Se um sonho é, apenas, um desejo
realizável, não se ultrapassou os limites do vocabulário: ainda não teremos
entrado no território de “Sem Nome”.
Para José, sonhar vem a tornarse precursor de tomar posse de um futuro,
imaginar algo diferente, realizar um ato. Sua conclusão inicial, de que seus
sonhos são explicáveis como “a história de um homem velho – corrigiuse,
de um homem de meiaidade – com medo de se libertar do passado, com
medo de já não ter futuro” (p. 49) vai ceder à imaginação de um novo
começo no qual ele “podia finalmente voltar para Portugal” (p. 173). Esse
começo não será regenerativo – no sentido de repetição do mesmo – mas,
sim, um onde os fantasmas não têm mais poder para manter o presente
como refém.
Um desses fantasmas, como se poderia esperar, é o do pai de José. Junto
com a esposa, ele simplesmente não espera pela chegada do filho num
restaurante onde eles deveriam encontrar Marta em um dos sonhos de José.
Este interpreta o sonho como apontando para sua própria culpa no
passado por ter fugido de Portugal sem avisar seus pais. Ele é responsável
por têlos perdido, junto com Marta. Suas ações custam a ele sua relação
com o pai que, quando José fugiu, “estava doente, andava com
dificuldade” (p. 37). Ele sequer deu pistas do seu plano de abandonar
Portugal para não ser mandado para a guerra na África, de modo que o
choque foi agravado para esses pais que descobriram, após a fuga, um filho
que eles mal conheciam. Para José,“o pai era a lei” (p. 45) e, como tal, o alvo
“clandestinidade” (p. 45) do filho. Cada vez mais, ele dirigiu a própria vida
de maneira a excluir o pai, deixandoo de lado em vez de desafiálo ou se
conformar com as opiniões dele. Seu problema, como o de Hamlet, é que,
quando o pai morre, José é deixado com uma enorme dívida simbólica pela
“mágoa” (p. 45) que causou ao genitor. O crime de seu pai foi produzir um
filho que ele não reconhece; que pode, apenas, causar dor ao pai em pleno
60
conhecimento do que está fazendo. Pior ainda, o filho conhece a fraqueza
do pai: ele é uma lei que pode ser facilmente burlada via exclusão e reserva.
Ele é uma lei que não existe.
A culpa de Hamlet é, precisamente, saber o crime do pai. Em uma crítica
da produção de Peter Brook para Hamlet, Júlia reinterpreta o clássico de
Shakespeare usando um modelo que se aplica a um par de relações entre
personagens de Sem Nome. Sua interpretação não se limita a encaixarse
num paradigma de aprovação do prazer que sua própria mãe encontrou
com o amante que substituiu o pai de Júlia, embora ela veja Claudius como
o homem que provê a Gertrudes o prazer sexual de que o pai de Hamlet
era incapaz: os paralelos entre a vida de Júlia e sua crítica da peça são
óbvios. Apesar disso, sua interpretação também é uma na qual a trama de
Shakespeare se torna uma reflexão sobre “o filho inadequado de um rei
inadequado” (p. 59) – a história de José e de seu próprio pai. O filho é
destinado a continuar a mediocridade do pai, tornandose uma extensão
deste que, simultaneamente, o nega, por meio de sua incapacidade de agir.
O pai de José é uma lei que não existe para o filho e, como tal, não existe de
modo algum. Esse fracasso da lei paterna é o que faz com que o romance
como um todo ecoe a asserção de Hamlet de que “o tempo está fora de
eixo” (time is out of joint). Para José, ignorar conscientemente a lei, que era
(e não era) seu pai, é parte integrante de estar preso numa bolha do tempo.
Isso explica sua crença inicial de que o tempo parou e Marta ainda existe
no corpo de Júlia, inalterada em mais de trinta anos.
O que, então, salva José, o que o traz de volta ao presente? Para ele, Édipo
falha em trazer alívio. Como somos lembrados em Sem Nome, Édipo é
culpado de nada mais do que ocultar a morte de um homem que o atacou
quando ele cuidava da própria vida. Ele não sabia que “aquele senhor
arrogante que afinal nem pai tinha sabido ser” (p. 40) o faria cumprir
metade da profecia maldita. No romance de Macedo, Édipo não nos impele
a odiar nem a desejar a morte do pai que conhecemos. Em vez disso, somos
alertados a evitar o comprometimento com as profecias alheias. Nesse
sentido, Édipo vai contra Artemidoro e mostra as limitações de uma
61
interpretação profética dos sonhos. A chave, é claro, está no presente. A
redenção de José vem com o preço de colocar o tempo de volta no eixo,
não de pagar a dívida simbólica do pai como Hamlet faz. Em vez disso, ele
coloca o tempo de volta ao seu devido lugar ao perceber uma preocupação
com o presente – deixando de lado o “tanto faz” que é a marca do Portugal
contemporâneo. Ele cessa de ser um homem para quem “as aparências” são
“o único modo inteligível de viver” (p. 13) – o modus operandi da
Sociedade do Espetáculo – e tornase um homem que sabe que é preciso
cumprir um papel para melhorar a sociedade. Não é simplesmente questão
de repetir ou de “duplicações” (p. 145), um ponto que o romance ironiza ao
evidenciar a intertextualidade de toda a literatura, incluindo muito
conscientemente o próprio Sem Nome, com seus ecos de várias outras
obras literárias, de TeixeiraGomes a Saramago. Repetir não libertaria José.
Ele permaneceria prisioneiro daquilo que ele já havia perdido (vendo
Marta repetida em Júlia; vendo o Partido Comunista do passado repetido na
política do presente).
O argumento contra as repetições na vida real, se não na literatura, é que
se adquire muito pouco de novo através delas, mas também não se obtém
o original. O caso exemplar é o das “restaurações” que ecoaram pela
história portuguesa, como repetições da mesma coisa velha mascarando
simultaneamente em nome de uma nova ordem e da antiga. O problema
com as restaurações, como José Viana descobre, é que elas simplesmente
não são possíveis. Elas jamais capturam aquilo que almejam restaurar
porque, se conseguissem fazêlo, isso jogaria o tempo para fora do eixo.
“Visam sempre a impor o passado no presente” (p. 122) e, assim, tornamse
meras “aparências”. A redenção de José, tendo compreendido isso, é
arriscar no “Sem Nome” – o discurso aindaporsernomeado, mas
necessitado, hoje, mais do que nunca, pela sociedade portuguesa. Esse Sem
Nome precisa ter sua dose justa de “Os Nãos e Os Sins” (p. 158). Através da
concatenação apropriada de negação e de afirmação, como uma criança
transformandose em adulto, sugere o romance, o discurso adquirirá uma
nova identidade ao perceber um nome.
62
Assim, retornamos ao território do Nome do Pai, apenas desta vez numa
era na qual o pai – e toda o seu simbolismo – foi permanentemente
desacreditado. O que Sem Nome deixa claro é que, enquanto esse for o
caso, a função paterna ainda é de importância vital se a apatia social deve
ser superada. O que Júlia tem que aprender no decurso da narrativa,
enquanto produto de uma mãe revolucionária “sem saber como nem
porquê” (p. 180), e de um pai conservador, de direita, que se torna cada vez
mais ausente da vida dela, é que, às vezes, devese “dizer não só porque
não” (p. 160). Em uma passagem crucial que indica a estrutura pela qual um
novo discurso pode nascer, aprendemos “que dizer não é sempre muito
mais importante do que dizer sim. Saber o que se não pode querer.
Reconhecer a tempo quais são os nãos que é preciso dizer. Depois, com
sorte, os sins possíveis organizamse sozinhos, não precisam da nossa ajuda.
O pior é quando não há um sim alternativo, um sim possível no reverso do
não. Quando entre os nãos e os sins há só um tanto faz” (p. 160). Macedo
coloca a lição de que, para qualquer discurso significativo surgir, a negação
é o prérequisito. Sem o NÃO, o SIM nunca faz sentido. Sem tinta vermelha,
a tinta azul não vale nada. Sem a função paterna, nunca adquirimos um
nome, nem conquistamos uma posição da qual enunciamos um presente
significativo. Tornamonos, como a maioria das personagens de Sem Nome,
seres apáticos, vazios e instáveis.
De fato, a pletora de nomes que perpassa o texto, de José Viana/Xose Vai
ana/Bernardo a Marta/Maria/Júlia e a todos os codinomes que ofuscaram a
comunicação nas células comunistas do Estado Novo, ao Doutor Sereno/
Severo/Prudente, aponta, novamente, para nenhum nome, para uma falta
de identidade se espiralando de forma colossal até coalescer em uma
traição daqueles que lutaram em nome da liberdade individual. É aí que
Sem Nome se torna mais pungente, em seu ato de elogio à primeira e única
mulher Primeira Ministra de Portugal, em cujo gabinete Macedo serviu.
Maria de Lourdes Pintasilgo, a cuja memória o romance é dedicado, era,
conforme a lembrança do autor, alguém que ousou sonhar que as coisas
podiam realmente ser diferentes, “uma religiosa a querer corrigir as
63
injustiças de Deus na matéria do mundo” (p. 117), precisamente porque ela
era capaz de formular o que não queria, como primeiro passo para tornar a
mudança real possível. A curta duração de seu mandato, à frente do
governo de Portugal, foi um sintoma de ela estar, também, à frente de seu
tempo, porque “o que ela queria talvez tivesse sido possível, tivesse sido
viável” (p. 160). Mas daí o tempo depois dela pareceu descambar,
restaurando, rapidamente, a era dos “barões” de Garrett, os quais haviam
traído a própria revolução mais de um século antes. O elogio a ela é
compartilhado até certo ponto pelos “militares da revolução” (p. 160) que
também desejaram um futuro diferente, imaginando que os sacrifícios que
fizeram na guerra colonial que antecedeu a queda do regime de Salazar e
de Caetano poderiam servir como a lição de que, como a congressista em
Pedro e Paula, é preciso saber o que não se deseja, a fim de descobrir o que
se deseja. Será que esses militares e essa primeiraministra, essa “espécie de
freira e a tropa treinada em tiro ao preto”, realmente imaginaram que o
mundo pelo qual eles lutaram iria terminar no espetáculo de consumo que
hoje devasta Portugal? O “sim” sem o não que é equivalente ao “tanto faz”?
Se seguirmos a lógica de Sem Nome, e se a era da lei paterna acabou, a
necessidade dos NÃOS antes dos SINS, os NÃOS que permitem os SINS, é
mais forte, hoje, em Portugal do que jamais foi antes.
Referências
64
JacquesAlain Miller. Traduzido por Denis Porter. New York: Norton, 1997.
ŽIŽEK, Slavoj. Welcome to the Desert of the Real. London: Verso, 2002.
65
66
O DEJETO OBSCENO RONDA OHLSDORF: LENDO
THOMAS BERNHARD COM O MATERIALISMO
LACANIANO
Gabriela Bruschini Grecca
Considerações iniciais
67
problemática, selecionei a obra Origem, publicação pela Companhia das
Letras de 2006, que sintetiza nesse único volume os cinco relatos
autobiográficos escritos entre 1975 e 1982, sendo eles: Die Ursache [A
causa, 1975]; Der Keller [O porão, 1976]; Der Atem [A respiração, 1978];
Die Kälte [O frio, 1981]; e Ein Kind [Uma criança, 1982], cuja ordem é
rearranjada pela editora de Ein Kind até Die Kälte para dar preferência à
cronologia dos relatos à data de publicação.
Situando as possíveis relações entre o materialismo lacaniano de Slavoj
Žižek e o escritor austríaco Thomas Bernhard (19311989), começo por
trazer um excerto do livro Violência: seis reflexões laterais. Não raro, as
obras teóricas de Žižek comentam o Holocausto e o nazismo; trago, porém,
as constatações que se seguem dirigemse nominalmente a descrever o
fetiche onírico alemão durante o Terceiro Reich e seu despertar pósmaio
de 1945 por um viés de classe que nos será interessante para a
compreensão da escrita de Thomas Bernhard. Assim, cito:
Todas as suas ações foram fundamentalmente reações: agiu
para evitar que nada fosse realmente mudado; agiu para
impedir a ameaça comunista de uma mudança real. Quando
tomou por alvo os judeus, procedeu em última análise a um
deslocamento por meio do qual evitava o seu verdadeiro
inimigo – o núcleo das relações sociais capitalistas em si. Hitler
encenou o espetáculo de uma revolução a fim de que a ordem
capitalista pudesse sobreviver.A ironia aqui é que foram os seus
grandes gestos de desprezo pela autocomplacência burguesa
que permitiram a essa mesma complacência se manter: longe
de perturbar a muito denunciada ordem burguesa “decadente”,
longe de despertar os alemães, o nazismo foi um sonho que
lhes permitiu que adiassem o momento do despertar. A
Alemanha só despertou de fato após a derrota de 1945 (ŽIŽEK,
2014, p. 133).
68
burocráticas até 1955, dez anos após a queda de Hitler, quando finalmente
foi desocupada e reconhecida como país independente novamente.
Não bastasse essa “prorrogação” oficial do Estado nazista na Áustria,
Bernhard, ao dar (raríssimas) entrevistas e dar voz a seus narradores já na
década de 1980, jamais cedeu o tom ao reafirmar que persistia
vigorosamente em seu país a nazificação dos costumes. No romance
Extinção uma derrotada [Auslöschung – ein Zerfall (1986)],
considerado o magnum opus do autor por sua recepção crítica, Bernhard
escreve em seus anos finais de vida, por meio das palavras do narrador e
protagonista Franz Josef Murau, que os austríacos, assim como os próprios
pais do protagonista,
sempre foram oportunistas, seu caráter pode ser
tranquilamente definido como baixo. Eles [seus pais] sempre se
ajustaram à situação política do momento, e todos os meios
lhes convinham para auferir vantagens, fosse qual fosse o
regime [...] e, como austríacos natos, dominaram como
ninguém a arte do oportunismo (2000, p. 145).
Este exemplo é um dos muitos que nos mostra que um dos projetos de
vida de Thomas Bernhard foi interseccionar, na literatura, o grito de quem
projeta para si próprio a tarefa de escancarar o Real, cuja fuga é uma
constante da população austríaca, e o fez em cada romance e obra teatral
que produziu. Esse grito é a busca pela responsabilização dos austríacos em
não terem passado por um processo de reparação contra o legado nazista
tal como ocorreu de maneira mais ampla e coletiva na Alemanha.
Lembremos, por exemplo, julgamentos de Nuremberg entre 1945 e 1946 e,
já em 1962, da exposição mundial das filmagens ao vivo do julgamento de
Adolf Eichmann em Jerusalém, mostrando como um funcionário do
governo alemão, escondendose por trás de um vocabulário de tecnocrata,
foi também a mesma pessoa a arquitetar a fase do genocídio da população
judaica conhecida como “A Solução Final”, isto é, a fase de extermínio
massivo direto de judeus, comunistas e outros inimigos ideológicos do
Estado, via industrialização da morte, isto é, campos de concentração e/ou
extermínio.
Essa revisitação dolorosa do Shoah e de todas as ações vizinhas a ele
69
passou longe da Áustria moderna, sobre a qual Bernhard enfatiza pelas
lentes do legado antissemita, moralista e de nacionalismo ufanista. Em sua
polêmica peça Praça dos Heróis [Heldenplatz], de 1988, a personagem
Ana nos conta enfaticamente que
70
estava na cidade, uma mulher se atirou literalmente em cima de
mim. Começou a gritar:“Se o sr. continuar por esse caminho, vai
se arrebentar”. [...] Ou, por exemplo, a gente está
tranquilamente sentado em um banco do parque e recebe, de
repente, um golpe nas costas. [...]. Já não posso continuar
vivendo em Ohlsdorf [adendo].As pessoas sobem no muro que
cerca minha casa. Quando, pela manhã, desço até o portal, já há
pessoas trepadas no muro. Dizem que querem falar comigo. Ou,
nos fins de semana, as pessoas vão ver o escritor, como antes
iam ao parque ver os macacos. [...]. Chegam a Ohlsdorf e
assediam minha casa. Eu as observo escondido atrás das
cortinas como um preso ou um louco. Insuportável. (2000, p.
109).
71
cultural que não são também mérito somente do legado nazista na Áustria,
mas também do autoritarismo e das tendências protofascisas subjacentes
ao capitalismo contemporâneo. O ciclo entre (1) a violência como material
de contexto de produção do autor (Bernhard), para (2) a tradução desse
material em uma escrita que também evoca uma linguagem que, pela
incitação e pelo imediatismo do real, também não deixa de ser uma
experiência de violência, posto que liquida a idealização de uma relação de
univocidade entre sujeito e sociedade, e (3) a sociedade que reage
violentamente à escrita também nos faz pensar sobre o ciclo da violência
pelo qual passa qualquer sujeito que busca vocalizar o lugar dos obscenos
sociais apagados pelos donos do poder. Utilizase a violência como matéria
bruta, discursase sobre essa violência e temse, como consequência, o
retorno da violência que era matéria bruta em primeiro lugar. Se a ideia,
aqui, é falar sobre Áustria para brasileiros, é necessário afirmar
peremptoriamente o quanto nosso país é mestre em fazer parte desse
mencionado ciclo, vide exemplo que completou cinco anos nesta mesma
terçafeira, o assassinato de Mariele Franco, que segue absolutamente sem
respostas.
72
pessoas. Inserindo o sujeito em uma posição excrementícia, este é
submetido sempre ao modo como seus traços (físicos, psíquicos, de classe
e/ou psicológico) provocam uma lembrança de algo que precisa ser
reprimido para um bom funcionamento social.
Nas palavras de Marisa Corrêa Silva, na representação do excesso
obsceno “situações e imagens que parecem antagonísticas estão, na
verdade, numa relação de suporte: uma corresponde ao suplemento oculto
(obsceno) da outra, aquilo que dá suporte para que a outra se
constitua” (SILVA, 2011, p. 42). No nazismo, por exemplo, o caso já
mencionado do controle, do encarceramento e do extermínio das vidas
desidênticas à ordem em campos de concentração é um exemplo explícito
de como a reação contra um excesso obsceno pode levar mesmo à
dizimação de populações inteiras. No entanto, outras formas de destilação
do ódio, tão perversas quanto o caso do Shoah, podem ser mantidas como
prática cotidiana de negação do outro. Conforme explorado uma vez no
artigo “O feminino como excesso obsceno em O Conto da Aia, de Margaret
Atwood”, acredito que “relacionarse com o outro como um excesso
obsceno leva “ao repúdio à pluralidade, à negação da voz do outro, à
apropriação e, em termos benjaminianos, ao fechamento da história, ou
seja, à defesa de uma versão única da verdade, do relato do ponto de vista
do vencedor” (GRECCA, 2018, p. 57).
Seria interessante pensar, assim, o quanto a escrita “desenfreada” de
Thomas Bernhard, lida usualmente na chave da verborragia e da
redundância, no caso de sua autobiografia, pode também revelar a criação
de um espaço para a manifestação das revoltas e das angústias de um
sujeito que, desde a mais tenra infância, entrou para o catálogo dos
excessos obscenos da sociedade austríaca filho ilegítimo de uma mulher
sem marido, criado por um avô escritor, assumidamente anarquista e
envolvido até a medula desde o início com as precariedades, os conflitos e
as misérias parte de seu dia a dia de envolvimento com uma família de
lumpemproletariado. Em Ein Kind, relato que compreende o nascimento
de Bernhard até um pouco antes dos primeiros bombardeiros próximos ao
73
internato nacionalsocialista Johanneum, em Salzburgo, “[...] eu me
levantava todo dia num mundo de cuja monstruosidade tinha apenas uma
vaga ideia, estava determinado a investigálo, esclarecêlo, decifrálo. Eu
tinha três anos de idade e havia visto mais do que outras crianças da minha
idade” (2006, p. 52).
É sobre este relato, Ein Kind, que chego na última parte de minha breve
exposição e trago alguns excertos que exemplificam como a construção
paulatina do suplemento obsceno do autoritarismo são matériaprima
possível de ser mapeada nos relatos autobiográficos do autor, e que, se não
restringem as interpretações de seu romance (como jamais deve sêlo), nos
mostram vivências formativas de um sujeito que representou, a vida toda,
uma contrapartida inconveniente ao ritmo disfarçado de naturalidade do
andar da História e que descortinou, via ficção, as engrenagens de suas
ações frenéticas para a manutenção do funcionamento das instituições e
do autocentramento identitário austríaco.
Uma dessa passagens dáse no ano de 1943, em que Bernhard, aos 12
anos, é encaminhado a um reformatório nacionalsocialista em Saalfeld por
uma assistente social ligada a repartições públicas nazistas. Isso ocorre
devido a uma soma de fatores: o péssimo desempenho escolar do jovem
Thomas Bernhard; inúmeras correções punitivas de seus professores (que
era chamado desde “o desordeiro” a, em uma espécie de injúria racial, “o
austríaco”, de forma pejorativa, uma vez que a Áustria já não existia mais
como país independente); uma antipatia de professores e colegas de sala
por ser, nas palavras de Bernhard, “o rebento de gente pobre, filho de
ninguém” (2006, p. 83); tentativas já precoces de suicídio e, por fim, por, de
repente, ter desenvolvido um hábito incontrolável de urinar na cama à
noite, durante o sono, sem conseguir controlálo e sem que as repreensões
(muitas vezes públicas) de sua mãe fizessem efeito. É quando se fazem
presentes as primeiras menções ao suicídio, também manifestas nos cinco
relatos unidos em Origem e em praticamente toda a sua produção literária.
Como um desabafo, Bernhard nos revela:“[f]oi só por amor a meu avô que
não me matei na infância; não fosse isso, teria sido fácil para mim, afinal o
74
mundo não passava de uma carga inumana que, havia anos, não fazia senão
ameaçar me sufocar” (2006, p. 92).
Uma vez que a assistente social recomenda que Bernhard precisava, com
urgência, de uma casa de repouso destinada a crianças, a família de
Bernhard entusiasmase com a notícia e providencia sua viagem. No
entanto, a família equivocase ao confundir o nome do lugar recomendado
por uma assistente social para sua recuperação: acreditam ser Saalfelden,
cidade da região de Salzburgo, mas Bernhard é levado a Saalfeld, localizado
na Turíngia, extremamente distante de sua casa. Este só descobre dentro do
trem junto às outras crianças de “rostos pálidos, verdadeiros filhos de
proletários falando seu dialeto grosseiro” (2006, p. 94). ouvindo da
assistente que, cito, “[m]eninos não choram” (p. 93). Além disso, ao chegar
no local do destino descobre que nunca existiu a tal casa de repouso para
crianças, mas, sim, um denominado Lar de Reeducação Infantil, isto é, uma
escola de educação nazista no meio de uma floresta destinada ao único
objetivo de “reparar o caráter” de crianças e jovens pobres antes que sua
completa desorientação causasse a perda de cesta básica e donativos do
governo para suas famílias ou pior.
Dentre descrições aterrorizantes de experiências traumáticas que
revelaram a Bernhard uma das faces mais excruciantes da violência do
Estado nazista, destaco, apenas, algumas passagens. Sobre o problema de
urina de Bernhard, que era um dos maiores fatores a serem reparados o
mais brevemente possível, reproduzo algumas passagens que sintetizam
esta parte do relato:
O método empregado em Saalfeld era o seguinte: meu lençol,
com sua grande mancha era dito que aquele lençol era o meu.
Mas essa não era a única punição ao mijão, que, ao contrário
dos outros, era ainda privado da chamada sopa doce, na
verdade, de todo o café da manhã [...]. Eu era uma vergonha, e
os companheiros que tivera ainda nos primeiros dias
desapareceram. Observaramme com desconfiança e não sem
sentir prazer com minha desgraça [...]. De estômago vazio, eu
gritava o Heil Hitler quando a bandeira era arriada, marchava
com os outros e tinha nos lábios a música sobre Steigerwald.
Havia mergulhado num novo inferno. Mas tinha também um
companheiro de sofrimento. Seu nome era Quehenberger [...]
75
sofria do chamado raquitismo e tinha as pernas estropiadas.
Com ele, acontecia algo muito pior do que o que se passava
comigo: ele sujava a cama com suas fezes. Lembrome com a
máxima exatidão desta cena terrível: na lavanderia, lá embaixo,
onde ficavam apenas o porão e os mantimentos, embrulhavam
a cabeça de Quehenberger no lençol sujo de fezes ao mesmo
tempo em que eu, a seu lado, recebia tratamento para as coxas
esfoladas, um pó branco aplicado na virilha, junto aos testículos.
[...] Um menino alemão não chora! E chorar foi praticamente a
única coisa que fiz na Turíngia. (BERNHARD, 2006, p. 99100).
76
faz presente nos acontecimentos pessoais de Bernhard e de seu colega
Quehenberger: é uma violência enraizada nas condições sociais e
econômicas das crianças excluídas das classes dominantes, portanto, é um
produto que mantém a pobreza sistemática da sociedade e a pune.
Por outro lado, há também a violência simbólica, a da linguagem: para
cada ato de violência sistêmica, há também uma manifestação da
linguagem, tal como na repetição da frase “meninos não choram” que
sempre retorna diversas vezes no relato Ein Kind. Fato que tornou até
mesmo a palavra “Turíngia” indizível para o autor:
Em vez de melhorarmos, nosso estado piorou [...]. Até hoje as
palavras Turíngia e, mais ainda, floresta da Turíngia, me inspiram
terror. Há três anos, a caminho de Weimar e Leipzig, revisitei
essa sede do meu desespero supremo. De início, não acreditei
que fosse conseguir reencontrar o local. Mas de fato, lá estava
ele, e não mudara em nada (BERNHARD, 2006, p. 101).
77
Um estado mental ou emocional, ou mental e emocional, sempre
deprimente ou no mínimo irritante me acomete de pronto quando chego
hoje à cidade [Salzburgo], com a queda violenta da pressão barométrica
que me fere mesmo depois de vinte anos, e eu me pergunto pela causa
desse estado mental ou emocional, ou, melhor dizendo, desse meu estado
mental e de ânimo. Nada mais me obriga a isso, e no entanto, muitas vezes
sem saber por que e ainda alimentando expectativas, embora eu saiba que
nada tenha a esperar daí, vivo entrando (na realidade e em pensamento) de
um momento para outro nesse estado mental e emocional que nada mais é
do que um estado de ânimo devastador [...]. Uma mente clara e um
pensamento que [...] nela se concretiza acerca da arquitetura [...] não
bastam para fazer frente à fraqueza mental que me acomete, contrária a
toda razão [...]. Aquilo que, até o momento da chegada, revelase fácil,
transparente [...] pesa em minha cabeça [....] e graças a toda uma carga de
origem que ainda hoje desperta medo em minha mente, insuportável [...]
conduzindo apenas a uma perturbação depressiva (BERNHARD, 2006, p.
206).
Se voltarmos à frase da peça Praça dos heróis, em que Ana nos confessa
que “basta conversar com qualquer pessoa que em pouco tempo se
descobre que ela é nazista [...] eles só estão esperando o sinal para agir
abertamente contra nós”, observamos que o relato autoficcional de Ein
Kind enfatiza a dilatação das práticas totalitárias em torno do narcisismo
subjacente do autoritarismo. Este possui, como fim último, provar a própria
onipotência e a impossibilidade de seu desaparecimento completo, mas
também é locus privilegiado para as visões de bastidor do surgimento de
uma relação com a linguagem que será transversal a toda produção
ficcional do autor.
Tal linguagem é a mesma que produz narradores e personagens em suas
peças e romances que, longe de se colocarem no lugar de vítimas da
história austríaca, reconhecemse enquanto seres obscenos de uma
sociedade que vivenciou um fetiche onírico de remodelação total da
identidade pós1945. Por assumirem a posição desse reconhecimento, são
78
personagens e narradores capazes de revelar a tradição austríaca de fazer o
possível para dirimir suas contradições e unir forças em torno de um
imobilismo, alvos persistentes de Thomas Bernhard, que foi, na violência
subjetiva em torno de sua figura como “aquele que suja o próprio ninho”, o
dejeto obsceno de Ohlsdorf que acreditava na reparação.
Considerações finais
Referências
79
São Paulo: Temporal, 2020.
80
POR ENTRE UM CONTO, UMA CRÔNICA E UM
ROMANCE: REFLEXÕES LACANIANAS ACERCA DA
CONSTITUIÇÃO DO EU EM JOSÉ SARAMAGO
“Eu não reconheço mais, olhando as fotos do passado
O habitante do meu corpo, este estranho doublé de retratos
Talvez até eu já vivesse em algum corpo emprestado
Esperando só por você pra reunir meus pedaços” (Leoni)
81
Das múltiplas temáticas e análises que podem criar corpo dentro do
vasto universo da literatura do escritor, no presente capítulo, observaremos
um romance, um conto e uma crônica, comparandoos de modo a ter em
vista a possibilidade de investigar como se efetivam alguns processos de
autoconhecimento na literatura saramaguiana, por meio das teorias acerca
da constituição do eu propostas por Jacques Lacan.
O primeiro texto com o qual lidaremos em nosso panorama de análise é
o romance O Homem Duplicado, publicado, pela primeira vez, em 2002. A
narrativa constróise em torno do protagonista Tertuliano Máximo Afonso,
um professor de história, divorciado, depressivo, que possui uma rotina
repetitiva e acaba por se ver duplicado em um ator coadjuvante de filmes.
