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Como citar este Capítulo de Livro?

LIMA, I. B. de. Reflexões sobre a contemporaneidade cultural do Japão e seu legado


histórico: clusters etnoculturais, aculturação e japonicidade. In: SAITO, N. I. C. et al.
(Orgs).Japonicidades: Estudos sobre Sociedade e Cultura Japonesa no Brasil Central.
Editora CRV: Curitiba, PR, Brasil, 2012, p. 39-87.

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Reflexões sobre a Contemporaneidade Cultural do Japão e seu


Legado Histórico: Clusters Etnoculturais, Aculturação e Japonicidade

Autor

Ismar Borges de Lima, PhD1


Emails: ismarlima@yahoo.com.br
ismargo2000@hotmail.com

Prefácio

O objetivo deste capítulo é discutir a contemporaneidade cultural do Japão como


legado histórico; uma sociedade milenar que, apesar de manter diversas
particularidades e unicidades sociais, culturais, e organizacionais, bem como tradições,
filosofias, e princípios de orientação coletiva por gerações, revela-se não estanque. O
Japão não ficou livre de um processo de aculturação que pode ser classificado como
‘tênue’ (latente) ou ‘forte’ (explícito) dependendo de seu momento histórico. O tema é
provocativo e tem o propósito de instigar a continuação desse debate nos meios
acadêmicos, centros de pesquisa e nos fóruns especializados sobre sociedade e
cultura japonesa. O capítulo apenas introduz de forma geral aspectos, circunstâncias e
contextos históricos, culturais, sociais, societários e identitários que podem vir a ser

1
Doutor em Geografia Humana pela University of Waikato, Nova Zelândia. Professor do Curso de Turismo,
Universidade Estadual de Roraima, UERR, e Coordenador do MULTIAMAZON – Laboratório Multidisciplinar em
Planejamento Regional, e Desenvolvimento Sustentável na Amazônia Setentrional, Mestre em Relações
Internacionais pela International University of Japan (IUJ), e membro do Centro de Pesquisa da Cultura Japonesa de
Goiás, CPCJ-GO.
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parte de uma abordagem mais abrangente sobre o Japão, o que é chamado nesta obra
de ‘japonicidade’. A definição de ‘japonicidade’ ainda está em construção, e é uma
missão complexa que demanda contribuições dos vários pesquisadores e estudiosos
da área no Brasil e no exterior.

A definição e o desenvolvimento do conceito ‘japonicidade’ são tarefas desafiadoras


uma vez que não se pode usar de um determinismo simplista na explicação de uma
sociedade milenar, peculiar e culturalmente rica como a japonesa. Japonicidade diz
respeito a todos os fatos, eventos, produção intelectual, nuanças sociais e experiências
vividas por uma nação, e inclui a existência de um consciente coletivo que engloba
valores, crenças, identidade, os elementos autóctones, regras e normas sociais,
códigos implícitos e explícitos de conduta, as narrativas e as construções discursivas
de um povo, sua literatura, os aspectos linguísticos (Donahue, 2002), o papel da
imprensa e mídia na formação da opinião pública, os arranjos organizacionais, as
instituições, o nível tecnológico, os festivais, a cultura, os costumes, o ethos,
nacionalismo, e as orientações e decisões nas relações exteriores. No entanto, a
discussão sobre ‘japonicidade’ não ficaria completa se não fossem rompidos
paradigmas enraizados em axiomas que podem interferir na descrição mais fidedigna
de uma realidade nipônica.

Os pressupostos para o debate são de que o Japão não é uma nação monocultural,
homogênea em bloco, monolítica, mas sim ‘transcultural’, constituída também de
‘enclaves etnoculturais e estrangeiros’ (Weiner, 1997), e em flagrante transição e
transformação incorporando aspectos culturais e sociais de outros povos. A fim de
sistematizar a análise, o autor busca subsídios, evidências e intersecções factuais
usando como método de coleta de dados o estabelecimento de vínculos entre a
realidade contemporânea do Japão e sua história milenar, e divide o capítulo em três
seções principais: i) o legado histórico das ofensivas bélico-militar ultramar do Japão;
ii) as diásporas japonesas; iii) os nichos etnoculturais e estrangeiros no Japão, com
ênfase para os nikkeis brasileiros residentes no Japão e com status de dekasseguis.

O termo ‘nikkei’ refere-se aos descendentes dos japoneses que fizeram parte da
diáspora do século XX. São três momentos da história do Japão que se revelam
intrinsecamente interligados, pois as pretensões bélicas japonesas tiveram participação
direta e indireta nas diásporas, com inúmeras famílias deixando o arquipélago
buscando melhorias financeiras e de vida, e algumas famílias se exilaram também
fugindo das expiações e incertezas causadas pelas guerras. Por outro lado, foram
justamente as ações ultramar do Japão e as diásporas nipônicas que propiciaram
também o surgimento de clusters etnoculturais e estrangeiros em seu solo.

A palavra ‘clusters’ é usada aqui no sentido de ‘agrupamento’, ‘aglomeração’, ‘nicho’.


Foram justamente as alternâncias de emigração e imigração, combinadas com a
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expansão mercantilista japonesa que contribuíram para o que se pode afirmar, mas
com certa cautela, de uma aculturação nipônica. Evidências dessa aculturação são
buscados na releitura do contexto do Japão imperialista e mercantilista. Em termos de
marco temporal, o Japão é situado em dois principais momentos históricos: antes e
depois de 1945. O ano de 1945 é citado como um marco divisor entre um Japão
beligerante e um Japão tecnológico; um ano em que ocorreram também mudanças
profundas na sociedade japonesa, tanto em termos de autopercepção global, com uma
nova orientação e ordem nipônica frente aos desafios do pós-guerra. Talvez o fato mais
notório desse “turning-point” histórico, ou seja, a virada de rumo da história japonesa,
tenha sido o lançamento das bombas atômicas em Nagasaki e Hiroshima.

Ao olharmos o desenrolar da história do Japão, há, em relação ao ano de 1945, a


observância patente de uma dicotomia na forma em que os japoneses, mais
especificamente seus líderes e dirigentes, conduziram o futuro do país com políticas
públicas que contrastaram com as visões de domínio pelos meios bélicos e conquistas
territoriais de outrora. O Japão pós-Segunda Guerra Mundial teve como recursos
fundamentais para sua reconstrução a capacidade interna de produzir, inovar e
competir. Uma combinação de força física, excepcionalidade intelectual, e cooperação
internacional.

Assim, o domínio pós-1945 não foi o beligerante, mas o domínio tecnológico e das
parcerias. Um processo que foi apoiado de forma orquestrada e disciplinada por toda a
nação. Um exemplo inegável de superação e reconstrução nacional. Esses fatos
mostram a importância de expressões como ‘gambare’, e ‘ganbatte’. A compreensão
da contemporaneidade da sociedade e cultura japonesa demanda uma investigação
holística que vai além dos aspectos mais visíveis em termos antropológicos,
sociológicos, geográficos e territoriais do Japão. Metodologicamente, o autor busca
sustentar seus argumentos e pontos-de-vista com a revisão da literatura pertinente, em
particular com base naquelas obras publicadas no idioma inglês, pois essas somam um
maior número de abordagens no tema. A vivência do autor no Japão por quatro anos
para estudos do idioma japonês e para a realização de pós-graduação na região de
Niigata-ken e Nagoya-shi como bolsista do Ministério da Educação, Ciência e Cultura
do Japão, Monbukagakusho, contribuiu para fortalecer e respaldar as interpretações,
análises e pontos de vista aqui expostos.
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1.0-Introdução

Este capítulo busca questionar e, também, corroborar conclusões publicadas por


autores de referência na literatura que abordam os temas sobre ‘sociedade’ e ‘cultura’
japonesa, bem como reunir evidências que possam validar o argumento de que o
Japão tem sido ao mesmo tempo agente e objeto de uma aculturação ao longo de sua
história, denotando algo que poderia ser chamado de ‘simbiose cultural multiétnica’ –
uma troca cultural entre os povos e nações com os quais historicamente manteve
contato - o que nos leva a uma reflexão sobre quais são os aspectos que podem fazer
parte de uma ‘japonicidade’; um termo usado em referência ao conjunto de elementos
que contribuem para caracterizar uma cultura, um povo, uma nação, e uma sociedade,
e diz respeito a um consciente coletivo; uma palavra que tem o seu correspondente em
inglês ‘Japaneseness’, e que na língua japonesa se aproxima do termo ‘nihonjiron’
(日本人論), que, de modo literal, refere-se às discussões e teorias sobre os japoneses.

Na literatura, o termo ‘nihonjiron’ faz conotações com ‘nacionalismo cultural’, e,


portanto, de insinuações etnocêntricas. Para Donahue (2002), ‘japonicidade’ leva a
uma reflexão sobre o que significa ser ‘japonês’. Befu (2001) explica que ‘nihonjiron’
usualmente faz alusão às características estereotipadas dos japoneses e de sua
cultura, mas em sua obra ele faz um levantamento mais ostensivo sobre a literatura
‘nihonjiron’, abrangendo desde a ecologia, comuidade rural e língua, a fim de
demonstrar o papel que o ‘nihonjiron’ exerce na formação da identidade japonesa e nas
orientações públicas, funcionando como uma “religião civil”; uma auto-identidade
nipônica que se alterna entre positiva e negativa desde a Era Meiji (Befu, 2001).

Mas o conceito de ‘japonicidade’ não se limita ao ‘nihonjiron’; ‘japonicidade’ inclui


elementos do ‘nihonjiron’, mas como apresentado na seção anterior também implica as
abordagens de outras teorias sobre o Japão, entre elas o ‘nihonshakairon’
(日本社会論), as teorias sobre a sociedade japonesa, e o ‘nihonbunkaron’ (日本文化論),
as teorias sobre a cultura nipônica. Apesar disso, são termos que se referem a
elementos tangíveis e intangíveis próprios de um país ou de uma sociedade específica,
e isso inclui incorporações, convergências e intersecções étnicas e, ou, culturais, além
de outros fatores sociais, societários e de identidade como legado histórico comum de
um povo.

Assim, o texto busca discutir o ‘transculturalismo’ e a ‘aculturação’ em relação ao


Japão, buscando-se argumentos e uma análise crítica isenta – sem as influências de
um nacionalismo cultural - de que tais processos podem vir a fazer parte de uma
‘japonicidade’, rompendo-se com o paradigma de que o Japão é incontestavelmente
uma sociedade homogênea, cultural e socialmente. O texto é, de certo modo,
provocativo, pois incita a um debate mais profundo e eclético entre os pesquisadores e
estudiosos da área acerca da sociedade japonesa, para que introspectivamente se
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possa melhor compreender sua contemporaneidade. Para Weiner (1997), observa-se


que ao se falar sobre ‘japonicidade’, as minorias existentes no arquipélago japonês
acabam excluídas.

Já a ‘endoculturação’, ou ‘enculturação’, pode ser compreendida como a socialização


normativa dentro de uma cultura em que as gerações de indivíduos, de qualquer
cultura, passam entre si (Romero et. al, 2000); é um processo de socialização em que
há transferência de competências comportamentais, valores, de língua ou de certas
expressões linguísticas, habilidades, e de identidade cultural (Knight et. al., 1993).
Desta forma, a ‘etnocultura’ é intrinsecamente o resultado de uma endoculturação em
que há um processo permanente de transmissão de conhecimento, saberes,
sentimentos de pertencimento, de manutenção de estilos de vida e de aprendizado
dentro da mesma cultura de uma coletividade (Ver Fig. 1.0).

A aculturação é intrinsecamente parte do processo de endoculturação em que uma


sociedade incorpora novos valores, significados, ideologias, processos, técnicas e
tecnologias, visões de mundo, e comportamentos, influenciados por fatores endógenos
e exógenos diversos nas relações e interações entre os indivíduos daquela mesma
sociedade e, ou, entre os indivíduos autóctones com aqueles de atributos sociais e
culturais não-autóctones. A ‘aculturação’ é definida na Enciclopédia Britânica, como ‘o
processo de mudança dos artefatos, costumes, e crenças como resultado do contato
entre duas ou mais culturas’.

