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Rev.bras.hematol.hemoter.,2002,24(1): 9-13 Voltarelli J.C.

Artigo Especial

Transplante de células tronco hematopoéticas para doenças


auto-imunes no Brasil

Júlio C. Voltarelli O transplante de células progenitoras hematopoéticas apresenta bases sólidas


para ser indicado no tratamento das doenças autoimunes. No relato são
apresentados estes dados e a seqüência de eventos que tem contribuído
para a implantação de um protocolo brasileiro do procedimento na
modalidade autogênica utilizando regimes de mobilização uniforme com
Ciclofosfamida 2g/m2 mais fator estimulador de colônias granulocitárias
e condicionamentos particulares para o lúpus eritematoso sistêmico, esclerose
sistêmica e esclerose múltipla. As entidades descritas anteriormente foram
escolhidas para o início do protocolo cooperativo após amplos debates em
encontros ocorridos em Ribeirão Preto e São Francisco, EUA.
Rev.bras.hematol.hemoter., 2002, 24(1): 9-13

Palavras-chaves: Doenças auto-imunes, transplante de células


progenitoras, tratamento

Introdução Atualmente, estão se iniciando, na Europa e


nos EUA, protocolos clínicos prospectivos
A aplicação do transplante de células tronco randomizados (de fase III) comparando o TCTH
hematopoéticas (TCTH) no tratamento de com a melhor terapia convencional disponível.
doenças auto-imunes (DAI) graves e refratárias A grande maioria desses transplantes emprega
possui sólidas bases experimentais e clínicas (1- CTH periféricas autólogas mobilizadas da
3). Desde a década de 70, o sucesso desta medula óssea e purificadas em colunas de
abordagem terapêutica foi amplamente seleção (positiva ou negativa) contendo
demonstrado em modelos animais de DAI e em anticorpos monoclonais contra subpopulações
pacientes portadores dessas doenças que foram celulares. As DAI mais frequentemente tratadas
transplantados para hemopatias concomitantes. com TCTH são a esclerose múltipla (EM), a
O primeiro transplante isolado para uma DAI esclerose sistêmica (ES), o lúpus eritematoso
(na síndrome de CREST, uma variante da sistêmico (LES), a artrite reumatóide (AR), as
esclerose sistêmica) foi relatado por Tamm e citopenias auto-imunes e as vasculites sistêmicas,
colaboradores do grupo da Basiléia, Suíça, em mas têm sido criados protocolos para várias
1996 e, desde então, centenas de pacientes outras doenças, incluindo a doença de Crohn,
foram transplantados, em estudos-piloto de fase os pênfigos e o diabetes melito.
I/II, com resultados bastante animadores. Apesar do grande entusiasmo existente

Coordenador da Unidade de Transplante de Medula Óssea do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de
Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (HC-FMRPUSP) e do Protocolo Cooperativo Brasileiro de Transplante de
Células Tronco Hematopoéticas em Doenças Auto-imunes

Correspondência para: Júlio Cesar Voltarelli


Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – Campus USP
Unidade de TMO - 5º andar
Ribeirão Preto,SP. CEP: 14048-900. E-mail: jcvoltar@fmrp.usp.br