A obra gira em torno da busca que Tertuliano faz para descobrir quem é seu
duplo e quais são as relações dele com sua vida. O que chama a atenção
nessa história é como o comportamento de Tertuliano vai se modificando
no decorrer dessa saga.
Tenho dias, hoje veio encontrarme de boa maré, ou talvez seja
por me ter sentido na pele da personagem de um romance,
Que romance, que personagem, Não tem importância,
voltemos à vida real, deixemonos de fantasias e ficções
(SARAMAGO, 2019, p. 127).
82
outro traz à tona um sentimento oculto de insatisfação pessoal e isso é o
que propulsiona uma mudança de comportamento em Tertuliano.
Esse evento da trajetória de Tertuliano pode ser compreendido mediante
o alicerce teórico do estágio do espelho de Jacques Lacan. O psicanalista
concebe o fenômeno do duplo alinhado à formação identitária do
indivíduo, pois este remete ao momento em que o sujeito, em sua infância,
pela primeira vez, enxergase no espelho, vendose externalizado de si
mesmo.
Este é um momento de constituição da imagem do próprio corpo como
unidade e da formação do indivíduo. A matriz do eu se localiza no campo
do imaginário, desfazendo a fronteira entre o que pertence ao próprio
corpo e ao corpo do outro, fundindo e confundindo os corpos.A quebra do
limite entre o corpo de um e o corpo do outro é o que Lacan chama de
transitividade. Ao ver sua imagem refletida, o indivíduo chocase com a
realidade duplicada, pois tal fato revela a estrutura ontológica do mundo
humano, inserida em nossas reflexões acerca do conhecimento paranoico.
O estágio do espelho é tido como um processo de identificação, pois é o
que caracteriza uma transformação produzida no sujeito quando ele
assume uma imagem de si mesmo.
Mas o ponto importante é que essa forma situa a instância do
eu, desde antes de sua determinação social, numa linha de
ficção, para sempre irredutível para o indivíduo isolado ou
melhor, que só se unirá assintoticamente ao devir do sujeito,
qualquer que seja o sucesso das sínteses dialéticas pelas quais
ele tenha que se resolver, na condição de eu, sua discordância
de sua própria realidade (LACAN, 1998, p. 98).
83
a armadura enfim assumida de uma identidade alienante, que
marcará com sua estrutura rígida todo o seu desenvolvimento
mental (LACAN,1998, p. 100)
84
com a crise identitária que se estabelece no personagem protagonista da
obra, pois o momento de encontro com seu duplo, causalhe aflição, como
se ele pudesse vislumbrar a si mesmo diante dos próprios olhos, só que
com uma realidade vivente muito melhor do que a dele.
Cuidado com a soberba, Tertuliano, repara no que tens andado
a perder não sendo actor, poderiam ter feito da tua pessoa um
director de escola, um professor de Matemática, para
professora de Inglês é evidente que não darias, terias de ser
professor. Satisfeito consigo mesmo pelo tom da advertência, o
senso comum, aproveitando que o ferro estava quente,
descarregou outra vez o malho em cima dele, Obviamente,
terias de ser dotado de um mínimo de talento para a
representação, além disso, meu caro, tão certo como chamar
me eu Senso Comum, obrigarteiam a mudar de nome, nenhum
actor que se preze ousaria apresentarse em público com esse
ridículo Tertuliano, não terias outro remédio que adoptar um
pseudónimo bonito, ou talvez, pensando melhor, não fosse
necessário, Máximo Afonso não estaria mal, vai pensando nisso
(SARAMAGO, 2019, p. 9495).
85
comenta que, para Lacan, a matriz do eu se localiza no campo do
imaginário, rompendo a fronteira entre o que pertence ao próprio corpo e
ao corpo do outro, de modo a confundir e fundir os corpos. A quebra desse
limite entre um corpo e outro é o que Lacan chama de transitividade. A
teórica comenta que, no estágio do espelho, instaurase no sujeito um
sentimento de enxergar o outro como um igual, que suplanta e possui o
que o sujeito deveria ter, o que propulsiona uma espécie de rivalidade
especular.
Conseguimos, por meio desses processos, compreender os dilemas
abordados em O Homem Duplicado de forma mais intrínseca. Há uma
ofensa do protagonista mediante a existência de seu duplo que se
materializa em uma preocupação de ter sua originalidade roubada, como
se, o fato de ter visto “especulado” em outro, ele pudesse apenas se tratar de
um reflexo. Neste sentido, Saramago usa da data de nascimento de ambos
para saber quem nasceu antes e, dessa forma, identificar qual deles poderia
ser o original.
A sagacidade da narrativa encontrase no fato de o indivíduo tido como
cópia ser, justamente, o protagonista que, mediante sua conduta passiva já
antes aqui mencionada, acaba por tornarse subserviente do sujeito do qual
se viu duplicado, sendo impelido a trocar de identidade com esse outro por
um dia, mediante sua abordagem agressiva. No fim de tudo, há inclusive um
desfecho inesperado da narrativa: Tertuliano acaba por ter que assumir a
identidade de seu outro, visto que, durante a troca, o outro falece portando
a identificação dele.
Podemos perceber que Saramago, de forma magistral, retira de
Tertuliano todas as suas bases sólidas. Inicia removendo sua rotina
cotidiana, depois sua autenticidade e, por fim, sua identidade por completo,
fazendo seu protagonista assumir a identidade de seu duplo, do
coadjuvante da história. Temos, portanto, um sujeito que se vê
completamente despersonalizado, diferentemente do sujeito da crônica
que acaba por encontrar a si mesmo, ao elucidarse a que a cidade era ele,
ou os sujeitos do conto, que tem a lucidez de que é necessário sair de si
86
mesmo para enxergarse. No romance, a externalização não dá conta de
provocar no sujeito uma elucidação acerca de sua existência, há apenas um
processo de perda de si mesmo, ou melhor de transmutação de si no outro.
Em sua obra O Conto da ilha desconhecida (2000), o autor vista essa
questão por um novo prisma. Nesta narrativa, temos a história de um
homem que vai ao rei de sua pátria pedir um barco e, quando é
questionado pela majestade sobre a necessidade de possuir um barco,
responde que é porque gostaria de encontrar uma ilha desconhecida.
Mesmo que aparentasse ser uma tarefa difícil encontrar uma ilha que ainda
não tinha sido descoberta, o personagem acaba por encontrála no
decorrer da narrativa, que retrata os percaussos dessa busca.
Que ilha desconhecida, perguntou o rei disfarçando o riso,
como se tivesse na sua frente um louco varrido dos que têm a
mania das navegações, a quem não seria bom contrariar logo de
entrada, A ilha desconhecida, repetiu o homem, Disparate, já
não há ilhas desconhecidas, Quem foi que te disse, rei, que já
não há ilhas desconhecidas, Estão todas nos mapas, Nos mapas
só estão as ilhas conhecidas, E que ilha desconhecida é essa que
queres ir à procura, Se to pudesse dizer, então não seria
desconhecida, A quem ouviste tu falar dela, perguntou o rei,
agora mais sério, A ninguém, Nesse caso, por que teimas em
dizer que ela existe, Simplesmente porque é impossível que
não exista uma ilha desconhecida, E vieste aqui para me pedires
um barco, Sim, vim aqui para pedirte um barco, E tu quem és,
para que eu to dê, E tu, quem és, para que não mo dês, Sou o rei
deste reino, e os barcos do reino pertencemme todos, Mais lhes
pertencerás tu a eles do que eles a ti (SARAMAGO, 2000, p. 16
17).
87
como, agora se diz, Tenho, tive, terei se for preciso, mas quero
encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou quando
nela estiver, não o sabes, Se não sais de ti, não chegas a saber
quem és (SARAMAGO, 2000, p. 41).
88
conto que, inclusive, antecederam o romance em data de publicação.
Podemos vislumbrar, deste modo, que o autor constrói um caminho por
suas obras. Há algo em comum entre a ilha avistada apenas quando se está
fora dela, a cidade misteriosa que era o próprio ser e a transfiguração de um
homem em um outro idêntico: Temos, nessas diferentes modalidades da
narrativa saramaguiana, uma semelhança, isto é, a necessidade de se ver
fora de si mesmo na constituição de uma identidade. Todos os sujeitos
retratados necessitaram de veremse externalizados de si mesmos para se
conhecerem, revelando algo complexo, mas coerente: é mais fácil
compreender a natureza de um outro do que a sua própria natureza, por
isso a necessidade de se ver no outro é tão crucial, porque talvez, desse
modo, possamos nos reconhecer com mais precisão.
Em tese, uma reflexão que podemos fazer, por meio de todos os textos
lidos, é a de que o modo como o sujeito compreende o mundo se dá por
meio dos contatos que exerce com outros indivíduos, pois esta é a forma
que possibilita que o sujeito conheça a si mesmo, ao reconhecerse no
outro. Neste sentido, concluímos que as compreensões de Lacan sobre a
constituição do eu nos auxiliam a perceber os processos da mente humana
com mais vigor e, quando vinculadas a literaturas de autores potentes
como a de Saramago, fazemse exímias no sentido potencializar a
capacidade que um texto literário tem de realizar uma mimese da vida e
dos sentimentos humanos.
Referências
89
30.
90
SARAMAGO “BRINCANDO” COM ŽIŽEK: O SIMBÓLICO E
O IMAGINÁRIO SE TRANSFORMAM
Diana Milena Heck
2. Lembrando que tratase da releitura que Žižek fez dos conceitos lacanianos.
91
(surplus) que não cabe nessa realidade, só pode ser percebido
pelo seu brilho, para o qual não se pode olhar diretamente,
como o brilho do Sol. É indizível e, portanto, chocante,
traumático (SILVA, 2009, p. 213).
92
morte é debatido pelo autor a partir de dois aspectos: a morte como evento
e como personagem. A partir da ficção, o escritor desenvolve o enredo a
partir da Morte3 (personagem) anunciado uma greve para que os humanos
entendessem a importância de sua função biológica, social e econômica.
Com a paralisação das mortes, os humanos passaram a sentir os efeitos
sociais e econômicos de uma vida eterna com o acúmulo de doentes e
moribundos que jamais morreriam, mas que ainda necessitariam de
cuidados, de hospitais e casas de repouso abarrotadas e comércios que
lucravam com a morte falirem, o que rapidamente transformou a alegria da
imortalidade em pesadelo.
Sentidos os efeitos da grave, a Morte resolve pronunciar seu retorno ao
trabalho, mas com algumas condições. Daquele momento em diante,
avisaria quem morreria através de uma carta. O indivíduo teria alguns dias
para resolver suas pendências, realizar desejos ou simplesmente se
despedir até que seu prazo expirasse. Novamente, tal engendro causou
comoção e revolta na população, pois, mais uma vez, a Morte demonstrava
que não haveria nenhuma forma do ser humano se sobrepor a ela.
A Morte seguiu burocraticamente formalizando a demissão de diversos
sujeitos do mundo através da entrega dos temidos envelopes de cor violeta.
No entanto, certo sobrescrito retorna ao remetente e a Morte precisa
investigar pessoalmente o motivo pelo qual sua próxima vítima não
recebia sua carta. Nesse momento percebemos uma transformação da
personagem que, por amor, engata uma nova greve tornando o dia seguinte
sem mortes.
A partir do enredo, entendese que a morte se apresenta de duas
maneiras no romance. Primeiro, ela é imaginada pelas pessoas pois não se
deixa ver pelo ser humano de uma maneira que se tornou comum em suas
representações, principalmente no Ocidente. A morte é costumeiramente
descrita como “[...] um esqueleto embrulhado num lençol, [que] mora
numa sala fria em companhia de uma velha e ferrugenta gadanha que não
93
responde a perguntas [...]” (SARAMAGO, 2009, p.145). Até aqui, a descrição
da morte é a mesma que todos os habitantes do país em que ninguém
morria tinham.
A morte, além de ser imaginada dessa forma, era adjetivada
(negativamente). Quando a Morte, já personagem, resolve mandar cartas às
suas vítimas, fazendo com que elas fossem avisadas de seu fim, os jornais do
país a acusaram de:
[...] impiedosa, cruel, tirana, malvada, sanguinária, vampira,
imperatriz do mal, drácula de saias, inimiga do género humano,
desleal, assassina, traidora, serial killer outra vez, e houve até um
semanário, dos humorísticos, que, espremendo o mais que
pôde o espírito sarcástico dos seus criativos, conseguiu
chamarlhe filhadaputa (SARAMAGO, 2009, p. 126).
94
eu lhe despache, amanhã mesmo [...] (SARAMAGO, 2009, p.
112).
95
sensações e formas humanas que vão culminar com sua total
transformação em mulher.
A partir do momento em que a Morte passa a sofrer essas mudanças, a
própria representação da Morte no que Lacan chama de Imaginário
também se transforma, pois Saramago vai descrevendo uma série de
momentos em que o processo de humanização ocorre, o que não acontece
repentinamente, uma vez que até para a Morte essa transição é estranha. Ela
passa a experimentar sensações humanas e admira sua forma de mulher,
como se sua autoestima fosse melhorada com o novo aspecto, pois sendo
esqueleto ela jamais seria elogiada e desejada, mas, como mulher, o próprio
final da história vai provar que isso será possível.
Segue abaixo a passagem em que ocorre a primeira transformação. Para
isso, a Morte se despiu de seu lençol e:
[...] perdeu outra vez altura, terá, quando muito, em medidas
humanas, um metro e sessenta e sete, e, estando nua, sem um fio
de roupa em cima, ainda mais pequena nos parece, quase um
esqueletozinho de adolescente. Ninguém diria que esta é a
mesma morte que com tanta violência nos sacudiu a mão do
ombro quando, movidos de uma imerecida piedade, a
pretendemos consolar do seu desgosto (SARAMAGO, 2009,
p.146).
96
morte experimenta ou reflete sobre alguns hábitos e percepções humanas
que ela nunca havia experimentado e, com o desenrolar da história, a
Morte vai se humanizando cada vez mais, como ocorre na última passagem.
No copo tinha ficado um pouco de água. A morte olhoua, fez
um esforço para imaginar o que seria ter sede, mas não o
conseguiu (SARAMAGO, 2009, p.154).
Muito mais tarde, o cão levantouse do tapete e subiu para o
sofá. Pela primeira vez na sua vida a morte soube o que era ter
um cão no regaço (SARAMAGO, 2009, p.154).
[...] fizeste com os ombros aqueles movimentos rápidos que
nos seres humanos costumam acompanhar o choro convulsivo,
foi então, com os teus duros joelhos fincados no duro soalho,
que a tua exasperação de repente se esvaiu com a
imponderável névoa em que às vezes te transformas quando
não queres ser de todo visível (SARAMAGO, 2009, p. 156).
97
Como houve certa “convivência”4 com o violoncelista, a Morte passa a
reparar em coisas que vão além de somente tentar encontrar uma maneira
de liquidálo. Vê, por exemplo, que em toda a casa do músico não há uma
foto de mulher, a não ser por um retrato de uma senhora de idade, que a
Morte julgou ser a mãe. Ao perceber este detalhe, é revelada mais uma
característica humana na Morte, que tentando encontrar uma maneira de
levar o músico, observou algo que é comum em humanos que se sentem
atraídos por outros.
Até então, a Morte ainda permanecia na forma de um esqueleto, mas,
como plano para concluir sua tarefa de entregar a carta ao músico, resolve
passar uma semana na cidade a fim de finalizar seu trabalho. Para isso, deixa
por encargo da gadanha o envio das outras cartas de cor violeta e vai para
uma porta, na sala fria, que nunca havia sido aberta. Após meia hora
fechada,
[...] a porta se abriu e uma mulher apareceu no limiar. A
gadanha tinha ouvido dizer que isto podia acontecer,
transformarse a morte em um ser humano, de preferência
mulher por essa cousa dos géneros, mas pensava que se tratava
de uma historieta [...] (SARAMAGO, 2009, p.180).
Estás muito bonita, comentou a gadanha, e era verdade, a morte
estava muito bonita e era jovem, teria trinta e seis ou trinta e
sete anos como haviam calculado os antropólogos [...]
(SARAMAGO, 2009, p. 181).
4. Aqui a convivência não era mútua, pois a Morte, apesar de estar no apartamento do
violoncelista, não permitia que este a visse, portanto, era como se ela convivesse com ele,
podendo descobrir coisas sobre sua vida, mas ele era privado do mesmo, pois nem sabia que ela
estava em sua casa.
98
como a personagem resolve fazer um jogo de sedução com o violoncelista
de modo que fosse mais fácil entregarlhe a carta de cor violeta, acaba
também sendo seduzida pelo músico, assim como ele se apaixona por ela.
Após terem se visto e conversado, o músico lembra que eles nunca haviam
se tocado. Ela nunca havia deixado o homem se aproximar tanto, pois,
sendo a morte, tem o corpo frio e, caso o músico a tocasse, poderia
perceber que algo naquela mulher não era de todo humano.
Como a Morte já havia se envolvido sentimentalmente com o
violoncelista e tentara várias vezes lhe entregar a carta, sempre adiando a
chance, percebese claramente que esta seria a motivação para sua total
humanização, que acontece na última cena do romance da seguinte forma:
Quando ele terminou, as mãos dela já não estavam frias, as suas
ardiam, por isso foi que as mãos se deram às mãos e não se
estranharam. Passava muito da uma hora da madrugada quando
o violoncelista perguntou, Quer que chame um táxi para a levar
ao hotel, e a mulher respondeu, Não, ficarei contigo, e ofereceu
lhe a boca. Entraram no quarto, despiramse e o que estava
escrito que aconteceria, aconteceu enfim, e outra vez, e outra
ainda. [...] A morte voltou para a cama, abraçouse ao homem e,
sem compreender o que lhe estava a suceder, ela que nunca
dormia, sentiu que o sono lhe fazia descair suavemente as
pálpebras. No dia seguinte ninguém morreu (SARAMAGO,
2009, p.207).
99
concepção da morte como uma inimiga dos humanos é verdadeira, uma
vez que quando a personagem entra em greve, houve muita comemoração
pelo fato de os humanos terem se livrado dela, mas não se altera a
impressão de que ela seja má, pois os habitantes pensam que a greve não
ocorreu por bondade da Morte, mas por obra divina.
Se, por um momento, os habitantes do país quisessem que a morte
regressasse, pois as consequências da greve eram piores do que ter de lidar
com a perda de entes queridos, a partir do momento em que ela retoma seu
trabalho, com a distribuição das cartas de cor violeta, anunciando a morte
das pessoas, tornou a ser a pior inimiga da humanidade.
Para os habitantes do país, a morte continuou a ser inimiga até o final do
romance, pois eles nunca saberiam que ela havia se humanizado. O fato de
suspender a morte novamente, no fim do romance, não faria com que eles
a amassem, pois já sabiam como era enfrentar uma greve. Somente o
violoncelista pôde ver a Morte transformada em mulher e acompanhar sua
total humanização, pois teve um envolvimento amoroso com a mesma e foi
peça fundamental para que sua transformação ocorresse. Entretanto, não
há indício no romance de que em algum momento ele tenha tido
consciência que aquela mulher era a Morte. Sua estrutura Simbólica em
relação à Morte mudou, pois ele se apaixona por ela, mas como ele não
sabe quem a mulher é na realidade, portanto, não tem consciência dessa
mudança.
Considerações Finais
100
com a primeira greve, a construção de verdadeiras torres de babel para
comportar o número de idosos, doentes e moribundos que se acumulariam
ao longo da eternidade.
Ao final do romance, o leitor não consegue mais imaginar a Morte na
forma de um esqueleto e associála à frieza e medo, passando, ao contrário,
a torcer para que ela consiga viver seu amor com o violoncelista.
Referências
ŽIŽEK, Slavoj. Como ler Lacan. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de
Janeiro: Zahar, 2010.
101
102
BONSAI, DE ALEJANDRO ZAMBRA: UMA LEITURA SOB A
ÓTICA DO MATERIALISMO LACANIANO
Bruno Henrique de Souza Silva
Introdução
103
(ANGIOLILLO, 2021), além de, por vezes, autobiográfica, os textos de
Zambra sempre reservam à própria literatura um lugar de destaque, seus
protagonistas, apaixonados pela arte de contar histórias são, eles mesmos,
muitas vezes, escritores, alguns mais frustrados do que outros, mas todos
verdadeiramente fascinados pela magia da ficção.
Bonsai, primeiro romance do escritor chileno, pode ser creditado, como
o próprio nome sugere, como um trabalho minimalista. Em não mais do
que umas poucas dezenas de páginas, pelas quais se distribuem capítulos
curtos e sentenças incisivas, o autor dá conta de criar uma história
encantadora e de difícil classificação, até para os mais experientes
apreciadores da literatura.
A concisão é uma característica de boa parte da produção literária de
Zambra, que teve início na poesia, com a coletânea Bahia inútil, de 1998.
Porém, foi com a publicação de Bonsai, obra sobre a qual se debruça o
presente trabalho, que o autor ganhou projeção internacional.
O romance, publicado pela primeira vez em 2006 pela editora espanhola
Anagrama, conta a história de Julio e Emilia, um casal cujo relacionamento
é embalado pelo amor que ambos nutrem pela literatura, e que só
consegue ir para a cama depois de compartilhar a leitura de alguma obra
literária, a qual passa a fazer a ponte para a intimidade entre os dois.
O escopo teórico sobre o qual se fundamenta o presente artigo e a partir
do qual buscase analisar o romance de Alejandro Zambra é o materialismo
lacaniano, que tem como um de seus principais representantes o filósofo
esloveno Slavoj Žižek. Inicialmente ligada à filosofia política, a corrente foi
criada como uma crítica ao pensamento marxista tradicional. Seus teóricos
não rejeitam Marx, mas “aceitando as contribuições do filósofo alemão para
a história do pensamento, fazem a ressalva de que a economia e a luta de
classes apenas não são suficientes para dar conta de tudo o que
acontece” (SILVA, 2009, p. 211).
Estudioso das teorias de Lacan, como se infere do próprio nome
“materialismo lacaniano”, Žižek faz uma releitura da obra do psicanalista
francês, aproximandoa do quotidiano.
104
O materialismo lacaniano é complexo, mas sua aplicação é
vasta. Žižek levou o tema para além da filosofia política e
aplicou os conceitos em campos como os Estudos Culturais,
analisando fenômenos como os atentados de 11 de Setembro,
manifestações da chamada Cultura de Massa como os filmes de
Alfred Hitchcock etc. (SILVA, 2009, p. 212).
105
MORAIS 2012, p. 100).
Tendo como um de seus principais representantes o alemão Hans
Robert Jauss (1978, p. 314), segundo quem “a percepção estética não é um
código universal atemporal, mas, como toda experiência estética, está
ligada a experiência histórica”, a estética da recepção situa o leitor e o
momento histórico no centro da interpretação do objeto literário.
Mas não é apenas na psique de um aldeão da Indochina ou de uma
parisiense contemporânea que uma mesma história ganha diferentes
contornos. Cada leitor, ao entrar em contato com um texto de ficção,
extrairá dele cenários completamente distintos, reconstruindo a obra à sua
própria maneira. É isso o que fazem os protagonistas de Bonsai, ao longo
de sua maratona literária e sexual, combinando erotismo e literatura e
transformando o livro num elemento central de seu relacionamento, do
qual a obra participa quase que como um terceiro parceiro, numa espécie
de ménage à trois em que cada obra representa também o componente
fantasístico que torna a relação sexual possível.
“Não há relação sexual”, sentenciou Jacques Lacan em um de seus mais
famosos e polêmicos postulados e, a partir da releitura feita por Žižek da
obra do psicanalista francês, é possível estabelecer diálogos entre a
controversa premissa e a história vivida pelo casal protagonista do
romance de Alejandro Zambra.
Segundo Žižek (2010, p. 62),“não há nenhuma garantia universal de uma
relação sexual harmoniosa com nosso parceiro. Cada sujeito tem de
inventar uma fantasia própria, uma fórmula ‘privada’ para a relação sexual”.
No caso específico de Julio e Emilia, os protagonistas, era justamente nos
livros que ambos mergulhavam na busca da tal fórmula. Por muito tempo,
eles a encontraram.
As extravagâncias de Julio e Emilia não eram apenas sexuais
(que existiam) nem emocionais (que eram muitas), mas
também, digamos, literárias. Numa noite especialmente feliz,
Julio leu, meio de brincadeira, um poema de Rubén Darío que
Emilia dramatizou e banalizou até transformar num verdadeiro
poema sexual, um poema de sexo explícito, com gritos, com
orgasmos. Então virou um hábito o lance de ler em voz alta e
106
em voz baixa toda noite, antes de trepar. (ZAMBRA, 2018, p.
32).
O conceito proposto por Žižek, não é apenas aplicável, mas pode ser
lido claramente a partir da relação incomum estabelecida entre o casal
protagonista criado por Zambra, que só é capaz de transar depois de
devorarem juntos algumas das páginas do romance ou da coletânea da vez,
retirando da literatura a fantasia que irá embalar a próxima relação sexual.
Muito embora compartilhem sempre a mesma leitura, de fato, é inegável
que Julio e Emilia, criam, cada qual, uma imagem própria com a matéria
prima de que dispõem, já que não dividem a mesma mente, e é a partir dela,
ou seja, dessa matéria ficcional, que ambos constroem individualmente,
ainda que partindo de um objeto comum (livro), a atmosfera adequada para
o que virá em seguida.
Em Como ler Lacan, uma das principais obras escritas pelo filósofo
esloveno, na qual se investe do papel de guia, orientando o leitor pelo
labirinto das ideias do mestre francês da psicanálise, Žižek (2010, p. 6465)
se vale de vários exemplos, alguns dos mais significativos retirados do
cinema, para ilustrar a controversa frase que sentencia a impossibilidade da
relação sexual. Esses exemplos vão desde o barulho de uma cachoeira, que
abafa os ruídos embaraçosos do ato sexual ao ar livre entre os
protagonistas de A filha de Ryan, de David Lean, ao som da Internacional,
que serve de pano de fundo para as cenas tórridas entre Diane Keaton e
Warren Beatty, em Reds. Enquanto nos dois filmes a trilha sonora
representa o filtro fantasístico que “permite suportar o real do ato
sexual” (ŽIŽEK, 2010, p. 64), em Bonsai, são os livros que se incumbem
desse papel.
Como a sexualidade é o domínio em que chegamos mais perto
da intimidade de outro ser humano, expondonos totalmente a
ele, o gozo sexual é real para Lacan: algo traumático em sua
assombrosa intensidade, contudo impossível no sentido de que
não podemos jamais compreendêlo. É por isso que uma
relação sexual, para funcionar, precisa ser filtrada por alguma
fantasia. (ŽIŽEK, 2010, p. 64).
107
contato íntimo tolerável, o sexo entre Julio e Emilia não é possível, tanto é
assim que, ao perderem o apreço por um de seus autores favoritos, o
relacionamento passa por um processo de deterioração que irá culminar
num rompimento definitivo.
A importância da literatura, enquanto objeto que serve de crivo
fantasístico para a relação entre os personagens principais no romance de
Zambra é um traço, aliás, que permeia toda a história e, na verdade,
estrutura cada aspecto do relacionamento entre Julio e Emilia. Sem a ajuda
da ponte que se estende entre os textos e o próprio relacionamento, os
dois fatalmente despencariam no abismo aterrorizante do real que, para
Lacan, estaria ligado à ordem do impossível, daquilo que não pode ser
simbolizado, ao passo que a realidade é simbólicoimaginária, ou seja, da
ordem da fantasia (ZIZEK, 2010). Daí a necessidade dos personagens de
encontrar meios para manter a estrutura em pé, valendose da fantasia a fim
de que possam atravessar em segurança o precipício do real.
Nem sempre é fácil encontrar nos textos algum motivo,
mínimo que seja, para trepar, mas no fim sempre conseguem
isolar um parágrafo ou um verso que, caprichosamente
estendido ou pervertido, funciona, aqueceos. (Gostavam desta
expressão, “aquecerse”, por isso a registro. Gostavam quase
tanto como aquecerse de fato.) (ZAMBRA, 2018, p. 33).
108
literário, antes de qualquer relação sexual. É dos livros que é retirada a
fantasia que irá permitir que o contato íntimo se estabeleça de forma não
traumática, pela fuga do Real executada a partir da literatura.
Discutiram, como todos os diletantes do mundo um dia
discutiram, os primeiros capítulos de Madame Bovary.
Classificaram seus amigos como Charles ou Emma e discutiram
também se eles mesmos eram comparáveis à trágica família
Bovary. Na cama, não havia problema, já que ambos se
esmeravam para parecer Emma, ser como Emma, trepar como
Emma, pois sem dúvida nenhuma, pensavam, Emma trepava
inusitadamente bem, e poderia até trepar melhor nas
condições atuais; em Santiago, no final do século XX, Emma
poderia trepar ainda melhor do que no livro. Nessas noites, o
quarto se transformava numa carruagem blindada que rodava
sem cocheiro, às cegas, por uma cidade bela e irreal. O resto, o
povo, murmurava invejosamente detalhes do romance
escandaloso e fascinante que acontecia portas adentro
(ZAMBRA, 2018, p. 35).
Julio e Emilia estão unidos pela paixão pelos livros, é ela que os faz
superar inclusive as diferenças irreconciliáveis que existiam entre os dois.
Basta pensar, por exemplo, que antes de descobrirem suas afinidades
literárias, a dupla concebida pela imaginação do escritor chileno não se
suportava. Mais tarde, unidos por um fascínio em comum, até mesmo a
primeira mentira contada um ao outro, longe de implicar em algum
rompimento do pacto de fidelidade tácito que se estabelece entre todo
casal, na verdade, envolve o fato de afirmarem terem lido Proust, quando
nenhum dos dois o fizera.