Yoshino (1992) mantém uma posição conservadora acerca do Japão situando-o como
‘culturalmente distinto’ em uma linha histórica em função do identitário coletivo. Para
Yoshino, o Japão é possuidor de um ‘nacionalismo cultural’. Essa abordagem centra-se
na análise do ‘nacionalismo cultural’ e da ‘identidade nacional’ como legado cultural da
sociedade japonesa contemporânea, e, talvez, conote uma visão etnocêntrica nacional
sobre aquela sociedade. O ‘nacionalismo cultural’ é entendido como todos os aspectos
que venham a regenerar a comunidade nacional pela criação, preservação e
fortalecimento da identidade cultural de um povo em termos de ‘sentimento’, e não está
relacionado a movimentos nacionalistas (Yoshino, 1992).
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Um indivíduo ‘nacionalista cultural’ considera seu país o produto de uma história única
e com atributos peculiares, e coloca em destaque a comunidade cultural como a
essência de uma nação e busca assegurar direitos de cidadania a seus membros.
Yoshino (1992) explica que normalmente há dois grupos que favorecem o surgimento
de um nacionalismo cultural: os intelectuais, considerados as ‘elites do pensamento’,
que formulam ideais da identidade cultural da nação, e a chamada ‘intelligentsia’, ou
grupos sociais de elevada formação educacional, que contribuem para uma
representatividade cultural societária refletindo, portanto, uma posição social,
econômica e política desses grupos.

Fig. 1.0 – Endoculturação, Aculturação e Socialização Normativa

Em sua análise, Yoshino (1992) discute sociologicamente as várias obras produzidas


por uma ‘elite intelectual’ que relatam as ‘unicidades’ da cultura japonesa; o
‘nihonjinron’ (日本人論) literalmente significa ‘discussões acerca das coisas únicas
relativas ao Japão’, o que podemos também considerar um dos estudos acerca das
‘japonicidades’ daquela nação, tema abordado mais frequentemente nas décadas de
1970 e 1980. Na literatura, o nihonjinron é analisado como sendo inerentemente parte
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de um ‘nacionalismo cultural’, e tal abordagem é feita a partir de materiais ilustrativos


de ocorrências cotidianas, produções ou citações folclóricas, diários de viagem,
notícias contemporâneas, e episódios registrados em diversas obras sobre o tema,
entre elas: Delmer Brown, 1955, ‘Nacionalismo no Japão: Uma Introdução à Análise
Histórica’ que discute o ‘etnicismo nipônico’ no período entre o século VII e o fim da
década de 1940, o pós-guerra. Outras obras existentes são o ‘Pensamento e
Comportamento na Política Japonesa Moderna, de Maruyama Masao, 1963; e a
‘Direita no Japão: Um Estudo de Pós-Guerra, de Ivan Morris, 1960.

Talvez um dos aspectos mais visíveis dessa aculturação recente do Japão possa estar
no modo cada vez mais ocidentalizado dos nihonjins, dos japoneses, por influência dos
Estados Unidos, pois se observa naquele país uma flagrante americanização do estilo
de vida, dos gostos, das escolhas, do vestuário, da música, do corte de cabelo,
inclusive com a incorporação do inglês katakanizado, ou mesmo romanizado, como
recurso linguístico indispensável nas rotinas dos japoneses, e muitos fazem questão de
ter um sotaque americano na pronúncia do inglês. Tal fato é observado nas
interlocuções triviais do dia-a-dia, na mídia, nos esportes e na educação, fazendo com
que o inglês se torne uma das principais fontes para o ‘gairaigo’ (外来語), um termo que
se refere a palavras tomadas emprestadas de outro idioma e que são escritas em
katakana. Nesse aspecto, o inglês povoa todo o vocabulário, excedendo-se no esporte.
O tema ‘gairaigo’ é abordado com excelência e originalidade neste livro no capítulo
escrito pela autora Akemi Yamada.

O katakana é um dos recursos da escrita japonesa e é usado na transliteração de


nomes de origem estrangeira, inclusive nomes das pessoas, e também usado para
representar onomatopeias. Com esse recurso linguístico, cujos símbolos são bem mais
simplificados do que o kanji e o hiragana, as palavras não-nipônicas se destacam em
um texto podendo imediatamente ser identificadas no conjunto de frases. Aliás, o
katakana simbolicamente representa essa preocupação dos japoneses em distinguir o
que seja próprio deles e o que “vem de fora”.

Na interpretação do autor, o uso de uma forma escrita diferenciada para registrar


palavras ‘estrangeiras’ ou ‘não tradicionais’ no vocabulário da língua japonesa já
evidencia per se a materialidade de uma aculturação. A china, por exemplo, também
tem uma escrita constituída por ideogramas e esses são usados se modificações ou
simplificações para se referirem às palavras de origem estrangeira. Mas o povo
japonês demonstra grande interesse em conhecer a cultura dos demais povos e países
independente da posição geográfica, e esse interesse acaba por ter um significado e
peso no estilo de vida nipônico. Some-se a isso também o fato de que o japonês –
principalmente os jovens – tem buscado viver no exterior a fim de obter experiências
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culturais e, ou, como parte de formação educacional, o que acaba por ter influência em
sua cultura quando na volta desses indivíduos ao arquipélago.

O autor destaca a partir de sua vivência no Japão que a aculturação não é um


processo livre de conflitos e contradições, pois mesmo aqueles que aderem e praticam
um ‘americanismo’, ou ‘ocidentalismo’, o fazem contrariando regras sociais e padrões
profundamente enraizados na sociedade japonesa, e não estão livres de críticas e de
pagar um preço social alto por buscarem ser diferentes. Para alguns jovens
universitários que buscam um estilo diferenciado de viver e vestir, a “rebeldia” tem um
limite e prazo para que eles não fiquem socialmente e profissionalmente excluídos. Por
exemplo, usam roupas multicoloridas, e, às vezes, bizarras; os cabelos espetados
muitas vezes com cores fortes, alaranjado, vermelho, roxo, etc., no entanto, fazem isso
no primeiro e segundo ano da Universidade, e nos últimos anos restantes voltam a ser
os ‘japoneses de contorno mais conservador’, vestindo seus ternos preto ou azul
escuro, e, assim, voltam também a se comportarem de acordo com as regras
socialmente aceitas, e são poucos os que realmente incorporam ou adotam o estilo
rebelde ou de contraste como algo permanente.

Mesmo as gangues de motociclistas juvenis japonesas, conhecidas como ‘bosozoku’,


parecem não se equivaler às gangues de motociclistas de outros países em termos de
violência, infrações, delinquência, e vandalismo, principalmente em relação às gangues
dos Estados Unidos. Em Nagoya, algumas dessas gangues são seguidas de perto em
todo seu trajeto durante a madrugada por um carro característico, de vidros escuros,
supostamente pertencentes à polícia ou à investigadores; os motociclistas são
fotografados, filmados, e se limitam a acelerar suas motos fazendo muito barulho, e,
talvez a infração mais grave que cometem é andar na pista oposta, dirigindo em zigue-
zague, ou o desrespeito ao sinal de pare ou ao semáforo vermelho. São gangues de
rebeldia relativamente “disciplinada”, ou seja, não são infratores deliberados, e sim
delinquentes que sabem até onde podem ir com a quebra das ‘regras sociais’ e das
‘leis’, de modo a evitar uma criminalização de seus atos, uma corte judicial, ou, evitar, o
que se pode chamar de ‘suicídio social’ ficando excluídos naquela sociedade.

Mas para se compreender o Japão em sua totalidade social e cultural, o autor faz uma
releitura crítica daquela sociedade situando-a em dois macros momentos históricos
antagônicos em sua formação e existência. Levando-se em conta os ímpetos e planos
daquele país de se tornar líder global, existem, portanto, dois contextos históricos do
Japão tendo como marco divisor o ano de 1945: o antes e o depois da Segunda Guerra
Mundial (Fig. 2). Antes de 1945, o Japão buscou se tornar líder mundial principalmente
pelo domínio bélico e pelas conquistas territoriais. Nessa fase, predominou-se uma
maior imposição da cultura nipônica em razão dos objetivos de domínio do “outro”, do
território ultramar. As razões históricas da beligerância japonesa são detalhadas nas
seções seguintes deste capítulo.
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Após 1945, o Japão abandona completamente suas pretensões e ambições


beligerantes, e a partir daí passa a ganhar o respeito e simpatia mundial pelos avanços
e contribuições tecnológicas. Nessa fase, pode-se afirmar que a cultura nipônica não é
mais imposta, mas cultivada e aceita globalmente sendo considerada ‘peculiar’, ‘rica’,
‘exótica’ e ‘fascinante’. Concernentes a isso, duas coisas podem ser ditas: o Japão não
se fez “império” (líder) pela guerra, mas pela paz; e apesar de uma forte orientação
nacionalista e uma acentuada percepção identitária coletiva, o autor defende que a
progênie e a cultura nipônicas não ficaram incólumes às influências de outros povos
com os quais teve contato e interações.

Fig. 2.0 - Antagonismos Históricos do Japão: 1945, Marco Divisor

1945

Domínio Beligerante Domínio Tecnológico


Tempos de Guerra Tempos de paz

 Conquista bélico-militar  Conquista científico-tecnológica


 Conquista territorial: invasão e  Devolução de territórios e restituição de
apropriação soberanias. Compensações são feitas às
nações invadidas. Predominam-se a
cooperação, os tratados, e acordos bilaterais
e multilaterais. O Japão torna-se nação amiga
e parceira mundial.
 Domínio físico  Domínio imaterial (intelectual-tecnológico)
 Excessivo nacionalismo: orgulho  Um ‘nacionalismo endógeno’ voltado para a
nipônico reconstrução da nação no pós-guerra
 Imposição cultural e linguística  Cultura e gastronomia japonesa se
popularizam pelo mundo, aceitas e
reconhecidas mundialmente como
peculiares, ricas, exóticas e fascinantes.
Cresce o interesse pelo idioma japonês.
 Intenções imperiais em nível global  Japão torna-se potência mundial fazendo
parte do G-7, grupo de nações mais
poderosas.
 Sociedade altamente hierarquizada e  Sociedade hierarquizada, mas com uma
estratificada estratificação em transformação. Reformas
institucionais são feitas. As organizações
corporativas, os Keiretsu, a meritocracia e a
senioridade passam por mudanças e
reestruturação, ganhando características
mais ocidentalizadas.
 Restrições extremas à entrada e  Flexibilização quanto à entrada e
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permanência de estrangeiros, exceto permanência de estrangeiros. O Japão


pelo comércio exterior. permite a entrada das primeiras levas de
imigrantes trabalhadores, iniciando-se a
‘diáspora do retorno’ dos nikkeis, em
particular peruanos e brasileiros. O turismo
se intensifica tornando-se o Japão um
expressivo mercado emissor (o japonês viaja
o mundo) e receptor (destino mundial).
Autor: Ismar Lima, 2012.

Outro aspecto a ser analisado são as relações e inter-relações culturais do Japão com
as demais minorias étnicas (nichos étnicos) em seu próprio arquipélago, pois naquele
país predomina uma estrutura social altamente estratificada, hierarquizada (Weiner,
1997), e uma indústria de cultura corporativa agressiva. Sob as égides desse sistema,
os verbos ‘mudar’, ‘incorporar’, ‘aceitar’ e ‘flexibilizar’ (talvez seja mais correto falar em
‘humanizar’) parecem ser ainda uma barreira a ser rompida entre os representantes e
grupos mais conservadores, principalmente os corporativos, e, também, por uma
parcela da população. Nesse sentido, uma visão crítica sobre os ‘grupos específicos
nipônicos’ e as ‘comunidades estrangeiras’ (nichos estrangeiros) existentes no Japão,
bem como sobre as investidas históricas japonesas no exterior faz-se necessária para
a compreensão sociológica e cultural do tema, não se refutando – no entanto – a
existência de um marcante ‘nacionalismo cultural nipônico’ (Yoshino, 1992).

Há, portanto, neste debate indagações acerca das asserções na literatura sobre a
‘homogeneidade cultural’ e a ‘homogeneidade étnica’ do Japão e sobre o contexto dos
nichos étnicos e estrangeiros minoritários no território japonês. Pode-se afirmar que o
Japão é um país de cultura e sociedade monolítica? São a monocultura e a monoetnia
elementos inquestionáveis de uma ‘japonicidade’? Quais são as verdades e quais são
as afirmações falaciosas sem respaldo acadêmico-científico acerca da intangibilidade
do Japão? É possível validar a tese de um Japão transcultural e multiétnico?

Para sustentar seus argumentos, o autor faz uma revisão da literatura e do timeline do
Japão, bem como uma releitura dos nichos étnicos e culturais existentes no
arquipélago japonês, em especial dos nikkeis brasileiros, dos nipo-brasileiros, e das
investidas japonesa ultramar. O termo ‘nikkei’ é usado para designar os descendentes
filhos dos japoneses da diáspora do século XX, também chamados de issei, nissei,
sansei, yonsei, etc. dependendo de qual geração pertencem, por exemplo, se são da
primeira geração, são chamados ‘isseis’, da segunda geração, ‘nisseis’. Além disso, o
autor se respalda em sua própria vivência no Japão, país em que morou por quatro
anos entre 2000 e 2004 para fazer estudos do idioma japonês na Universidade de
Niigata, mestrado em Relações Internacionais, na Universidade Internacional do Japão
(IUJ), e uma especialização focada em ‘Assistência Oficial para o Desenvolvimento
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(ODA) do Japão e Projetos Ambientais em Países Subdesenvolvidos’, na Faculdade de


Desenvolvimento Internacional (GSID), pertencente à Universidade de Nagoya.

