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No labirinto da palavra:

a literatura menor de Clarice


Lispector
Jaislan Honório Monteiro
Fábio Leonardo Castelo Branco Brito
A coletânea
Publicada em 2023, a coletânea Acontecimento, linguagem e
narrativa: a perspectiva dos estudos culturais na História,
organizada por Edwar de Alencar Castelo Branco, Jaislan Honório
Monteiro e Ana Karoline de Freitas Nery, aparece como resultado
das pesquisas de doutorado em desenvolvimento no Programa de
Pós-Graduação em História do Brasil da Universidade Federal do
Piauí.

Clássica desde sua publicação, a coletânea, além de textos de


historiadores consolidados e em formação da instituição, também
contou com participações de pesquisadores brasileiros, como
Adalberto Paranhos e Heloísa Buarque de Hollanda, e estrangeiros,
como José Machado Pais, Natalie Zemon Davis, Peter Burke, Robert
Darnton e Roger Chartier.
Os autores
Mestre em História do Brasil pela Universidade
Federal do Piauí, Jaislan Honório Monteiro foi um
dos fundadores do GT História, Cultura e
Subjetividade, de quem foi orientando na
graduação e no mestrado, do qual nasceu a
pesquisa - posteriormente transformada em livro -
Arte como experiência: cinema, intertextualidade
e produção de sentido, defendida em 2015 e
publicada em 2016.

No doutorado, que atualmente desenvolve na


mesma instituição, é orientando de Fábio
Leonardo Castelo Branco Brito, onde desenvolve
pesquisa sobre a escrita de Clarice Lispector e
suas implicações históricas, da qual decorre o
texto.
Há um razoável consenso, entre críticos da cultura e
historiadores filiados aos mais distintos matizes, que o período
que medeia os anos 1960/70 da história brasileira representa
um dos momentos que congrega uma das mais profícuas
produções artístico-culturais do último século.

Na esteira dessas ações contínuas, antigos códigos de


nomeação da realidade cedem espaço para o
empreendimento de novas estruturas de linguagem, o que, em
termos mais objetivos, denuncia o advento de uma fissura
epistemológica na proposição do ato diccional.

Nesse contexto, a presença de novos elementos nas artes


brasileiras promove uma profícua interlocução com projetos
estéticos já existentes, nos quais diversos polos de criação
utilizam novos jogos comunicacionais, arrastando, assim como
coloca Gilles Deleuze, “a língua para fora de seus sulcos
costumeiros, levando-a a delirar”.
É no âmbito desse rearranjo de paradigmas que assistimos a
insurgência de obras de caráter marcadamente autoral, onde
os frisos demarcatórios entre realidade, ficção e prática
literária estão sendo continuadamente esgarçados.

O sismo decorrente deste novo modelo de cartografia não por


acaso se configura como uma linha de fuga, potencializando o
movimento em uma espiral de imprevisíveis significados.

Um caso singular desse modelo nas letras brasileiras são as


obras da escritora Clarice Lispector. Tendo em vista o caráter
vanguardista – recusa de elementos herdados pela tradição,
constituição de uma linguagem prospectiva de novos temas e
elementos diccionais, bem como a utilização do fluxo de
consciência como esteio da enunciação –, sua produção pode
ser caracterizada como uma literatura menor, haja vista sua
autonomia e antinomia em relação àqueles postulados pelas
formas dominantes da narrativa literária vinculada ao cânone.
Boa parte de suas obras, notadamente aquelas que vieram a
ser publicadas entre o final dos anos 1960 e meados dos
anos 1970, provocaram incômodo e estranhamento no
público e, principalmente, na intelectualidade da época,
dada a dificuldade em categorizar tais escritos dentre os
gêneros literários sedimentados, o que aparece na crítica e
negativa de publicação do livro Água viva pelo crítico
literário Hélio Pólvora.

“Romance certamente não é. Clarice Lispector resolveu


abolir o que chama de técnica de romance e escrever
segundo um processo de livre associação de ideias, ou de
palavras. Tem-se a impressão, lendo este seu novo livro, que
ela colocou o papel na máquina e foi registrando o que lhe
vinha à cabeça, sem preocupação de unidade, coerência e
fábula. Objeto gritante – o título primevo de Água Viva – é
mais uma de suas coisas, das muitas coisas que Clarice
Lispector tem perpetrado sob o rótulo de romance.”
As falas de Hélio e Clarice apontam que é preciso levar a
sério a contingência e a especificidade que caracterizam o
sujeito e o discurso. Cada uma dessas posições de sujeito
tem suas funções, seus suportes, seus lugares institucionais. e
estão inseridas em jogos de poder específicos.

Em larga medida, exercer a função-autor implica


envolvimento em um corpo-a-corpo constante com um
conjunto bastante heterogêneo de práticas e discursos.
Importa, pois, mapear tais relações, tendo em vista que elas
precisam ser entendidas em termos de estratégias e táticas,
posto que pressupõem embates e resistências.

Não por acaso Clarice entende sua prática como um devir-


menor da língua em constante embate com agenciamentos
que orbitam em seu entorno. As brechas criadas pelo seu
estilo e seu ativo experimentalismo a levam a compreender o
termo “literatura” como uma palavra colonizada, capturada
pela subjetividade capitalística.
Em uma de suas crônicas ao Jornal do Brasil ela dispara:
“literatura para mim é o modo como os outros chamam o
que nós, escritores, fazemos”.

Em outra passagem, reforça a ojeriza a um correlato do


termo, como a ressaltar que há um cesura incontornável
entre o que se oferece como estabilidade para este
significante e o que ela pensa e exerce sobre a matéria: “A
expressão ‘contribuições literárias também não gosto,
porque exatamente ando em uma fase em que a palavra
literatura me eriça o pelo como de um gato”.

Anos depois endossaria posicionamento de modo incisivo:


“literatura é uma palavra detestável, é fora do ato de
escrever”.
Desafiando intérpretes e deslocando perspectivas, a
desordem fecunda de Água viva – misto de prosa poética,
reflexão filosófica e relato autobiográfico – chegou a ser
definida, já em sua primeira edição, como “uma criação
cósmica, um espelho humano de infinitas refrações, se fosse
possível o poliedro na imagem plana”.

A palavra não é mais vista como espelho nem como


transparência, não é a garantia de um mundo que se pode
ter às mãos. Não à toa, no livro, Clarice escreve: “O real eu
atinjo através do sonho. Eu te invento, realidade!”

Para possuir o real é necessário criá-lo. Graças à linguagem


da arte, o real fala por si mesmo. Narrar é narrar-se através
do imaginário, na tensão da palavra e da não-palavra. A
palavra poética é sobretudo transgressão.
A palavra é apenas mais uma coisa entre outras coisas. Ela
é capaz de produzir mundos suplementares – a quarta
dimensão da qual nos fala Clarice –, ou seja, criar uma outra
dimensão do humano. Ao mesmo tempo que temos a
possibilidade de criar mundos suplementares, mundos
luxuriantes de palavras, somos incapazes de capturar o
mundo como ele realmente é.

Nós, historiadores, precisamos ter consciência da


defasagem que existe entre a linguagem e o real, bem
como da incomunicabilidade de certas experiências.
Todavia, por mais defeituoso que seja, nosso verbo é
preênsil: um texto pode, ponderando seus limites, dar conta
do que está fora do texto. A linguagem é ao mesmo tempo
nosso problema e nossa solução. É por isso que mantemos a
«coragem de escrever», contando histórias, recorrendo a
imagens, inventando tropos, mobilizando símbolos.

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