A primeira mentira que Julio contou a Emilia foi que tinha lido
Marcel Proust. Não costumava mentir sobre suas leituras, mas
naquela segunda noite, quando os dois sabiam que alguma
coisa estava começando entre eles, e que essa coisa, durasse o
quanto durasse, ia ser importante, naquela noite Julio empostou
a voz, fingiu intimidade e disse que sim, que tinha lido Proust,
aos dezessete anos, num verão, em Quintero.
(...)
Naquela mesma noite, Emilia mentiu pela primeira vez para
Julio, e a mentira foi a mesma, que tinha lido Marcel Proust
(ZAMBRA, 2018, p. 25).
109
relacionamento do casal protagonista é tão elevado que é impensável para
os dois admitirem, por exemplo, que não leram um de seus maiores
clássicos. Como se depreende do próprio texto, essa coisa que estava
começando entre eles ia ser importante, e a literatura funcionaria como
seu alicerce, o crivo fantasístico responsável por sustentar todo o peso do
que seria construído a partir de então, o objeto sobre o qual os dois
assentariam sua própria história.
Adotando ainda uma outra discussão trabalhada por Žižek, é possível
pensar a íntima conexão com a literatura compartilhada pelos personagens
como o objeto que é a causa do desejo entres os dois, a partir do conceito
de objeto a, proposto por Lacan.
Enquanto o objeto de desejo é simplesmente o objeto desejado,
a causa de desejo é o traço em razão do qual desejamos o
objeto, algum detalhe ou tique de que em geral somos
inconscientes, e que por vezes até percebemos como um
obstáculo apesar do qual desejamos o objeto. (ŽIŽEK, 2010, p.
8586).
110
decidem fazer a plantinha se perder entre uma multidão de
plantas idênticas. Depois ficam inconsoláveis, infelizes por
saber que nunca mais poderão encontrála. (ZAMBRA, 2018, p.
33).
111
ainda têm um ao outro, ou seja, ainda conservam o objeto de desejo, porém,
há algo que se perdeu, e esse elemento é justamente a viga que sustentava
todo o edifício. Sem ele, o desejo é frustrado, porque muito embora
preservem o objeto, este os decepciona, já que a substância que os atraia,
agora está ausente (ŽIŽEK, 2010, p. 85).
Eles ainda tentam salvar as estruturas em ruínas do relacionamento,
abaladas pelo terremoto provocado por Tantalia, se demoram nas páginas
de alguns clássicos, pelo entusiasmo e descoberta das obras literárias; a
leitura dos clássicos é uma releitura, o signo da falta de crescimento e de
surpresa. Engaiolado na repetição, o amor definha; o casal adia o desfecho
das obras, a fim de prolongar ao máximo o fio de vida do amor que agoniza
depois de ser fatalmente ferido pelo conto. A estratégia, embora não de
todo errada, apenas acompanha a relação em seus estertores.
Por vezes o caminho mais curto para realizar um desejo é evitar
o objetometa, fazer um desvio, adiar seu encontro. O que Lacan
chama de objeto a é o agente desse encurvamento: o
insondável X que faz com que, ao nos confrontarmos com o
objeto de nosso desejo, obtenhamos mais satisfação ao dançar
em torno deste do que nos dirigindo diretamente a ele. (ŽIŽEK,
2010, p. 97).
Julio e Emilia intuem que cruzaram uma fronteira da qual não poderão
retornar. Os efeitos provocados pela leitura de Tantalia representam um
caminho sem volta. Apesar disso, buscam inutilmente se recuperar do
trauma, o que só será possível com o rompimento entre os dois.
O desconforto dos protagonistas provocado pelo conto de Macedonio
Fernández permite uma série de interpretações dentro das teorias
trabalhadas por Zizek, desde uma ruptura com o elemento fantasístico
representado pela literatura, enquanto filtro que possibilita a relação sexual
entre os personagens, passando pela ideia de objeto causa de desejo,
esgotado pela experiência desconcertante do contato com Tantalia, que
os afastou da causa do desejo, culminando no trauma pelo confronto com
o real, ancorado no receio da morte do amor cultivado pelos dois,
vagamente conscientes de que esse receio indica a própria morte
enquanto algo iminente e inevitável, pois o golpe fatal já fora dado.
112
Não é porque se sabe de uma coisa que se pode impedila, mas
há ilusões, e esta história, que vem sendo uma história de
ilusões, prossegue assim:
Ambos sabiam que, como se diz, o final já estava escrito, o final
deles, dos jovens tristes que leem romances juntos, que
acordam com livros perdidos entre as cobertas, que fumam
muita maconha e ouvem canções que não são as mesmas que
preferem individualmente (de Ella Fitzgerald, por exemplo: têm
consciência de que nessa idade ainda é aceitável ter acabado de
descobrir Ella Fitzgerald). A fantasia dos dois era ao menos
terminar Proust, esticar a corda por sete volumes, e que a
última palavra (a palavra “tempo”) fosse também a última
prevista entre eles. Ficaram lendo juntos, lamentavelmente,
pouco mais de um mês, cerca de dez páginas por dia. Pararam
na página 373, e o livro, desde então, ficou aberto. (ZAMBRA,
2018, p. 38).
113
intimidade entre os dois tornouse impossível.
Considerações finais
Referências
114
autorchilenoqueviroucultcomliteraturasussurrante.shtml >. Acesso em:
15 de novembro de 2021.
ZAMBRA, Alejandro. Bonsai & A vida privada das árvores. São Paulo:
Planeta do Brasil, 2018.
115
116
A literatura brasileira
117
118
A “BRUTALIDADE DO REAL DA VIOLÊNCIA DESREGRADA”
EM UM ABATEDOURO: NO RASTRO DE UM ASSASSINATO
EM DE GADOS E HOMENS (2013), À LUZ DO
MATERIALISMO LACANIANO
Rafael Lucas Santos da Silva
119
diegética do romance De gados e homens. A trama é relativamente simples
e envolve uma espécie de comportamento dos gados que beira o
sobrenatural, que culmina em suicídio coletivo de alguns rebanhos.
A descrição do assassinato, em um único parágrafo, é seca e lacônica, o
que o distingue do estilo “brutalista” pelo qual Ana Paula Maia se
consolidou no campo literário brasileiro, o que levou a cena passar
despercebida, sendo lembrada apenas em caráter negativo. Zeca é o
personagem que morre, embora não houvesse rivalidade entre ele e Edgar
Wilson. O motivo aparente seria apenas uma divergência entre o melhor
procedimento para atordoar o gado antes do abate, por cuja simplicidade
facilmente poderia ser considerado como um gesto inapreensível e
imotivado, sem peso decisivo para compreensão da composição do
romance.
Acreditamos que o gesto do assassinato envolve uma forma de
subjetividade de Edgar Wilson que exige atenção, embora este não seja o
conflito central da perspectiva diegética delineada no romance. A hipótese
que subjaz a este ensaio, o qual faz parte de uma pesquisa mais ampla, é que
o assassinato está relacionado ao modo de filiação do protagonista ao
trabalho, no atrito que se realiza entre a subjetividade e a experiência
precarizada de seu trabalho no abatedouro. O assassinato evidencia a
tensão social irresolvida que de fato atravessa o romance desde o início e,
visto desse ângulo, convidanos a uma reflexão substanciosa de um artifício
narrativo cifrado numa equação em que a incógnita é o narrador, para o
qual o assassinato também é uma incógnita, sendo que ambas tornaramse
uma só para os leitores. O procedimento analítico para desatar esse nó é,
pois, conduzido pelo viés do Materialismo Lacaniano, compreendendoo
como uma corrente teóricocrítica que visa explorar a influência da
economia libidinal em esferas individuais e sociais (SILVA, 2009), o que
permitirá utilizálo também para mediação dialética entre forma literária e
processo históricosocial.
O assassinato ocorre quando Edgar volta para o abatedouro, após ter que
ir fazer uma cobrança para o patrão na fábrica de hambúrguer. Retornando
120
ao fim da tarde, a primeira atitude de Edgar é encontrar Zeca:
É hora do canto das cigarras.A noite se aproxima, envolvendo o
firmamento e engolindo o crepúsculo. Algumas estrelas já
apareceram. Edgar Wilson entra no banheiro do alojamento.
Espera que reste apenas o Zeca no banho. Com a marreta, sua
ferramenta de trabalho, acerta precisamente a fronte do rapaz,
que cai no chão em espasmos violentos e geme baixinho. Edgar
Wilson faz o sinal da cruz antes de suspender o corpo morto de
Zeca e o enrolar num cobertor. Nenhuma gota de sangue foi
derramada. Seu trabalho é limpo. No fundo do rio, com restos
de sangue e vísceras de gado, é onde deixa o corpo de Zeca,
que, com o fluxo das águas, assim como o rio, também seguirá
para o mar (MAIA, 2013, p. 21).
121
apenas animais”:
Somente o som delicado do cigarro queimando ao ser tragado
pode ser ouvido.
— Edgar, são apenas animais. Estão debaixo da nossa
autoridade.
— Pra viver e pra morrer?
— Pra nos servir.
Edgar Wilson apaga a ponta do cigarro na cerca de madeira em
que está apoiado e se retira em silêncio direto para o banheiro
(MAIA, 2013, p. 94).
122
violência ‘subjetiva’ diretamente visível, exercida por um agente
claramente identificável” (ŽIŽEK, 2014, p. 17).
Ou seja, embora possamos, apenas focalizando o primeiro capítulo,
averiguar que não existiria, na dinâmica da intriga, o motivo para o
assassinato de Zeca, quando, por sua vez, focalizamos no conjunto, o
assassinato já aparenta possuir articulação no desenvolvimento da
perspectiva diegética, no tangente a uma dinâmica de espoliação de gozo
que Edgar está submetido em sua rotina de trabalho precarizado, que
funciona como uma violência objetiva na realidade Simbólica do
personagem.
123
rara numa literatura [brasileira] que quase sempre o desprezou e evitou
representálo”, como sublinha Lafetá (2004), como também o recorte é
feito a partir de atividades profissionais tidas como subalternas,
invisibilizadas e vistas muitas vezes com preconceito, direta e
significativamente implicadas na clivagem de classes sociais brasileiras.
A escritora promove, assim, uma importante abertura para um discurso
complexo da dimensão da precariedade a que estão sujeitas as
personagens de suas narrativas, o que, por sua vez, também envolve a
necessidade de identificação e compreensão do lugar ocupado pelo
narrador frente à matéria narrada.Assumindo uma posição de observador, o
narrador em De gados e homens se depara com uma experiência precária
difícil de abarcar, que vai se constituindo, a seu próprio despeito, como “o
Real lacaniano”, no sentido de uma “traumática ‘espinha na garganta’ que
contamina toda idealidade do simbólico, tornandoo contingente e
inconsistente” (ŽIŽEK, 2017, p. 342).
Quando menciona sobre o hambúrguer, a voz narrativa declara que “não
se pode vislumbrar o horror desmedido que há por trás de algo saboroso e
delicado” (MAIA, 2013, p. 21). O enunciado desliza para uma peculiar
asserção, marcada por uma entoação expressiva: “horror desmedido”. Não
só não é possível contemplar sem horror, como é posto pela voz narrativa
que “não se pode [até mesmo] vislumbrar” esse “horror desmedido” que
perpassa o cotidiano desses trabalhadores.
Essa perplexidade horrorizada já marca uma relação fundante na
instância narrativa como força disruptiva irrepresentável, com implicações
formais para os demais capítulos do romance, em que “essa cisão entre
realidade simbolizada e o excesso do Real, no entanto, representa apenas a
matriz de como o Simbólico e o Real estão interligados” (ŽIŽEK, 2017, p.
162). Afinal, como buscar representar uma existência que “não se pode
vislumbrar”? Hobsbawm (2000a) já foi enfático ao assinalar que existiu um
desconhecimento sobre a classe trabalhadora e que, mesmo ao escritor
interessado,“a maior parte da vida do trabalhador — seu trabalho diário —
era totalmente desconhecida” (HOBSBAWM, 2000, p. 258). Argumento
124
semelhante também é tecido por Žižek (1992), ao assinalar que
[...] encontramos a admiração de Charles Dickens pela “gente
do povo", a identificação imaginária com seu mundo pobre,
mas feliz, fechado, virgem, livre de qualquer combate cruel pelo
dinheiro ou pelo poder; mas e é nisso que se encontra a
falsidade de Dickens , de onde vem o olhar de Dickens para a
“boa gente do povo", para que ela nos pareça agradável? De
onde, a não ser do ponto de vista de um mundo corrompido
pelo dinheiro e pelo poder? Aí encontramos a mesma
separação vista nas pinturas idílicas de Bruegel, mostrando
cenas tranquilas da vida (festas no campo, ceifeiros na hora do
almoço etc.): essas pinturas são tão distantes quanto possível
de uma verdadeira atitude popular, de uma relação qualquer
com as classes trabalhadoras; o olhar que elas pressupõem é, ao
contrário, o olhar externo da aristocracia para o campesinato
idílico, e não o dos camponeses sobre sua vida (ŽIŽEK, 1992, p.
186).
125
Edgar em relação aos bovinos.
A abertura da narrativa é com o patrão de Edgar Wilson requerendo que
exerça uma atividade que não faz parte das suas atribuições como
atordoador no abatedouro, estabelecendo um avanço no conflito entre
Edgar e Zeca, bem como corresponderá a uma importante caracterização
da experiência do trabalho na estrutura narrativa. A posição de
subordinação em que se encontra Edgar Wilson em face de Milo assume
uma oposição em relação ao modo como serão executados os bovinos. Ele
tem a função de atordoar o gado com um intenso golpe de marreta, para
que durante o desnorteamento do animal a sua garganta seja cortada. Para
isso, é preciso “uma pegada boa”, conforme insistiu com o patrão,
considerando que Zeca não a possui, pois “ele deixa o bicho acordado
ainda. O boi sofre muito, Seu Milo” (MAIA, 2013, p. 10).
Essa preocupação de que “o boi sofre muito” será algo que atravessará a
perspectiva diegética do romance. Quando é Zeca que terá que atordoar os
bovinos na sua ausência, Edgar fica com “o coração pesaroso” pela situação.
(MAIA, 2013, p. 12). Assim, elaborase uma apresentação do quanto a
preocupação de Edgar Wilson é verdadeira, a qual o leva até a possuir um
“ritual como atordoador”:
Edgar permanece imperturbável, com o olhar cinzento sobre o
patrão. O telefone toca. Milo atende e pede um instante.
— Edgar, aqui está a ordem de cobrança. O endereço tá escrito
aí. Pega as chaves da caminhonete com o Tonho e manda o Zeca
vir até aqui falar comigo.
Edgar Wilson acena com a cabeça e apanha a ordem de
cobrança. Milo volta ao telefone. Edgar hesita pouco antes de
sair, mas atravessa a porta do escritório e fechaa ao passar.
Segue por um corredor fétido e mal iluminado e ao virar à
direita entra no boxe de atordoamento, local em que trabalha
muitas horas por dia. A fila de bois e vacas é sempre longa. Um
funcionário abre a portinhola e o boi que já passou pela
inspeção e pelo banho entra devagar, desconfiado, olhando ao
redor. Edgar apanha a marreta. O boi caminha até bem perto
dele. Edgar olha nos olhos do animal e acaricia a sua fronte. O
boi bate uma das patas, abana o rabo e bufa. Edgar cicia e o
animal abranda seus movimentos. Há algo nesse cicio que deixa
o gado sonolento, intimamente ligado a Edgar Wilson, e dessa
forma estabelecem confiança mútua. Com o polegar
lambuzado de cal, faz o sinal da cruz entre os olhos do
126
ruminante e se afasta dois passos para trás. É o seu ritual como
atordoador. Suspende a marreta e acerta a fronte com precisão,
provocando um desmaio causado por uma hemorragia
cerebral. O boi caído no chão sofre de breves espasmos até se
aquietar. Não haverá sofrimento, ele acredita. Agora o bicho
descansa sereno, inconsciente, enquanto é levado para a etapa
seguinte por outro funcionário, que o suspenderá de cabeça
para baixo e o degolará (MAIA, 2013, p. 1112).
127
personagem é posicionado pela voz narrativa como quem “gosta de ver o
animal sofrer” (MAIA, 2013, p. 12). Quando Zeca vai ao setor para substituí
lo, a voz narrativa apresenta que não se esforça para ter precisão ao acertar
os golpes nos bovinos, inclusive mesmo na frente de Edgar:
Edgar sinaliza para que o funcionário não deixe o boi seguinte
entrar no boxe.Vai até o setor de triparia e chama por Zeca, que
imediatamente acata sua ordem. É com o coração pesaroso que
Edgar vê, minutos depois, o rapaz, sorridente, seguir até o boxe
de atordoamento ao sair da sala de Milo. Zeca é um garoto de
dezoito anos, perturbado. Gosta de ver o animal sofrer. Gosta de
matar. Se prepara para a tarefa quando Edgar entra no boxe e o
adverte:
— Zeca, coloca o boi pra dormir, entendeu? Não deixa o bicho
sofrer.
Zeca apanha a marreta, faz sinal para que o funcionário deixe o
boi entrar. Quando o animal fica frente a frente com ele, a
marretada propositalmente não é certeira, e o boi, gemendo,
caído no chão, se debate em espasmos agonizantes. Zeca
suspende a marreta e arrebenta a cabeça do animal com duas
pancadas seguidas, fazendo o sangue respingar em seu rosto.
— Assim, Edgar? Ele tá dormindo agora, não tá? — Zeca pisca
diversas vezes os olhos com força e puxa a saliva entre os
dentes, ruidosamente.
Edgar Wilson não responde à afronta de Zeca. Vira de costas e
caminha até o banheiro, onde troca de roupa. Veste uma calça
jeans e uma camisa quadriculada de botões. Após apanhar as
chaves com Tonho, segue até a caminhonete e lamenta o rádio
quebrado do carro (MAIA, 2013, p. 13).
128
própria experiência de trabalho, de modo que o assassinato “ganha sua
coerência apenas retrospectivamente, visto de dentro do horizonte
simbólico” (ŽIŽEK, 2005, p. 53, tradução nossa). E isto significa, justamente,
nos debruçarmos no horizonte simbólico da experiência de trabalho
exercido no abatedouro.
A lógica exploratória desse lugar pede passagem na fatura, implicando aí
uma dinâmica de reprodução social presente na perspectiva diegética.
Sendo Zeca também um trabalhador do abatedouro, na intriga do
assassinato podemos verificar uma inflexão que vai assumindo uma
enunciação em torno da reificação do sujeito dentro do funcionamento da
produção do abatedouro. Lukács (2013), tratando da reificação, assinala
apreender historicamente um movimento de “eliminação das propriedades
qualitativas” do trabalhador:
Se perseguirmos o caminho percorrido pelo desenvolvimento
do processo de trabalho desde o artesanato, passando pela
cooperação e pela manufatura, até a indústria mecânica,
descobriremos uma racionalização continuamente crescente,
uma eliminação cada vez maior das propriedades qualitativas,
humanas e individuais do trabalhador (LUKÁCS, 2013, p. 201).
129
complementos obscenos”, conforme assinala Žižek (2017), no sentido em
que a “injunção [obscena] tem de continuar invisível aos olhos públicos
para o Poder continuar funcionando” (ŽIŽEK, 2017, p. 293).
Zeca expressaria, dentro de uma própria dinâmica de precarização do
trabalho à margem do mercado de trabalho dito legal, essa ausência de
mediação entre Lei pública e obscenidade, com a qual encontramos no seu
ato de desprezo com o sofrimento a “relação conturbada com a Lei,
relacionandose com a perversão” (ŽIŽEK, 2016, p. 381). Nesse aspecto, o
filósofo esloveno pontua que a passagem para perversão está “na relação
entre Lei e jouissance”, em que, “para o perverso, a Lei emana da própria
figura que encarna a jouissance (portanto ele pode assumir diretamente o
papel de Outro obsceno como instrumento de jouissance)” (ŽIŽEK, 2016,
p. 380).
Vimos anteriormente que a voz narrativa pontua que Edgar Wilson
indica a Zeca para que se dirija ao escritório do Milo. Podemos
compreender que ele mesmo opta por não fazer o pedido, solicitando que
Zeca converse com Milo para que receba a ordem de cobrir a ausência dele
pelo próprio patrão, momento este que não é focalizado. A narração é
lacônica: “[Edgar] Vai até o setor de triparia e chama por Zeca, que
imediatamente acata sua ordem. É com o coração pesaroso que Edgar vê,
minutos depois, o rapaz, sorridente, seguir até o boxe de atordoamento ao
sair da sala de Milo” (MAIA, 2013, p. 12).
“Sorridente” é o modo como Zeca recebe a ordem, expressando que não
se incomodou de ser retirado do seu setor, mesmo com o provável acúmulo
de trabalho que isso resultará, pois sabe que nesse momento no setor de
atordoamento será uma satisfação excedente que obterá. O adjetivo
“sorridente” expressa o índice da atitude perversa, em que Žižek (2010)
assinala que o sujeito “encontra prazer no que lhe é imposto” (ŽIŽEK, 2010,
p. 130). Tratando sobre esse aspecto, o filósofo utiliza a seguinte passagem
de Lacan:
É o sujeito que se determina a si mesmo como objeto, em seu
encontro com a divisão da subjetividade. […] É no que o sujeito
se faz objeto de uma vontade outra, que não somente se fecha
130
mas se constitui a pulsão sadomasoquista. […] O sádico ocupa
ele próprio o lugar do objeto, mas sem saber disto, em
benefício de um outro, pelo gozo do qual ele exerce sua ação
de perverso sádico (LACAN apud ŽIŽEK, 2010, p. 130).
131
passagem. Desse modo, esperamos ter esclarecido que o assassinato não
surge “imotivadamente” (FISCHER, 2014), pois implica, precisamente, que
“a violência não é uma propriedade exclusiva de certos atos, distribuindo
se entre os atos e seus contextos, entre atividade e inatividade” (ŽIŽEK,
2010, p. 166).
Que sentido assume esse “contexto” sinalizado pelo filósofo esloveno e
que, aqui, estamos vinculando à lógica exploratória? Percebemos a função
do “ritual” como a busca de um “escudo imaginário contra o encontro
traumático com a realidade social” (ŽIŽEK, 2015, p. 82). Contudo, é um
“escudo” (ritual) pouco eficaz, tendo em vista o “horror desmedido”
contido no cotidiano como “brutalidade do Real da violência
desregrada” (ŽIŽEK, 2015, p. 82) da sua experiência de trabalho, como
resultado de uma violência sistêmica, que visa “a criação de indivíduos
excluídos e dispensáveis, uma violência que determina o que se passa na
realidade social dos indivíduos imbricados em interações e processos
produtivos” (ŽIŽEK, 2014, p. 26).
Assim sendo, verificase na questão do assassinato que a “desproporção
entre brevidade e importância do episódio é um fato eloquente de
composição”, para utilizar uma expressão de Schwarz (2014, p. 80) que
cabe como uma luva nesse contexto. Diante do exposto, esperamos ter
evidenciado que a leitura do assassinato de Zeca em chave materialista
lacaniana possibilita um ganho crítico, como ponto de partida para uma
interpretação que venha a demonstrar a importância da matéria ficcional
do trabalho para compreensão da composição do romance, uma vez que a
questão propriamente da atividade laboral passou muito tempo
desapercebida como tal para a crítica preocupada em esquadrinhar a
violência subjetiva das obras de Ana Paula Maia.
132
de trabalho excludente, caracterizado por uma fragilização da condição
salarial e por uma precariedade do trabalho tão intensa que as fronteiras
entre o legal e o ilegal se tornaram cada vez mais tênues. Encarar o
processo histórico da consolidação do mercado de trabalho é também
pensar as estruturas autoritárias de nossa experiência social. Com efeito, na
trajetória de Edgar Wilson encontramos índices de uma experiência
atravessada por uma “brutalidade do Real da violência desregrada” (ŽIŽEK,
2015, p. 82), em contexto de “colapso da modernização”.
Conforme sinaliza Žižek (2014), a violência sistêmica “consiste nas
consequências muitas vezes catastróficas do funcionamento regular de
nossos sistemas econômico e político” (ŽIŽEK, 2014, p. 12). Para o caso da
sociedade brasileira, esse aspecto precisará ser balizado dentro do
contexto do colapso do processo de modernização, que implica formas
regressivas de sociabilidade como índice da “impossibilidade crescente,
para os países atrasados, de se incorporarem enquanto nações e de modo
socialmente coeso ao progresso e ao capitalismo” (SCHWARZ, 1999, p.
160).
O conjunto das narrativas de Ana Paula Maia tem em Edgar Wilson uma
de suas personagens mais representativas. Alcançou espaço privilegiado na
construção artística da escritora, tornandose paradigmático da
experiência crônica de precariedade, de modo que a figura de Edgar Wilson
articula uma rede de ligações temáticas e formais que atravessam a obra
ficcional de Ana Paula Maia. É um personagem que possui uma forma de
subjetividade ainda a ser deslindada pela recepção crítica, e que por nossa
vez pretendemos realizar, aprofundando o que até agora expomos, via
Materialismo Lacaniano, tendo em vista, conforme bem sintetizou Safatle
(2020), que é importante reconhecer que “o trabalho nunca foi apenas uma
questão de produção de riqueza e de valor”, esclarecendo ainda que “a
dominação no trabalho não está ligada apenas à impossibilidade de os
produtores imediatos disporem de sua própria produção e dos produtos
por eles gerados” (SAFATLE, 2020, p. 160, 162), de modo que a prática social
do trabalho desenvolve formas de vida e modos de socialização e
133
subjetivação interconstitutivos.
Referências
134
SCHWARZ, Roberto. O sentido histórico da crueldade em Machado de
Assis. In: As ideias fora do lugar: ensaios selecionados. São Paulo:
Penguin Classics Companhia das Letras, 2014, p. 6581.
ŽIŽEK, Slavoj. Como ler Lacan. Tradução de Maria Luiza X. Borges. Rio de
Janeiro: Zahar, 2010.
ŽIŽEK, Slavoj. O absoluto frágil: ou por que vale a pena lutar pelo legado
cristão? Tradução de Rogério Bettoni. Rio de Janeiro: Zahar, 2015.
135
136
O TRISTE FIM NAS TEIAS DA VIOLÊNCIA SISTÊMICA E
SIMBÓLICA DA LINGUAGEM: O ESSENCIAR DA
LINGUAGEM DE LIMA BARRETO
Maria Betânia da Rocha de Oliveira
Considerações Iniciais
137
de um país que transitava de um sistema monárquico para a República “a
custas de graves desequilíbrios” políticos, econômicos e sociais. Esses
aspectos foram primordiais para as minhas pesquisas.
O processo metodológico de construção desta pesquisa seguiu o
percurso de seleção e revisão da bibliografia a partir das leituras e dos
estudos de obras impressas e digitais que forneceram os dados essenciais
para a construção do texto. Por se tratar de uma pesquisa de cunho
qualitativo, recorremos às leituras da Literatura e do Materialismo
Lacaniano, como também fizemos – mas não em profundidade –, estudos
da Filosofia, Sociologia e Psicologia, cujo objetivo era averiguar a relação
entre mundo, pessoas, acontecimentos e lugares, em suas formas de
representação social e literária.
A partir dessa concepção, relacionei as violências expostas na narrativa
com o funcionamento da Tríade – Simbólico, Imaginário e Real – para
observar o essenciar da linguagem utilizada de Lima Barreto, a partir da
relação que Žižek faz com as palavras e sua capacidade de “essenciar”.
“Tradicionalmente, a ‘essência’ se refere a um núcleo estável que garante a
identidade de uma coisa e o ‘essenciar’ é o ato de criar essências, que é o
trabalho da linguagem” (ŽIŽEK, 2014, p. 63).
Em O destino da literatura5, texto publicado em 1921, Lima Barreto
afirma que a literatura enquanto “Arte” é um fenômeno social e que, nisso,
reside sua importância, uma vez que os atributos externos da forma devem
formar uma unidade com “a exteriorização de um certo e determinado
pensamento de interesse humano, que fale do problema angustioso do
destino em face do Infinito e do Mistério que nos cerca, e alude às questões
de nossa conduta de vida” (BARRETO, 2017, p. 272).
Em outras palavras, a literatura, para Lima Barreto, é uma arte que deve,
por meio da forma, transformar o texto para além da interpretação: “mais
5. O destino da literatura foi o texto que Lima Barreto escrevera para ministrar aquela que seria
a sua primeira palestra que seria realizada em São José do Rio Preto, espécie de sede da Comarca
da cidade Mirassol, onde estivera hospedado por alguns dias na casa do então amigo, dr. Ranulfo.
A palestra não ocorreu, mas foi publicada na Revista Souza Cruz, na edição de outubronovembro
de 1921. (SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto: triste visionário. 1. ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 2017.)
138
que isso, tornálo assimilável à memória, de incorporálo ao leitor, em
auxílio dos seus recursos próprios, em auxílio de sua técnica” (2017, p.
275). Ademais, nesse texto, Lima Barreto registra a literatura como uma
forma de Arte capaz de contribuir para a felicidade de um povo, de uma
nação e da humanidade, daí a justificativa de que todo fenômeno artístico é
um fenômeno social ou sociológico, conforme veremos a seguir.