Nessa última cidade, o autor pôde conviver mais proximamente da realidade dos
dekasseguis brasileiros naquele país, legitimando suas asserções e ponto de vista,
sempre se apoiando na ‘participação observante’ como método investigativo. Além
disso, o autor possui em sua família primos nikkeis, e desse convívio passou desde
criança a ter certo contato e primeiras experiências do legado nipônico no Brasil.
Some-se a isso a participação do autor como Vice-Presidente do Centro de Pesquisa
da Cultura Japonesa em Goiás, CPCJ-GO, um Centro de investigação em que os
debates temáticos sobre o Japão têm contribuído com o subsídio intelectual necessário
para o amadurecimento acadêmico e individual.

Assim, ao mencionar a ‘realidade contemporânea’ do Japão, o autor deixa latente que


a realidade atual é o resultado de um acúmulo de experiências e vivências culturais,
históricas, sociais, tecnológicas e econômicas do povo nipônico como nação milenar, e
a ‘modernização’ confunde-se com o processo de aculturação e ocidentalização, tendo
como ponto de partida histórico mais aparente, a abertura dos portos japoneses (Befu,
2008) durante o Período Edo (江戸時代) (tendo sua sede em Yedo, atualmente
Tóquio), também chamado de Período Tokugawa (徳川時代).

Mas o movimento de abertura do Japão para a civilização ocidental foi ostensivamente


defendida por Yukichi Fukuzawa (1835-1901); em 1869, ele liderou uma ampla
campanha para a ocidentalização nipônica. Isso tudo coincidiu com o início da
Restauração Meiji ou Era Meiji (明治時代), 1868-1912, marcando sobremaneira um
período em que o Japão presenciava um dinamismo pujante no progresso das ciências
e no aprendizado científico, com um fluxo intenso de ideias e cultura vindas do
Ocidente. Para se ter uma ideia dos planos de Fukuzawa, em 1869, a Escola Confúcio
de Edo torna-se uma universidade no estilo ocidental, atualmente a Universidade de
Tóquio.

A Era Meiji é também chamada de Restauração, pois foi durante os 45 anos de


governo que o Japão rompeu com sua estrutura feudal, havendo uma intervenção do
Estado na economia, e foram criadas formas centralizadas de administração pública,
bem como favoreceu-se a modernização do modo de produção do arquipélago com a
adoção de tecnologias ocidentais, ocorrendo a ‘revolução industrial japonesa’ e,
consequentemente, sua entrada no sistema capitalista. Outra mudança (restauração)
fundamental para a modernização do Japão foi a reforma agrária, acabando-se com os
privilégios de senhores feudais, com reformas também na legislação rural com a
criação de impostos territoriais. Além disso, durante o Período Meiji, foi criado o
parlamento, promulgada a primeira constituição, e foram criadas várias universidades,
seguindo-se o modelo de instituições ocidentais; além de se criar uma malha ferroviária
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no arquipélago, uma infraestrutura de transporte essencial para o seu desenvolvimento


capitalista.

No entanto, os 45 anos de reformas e restaurações com a entrada e participação


ocidental causaram grande impacto no país, e o Japão parecia que iria, em curto
tempo, se ocidentalizar com o estilo de vida sendo alterado se comparado com o estilo
dos tempos do regime dos shogunate, período Edo; uma transição marcada por rotinas
estressantes de uma economia que estreava no capitalismo (Cullen, 2003); esses fatos
levaram a população a questionar as mudanças guiadas pela industrialização,
causando na época momentos de violência, desentendimentos e confusão, alarmada
pelo ritmo dramático da modernização (ou ocidentalização); assim, iniciou-se um
sentimento em certos grupos sobre a importância de se preservar a cultura tradicional
do Japão.

No final do século XIX havia uma equalização entre ‘modernização’ e ‘ocidentalização’


(seiyoka), uma correspondia à outra na percepção da sociedade japonesa, em que o
‘Ocidente’ era visto como uma região de certa superioridade em relação às demais
áreas do planeta (Cullen, 2003). Quando o Japão teve de admitir a presença
estrangeira, o país escolheu criar instituições de governo no estilo ocidental, incluindo o
Sistema de Justiça. Essas asserções são polêmicas no debate acadêmico, e, portanto,
passíveis de ‘inquiries’ (questionamentos) nas ciências sociais, humanas e políticas.

Até antes das revoltas por causa do processo de ‘ocidentalização’ de certos aspectos
sociais, culturais e institucionais nipônicos, o sistema imperial tinha sido menos
restritivo permitindo o “utilitarismo” de Fukuzawa Yukichi, com uma evidente
‘ocidentalização da língua e da moda’, além de mudanças no estilo ocidental em outras
áreas, incluindo os debates acerca dos méritos e ganhos da democracia e o
socialismo, mas por volta de 1935 tais manifestações não mais aceitas devido à
posição ideológica imperial (Cullen, 2003).

No período antecedente à Segunda Guerra Mundial, a comunidade internacional tinha


a concepção de que o Japão matinha um poder em virtude da Ásia, ou seja, limitava-se
àquele continente, e, ao se fazer ‘imperial’ na Ásia, equiparava-se - em termos de
importância global - aos países ocidentais que eram o ‘poder dominante’; por isso,
havia uma preocupação do Japão de se fortalecer na região para garantir sua
supremacia e domínios territórios (as áreas originais e as terras conquistadas),
fazendo-se uma vanguarda vis-à-vis as ações ou pretensões colonialistas do ocidente
na Ásia, ou seja, vindo a praticar formas de deterrence visando a desencorajar
quaisquer pretensões militares de outras nações na região de domínio nipônico.

Foram esses dilemas da abertura do Japão a partir da Restauração Meiji (1868), sua
‘modernização’, e a necessidade de afirmar seu ‘poder’ na Ásia frente ao avanço do
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sistema colonialista ocidental, que levou o Japão a um conflito bélico com os Estados
Unidos em 1941, o histórico ataque a Pearl Harbor.

Cullen (2003) explica que ações beligerantes “aos de fora”, os estrangeiros, se


justificavam, pois o Japão teve em determinados momentos de sua história, por
exemplo, em 1630, restringir, limitar ou proibir (sakoku) a presença de certas
nacionalidades (ou povos) em seu território pelo temor de se ver invadido e, ou,
largamente ocidentalizado. Considere-se que no início do século XVII havia uma
escalada pela conquista de territórios ultramar, e os portugueses, holandeses, ingleses
e espanhóis, há séculos, possuíam um histórico de guerras entre si; portanto, nada
mais realístico por parte do Japão do que salvaguardar seu território, e, também, a sua
cultura, e – nesse sentido - expedientes restritivos foram criados. Por exemplo, o termo
‘sakoku’ (鎖国) refere-se a uma estratégia nipônica nas relações internacionais do
Período Tokugawa em que nenhum indivíduo estrangeiro, ou suas embarcações,
poderia entrar ou sair do arquipélago japonês.

2.0- O Legado Histórico das Ofensivas Militares Ultramar do Japão

Lie (2001), em sua revisão da literatura identificou vários autores que veemente
sustentam a visão de um Japão monoétnico, o que se contrapõem ao ponto de vista
aqui levantado acerca de uma heterogeneidade nipônica; assim ao se defender a tese
de um ‘Japão multiétnico’, isso representaria per se um oximoro; ideias antagônicas em
sentido, mas reunidas em uma única frase dando um significado específico a um
determinado evento; ‘na interpretação de alguns estudiosos, a multietnia nipônica pode
corresponder a um ‘oximoro’, pois a palavra ‘Japão’ pode levar, muitas vezes, a uma
percepção geral de cultura singular, imperativa, dominante, e única, portanto,
‘monoétnico’.

Essa visão monoétnica sobre o Japão é defendida por Edwin Reischauer, estudioso da
sociedade japonesa, que explica aquele país como “o conjunto de pessoas mais
sistematicamente unificado e mais culturalmente homogêneo do mundo”. Reischauer
reforça essa visão ao mencionar que “os japoneses se sentem orgulhosos sobre a
‘pureza’ do sangue deles” (1988, p.33; p.396, citado em Lie, 2001, p. 18). Em seu livro,
Japan Today, Buckley (1990) afirma que “nenhuma outra sociedade industrial se
aproxima do Japão em termos de homogeneidade racial” (p.82); o mesmo ponto de
vista é compartilhado por Kumagai (1996) que advoga que o Japão “é a nação mais
homogênea, racialmente e etnicamente, do que praticamente qualquer outra nação
moderna” (p.9).

Com uma visão e interpretação sociológica contrastante à crença comum, Willis e


Murphy-Shigematsu (2008) defendem a tese de que o Japão é uma sociedade
multicultural, em franca oposição ao pensamento de um Japão homogêneo étnico e
racialmente, o que necessariamente não contradiz a posição de um nacionalismo
53

cultural de Yoshino, uma vez que o nacionalismo é um desejo coletivo, uma vontade
geral, que não necessariamente traduz a realidade. Willis e Murphy-Shigematsu (2008)
refutam as construções sociais de um Japão monoétnico, confirmando as análises e
interpretações de outros autores pioneiros no tema, entre eles: Waga Wagatsuma
Hiroshi, Changsoo Lee, Richard Mitchell, William Wetherall, George DeVos, Mikiso
Hane, Roger Goodman, Tanaka Hiroshi, Ross Mouer, Yoshio Sugimoto (p.17). Todos
eles sustentam que existe um contexto da realidade japonesa em termos de
composição étnica diferente daquela ecoada correntemente na literatura de um Japão
de pureza racial; segundo esses autores, existem “ilusões” de uma homogeneidade
nipônica; aliás, uma imagem estereotipada (e talvez equivocada historicamente) de um
Japão monolítico.

No entanto, é inegável que o Japão possui suas características próprias, únicas,


ímpares, peculiares, e endêmicas, social e culturalmente falando; uma sociedade com
seus estereótipos formados por grupos de indivíduos com suas idiossincrasias; uma
sociedade pujante, disciplinada, consumista, e com códigos sociais que se entrelaçam
com as rotinas do trabalho; um povo de orientação coletiva em contraposição ao
individual, fato que os contrasta vis-à-vis as sociedades ocidentais predominantemente
individualizadas em que as conquistas, méritos e fracassos tendem a ser realizações
ou eventos de abrangência restritiva, pertencentes a uma pessoa ou a um grupo.

Esses elementos simbolicamente representam as ‘unicidades nipônicas’ que fazem


parte dos traços e legados materiais e imateriais daquela sociedade, mas nada que
sustente a visão de uma cultura ilhada, intacta às mudanças. Existem, logicamente,
culturas que são mais resistentes às influências externas, mantendo traços, rituais,
dogmas, crenças e comportamentos geração após geração permitindo apenas
alterações sutis, como ocorre com alguns grupos indígenas, nesse caso por seu
isolamento em áreas remotas. Essas considerações são imprescindíveis no momento
de se explicar o termo ‘japonicidade’ devido a sua complexidade.

O Japão tem-se mostrado um país em transformação ao longo dos séculos, em


particular, concernentes a dois momentos históricos, após 1868 com a Restauração
Meiji, e após a Segunda Guerra Mundial, 1945; isso em termos de sociedade bem
como no aspecto arquitetônico e nas investidas tecnológicas, mas ainda se sustenta o
argumento, ou “mito”, de que o Japão possui uma sociedade homogênea e uniforme
(Weiner, 1997) que não permite uma significativa permeabilidade cultural, mantendo-se
relativamente ‘isolado’ em relação às influências externas, portanto, monocultural.

Matsumoto (2002) também valida a asserção de que o Japão é um país culturalmente


e socialmente em transformação, pois a cultura contemporânea revela-se
consideravelmente diferente de uma cultura prévia de um Japão, comumente e
estereotipadamente estabelecida como “unicultural”, cuja essência tem sido a
dignidade, aristocracia, educação e polidez (como regra social), honra, orgulho, e
54

perseverança, algo cultivado por gerações, mas que parece estar sendo
paulatinamente sobreposto por outros valores e códigos morais, especialmente por
causa da juventude japonesa, que optar por atitudes, crenças e comportamentos
contrastantes rompendo com os códigos morais da vivência rotineira e do convívio
social que resistiram no país por gerações (p. 1-5).