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atualmente por esta modalidade terapêutica, evolução (6) e outro, portador de esclerose
várias de suas propriedades, além da eficiência sistêmica, transplantado na PUC-RGS, evoluindo
clínica a longo prazo, precisam ser determinadas 1 ano após, para óbito por infecção (von
em estudos controlados e randomizados, que Muhlen, comunicação pessoal).
só agora começam a ser desenvolvidos:
iniciando pelo papel das CTH infundidas e da
imunoablação, a determinação do melhor tipo Os protocolos brasileiros
de transplante (auto, alo ou mini-alo), a
necessidade de depleção de células T e B Em outubro de 2000, organizamos um
contaminantes do enxerto, os melhores simpósio internacional em Ribeirão Preto para
esquemas de mobilização e de discutirmos, em um ambiente informal e
condicionamento, entre outros aspectos, bastante crítico, a implantação de um protocolo
demandarão longos anos de estudos clínicos e cooperativo nacional de HSCT em DAI.
laboratoriais. Temos todas as condições, em Compareceram ao simpósio representantes dos
nosso país, de participar deste esforço que está principais grupos de TMO do Brasil, ao lado de
mobilizando a comunidade científica reumatologistas, nefrologistas e neurologistas de
internacional. vários centros brasileiros e quatro especialistas
Entretanto, a organização de um programa internacionais com grande experiência neste
de TCTH para DAI no Brasil, presumivelmente, tipo de transplantes - Richard Burt de Chicago,
poderá esbarrar em várias dificuldades típicas William Burns de Milwaukee, Dhaval Patel, de
do nosso desenvolvimento sócio-econômico Durham e Renate Arnold, de Berlim - além de
heterogêneo: financiamento insuficiente pelos um especialista em seleção de CTH por
sistemas público e securitário de saúde, citometria de fluxo, Dennis Sasaki de San Diego.
competição por espaço com os transplantes Propusemos, no evento, o início de um
tradicionais, falta de recursos rotineiros em protocolo randomizado de fase III, tratando
países desenvolvidos (como as colunas para pacientes portadores de LES refratários à terapia
seleção de CTH) e o baixo nível cultural e convencional com alta dose de ciclofosfamida
econômico dos pacientes. Por outro lado, além (200 mg/kg) alocando-os aleatoriamente para
dessas dificuldades não serem insuperáveis, elas receber ou não suporte de CTH autólogas.
são contrabalançadas por características Este protocolo objetivava abordar
peculiares que tornam esses transplantes cientificamente o efeito das CTH, em adição à
altamente vantajosos de serem realizados em imunoablação, no tratamento agressivo das DAÍ.
nosso país: nossa grande experiência com o A maioria dos participantes do encontro
transplante de DAIs hematológicas, como a desaconselhou esta abordagem e sugeriu a
anemia aplástica (5), maior gravidade das DAIs adoção de protocolos-piloto mais
em populações de nível mais baixo, como a conservadores, para se ganhar experiência na
nossa, cobertura universal de tratamentos área, em estudos de fase I/II. Foram
complexos para a população de baixa renda e selecionadas, assim, três doenças, o LES, a ES e
grande disponibilidade de doadores familiares EM para o início do programa, com mesmo
HLA-idênticos nas famílias brasileiras (no caso regime de mobilização de CTH, mas com
de se planejarem protolocos de transplantes indicações e regimes de condicionamento
alogênicos subablativos, por exemplo). específicos para cada uma delas. Para substituir
Previamente à organização dos protocolos a depleção in vitro de células T nas colunas de
brasileiros de TCTH para DAI, temos seleção de CTH, foi decidido fazer depleção in
conhecimento de dois pacientes portadores de vivo com globulina anti-timocitária (ATG),
DAI isolada, transplantados no Brasil: um disponível comercialmente, ao invés das colunas
portador de crioaglutinina produzindo vasculite de seleção. Os membros dos grupos de TMO
cutânea e anemia hemolítica, transplantado no interessados no programa se reuniram pela
Hospital Albert Einstein-SP em 1996, com boa segunda vez durante encontro da Sociedade

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Americana de Hematologia (ASH), em São a LES, refratária a sete pulsos mensais de


