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Com a nossa pesquisa, pretendemos analisar a forma como a "grande imprensa"

brasileira se posicionou diante da política externa conduzida pelo presidente Ernesto Geisel
durante seu governo. Também constituirão objetos de nossa análise o tratamento da grande
2. Justificativa

A pesquisa se justifica pela necessidade de perscrutar as relações que, nos marcos da


noção de regime civil-militar proposta por Daniel Aarão Reis, foram estabelecidas entre o
regime e a sociedade civil (REIS, 2014). Embora aceitemos a noção proposta por Reis de que
o regime instaurado em 1964 se sustentou sobre o consentimento e colaboração da sociedade
civil, é necessário recordar que essa não é um objeto monolítico - ao contrário, é composta
por divisões como classes, corporações e profissionais de áreas e locais geográficos
específicos, entre outras clivagens. Tal fato gera interesses diversos e, por vezes,
contraditórios, engendrando uma dinâmica de consentimento multifacetada com relação ao
poder estabelecido. Assim, compreender as formas com que determinados setores da
sociedade (como a "grande imprensa") se posicionaram diante da política externa durante
governo do presidente Geisel é entender tanto os lugares sociais de onde partia o
consentimento ao regime autoritário quanto as intensidades e as maneiras com que ele era
elaborado (ou deixava de o ser, por vezes).
Nesse sentido, é também necessário que a História exerça sua função crítica ao
abordar de forma problematizadora a imagem da "grande imprensa" brasileira como setor de
resistência ao regime civil-militar que se solidificou na memória hegemônica sobre o
período¹, imagem que fornece a essa fração de nossa sociedade credenciais de inequívocos
¹ A noção de memória hegemônica sobre o regime civil-militar aqui referida é a mesma apresentada por

resistentes e lutadores nas "trincheiras da liberdade" contra um regime autoritário


(ROLLEMBERG, 2011, p. 130-133). Conforme afirma Jacqueline Ventapane Freitas,
[…] essa memória de resistência permite que se mantenham na sombra as
complexas relações entre os meios de comunicação, empresas privadas com
interesse no lucro, e o governo ditatorial, associando a imagem da ação da luta
individual de jornalistas no embate com o regime à própria atuação da instituição
imprensa como ator coletivo, ignorando, desta forma, seu papel na representação
de valores e interesses de setores das elites e não da sociedade como um todo.
(2014, p. 143).

É também relevante a necessidade de maior compreensão da relação entre política


externa e a "opinião pública"², mormente no Brasil. É lugar-comum afirmar que a política
externa não é uma questão presente no debate público brasileiro, mesmo dentro do mundo
acadêmico: alguns autores defendem tal posição racionalizando-a através da existência de
uma burocracia diplomática autônoma diante tanto do Estado quanto dos diversos grupos
sociais (CHEIBUB, 1985, p. 113-114); outros, através de uma simetria na distribuição das
perdas e ganhos societários da política externa brasileira (SILVA, 2000, p. 288-289).
Todavia, estudos recentes³ apontam para a revisão de tal concepção e demonstram que a
posição do Brasil nas relações internacionais é, historicamente, uma das principais fontes de
polêmicas públicas, chegando, em situações politicamente radicalizadas, a se tornar uma
questão tão importante para a demarcação político-ideológica quanto assuntos “internos”.
Sendo a "grande imprensa" um dos principais agentes na disputa da formulação daquilo que
se pretende "opinião pública", estudar uma é necessário para compreender a outra. Cabe
recordar que são ainda escassos os estudos que buscam compreender de modo específico a
Marcos Napolitano, construída preponderantemente por grupos liberais em processo de afastamento do regime
instaurado em 1964 (NAPOLITANO, 2017).
² A categoria "opinião pública" é costumeiramente mobilizada na imprensa de alta circulação como forma de
pautar debates, conforme bem aponta Marcos Napolitano, representando porém o mais das vezes a "opinião
publicada" (NAPOLITANO, 2017, p. 348).
3
Como os de MANZUR (2009), FRANCO (2008), FERREIRA (2009) e FREITAS (2014).
ligação entre a política exterior e a grande imprensa no Brasil. Como afirma Tânia Maria
Pechir Gomes Manzur, a historiografia das relações internacionais brasileira trata dessa
questão de maneira superficial, e quando o faz tende a uma perspectiva que analisa a
dinâmica de formulação de consensos em torno da política exterior estritamente em função
das decisões dos corpos diplomáticos, e não em uma relação em que tais sujeitos exercem
influência mútua entre si (MANZUR, 2009, p. 17-18).