Uma resistência da estrutura social apontada nos trabalhos de Chie Nakane, um dos
escritores de maior influência recente; no livro ‘Sociedade Japonesa’ (1970), ele
repercute a percepção de uma cultura homogênea. Uma das unicidades (ou
estereótipo) mais comuns entre japoneses e não-japoneses é de que a dimensão
cultural e social do Japão assenta-se no fato “de sua organização ser de orientação
‘coletiva’ e não ‘individualista’”, tal como ocorre nas relações societárias de outras
sociedades no mundo (Matsumoto, 2002, p. 37).

Apesar de ter suas ‘unicidades’, um olhar mais atento poderá revelar que um Japão
culturalmente uniforme não representa em plenitude sua realidade contemporânea, e
nos questionários respondidos por estudantes universitários japoneses, 70,8% deles se
consideravam ‘individualistas’ e apenas 29,2% se achavam de orientação ‘coletiva’, já o
mesmo questionário aplicado aos adultos revela outra percepção; 67,9% dos adultos
japoneses se acham com ações, pensamentos e atitudes coletivistas, e 32.1 se
achavam individualistas.

Com base em seus levantamentos, Matsumoto (2002) elenca sete novos estereótipos
que representariam uma contraposição às concepções clássicas acerca da cultura
japonesa, o que ele chama de o ‘Novo Japão’, título de sua obra. Os setes estereótipos
são: i) o coletivismo japonês; ii) conceitos próprios do ‘eu’ japonês ; iii) consciência
interpessoal japonesa; iv) a emoção japonesa; v) o “salaryman” japonês; vi) o emprego
vitalício japonês; e vii) e o casamento japonês. Esses estereótipos são feitos com base
no estilo de vida de orientação coletiva, atitude pessoal em relação ao grupo,
percepção societária, as interrelações, profissão e trabalho versus meritocracia e
senioridade, a o casamento e vida familiar.

Esses estereótipos podem ser reflexos de uma aculturação ou aquisição de novos


valores e códigos sociais (morais) na história do Japão, havendo possivelmente um
processo de incorporação de aspectos da cultura do outro, incluindo a aceitação de
costumes e gastronomia – por exemplo, o tempura, empanado japonês, tem origem
portuguesa -, bem como elementos e recursos linguísticos, primeiro da China com a
adoção da língua escrita com o uso de centenas de kanjis, os ideogramas, por volta de
500 D.C.; e, também de Portugal e da Coréia, e, mais recentemente, dos Estados
Unidos, mas os ‘empréstimos’ não se limitam a esses países. Por exemplo, uma das
palavras mais populares no Japão, o ‘arubaito’ (アルバイト), cuja tradução é ‘trabalho
55

de meio período’ ou ‘trabalho ocasional’, vem do alemão ‘arbeiten’, mas os exemplos


linguísticos importados são vários.

Antes de considerarmos plenamente as afirmações dos autores supracitadas, uma


revisão das investidas do Japão no exterior se faz necessária, pois foram (são) as
experiências desse país, no exterior tanto para a beligerância quanto para o comércio
exterior, os principais meios para inter-relações e contatos que favoreceram influências
culturais recíprocas. A beligerância nipônica se resume aos projetos de Imperialismo do
Japão com as invasões e conquistas territoriais na Ásia e no Pacífico (Befu, 2008), bem
como as atividades corporativas e operações militares pacíficas mais recentes no
exterior.

De acordo com Willis e Murphy-Shigematsu (2008), atualmente há registros de


comunidades japonesas com mais de 5.000 pessoas em Seoul, Hong Kong,
Cingapura, Bangcoc, Honolulu, Los Angeles, São Francisco, Chicago, Nova Iorque,
Paris e Londres, onde a língua japonesa é o meio de comunicação predominante,
havendo, inclusive, escolas especiais para a educação dos filhos desses desterrados
corporativos temporários. Isso mostra que o Japão não está confinado ao arquipélago
situado no leste asiático (Willis e Murphy-Shigematsu, 2008a).

Existe, portanto, uma re-territorialização do Japão para além de suas ilhas (Befu,
2008). Nos séculos passados, isso ocorreu de duas formas: primeiro, com as
conquistas territoriais beligerantes pela Ásia; posteriormente, com a diáspora japonesa
pelo mundo, em particular, para o Brasil e Peru. Todos esses fatos são elementos
indissociáveis na elaboração do conceito ‘japonicidade’ visando a explicar a cultura e a
sociedade nipônicas no espaço e no tempo como um povo de características próprias,
mas suscetíveis historicamente a ser objeto e sujeito de uma aculturação.

No Período Edo (江戸時代), também chamado de Período Tokugawa (徳川時代),


predominou-se o governo dos Xoguns, entre 1603 e 1867; foi um regime que oscilou
entre aberturas do Japão para o comércio, o mercantilismo, bem como ficou marcado
no século XVII pelas restrições de acesso de estrangeiros em suas ilhas, mas foi um
período de irrefutável influência ocidental, em particular, dos portugueses, holandeses,
e, mais tardiamente, dos Estados Unidos.

Matsumoto (2002) comenta que na literatura o Japão das décadas anteriores à


Restauração Meiji, antes de 1862, é citado como uma sociedade que ficou
basicamente fechada ao resto do mundo pelos Shoguns, e os “niponologistas”
(estudiosos do Japão) têm caracterizado ou estereotipado tradicionalmente a
sociedade japonesa como centrada em uns poucos valores, traços de personalidade e
virtudes morais (p.3). Contudo, Lie (2001) não compartilha dessa posição, e afirma que
o Japão nunca ficou integralmente fechado aos povos estrangeiros, nem fechado às
56

suas ideias e mercadorias, por cerca de 200 anos, a partir de 1641 no Período
Tokugawa, como historicamente alardeado; o que de fato aconteceu é que o estado
Tokugawa monopolizou o comércio exterior, mas esse monopólio não proibiu idéias
estrangeiras, nem mesmo as ‘ocidentais’, de entrarem em suas ilhas (Tsuruta, 1992;
Jansen, 1992, p.2), por exemplo, mais de 200 livros estrangeiros foram traduzidos na
época (Arano, 1994, p. 228-229), e a passagem do Japão feudal-medieval para um
Japão moderno foi marcada pela existência de grupos etnicamente diversos. Na Era
Meiji, ocorreu a colonização de Hokkaido e de Okinawa, e a expansão imperialista
possibilitou a entrada de muitos coreanos e chineses no Japão quando este invadiu e
tomou controle da Manchuria e da Península Coreana (Befu, 2008), aliás, a migração
coreana totalizava em 1945, mais de 2.300.000 pessoas (Lie, 2001, p.24) (ver Tab.
1.0).

Na segunda fase da Era Meiji, por volta do final do século XIX, o país começou a se
estabelecer como poder imperial na Ásia invadindo também Taiwan, Sakhalin, e a
Micronésia (Befu 2008). Nesse mesmo período, os projetos de globalização do Japão
moderno ganharam força, e com eles – paradoxalmente – a possível ocorrência de
uma aculturação tênue em meio à imposição de um nacionalismo cultural (Yoshino,
1992). De acordo com Lie (2001), o ‘Japão moderno’ vai do período após a
Restauração Meiji, 1868, inclui o pós-Segunda Guerra Mundial, 1945, chamado de
Sengo, e encerra-se com a morte do Imperador Hirohito (Showa) in 1989.

Diferentemente de Lie, o autor acredita que o Japão possa ser classificado em quatro
períodos históricos distintos considerando-se seus mais de dois mil anos de existência.
Esses quatro períodos seriam: o Japão ancestral; o Japão feudal-Medieval da
Dinastia Tokugawa; o Japão Imperial Moderno da Era Meiji; e o Japão
Tecnológico Contemporâneo (Ver Fig. 2.0 e Fig. 3.0). Esses períodos históricos se
situam dentro dois macros momentos históricos do Japão, como anteriormente
ilustrados: i) o ‘Domínio Bélico-Militar (tempos de beligerância; guerras, disputas), entre
+2000 A.C. e 1945, e ii) o ‘Domínio Tecnológico’ (tempos de paz), de 1945 até os dias
atuais. O domínio tecnológico é, igualmente, marcado pela liderança econômica do
Japão.

Em 1603, Tokugawa Ieyasu recebeu o título de Shogun pelo Imperador, e a população


foi dividida em cinco classes hereditárias decrescente, levando-se em conta a ordem
de importância. O rígido status hierárquico proibia a mobilidade e o casamento entre
castas diferentes (Minegishi, 1989). Assim, as cinco classes foram chamadas de Shi-
nõ-kõ-shõ: os Senhores; os Samurais; os agricultores, os artesãos, e os mercantes
(Lie, 2001, p.28) dando início a uma dinastia feudal-medieval que durou 265 anos.

Em 1868, o Imperador Meiji anuncia o retorno do poder imperial e declara-se um


governante divino; a divindade imperial é negada em 1945 pelo Imperador Hirohito
57

após a derrota do Japão na Segunda Guerra mundial. Apesar de a Restauração Meiji


introduzir a igualdade entre os cidadãos, no Japão do pré-guerra, claramente pode ser
notada uma elite formada por: família imperial (kõzoku); os nobres (kazoku), e os ex-
samurais (shizoku), e os cidadãos comuns (heimin), bem como os Burakumins como
sub-classe social (shin heimin) (Lebra, 1993, p. 57-60).

O ano de 1945 é considerado pelo autor como um ‘marco divisor’, em que a história do
Japão pode ser dividida em dois grandes momentos; ou seja, a existência de um Japão
marcado pela instabilidade por causa de suas pretensões imperialistas com conquistas
bélicas territoriais (o Japão antes de 1945), e a existência de um Japão líder mundial
da tecnologia de ponta, inovador, pacífico, fomentador de cooperação e assistência
internacional, e parceiro global nas mais diversas áreas das Ciências e da Tecnologia,
tornando-se dessa forma um país cujas credenciais das últimas décadas denotam seu
sucesso. Existe, portanto, um Japão dicotomizado historicamente pelo ano de 1945;
dois momentos distintos de uma mesma sociedade (Ver Fig. 3.0).

Contudo, na literatura os períodos históricos do Japão são ordenados


cronologicamente tendo como base os Imperadores de cada época, ficando assim
divididos: i) Período Histórico Precursor/Ancestral: Asuka/Nara, de 550 A.C. a 794
D.C.; ii) Período Heian, de 794 a 1185; iii) Era Medieval constituída de dois períodos:
Período Kamakura, de 1185 a 1333, e o Período Moromachi, de 1333 a 1568; iv)
Primeira fase da Era Moderna também constituída de dois períodos: Período
Momyama, de 1568 a 1600 e o Período Edo (Tokugawa), de 1600 a 1868; e v)
Segunda fase da Era Moderna: a Restauração Meiji, de 1868 a 1912; vi)
Contemporaneidade: 1912 até os dias atuais.

Fig. 3.0 – Japão e suas Quatro Dimensões Históricas: Ancestral, Feudal, Imperial e
Contemporâneo Tecnológico.

Japão Feudal- Japão Contemporâneo


Medieval Tecnológico

1603 – 1867 1945 – Atual


Dinastia Tokugawa
Japão Imperial-
Japão Ancestral Moderno

- 2000 A.C. - 1603 1868 - 1944


Era Meiji (1868-1912)

Domínio Bélico-Militar Domínio Tecnológico


Tempos de Guerra Tempos de paz

Autor: Ismar Lima, 2012.


58

Tomando-se como base a linha de tempo da Fig. 3.0, o autor se propõe a sublinhar os
eventos em que o Japão possui maior interatividade com povos de outras culturas
dentro e fora de seu arquipélago. Cronologicamente são dispostos os momentos em
que essa interação ou contato para fins mercantilistas ou em razão de ocupações de
territórios podem ter sido propensos a uma possível aculturação ativa ou passiva do
Japão. São também mencionados os momentos de isolamento o que representam as
vanguardas ou resistências com a finalidade de defesa do território e da cultura.
Insulamento como estratégia.

Encontram-se na Tab.1.0 os períodos históricos e os respectivos fatos de maior


expressão para os objetivos desta investigação que é mostrar a influência estrangeira
na cultura e sociedade japonesa. Na década de 1920, o ultranacionalismo japonês leva
o país a intensificar suas conquistas territoriais e guerras com o discurso da
necessidade de se preservar os valores japoneses tradicionais, rejeitando a influência
ocidental.