139
um determinado período histórico e social.
Sobre a escrita de Lima Barreto, Candido (2000, p. 41) declara que a
representação direta da realidade corresponde à junção dos seus
princípios ideológicos às problemáticas sociais e políticas da época. Esse
teórico destaca essas características como responsáveis pela elevação do
seu processo de criação literária e o define como um ficcionista do outro,
cuja escrita revela “uma inteligência voltada com lucidez para o
desmascaramento da sociedade e a análise das próprias emoções, por meio
de uma linguagem cheia de calor” (CANDIDO, 2000, p. 39), conforme
podemos atestar na passagem em que o narrador de Policarpo Quaresma
descreve o momento em que o personagem percebe as mazelas que
circundam a vida dos que vivem à mercê de um sistema capitalista e
excludente:
Pelos seus olhos passaram num instante aquelas faces
amareladas e chupadas que se encostavam nos portais das
vendas preguiçosamente; viu também aquelas crianças
maltrapilhas e sujas, d'olhos baixos, a esmolar disfarçadamente
pelas estradas; viu aquelas terras abandonadas, improdutivas,
entregues às ervas e insetos daninhos; viu ainda o desespero de
Felizardo, homem bom, ativo e trabalhador, sem ânimo de
plantar um grão de milho em casa e bebendo todo o dinheiro
que lhe passava pelas mãos – este quadro passoulhe pelos
olhos com a rapidez e o brilho sinistro do relâmpago; e só se
apagou de todo, quando teve que ler a carta que a sua afilhada
lhe mandara (BARRETO, 1993, p. 114).
140
Mundo” (BARRETO, 2017, p. 279). Sobre o recurso utilizado por Lima
Barreto para transformar as experiências humanas em literatura,
destacamos as concepções de Oakley (2011, p. 5) quando faz referência ao
desejo barretiano de comunicar ideias à humanidade e pela humanidade
por meio de uma inteligência considerável que é expressa por meio da
linguagem, fato esse que marca a superioridade dos homens sobre os
animais.
Para Lima Barreto, é a inteligência que, por meio da linguagem, fornece
ao homem a capacidade de progredir e se desenvolver na sociedade, já que
a linguagem é o seu maior instrumento de comunicação. Além disso, a
linguagem permite “a multiplicação do pensamento do homem, da família,
das nações e das raças, e, até mesmo, das gerações passadas graças à escrita
e à tradição oral que guardam as cogitações e conquistas mentais delas e as
ligam às subsequentes” (BARRETO, 2017, p. 279). A linguagem, enquanto
literatura, amplia “qualquer forma da palavra escrita.” Na literatura de Lima
Barreto, o processo criativo se apresenta como um meio para garantir a
própria unidade da narrativa.
O conjunto da obra do escritor apresenta personagens que representam
indivíduos em conflito com o sistema e, quando são postos em conflitos, se
misturam entre as camadas sociais e as esferas culturais, destacandose
como menos favorecidos em busca de uma vida diferente das regras
impostas pela classe dominante, conforme observamos na passagem que
expõe a reação de Policarpo quando ele fora, severamente, insultado pelo
coronel durante o trabalho. A linguagem expressa pelo narrador atesta o
processo criativo que envolve as formas de violências, o que é, ao mesmo
tempo, uma violência do Sistema e da linguagem, mas que registra um certo
grau de poeticidade.
Saiu abatido, como um criminoso, do gabinete do coronel, que
não deixava de olhálo furiosamente, indignadamente,
ferozmente, como quem foi ferido em todas as fibras do seu
ser. Saiu afinal. Chegando à sala do trabalho nada disse: pegou
no chapéu, na bengala e atirouse pela porta afora,
cambaleando como um bêbado. Deu umas voltas, foi ao livreiro
buscar uns livros (BARRETO, 1993, p. 61, grifos nossos).
141
Fazse necessário destacar, nessas passagens, o recurso utilizado por Lima
Barreto para transformar as experiências humanas em literatura, por meio
da linguagem utilizada para marcar a superioridade de alguns homens
sobre outros em seus atos de comunicação. A linguagem é o maior
instrumento de comunicação, mas, segundo Žižek (2010), para se
movimentar no mundo Simbólico, o homem, ao interagir com os outros,
deve obedecer a certas regras exteriores de forma “mecânica”, sem
partilhar o seu mundo interior. E isso observamos nas ações do
personagem diante da situação a que foi exposta. Žižek (2010) reitera que
“de vez em quando uma certa dose de alienação se torna indispensável
para uma coexistência pacífica”, principalmente quando a linguagem, em
sua infinita possibilidade de aplicação, coloniza o homem ao lhe dar uma
falsa sensação de coesão à realidade (ŽIŽEK, 2014, p. 58).
Segundo Lima Barreto (2017, p. 279), quando aplicada à literatura, a
linguagem amplia “qualquer forma da palavra escrita”. Assim, a formação do
personagem Policarpo Quaresma se constitui ao longo da narrativa a partir
de uma linguagem simbólica que explora o homem, em seu ambiente
social, como produto de dominação e exploração dos mais fortes sobre os
mais fracos, social, intelectual e financeiramente.
Uma tarde de sol – sol de março, forte e implacável – aí pelas
cercanias das quatro horas, as janelas de uma erma rua de São
Januário povoaramse rápida e repentinamente, de um e de
outro lado. Até a casa do general vieram moças à janela! Que
era? Um batalhão? Um incêndio? Nada disso: o Major Quaresma,
de cabeça baixa, com pequenos passos de boi de carro,
subia a rua, tendo debaixo do braço um violão impudico.
(BARRETO, 1993, p. 20 grifos nossos).
142
violência subjetiva, que é visível, se alastra, e “Até da casa do general vieram
moças à janela!”; enquanto a palavra ‘até’, ao delimitar, amplia o espaço que
o evento atingira, já que, paradoxalmente, funciona como preposição,
indicando o espaço final e, ao mesmo tempo, funciona como advérbio de
inclusão, no sentido de que também vêm moças da casa do General. Já as
expressões interrogativas ‘Que era? Um batalhão? Um incêndio?’ fazem
alusão ao engodo fascinante dessa forma de violência subjetiva que torna
invisíveis os contornos desses cenários realmente violentos:“Nada disso: o
Major Quaresma, de cabeça baixa, com pequenos passos de boi de
carro, subia a rua, tendo debaixo do braço um violão
impudico.” (BARRETO, 1993, p. 20, grifos nossos).
Mas se, por um lado, essa forma de linguagem adotada pelo narrador
parece negar a sua postura de narradoronisciente que demonstra
conhecer tudo, inclusive os pensamentos mais íntimos de Policarpo, por
outro ângulo, esse mesmo narrador “dá o passo para trás que nos permite
identificar a violência objetiva, que é invisível” (ŽIŽEK, 2010, p. 17), que
perpassa a realidade social de seu personagem quando confronta sua
fraqueza moral, como em: “de cabeça baixa, com pequenos passos de
boi de carro”, com as expressões adjetivadas de dominação: “forte e
implacável” era o sol e “impudico” o violão. A pequenez do personagem
expressa no trecho, ainda é, violentamente, acentuada pela diminuição do
respeito e da consideração que os vizinhos lhe dedicam quando já se
manifesta a perda de sua lucidez. Fatos como esses sustentam a análise da
obra na perspectiva žižekiana, pois problematizam os mecanismos de
estruturação da linguagem, mostrando que as ideologias dominam o
indivíduo sem que ele se dê conta disso.
Tais observações comprovam a viabilidade de analisar uma obra do
início do século XX a partir de uma teoria contemporânea, como reforçam
o trabalho criativo nas produções barretianas, o que chamamos aqui de o
“essenciar da linguagem”. No trecho a seguir, observamos mais esse
processo de criação artística.
É verdade que a guitarra vinha decentemente embrulhada em
papel, mas o vestuário não lhe escondia inteiramente as formas.
143
À vista de tão escandaloso fato, a consideração e o
respeito que o Major Policarpo Quaresma merecia nos
arredores de sua casa, diminuíram um pouco. Estava
perdido, maluco, diziam (BARRETO, 1993, p. 20, grifos
nossos).
144
precisamente ela que sustenta a normalidade do nível zero contra a qual
percebemos algo como subjetivamente violento”. Para Žižek, é por causa
da ideologia subjacente ao discurso liberal que a violência intrínseca ao
sistema capitalista pode ser ocultada e percebida como paz. Isto é, a
própria ideologia é um modo de violência, vista como um mal necessário a
ser suportado.“Na era contemporânea, é o próprio capital que cria o pano
de fundo essencial da realidade” (ŽIŽEK; DALY, 2006, p. 16).
Dentro dessa mesma violência simbólica da linguagem, observamos que
a exposta pacificidade de Policarpo Quaresma se confronta com a aparente
recusa aos atos de violência que permeiam sua vida, justamente porque são
essas formas de violência que definem o núcleo violento da existência
humana, quando de sua entrada no Simbólico. Nesse viés, o fato de
Policarpo ser de natureza calma, tranquila e pacífica, além de destoar de
suas convicções de força e de poder quanto à organização política da
pátria, confirma que os atos de nãoviolência fornecem o pano de fundo
necessário para formação de sua preferência pelos intentos violentos
(ŽIŽEK, 2014, p. 59). Na narrativa, percebemos como os eventos violentos
estavam impregnados em Policarpo, em sua forma subjetiva, de forma que
não só sustentavam a aparente normalidade, como também referenciavam
seu ideal de patriotismo.
Após sofrer todas as agressões quando de sua internação no hospício,
nosso protagonista surge ressignificado e, novamente, empenhado em seu
projeto de reformar a Pátria, aceita a ideia da afilhada Olga e compra um
sítio, cujo terreno ‘amanhado’ só precisava de boas sementes.
De origem controversa, ‘amanhado’ – de a + manha + ar – pode ser
aplicado, dependendo da regência verbal, a diversos contextos: “cultivar”,
“colocar em ordem”, “preparar para determinado fim”, “arranjar”, tanto no
sentido de melhorar a aparência quanto no intuito de obter algo; além
desses significados, amanhar pode fazer referência a “adaptarse” e/ou “tirar
proveito”, e todos se encaixam aos projetos de Policarpo.
O termo utilizado para definir o terreno por onde Policarpo pisaria nos
próximos dias confirma o princípio estabelecido para colocar em ação o
145
projeto do personagem para atingir o seu ideal de pátria pela reforma
agrária e, ainda, comprova as inconstâncias e as dualidades que envolviam a
vida do personagem, uma vez que a forma adjetivada como o verbo se
apresenta coloca toda carga de significação na oração seguinte: “só
precisava de boas sementes”. Isto é, ao limitar o estado do terreno à
utilização de “boas sementes”, a linguagem reafirma a dialética da violência
versus paz que envolvia a existência de Policarpo Quaresma.
A segunda parte da trama apresenta, no título do primeiro capítulo,“No
sossego”, uma imagem oposta à representação da violência objetiva –
sistêmica e simbólica – que Policarpo sofrera no final da primeira unidade.
Essa forma de violência ainda é acentuada com o uso do elemento
prepositivo “no”, cujo significado pode fazer referência ao lugar – o sítio
que Policarpo adquirira –, como também pode se referir ao fato de que ele
estava ali para viver “sossegadamente”, logo após ter presenciado e sofrido
a mais terrível das violências:“Saiu o major mais triste ainda do que vivera
toda a vida. De todas as coisas mais tristes de ver, no mundo, a mais triste é
a loucura; é a mais depressora e pungente” (BARRETO, 1993, p. 74). Em
outras palavras, o sítio, cujo nome é “Sossego”, era o lugar ideal para
Policarpo viver sossegadamente, como expresso no título “No sossego”.
Novamente, engajado em um projeto nacional, Policarpo não vê a força
destruidora do capital que age por trás das condições existentes, cuja
visibilidade mantém a força da violência sistêmica na invisibilidade, como
percebemos na citação a seguir:
Ele foi contente. Como era tão simples viver na nossa
terra! Quatro contos de réis por ano, tirados da terra,
facilmente, docemente, alegremente! Oh, terra abençoada!
Como é que toda a gente queria ser empregado público,
apodrecer numa banca, sofrer na sua independência e no seu
orgulho? Como é que preferia viver em casas apertadas,
sem ar, sem luz, respirar um ambiente epidêmico, sustentarse
de maus alimentos, quando se podia tão facilmente obter uma
vida feliz, farta, livre, alegre e saudável? (BARRETO, 1993, p. 75
76, grifos nossos).
146
Quaresma amparado, dessa vez, no trabalho com a terra, isto é, se o homem
poderia ser feliz longe da cidade, afastado dos malefícios que o serviço
público oferecia, por que não opta pela vida simples e feliz no campo? A
linguagem utilizada é a linguagem do mundo moderno, que seduz e
violenta o indivíduo. É negativa. O narrador aponta os benefícios da vida no
campo, por meio dos advérbios “facilmente, docemente, alegremente”, cuja
sequência é evidenciada no final do período com os adjetivos “feliz, farta,
livre, alegre e saudável”. A vida na cidade é descrita a partir das condições
do trabalho – o carreirismo político – que condiciona o indivíduo a
“apodrecer numa banca”, preso a falsos conceitos de privilégios, ou seja,
para permanecer no trabalho e garantir o posto e/os recursos, tudo fazia. O
homem tornase dependente da classe dominante e esquece seus valores,
como observamos em: “O doutor Florêncio era o único paisano da roda.
Engenheiro e empregado público, os anos e o sossego da vida lhe tinham
feito perder todo o saber que porventura pudesse ter tido ao sair da escola.
Era mais um guarda de encanamentos do que mesmo um
engenheiro” (BARRETO, 1993, p. 7576).
A violência da linguagem também pode ser percebida nas expressões
“viver em casas apertadas, sem ar, sem luz, respirar um ambiente
epidêmico” (BARRETO, 1993, p. 63, grifos nossos), uma vez que o problema
não está na materialidade dos termos e sim na imagem projetada sobre
como o indivíduo experiencia a si mesmo nesse contexto – o
funcionalismo público prende, sufoca e cega o homem, eis aqui o trabalho
de “essenciar” da linguagem de Lima Barreto. Isso pode ser explicado a
partir da relação que Žižek faz com as palavras e sua capacidade de
“essenciar”. “Tradicionalmente, a ‘essência’ se refere a um núcleo estável
que garante a identidade de uma coisa e o ‘essenciar’ é o ato de criar
essências, que é o trabalho da linguagem” (ŽIŽEK, 2014, p. 63). E a escrita de
Barreto demonstra esse trabalho da linguagem que se faz violenta por meio
de expressões aparentemente pacíficas e sem grandes estruturações
linguísticas.
Indiferente à violência que a vida no campo provoca, Policarpo segue
147
seu plano de reformar a agricultura: compra livros, estudaos, compra
instrumentos, tenta utilizálos, mas muitos ficam “jogados”,“esquecidos”, e,
numa linguagem poética, os instrumentos adquiridos para ajudar a
reformar a pátria, assim como Policarpo, eram igualmente violentados pela
indiferença e pela solidão que envolviam suas “tristes” vidas:
O barômetro aneroide continuava a um canto a dançar o seu
ponteiro sem ser percebido; o termômetro de máxima e
mínima, legítimo Caselha, jazia dependurado na varanda sem
receber um olhar amigo; a caçamba do pluviômetro estava no
galinheiro e servia de bebedouro às aves; só o anemômetro
continuava teimosamente a rodar, a rodar, já sem fio, no
alto do mastro, como se protestasse contra aquele desprezo
pela ciência que Policarpo representava (BARRETO, 1993, p.
107, grifos nossos).
148
contornava, ou se exaltava, ora se resignava e se reconfortava, por isso
precisa “explodir”, como nos primeiros dias em que tentava, em vão, usar a
enxada:“O major enfureciase, tentava outra, fatigavase, suava, enchiase de
raiva e batia com toda a força” (BARRETO, 1993, p. 78). Os conhecimentos
adquiridos às custas de muita dedicação não condiziam com a brutalidade
que o trabalho braçal exigia dele naquele projeto, e, dessa forma, a natureza
dessa narrativa é violenta em sua linguagem simbólica e sistêmica.
Em outro momento, quando Policarpo estava tranquilo, sempre
depois do jantar, quando ia atirar migalhas de pão às aves, o
narrador nos presenteia com os arroubos de violência que
agradavam ao personagem: “Ele gostava desse espetáculo,
daquela luta encarniçada entre patos, gansos, galinhas,
pequenos e grandes. Davalhe uma imagem reduzida da vida e
dos prêmios que ela comporta” (BARRETO, 1993, p. 79, grifos
nossos). Tal como no seu interesse em ficar próximo às coisas
bélicas, Policarpo encontrara no sítio um evento em que podia
associar à luta sangrenta os dois polos que separam os homens
em sua existência social – os que vencem e os vencidos: “Era
onde estava bem ao aspirar aquele hálito de guerra” (BARRETO,
1993, p. 79).
149
ele mesmo provocava (BARRETO, 1993, p. 78, grifos nossos).
Considerações finais
150
a partir da capacidade – ou incapacidade – da arte de sair fora de si mesma”.
Ou seja, a literatura real de Lima Barreto se mistura com a ficção, de forma
que a verdade da arte ultrapassa os limites do imaginário. E isso confere ao
texto a essência do real sob o ponto de vista ideológico do autor.
A sua literatura, como expressão de liberdade, já nasce comprometida
com os valores ideológicos que o autor espontaneamente incorporou à sua
visão do mundo, que pode ser analisada a partir das relações entre
ideologia e obra de arte literária em sua ficção, embora ideologia, para
Badiou (2002), não seja obra de arte literária, mas pode uma ideologia gerar
uma obra de arte literária autêntica, desde que se resguarde a autonomia do
processo estético, como ocorre na ficção barretiana, já que a realidade de
seus personagens representa uma nova realidade, que é resultado de uma
criação estética.
Nessa perspectiva, apresentamos as concepções de Magalhães (2002)
quando associa o fazer estético da literatura às condições das práticas de
produção na sociedade. Para essa estudiosa da literatura, “a estética, a
ciência e a prática cotidiana refletem a mesma realidade objetiva. Embora
os resultados sejam distintos quanto à forma e ao conteúdo, há relações
fecundas e recíprocas entre esses campos que, inclusive, exercem
estímulos uns sobre os outros” (MAGALHÃES, 2002, p. 6869).
Nessa perspectiva, destacamos que o fazer estético de Lima Barreto não
é apenas um trabalho com a escrita, mas também um modo particular de
expressão da arte, e essa característica explica a elaboração especial (arte)
das palavras num determinado texto, pois elas ganham significados amplos,
figurados e simbólicos que servem não apenas para informar um fato, mas
também para sensibilizar e ultrapassar os limites da simples reprodução da
realidade, isto é, Lima Barreto vai além da mera informação ou de uma
proposta de reflexão sobre a condição humana.
Enfim, só a arte permite, ao homem, a descoberta de novas dimensões e
novos sentidos para a palavra. Mas, enquanto arte, há, na literatura, uma
relação muito forte entre o homem e sua conjuntura histórica. É o homem
que constrói a sua história, porém ele está sujeito a receber noções
151
coletivas de verdades, instituições, moralidades e conceitos, e estes estão
sempre se renovando, o que provoca uma relação interativa entre o
homem e o seu tempo, acarretando, consequentemente, uma
transformação artística constante, que, em Lima Barreto, permanece atual.
Numa sociedade dividida em classes desiguais, o reflexo da vida que
proporciona a literatura leva necessariamente a marca das ideias e das
posições ideológicas do seu autor. Em outras palavras, a literatura de Lima
Barreto atua e participa, a seu modo, como é evidente, na luta de classes, e,
apesar de não ser sempre de forma consciente, amplia os significados, cria
um universo particular, o que caracteriza uma realidade subjetiva e
ficcional.
Referências
BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. 11. ed. São Paulo:
Ática, 1993.
152
entre o Imaginário e o Real de Zizek: O triste fim nas teias da
violência sistêmica e simbólica da linguagem. 166 f. Tese (Doutorado em
Letras) Universidade Estadual de Maringá, Programa de PósGraduação
em Letras PLE.Tese de Doutorado. Maringá, 2020.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto: triste visionário. 1. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2017.
ŽIŽEK, Slavoj. Como ler Lacan. Tradução Maria Luzia X. de A. Borges. Rio
de Janeiro: Zahar, 2010.
ŽIŽEK, Slavoj. Violência: seis reflexões laterais. 1. ed. São Paulo: Boitempo,
2014.
153
154
A ESCRITA HISTÉRICA DE CLARICE LISPECTOR
Diego Luiz Miiller Fascina
155
nessa jornada, terá a linguagem longamente indagada em A paixão
segundo G.H e uma posterior radicalização da mesma em Água viva. No
entanto, risco também se refere ao projeto audacioso de uma escrita que se
propõe a dizer o indizível.
Esse amadurecimento artístico, como afirmamos anteriormente, pode
ser visto pelo prisma do materialismo lacaniano. Ao nos apossarmos dos
estudos a respeito dos quatro discursos lacanianos, é possível
compreender que os três primeiros romances funcionam como Discurso
do Mestre, situados tranquilamente na posição revolucionária que o
movimento modernista pregou. No entanto, a linguagem da autora passa
por um processo de histericização e, a partir de A maçã no escuro, vemos,
crescentemente, o Discurso do Mestre ser substituído pelo Discurso da
Histérica, questionando essa linguagem já estabelecida, indagando novas,
bem como o próprio processo ficcional.
Em determinado ponto de sua teoria, Jacques Lacan (1992) se
questionou acerca do que significa tomar e fazer uso da palavra e quais as
implicações desse ato. Para o psicanalista francês, afirmar que alguém toma
a palavra implica considerar que este alguém se coloca num determinado
espaço, ocupando certo lugar e que, ao usar a palavra, faz uso da língua,
endereçandoa a alguém. Há também certo poder, no sentido de que um
controle é exercido enquanto se age sobre o outro.
Partindo dessa realidade, Lacan (1992) construiu uma proposição
teórica, apresentando os quatro discursos que organizam, sem
necessariamente nos darmos conta, as nossas palavras e que criam/
questionam relações de poder a partir do lugar ocupado pela voz
questionadora. São eles: o Discurso do Mestre (ou do Senhor ou Amo), o
Discurso Universitário (ou do Saber), o Discurso do Analista e o Discurso
da Histérica. A noção de discurso visa à inscrição daquilo que funda a
palavra nos seus efeitos. Ele permite a percepção do que se passa quando
se faz uso da palavra.
Roberto Harari (1990) afirma que os quatro discursos permitem
entender a posição que o analista ocupa. Como o crítico aponta:
156
o analista deseja parecer aquilo que não é, o que não implica a
subjetividade, nem os afetos, e nem sequer a situarse como
primeira pessoa que se encarrega do enunciado – quando se
“interpreta” a partir da contratransferência e se produzem
somente confissões que pouco ou nada têm a fazer na direção
da cura analítica. Porque, se o usamos como exceção, é devido a
uma manobra tática incluída numa estratégia. O desejo do
analista pressupõe uma estrutura da interpretação na qual o
analista se “submerge”; assim não mantém relação alguma com
uma inefável, inobjetivável contratransferência afetiva
(HARARI, 1990, p. 43).
157
beneficiaremos com isso ou por alguma outra razão desse tipo – mas
porque ele assim o diz. Não há razão para que ele tenha poder: ele
simplesmente tem” (FINK, 2009, p. 161).
No Discurso da Universidade, o saber ocupa o lugar de agente para
controlar o objeto, enquanto o mestre ocupa o lugar da verdade. O saber
desse tipo de discurso vai, inteiramente, contra a ideia de inconsciente,
imperando, no lugar, todo tipo de razão. A princípio, Lacan (apud FINK,
1998) associa esse discurso com a formalização científica e,
posteriormente, faz ligações com o Discurso da Histérica. As instituições de
tipo clerical ou burocrática são exemplos significativos desse tipo de
discurso.
Mais um quarto de rotação e há o Discurso do Analista. Nesse discurso, é
o analista que funciona como objeto a, provocando a palavra do
analisando. A análise supõe um saber no lugar da verdade e o analista
interroga o sujeito na sua divisão, “precisamente naqueles pontos onde a
clivagem entre o consciente e o inconsciente aparece: lapsos de língua,
atos falhos e involuntários, fala ininteligível, sonhos etc.” (FINK, 2009, p.
166).
Finalmente, e para nosso interesse concreto, o Discurso da Histérica é o
quarto gerado pela sucessão de voltas. Os três discursos citados
preocupamse em estabelecer formas particulares de vínculos sociais por
meio da relação de palavras. É problemático situar a Histérica diante deles
pelo fato de que, na clínica, a histeria tem uma postura que mais parece a
recusa de um vínculo.
É certo que o Discurso da Histérica ultrapassa a histeria como neurose,
pelo fato de que o sujeito barrado corresponde não a uma histérica, mas a
qualquer sujeito desejante que interroga o Mestre por um suposto saber
acerca do objeto. No entanto, Lacan não exclui esta, utilizandoa na
estrutura elementar desse quarto discurso. Dessa maneira, ao considerar a
estrutura clínica, o psicanalista não pretende discutir questões a respeito
de perfis patológicos, mas, sim, a respeito do laço discursivo em jogo.
Não importa, para tal fim, que “seja”, por exemplo, histérico ou
obsessivo; o que importa é que o dispositivo analítico funcione.
158
Se funciona, deve histerizar o analisando, sem que se trate de
nenhum tipo de manobra em particular. Em virtude do desejo
do analista como suporte, com suas quedas, desfalecimentos
etc., se produz a histerificação do analisando, para além de sua
patologia singular. Assim, colocarseá na posição do
questionador, do demandante, o que fica indicado pelo fato de
ele ser, no matema, atravessado por uma barra (HARARI, 1990,
p. 44).
159
que ocupa o lugar da verdade, e o objetivo é isolar, se livrar do
significante mestre que estruturou o inconsciente (político
ideológico) do sujeito (ZIZEK, 2012, s/p.).
160
mundo automatizado e repleto de medo em se rebelar contra o que é
historicamente cultuado. A tentativa de assassinar a esposa se transforma
em um ato decisivo e a linguagem põese como denunciadora dessa
tentativa de reconstruir seu modelo de vida. Isolandose da vida urbana e
refugiandose na fazenda, o narrador aponta o itinerário do homem:
Sua reconstrução tinha de começar pelas próprias palavras,
pois palavras eram a voz de um homem. Isso sem falar que
havia em Martim uma cautela de ordem meramente prática: do
momento em que admitisse as palavras alheias,
automaticamente estaria admitindo a palavra “crime” – e ele se
tornaria apenas um criminoso vulgar em fuga. E ainda era muito
cedo para ele se dar um nome, e para dar um nome ao que
queria (LISPECTOR, 1972, p. 144).
161
entremeios do romance.
O próprio silêncio que perpassa a narrativa de A maçã no escuro pode
ser entendido como um enfrentamento do Discurso da Histérica à
linguagem padrão. Como diz Eni Orlandi (1997), o silêncio não fala, ele
significa. Há, no romance, a recorrência de elipses, implícitos e outras
figuras que colaboram para o mutismo de Martim e das primas.Todavia, é a
incompletude que cria a atmosfera nebulosa do texto, isto é, o silêncio
preside a possibilidade de histericizar a linguagem, pois quanto mais falta,
mais possibilidades de sentidos se apresenta, de modo que o Discurso do
Mestre se anula mediante a polissemia não apenas das palavras “crime”,
“salvação”, “piedade”, mas também dessa dispersão de sentidos que o
silêncio ocasiona.
Os fragmentos a seguir comprovam o que estamos a discutir: “aquele
homem rejeitara a linguagem dos outros [...] e no entanto, oco, mudo,
rejubilavase” (LISPECTOR, 1972, p.28), pois “nunca se lembrara de
organizar sua alma em linguagem, ele não acreditava em falar – talvez com
medo de, ao falar, ele próprio terminar por não reconhecer a mesa sobre a
qual comia” (LISPECTOR, 1972, p. 34).
Ainda sobre o silêncio, importa dizer que este se desenvolve não apenas
nas relações humanas. Martim teve de apreender as vontades dos animais
no curral num difícil quietismo, e Vitória, ao observar as flores do jardim,
diz a Ermelinda: “já que moramos junto tive que aprender sua
linguagem” (LISPECTOR, 1972, p. 66).
A respeito do jardim, era lá que o protagonista passava boa parte do
tempo, pois “o silêncio das plantas estava no seu próprio diapasão: ele
grunhia aprovando. Ele que não tinha uma palavra a dizer. E que não queria
falar nunca mais” (LISPECTOR, 1972, p. 71). Em relação às palavras, a
primeira desconstrução proposta por Martim é a de “crime”. O
protagonista só conseguirá passar por ela quando crime não for mais crime
no sentido sociocultural, mas, sim, um ato transgressor e necessário:
“Crime”? Não. “O grande pulo” – estas sim pareciam palavras
dele, obscuras com o nó de um sonho. Seu crime fora um
162
movimento vital involuntário como o reflexo do joelho à
pancada: todo o organismo se reunira para que a perna, de
súbito incoercível, tivesse dado o pontapé. E ele não sentira
horror depois do crime. O que sentira então? A espantada
vitória (LISPECTOR, 1972, p. 29).
163
linguagem, os próximos passos e as relações do protagonista, pois, como já
afirmamos, a questão do sujeito ancorado nesse discurso é animar o Outro
a produzir um saber, fazêlo trabalhar.
