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Acta Farmacêutica Portuguesa

2015, vol. 4, n. 1, pp. 67-69

Dança. A parte imersa do iceberg


Dance. The submerged part of the iceberg
Rodrigues dos Santos J. A.1, Amorim T.1, Marques F.2
ARTIGO OPINIÃO| OPINION ARTICLE

Quando assistimos ao bailado “O Lago dos o aporte energético total. Vários estudos
Cisnes”, peça de Tchaikovsky interpretada apontam para a relação entre os défices
magistralmente pela Companhia Nacional de energéticos recorrentes e o atraso pubertário em
Bailado, elevamo-nos em emoção perante o bailarinas1. As bailarinas, principalmente aquelas
drama do príncipe Siegfried que exprime, através que têm dificuldade em manter uma
de movimentos significativos e esteticamente percentagem de massa gorda expectável para a
belos, o drama de amor que o faz vacilar entre o dança clássica, tendem a desenvolver desordens
cisne branco e o cisne negro. A nossa fruição alimentares que se vão refletir na performance,
estética faz-nos entrar num mundo em que o na silhueta corporal, na saúde e eventualmente
sonho, a imaginação e a transcendência são na acentuação da taxa lesional. Foi verificado,
catalisados pela excelência artística dos em bailarinas profissionais, uma elevada (31%)
bailarinos. incidência de comportamentos alimentares que
Só que essa excelência performativa é conseguida, poderiam conduzir a desordens alimentares 2.
por vezes, pela exploração máxima dos limites do Essa taxa é incomensuravelmente maior que na
corpo. O corpo como agente promotor de beleza população em geral. No processo de
e evasão não consegue escamotear os limites da desenvolvimento da bailarina, os ensaiadores/
sua funcionalidade fisiológica e biomecânica e professores deveriam atentar no aporte
entra, por vezes, em situação de stresse sistémico energético e nutricional aquando da
não controlado. intensificação das cargas de treino por volta dos
O corpo de um bailarino/a é a síntese de todas as 14 anos e assim evitar práticas nutricionais
capacidades motoras cobertas com a capa da anómalas. Práticas dietéticas restritivas estão
máxima expressão estética. Força, Velocidade, relacionadas com a procura do corpo ideal
Resistência, Flexibilidade e Coordenação estão normalmente expressa sinais de magreza.
condicionadas a uma pauta organizativa que os Estudos comprovam que as bailarinas,
coreógrafos desenham e os bailarinos debutantes ou profissionais, pesam
transformam em arte. frequentemente 10 a 12% do peso ideal para a
A força expressiva do bailarino/a advém-lhe de um idade e estatura. Num grupo de 30 bailarinas com
corpo domesticado que, muitas vezes, transcende idade média de 17.4±2.0 anos, verificou-se que
os limites do fisiológico. A própria dança clássica 50% apresentavam um peso corporal abaixo do
assenta em posições de base forçadas, não normal3. A luta contra a acumulação de gordura
naturais. Um duplo desiderato é procurado pelo é uma constante na vida das bailarinas. Peso
bailarino/a – manter um corpo performativo e corporal supérfluo aumenta teoricamente o risco
dominar de forma natural skills não naturais. de lesão. Elevadas percentagens de massa gorda
A manutenção, na dança, de um corpo estão associadas à extensão temporal do período
plenamente operativo, pressupõe cuidados em que a bailarina é forçada a modificar a sua
vários que, por vezes, fogem da lógica da atividade devido a lesão4.
normalidade. Um dos aspetos marcantes na vida A dança, clássica ou contemporânea, na sua mais
do bailarino/a profissional é o controlo elevada expressão, exige um elevado
nutricional e ponderal. Verificou-se que apuramento técnico que só pode ser conseguido
estudantes e profissionais de dança clássica, em através do treino árduo, mental e corporal. A
particular as mulheres, consomem entre 70% a repetição sistemática das várias coreografias,
80% das recomendações dietéticas diárias para sem intervalos de recuperação adequados,

1
Faculdade de Desporto, Universidade do Porto, Portugal.
2
Faculdade de Farmácia, Universidade do Porto, Portugal.

© Ordem dos Farmacêuticos,SRP ISSN: 2182-3340


Rodrigues dos Santos J. A., Amorim T., Marques F.