Eventos e Ocorrências no Arquipélago Investidas e Ofensivas Bélico- Isolamento, Insulamento e Restrições


que Intensificaram o contato e interação Militar Japonesa no Estrangeiro, e (Fortalecimento/ Reafirmação Cultural
com outros povos, tais como: religião, as Diásporas (Ocorrendo Possível e, ou, Nacionalista)
comércio, etc. (Possível Aculturação) Aculturação Ativa-Passiva)
- 500 D.C. – O Japão adota o alfabeto
chinês.
- 538 D.C. – O Reino da Coréia despacha
uma delegação para apresentar o Budismo
ao Imperador, e ocorre uma introdução
dessa religião no Japão.
- 838 D.C. – O Imperador proíbe o
contato com a China.
-Em 1274 – Kublai Khan e os Mongóis
tentam invadir o território japonês mas
são expulsos pelos ‘kamikazes’. Obs.: Em
1050, surge uma nova classe militar: os
Samurais.
-Em 1549, o missionário jesuíta - Em 1614, Ieyasu bane o
português, Saint Francis Xavier chega ao Cristianismo do Japão.
Japão. Os portugueses intensificam o -Em 1633, o Shogun Iemitsu proíbe
mercantilismo com o Japão, tornando-se as viagens para o exterior e a leitura
o único país europeu a realizar grandes de livros estrangeiros, e em 1638 ele
negociações bem sucedidas. proíbe a construção de navios.
- Em 1591, os Jesuítas produzem os - Em 1641, Iemitsu faz com o Japão
primeiros impressos de imprensa no rompa os vínculos com todos os
Japão. povos estrangeiros, e bane os
estrangeiros do arquipélago, exceto
Chineses e Holandeses que
permaneceram nas Costas de
Nagasaki. Houve um insulamento
que dura cerca de 200 anos.
59

- Em 1854, Os japoneses assinam - Em 1869, o governo inicia a


acordos comerciais, o ‘Tratado de colonização de Hokkaido.
Kanagawa’, reabrindo dois de seus - Em 1895 – Os japoneses
portos para os Estados Unidos após dois conquistam Taiwan.
séculos de restrições. Obs.: Em 1864,
forças britânicas, francesas, holandesas
e americanas bombardeiam Choshu,
reabrindo mais portos japoneses aos
estrangeiros.
-Em 1869, Yukichi Fukuzawa lança um
movimento de ‘ocidentalização’ no
Japão, nesse mesmo ano a Escola
Confúcio de Edo torna-se uma
universidade no estilo ocidental,
atualmente a Universidade de Tóquio.
- Em 1873 – O Japão concede liberdade
religiosa.
-Em 1904, o Japão entra em
guerra com a Rússia, e sai
vitorioso em 1905. Em 1910 – O
Japão anexa a Coréia como
território depois de três de
guerra, e é considerado um dos
países mais poderosos do
mundo. Entre 1914 – 1918,
Primeira Guerra Mundial: O
Japão declara guerra à Alemanha.
- A diáspora japonesa para o
Brasil ocorre principalmente
entre 1907 e 1955.
-Na década de 1920, o Japão
acirra sua postura
ultranacionalista com mais
conquistas territoriais e guerras
para preservar os valores e
tradições do país contra a
influência ocidental.
-Em 1931 – O Japão conquista a
Manchúria. Em 1937, o Japão
entra em guerra com a China e
ocupa Xang ai, Pequim, e
Nanquim, com registros de
atrocidades nesta última cidade.
- Em 1947, o Japão aprova uma nova -Em 1940 – O Japão entra na
constituição e implanta o sistema Segunda Guerra Mundial e ocupa
parlamentarista, ficando todos os a região nordeste da Indochina
adultos elegíveis a votar. Nesse mesmo Francesa (*Obs.: em sete de
ano, o Japão renuncia a qualquer dezembro de 1941, o Japão
atividade bélica e promete não manter bombardeia Pearl Harbor, no
qualquer tipo de força aérea, marítima e Havaí (Cullen, 2003), e nos dias 6
terrestre para fins bélicos. e 9 de agosto de 1945 os E.U.A
lançam duas bombas atômicas
60

- Entre 1945 e 1952, os Estados Unidos sobre Hiroshima e Nagasaki),


ocupam várias ilhas do Japão para uso ocorrendo em seguida a rendição
militar; o país é ainda obrigado a incondicional do Japão, ano em
reestruturar suas instituições de acordo que Imperador Hirohito nega seu
com os modelos ocidentais. Em 1952 o status de divindade.
Japão ganha sua independência. - Em 1956, o Japão torna-se
- Em 1945, a migração coreana no Japão membro das Nações Unidas.
totalizava 2.300.000 pessoas.
- Na década de 1980 inicia-se o
movimento imigratório de
trabalhadores nikkeis para o Japão,
entre eles os Dekasseguis brasileiros (a
diáspora do retorno).
- Na década de 1990, o número de
brasileiros no Japão chega a 300.000
pessoas, a maioria de descendentes de
japoneses dekasseguis.
- Em 2004, Japão juntamente com o -Em 2004, pela primeira vez após
Brasil, Alemanha, e Índia lançam a Segunda Guerra Mundial o
candidatura para uma cadeira Japão envia tropas (pacificadoras)
permanente no Conselho de Segurança para uma zona de guerra, o
da ONU. Iraque.
- A crise econômica do Japão e sua
recessão iniciadas nos anos 90 acirram-
se nos anos seguintes fazendo com que
muitos dekasseguis desistam de
continuar no Japão, optando pelo
retorno definitivo ao Brasil (a “diáspora
da desilusão nikkei”).
Autor: Ismar Lima, 2012, com base em várias fontes literárias.

Tabela 1.0 - Japão Ancestral, Feudal, Imperial e Contemporâneo (-2000 A.C.- Atual): Possíveis
Ocorrências de Aculturação e Insulamento (Reafirmação Nacionalista e Cultural)

3.0 - A Diáspora Japonesa

Adachi (2006a) relata em sua obra que a formação da identidade dos descendentes
dos japoneses no Brasil foi aquela da passagem de um contexto de “migrantes
agrários” para um contexto de “trabalhadores urbanos de colarinho branco”, portanto,
as gerações subsequentes conquistaram e usufruíram de situação muito mais
privilegiada do que os seus antecessores, e, no Brasil, os descendentes de japoneses
são comumente estereotipados como um grupo étnico de identidade marcante,
competentes profissional e academicamente, e de nível intelectual acima da média.

Mas a história da diáspora japonesa para o Brasil tem dois elementos fundamentais no
final do século XIX que favoreceram a sua ocorrência: primeiro, o Japão enfrentava
uma grave crise econômica; segundo, a abolição da escravatura em 1888 dava um
61

novo contorno social e laboral ao Brasil, e a necessidade de mão de obra nas lavouras
demandava um contingente imigratório (Adachi, 2006a; Lone, 2001). Primeiro vieram
para o Brasil os alemães, em 1824. Em 1894, o deputado japonês Tadashi Nemoto
veio ao Brasil, e viu no país uma possibilidade imigratória para o Japão,
recomendando-a; no ano seguinte, em 1895, Brasil e Japão assinam o Tratado de
Amizade, Comércio e Navegação, e, com esse Tratado, iniciou-se uma campanha para
incentivar os japoneses a imigrarem.

A região de São Paulo com seus cafezais precisava desse contingente para manter o
ritmo de produção e os lucros; assim, o governo de São Paulo deu apoio direto à vinda
dos japoneses. Em 1907, a Companhia Imperial de Imigração, gerenciada por Ryu
Mizuno, assina o acordo para o envio de 3.000 imigrantes em três anos. Com o apoio
de um grupo de intérpretes, o navio Kasato Maru atraca em São Paulo, em 1908, com
781 japoneses a bordo, 165 famílias, e esse ano marca o início da imigração japonesa
para o Brasil (Suda e Sousa, 2006, p.1). Os japoneses são enviados para a Casa da
Imigração, e dias depois divididos em seis grupos e enviados para a cafeicultura, mas
no ano seguinte, em 1909, apenas 191 continuaram nos postos de trabalho.

Apesar desse resultado insatisfatório, em 1910, chega o segundo navio com mais
imigrantes japoneses, e vindos em maior número, passam a formar núcleos agrícolas
próprios, expandindo-se a fronteira agrícola. Em 1926, em Cotia, é fundada a primeira
Cooperativa Agrícola para o escoamento de batatas evitando-se a ação de
atravessadores. No interior do estado, começam a surgir as primeiras associações
culturais japonesas. Lone (2001) fez um estudo sobre a comunidade japonesa no Brasil
entre 1908 e 1940, e relata a saga dos nipônicos em solo tropical, a luta, os sonhos, as
conquistas, as incertezas, as saudades da terra natal, o choque cultural e os
sofrimentos, em uma narrativa metafórica que situa os japoneses no Brasil entre o
dilema de pertencerem à terra dos Samurais mas residindo na terra do Carnaval.

Segundo Adachi (2001), em termos de assentamento, os japoneses imigrantes no


Brasil podem ser classificados em três grandes comunidades iniciais. O primeiro grupo
foi denominado ‘Vizinhança Japonesa’, pois após finalizar o período de contrato deles
nos cafezais, individualmente alugaram ou adquiriram campos para cultivos próprios
próximos de outras áreas também pertencentes ou administradas por japoneses. Uma
dessas comunidades foi a ‘Vizinhança Minasu Sankaku’, formada a partir de 1916 com
a ida de famílias japonesas para os municípios de Conquista, Igarapava, e Uberaba,
somando 400 pessoas por volta de 1919.

Um fato interessante relatado por Handa (1970) é de que as famílias de Minasu


Sankaku optaram por arrendamentos de terras ou serem parceiros nos cultivos das
fazendas locais em vez de adquirir terras, pois se o fizessem seria uma demonstração
pública de que o Brasil não era mais apenas um ‘lugar de trabalho’, mas o novo lar (p.
62

214-224), e essa situação iria de encontro aos ideais de voltar para o Japão bem
financeiramente; além disso, por cultivarem ‘arroz’ na região, isso fazia com que eles
ficassem ainda mais saudosos da terra natal, uma vez que o ‘arroz’ representa o
símbolo existencial da cultura japonesa (Ohnuki-Tierney, 1993; Adachi 2001; 126).
Para essa comunidade, o Brasil era visto como um lugar emprestado e temporário para
eles. Essa comunidade teve dificuldades em aceitar e lidar com a derrota japonesa na
Segunda Gerra Mundial, pois a derrota conotava que o Japão não estava lá mais
pronto para esperá-los tal como eles o tinham deixado.

O segundo tipo de comunidade foi chamada de ‘Distrito de Líderes’; imigrantes


japoneses que por possuírem afinidades ideológicas ou filosóficas, decidiram se
agrupar em novas localidades para começar uma nova vida. Uma dessas comunidades
foi a de Hirano formada inicialmente em 1915 às margens do Rio Dourados, na vila de
Cafelândia, cerca de 370 km de São Paulo. Mas por causa de uma epidemia de
malária com a morte de vários membros da comunidade, em 1919, as famílias
japonesas resolveram se afastar das margens do rio, indo rumo ao interior, e ali
fundaram um novo assentamento, chamando-o de Hirano Shokumin-Chi, o nome
Comunidade Hirano, foi em homenagem ao líder que os comandou rumo às novas
terras, e que também pereceu vítima da malária.

A Comunidade Hirano sempre manteve relativamente mais isolada, e os residentes


nipônicos conseguiram manter uma dualidade identitária forte, com a presença de
tradições, cultura, ideologia, religião, e costumes do Japão e do Brasil, em um
sincretismo beneficial. No entanto, a organização de uma congregação budista, em
1930, e a construção de um templo, em 1934, em solo brasileiro, algo que era proibido
pelo governo japonês, pois o mesmo obedecia as cláusulas e orientações dos tratados
de imigração entre os dois países, fez com o governo brasileiro se empenhasse na
conversão daquela comunidade ao catolicismo a fim de se evitar preconceitos e
hostilidades contra eles por parte da população.

Já o terceiro tipo de comunidade foi a dos ‘Distritos Patrocinados’, que eram


assentamentos construídos ou estabelecidos pelas agências governamentais
japonesas ou agências semi-privadas no Brasil (Adachi 2001, p. 124).

Por volta de 1941, com o início da Segunda Guerra Mundial, as relações entre Brasil e
Japão ficaram estremecidas fazendo com que a imigração fosse interrompida, mas
naquele ano já se encontravam residindo no país cerca de 180.000 japoneses (Lone
2001, p.71). Por causa da guerra, os japoneses passaram a ser ‘vigiados’ e
‘cerceados’; e algumas das medidas tomadas pelo governo brasileiro incluíam: o
fechamento das escolas especiais para os japoneses; a proibição do uso do idioma
japonês e das transmissões radiofônicas do Japão; além disso, os japoneses eram
detidos sob suspeita de espionagem ou conspiração. Essas foram talvez as ações mais
63

opressoras contra a comunidade japonesa no Brasil, mas não por discriminação, e,


sim, por razões militares durante a guerra. Os generais da ativa temiam que surgissem
núcleos de guerrilha japonesa no Brasil, pois entre os imigrantes havia grupos
fundamentalistas e ultranacionalistas dispostos a defender o Japão fora do arquipélago,
um desses grupos radicais monitorado pelo governo brasileiro foi o Shindo Renmei.