A introdução do Discurso da Histérica, no romance, dá início ao
reconhecimento de Martim como novo ser. Após a palavra “crime”, outras
palavras ganham novos significados. Não apenas o protagonista, mas as
demais personagens também passarão por esse ato de histericizar o
discurso vigente, como podemos perceber no momento em que Vitória,
sem conseguir distinguir o sentimento pelo forasteiro, era “tocada por
aquilo a que não se sabe que nome dar” (LISPECTOR, 1972, p. 205) e, em
outros momentos, quando alude a seu estado de espírito:“acho que isso é
ser feliz” (LISPECTOR, 1972, p. 255).
No entanto, percebese que o questionamento oriundo desse discurso
faz com que o protagonista tenha dúvidas sobre o poder dessas palavras,
bem como sobre a reapropriação delas em sua vida:
Salvação? Seu coração então bateu com força como se os
limites tivessem caído. Pois, quem sabe, talvez fosse esta a
grande barganha que ele poderia fazer – a salvação.Tudo então
que em Martim era individual, cessou. Ele só queria agora se
agregar aos salvos e pertencer – o medo levarao a isso. À
salvação. E com o coração ferido de surpresa e alegria, pareceu
lhe por um instante que acabara de encontrar a palavra. Seria à
procura dessa palavra que ele saíra de casa? Ou de novo seriam
apenas os restos de uma palavra antiga? Salvação – que palavra
estranha e inventada, e o escuro o rodeava. Salvação? Ele se
espantou. E se fosse esta a palavra – seria então assim que ela
acontecia? Então tivera ele que viver tudo o que vivera para
experimentar o que poderia ter sido dito numa só palavra? Se
essa palavra pudesse ser dita, e ele ainda não a dissera. Andara
ele o mundo inteiro, somente porque era mais difícil dar um só
e único passo? Se esse passo pudesse jamais ser dado!
(LISPECTOR, 1972, p. 195)
164
capaz de abarcar a aventura de Martim. Primeiramente, pelo fato de negar o
uso de diálogos, preferindo aludir ou imitar os sons dos animais. Mesmo
perdendo o interesse pela linguagem convencional, pois sabia o quão vazia
de significado ela pode ser, pretende esquecêla; no entanto, negando o
diálogo, faz uso do monólogo interior com as mesmas gastas palavras,
duplicandoas, dessa forma, em seus próprios diálogos.
Em termos lacanianos, é o Discurso da Histérica querendo saber sempre
mais e expondo, de forma mais evidente, esse furo no significante. Tal
discurso quer saber sobre a verdade de seu gozo; no entanto, a dramática
falência da linguagem é própria do Discurso da Histérica, que, ao
questionar o tempo todo essa verdade, se dá conta de que o Outro não sabe
de nada. Para clarificar esse exemplo, podemos imaginar um paciente
questionando, incessantemente, seu analista e que, por fim, percebe que
este não pode adivinhar, de fato, seus pensamentos.
Em outras palavras, e endossando o que Benedito Nunes (1995) discute
a respeito da linguagem de A maçã no escuro, percebemos que, na “busca
de palavras novas ou de novos significados para seu ato, à luz dos quais
reinterpreta um passado comprometedor, o herói apenas conquista, por
toda identidade, uma máscara verbal, retórica” (NUNES, 1995, p. 51), de
maneira que as palavras, ao mesmo tempo em que o formam, o deformam,
pois a linguagem desse romance equilibrase num misto de simulação e
ocultamento – características que, também, podem ser lidas como
presentes no Discurso da Histérica – apontando para uma linguagem que
não pode se mostrar sem se inventar.
Isso quer dizer, de maneira mais simplista, que o Discurso da Histérica
funciona, nesse romance, como fonte de indagação. Martim e as primas
questionam a existência e a linguagem; esta não dá conta de reproduzir os
desejos das personagens, de modo que o que se cria é uma linguagem
anticonvencional, que é mais bem representada quando cunhada de
Histérica, justamente, porque tenta invalidar as teorias do Mestre (neste
caso, a linguagem utilizada naquele mundo amorfo, com a qual Martim
rompe e, de maneira geral, também remodela a linguagem utilizada nos três
165
primeiros romances da autora).
Assim, podemos supor que A maçã no escuro é um marco entre os
romances antecedentes e chave de leitura para os que surgirão na
sequência. A linguagem dá um salto na estrutura psicológica dos fatos
narrados, o que tonifica as características modernas iniciadas com Perto do
coração selvagem. Dito em outras palavras, o mundo subjetivo que se
inicia com o primeiro romance toma proporção fortemente acentuada em
A maçã no escuro, que, por sua vez, apontará a maneira pela qual G.H. e
Lóri, de Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, empreenderão suas
maneiras de verificar a vida e transformála em linguagem, nem sempre
compreendida de imediato.
O passo que se segue é, então, a linguagem de A paixão segundo G.H.,
romance publicado em 1964. A protagonista, assim como Martim, também
realizará um percurso. No entanto, salientemos as diferenças: em A maçã
no escuro, há a histerização do signo linguístico para, posteriormente,
criarse uma tentativa de substancializálo com novos significados e, ainda,
há o silêncio como forma de demandar o discurso do Mestre.
Em A paixão segundo G.H., a preocupação com a linguagem centrase
em solidificar a posição de Histérica como discurso privilegiado. Isso
também culminará na mesma preocupação em demandar dessa linguagem:
ao manipular a palavra e não encontrar no código verbal recursos para uma
expressão de seu mundo, postulase um total ceticismo em relação à
eficácia do mesmo signo. Ao contrário de Martim, a narradora G.H. fará uso,
especialmente, de repetições, estruturas cíclicas e desgaste dos registros
interjetivos para fazer minguar a linguagem.
Embora esse romance pareça, num primeiro momento, um caminho
novo, percebese, por meio de uma visão panorâmica, que se trata do
resultado mais concreto que a autora já havia arquitetado em A maçã no
escuro. Em A paixão segundo G.H., o contato com o inseto pode ser
compreendido como possível encontro com o Real e visto, aqui, como o
estopim para a cristalização do Discurso da Histérica. O ato da protagonista
em comer a “essência da barata”, isto é, de “devorar a vida, a essência, a
166
entidade e, por extensão, a deidade, já num sentido religioso
estratificado” (BRASIL, 1973, p. 72) encontra, na relação de Martim com as
vacas, seu modelo de iniciar uma peregrinação.
Martim inicia, de fato, o zero de sua linguagem por intermédio de uma
aproximação estreita com o curral. Lá, ele pode perceber que “materializar
se para as vacas foi um grande trabalho íntimo de
concretização” (LISPECTOR, 1972, p. 90), ou seja, por meio de mugidos, o
narrador nos apresenta dois mundos distintos que “se olham e se
conversam”, fazendo com que haja o trânsito entre essas identidades.
Toda essa transmutação ocorreu por meio de um incidente dos mais
rotineiros. A barata, em A paixão segundo G.H., funciona, de certa maneira,
como o Alien do filme de Ridley Scott, já comentado por Žižek (2010). O
alienígena monstruoso e o inseto repugnante conferem ao olhar humano a
aproximação com o Real em sua dureza mais traumática, pois distorcem,
categoricamente, as percepções simbólicas tanto dos espectadores do
filme quanto da protagonista do romance, tamanho o choque conferido
por essas visões. A diferença consiste em Alien ser uma criação
cinematográfica e a barata o “real” inseto doméstico.
O fato é que o confronto com a barata faz com que G.H. crie uma
muralha de linguagem, como ato necessariamente defensivo, e é a partir
desse bloqueio que a narradora verticaliza o uso de um discurso de tom
histérico. Seria esse, na esteira de A maçã no escuro, o momento em que
esse discurso se fixa de maneira mais rígida e inquieta.
Mas, em termos que versam a respeito de estilo e linguagem, quais são as
principais modificações alcançadas no período entre A maçã no escuro e
A paixão segundo G.H., dois romances publicados em um curto espaço de
tempo? E ainda: o que difere esses dois romances dos demais, uma vez que
Lispector foi cunhada, de maneira geral, como escritora, desde sempre,
preocupada em contestar a linguagem padronizada e exibir as camadas
mais fundas e existenciais de suas personagens? Certamente, a aplicação do
Discurso da Histérica – e toda a constante indagação que tal discurso
estrutura – cria uma possibilidade de resposta.
167
Por comungar com a natureza da barata, traindo a repugnância e
provando o núcleo do inseto, a náusea colore todo o processo de descida
de G.H. ao seu mais íntimo ser. Nessa descida, que marca uma ruptura com
seu antigo modo de viver – semelhante ao de Martim –, G.H. desconstrói
sua vida falsamente erigida sob valores burgueses e mergulha em um
movimento que, gradativamente, faz com que ela se desaposse de seu eu.
Assim, a autora arquiteta uma obra sem princípio ou fim, em que narra essa
contínua busca, longe do mundo condicionado e asséptico. Vejamos o que
a narradora propõe a respeito da linguagem utilizada para narrar o
acontecido:
Mas como me reviver? Se não tenho uma palavra natural a dizer.
Terei que fazer a palavra como se fosse criar o que me
aconteceu? Vou criar o que me aconteceu. Ó porque viver não
é relatável.Viver não é vivível.Terei que criar sobre a vida. E sem
mentir. Criar sim, mentir não. Criar não é imaginação, é correr o
grande risco de se ter a realidade. Entender é uma criação, meu
único modo. Precisarei com esforço traduzir sinais de telégrafo
– traduzir o desconhecido para uma língua que desconheço, e
sem sequer entender para que valem os sinais. Falarei nessa
linguagem sonâmbula que se eu estivesse acordada não seria
linguagem (LISPECTOR, 1998, p. 21).
Notase que, antes de tomar coragem para relatar o acontecido, G.H. adia
a narrativa na tentativa de fugir do trauma causado pelo encontro. Todavia,
percebemos que, ao contrário de Martim, ela consegue utilizar da
linguagem corrente para transmitir o acontecido: “Se eu ainda quiser
poderei, dentro de nossa linguagem, me perguntar de outro modo o que
me aconteceu. E, se desse modo eu perguntar, ainda terei uma resposta de
recuperação” (LISPECTOR, 1998, p. 68).
Assim, o que faz com que esse romance acomode o Discurso da
Histérica de maneira mais expressiva do que o anterior é o fato de que o
signo linguístico não precisa passar por um processo de
dessubstancialização para dar conta de iluminar a infernal trajetória da
protagonista, ainda que a linguagem passe por um processo de
revitalização, funcionando como questionadora daquela padronizada e
cristalizando o estilo da autora.
168
Esse ato de criar o que aconteceu é narrado, freneticamente, por meio de
um monólogo interior que permeia toda a diegese. Percebese que, nos
romances anteriores e também em A maçã no escuro, as personagens se
apoiam em pequenos fragmentos espaciais de uma realidade concreta e,
também, em parcos acontecimentos objetivos, o que faz com que seus
devaneios e impressões sejam amenizados: há a fazenda que sustenta os
anseios de Martim, São Geraldo que aliena Lucrécia, em A cidade sitiada, e,
ainda, a granja que serve de apoio para os segredos dos irmãos Virgínia e
Daniel, em O lustre. Em A paixão segundo G.H., há o apartamento luxuoso.
No entanto, esse espaço é meramente ilustrativo, pois, na verdade, não há,
propriamente, uma história que se narra, já que a obra se concentra,
basicamente, no confronto da mulher com a barata, sem interferências
externas. Criase, dessa maneira, uma forte tensão na linguagem que
arrebataria aquela iniciada em A maçã no escuro.
O monólogo interior de G.H. encapsula todo um inconsciente
fragmentado com altos momentos vertiginosos e, por meio de um
interlocutor imaginário, a fraseologia clariciana encontra, no romance, seu
cume. Nesse ápice, o Discurso da Histérica encontra sua posição mais
confortável, pois a protagonista “abre as portas” de sua subjetividade e
deixa jorrar, de maneira altamente fluida, suas indagações existenciais, o
que acaba culminando em sua desistência, ainda que parcial, da linguagem.
A exacerbada introspecção desse romance tonificou o desvio da
consciência da linguagem proposto em A maçã no escuro.
Segundo Nunes, em A paixão segundo G.H., a “consciência da
linguagem enquanto simbolização que não pode ser inteiramente
verbalizada incorporase à ficção regida pelo movimento da
escrita” (NUNES, 1988, p. 27). Em outras palavras, a protagonista tenta dizer
a coisa sem nome, aquilo que surge no momento do êxtase e que,
sutilmente, surge no silêncio entre as palavras.Tratase, pois, da tentativa de
ressimbolizar textualmente a matéria deflagrada pelo Real.
Vejamos alguns excertos do romance que contam com a presença de
figuras metafóricas inovadoras: “o quarto era o retrato de um estômago
169
vazio” (LISPECTOR, 1998, p. 42); de fluxos de consciências altamente
vertiginosos: “contigo nadei de suas profundezas escuras até hoje, nadei
com meus cílios inúmeros – eu era o petróleo que só hoje
jorrou” (LISPECTOR, 1998, p. 114); paradoxos:“por não ser, eu era. Até o fim
daquilo que eu não era, eu era. O que eu não sou, eu sou” (LISPECTOR,
1998, p. 178); estruturas cíclicas que evidenciam a repetição, além de um
sistema de leixapren extraordinariamente bem utilizado: “sei o que
precisar, precisar, precisar. E é um precisar novo, num plano que só posso
chamar de neutro e terrível. É um precisar sem nenhuma piedade pelo meu
precisar e sem piedade pelo precisar da barata” (LISPECTOR, 1998, p. 86
87); e a interrogação, denunciando a fragmentação e o questionamento
histérico da protagonista:“aconteceume alguma coisa que eu, pelo fato de
não a saber como viver, vivi uma outra?” (LISPECTOR, 1998, p. 9).
Citamos alguns exemplos a título de ilustração, no entanto eles
permeiam todo o romance e são pontos que possibilitam uma nova feição
ao instrumento literário de Lispector. Em uma visão žižekiana, tratase de o
Discurso da Histérica que propõe, desde o princípio, figuras absurdas na
construção desse romance: como já vimos, o confronto pouco
convencional entre mulher e barata é descrito por meio de uma linguagem
que denuncia, de maneira catastrófica, esse encontro; daí as frases serem
subversivas ao próprio estilo da autora. A lógica que caminha
paradoxalmente ao lado da ilógica, e os prefixos, raramente vistos antes,
insistem em chocar e desorganizar o leitor e salientam essa linguagem
extremamente insólita.
A utilização desses recursos de estilo, apesar de reafirmar os moldes
literários da autora, leva a linguagem para um campo quase inatingível, que
busca construirse num percurso às avessas. A “realidade” descrita nesse
romance é mais densa, mais fluida, do que aquela descrita por Martim. A
linguagem de Lispector atinge seu ponto nevrálgico, transformando o
discurso narrativo em poéticas de ensinamento existencial e psicanalítico.
Dessa maneira, a performance de A paixão segundo G.H. permite que o
sofrimento psíquico da protagonista e as marcas indeléveis, causadas na
170
sintaxe da língua e no corpo dessa narrativa, sejam vistos à maneira
lacaniana. O Discurso da Histérica permite compreender a lógica presente
em cenas mais amplas da vida social, nas quais, por exemplo, posições de
demanda, provocação ou sedução, são encarnadas por indivíduos ou por
grupos diante de representantes de saberes oficiais. É no nível da
potencialidade linguística desse romance que Clarice Lispector assume sua
posição mais arrojada como escritora e propõe uma modalidade de
linguagem que ultrapassaria a diegese, colocandoa no rol dos maiores
escritores brasileiros e a obra em questão como um dos romances mais
originais do século XX.
No final da narrativa, após o desapossamento do eu, G.H. diz:“não estou
entendendo o que estou dizendo, nunca! Nunca mais compreenderei o que
eu disser. Pois como poderia eu dizer sem que a palavra mentisse por
mim?” (LISPECTOR, 1998, p. 179). Segundo Nunes (1995), no caso de A
paixão segundo G.H., o sujeito que narra é o sujeito que se desagrega, e o
sentido de sua narrativa vai se tornando fugidio. Em outras palavras,
significa que o drama da linguagem iniciado em A maçã no escuro tonifica
se nesse romance:“a narrativa é o espaço agônico do sujeito e do sentido –
espaço onde ele erra, isto é, onde ele se busca –, o deserto em que se perde
e se reencontra para de novo perderse, juntamente com o sentido daquilo
que narra, num processo em círculo” (NUNES, 1995, p. 76).
Quando se pensa que Lispector já teria construído um painel de imagens
opulentas, transfiguradas, líricas, todas enfeixadas em um enredo denso e
em permanente descontínuo, eis que a autora publica, em 1973, um texto
que radicaliza esse percurso: Água viva.
Lispector parecia prever a gama de estudos que suas obras acarretariam
e pensa, inicialmente, num título que, logo depois, descartaria, mas que se
torna bastante emblemático para esta pesquisa: objeto gritante.
Retomaremos a importância desse título no decorrer da análise. A respeito
do título oficial, Sá diz: “É coisa que borbulha na fonte. É também medusa,
corpo mole, gelatinoso [...], dá picadas ardidas na pele do homem e dos
animais [...] é, portanto, água, mar, medusa, fogo, matéria viva escaldante,
171
plasma plástico e cromático” (SÁ, 1979, p. 205). Acrescentamos, ainda, que
Água viva pode fazer referência à água batismal, fonte de vida. Esse texto
líquido em que a narrativa se derrama em uma fluidez altamente poética é,
também, uma espécie de texto placenta, já que alimenta e dá origem à
narrativa, cujo sentido é captar e questionar as inúmeras sensações do ato
comunicativo.
Percebese que o percurso da protagonista, radicalmente existencial,
encontra sua partida em Martim. No entanto, aproximase com mais
exatidão de G.H., pelo fato de não iniciar ou findar qualquer ciclo, mas, sim,
continuar uma experiência de redescoberta e captação de si. No entanto,
ultrapassando A maçã no escuro e mesmo A paixão segundo G.H., esse
texto narra, de maneira radical, o processo de escrita ligado à extrema
liberdade do viver,“porque ninguém me prende mais” (LISPECTOR, 1994, p.
13).
Água viva funciona, em uma leitura žižekiana, como exemplo mais
disseminado de aplicação do Discurso da Histérica na ficção de Clarice
Lispector, pois mescla, em alguns momentos, tal como em A maçã no
escuro, a necessidade de encontrar a palavra que expresse a importância
das coisas narradas e, por vezes, o percurso de G.H., que faz uso da
linguagem padrão, no entanto, de maneira transfigurada. Constróise, dessa
maneira, uma coisa/objeto por meio da percepção do fracasso de uma
ordem de palavras. Vejamos um exemplo:
E eis que percebo que quero para mim o substrato vibrante da
palavra repetida em canto gregoriano. Estou consciente de que
tudo o que sei não posso dizer, só sei pintando ou
pronunciando, sílabas cegas de sentido. E se tenho aqui que
usarte palavras, elas têm que fazer um sentido quase que só
corpóreo, estou em luta com a vibração última. Para te dizer o
meu substrato faço uma frase de palavras feitas apenas dos
instantesjá. Lê então o meu invento de pura vibração sem
significado senão o de cada esfuziante sílaba, lê o que agora se
segue: “com o correr dos séculos perdi o segredo do Egito,
quando eu me movia em longitude, latitude e altitude com ação
energética dos elétrons, prótons, nêutrons, no fascínio que é a
palavra e a sua sombra”. Isso que te escrevi é um desenho
eletrônico e não tem passado ou futuro: é simplesmente já.
Também tenho que te escrever porque tua seara é a das
172
palavras discursivas e não o direto de minha pintura. Sei que
são primárias as minhas frases, escrevo com amor demais por
elas e esse amor supre as faltas, mas amor demais prejudica os
trabalhos. Este não é um livro porque não é assim que se
escreve. O que escrevo é um só clímax? Meus dias são um só
clímax: vivo à beira (LISPECTOR, 1994, p. 1516).
173
citamos que o psicanalista francês inclui, nesse discurso, alguns ecos da
histeria como estrutura, daí a justificativa do nome. Como diz Lacan (1999),
“a histérica é, precisamente, o sujeito para quem é difícil estabelecer com a
constituição do Outro como grande Outro, portador do signo falado, uma
relação que lhe permita preservar seu lugar de sujeito” (LACAN, 1999, p.
376). Assim, o sujeito histérico quer um desejo insatisfeito, pois enquanto
não reconhece que o desejo do Outro é barrado, ele não pode reconhecer
se barrado e não reconhece seu desejo marcado pela castração.
A histeria como neurose eclode por ocasião de acontecimentos
marcantes ou em períodos críticos da vida de um sujeito, por exemplo, a
adolescência. A manifestação dessa neurose se dá sob a forma de diversos
distúrbios, geralmente passageiros, cujos sintomas mais clássicos são os
somáticos, como as perturbações da motricidade (contraturas musculares,
paralisias), de sensibilidade (dores localizadas, regiões anestesiadas) e
distúrbios sensoriais (cegueira, surdez). Juntase a isso a possibilidade de
recorrência de alterações de consciência, de memória, de inteligência,
insônia e desmaios benignos.
J. D. Násio (1991) complementa dizendo que “o histérico, como qualquer
sujeito neurótico, é aquele que, sem ter conhecimento disso, impõe na
relação afetiva com o outro a lógica doentia de sua fantasia
inconsciente” (NASIO, 1991, p. 15), uma fantasia em que ele desempenha
sempre o papel de vítima infeliz e insatisfeita e é justamente essa
insatisfação que marca a vida de um histérico
Transpondo o saber psicanalítico para Água viva, notase que a
“liquidez” discursiva da narradora cria uma estrutura romanesca bastante
peculiar: frases desconexas, períodos truncados, aforismos, mudanças
abruptas de temas discutidos e mescla de gêneros. Essas características, de
certo modo, não se assemelham a alguns sintomas histéricos? Assim como
pacientes de estudos clássicos da psicanálise, que tiveram seus membros
paralisados devido a suas fantasias histéricas, o corpo de Água viva possui
a coluna vertebral toda estilhaçada, é todo chamativo, cria, além de um
desconforto para quem o lê, um embaraço visual, tamanho é o devaneio de
174
quem o narra. Eis um trecho:
Custame crer que eu morra. Pois estou borbulhante numa
frescura frígida.
Minha vida vai ser longuíssima porque cada instante é. A
impressão é que
estou por nascer e não consigo.
Sou um coração batendo no mundo.
Você que me lê que me ajude a nascer.
Espere: está ficando escuro. Mais.
Mais escuro.
O instante é de um escuro total.
Continua.
Espere: começo a vislumbrar uma coisa. Uma forma
luminescente. Barriga
leitosa com umbigo: Espere – pois sairei desta escuridão onde
tenho medo,
escuridão e êxtase. Sou o coração da treva.
O problema é que na janela de meu quarto há um defeito na
cortina. Ela não
corre e não se fecha portanto. Então a lua cheia entra toda e
vem fosforecer de
silêncios o quarto: é horrível.
Agora as trevas vão se dissipando.
Nasci.
Pausa.
Maravilhoso escândalo: nasço. (LISPECTOR, 1994, p. 41).
175
Fico me assistindo pensar. O que me pergunto é: quem em mim
é que está fora de pensar? Escrevote tudo isto pois é um
desafio que sou obrigada com humildade a aceitar. Sou
assombrada pelos meus fantasmas, pelo o que é mítico e
sobrenatural – a vida é sobrenatural. E eu caminho em corda
bamba até o limite de meu sonho (LISPECTOR, 1994, p. 73).
176
acordo com o materialismo lacaniano, seria a histericização da linguagem
empírica para abrir margem à reprodução de uma linguagem labiríntica,
em que no “it”, elemento rico e de muitos significados, o eu defrontase
com o ato solidário de criação de si mesmo, de modo que uma linguagem e
uma estrutura linear seriam rejeitadas
“X” é o sopro do it? é a sua irradiante respiração fria? “X” é a
palavra? A palavra apenas se refere a uma coisa e esta é sempre
inalcançável por mim. Cada um de nós é um símbolo que lida
com símbolos – tudo ponto de apenas referência ao real [...] E
se nos entendemos através do símbolo é porque temos os
mesmos símbolos e a mesma experiência da coisa em si: mas a
realidade não tem sinônimos (LISPECTOR, 1994, p. 72).
177
do Mestre. Após a incursão cometida no mais escuro dessa nova linguagem,
por meio de um percurso pleno de ausências, de silêncio e de excesso,
percebese que há um gozo que não está incluso no saber desse discurso,
pois ele aparece como perda, de modo que nunca há uma última verdade
sobre ele mesmo.
Em outras palavras, e para fins de considerações finais, assim como em A
maçã no escuro e em A paixão segundo G.H., em que a linguagem falhou,
percebese que há em Água viva uma insatisfação com a linguagem, por
ainda necessitar de mais demanda para continuar seu movimento de
histericização. Verificamos as palavras da narradora já no fechar do texto:
“O que te escrevo é um “isto”. Não vai parar: continua [...]. O que te escrevo
continua e estou enfeitiçada” (LISPECTOR, 1994, p. 101).
Referências
178
LISPECTOR, C. A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
NASIO, J.D. A histeria. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1991
SÁ, Olga de. A escritura de Clarice Lispector. São Paulo: Vozes, 1979.
179
180
O GRANDE OUTRO EM O PERU DE NATAL, DE MÁRIO DE
ANDRADE
Marcia Geralda de Almeida
Introdução
181
acordo com Silva (2009), o materialismo lacaniano não rejeita o
materialismo histórico, porém entende que esta teoria é insuficiente para
explicar a diversidade dos fenômenos sociais e humanos, de modo que
atrela o materialismo histórico à psicanálise de Lacan, o que resultou nessa
nova teoria que será adotada neste texto.
Mário de Andrade foi um dos mais importantes escritores do
modernismo brasileiro, tendo sido um dos organizadores da Semana de
Arte Moderna de 1922. Autor de Paulicéia Desvairada (1922) e
Macunaíma (1928), foi o primeiro brasileiro a utilizar o verso livre e seu
fazer artístico estava voltado para a busca da identidade nacional e
valorização da cultura popular.
O conto adotado como objeto de análise traz um enredo em que
acreditamos ser possível perceber o funcionamento da ordem simbólica,
bem como o grande Outro, a partir das relações familiares representadas
pela narrativa. A seguir discorreremos brevemente sobre o conceito de
grande Outro e, posteriormente, apresentaremos a interpretação do conto.
Fundamentação teórica
182
e o meu modo de agir e interagir” (SANTOS, 2017, p. 454).
Segundo Silva (2009, p. 213), o Simbólico é “o estágio no qual o
indivíduo estruturou uma série de códigos, leis e proibições que permitirão
sua socialização”. A esse respeito, Santos (2017, p. 454) escreve que “existe
um sistema de regras simbólicas que regula nossa interação social, regras
explícitas (as leis) e regras ‘implícitas’ (não registradas ou escritas) que
regulam nosso modo de agir e de falar”.
Žižek afirma que, quando interagimos com outros sujeitos, nossa
interação nunca é unicamente com um outro sujeito, pois estamos
enredados em uma complexa trama de regras em que estão presentes
muitas outras variáveis. Assim existem:
As regras que eu sigo estão marcadas por uma profunda divisão:
há regras (e significados) que sigo cegamente, por hábito, mas
das quais, se reflito, posso me tornar ao menos parcialmente
consciente (como as regras gramaticais comuns); e há regras
que ignoro que sigo, significados que ignoro que me
perseguem (como proibições inconscientes). E há regras e
significados cujo conhecimento não devo revelar que tenho
insinuações sujas ou obscenas que silenciamos para manter o
decoro (ŽIŽEK, 2010, p. 17).
183
regras implica desconforto e (auto)punições.
Análise
184
peru de verdade.
Juca não nega o descontentamento em relação ao pai, pois, para ele, o
“pai fora de um bom errado”, porque ele era bom para muitas pessoas,
exceto para a própria família. Assim, apesar da condição financeira estável,
a família de Juca nunca se dava o direito de ter regalias como “um vinho
bom, uma estação de águas, aquisição de geladeira, coisas assim” por conta
da “exemplaridade incapaz” do pai (ANDRADE, 1996, p. 71), isto é, incapaz
de desviarse das normas sociais.
Na perspectiva do materialismo lacaniano, compreendemos que esse
conto exemplifica bem o funcionamento da ordem simbólica, ou seja, as
regras escritas e não escritas funcionando para regular o comportamento
em sociedade, o que se evidencia nos dizeres do narrador, a seguir: “Nós
sempre fôramos familiarmente felizes, nesse sentido muito abstrato da
felicidade: gente honesta, sem crimes, lar sem brigas internas nem graves
dificuldades econômicas” (ANDRADE, 1996, p. 71). As características
utilizadas para descrever a família parecem corroborar a imagem de um lar
em que a observação das convenções é determinante, já que os termos
honestidade, ausência de crimes ou brigas remetem às regras escritas (leis);
por outro ângulo, as expressões ‘familiarmente felizes’ ou ‘sentido abstrato
da felicidade’ podem ser atreladas às normas sociais não escritas que fazem
com que a família se conforme com o modo de realização das celebrações
natalinas, em uma felicidade apenas aparente.