3. Delimitação do tema.

Nossa pesquisa estudará a relação entre a grande imprensa e a política externa do


Governo Geisel. Nesse sentido, buscaremos analisar como se posiciona a primeira diante da
mudança de orientação do Itamaraty durante o período estudado, sem contudo conceber a
grande imprensa como agente passivo em tal relação.
Ao estudarmos a grande imprensa, tomaremos como corpus documental os seguintes
jornais: O Estado de São Paulo (doravante referido como OESP) e O Globo. A escolha
desses jornais se deve ao fato de serem à época publicações com amplo destaque e circulação
nas duas principais capitais estaduais brasileiras, São Paulo e Rio de Janeiro - centros
econômicos e políticos da vida nacional. O Globo, no Rio de Janeiro, já possuía a maior
tiragem da capital fluminense em 1978, com tiragem próxima de 265 mil exemplares diários
(BARBOSA, 2013, p. 303). Já OESP tinha, desde 1967, atingido a marca de 340 mil
exemplares diários4.
O recorte temporal de nosso estudo abrange os anos de 1974 a 1979, período de
governo do presidente Geisel. Cabe apontar que não adotaremos como balizas peremptórias e
inamovíveis para nossa análise as datas de entrada e saída de Geisel do poder, isso é, 15 de
Março de 1974 a 14 de Março de 1979, posto que elementos virtualmente interessantes à
nossa análise podem despontar em momentos que estão fora dessa baliza estritamente
político-administrativa.

4. Revisão Historiográfica.

4
PONTES, José Alfredo Vidigal. O Estado de S. Paulo, [200-?]. Disponível em: <
http://www.estadao.com.br/historico/print/resumo.htm>. Acesso em 15/11/2018.
De forma geral, é ponto passivo na produção acadêmica sobre o regime civil-militar
que o golpe de 1964 (ponto culminante na Batalha do Brasil durante a Guerra Fria global de
então) representou um ponto de ruptura na política externa nacional até então praticada. Sob
a tutela do presidente Castello Branco, abandonava-se a Política Externa Independente (PEI)
de San Tiago Dantas em favor de uma política externa que possuía no alinhamento
automático com o centro hegemônico do mundo ocidental-capitalista (isso é, os Estados
Unidos) e na associação com o capital externo como esteio de seu desenvolvimento seus
traços centrais, mesmo em detrimento de maior autonomia na perseguição dos interesses
brasileiros5.
Em que pese alguma revisão durante os governos Costa e Silva e Médici, a maior
parte da bibliografia afirma a persistência geral dessa orientação entre 1967 e 1974. Tal
relativa mudança se deu, sobretudo, durante o governo Costa e Silva. Letícia Pinheiro
assevera que o que houve foi uma mudança do americanismo ideológico para o
americanismo pragmático (PINHEIRO, 2000), em que a incorporação de teses mais
próximas ao nacionalismo não coloca em xeque o alinhamento político e militar ao Ocidente
(PINHEIRO, 2004, p. 41). Vizentini afirma que foram paulatinamente estabelecidos espaços
de atuação através dos governos Médici e Costa e Silva, este último já delineando uma
postura pragmática em matéria de política externa, mas sem introduzir as mudanças que
Geisel traria (VIZENTINI, 1998, p. 206). Luiz Alberto Moniz Bandeira assevera que, apesar
do reaparecimento de áreas de atrito, "[...] as desavenças entre Brasil e Estados Unidos não se
ampliaram, àquela época [...]", por convergências na política econômica (BANDEIRA,
1988, p. 172). Mesmo Amador Luiz Cervo6 afirma que apesar de quase tudo levar os
interesses do Brasil e Estados Unidos ao conflito, faltaram impulsos à intensificação desse
enfrentamento, especialmente por parte do Brasil.
5
Essa orientação foi chamada de diversas formas por estudiosos do regime civil-militar e da política externa
brasileira do período: para ficar em alguns exemplos, ela foi denominada de liberal-imperialista (MARTINS,
1975); política de fronteiras ideológicas (BANDEIRA, 1988); americanista ideológica (PINHEIRO, 2000);
política externa interdependente (VIZENTINI, 2004); liberal-ocidentalista (MANZUR, 2009); e
liberal-internacionalista (REIS, 2014).
6
Cervo não utiliza a ascensão de Geisel como marco periódico central nas rupturas da política externa
brasileira: para ele, a ascensão de Costa e Silva ao poder é que marca a principal mudança de orientação nesse
campo (BUENO & CERVO, 2002, p. 407).
Dessa forma, apesar de ser controverso na historiografia o nível de mudanças que o
governo Geisel significou para a política externa brasileira, através do chamado
Pragmatismo Responsável e Ecumênico elaborado sob a liderança do chanceler Antonio
Francisco Azeredo da Silveira, de forma geral reconhece-se no período de 1974 a 1979 uma
ruptura com relação aos governos anteriores. Pinheiro assevera que durante o governo Geisel

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