A partir da década de 1945 pode-se falar de uma comunidade japonesa consolidada e


o fim da guerra e a derrota do Japão fazem com que a vida dos imigrantes volte à sua
normalidade, livres do cerceamento e das incertezas do período de guerra, tanto é que
em 1946 é lançado o primeiro jornal em língua japonesa, o São Paulo Shimbun, e em
1947 Yukishigue Tamura se elege vereador de São Paulo, e a estreia dele na política
serve de exemplo, abrindo espaço para que os demais imigrantes japoneses e suas
gerações almejem outros espaços profissionais, políticos e sociais, e os jovens nikkeis
deixam a agricultura para se dedicar aos estudos e ao comércio nos centros urbanos.
Nas décadas seguintes, os nikkeis ocupam várias vagas nos cursos superiores em
Universidades de prestígio no país, e essa mudança de perfil dos descendentes de
japoneses imigrantes levou Adachi a escrever, em 2001, o texto, ‘Construindo a
identidade Nipo-Brasileira: de migrantes agrários a trabalhadores urbanos de colarinho
branco’.

Em 1952, Brasil e Japão assinam o Tratado de Paz, e em 1955 chega ao país uma
nova leva de imigrantes trazidos pela Cooperativa de Cotia, mas para trabalharem nas
fazendas administradas pelos próprios japoneses, e a comunidade nipo-brasileira se
fortalece culturalmente, com ações e movimentos que não deixam a cultura brasileira
se sobrepor totalmente à japonesa, havendo a manutenção de uma ‘identidade nikkei’.
É importante ressaltar que aqui se fala de identidade ‘nikkei’ em vez de uma identidade
‘nipônica’! Na cidade de São Paulo, tem-se a continuidade das atividades culturais
iniciadas no interior anterior à Segunda Guerra, e são criados clubes urbanos para
danças, futebol de salão e tênis de mesa; em 1960, é inaugurado em Arujá o Nippon
Country Club. Nessa época com o estabelecimento dos japoneses, o Brasil já era
aceito como ‘casa definitiva’ e não mais um ‘local temporário de trabalho’, pois os
imigrantes já passavam por um processo de incorporação da cultura e estilo de vida
brasileiro, principalmente por causa de seus filhos, netos, bisnetos; ou seja, os nisseis
e sanseis, yonseis, e gosseis. Pode-se falar de uma identidade mista nipo-brasileira, ou
‘identidade nikkei’ em razão do processo de aculturação ocorrido ao longo das décadas
desde a chegada do navio Nasato Maru aos portos brasileiros.

Com o ‘milagre econômico brasileiro’ na década de 1970 e o ‘crescimento industrial do


Japão’, surge um grande interesse de investimentos japoneses no Brasil em mega
projetos, entre eles no setor da energia, mineração, e agricultura; para Valente (1978),
a emigração japonesa para o Brasil continuou até os anos 70 (p. 22). Nesse contexto,
os nisseis (o termo refere-se à segunda geração de descendentes japoneses) ganham
64

um novo papel cultural nas mediações entre os ‘japoneses’ e ‘brasileiros’. Em 2004, o


primeiro-ministro daquele período, Junichiro Koizumi realizou sua primeira vista ao
Brasil e no município de Guatapará, considerado o nascedouro da imigração japonesa,
emocionou-se ao falar dos conterrâneos que deixaram o arquipélago rumo à América
do Sul, Brasil e Peru.

Atualmente mais de um milhão e meio de descendentes de japoneses vivem no Brasil,


e formam a maior congregação de japoneses vivendo fora do Japão. E é um pequeno
percentual desse contingente nikkei que acabou por se tornar a mão-de-obra mais
adequada, na visão do governo japonês, a assumir postos de trabalho nas indústrias
do Japão. O movimento emigratório nikkei é relatado nas seções seguintes deste
capítulo como parte da análise dos nichos etnoculturais.

Mas a diáspora japonesa não se limitou ao Brasil e Peru; conforme Lie (2001), a
diáspora se estendeu pela Ásia e América do Norte, com um total de 1.400.000
japoneses vivendo no exterior por volta de 1940 (Tanaka, 1991, p. 193); nos anos 90s
mais de 200.000 estavam residindo nos Estados Unidos, além de existir mais de
700.000 nipo-americanos naquele país (Tanaka, 1991, p. 185-186), e, não se pode
deixar de mencionar que os japoneses dos negócios, os turistas japoneses e
imigrantes japoneses estão por toda parte (Lie, 2001). Mas White (1988), alerta que
apesar de o sucesso corporativo do Japão levar milhões de japoneses a viver no
exterior, a volta às rotinas ao arquipélago torna-se extremamente difícil para os filhos
deles nascidos alhures; é uma reintegração – muitas vezes - marcada pelos desafios
de uma adaptação traumática, penosa, com conflitos identidários, linguísticos, e de
aceitação pelo grupo social a qual venham a pertencer.

4.0 – Os Nichos Etnoculturais e Estrangeiros no Japão

Outro assunto a ser abordado neste capítulo é a existência de ‘clusters étnicos e


culturais’ no Japão; o termo ‘cluster’ é, neste caso específico, usado para se referir a
‘grupos humanos específicos’ existentes em território japonês, entre eles os grupos de
imigrantes e grupos particulares nipônicos como os Ainus, de Hokkaido. Os ‘clusters’
formados por grupos imigrantes, as chamadas de ‘comunidades gaijins’, ou ‘enclaves’
ou ‘guetos’ de estrangeiros, entre eles os Filipinos e os Dekasseguis, descendentes de
japoneses – majoritariamente nikkeis brasileiros e peruanos. Alguns autores defendem
que existem seis principais grupos minoritários no Japão contemporâneo, sendo eles:
os Ainus, os Burakumins, os Chineses, os Coreanos, os Nikkeijins, e os Okinawans
(Weiner, 1997; Hui, 2008; Samuel, 2008; Ueunten, 2008; Willis e Murphy-Shigematsu,
2008b).

Os Ainus (アイヌ) representam uma minoria étnica indígena que habita a parte norte
do Japão, a ilha de Hokkaido, e as Ilhas Sacalina e Curilas, e que resistiram por
65

séculos à colonização japonesa entre os anos de 1400 e 1789 (Weiner, 1997), e ao


perderem a batalha Kunasiri-menasi, esse grupo de cultura específica foram
dominados e explorados, adotando nomes japoneses até 1868, quando se iniciou a
Restauração Meiji (Sjoberg 2008). Durante décadas, os Ainus sofreram uma pressão
para sufocar sua cultura e tradições, ficando essas subordinadas à cultura japonesa, e
com a intensificação da ocupação de Hokkaido, os Ainus passaram a se sentir mais
ostilizados, enfrentando discriminações diversas por causa de sua origem, levando
inclusive, famílias a esconderem a origem de seus filhos e netos, poupando-os de
preconceitos (Sjoberg 2008; Weiner, 1997).

Os Burakumins (部落民) são outro grupo minoritário em território japonês que também
sofreu (e sofre) com discriminação por causa de suas origens por terem sido
considerados uma ‘casta’ inferior na hierarquia social estratificada do Japão feudal e
medieval dos Tokugawas, pois ocupavam postos de trabalho rotulados como ‘impuros’,
entre eles os de açougueiro, coveiro, coletor de lixo, e de executor de criminosos
(Samuel 2008). O preconceito tem sua origem na ideologia e filosofia Xintoísta acerca
da pureza do indivíduo que poderia perde-la ao realizar funções ‘sujas’ (Weiner, 1997),
no entanto, vale ressaltar que alguns dos artistas, atores e escritores de expressão no
Japão foram ou são de origem ‘burakumin’ (Samuel 2008).

O tema ‘Burakumin’ é ainda um tabu e evitado ser discutido nas rodas entre amigos.
Evita-se falar sobre eles, e o autor – quando residia no Japão – chegou a questionar
sobre os Burakumins com alguns colegas japoneses de Nagoya, alguns universitários,
e todos diziam desconhecer detalhes sobre essa minoria da população “japonesa”, sua
história de flagelo e discriminação no Japão, e não prolongavam o assunto. Outra
minoria que deve ser mencionada como ‘nicho etnocultural’ no Japão são os
Okinawanos que historicamente se fizeram uma nação separada até 1879, tanto que
sua cultura e língua são distintas da dos japoneses de Honshu e das outras ilhas
(Weiner, 1997; Ueunten 2008).

Além das minorias etnoculturais específicas que já habitavam o arquipélago Japonês


(Hokkaido e Okinawa), o legado demográfico, cultural e histórico das minorias
estrangeiras da Ásia que migraram para o Japão também devem ser debatidas e
contextualizadas em termos de ‘aculturação’ e ‘japonicidade’. As correntes imigratórias
de Chineses, Taiwaneses, e Coreanos para as quatro principais ilhas japonesas,
Honshu, Shikoku, Kyushu, e Hokkaido, tiveram como causa direta a expansão
imperialista do Japão na Àsia antes da Segunda Guerra Mundial.

De acordo com Befu (2008), no contexto do pré-guerra esses grupos de território


invadido situaram-se em um interstício social sendo ‘japoneses legalmente’, mas não
‘japoneses etnicamente’, uma situação que se perpetuou no pós-guerra e segue até os
dias de hoje (p.xxii, Foreword). No Japão, ‘japonês’ legalmente falando refere-se
66

somente às pessoas que sejam cidadãs do Japão por possuírem a nacionalidade


japonesa, um status civil que não tem nada a ver com raça geográfica ou política, ou
com etnia de qualquer espécie (Wetherall, 2008, p. 266). Além desses, ainda existem
os islâmicos que vão a trabalho ou a estudos para o Japão, e mesmo não sendo eles
em quantidade tão expressiva como os nikkeis, formam um agrupamento, nicho cultural
e – em muitos casos – também religioso (Akiko 2008; Goodman 2008). Já os
americanos formam um nicho bem representativo no Japão, e estão ali por razões
diversas, por exemplo, professores da língua inglesa, homens de negócios, e os quase
50.000 militares americanos presentes em solo japonês, a maioria concentrada em
Okinawa; mas desde de abril 2012, os Estados Unidos e o Japão fecharam um acordo
para a retirada gradativa desses americanos de bases militares localizadas no
arquipélago.

A Tabela 2.0 mostra o número de estrangeiros no Japão no ano de 2006 bem como o
respectivo percentual de representatividade de cada grupo naquele país conforme o
Ministério da Justiça do Japão. No entanto, o Ministério ainda não divulgou os números
recentes desta presença estrangeira em seu território, também não são apresentados
os detalhes sobre as demais nacionalidades que fazem parte dos 14,8% de
estrangeiros, entre eles, certamente, estão os grupos de Bangladesh, Paquistão,
Vietnã, e Rússia. Naquele ano, os brasileiros representavam 15,0% dos estrangeiros, e
os peruanos representavam apenas 1/5 do número de brasileiros; uma comunidade
bem mais reduzida; e as Filipinas também figuram como grupo representativo, ficando
em quarto lugar com um contingente bem acima em relação aos americanos.

Os coreanos e chineses juntos representaram mais de 50% do total, sendo maioria


absoluta, ficando os coreanos em primeiro em número (Tab. 2.0). Ryang e Lie (2008)
relatam os desafios, contradições e aspectos comuns sobre a experiência da diáspora
coreana, e incluem em suas pesquisas as questões de cidadania e pertencimento,
além de abordarem aspectos políticos e pessoais desse grupo migrante. Já Hui (2008)
aborda a situação atual dos Chineses no Japão, mais especificamente o contexto
vivido por esse grupo na região de Chinatown em Kobe. Os Chineses ali despontam
como um grupo que deixa de fazer parte de um gueto étnico para ter uma
representatividade e visibilidade em virtude dos restaurantes, sendo chamado de
República Gourmet Chinesa de Kobe; mas mesmo assim é um nicho que experimenta
várias ambiguidades étnicas no arquipélago japonês (Hui 2008).