Francisco – EUA, em dezembro de 2000, onde ciclofosfamida.
aspectos adicionais do protocolo, como o Após várias complicações da mobilização
esquema de administração de ATG, foram e do condicionamento, que incluíram quadros
discutidos e acordados. infecciosos, insuficiência renal pós-ATG e cistite
Subsequentemente, protocolos detalhados hemorrágica, o paciente teve alta no D+32 e,
para cada uma das doenças escolhidas foram dois meses após o transplante, obteve uma
desenvolvidos com o auxílio substancial dos significativa melhora da doença renal (redução
colegas Paulo Lousada Jr., imunologista clínico da proteinúria diária de 12 g para 0,8 g e
do HCFMRP, que contribuiu para o protoloco aumento da albumina sérica de 1,5 para 4,0 g/
de LES, Nelson Hamerschlak e Andreza Ribeiro, dl), que se mantém após 6 meses sem
hemato-oncologistas e Charles Tilbery, imunossupressão. Um outro paciente, de 12
neurologista, do Hospital Albert Einstein-SP, que anos de idade, portador de uma síndrome de
contribuíram na EM e Luís Eduardo de Andrade, superposição (LES + ES) foi mobilizado e faleceu
da Unifesp e João Francisco Marques Neto, da por ativação de vasculite.
Unicamp, reumatologistas que colaboraram na O desafio atual do programa é promover
ES (vide tabela em anexo e ref. 7). um entrosamento mais eficiente entre os grupos
Vários grupos de TMO submeteram, então, de reumatologia/nefrologia/neurologia com os
esses protocolos a suas comissões institucionais de TMO e iniciar, efetivamente, os transplantes
de ética em pesquisa, tendo sido realizado o nos vários centros interessados, entre os quais
primeiro transplante do programa em junho/ se incluem os hospitais universitários da UFRJ-
2001, no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, Rio de Janeiro, da UNIFESP-São Paulo, da UFMG-
em uma paciente portadora de esclerose Belo Horizonte, da UNICAMP-Campinas, da
múltipla, que teve alta no D+14 sem UFRGS e da PUC-Porto Alegre e da FAMERP-
complicações e encontra-se atualmente em São José do Rio Preto. Para isto, é necessário
fisioterapia, melhorando gradativamente de seus superar, além dos problemas peculiares a nossa
problemas neurológicos (fraqueza muscular e realidade, apontados acima, barreiras logísticas,
disfunção esfinctérica). Em setembro, como a dificuldade de entrosamento entre as
transplantamos no HCFMRP um paciente de 26 equipes de TMO e as dos especialistas pela
anos, portador de síndrome nefrótica secundária assistência aos casos de DAI e a sua resistência

Protocolos-piloto de TCTH autólogo não-manipulado para DAI no Brasil


Doença Inclusão* Mobilização Condicionamento Observações
2
LES Nefrite, vasculite CY 2 g/m + CY 200 mg/kg + Baseado na experiência
sistêmica, citopenias, G-CSF ATG 90 mg/kg européia e americana
sindr. anti-fosfolípide (1,2,3,8)

ES Doença pulmonar Idem CY 120 mg/kg + Condicionamento


progressiva ATG 90 mg/kg/d+ inédito p/ ES, mas
FLU 120 mg/kg usado em mini-alo
e em EM (9, 10)

EM Formas Idem BEAM + ATG Baseado no consenso


progressivas europeu (11)

*Apenas pacientes que falharam à melhor terapia convencional disponível


LES: lúpus eritematoso sistêmico, ES: esclerose sistêmica, EM: esclerose múltipla, AR: artrite reumatóide, CY: ciclofosfamida,
ATG: globulina anti-timocitária, G-CSF: fator estimulador de colônias granulocitárias, FLU: fludarabina, BEAM: BCNU,
etoposído, aracytin e melfalan
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ao encaminhamento de pacientes para particular conditioning for systemic lupus