Por outro lado, a narrativa insinua que tanto o narrador quanto os demais
personagens não estavam satisfeitos com as tradicionais reuniões de
família, em que as mulheres da casa “três dias antes, já não sabiam da vida
senão trabalhar, trabalhar no preparo de doces e frios finíssimos e bem
feitos, a parentagem devorava tudo e ainda levava embrulhinhos pros que
não tinham podido vir”; não bastasse isso, essas mulheres esgotadas pelo
trabalho aproveitavam do “peru, só no enterro dos ossos, no dia seguinte,
[...] um naco de perna, vago, escuro, perdido no arroz alvo (ANDRADE,
1996, p. 72). Ainda assim, essa família continua a reproduzir essa tradição
durante anos, o que significa que as leis, códigos e proibições estão bem
185
estruturados, para que o convívio seja possível.
Conforme explicado anteriormente, o grande Outro só existe à medida
que agimos como se ele existisse para sondar e regular nossas atitudes. Ao
retomar o exemplo de Žižek sobre o conto A roupa nova do imperador,
em que todos percebem que o imperador está nu, mas agem como se
estivesse vestido, Cindy Zeiher (2015, p. 205) explica que “agir ‘como se’ é
um ato de negação que garante que os sujeitos possam coexistir com
outros no mundo social. A ideologia oferece um espetáculo para o grande
Outro apresentado pelos costumes e práticas sociais, apesar de suas
inconsistências, contradições”. Em certa medida, podemos dizer que a
narração de Juca leva a entender que as condições das festividades
familiares são injustas, tanto pelo trabalho demasiado das mulheres que não
desfrutam da festa, quanto pelo comportamento abusivo dos parentes.
Contudo, essas inconsistências são naturalizadas e todos agem como se
estivesse tudo bem, mantendo as aparências que possibilitam o convívio.
Para Žižek (2018, p. 133), “As aparências são importantes. Podemos ter
nossas múltiplas fantasias obscenas, mas é importante saber quais vão se
integrar no domínio público da Lei simbólica, do grande Outro”, isto é, a
observação das regras simbólicas é essencial para a manutenção da ordem,
mesmo que seja apenas na aparência.
Após a morte do patriarca, Juca decide subverter a tradição familiar e
realizar uma vontade secreta de todos da família: comer peru de Natal. Sua
proposta é comprar o peru e não convidar ninguém para a ceia, de forma
que apenas a mãe, a tia, a irmã e o irmão possam desfrutar da iguaria.
Conforme Amora (2015, p. 8), não se trata do peru, mas do “sentimento de
felicidade compartilhado por todos os integrantes da família. Percebese
que o prato principal não é um fim para a felicidade, mas toda a comunhão
que a ceia proporciona”. Na perspectiva do materialismo lacaniano, mais
do que felicidade compartilhada, a vontade de comer peru pode ser
entendida como uma metáfora para o desejo obsceno de transgredir a
ordem simbólica, uma vez que os atos de esquecer, ainda que brevemente,
o luto, e de excluir os parentes da ceia, vão contra a tradição e as normas da
186
família.
A ideia do narrador é recebida pelos familiares com um misto de
assombro e euforia: assombro, em virtude do luto recente e da lembrança
do pai austero e controlador, que parece funcionar como uma
corporificação do grande Outro, à medida que a lembrança dele traz um
sentimento de culpa; euforia, devido à felicidade que a ideia de, finalmente,
comer peru, ter um verdadeiro Natal (ou quebrar as regras) trazia para cada
um. Aceitar a proposta de Juca significa ir contra as regras simbólicas,
portanto essa espécie de transgressão da ordem só é possível sob a égide
da loucura atribuída ao narrador, considerado o doido da família desde
menino.
Desde cedinho, desde os tempos de ginásio, em que arranjava
regularmente uma reprovação todos os anos; desde o beijo às
escondidas, numa prima, aos dez anos, descoberto por Tia Velha,
uma detestável de tia; e principalmente desde as lições que dei
ou recebi, não sei, duma criada de parentes: eu consegui no
reformatório do lar e na vasta parentagem, a fama conciliatória
de ‘louco’. ‘É doido, coitado!’ falavam. Pois foi o que me salvou,
essa fama. Fiz tudo o que a vida me apresentou e o meu ser
exigia para se realizar com integridade. E me deixaram fazer
tudo, porque eu era doido, coitado. Resultou disso uma
existência sem complexos, de que não posso me queixar um
nada (ANDRADE, 1996, p. 7172, grifo nosso).
187
do materialismo lacaniano, Diego Fascina (2020, p. 54) demonstra que um
recurso semelhante é usado para invalidar a atitude contrária às normas,
diante do olhar do grande Outro. Quando a aniversariante de 89 anos cospe
no chão e começa a dizer palavrões e xingamentos, abalando as estruturas
do decoro social, a família “prefere dissimular o acontecido, pois ‘a velha
não passava agora de uma criança’, ou seja, retirando do ato da idosa sua
autonomia e significado, ‘acalmando’ o grande Outro”.
Compreendemos que tanto a infantilização ou atribuição de demência à
matriarca, no conto clariciano, quanto a atribuição da loucura ao
personagem de Mário de Andrade são meios de informar e acalmar o
grande outro e impedir que as teias do simbólico se esfacelem. No primeiro
caso,“O Big Other foi devidamente informado de que os atos da velha não
refletiam senão a gradativa perda de consciência e de domínio da realidade
que acomete alguns idosos” (FASCINA, 2020, p. 55). No segundo caso, o
grande Outro foi informado de que Juca não se encontra em perfeito juízo
e, portanto, não se deve leválo a sério, o que ameniza o peso da ação
desencadeada por ele.
Entretanto, esse recurso parece não ser totalmente eficaz em O peru de
Natal, pois a figura do patriarca surge durante a ceia, trazendo de volta a
culpa, a tristeza, a necessidade do luto e do respeito às regras.
Aparentemente, a desobediência gera desconforto, porque a família sabe
que o grande Outro está olhando, conforme propõem Alves e Ferreira
(2018).
Não é só a realização da ceia sem os parentes que foge às regras
observadas pelo pai, mas também a pausa no luto familiar obrigatório que
deveria impedir qualquer celebração ou demonstração de felicidade, ao
menos por um período. E, assim, conforme o narrador, “Todos se
esforçavam por sorrir, mas agora é que a alegria se tornara impossível. É que
o pranto evocara por associação a imagem indesejável de meu pai morto.
Meu pai com sua figura cinzenta, vinha pra sempre estragar nosso Natal.
Fiquei danado” (ANDRADE, 1996, p. 74).
Embora o grande Outro seja uma instância virtual, por vezes, é possível
188
que essa instância seja corporificada ou subjetivada. Para Žižek (2010, p.
54), deus é um exemplo de subjetivação da ordem simbólica, “o grande
Outro personificado, dirigindose a nós como uma pessoa maior que a
vida”, dizendo o que é certo e errado e como devemos viver. Até esse
momento do conto, o grande Outro permanecia virtual, intangível, porém o
choro da mãe traz consigo a lembrança do pai para a mesa de jantar e o
grande Outro começa a ser corporificado pela imagem dele. É interessante
como essa imagem vai, aos poucos, crescendo diante dos personagens
sentados à mesa e se tornando cada vez mais poderosa:“Mas papai sentado
ali, gigantesco, incompleto, uma censura, uma chaga, uma incapacidade. E o
peru, estava tão gostoso, mamãe por fim sabendo que peru era manjar
mesmo digno de Jesusinho nascido” (ANDRADE, 1996, p. 74).
Nesse momento, o conto revela tensão entre a disposição em
desobedecer a lei e o respeito à figura do pai enquanto instância
reguladora do bom comportamento familiar. Como a própria narrativa faz
perceber, apesar da consciência da necessidade do luto, o peru estava
delicioso e a felicidade desse núcleo familiar se tornara um fato, misturando
prazer e culpa. A cobrança do luto parece trazer para a mesa de jantar uma
atmosfera de tristeza em todos os personagens, exceto Juca.
Principiou uma luta baixa entre o peru e o vulto de papai.
Imaginei que gabar o peru era fortalecelo na luta, e, está claro,
eu tomara decididamente o partido do peru. Mas os defuntos
têm meios visguentos, muito hipócritas de vencer: nem bem
gabei o peru a imagem de papai cresceu vitoriosa,
insuportavelmente obstruidora. – Só falta seu pai...
(ANDRADE, 1996, p. 74, grifo nosso).
189
impossível, pois a figura do pai, enquanto grande Outro corporificado, está
definitivamente lá para lembrálos do luto familiar obrigatório e da
convenção das celebrações em família.
Para explicar melhor nosso raciocínio, adotamos o seguinte exemplo
utilizado por Žižek (2010, p. 35):
Lembremos a típica situação difícil em que todas as pessoas
num grupo fechado sabem de algum detalhe sórdido (e sabem
também que todas as outras sabem), mas quando uma delas
inadvertidamente deixa escapar esse detalhe todas se sentem
constrangidas apesar de tudo por quê? Se ninguém ficou
sabendo de nada que seja novo, por que todas se sentem
constrangidas? Porque não podem mais fingir que não sabem
disso (agir como se não soubessem) em outras palavras,
porque agora o grande Outro sabe.
190
novamente o grande Outro, por meio da santificação da lembrança do pai,
que se torna “uma estrelinha no céu” e fica livre da tarefa de regular o
comportamento da esposa e dos filhos, porque se tornou um santo incapaz
de julgar. Dessa forma, o grande Outro volta a ser intangível, insubstancial,
mais fortalecido que antes, pois agora a família está autorizada a terminar a
festa em respeito à boa alma do pai. Destacamos como o sentimento de
culpa vai se atenuando na mesma medida em que a imagem paterna vai
diminuindo, diminuindo.
E todos principiaram muito calmos, falando de papai. A
imagem dele foi diminuindo, diminuindo e virou uma
estrelinha brilhante do céu. Agora todos comiam o peru
com sensualidade, porque papai fora muito bom, sempre se
sacrificara por nós, fora um santo que ‘vocês meus filhos, nunca
poderão pagar o que devem a seu pai’, um santo. Papai virara
um santo, uma contemplação agradável, uma inestorvável
estrelinha do céu. Não prejudicava mais ninguém, puro objeto
de contemplação suave. O único morto ali era o peru,
dominador, completamente vitorioso [...] E foi, sei que foi
aquele primeiro peru comido no recesso da família, o início de
um amor novo, reacomodado, mais completo, mais rico e
inventivo, mais complacente e cuidadoso de si” (ANDRADE,
1996, p. 75, grifo nosso).
191
norma: seu fundamento obsceno. Transgredir não é romper com a norma,
mas afirmála de outra maneira [...]”.
Com base nos escritos de Žižek sobre transgressão inerente, Christine
Evans (2015, p. 136, tradução livre) explica que:
Ao negar a função estruturante da Lei Simbólica Pública, o
sujeito pode aparentemente agir livremente e transgredir a Lei.
No entanto, essa liberdade é ilusória; quando o sujeito se
posiciona “contra” a ordem simbólica e tenta desestabilizála
transgredindo seus limites, o grande Outro mais do que
antecipou esse ataque – ele, de fato, préinscreveu a
perturbação em sua própria constituição, e oferece a
transgressão como uma escolha forçada. O conteúdo da
transgressão não prejudica a lei simbólica pública, mas
funciona como seu “suporte não reconhecido e obsceno”.
192
que isso não “ultrapasse os limites do domínio público” (ŽIŽEK, 2010, p.
104), ou seja, desde que as aparências sejam mantidas. Assim, apesar do
potencial transgressor de Juca, ele se torna apenas o elemento estabilizador
da ordem, pois seu comportamento desviante, embora possa contrariar as
normas sociais (códigos e proibições), está previsto pelas regras não
escritas que constituem a transgressão inerente a toda lei.
Considerações Finais
193
Referências
ANDRADE, Mário de. O peru de natal. In: Contos Novos. Belo Horizonte:
Vila Rica Editoras Reunidas Limitadas, 1996.
ZEIHER, Cindy. Other/Big Other. In: BUTLER, Rex (org.). The Žižek
Dictionary. Routledge, 2015. Ebook. pp. 205208.
194
A TRÍADE SIMBÓLICA NA OBRA PONCIÁ VICÊNCIO, DE
CONCEIÇÃO EVARISTO
Milene Vitória Ferreira da Silva
Maria Betânia da Rocha de Oliveira
Considerações iniciais
195
Ao unir essa realidade à tríade simbólica e aplicar na vivência da
personagem Ponciá Vicêncio, foi possível observar muitas explicações
acerca da existência humana, uma vez que a personagem está sempre
buscando escapar da realidade em que vive para um mundo onde possa se
sentir completa.Todavia, frustrase ao não conseguir preencher seus vazios,
visto que muitas das suas idealizações não se concretizam, provocando dor
e eventos traumáticos.
No decorrer deste texto, discorremos sobre Slavoj Žižek e sobre as bases
do materialismo lacaniano; apresentamos alguns conceitos do
materialismo de Žižek; em seguida, discutimos, brevemente, sobre a vida e
as obras de Conceição Evaristo; por fim, analisamos a tríade Simbólico,
Imaginário e Real, no romance Ponciá Vicêncio.
196
Em ‘Arriscar o impossível: conversas com Žižek’ (2006), Žižek confessa
para Glyn Daly que era difícil se posicionar em meio ao contexto histórico
de seu país, uma vez que possuía um pensamento heterodoxo, que não era
bem visto; isso lhe serviu como combustível para que pudesse se
posicionar veementemente. O filósofo esloveno mantém sua teoria crítica
e seus estudos nas áreas da psicanálise, cultura popular e política. Sua teoria
consiste em uma visão marxista crítica da sociedade capitalista e dos seus
modos de coerção.
A teoria de Žižek aponta para a relevância da psicanálise (mas sem o viés
clínico especificamente) como meio para se entender melhor a cultura e a
política. Em suas obras, o pesquisador reflete como as nossas aspirações e
individualidades são ajustadas por procedimentos psicanaliticamente
funcionais que influenciam em nossas preferências sociais e políticas. Em
síntese, a teoria de Slavoj Žižek mantém uma crítica radical ao capitalismo
e um estudo psicanalítico cultural e de interesse público. Suas concepções
têm influenciado a filosofia moderna e a esquerda política mundialmente
falando.
Conhecido por difundir o materialismo lacaniano, cujas bases são a
psicanálise e a teoria marxista, Slavoj Žižek mantém a opinião de que o
materialismo lacaniano não é uma colocação inferior que reduz o mundo a
um assunto de dimensões físicas, mas uma linha teoria que destaca a
relevância que a tríade Simbólico, Imaginário e Real, para a análise da
existência humana.
Para o filósofo, o materialismo, acrescido de Lacan, remete a uma
interpretação mais aprofundada do surgimento do desejo humano e da
maneira como este é modelado e fundamentado pelas vertentes simbólicas
e sociais. Para ele, o desejo não é algo totalmente orgânico, mas sim
resultado do simbólico, uma vez que ocupa uma posição fundamental na
construção e no direcionamento do desejo humano.
No mais, Žižek (2006) pontua que o materialismo lacaniano colabora
para que o ser humano consiga enxergar a falácia de divisões
convencionais entre mente e corpo, sujeito e instrumentos, e
197
originalidades e costumes. Ele argumenta que essas vertentes não possuem
individualidades, isto é, elas são dependentes, recíprocas e/ou
convergentes.
De acordo com Oliveira (2020), o materialismo lacaniano mantém sua
atenção voltada ao estudo das relações entre as áreas da linguística, da
teoria social, da psicologia e dos estudos culturais. O materialismo
lacaniano defende que não é possível analisar o ser humano como um
indivíduo separado, pois deve ser levado em conta todo o contexto de seu
círculo social, político, histórico, linguístico e cultural. Sendo assim,
reconhecese que a conduta e as emoções do ser humano são definidas
pelos costumes e regras que o rodeiam.
De acordo com essa corrente, a conversação e linguagem são recursos
pelos quais criamos e produzimos nossa percepção de “eu”, por vezes
chamada de “personalidade”, e nossa interpretação do universo. A maneira
como discursamos influi em nosso modo de enxergar o mundo e na
construção de vínculos com os outros.
Ademais, o materialismo lacaniano ressalta a relevância do exânime em
nossa rotina. Em concordância com esse pensamento, o inconsciente é
uma potência que atua em nossas vivências e motiva nossas vontades e
atos, conforme é expresso em alguns dos conceitos dessa linha teórica, os
quais discutimos na próxima seção.
198
uma analogia com o jogo de xadrez:
As regras que temos de seguir para jogar são sua dimensão
simbólica: do ponto de vista simbólico puramente formal,
“cavalo” é definido apenas pelos movimentos que essa figura
pode fazer. Esse nível é claramente diferente do imaginário, a
saber, o modo como as diferentes peças são moldadas e
caracterizadas por seus nomes (rei, rainha, cavalo), e é fácil
imaginar um jogo com as mesmas regras, mas com um
imaginário diferente, em que esta figura
seria chamada de “mensageiro”, ou “corredor”, ou de qualquer
outro nome. Por fim, o real é toda a série complexa de
circunstâncias contingentes que afetam o curso do jogo: a
inteligência dos jogadores, os acontecimentos imprevisíveis
que podem confundir um jogador ou encerrar imediatamente
o jogo.
199
incompreensível, uma vez que está situado fora do Simbólico e do
Imaginário. Em outras palavras, é um excesso da realidade e, via de regra,
apenas o encontro com algo traumático, uma grande perda, um sofrimento,
algo que nos tire do prumo, como muita gente fala ao passar por uma
situação extremamente ruim. O Real é inenarrável, indizível e irrompe
quando o imaginário não consegue mais sustentar a integração da vida.
(OLIVEIRA, 2020).
Sobre o movimento do ser humano em relação ao funcionamento da
tríade, Žižek (2010) faz referência à composição da ordem simbólica que
da realidade e destaca a importância do grande Outro, uma instância virtual
que opera no nível simbólico: “Quando falamos (ou quando ouvimos),
nunca interagimos simplesmente com outros; nossa atividade de fala é
fundada em nossa aceitação e dependência de uma complexa rede de
regras e outros tipos de pressupostos”. (ŽIŽEK, 2010, p. 17).
O grande Outro não existe de fato, mas exerce um poder sobre o ser
humano quando passa a agir como se ele existisse. O grande Outro é o
“olhar sem olho” das regras que estruturam a convivência social. As
organizações e instituições, bem como a própria linguagem, modelam a
vivência do homem e determinam as chances e as continências de suas
atitudes e preferências. Com uma forma abstrata, o grande Outro retrata
uma motivação deliberativa nas vivências do ser humano dentro da ordem
simbólica.
200
Evaristo é mestra em Literatura Brasileira pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (1996) e doutora em Literatura Comparada pela
Universidade Federal Fluminense (2011). (MACHADO, 2014).
Conceição Evaristo concebe seus textos a partir de sua condição de
mulher negra na sociedade brasileira. Vinda de uma família pobre,
enfrentou diversos obstáculos para conseguir chegar aonde chegou e teve
que dividir seu tempo entre o trabalho doméstico e os estudos. Dessa
forma, sua produção literária, seu campo imaginário e sua ficcionalização
vêm à tona por intermédio de sua própria autorrepresentação, que
também gera uma representação coletiva de incontáveis afrobrasileiros.
Suas obras narram histórias de personagens que lutam como ela contra o
racismo e contra a desigualdade de gênero. Além disso, a autora escreve
sobre o mundo pósabolição e suas sequelas.
Dentro do movimento negro brasileiro contemporâneo, é possível
observar que a vida e a produção literária de Conceição têm o objetivo de
trazer à tona questões raciais, de gênero e de classe, como nas obras: Ponciá
Vicêncio (2003), Becos da memória (2006), Poemas de recordação e
outros movimentos (2008), Insubmissas lágrimas de mulheres (2011),
Histórias de leves enganos e parecenças (2014) e Canção para ninar
menino grande (2018).
Por considerarmos Conceição Evaristo um dos grandes nomes da
literatura, com um trabalho conscientizador no que diz respeito à
identidade nacional, neste artigo, analisamos uma de suas obras (Ponciá
Vicêncio), por intermédio da teoria da tríade Simbólica.
201
Quando cresceu, Ponciá percebeu que morar na Vila Vicêncio não lhe
proporcionaria um futuro melhor, assim, decidiu ir embora de trem para a
cidade grande, a fim de resolver seus problemas. Seu sonho era trabalhar,
juntar dinheiro e comprar uma casa na cidade para viver com a mãe e o
irmão. No entanto, isso não aconteceu, pois, com o passar do tempo, Ponciá
não conseguiu um bom emprego, não foi feliz em seu casamento e ainda
sofrera sete abortos.
Tempos depois, a moça se encontra com a mãe e o irmão, na estação de
trem, pois eles também foram para a cidade. O irmão, que foi levado pelo
destino a trabalhar em uma delegacia, chegou a ser soldado; e sua mãe,
guiada por Nêngua Kainda (uma mulher sábia)7, partiu em busca dos filhos.
O encontro dos três marca a volta de Ponciá para a Vila Vicêncio.
Após esse breve resumo da narrativa, apresentamos alguns trechos do
romance para analisálos, sob a perspectiva da tríade simbólica (Simbólico,
Imaginário e Real), aplicando esses conceitos na vida da personagem
principal.
O Simbólico se aplica à narrativa da vida de Ponciá no que diz respeito
ao seu lugar de mulher negra na sociedade. Ademais, verificamos a
presença do Simbólico na questão da escravidão sofrida pelos ancestrais e
na dura realidade vivida pela personagem e por sua família que, mesmo
após conquistar a liberdade, ainda se viam presos ao passado, ao nome do
“Coronel Vicêncio” e ao trabalho árduo na terra dos brancos.
Ponciá não gostava de seu nome, ao longo da narrativa, ela almeja mudar
de nome diversas vezes, pois acreditava que isso mudaria a sua vida; a
personagem fugia das regras que eram impostas pela sociedade, ao ver
todo o sofrimento da família, o homicídio da avó, a morte do avô e a morte
do pai.
O movimento de Ponciá, dentro da ordem simbólica, se relaciona às
instâncias do Simbólico e do Imaginário. Na primeira, observamos as
normas impostas à personagem protagonista e ao seu povo: todos
7. Nêngua Kainda aparece na narrativa como uma mulher velha e sábia. É respeitada por todos
por sua sabedoria e pelas curas realizadas com a mistura de ervas e rezas. Nela, são evidenciadas
as marcas da ancestralidade, da religião, da espiritualidade e do misticismo do povo africano.
202
carregavam o fardo do sobrenome Vicêncio, herdado de um estranho, um
homem que nunca fizera parte da família, era um dono de escravos, o dono
do “Vô Vicêncio”.
Nessa perspectiva, Ponciá carregava essa realidade, a de um passado com
o qual era impossível se reconciliar. Apesar disso, por meio das muitas
indagações, buscava estabelecer uma relação entre a vida privada de toda
liberdade e a falta de perspectiva em uma vida mais justa, pois vivia sob o
jugo da escravidão. A realidade a conduzia a repetir os passos de seus
antepassados, mesmo após a assinatura da carta de alforria. Portanto,
compreendemos que o nome da personagem funciona dentro do
Simbólico como uma carga da tradição escravagista que oprimiu seus
antepassados e da qual ela desejava se libertar.
Ponciá Vicêncio sabia que o sobrenome dela tinha vindo desde
antes do avô de seu avô, o homem que ela havia copiado de sua
memória para o barro e que a mãe não gostava de encarar. O
pai, a mãe, todos continuavam Vicêncio. Na assinatura dela a
reminiscência do poderio do senhor, um tal coronel Vicêncio. O
tempo passou deixando a marca daqueles que se fizeram donos
das terras e dos homens. E Ponciá? De onde teria surgido
Ponciá? Por quê? Em que memória do tempo estaria escrito o
significado do nome dela? Ponciá Vicêncio era para ela um
nome que não tinha dono. (EVARISTO, 2017, p. 2627).
203
verificar esse movimento da tríade. Desde cedo, Ponciá via o pai e o irmão
trabalharem arduamente para garantir o sustento da família, passando
inúmeros dias fora de casa, era um trabalho herdado que lhes fora imposto.
(...) Ponciá Vicêncio se lembrava pouco do pai. O homem não
parava em casa. Vivia constantemente no trabalho da roça, nas
terras dos brancos. Nem tempo para ficar com a mulher e filhos
o homem tinha. Quando não era tempo de semear, era tempo
de colheita, e ele passava o tempo todo lá na fazenda.
(EVARISTO, 2017, p. 16).
Dessa forma, ela acreditava que se saísse da Vila Vicêncio e fosse para a
cidade grande teria um futuro melhor, estaria livre do passado, descobriria
sua identidade, daria a si mesma um novo nome, uma vida melhor para a
família, iria trabalhar e comprar uma casa. Enquanto, neste trecho, o
Simbólico se relaciona de forma mais próxima às leis que estruturam a
realidade de Ponciá; o Imaginário se liga à questão da imagem que ela
projetava da roça e da cidade. Calcada nessa projeção, a menina parte em
busca de novos significados para sua existência.
204
Por aqueles tempos, pelo interior andavam uns missionários.
Um dia a notícia correu. Eles iriam demorar por ali e montariam
uma escola. Quem quisesse ir aprender a ler, poderia. Ponciá
obteve o consentimento da mãe. Quem sabe a menina um dia
sairia da roça e iria para a cidade. Então carecia aprender a ler.
(EVARISTO, 2017, p. 25).
205
protagonista em um perfeito entrelaçamento: os eventos traumáticos não
foram suficientes para desintegrar a realidade, de modo que a psique da
moça não se desintegra.
A existência humana, caracterizada pelas atividades contínuas
dos indivíduos dentro de uma relação formal que estabelece as
ações e as escolhas do homem, bem como suas consequências,
é concebida nas dimensões do Simbólico, do Imaginário e do
Real, em que o Real é o excesso resultante das tentativas do
homem de se ajustar ao mundo simbólico, por meio da
linguagem, a qual estrutura a relação entre o significante (o
Simbólico) e o significado (o Imaginário). Fora do âmbito da
linguagem, o Real é, além de aterrorizante, inenarrável e,
conforme já dissemos anteriormente, o Real irrompe quando o
imaginário não consegue mais “sustentar” a integração
simbólica da vida. (OLIVEIRA, 2020, p. 65).
206
indiciam a perenidade dos problemas sociais enfrentados pela
protagonista.
Um dia, depois de olhar para o homem como se não o visse,
depois de tantos anos recolhida, enterrada, mortaviva dentro
de casa, Ponciá Vicêncio sorriu, gargalhou, chorou dizendo que
sabia o que devia fazer. Ia tomar o trem, voltar ao povoado.
Voltar ao rio. Dizendo isto apanhou debaixo do banco a
estatueta do homembarro. Pegou ainda uns panos e com um
gesto antigo, com um modo rememorativo de sua mãe,
perguntou se havia folhas de bananeira secas e palhas de milho
para embrulhar o barro. Em seguida fez uma pequena trouxa e
lentamente saiu. (EVARISTO, 2017, p. 104).
Considerações finais
207
personagem conseguiu retornar ao convívio com a realidade que a
cercava.
Referências
ŽIŽEK, Slavoj. Como ler Lacan. Tradução Maria Luzia Borges. Rio de
Janeiro: Zahar, 2010.
208
A MULHER NA OBRA DE LIMA BARRETO: DIFERENTES
OLHARES SOBRE O CASAMENTO
Maria Betânia da Rocha de Oliveira
Considerações iniciais
209
categoria social adquire rigidez ou flexibilidade, dependendo do contexto
histórico e, inclusive, do sujeito que incorpora ou não tal (tais) crença(s).
Diferente das leis naturais (lei da gravidade), as leis socialmente
constituídas adquirem uma aparente rigidez que leva à impressão de
imutabilidade de algo que, na verdade, foi construído pelos humanos e que,
portanto, por eles pode ser destruído.
A desconstrução de ideias que desenham as mulheres como seres
inferiores é um trabalho árduo que persiste até os dias atuais. Diversos
nomes compõem a história de luta da sexo feminino, que tem sido tratado
como secundário. Conforme as concepções de Simone de Beauvoir (1980),
essa inferiorização da mulher é visível não apenas em registros antigos,
como o texto bíblico, no qual a primeira mulher foi criada da costela do
homem, mas ainda hoje, em pleno século XXI.
Ao longo desse trajeto, observamos algumas mudanças, contudo, ainda é
necessário contestarmos tal secundarização e combatermos as violências
que a mulher sofre e que têm se revelado com uma força assustadora nos
dias que correm. Por tudo que suportam, a existência feminina só revela
resistência e fortaleza que, portanto, contradiz a ideia tantas vezes repetida,
que identifica todas as mulheres como frágeis.
Havendo condições suficientes, a mulher consegue demonstrar a sua
capacidade de responder das necessidades mais simples às mais
complexas, no ambiente familiar, profissional ou na academia, realizando
pesquisas nos mais variados campos. Quando inseridas nesses espaços, as
mulheres realizam seu trabalho com eficiência e com competência.
Dito isto, pretendemos analisar a percepção do casamento, a partir dos
escritos de Lima Barreto, à luz do Materialismo Lacaniano. O referido
escritor viveu no final do século XIX e início do século XX, um momento
no qual a luta feminina no Ocidente estava nos seus primórdios e, na
maioria das culturas, a mulher “bem educada” se destinava apenas ao
casamento.
Convém ressaltar que Barreto trata dessa categoria em outros textos
pois, ao construir seus escritos, deu forma a personagens que, de maneira
210
fictícia, retratavam a realidade encontrada na sociedade brasileira,
particularmente a do Rio de Janeiro, local onde o autor nasceu e morreu.