Para Lie (2001), centenas de milhares de trabalhadores entraram no Japão, legal e


ilegalmente, vindos da América Latina, do Sul e Sudeste Asiático e do Oriente Médio,
contribuindo para fomentando um enriquecimento etnocultural dentro do Japão em
virtude de suas culturas, valores e costumes próprios. Alguns desses grupos acabaram
por se especializar em determinadas tarefas ou funções no Japão, ficando – de certa
forma – estereotipados por isso. Por exemplo, os nikkeis Latinos conhecidos por
67

trabalharem principalmente na indústria automobilísticas, mas não sendo exclusivos


dessas; os islâmicos de Bangladesh foram para o Japão para trabalhar na construção
civil; os filipinos, em particular filipinas, têm atuado como ajudantes de enfermeiras
cuidando de pessoas idosas preenchendo a falta de uma mão-de-obra escassa em um
Japão que tem uma grande parcela da população em idade senil; e as mulheres
tailandesas foram trazidas para o Japão para trabalharem na indústria do
entretenimento e do sexo, como salienta Befu (2008) existem diversidades de
situações envolvendo os indivíduos de uma mesma nacionalidade no Japão, não
havendo margem para uma estereotipação, sem espaço para formação de “patterns”
sociais e étnicos.

“portanto, uma filipina pode se casar com um japonês, ter uma cidadania
japonesa, e ser uma dona-de-casa em tempo integral com crianças na escola,
enquanto que outra filipna pode ser pega em situação irregular, ilegal no país, com
visto expirado, e atuando no círculo de prostituição controlado por gangues
japonesas” (tradução própria) (Befu, 2008, p. xxiv).

Logicamente que tais estereótipos generalizados geram um problema de percepções


equivocadas em relação a determinadas nacionalidades e povos, pois nem todas as
filipinas cuidam de idosos, nem todas as tailandesas estão na indústria do sexo, nem
todos os brasileiros nikkeis são dekasseguis com funções 3ks, kitanai, kiken, e kitsui
(sujo, perigoso e duro) (Ocada 2000). Em meio a esse contingente estereotipado, há
estudantes de graduação e pós-graduação, turistas, pessoas de negócios,
empresários, e estrangeiros que se casaram com japoneses e vivem no arquipélago.
Seria um grave erro e um despropósito criar estereótipos rotulando povos e indivíduos!

Nacionalidade Ano 2006 Percentual Representativo


Coréia 598.219 28,7 %
China 560.741 26,9 %
Brasil 312.929 15,0 %
Filipinas 193.488 9,3 %
Peru 58.721 2,8 %
Estados Unidos 51.321 2,5 %
Outras 309.450 14,8 %
Nacionalidades

TOTAL 2.084.919 100 %


Fonte: Ministério da Justiça do Japão, no website: www.moj.go.jp

Tabela 2.0 – Estrangeiros no Japão por Nacionalidade em 2006


68

Mas Lie (2001) relata que os trabalhadores estrangeiros constituem um potencial de


ameaça à sociedade japonesa por causa da “racialização” e ‘visibilidade social’ em um
país considerado por alguns como homogeneamente étnico. Para Lie (2001), o termo
‘racialização’ é o processo pelo qual um grupo acaba sendo estereotipado por seu
aspecto físico ou diferença cultural (p.18-20), ocorrendo um determinismo pelas
características que não representa o todo de um grupo específico, ou seja, a partir de
um etnocentrismo, o outro que é não pertence ao grupo de origem, autóctone, é
identificado por suas características mais marcantes, e rotulado como tal por suas
diferenças; rotulações que podem ter conotações xenofóbicas.

Lie (2001) ressalta que na década 80, a mídia de massa japonesa passou a usar o
termo ‘japanyukisan’ para designar os novos trabalhadores migrantes; um termo de
conotações preconceitos se analisar sua etimologia, pois deriva da palavra
‘karayukisan’ usada em referência às prostitutas japonesas no exterior no final do
século XIX (Suzuki, 1993, p. 224-236); portanto, o termo ‘japanyukisan’ pode
implicitamente significar ‘mulheres trabalhadoras sexuais’. Até 1988, a maior parte dos
deportados do Japão, algo como 80% - 90% deles, eram mulheres que trabalhavam
anfitriãs de bares e prostitutas, entre elas filipinas, tailandesas, etc. (Hinago 1986, p.
143-144, apud in Lie, 2001, p.20). A palavra ‘gaijin’ também é considerada por muitos
como um termo carregado de implícitos xenofóbicos, uma forma de ‘racialização’, pois
faz uma distinção entre os que pertencem à sociedade japonesa e os que a ela não
pertencem, levando a possíveis conotações de exclusão, tais como ‘intruso’; ‘gaijin’ é a
forma reduzida de ‘gaikokujin’ que literalmente significa o ‘sujeito que é (vem) de fora’,
o forasteiro, o estranho, uma ádvena.

4.1 – Transculturalismo no Japão: A diáspora do retorno, nikkeis e os nichos


Dekasseguis no Japão.

Com as demandas por mão-de-obra nas indústrias japonesas a partir dos anos 80
durante a “bolha econômica”, e assim iniciou-se o movimento ‘dekassegui’, que tem
sua escrita aportuguesada ‘decasségui’, também chamado na literatura de a ‘diáspora
do retorno’. É importante salientar que essa ‘diáspora do retorno’ (Tsuda, 2003) não foi
um retorno de grupos rurais de nikkeis brasileiros famintos e miseráveis, mas de
descendentes de japoneses em sua maioria razoavelmente estabelecidos em áreas
urbanas do Brasil, e que buscavam dar um salto na qualidade de vida, fugindo da
insustentável crise econômica do Brasil da década de 1980 e 1990 (Roth, 2002; Tsuda,
2003); uma crise econômica sem precedentes, com uma dívida externa “impagável”,
hiperinflação, recessão, especulações de toda sorte, descontrole econômico e
financeiro, resultando em achatamento salarial, queda no poder de compra, e falências
individuais e corporativas; lucravam no país aqueles que possuíam um capital
excedente para especular em artifícios financeiros em que dinheiro vira ‘muito dinheiro’
69

em curto prazo; uma crise que marcou a agitada transição de uma ditadura militar de
21 anos para um regime de governo civil eleito por voto, portanto, mais democrático.

A onda emigratória trabalhadora ‘nikkei’ se intensificou com as sucessivas crises


econômicas brasileiras, resultado dos fracassos acumulados de planos econômicos
como o Plano Cruzado I, II, Plano Bresser, Plano Verão, etc. Nessa conjuntura
prevaleciam a hiperinflação, o achatamento salarial, e a queda de poder de compra
Esses fatores que contribuíram na década de 80 para que os nikkeis deixassem o país.
‘Crise econômica’ foi o elemento comum presente nas duas diásporas, tanto na
diáspora dos antepassados do Japão para o Brasil, quanto na diáspora nikkei para o
Japão. Ambos foram chamados de dekasseguis, pois deixaram sua terra de origem
para irem trabalhar, daí a origem do nome dekassegui (出稼ぎ), que é formado por
duas palavras, ‘deru’ (sair) e ‘kasato’ (para trabalhar) (Roth 2002; Tsuda, 2003; Ocada,
2000). Os dekasseguis, em sua maioria, acabaram indo trabalhar em fábricas no Japão
assumindo postos de trabalho conhecidos como ‘3ks’ nas fábricas (Ocada, 2000);
postos que eram desprezados ou desdenhados pela força produtiva juvenil japonesa,
fazendo dos nipo-brasileiros imigrantes a comunidade minoritária mais recente do
arquipélago (Tsuda, 2003).

Na década de 1990, os dekasseguis chegaram a representar um número significativo,


e segundo o último levantamento do governo japonês, em 2006, os brasileiros (nikkei e
não-nikkei) totalizavam 312.929 pessoas, representando 15% do total de estrangeiros
presentes naquele país. As aglomerações de dekasseguis concentram-se em certas
cidades japonesas tais como as da província de Aichi-ken: Toyohashi, Toyota,
Komaki, Nishio, Chiryū; de Gifu-ken: Kani, Ōgaki, Minokamo; de Gunma-ken: Ōta,
Oizumi e Isezaki; de Mie-ken: Suzuka, Yokkaichi, Tsu, Iga, Kameyama; de Nagano-
ken: Iida e Ueda; de Shiga-ken: Nagahama, Konan, Kōka; de Shizuoka-ken:
Hamamatsu, Iwata, Kakegawa, Kikugawa, Fukuroi, Fuji e Kosai, além de Tokyo, sendo
que a maior concentração de brasileiros dekasseguis encontra-se em Hamamatsu, com
cerca de 20 mil pessoas. Com essas aglomerações, vieram os choques culturais, as
crises de identidade, e os problemas sociais com famílias fragmentadas ou desfeitas,
filhos sem frequentar a escola ou com problemas na adaptação à escola japonesa por
causa de discriminação e barreiras do idioma. Há ainda registros de delitos e crimes
atribuídos a nikkeis brasileiros e peruanos, fatos esses que são relatados em
reportagens na mídia local e também nos jornais direcionados aos nikkeis, entre eles o
Jornal NippoBrasil, e Jornal International Press e o IPCTV do grupo IPC Digital, entre
outros.

Existem dekasseguis que vivem há mais de 20 anos em solo japonês, com filhos
nascidos ali, já estabelecidos, enraizados, e com uma identidade mista, talvez seja
mais apropriado dizer ‘híbrida’, digamos, uma identidade nipo-brasileira. Tsuda (2003)
70

afirma que os descendentes japoneses, os dekasseguis, nasceram no Brazil, portanto,


são culturalmente brasileiros, e reforça que os nipo-brasileiros residentes no Japão, por
serem objeto de marginalização socioeconômica no arquipélago, acabam tendo
fortalecidos seus sentimentos nacionalistas como brasileiros, tornando-se uma
comunidade migrante transnacional bem integrada. A quase totalidade dos
‘dekasseguis’ permanece destituída da nacionalidade japonesa, ficando no Japão em
situação incerta e temporária, ou seja, estrangeiros, mas em situação legal por meio de
concessões de autorizações para continuar no país (Roth 2002), o que leva a todos à
maratona dos vistos, suas renovações e registros nas prefeituras onde residem, entre
outras formalidades e burocracias por não serem ‘residentes permanentes’ ou
‘cidadãos’. No entanto, desde de 2001 o governo japonês tem concedido ‘vistos
permanentes’ a certos grupos estrangeiros, os Dekasseguis inclusive, outorgando a
eles um status de imigrantes. Mas no caso da situação dos dekasseguis, uma reflexão
mais ontológica - e de contexto histórico - se faz necessária, pois os japoneses que um
dia deixaram o país em busca de uma perspectiva de vida melhor têm seus filhos,
netos e bisnetos não acolhidos como japoneses.

Em virtude de entraves nacionalistas e institucionais, o Japão adota um sistema misto


de ‘jus sanguinis’ (direito à cidadania adquirida por causa dos laços sanguíneos e pela
ancestralidade genética) e o ‘jus solis’ (direito à cidadania em função do lugar de
nascimento) para reconhecer um indivíduo como sendo ou não um cidadão japonês.
Pelo sistema ‘jus sanguinis’, os dekasseguis deveriam ter a cidadania japonesa e ter os
mesmos direitos de um japonês nascido em solo nipônico, tal como acontece com os
descendentes de italianos imigrantes que nasceram e cresceram no Brasil, e estão,
portanto, elegíveis a se candidatarem à cidadania italiana. A saga e a odisseia
japonesa pelo mundo são relatadas em seus pormenores na obra editada por Nabuko
Adachi, intitulada ‘Japanese Diasporas: Unsung Pasts, Conflicting Presents, and
Uncertain Futures’ (‘Diásporas Japonesas: Passados não Contados, Atualidades
Conflitantes e Futuros Incertos’), obra ainda não traduzida para o português.

Assim, há duas perguntas inquietantes a se fazer sobre esse tipo de situação: primeiro,
tomando-se como base as leis vigentes e as barreiras do governo japonês em relação
à permanência dos dekasseguis no Japão, não tendo um status definitivo, não sendo
cidadãos por direito, então, são os seus antecessores (ancestrais) que imigraram para
o Brasil no século XX considerados desertores, párias nacionais? Segundo, afinal são
os dekasseguis japoneses étnicos ou não? Se houver um consenso de que são
eticamente japoneses, então por que não podem ser considerados cidadãos japoneses
com os mesmos direitos e deveres daqueles que nasceram e cresceram naquele país?