transplante. erythematosus, systemic sclerosis and multiple
Essas barreiras serão, certamente, superadas sclerosis. The formerly described entities were
quando os primeiros transplantes forem chosen for the beginning of a cooperative protocol
realizados e seus resultados divulgados, tanto na after wide-ranging debates which took place both
comunidade médica como na sociedade. Nossa in Ribeirão Preto and San Francisco, USA.
instituição, por exemplo, já está mobilizada para Rev.bras.hematol.hemoter., 2002, 24(1): 9-13
criar uma Unidade de isolamento especificamente
destinada aos transplantes em DAI, separada dos Keywords: Autoimmune diseases, hematopoietic
onco-hematológicos, e temos recebido, a stem cell transplantation, treatment
exemplo de outras instituições nacionais, um
grande número de consultas de pacientes
interessados no procedimento. Apesar da maioria Referências Bibliográficas
dessas consultas não resultar em indicações
concretas para o transplante, elas ilustram, nesta 1. Marmont AM. New horizons in the treatment
fase inicial de implantação do programa, o papel of severe autoimmune diseases:
importante dos próprios pacientes, immunoablation and stem cell
principalmente aqueles insatisfatoriamente transplantation. Ann Rev Med. 2000, 51:
tratados pelos métodos convencionais, em 115-134.
vencer a hesitação dos especialistas em 2. Tyndall A, Passweg J, Gratwohl A.
considerar alternativas inovadoras de Hematopoietic stem cell transplantation in
tratamento de suas doenças. the treatment of severe autoimmune diseases.
Temos a convicção de que os TCHT para 2000. Ann Rheum Dis 2001. 60: 702-707.
DAI vão propiciar, em nosso meio, 3. Burt RK, Slavin S, Burns WH, Marmont AM.
oportunidades valiosas de investigação clínica Induction of tolerance in autoimmune
de vanguarda, beneficiando significativamente diseases by hematopoietic stem cell
um grupo importante de pacientes e transplantation: Getting closer to a cure?
expandindo sobremaneira a aplicação dos Blood. 2002, 99:768-784.
transplantes de stem cells no país. Para isto, 4. Tamm M, Gratwohl A, Tichelli A,
contamos com o indispensável apoio dos Perruchoud AP, Tyndall A. Autologous
colegas transplantadores e dos especialistas em hematopoietic stem cell transplantation in a
DAI, em suas várias áreas de atuação. patient with severe pulmonary hypertension
complicating connective tissue disease. Ann
Hematopoietic stem cell transplantation for Rheum Dis 1996, 55: 779-780.
autoimmune diseases in Brazil 5. Pasquini R. Transplante de medula óssea em
anemias aplásticas. Medicina-Ribeirão
Júlio C. Voltarelli Preto. 2000, 33: 219-231.
6. Ferreira E, Ribeiro A, Bacal N, Takatu T,
Abstract Rosenblit J, Montezuma MP, Pasternak J,
Kufner JM, Rosenfeld LG, Sterling L,
Hematopoietic Stem Cell Transplantation presents Hamerschlak M. Transplante de células
a solid basis to be indicated for the treatment of tronco periféricas autólogas no
Autoimmune diseases. In this work data related to tratamento de doença autoimune:
the procedure and the sequence of events which remissão completa de anemia hemolítica
have contributed to the implantation of a Brazilian por aglutinina a frio e concomitante
protocol are discussed. Included is a discussion of v a s c u l i t e . Bol Soc Bras Hematol
the autogenic procedure using uniform Hemoter. 1996, 18 (supl): 191-0.
mobilization regimens with Cyclophosphamide 2g/ 7. Voltarelli JC e Stracieri AB. Aspectos
m2 plus granulocyte-colony stimulation factor and imunológicos dos transplantes de células-

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tronco hematopoéticas. Medicina-Ribeirão immunotherapy in advanced Hodgkin’s


Preto. 2000. 33 :443-462. disease. Bone Marrow Transplant. 2000.
8. Traynor AE, Schroeder J, Rosa RM, Cheng 26: 615-620.
D, Stefka J, Mujais S, Baker S, Burt RK. 11. Comi G, Kappos L, Clanet M et al.
Treatment of severe systemic lupus Guidelines for autologous and marrow
erythematosus with high-dose therapy and stem cell transplantation in multiple
hematopoietic stem cell transplantation: a sclerosis: a consensus report written on
phase I study. Lancet. 2000. 356: 701. behalf of European Group for Blood and
9. Slavin S. Treatment of intractable multiple MarrowTransplantation and the
sclerosis by re-induction of self tolerance in European Charcot Foundation. J Neurol.
conjunction with autologous stem cell 2000. 247: 376-382.
therapy. Protocol proposal. 1997.
10. Anderlini P, Giralt S, Andersson B et al.
Allogeneic stem cell transplantation with
fludarabine-based, less intensive Recebido: 15/12/01
conditioning regimens as adoptive Aceito: 11/02/02

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