Nosso corpus de estudo são as personagens Olga, Ismênia e Adelaide, da
obra Triste Fim de Policarpo Quaresma (2011).
211
conforme as regras Simbólicas, que se manterão conforme o estabelecido
formalmente.
Da mesma forma que as ações dos jogadores podem afetar o curso em
um jogo de xadrez, acontecimentos inesperados ou traumáticos podem
provocar um excesso na realidade que circundam a existência humana.
Quando isso acontece, o indivíduo escapa do terreno seguro do Imaginário
e do Simbólico e se depara com o Real – terceira instância da tríade. O Real
é um excesso na realidade e sua irrupção é sempre traumática e
catastrófica. (ŽIŽEK, 2010, p. 1617).
Nessa perspectiva, elegemos quatro personagens femininas de Lima
Barreto para analisar como os elementos do Simbólico, do Imaginário e do
Real permeiam a realidade ficcionalmente representada nos espaços em
que Olga, Ismênia e Adelaide revelam suas histórias de lutas, de
acomodação e de resistência em uma sociedade que reduzia a mulher à sua
condição de submissão e aos afazeres do lar.
Embora este fosse o objetivo da existência de todas as mulheres, é um
equívoco silenciar diferenças importantes. Essas diferenças se expressavam
na classe social e na sua cor. Vasconcellos (1999, p. 58) destaca que “o
casamento era uma forma de comércio”. Às mulheres de classe alta ou
média exigiase o casamento; mas era apenas uma transação comercial –
um contrato entre dois homens (o pai e o futuro marido) e uma mulher
que não tinha nem direitos e nem voz. No caso das mulheres pobres, era
comum o concubinato. Vasconcellos (1999, p. 62) ressalta que “nas uniões
das classes mais pobres, carinho e amor eram imprescindíveis”.
À mulher era permitido um trabalho (mal) remunerado, caso houvesse
uma separação. Àquelas mais bem posicionadas na sociedade não era
permitido o trabalho fora de casa; no caso das mulheres pobres, era
cobrado o seu trabalho fora de casa, para garantir uma condição mínima de
existência, porque, muitas vezes, elas e seus filhos eram abandonados à
própria sorte.
Em Triste fim de Policarpo Quaresma, Barreto mostra a importância do
casamento na existência das mulheres, pois, ao permanecer solteira, além
212
do desprestígio social, a mulher era considerada uma fracassada, era
obrigada a viver subjugada a algum parente, submetendose a todas as suas
vontades. No texto, Ismênia9 afirma que a fala da mãe a respeito dessa
instituição era constante.
[…] Desde menina ouvia a mamãe dizer:“Aprenda a fazer isso,
porque quando você se casar...”, ou senão: “Você precisa
aprender a pregar botões, porque quando você se casar...”
9. Ismênia era uma das filhas do general Albernaz com Dona Maricota, mulher apresentada
como uma esposa que, além de administrar a casa, exerce algum ‘poder’ sobre o marido, mesmo
que sutil, é ela que dita algumas das regras e decisões da família que deseja muito casar as quatro
moças da casa.
213
isso o que as crianças das classes desfavorecidas são: mãode obra para a
sociedade. Quando essas mulheres saem para trabalhar, seus filhos ficam
com a avó, com a vizinha, com a tia... Novamente, mulheres. O cuidar das
crianças era, e ainda hoje é predominantemente, papel das mulheres.
Quando Barreto explicita a educação das mulheres para serem esposas e
donas de casa, sua crítica nos leva a refletir sobre a amplitude de sua visão
social: “De resto, não era só dentro de sua família que ela [Ismênia]
encontrava aquela preocupação. No colégio, na rua, em casa das famílias
conhecidas, só se falava em casar.” (BARRETO, 2011, p. 4647, grifo nosso).
Ou seja, a cobrança pelo casamento não era uma particularidade da família
de Ismênia, mas um traço encontrado nos diversos ambientes da
sociedade.
O narrador de Triste fim... revela essa limitação de Ismênia:
A vida, o mundo, a variedade intensa dos sentimentos, das
ideias, o nosso próprio direito à felicidade, foram parecendo
ninharias para aquele cerebrozinho; e de tal forma casarse se
lhe representou coisa importante, uma espécie de dever, que
não se casar, ficar solteira, “tia”, parecialhe um crime, uma
vergonha. De natureza muito pobre, sem capacidade para sentir
qualquer coisa profunda e intensamente, sem quantidade
emocional para a paixão ou para um grande afeto, na sua
inteligência a ideia de casarse incrustouse teimosamente
como uma obsessão. […] Aos 19 anos arranjou namoro com o
Cavalcânti, e à fraqueza de sua vontade e ao temor de não
encontrar marido não foi estranha a facilidade com que o
futuro dentista a conquistou. (BARRETO, 2011, p. 47, grifo do
autor).
Após cinco anos de namoro, Cavalcânti viaja e não volta mais. Ismênia,
sem qualquer outro interesse que a fizesse superar sua tristeza, sequer
encontra forças para tentar um outro relacionamento. Morre e é enterrada
com um vestido de noiva, como foi seu desejo.
O perfil que o narrador oferece sobre Ismênia nos faz refletir sobre o
efeito da educação específica dos gêneros, que compõe um humano
menos rico de horizontes e perspectivas ou mais rico. Se meu papel na
sociedade é lavar roupas, costurar ou faxinar, minha relação com todo o
universo limitase a essa função. Perdendoa, perco minha conexão com o
214
mundo. Percebem a pobreza do meu mundo? Como ele é estreito? Diante
da diversidade que constitui a existência humana, ater a vida a um aspecto
extenua algo que poderia ser vigoroso e intenso. A sociedade, com sua
dupla moral, matava (hoje com menos intensidade, mas ainda o faz),
intelectual e fisicamente a mulher, como Barreto registra na personagem de
Ismênia.
Observamos que as três instâncias da tríade permeiam a construção da
história de Ismênia. Seu movimento dentro da ordem Simbólica atesta que
há algo não resolvido; há um conflito que se manifesta naquilo que a teoria
lacaniana chama de “um excesso de vida”, isto é, Ismênia colocara o sentido
de sua vida no casamento. O conflito é existencial e este se instala nas
próprias tentativas de buscar aquilo que lhe é negado. Este conflito é o
excesso que a desestrutura dentro da ordem simbólica.
Simbólico, Imaginário e Real – os três níveis entrelaçados que compõem
a existência da personagem Ismênia – formam redes de significados, que
variam conforme os diferentes contextos sociais e históricos que
constituem a ordem Simbólica, a qual é composta por um conjunto de
regras que determinam o seu movimento na sociedade. Esse movimento de
Ismênia corresponde ao nó borromeano – o perfeito entrelaçamento entre
os três níveis. É ele que garante o movimento da vida humana. Em outras
palavras, as imagens construídas no plano do Imaginário de Ismênia sobre
o casamento conseguiram adiar o encontro com o Real até certo ponto.
Quando ela não mais conseguiu sustentar o Real na instância do Simbólico,
ele se ‘soltou’ e com ele toda a estrutura (e, portanto, a psique) se
desintegrou.
De acordo com Žižek (2010), a existência humana, caracterizada pelas
atividades contínuas dos indivíduos dentro de uma relação formal que
estabelece as ações e as escolhas do homem, bem como suas
consequências, é concebida nas dimensões do Simbólico, do Imaginário e
do Real. O Real pode ser entendido como excesso resultante das tentativas
do homem de se ajustar ao mundo simbólico, por meio da linguagem, a
qual estrutura a relação entre o significante (o Simbólico) e o significado (o
215
Imaginário). Fora do âmbito da linguagem, o Real é, além de aterrorizante,
inenarrável e, conforme dissemos anteriormente, irrompe quando o
imaginário não consegue mais “sustentar” a integração simbólica da vida.
Segundo Vasconcellos (1999, p. 138, grifos da autora),
Se o romancista não conseguiu libertar suas personagens
femininas da pressão social do casamento, o cronista, apesar de
solteiro, colocou a sua caneta a favor do chamado sexo frágil.
Soube, com sensibilidade, perceber que o matrimônio era,
muitas vezes, uma cínica troca de interesses, em que o amor
entre os cônjuges pouco valia. A mulher, por sua inexperiência,
viciada pelas bobagens da educação das irmãs de caridade,
casandose normalmente cedo, deixavase levar. Quando
amadurecia, percebia que estava prisioneira e nada mais podia
fazer senão sujeitarse a ficar unida ao marido até o final de seus
dias. Por esta razão, Lima Barreto, jornalista, advoga uma
mudança radical nas leis que regem o casamento. É um dos
primeiros a reivindicar a lei do divórcio, pois só assim a mulher
poderia se libertar e amar quem lhe aprouvesse.
216
citemos a passagem que registra o contentamento de dona Maricota,
durante os preparativos para o pedido de Ismênia por Cavalcanti: “[…] A
alegria de dona Maricota era grande: ela não compreendia que uma mulher
pudesse viver sem estar casada”. (BARRETO, 2011, p. 49). Compreendemos,
dessa forma, o comportamento de Ismênia: reproduz o que a sociedade
estabelece e o que a mãe reforça na sua formação. Os limites atribuídos
pela sociedade às mulheres são fortemente incorporados pelas duas
mulheres do romance. O problema é que, longe de uma mera ficção, tal
comportamento era o cotidiano daquelas mulheres. Nesse sentido, cabe o
seguinte questionamento: tais ideias sucumbiram ou ainda povoam o
universo de algumas mulheres?
O narrador de Triste fim... contanos sobre o dia do casamento de Olga
com Armando Borges e a reação de cada um sobre o enlace. Sobre Olga é
dito:“[…] Continuava a não encontrar dentro de si motivo para aquele ato,
mas, aparentemente, nenhuma vontade estranha à sua influíra para
isso.” (BARRETO, 2011, p. 109). Ou antes, “[…] casavase por hábito de
sociedade, um pouco por curiosidade e para alargar o campo de sua vida e
aguçar a sensibilidade.” (BARRETO, 2011, p. 76).
Nessas passagens, percebemos o tema do casamento como imposição
social às mulheres. Mas, é interessante perceber, na segunda citação, um fio
de liberdade aos olhos de Olga:“... alargar o campo de sua vida e aguçar a
sensibilidade”. Mesmo sem demonstrar empolgação com o casamento,
Olga vislumbra a possibilidade de descobrir aspectos da existência aos
quais ainda não tivera acesso, além de poder, após o casamento, permitirse
sensações físicas, antes tolhidas.
Em relação à Borges, a reação no que diz respeito ao seu casamento foi
outra:
[…] O marido é que estava contente. Não seria muito com a
noiva, mas com a volta que a sua vida ia tomar. Ficando rico e
sendo médico, cheio de talento nas notas e recompensas
escolares, via diante de si uma larga estrada de triunfos nas
posições e na indústria clínica. Não tinha fortuna alguma, mas
julgava o seu banal título um foral de nobreza, equivalente
217
àqueles com que os autênticos fidalgos da Europa brunem10 o
nascimento das filhas dos salsicheiros yankees. Apesar de ser
seu pai um importante fazendeiro por aí, em algum lugar deste
Brasil, o sogro lhe dera tudo [...]. (BARRETO, 2011, p. 109).
10. No texto original, encontramos o cuidado de identificar o sentido da palavra em uma nota
de rodapé, onde é dito que brunem significa apurar, aprimorar. (BARRETO, 2011, p. 109).
218
2011, p. 124).
219
dessas regras. Com isto, as regras aparentemente rígidas e inquebrantáveis
sofrem fissuras, mesmo que leves, mas que abrem possibilidades para uma
história diferente.
Por que fazer do casamento o fim último de sua existência? Por que a
liberdade de escolha é privilégio apenas dos homens? Por que o
conhecimento deve ser limitado para as mulheres, restringindose à
administração e à execução de tarefas domésticas? São perguntas que as
produções de Barreto suscitam ao abordar o tratamento destinado a
homens e mulheres no seu tempo, e que ainda rebatem na atualidade, na
medida em que estas últimas continuam sendo violentadas em vários
aspectos de sua existência.
A secundarização da mulher ainda é algo presente, por isso, fazse
necessário seu combate diuturno. Se o casamento não é mais considerado
uma obrigação inescapável para as mulheres, sua ruptura, às vezes, provoca
o desequilíbrio masculino que, achandose dono de sua companheira,
concebe como legítimo agredila ou matála, trazendo à tona a visão
machista e patriarcal que ainda assombra a existência feminina.
Considerações finais
220
perspectiva descrita pelo escritor em muitas de suas obras, especialmente,
em Triste Fim de Policarpo Quaresma, nosso objeto de estudo.
Neste capítulo, abordamos a categoria casamento que, por sua vez, foi
usado socialmente para controlar nosso comportamento, legitimando “o
poder do macho” (SAFFIOTI, 1987). Vimos, a partir do funcionamento da
tríade – Simbólico, Imaginário e Real, como Ismênia e sua mãe
incorporaram a ideia, socialmente estabelecida, de que o destino de todas
as mulheres era o casamento. Não havia sentido nas suas existências sem o
enlace matrimonial, a ponto de levar Ismênia à morte por ter sido
abandonada e não ter mais esperança de encontrar outro possível marido.
A personagem Maricota explicita um aspecto que recrudesce a
problemática do tratamento das mulheres: eram tratadas como objetos de
troca. Uma mercadoria que recebia nomes diferentes (Maricota, Ismênia,
Olga...), mas que cumpriam o papel de enriquecer seu marido ou de, pelo
menos, elevar seu status social.
Mesmo Olga, mulher inteligente, se submete ao casamento com Borges,
médico oportunista, por crer que nenhum homem seria diferente. Nesse
sentido, observamos que a pressão social é tanta que ela segue as normas
vigentes para não receber um tratamento desvalorizante.
Adelaide representa uma ruptura, pois consegue quebrar a imposição do
casamento. Ela não se angustia pela falta do casamento, bastandose a si
mesma. Contudo, vimos que, se a irmã de Policarpo consegue apresentar
esse aspecto inovador, em contrapartida, precisa do apoio masculino para
tomar decisões que se relacionam com o mundo exterior e o seu ambiente
doméstico.
Embora a dupla moral ainda exista: os homens são mais livres, podem ter
relações fora do casamento, recebem salários maiores, etc., a cobrança da
união matrimonial como uma relação inquebrantável (“até que a morte os
separe”) ruiu. Somos, individual e coletivo, seres em processo. A submissão
existe por diversas fatores e buscálos, investigálos, discutir sobre eles, é
uma necessidade real. Por que o fato de ser mulher leva à necessidade da
criação de leis que nos protejam? Por que o fato de casarmos leva o homem
221
a crer que somos sua propriedade?
Felizmente, assim como desejou Barreto, o divórcio foi legitimado. Não
precisamos manter vínculo com alguém que não corresponde ao
companheiro que desejamos. Diferente do sentimento de Olga, todos os
homens não são iguais e, mesmo que o machismo e o patriarcado ainda
componham nossas relações, perpassando a todos, o movimento feminista
suscitou mudanças de ideias e comportamentos.
A realidade social é composta por contradições, na medida em que é
constituída por classes radicalmente (de raiz) antagônicas, que hoje se
expressam nas relações entre burguesia e proletariado. Tal antagonismo
rebate, de maneira mediada, em todas as esferas das nossas relações,
inclusive na afetiva. Há uma relação desigual de poder do homem sobre a
mulher; do branco sobre os negros; de crenças religiosas que se julgam
superiores a outras.
É preciso entender que os séculos XIX, XX e XXI têm em comum as
relações regidas pelo capital, uma vez que este existe a partir da exploração
do burguês sobre os trabalhadores. Nesse contexto, acontece uma
desigualdade que é recrudescida, no caso das mulheres, pela coexistência
com o patriarcado. Portanto, nossa luta não pode perder de vista as diversas
formas de opressão com as quais lidamos.
A ideia de superioridade entre humanos por conta de sua etnia, da sua
vivência sexual, do seu gênero, da sua crença religiosa ou da sua descrença
é inconcebível, pois tudo isso é construto social, assim como o casamento.
Diante disso, é possível alterarmos nossa compreensão que legitima o
comportamento preconceituoso, o qual considera os outros seres como
menores e sujeitos à vida ou à morte, dependendo da vontade desses
senhores.
Por fim, é importante compreender como a literatura auxilia na
revelação do comportamento humano, entendendo que a ficção não é
mera criação oriunda de uma mente desconectada do real. Se não podemos
igualar literatura e realidade, a primeira tornase grande quando nos ensina
a olhar com mais cuidado as relações nas quais estamos mergulhadas e
222
tecermos as críticas necessárias no sentido de superar uma realidade que
nos limita, que nos tolhe, que nos impede de ser quem podemos e
queremos.
Referências
ŽIŽEK, Slavoj. Como ler Lacan. Tradução Maria Luzia X. de A. Borges. Rio
de Janeiro: Zahar, 2010.
223
224
O MATERIALISMO LACANIANO DE ŽIŽEK NA OBRA
ANGÚSTIA, DE GRACILIANO RAMOS
Andressa Tayse de Oliveira Costa
Maria Betânia da Rocha de Oliveira
Considerações iniciais
225
falência social revelada em Camilo Pereira da Silva se estendia na
constatação de que o neto, que deveria ser bemnascido, fora reduzido a
Luís da Silva.
Na obra, a angústia anunciada desde o título, permeia todas as
lembranças que o protagonista relata, de forma intimista e sem obedecer a
ordem cronológica dos fatos, visto que a sua vida se resume entre os
conflitos e as inquietações de sobreviver em um país onde as relações são
permeadas pela desigualdade entre ricos e pobres.
Essas características justificam a análise da obra a partir do materialismo
lacaniano proposto por Žižek. Tratase de uma proposta que estuda a obra
de Graciliano na perspectiva social e filosófica, aliada ao viés estético
literário, em que o escritor expõe os conflitos do homem da época como
representação de um mundo que é, além de tudo, um corpo social. Dessa
forma, Angústia (1995) admite, em sua análise, considerar o vai e vem dos
fatores que condicionam as concepções históricas e literárias, e que
permitem uma análise do homem à luz de uma teoria contemporânea.
Nessa concepção, este trabalho tem como objetivo Angústia (1995), de
Graciliano Ramos, pelo viés do Materialismo Lacaniano. Esta corrente
filosófica tem como principais representantes o francês Alain Badiou
(2002) e o esloveno Slavoj Žižek (2010), e teve origem na filosofia política.
Atualmente, esta corrente de estudos avança em diversas áreas do
conhecimento e atinge os estudos culturais, por meio da proposta de ler
textos literários a partir da aplicação dos conceitos de Lacan propostos por
Žižek.
Para tanto, apresentamos Angústia como um romance que evidencia o
entrelaçamento dos vários aspectos que compõem a realidade do ser, pois
os aspectos exteriores da realidade são substituídos pelos conceitos do que
é Simbólico, Imaginário e Real. A partir da análise do protagonista Luís da
Silva, atentamonos aos traços psicológicos que envolvem seu
descontentamento social, sentimental e econômico, uma vez que a
narrativa oscila entre os conflitos presentes no cotidiano e a resistência de
Luís da Silva diante delas.
226
A pesquisa foi estruturada em três seções: na primeira, apresentamos os
dados que justificam a escrita social de Graciliano Ramos, bem como a
diversidade de suas obras; na segunda, discorremos sobre o filósofo Žižek e
as suas concepções; e na terceira seção, analisamos a obra sob o viés da
tríade simbólica.
227
Outra temática muito analisada em pesquisas sobre o autor é a questão
do poder que emana do sistema capitalista, originário do processo de
colonização e formação do Brasil. Verificamos esses elementos nas obras
São Bernardo (2001) e Angústia (1936), cujos personagens representam a
relação de poder entre as classes mais favorecidas sociais e
profissionalmente, e os que precisam trabalhar para fortalecer e enriquecer
essa pequena parcela da sociedade brasileira. (BOSI, 2013).
Para Bosi (2013, p. 429), “o realismo de Graciliano não é orgânico nem
espontâneo, é crítico. O ‘herói’ é sempre um problema: não aceita o mundo,
nem os outros, nem a si mesmo.” O estudioso afirma que a principal
característica da literatura graciliânica é a representação analítica que ele
faz das tensões sociais de sua época, por meio das ações e dos sentimentos
das personagens, cuja linguagem configura os ideais do modernismo. No
entanto, a escrita de Graciliano vai além da reivindicação, uma vez que
transforma e reconfigura o momento literário vivido na época e rompe
com os padrões que o sistema impõe.
Em Angústia (1995), o narrador protagonista se remete à sua história
anterior, mas o processo da escrita é a memória – não a escrita de suas
memórias, pois as lembranças vêm à tona numa ordem que não obedece a
cronologia (presente e passado se fundem) , mas as marcas de um eu que
sofre por não se ajustar ao meio pessoal, social e profissional em que vive.
Nesse romance, o ato de escrever é colocado em pauta. Se, por um lado,
Paulo Honório deseja ser escritor e falha; por outro, Luís da Silva sofre
porque “sabe” e quer escrever livremente, porém as condições financeiras
o obrigam a “escrever por encomenda”.
Diante disso, elegemos o romance Angústia (1995) para uma análise sob
a ótica do Materialismo Lacaniano proposto por Žižek (2010). Antes de
passarmos para as análises, apresentaremos o autor dessa linha teórica
recentemente chegada ao Brasil.
228
Slavoj Žižek é um filósofo atual e contemporâneo que questiona as crises
que assolam o mundo atual nas diversas esferas da sociedade – social,
política, educacional, entre tantas outras peculiaridades deste tão
conturbado século XXI. É um pensador bastante atuante Žižek chega a
publicar de um a três livros por ano e, ainda por ministrar palestras
polêmicas, este filósofo encontrase, na atualidade, como o centro dos
holofotes nos meios acadêmicos e nas mídias em geral. Admirado por
muitos e questionado por alguns, as ideias que costuma propagar pelo
mundo a fora são tidas como revolucionárias e “perigosas”.
De acordo com Santos (2018), Slavoj Žižek nasceu no dia 21 de março de
1949, em Liubliana Eslovênia. Estudou e graduouse em Letras e Filosofia
numa época em que o contexto histórico fora marcado pela orientação
socialista soviética. Os estudos de filosofia tiveram influência do idealismo
alemão de Hegel11 e Schelling12, dos quais Žižek estudou as concepções
acerca do materialismo dialético e histórico.
Žižek concluiu o Doutorado em Filosofia (1981), mas estes estudos não
deram conta de suas concepções acerca dos pensamentos socialistas
existentes na Iugoslávia naquela década, ou seja, a Filosofia não atendia às
inquietações oriundas dos problemas existenciais ligados ao homem em
circulação numa sociedade capitalista. Sendo assim, Žižek fez outro
doutorado, agora em Psicanálise, sob o viés lacaniano. (ŽIŽEK; DALY, 2006).
Conforme discutimos anteriormente, as concepções teóricas de Žižek
são marcadas por uma variedade de áreas do conhecimento e suas ideias
seguem uma linha de posicionamentos ousados e transgressores. O
pensamento žižekiano abrange áreas como a filosofia, a política, a
economia, a psicanálise, a sociologia (embora ele afirme que nada tem a ver
11. Friedrich Hegel (17701831) foi um filósofo alemão. Um dos criadores do sistema filosófico
chamado idealismo absoluto. Foi precursor do existencialismo e do marxismo. Fonte: https://
educacao.uol.com.br/biografias.
12. Friedrich Wilhelm Joseph Schelling foi condiscípulo e amigo de Hölderlin e Hegel. Em
Leipzig, estudou matemática e ciências naturais, e em Jena frequentou os cursos de filosofia de
Fichte. Sua primeira filosofia utilizou as descobertas científicas de seu tempo e restabeleceu a
objetividade da natureza, concebendoa como uma realidade que se basta e se explica a si
mesma, dotada de vida própria, criadora e autônoma. Fonte: https://educacao.uol.com.br/
biografias.
229
com essa área de conhecimento), a literatura, o cinema e o teatro.
(BAZZANELA, 2008).
Ler Žižek tratase, pois, de um grande desafio, uma vez que suas
produções teóricas exigem um leitor dotado de conhecimento acerca de
várias áreas de conhecimento e que esteja antenado às questões culturais e
artísticas, que vão desde a literatura canônica a filmes de Hollywood.
Oliveira (2017) ressalta que Žižek consegue falar da literatura de
Stephen King à grande música de Mozart, passando pela física quântica e
por Kafka, além de inserir muitos insights sobre política, psicanálise e
filosofia. Muito além da metafísica, teologia e positivismo, para este filósofo,
a verdade passa a ser uma compreensão das relações de poder reais que
controlam a sociedade e das ideologias que impedem a sociedade de
atingir a liberdade. Desse modo, a questão da ideologia ganha uma nova
roupagem.
Silva (2009b, p. 18), uma das pioneiras nos estudos da teoria deste
filósofo no Brasil, ressalta que
A velocidade com ele troca de assuntos pode nos surpreender,
mas, quando lido com cuidado, Žižek se revela um excelente
provocador: suas considerações sobre aspectos aparentemente
banais, ou já estudados até a exaustão, da vida cotidiana, são
sempre surpreendentes e iluminadoras. Na pior das hipóteses,
ele nos obriga a repensar, mesmo quando discordamos. Na
melhor, ele chega a criar impressões epifânicas em seu leitor.
230
O materialismo lacaniano é uma corrente ligada, inicialmente, à filosofia
política. Atualmente, esta linha teórica criada por Slavoj Žižek atinge as
mais diversas áreas do conhecimento, principalmente porque, segundo
este filósofo contemporâneo, as concepções filosóficas do passado acerca
do materialismo dialético e histórico baseadas apenas no marxismo não
mais contemplavam as problemáticas da atualidade.
Silva (2009b) destaca que a teoria de Žižek corresponde à uma
reconstrução histórica a partir dos estudos que relacionam,
simultaneamente, o marxismo, a psicanálise de Lacan e a crítica social.
Sobre essa reconstrução, Silva explica que foram os impasses advindos da
crise por que passou a União Soviética que aceleram o início dos
pensamentos do filósofo acerca da instalação de uma “democracia liberal”.
O Materialismo Lacaniano não só despontou como uma nova corrente
filosófica, como “relativou certezas outrora inabaláveis e novas perguntas
foram elaboradas no grande vácuo que as incertezas agora, novas, traziam”.
(SILVA, 2009a, p. 211). Esta pesquisadora reitera que, além de Žižek, o
francês Alain Badiou e Alenka Zupan i também são representantes do
materialismo lacaniano. Dessa maneira, “esses pesquisadores formularam
suas teorias para criticar o pensamento marxista convencional”, mas eles
não rejeitam as ideias de Marx, apenas asseguram que para dar contar do
atual cenário mundial, em constantes crises e transformações, é preciso ir
além da perspectiva do materialismo histórico de Marx.
Para Žižek, a teoria marxista negligencia a dimensão social da realidade
representativa, por isso, urge que o poder funcione além dos limites da
democracia. Ele destaca que devemos encontrar os antagonismos que
fazem do comunismo uma urgência prática na realidade histórica.
Oliveira (2019) enfatiza que sem as bases do materialismo lacaniano,
retornar ao pensamento de Marx é aceitar, na atualidade, a existência de
uma nova esquerda, mas que traz os princípios do capitalismo em sua
essência. Žižek fala sobre a crise do marxismo e explica que ela deve ser
avaliada a partir “de um ponto de vista sempre mutável entre dois pontos
entre os quais não há síntese nem mediação possível” (ŽIŽEK, 2008, p. 14),
231
o que ele denomina de uma “visão em paralaxe”.
Nesse sentido, é necessário observar a crise não apenas pelas derrotas
sociopolíticas dos movimentos marxistas, mas também pelo viés do
declínio do próprio materialismo dialético enquanto base filosófica, que
deve ser diferenciado da “dialética materialista”, visto que esta é “mais
aceitável e menos embaraçosa”. Portanto, aplicar os princípios do
materialismo dialético ao estudo da vida social também não contempla os
fenômenos da vida da sociedade em sua realidade objetiva, fato que o leva
a incorporar a dialética do materialismo à psicanálise de Lacan, utilizada
“para cobrir as lacunas que o materialismo dialético não contempla”.
(SILVA, 2009a, p. 211).
O pensamento materialista lacaniano de Žižek foi concebido por três
grandes áreas do conhecimento: a filosofia, a política e a psicanálise. As
ideias sobre política foram concebidas a partir do pensamento de Marx, as
quais o filósofo agregou às concepções de economia. Quanto às
concepções da psicanálise de Jacques Lacan, Žižek propôs uma revisão dos
conceitos que, segundo ele, “são vagos e indefinidos”. Este filósofo ainda
explica que a psicanálise de Lacan é uma área muito complexa e, por isso,
está sempre aberta a novos significados. Esta proposta de análise de Žižek
permite uma atualização dos próprios conceitos, uma leitura criativa e
aberta a novos jogos de palavras, significados e definições. (SILVA, 2009a, p.
212).
Nas palavras do filósofo, a junção das três áreas social, econômica e
política, sob a perspectiva dialética e histórica relacionada às teorias de
Lacan, pode “pensar” os problemas do homem numa dimensão que exclui o
tratamento clínico. E reitera:“porque o clínico está em toda parte, podemos
contornar o processo e nos concentrar, em vez disso, em seus efeitos, no
modo como ele colore tudo que parece não clínico” (ŽIŽEK, 2010, p. 12).