Talvez uma posição mais flexível do governo do Japão e daquela sociedade em


relação aos dekasseguis poderia por fim a um dilema de identidade, de
reconhecimento e de aceitação que os perturba há décadas, pois o reencontro com as
71

raízes e com a cultura original tem sido repleto de desapontamentos, frustrações e


injustiças, tal como registrado por Angelo Akimitsu Ishi, no texto ‘Between privilege and
prejudice: Japanese-Brazilian Migrants in “the land of yen and the ancestors” (‘Entre
privilégios e preconceitos: os migrantes brasileiro-japoneses na Terra do Ien e de seus
ancestrais’, tradução própria’) que é capítulo do livro ‘Transcultural Japan: At the
Borderlands of Race, Gender, and Identity’. No caso dos dekaseguis nem se poderia
dizer que a sociedade japonesa e o governo têm sido etnocêntricos, nacionalistas, pois
esse grupo nikkei - na compreensão do autor - não se distingue biologicamente e,
culturalmente, os nikkeis - por serem descendentes - mantiveram vários dos aspectos
culturais nipônicos, ou no mínimo eles têm um conhecimento ou vivência mais
significativa sobre a cultura dos japoneses do arquipélago se comparados a outros
grupos estrangeiros ou étnicos.

O autor com base em suas observações e experiências pessoais e nos contatos com
os nipo-brasileiros em Aichi-ken, Nagoya-shi, principalmente na região do Consulado
do Brasil, onde funciona o supermercado brasileiro, The Amigos, afirma que os
dekasseguis são na verdade a evidência mais palpável de uma cultura nipônica forte,
pois mesmo longe do Japão por décadas foram capazes de manter vários aspectos
daquela cultura e do idioma, mostrando-se uma vanguarda cultural ultramar. Nesse
caso, houve certamente um processo de aculturação dos ancestrais japoneses e de
seus descendentes, mas de modo que vários traços da cultura nipônica resistiram a
uma provável sobreposição da cultura brasileira, ocorrendo um fenômeno espetacular
de duas culturas, digamos, justapostas, e que com o tempo tiveram algum nível de
imbricação, sem que uma cultura anulasse a outra completamente. Logicamente que
há ‘nikkeis’ que conhecem muito pouco da história, cultura, sociedade e da língua
japonesa. Por exemplo, o autor não é descendente de japonês, mas tem na família um
caso de casamento inter-racial, e desse relacionamento vieram dois primos nikkeis, e
apesar de terem traços nipônicos, não possuem domínio da língua japonesa, nunca
estiveram no Japão, e o referencial identitário deles é notadamente brasileiro. Nesse
caso particular, o autor tem muito mais bagagem cultural e linguística japonesa do que
os próprios primos nikkeis.

No entanto, em termos de formação de identidade, os nikkeis que vão para o Japão


sofrem com a dualidade paradoxal de serem chamados e percebidos como ‘japoneses’
no Brasil, mas quando chegam em terras japonesas, não são aceitos prontamente
como parte daquela cultura e sociedade, fazendo surgir nos nikkeis um sentimento
nacionalista excessivo (Tsuda, 2003), com a valorização dos elementos simbólicos da
cultura brasileira incluindo a música, dança, esporte, gastronomia, (o samba, o
carnaval, feijoada, o futebol) que antes, para muitos dos nikkeis, tais elementos não
tinham tanta representatividade ou importância. Isso foi observado pelo autor durante
sua estada na região de Aichi-ken, em Nagoya, especialmente nos contatos e
72

interações dialógicas com os nikkeis no supermercado The Amigos. Reafirmar a cultura


brasileiro em território japonês parece ser uma forma instintiva de dar uma resposta à
não-aceitação, ou rejeição, de uma sociedade cujos antepassados faziam parte. Algo
semelhante pode-se afirmar dos dekasseguis peruanos, que juntos formam o grupo
nikkei latino. De acordo com os estudos etnográficos de Tsuda (2003), esse
nacionalismo dos migrantes nipo-brasileiros em solo japonês acaba criando um
invólucro, uma vanguarda, uma resistência às pressões culturais japonesas.

Ao permitir a entrada de 300.000 dekasseguis no Arquipélago, o Japão favoreceu de


certa forma uma retorno de descendentes nipônicos às suas origens (Tsuda, 2003),
mas por ser um grupo humano especial, de cultura mista e, ou, com similaridade dos
traços físicos em relação aos nativos, esse grupo tem buscado um espaço, uma
presença, e feito a seu modo uma adaptação cultural e de sobrevivência ao passo que
incorpora elementos culturais perdidos no passado distante, impõe também a
flexibilidade e aspectos da cultura brasileira, fato que – muitas vezes – gera conflitos
devido ao choque cultural nesse processo simbiótico de existir e viver dos dekasseguis
no Japão.

O que muitos estudiosos não percebem é que existe já faz algum tempo uma
ocorrência única, extraordinária, da aculturação dos grupos nikkeis e, de certo modo,
dos japoneses como sociedade receptora desses grupos; essa aculturação tende a ser
na verdade um resgate linguístico-cultural. Há, portanto, uma necessidade urgente de
mudança de postura e de percepção do governo e da sociedade japonesa de modo
que passem a considerar os dekasseguis como um grupo muito especial com o status
de cidadão japonês, nihonjins, ao invés de percebê-los apenas como uma mão de obra
importada e conveniente para o trabalho pesado e exaustivo nas indústrias em épocas
de prosperidade e demandas econômicas (Tsuda, 2003). Outro fato a ser investigado é
se há ou não bairrismos nos redutos nikkeis como forma de se afirmarem culturalmente
no Japão. Igualmente importante seria o levantamento sobre movimentos ou ações
etnoculturais das comunidades estrangeiras não-nikkeis.

Negar aos dekasseguis certos direitos seria incorrer no despropósito de negar um


período da história de luta e de crises do Japão; um país pequeno, mas
reconhecidamente de grandes feitos. Uma sociedade marcada pela determinação,
organização e disciplina. Um país que acumula acertos e erros em sua trajetória
histórica como sociedade, mas que busca no contexto do pós-guerra a convivência
pacífica em que as intervenções beligerantes foram substituídas por outras formas de
conquistas: a tecnologia, o fortalecimento econômico, a busca pela qualidade e
excelência em suas produções, as tradições, a gastronomia, a cultura, a polidez nas
inter-relações, e a hospitalidade. Os dekasseguis são o exemplo histórico mais notório
e remanescente dessa saga de afirmação e de conquista do Japão.
73

Os descendentes de japoneses no Brasil somam mais de um milhão de pessoas, e o


Bairro da Liberdade, em São Paulo, torna-se o reduto cultural mais expressivo deles no
Brasil, além de outros ‘enclaves’ espalhados pelo território nacional. Em Goiás, os
festivais japoneses no Clube Kaikan atraem centenas de descendentes e não-
descendentes que buscam uma experiência cultural, linguística, artística, e
gastronômica nipônica mais genuínas. O Bon-Odori e o Bunkasai são
inquestionavelmente eventos consolidados no Estado. O Centro de Pesquisa da
Cultura Japonesa em Goiás, CPCJ-GO, juntamente com a Escola Modelo de Japonês,
ambos localizados no Kaikan, têm tido um papel crucial na revivência, resgate e
manutenção da cultura e língua japonesa.

O grande desafio para os dois governos, do Brasil e do Japão, tem sido resolver a
situação incerta de famílias que em solo japonês se estabeleceram, ficaram raízes com
filhos que nem falam o português fluentemente ou se identificam mais como sendo
japoneses do que brasileiros, mas não tem a cidadania nipônica. Aquele país é ainda
algo “emprestado” a eles mesmo após 22 anos da chegada ao arquipélago. Mas a
comunidade dekassegui presencia uma redução significativa em número de indivíduos
devido às crises econômicas e recessões no Japão nas duas últimas décadas, e
agravadas com as crises nos Estados Unidos e na Europa, e, também, pela melhoria
da situação econômica do Brasil, o que serviu de atrativo para que muitos desistissem
de continuar uma vida incerta no Arquipélago Asiático, fazendo o retorno definitivo ao
país tupiniquim.

5.0 – Considerações Finais

O tema proposto neste capítulo faz uma releitura crítica das várias abordagens
históricas, culturais e sociais e pode mostrar caminhos para a elaboração do conceito de
‘japonicidade’; uma missão nada fácil, mas certamente gratificante e de notável
contribuição para a literatura. È um debate que ultrapassa as dicotomias das discussões
disciplinares isoladas, envolve os ‘nipologistas’, mas também requer uma investida
interdisciplinar, multidisciplinar, transdisciplinar, para uma compreensão holística da
sociedade contemporânea japonesa; uma compreensão que não pode alijar os grupos
minoritários presentes no arquipélago japonês.

Dessa forma, uma resposta precisa, de base mais empírica, poderia ser dada face às
indagações feitas no início do capítulo, mas que foram consistentemente analisadas e,
em alguns trechos e com base na literatura pertinente, de várias formas, foram
respondidas. As perguntas foram: Pode-se afirmar que o Japão é um país de cultura e
sociedade monolítica? São a monocultura e a monoetnia elementos inquestionáveis de
uma ‘japonicidade’? Quais são as verdades e quais são as afirmações falaciosas sem
respaldo acadêmico-científico acerca da intangibilidade do Japão? É possível validar a
tese de um Japão transcultural e multiétnico?
74

Tendo vista a complexidade desse debate, o autor optou por orientar a discussão, bem
como apontar a literatura, abordagens, conceitos e teorias existentes que podem
contribuir para a profundidade do tema. Mas sem se mostrar neutro, o autor advoga que
o Japão é um mosaico de experiências históricas, culturais, linguísticas e culturais,
experimentando avanços e retrocessos em sua ocidentalização; no entanto, sempre
houve movimentos de resistência de caráter endógeno que lutaram pela prevalência e
manutenção da essência da sociedade japonesa, e as evidências dessa resistência pode
ser observada em todo o arquipélago, na gastronomia, na arquitetura, no vestuário, no
idioma e nos recursos linguísticos, nas formas de organização, nas crenças e nos
valores, e, na postura – obviamente – nacionalista. Aliás, essa talvez seja o elemento
mais contraditório daquela sociedade, pois ao mesmo tempo em que unge, almeja e
valoriza aquilo que seja estrangeiro, incluindo as pessoas, em atitude inversa, acaba por
repudiar aquilo que seja de fora, e se inicia um processo de sobrevalorização das coisas
autóctones e nativas.

Para Lie (2001), a “inevitável dialética da internacionalização e heterogeneidade étnica


tem sido repetidamente negada” (p.25), e toda tentativa de ‘internacionalizar o Japão’
parte da prerrogativa que aquela nação tenha ficado fechada ao mundo, negligenciando-
se com uma realidade multiétnica do passado e do presente do país (Yamawaki, 1994), e
a cada convocatória para uma nova internacionalização (ampliação da abertura do país
aos “de fora”) tem sido motivo de alvoroço no Japão, pois prevalece a noção de riscos
para uma homogeneidade étnica japonesa em flagrante rejeição a um passado
multiétnico (Lie, 2001), e a problemática de novas levas de trabalhadores estrangeiros no
país, uma segunda abertura do Japão, leva a um fortalecimento da crença de um Japão
monoétnico na sociedade contemporânea, ofuscando-se a existência das minorias
étnicas e o legado colonial (Lie, 2001).

Uma das contribuições originais desse capítulo é a análise do legado histórico do Japão
para o próprio Japão, e a saga das diásporas japonesas, e os desdobramentos históricos
do exílio voluntário nipônico, e isso inclui as contribuições e o legado deixado pelos
japoneses que no passado, corajosamente, deixaram sua terra natal rumo a terras
distantes, desconhecidas, em um período de crise, de guerras, de incertezas. Com a
mesma visão crítica, o autor retoma as discussões sobre a situação dos dekasseguis
brasileiros no Japão, e ressalta os problemas identitários, de socialização, e de crises
desse grupo. Outras minorias como a dos chineses, coreanos, bem como a dos inus e
dos burakumins, bem como os aspectos transculturais não são esquecidas nesse
debate.

O autor defende que a elaboração do conceito de ‘japonicidade’ e a análise sobre uma


‘aculturação nipônica’ não podem ser fruto de um determinismo acadêmico simplista.
Japonicidade diz respeito a todos os fatos, eventos, produção intelectual, nuanças
sociais e experiências vividas por uma nação, e inclui a existência de um ‘consciente
75

coletivo’ que engloba valores, crenças, identidade, os elementos autóctones, regras e


normas sociais, códigos implícitos e explícitos de conduta, as narrativas e as construções
discursivas de um povo, sua literatura, os recursos linguísticos, o papel da imprensa e
mídia na formação da opinião pública, os arranjos organizacionais, as instituições, o nível
tecnológico, os festivais, a cultura, os costumes, o ethos, nacionalismo, e as orientações
e decisões nas relações exteriores. No entanto, a discussão sobre ‘japonicidade’ não
ficaria completa se não fossem rompidos paradigmas enraizados em axiomas que
podem interferir na descrição mais fidedigna de uma realidade nipônica.

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