induzem cargas físicas agressivas que a Companhia Nacional de Bailado, e.g., “Prelúdio
ultrapassam as capacidades adaptativas dos à sesta de um fauno”, “Grosse Fuge” e “Noite
bailarinos/as5. Por vezes, o perfil de treino na Transfigurada”, são verdadeiros exercícios que
dança, não respeita os pressupostos implícitos exploram os limites do corpo e obrigam a
na metodologia do treino desportivo, isto é, o sobrecargas articulares e musculares similares
desenvolvimento de uma boa condição física de aos desportos de força e potência. O stresse é
base antes de entrar no desenvolvimento das agravado já que esses movimentos de elevada
capacidades específicas da dança. Isto é tanto intensidade são executados por gráceis corpos
mais importante quanto se verificou que uma de bailarinas que, por vezes, não têm as
baixa condição aeróbia estava relacionada com condições estruturais para performances
o aumento da taxa lesional4. anatomicamente tão exigentes. A conjugação do
Acresce que a própria estrutura cinemática da atraso na maturação esquelética que se verifica
dança clássica é um fator predisponente para a em elevada percentagem de bailarinas durante
lesão articular, muscular e óssea. Tem sido a puberdade, défices energéticos recorrentes,
descrito que a falta de alinhamento entre as reduzida percentagem de gordura corporal, peso
estruturas dos membros inferiores, tais como as corporal reduzido, pode induzir um quadro
ancas, joelhos e arcos longitudinais dos pés pode clínico anormal com a emergência de amenorreia
promover a lesão em bailarinas clássicas6. A luta ou dismenorreia e afetação da saúde óssea10.
contra a lesão é uma das preocupações Pelo atrás descrito, verifica-se a necessidade
fundamentais do bailarino/a profissional. Os imperiosa de encontrar mecanismos de controlo
riscos primários de lesão de overuse dos das cargas de treinos nos bailarinos/as.
membros inferiores em bailarinas são elevados. Paralelamente aos exames biomecânicos, que
Por exemplo, o tratamento conservativo da controlam mais a expressão externa do
síndrome de impingimento posterior do movimento, urge completar o controlo de treino
tornozelo, frequente em bailarinas, demora dos bailarinos com exames bioquímicos que
entre 3 a 6 meses7. É de deduzir que durante esse permitam relacionar a intensidade e volume das
período a bailarina treinará condicionada, com cargas com a expressão sanguínea ou plasmática
dor e eventual recorrência a analgésicos. de alguns biomarcadores.
Embora, Kim et al. (2014)8 tenham verificado Pela análise da literatura podemos verificar que
associação entre o gene ACTN3 e a baixa massa o estudo bioquímico da dança ainda é muito
isenta de gordura, redução da flexibilidade e incipiente. Evidencia-se o estudo longitudinal
risco superior de lesão da articulação do de Donoso et al. (2010)1 que verificaram, em
tornozelo, deveremos ter algum cuidado em bailarinas, no decurso de um ano, que a redução
relacionar fatores genéticos com predisposição da gordura total e gordura periférica induzida
para as lesões, dado que a etiologia destas é por um exigente programa de treino estava
multifatorial. associada à redução dos níveis de leptina e
Será a dança uma atividade profissional de aumento dos níveis de adiponectina. Em termos
desgaste rápido? Será que o processo de repetição agudos, verificou-se que uma coreografia
sistemática na dança é indutor de lesões de completa de dança clássica provocou aumentos
overuse e consequente debilidade funcional? significativos da CK, da peroxidação lipídica e da
A resposta tende a ser afirmativa. Comecemos pela glutationa (GSSG/GSH). A CK permanecia elevada
análise do processo auxológico. Existem fortes 48 horas após esforço enquanto a GSSG/GSH e a
evidências que as bailarinas jovens sofrem de um peroxidação lipídica regressavam aos valores
atraso no crescimento, na maturação e na basais11. Estes dados, a corroborar por outros
menarca, e evidenciam elevada taxa de estudos, dão indicações importantes sobre o
irregularidades menstruais 9 . A conjugação controlo das cargas de treino. Também se
destes fatores pode predispor à acentuação do verificou que bailarinos apresentam défice de
stresse provocado pelas cargas físicas intensas vitamina D [25(OH)D]12 enquanto as bailarinas
que as bailarinas experimentam em muitas tendem a evidenciar défice de ferro 13 . Os
coreografias. Pela análise biomecânica de estudos bioquímicos na dança são escassos.
algumas coreografias podemos deduzir o O atual estado de arte na investigação
elevado stresse articular e muscular induzido por bioquímica da dança abre um campo imenso para
certos movimentos. Por exemplo, alguns futuros investimentos científicos nesta área.
bailados de Anne Teresa de Keersmaeker, autora Conjuntamente com a biomecânica, a bioquímica
belga com imensos trabalhos coreografados com pode ajudar a dança no sentido controlar

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adaptações e erradicar comportamentos que 7. Bojanic I, Janjic T, Dimnjakovic D, Krizan S,


podem ser deletérios para a saúde e Smoljanovic (2015) Posterior ankle impingement
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