Com essa concepção, ele ultrapassa as fronteiras do marxismo e,
principalmente, da psicanálise.
O materialismo lacaniano surge como uma corrente de ampla
abordagem que, em sua estrutura teórica, apresentase como uma
232
ferramenta eficaz e capaz “para explicar nossas agruras sociais e libidinais”.
(ŽIŽEK, 2010, p. 12). Para entender essas “agruras sociais”, este filósofo,
leitor de Lacan, explica que a existência humana é oriunda da própria ação
humana dentro de um espaço que ele denomina de ordem simbólica, cujas
ações são decorrentes da própria estrutura de “uma ordem simbólica, a
constituição não escrita da sociedade”, que controla todos os atos do
homem.
Os principais conceitos do materialismo lacaniano formam a tríade
simbólica: Simbólico, Imaginário e Real. O entrelaçamento desses três
níveis garante a constituição da realidade dos seres humanos, uma vez que
a existência do ser humano só se completa na unificação dos três níveis
numa estreita relação de sentidos.
Conhecer a tríade lacaniana é muito importante para entender as bases
do materialismo. Tal como expressamos anteriormente, o estilo adotado
por Žižek é inovador, pois ele fala de temáticas “velhas” com uma “nova”
roupagem. Seguindo essa linha, o filósofo explica como funcionam as
instâncias da tríade, por meio de uma analogia com o jogo do xadrez, cujas
regras representam o Simbólico; o movimento das peças, realizado pelos
jogadores, se encaixa no Imaginário; e os acontecimentos inesperados
durante o jogo constituem o Real.
Relacionado ao universo humano, o simbólico são todas as regras, todos
os nossos comportamentos, são as normas que nos permitem viver em
sociedade. Žižek utiliza o conceito “Simbólico” no sentido lacaniano, que
pouco tem a ver com a definição que os dicionários trazem da palavra. No
senso comum, o termo simbólico remete ao funcionamento por meio de
símbolos; na perspectiva de Lacan, referese “ao estágio no qual cada
indivíduo estrutura uma série de códigos, leis e proibições, diretamente
responsáveis pela socialização do indivíduo e funciona como um padrão de
comportamento contra o qual posso me medir. (ŽIŽEK, 2010, p. 17).
Oliveira (2017) destaca que o Simbólico, enquanto significante, é
responsável pela criação do Imaginário. O Simbólico corresponde ao
significante e se aproxima da realidade externa, mas não é a realidade. Na
233
tríade, é o Imaginário que corresponde ao significado e que sustenta o
Simbólico, pois é na relação com mundo e com os outros seres que o
homem se constitui enquanto sujeito da linguagem. Em outras palavras, o
Simbólico e Imaginário funcionam como significante e significado,
respectivamente.
O Imaginário se relaciona com as representações mentais das coisas, isto
é, tem a ver com a imagem que fazemos das pessoas e dos fatos. Ademais,
corresponde ao Imaginário a imagem idealizada que um indivíduo faz de si
mesmo, no qual se baseia para tentar formar uma noção de identidade. Da
mesma forma, a interação social entre indivíduos se baseia no Imaginário
que cada um cria, de modo que, quando se fala ou se dirige a alguém, nunca
é um contato direto, mas intermediado pela visualização que um possui do
outro.
O Simbólico e o Imaginário atuam no campo da linguagem, porém o
Real (com R maiúsculo) não pode ser expresso por meio de palavras.
Oliveira (2017) destaca que o Real funciona além do Simbólico e do
Imaginário porque não se materializa nem pela linguagem nem na
linguagem. Esse nível corresponde ao momento em que há um excesso,
uma sobra ou há algo que escapa daquilo que nós conseguimos simbolizar.
Esse excesso faz parte da nossa realidade, mas não conseguimos nem
enxergar e nem pensar, porque para pensar, precisamos de palavras ou de
imagens. O Real é indizível.
Quando o homem entra no Real, o mundo não faz mais sentido. Ele quer
sair dali porque o encontro com o Real é pavoroso. Ninguém quer entrar
em contato com o Real porque ele acontece quando alguém sofre algum
tipo de violência traumática, um acidente, um assalto etc. Quando o
homem consegue traduzir em palavras, ele ressimboliza aquele momento
de frustração e volta para a dimensão simbólica, pois precisa seguir o curso
da Ordem Simbólica – a Tríade Lacaniana.
Neste momento, convém ressaltar que, conforme já dissemos
anteriormente, a análise do materialismo lacaniano não é psicanalítica, uma
vez esta teoria não se volta para o tratamento clínico do indivíduo. O que
234
importa para Žižek (2010) não são as questões individuais (análise
psicanalítica), mas a dimensão social que determinada realidade provoca
no homem enquanto ser integrante da sociedade.
A partir da ideia de que “o sujeito existe como uma dimensão eterna de
resistênciaexcesso em relação a todas as formas de subjetivação” (ŽIŽEK;
DALY, 2006, p. 11), apresentamos, a seguir, a análise da obra Angústia, de
Graciliano.
235
é composto pelas instâncias do Simbólico, do Imaginário e do Real
presentes desde o primeiro parágrafo do enredo:“Levanteime há cerca de
trinta dias, mas julgo que ainda não me restabeleci completamente. Das
visões que me perseguiam naquelas noites compridas umas sombras
permanecem, sombras que se misturam à realidade e me produzem
calafrios”. (RAMOS, 1995, p. 7).
Oliveira (2019, p. 25) afirma que “este momento inicia a narrativa,
entretanto, acontece logo após a uma fase de ‘tormento’ que o personagem
passou quando cometeu o assassinato de um homem. E para não ser ‘pego’
pela ordem Simbólica, montou a cena para que parecesse um suicídio por
enforcamento”. Esta passagem pode ser explicada a partir do conceito de
Simbólico, que se configura como um “estágio no qual cada um estrutura
uma série de códigos, leis e proibições, diretamente responsáveis pela
socialização do indivíduo”. (SILVA, 2009b, p. 19).
O momento do assassinato corresponde ao encontro com o Real da
tríade, pois desestruturou o narrador:“a ideia de que Julião Tavares era um
cadáver estarreceume”. (RAMOS, 1995, p. 194). Todo o relato da morte do
inimigo revela quão doloroso foi matar um homem, mesmo que este fosse
um “isso não vale nada”.
Luís da Silva seguia um padrão de vida imposto pelo Simbólico – as
normas de uma sociedade excludente e que valorizava o dinheiro, o nome
e a posição social ganhavam significados diferentes a cada situação
vivenciada. Ao cometer o assassinato do rival, era preciso esconder as
evidências: “parecer” não ter cometido crime, embora as imagens (que
correspondem ao Imaginário) atestassem a sua culpa: “vivo agitado, cheio
de terrores, uma tremura nas mãos, que emagreceram. As mãos já não são
minhas: são mãos de velho, fracas e inúteis. As escoriações das palmas
cicatrizaram”. (RAMOS, 1995, p. 7). Relacionamos as feridas cicatrizadas
com o que Žižek (2008) chama de “ressimbolização” daquele momento de
frustração – o encontro com o Real.
O Real não pode ser manifestado pela linguagem, quando Luís da Silva
consegue “traduzir” em palavras esse Real, por meio da rememoração desse
236
momento, ele ressimboliza aquele “tormento” na dimensão simbólica,
porque precisa seguir a vida regida pela Ordem Simbólica (OLIVEIRA,
2019). Observamos essa situação no excerto a seguir, quando Luís da Silva
discorre sobre o momento em que se prepara para ir trabalhar.
O sino da igrejinha bate a primeira pancada das avemarias. Não,
não é o sino da igreja, é o relógio da sala de jantar. Oito e meia.
Preciso vestirme depressa, chegar à repartição às nove horas.
Aprontome, calço as meias pelo avesso e saio correndo.
(RAMOS, 1995, p. 36).
237
A história se passa nos anos de 1930 e Luís da Silva está preso às
engrenagens de uma sociedade considerada précapitalista:
para os bemnascidos, a terra reserva fatura e progresso, mas
para os menos favorecidos social e economicamente, como
Luís da Silva, restava a dura tarefa de sobreviver. (OLIVEIRA,
2019, p. 27).
238
profunda e amargurada. Em sua concepção, o mundo a sua volta está
tomado pela tristeza e pelos conflitos originados de sua posição social,
resultante das condições financeiras em que nascera e que carregava até
então.
Luís da Silva desejava escrever, mas como não podia escrever o que
quisesse, o trabalho com a escrita era árduo: “Não consigo escrever.
Dinheiro e propriedades, que me dão sempre desejos violentos de
mortandade e outras destruições, as duas colunas mal impressas (...)”.
Assim, produzia artigos “sem vida” para o jornal onde trabalhava: “à noite
fecho as portas, sentome à mesa da sala de jantar, a munheca emperrada, o
pensamento vadio longe do artigo que me pediram para o jornal”. (RAMOS,
1995, p. 8). A partir desse trecho, percebemos que essa situação
representava um tormento diário, pois tudo a sua volta era motivo de
desprezo e questionamento.
Com base na perspectiva lacaniana, identificamos, em Luís da Silva, a
existência da tríade lacaniana representada pelo Real, Simbólico e
Imaginário. As três instâncias da vida real, respectivamente, não existem
isoladamente, sendo necessária a análise do conjunto. A partir do momento
em que observamos Luís como um indivíduo pertencente a um sistema
regido por normas e que anseia por mudança, verificamos o
entrelaçamento dos três níveis que ocasionam momentos de intensa dor,
revoltas internas e desastres que são refletidos em sua vida, uma vez que, ao
recuar e se isolar, Luís pensa, ressignifica e retorna ao mundo Simbólico.
Considerações finais
239
confrontar as questões relacionadas aos conceitos desenvolvidos por
Lacan e retomados por Žižek, a partir de sua história dentro do
funcionamento da tríade: o Simbólico, o Imaginário e o Real.
Como propusemos um viés diferente para a leitura da obra, julgamos
pertinente relacionar algumas informações da vida e da obra do escritor,
principalmente, no que se refere às características da linguagem, pois
Graciliano expressa, de forma peculiar e inovadora, o homem em uma
sociedade elitista e excludente.
As concepções de Žižek sobre o materialismo de Marx foram
pertinentes para a análise do mundo e da realidade subjetiva expostos na
narrativa. Nessa perspectiva, observamos que o personagem narrador
passou por diferentes conflitos desde a figura ilustre do avô, que
representava a classe alta da qual Luís da Silva desejava fazer parte, até os
dissabores advindos com a decadência e morte do pai. Tudo girava,
angustiosamente, em torno de sua relação com o mundo da realidade
vivenciada, como ser pertencente à classe menos favorecida.
Nesse contexto, partimos do pressuposto de que a vida na sociedade se
materializa nos processos de exclusão e opressão, resultantes da
dominação, tais como os experimentados pelo personagem protagonista
de Angústia que vivenciara todas as formas de aceitação, negação e
resistência dentro do sistema capitalista da época. Luís da Silva passou pelo
Simbólico, pelo Imaginário e desembocou no Real, e, enfim, ressimbolizou
e voltou a seguir os padrões de comportamento da Ordem Simbólica que
regem o mundo.
Por fim, constatamos que a aplicação do materialismo lacaniano na
literatura proporcionou uma visão diferenciada da obra, observando que as
questões relacionadas à vida pessoal partem, sobretudo, dos conflitos
originários da sociedade. Dessa forma, o personagem protagonista passou
por diferentes traumas na realidade exposta na narrativa. Os vários
momentos de frustração confirmam a tese de que a realidade do sujeito
não pode ser desvinculada da tríade apresentada por Žižek, uma vez que
Luís da Silva não pode apenas viver no mundo Simbólico e Imaginário, ele
240
precisa passar pelo Real para se tornar sujeito de sua própria existência.
Referências
RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 5 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1995.
ŽIŽEK, Slavoj. Como ler Lacan. Tradução de Maria Luzia Borges. Rio de
Janeiro: Zahar, 2010.
241
ŽIŽEK, Slavoj e DALY, Glyn. Arriscar o impossível: Conversas com Žižek.
Tradução de Vera Ribeiro. Editora Martins Fontes. 2006.
242
O CONTO AMOR, DE CLARICE LISPECTOR, À LUZ DO
MATERIALISMO LACANIANO
Késia Maria da Silva Florentino
Maria Betânia da Rocha de Oliveira
Considerações iniciais
243
tornandose interno.
A literatura é uma instituição social e, por isso, precisa ser entendida
como um processo. Processo este que deve partir de um dado da realidade
que se apresenta, transcedendo o texto, ou seja, quando assume um
discurso, a literatura conta com outras instâncias, tais como os aspectos
estruturais que compõem a obra. Oliveira (2020, p. 16) afirma que “a
literatura, desse modo, não pode estar apenas no texto, como não está no
autor, nem no leitor. Ela se constitui num processo que envolve e
compromete a todos, numa unidade de movimento intensamente
dialética”.
A construção dos sentidos está intrinsecamente relacionada à
elaboração de um sistema simbólico, que transmite visões do mundo por
meio de instrumentos expressivos adequados, principalmente quando se
reporta ao estabelecimento de relações sociais, na satisfação de
necessidades espirituais e materiais, na manutenção ou na mudança da
ordem social. Nesse interim, convém destacar que a unidade textual não se
encontra apenas no autor, uma vez que é a interação com o leitor e com
outros fatores externos que se dá a efetiva organização literária.
Partindo desse pressuposto, fizemos uma breve apresentação da
literatura clariceana, destacando seu estilo, bem como algumas de suas
obras mais estudadas no meio acadêmico. Além disso, discorremos sobre o
que alguns dos especialistas, que se debruçaram sobre a literatura de
Clarice, têm a nos dizer sobre suas tendências contemporâneas.
Finalmente, destacamos de que forma essa produção, de cunho intimista e
carregado de subjetividade, dialoga com a sociedade burguesa, cujos temas
permanencem tão atuais quanto à epoca em que foram escritos.
Em seguida, prosseguimos com a apresentação do materialismo
lacaniano, tomando como caminho de estudo a pesquisa qualitativa e de
caráter indutivo, recorrendo ao cruzamento de dados coletados que
propõem um diálogo entre o objeto de pesquisa e os significados no texto,
a partir da análise da personagem feminina, sob a ótica do materialismo
lacaniano.
244
Para a análise, utilizamos o conto Amor, terceiro dos treze contos de
Laços de Família (1998). Desse modo, recuperamos as características
literárias presentes no conto, com foco no cotidiano da personagem Ana, e
as relacionamos à tríade – Simbólico, Imaginário e Real, de Lacan, revisitada
por Žižek (2010). Nos trechos analisados, verificamos a forma como o
sujeito (a personagem) transita pelo espaço Simbólico e como a instância
do Imaginário conduz os passos da personagem para o afastamento do
encontro com o Real.
De acordo com o funcionamento da tríade, tal qual a concepção de
Žižek, a personagem Ana se constitui no vazio, na lacuna de sua própria
subjetividade, em meio às concepções de um contexto histórico, cultural e
social de que o destino da mulher é ser esposa prendada e mãe dedicada
aos afazeres do lar.
245
consciência, a ruptura com o enredo factual”. Em sua época, Lispector fez
sucesso e também se destacou por escrever sobre temas polêmicos, como:
conflitos psicólogos, questões existenciais e sobre o papel da mulher na
sociedade. Sobre o sucesso da escrita clariciana, Bosi (2013, p. 452) destaca:
Os analistas à caça de estruturas não deixarão tão cedo em paz
os textos complexos e abstratos de Clarice Lispector que
parecem às vezes escritos adrede para provocar esse gênero de
deleitação crítica. Limitome aqui a ensaiar algumas ideias sobre
o que me parece ser o significado da sua obra no contexto da
nova literatura Brasileira.
246
tendência interpreta a vida e a História para poder dar um novo sentido aos
novos enredos e aos personagens. Exemplo disso é obra A Paixão segundo
G.H. (1964), pois, antes mesmo da narrativa, a autora anuncia que gostaria
que o romance fosse lido por uma pessoa de “alma já formada”.
O leitor – aquele de alma formada – só entenderá essa mensagem no
decorrer da narrativa quando se deparar com o momento chocante da
narradora que, ao chegar no limite da entrada em seu mundo interior,
esmaga uma barata e depois engole a massa branca e pastosa da barata
morta. É o momento da epifania clariceana; o encontro da personagem
com uma desmontagem de si mesma para si mesma.
Nas palavras de Candido (1970, p. 160), a escrita de Clarice “se
desprendia das suas matrizes mais contingentes, como o regionalismo, a
obsessão imediata com os problemas sociais e pessoais, para entrar numa
fase de consciência estética generalizada”. Assim, cabe a seguinte reflexão:
por que aprendemos literatura com Clarice? Porque a literatura de Clarice
é rica em reflexões um tanto complexas, mas, ao mesmo tempo, apresenta
linguagem simples, com facilidade de penetração em diversos temas, que
atingem faixas etárias diversas. Portanto, os recursos linguísticos conduzem
os leitores a conjunturas corriqueiras que abrigam sentidos e que se
comunicam com os personagens e com os leitores.
Como já citado, a escritora discorria sobre temas cotidianos, com grande
facilidade em expressar suas experiências e peculiaridades, embutindo, em
seus textos, metáforas em histórias aparentemente simples, como podemos
citar o caso do conto Uma Galinha: “Era uma galinha de domingo. Ainda
viva porque não passava de nove horas da manhã”. Uma narrativa tão
simples quanto pede o cotidiano de uma família, em um dia de domingo, se
preparando para matar uma galinha para o almoço. No entanto, logo em
seguida, Clarice anuncia algo mais complexo e metafórico nessa narrativa:
[A galinha] Parecia calma. Desde sábado encolherase num
canto da cozinha. Não olhava para ninguém, ninguém olhava
para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua
intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda
ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio. (LISPECTOR,
1998, p. 30).
247
A escritora apresenta a transmissão da experiência pessoal como uma de
suas características essenciais, seja das coisas em si mesmas ou dos seres
em sua relação com o outro. Percebemos, na literatura de Clarice, duas
características primordiais: uma história que se desenrola sem palavras e o
um fenômeno que se materializa por meio de um trabalho com a
linguagem. Nas palavras de Júnior (2019, p. 5): “(...) um dos projetos
artísticos que se pode reconhecer no trabalho da autora é a reflexão sobre
os limites da linguagem, outro modo de nomear a sua poética da coisa”.
Na relação entre o papel e a alma, Clarice revela seu estilo carregado por
uma poética da linguagem, cujo foco está no drama psicológico, nos
desvaneios, nas fantasiais e nas questões do feminino.
248
acordo com Silva (2009, p. 211),
Esses pesquisadores [Žižek e Badiou] formularam suas teorias
para criticar o pensamento marxista convencional. Isso não
significa que eles rejeitam Marx, mas que, aceitando as
contribuições do filósofo alemão para a história do
pensamento, fazem a ressalva de que a economia e a luta de
classes apenas não são suficientes para dar conta de tudo que
acontece na atualidade.
249
além dos limites da democracia: ele destaca que devemos
encontrar os antagonismos que fazem do comunismo, ou de
uma forma alternativa de organização das relações político
econômicosociais, uma urgência prática na realidade histórica.
250
indizível.
De acordo com Fabreti (2013, p. 34), o indivíduo está conectado a este
conceito da tríade, pois, de acordo com estas camadas pisíquicas, o sujeito
se relaciona e atua no âmbito social. A autora também afirma que, para
simbolizar a correlação entre os níveis, Lacan faz menç ão ao Nó
borromeano, o qual é constituído por três anéis vinculados que dependem
um do outro e trabalham em conjunto, formando, portanto, uma tríade.
Figura 1 Nó borromeano
251
presentes na formação do ser como sujeito, possibilitando suporte para a
socialização e situações cotidianas, bem como regras de convivência
doméstica ou em sociedade. O Imaginário se constitui como forma
particular da materialização dos elementos, ou uma visão particular dos
acontecimentos, de forma visual e sonora. Assim, o Real se caracteriza por
um rompimento da linha do Simbólico e do Imaginário, uma abundância
de imagens e de conceitos impensáveis, pois são irredutíveis à linguagem.
Esse rompimento ou quebra ocasiona um choque traumático, um
contato com o indizível, algo que não pode ser expresso por meio de
códigos. Nesse sentido, manifestase por meio de traumas agressivos na
instância individual ou através de grandes catástrofes na esfera social,
conforme destaca Silva (2009, p. 213): “Segundo Žižek, o Real pode
irromper na vida do sujeito através de um evento traumático, seja ele físico
ou psicológico. Essa irrupção cria o momento em que ‘a vida perde o
sentido’, por assim dizer, em que os laços simbólicos que desatam,
deixando que mergulhemos no caos”.
O Real, portanto, não pode ser traduzido por meio de códigos, mas pode
ser indicado por manifestações que fogem do plano da linguagem, o que
Lacan nomeou de a “C oisa”. S ão essas as evidências que apontam a
presença do Real.
252
cortara lembravalhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando
o calmo horizonte.” (LISPECTOR, 1998, p. 19). O narrador destaca a
aparente “força” e poder que aquela mulher tem sobre o seu próprio
destino, pois ela não precisava descansar, mesmo “um pouco cansada”,
depois das compras – é assim que o conto inicia.
Ana fazia tudo crescer:“os filhos cresciam, cresciam as árvores, cresciam
sua rápida conversa com o cobrador, crescia a água enchendo o tanque,
crescia a mesa com comidas”. (LISPECTOR, 1998, p. 19). As metáforas
utilizadas são a confirmação de que tudo em seu espaço Simbólico era
consolidado por meio da sua tarefa de esposa e de mãe dedicada. Nas
palavras de Fascina (2020, p. 38), a ilustraçao de uma vida aparentemente
sólida, [é] identificada no estágio Simbólico da personagem, [é] tecido
seguro que possibilita a ela reconhecerse em seu papel de mãe e esposa,
bem como suas tentativas de manterse nesse registro”.
A personagem tinha medo de que lhe sobrasse um tempo para si,
principalmente à tardezinha, quando havia realizado todas as suas tarefas.
Tratavase de uma “a hora perigosa”, porque sem ocupação, esse mundo
“aparentemente” feliz poderia desmoronar:“certa hora da tarde, as árvores
que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força,
inquietavase.” (LISPECTOR, 1998, p. 19).
Todas as referências aos filhos e à organização da casa remetem ao
funcionamento da tríade: as normas de convivência da personagem
feminina, em seu mundo, criada para casar, cuidar da casa e dos filhos são
da instância do Simbólico – são as regras que Ana precisa seguir para
cumprir seu destino de forma tranquila. As imagens que ela projeta desse
mundo, tais como manter tudo o mais perfeito possível, de forma que não
sobre tempo para si mesma, são do Imaginário, isto é, são as formas que ela
selecionou para se mover “confortavelmente” dentro desse espaço
Simbólico, que funciona como uma barreira que a impede de se encontrar
com o Real.
O narrador relata que a dona de casa realizada, prendada e infeliz
escolhera ela mesma aquela vida, pois antes do casamento “sua juventude
253
anterior parecialhe estranha como uma doença de vida”, uma vida que
descobrira ser possível viver sem a felicidade, quando tudo podia ser
resumido ao trabalho – “com persistência, continuidade, alegria”. Por isso,
“se abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam
transmitido.” (LISPECTOR, 1998, p. 2021).
Certo dia, Ana saiu para fazer compras para um jantar com seus
familiares e, quando estava voltando, o narrador anuncia que havia algo
diferente, pois “o bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo
um vento mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim
da hora instável.” (LISPECTOR, 1998, p. 21). Após um profundo suspiro, Ana
se acomodou no bonde e, em seu rosto, vislumbrouse o ar de grande
aceitação de ser mulher. Por instantes, foise a dona de casa resignada e, se
até Humaitá havia tempo de descansar, ela também teria. Nesse momento,
ela avistou avistou um cego mascando chiclete na calçada. Aquela imagem
a desestabilizou ao ponto de derrubar as sacolas que segurava e fez com
que perdesse o ponto onde iria descer.
Quando percebeu que tinha passado do ponto, gritou para o motorista
parar e, ainda desorientada, desceu e começou a caminhar, confusa, cheia
de inquietações, até que chega ao jardim botânico, onde se sentou e
começou a observar o espaço em que estava, tudo descrito com riqueza de
detalhes: as belezas da natureza, algumas flores como tulipas, aléias e
outras. Os animais que ali estavam eram apresentados em seus permenores.
No entanto, ao mesmo tempo, percebese a decomposição presente no
espaço. Ana permaneceu naquele local a tarde inteira, e, ao escurecer,
voltou para casa.
Estremecida e espantada com pensamentos sobre ajudar pessoas e
lugares necessitados, Ana continuou inquieta. Q uando entrou em casa,
avistou seu filho e abraçouo fortemente, sentindo amor e medo ao mesmo
tempo. Apesar disso, foi ajudar a cozinheira com o jantar. Quando os
convidados chegam, o jantar é servido e Ana começa a se familiarizar
novamente com a sua vida, sente a segurança do lar, o aconchego e sua casa
em ordem. Assim, encerra seu momento de epifania e vai descansar com
254
seu marido. Assim,“antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a
pequena flama do dia.” (LISPECTOR, 1998, p. 29).
Sobre o recurso da epifania, Fascina (2020, p. 38) afirma que
a epifania, técnica narrativa comumente encontrada na ficção
de Lispector, é o estopim para o encontro com o Real. A
epifania descortina uma “realidade” que as criaturas de
Lispector recusam, de modo que se sentem aliviadas com o
afastamento de tal situação ao retornarem à normalidade. A
trajetória de grande parte de suas personagens está ligada à
necessidade de experimentação de uma revelação/crise/
náusea que as expulsam da tranquilidade cotidiana. Esse
conhecimento súbito da “verdade”, que cria um rito de
passagem, arrebata não apenas suas criaturas, mas também o
leitor e a própria narradora.
255
levava; estava perplexa com tantos questionamentos em sua mente, e a
visão daquele cego a provocava, suscitando dúvidas a respeito de sua falsa
paz e comodismo. Um detalhe tão simples e diferente da rotina diária
ganha uma grande dimensão, uma vez que Ana transita do estado de
aceitação e dependência da complexa rede de regras que compõem a
ordem simbólica para o estado de reflexão sobre sua relação com outros
seres.
Sobre esse processo de interação, Žižek (2010) afirma que o ser humano
nunca interage simplesmente com outros, pois, nesse processo, há uma
série de regras e pressupostos que funcionam como um padrão de
comparação contra o qual o indivíduo pode se medir.
Primeiro há as regras da gramática, que tenho de dominar de
maneira cega e espontânea: se eu tivesse de ter essas regras em
mente o tempo todo, minha fala se desarticularia. Depois, há o
pano de fundo de participar do mesmo mundo/vida que
permite que eu e meu parceiro na conversação
compreendamos um ao outro. (ŽIŽEK, 2010, p. 17).
256
piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a
boca. (LISPECTOR, 1998, p. 13).
Para Ana, a vida cotidiana perde o sentido no encontro com o Real, pois,
de acordo com Žižek (2010), quando o homem consegue traduzir em
palavras esse Real, ele ressimboliza aquele momento, ou seja, volta para a
257
dimensão Simbólica, fato que aconteceu com a personagem.
Considerações finais
Referências
258
Paulo: Duas cidades, 1970.
ŽIŽEK, Slavoj. Como ler Lacan. Tradução Maria Luzia Borges. Rio de
Janeiro: Zahar, 2010.
259
260
SOBRE OS AUTORES
- 261 -
Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual do Oeste
do Paraná. Mestra em Estudos Literários pela Universidade Estadual de
Maringá (2014). Especialização em Língua Portuguesa e Literatura
Brasileira pela FAG (2011) Graduação em Letras Português/Espanhol pela
Universidade Estadual do Oeste do Paraná (2009). Docente na
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).
- 262 -
Fernanda Garcia Cassiano é Doutoranda no Programa de Pós-
Graduação em Letras (PLE) da Universidade Estadual de Maringá (UEM), é
Mestra em Letras na linha de pesquisa Literatura e Historicidade, associada
à Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC) e vinculada aos
projetos de pesquisa: Lacanianismo, literatura e cultura e Nada de errado
em nossa etnia: tradição, cultura e identidade em literaturas de caráter pós-
coloniais e decoloniais e ao projeto de extensão Outras Palavras (POP).
Graduada em Letras, com habilitação em Língua Portuguesa e Literaturas
Correspondentes, pela Universidade Estadual de Maringá (UEM).
- 263 -
Késia Maria da Silva Florentino é graduada do Curso de Graduação -
Licenciatura em Letras-Português, do Campus IV da Universidade Estadual
de Alagoas - UNEAL. Atualmente, é aluna do curso de pós-graduação Lato
Sensu “Linguagem, Ensino e Pluriletramento” no Campus IV da
Universidade Estadual de Alagoas; participa, como voluntária, do Grupo de
Pesquisa Literatura e o Materialismo Lacaniano de Žižek (LIMALAZ), sob a
coordenação da Professora Dra. Maria Betânia da Rocha de Oliveira e
desenvolve pesquisa sobre a obra de Clarice Lispector.Tem experiência em
educação básica - ensino fundamental II.Trabalha como professora na rede
de educação pública de Campo Alegre-AL.
- 264 -
escrever sem doer – o sabor do texto revelado pela literatura”; é professora
e coordenadora do Curso de Especialização Lato Sensu em Ensino,
Linguagem e Pluriletramento (Campus IV/UNEAL).
- 266 -
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