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A adaga e a baleia: aspectos do relacionamento entre Coreia do Sul e Japão

Wellington Dantas de Amorim1


Leticia Cordeiro Simões de Moraes Lima2

Resumo: O relacionamento entre Coreia do Sul e Japão é marcado pelo passado de


animosidade e um presente de dúvidas, ampliadas por estarem inseridos em um
panorama geopolítico tornado ainda mais complexo pela presença de outras potências
(Estados Unidos, China e Rússia) e uma ameaça instabilizadora permanente (Coreia do
Norte). Este capítulo busca sintetizar tanto a herança histórica quanto as perspectivas
para o relacionamento bilateral sul-coreano-japonês.
Palavras-Chave: Coreia do Sul. Japão. Relacionamento Bilateral.

1. Introdução

Este capítulo se propõe a uma breve análise do relacionamento bilateral entre


Coreia do Sul e Japão. Para os que estranharem o título, ele menciona duas
características básicas da imagem que cada país tem sobre o outro. A Coreia do Sul se
sente um “camarão entre baleias”, por se considerar um peão na evolução da rivalidade
entre China e Japão (que representariam as baleias). Por sua vez, enfatizando o aspecto
geopolítico, a conformação geográfica da Península Coreana lembra uma adaga que
poderia ser cravada no corpo do arquipélago japonês. Ao se escolher tal título, portanto,
os autores desejam enfatizar a profunda desconfiança mútua entre os dois países, talvez
podendo ser minorada apenas com a existência de aliados comuns mais
poderosos,forçando-os a um entendimento– como os Estados Unidos (EUA) –,ou
ameaças também comuns – como a Coreia do Norte, o exemplo mais adequado, ao
menos no momento em que este texto está sendo escrito.
De fato, a percepção mútua entre os dois países foi fundamental para o
desenvolvimento histórico de ambos. Os caucasianos do Japão foram pouco a pouco
relegados ao norte do arquipélago, por conta da chegada das etnias originárias do leste
do continente asiático, vindos exatamente via Península Coreana. Tal também foi a

1
Doutor em Ciência Política (UFF), professor do Unilasalle-RJ. Pesquisador do INEST (UFF).
2
Mestre em Relações Internacionais (UERJ), professora do Unilasalle-RJ. Doutoranda do Programa de
Pós-Gradução em Relações Internacionais (UERJ) e Pesquisadora do INCT/PPED.
trajetória do fluxo cultural e religioso que levou o budismo e os ideogramas para a
sociedade japonesa. Ao mesmo tempo, a precocidade relativa de unificação política (na
China e na Coreia, esta sob o Império Silla) levou os soberanos japoneses a temerem
serem suplantados e até mesmo invadidos. Para conter tal tendência, propuseram imitar
e adaptar o modelo de governança daquelas duas nações. Conforme Pyle (2007), já no
século VII D.C:

Dolorosamente ciente de que a desunião interna do Japão o


tornava vulnerável, o Imperador Tenmu buscou unificar e
fortalecer o Estado por meio da adoção de modelos
institucionais chineses centralizados.(PYLE, 2007, p. 36,
tradução nossa)3.

O presente capítulo se estrutura da seguinte forma: uma abordagem inicial sobre


o histórico japonês, muito breve, mas de modo a fornecer uma base conceitual e factual
mínima; uma descrição análoga sobre a Coreia do Sul, seguida de um destaque aos
pontos principais do relacionamento entre os dois países até o final da Guerra Fria.
Posteriormente, maior espaço é conferido ao pós-Guerra Fria, com destaque para a
(re)ascensão da China como potência econômica e as respectivas consequências sobre o
Japão, Coreia do Sul e seu relacionamento bilateral. Por fim, são traçadas perspectivas
futuras.

2. Breve Histórico sobre o Japão

A primeira forma de ocupação de populações no Japão foi por meio de clãs,a


partir do momento em que passou a ser possível garantir uma fonte segura de alimentos.
Assim, começaram a surgir pequenas comunidadesrelacionando-se de forma amistosa
ou rival com outros clãs,que com o passar do tempoformaram reinos. O Reino mais
poderoso que figura os primeiros registros, entre os séculos II e IV D.C.,é o Reino de
Yamato.
Depois da anexação de reinos menores, o Reino de Yamato domina Honshu, a
ilha principal do arquipélago, que tem a maior planície fértil daquela região, e com isso
estabelece certa preponderância política frente à outras organizações. Desta forma dá-se
início a história japonesa, de fato. Registros arqueológicos do início da história japonesa

3
No original: “Painfully aware that Japan‟s internal disunity made it vulnerable, Emperor Tenmu sought
to unify and strengthen the state through adoption of Chinese central institutional models” (tradução
livre).
apontam uma aproximação muito grande com a península coreana, e mais tarde com a
China. Pela proximidade, o intercâmbio cultural, comercial e técnico entre os reinos do
Japão, da Coreia (tecelagem, cerâmica) e da China (escrita) crescem (SAKURAI, 2013,
p. 62-63).
A Era Medieval no Japão se inicia a partir do século VI e se caracteriza pelo
aumento de trocas do Império Yamato com o restante da Ásia, mudando de maneira
significativa a organização cultural e política do arquipélago, a começar pela chegada
do budismo (do tipo chinês). As influências da cultura chinesa, admirada pelos
aristocratas, passam a ser bem mais diretas sobre o Japão, através do budismo, que aos
poucos passa a ganhar forma própria, assim como outras características da cultura e
forma de governo (mais centralizada) chinesas, absorvidas pelos japoneses (SAKURAI,
2013, p.69).
A ascensão dos Xoguns no Japão se dá depois de um longo período de
estabelecimento de propriedades privadas em contraponto às propriedades públicas,
que, segundo a última reforma do Império Yamato, deveriam ser a via de regra. Com o
tempo, há um enfraquecimento do controle central das províncias, abrindo espaço para o
surgimento de poderes locais e famílias guerreiras. Estas¸com destaque para os
Minamoto e os Taira, eram formadas por senhores de terras cada vez mais poderosos, e
é nesse contexto que surgem os samurais, por volta do século X.
Foi com a ascensão da família Minamoto, até hoje tradicional no Japão, que o
país entrou na era dos senhores feudais ou do governo dos generais, os Xoguns. Este
período, que se estende de 1185 até 1867, é marcado pelo enfraquecimento do poder
imperial, sem a extinção da figura do imperador, e por uma classe aristocrática urbana
cada vez mais decadente. A figura do Xogun, por quase 700 anos, exerceu o poder de
fato, mas era obediente ao imperador que detinha a chefia suprema simbólica. Ao longo
de quase 8 séculos, a figura do Xogunfoi conquistada por diferentes famílias, em um
período de fragmentação política, e de numerosas guerras civis, até o período de
unificação do Japão (SAKURAI, 2013, p.82-98).
A Unificação japonesa se inicia em 1560, em meio a um território desolado por
quase 2 séculos de conflito interno. A tarefa de unificação é compartilhada por três
samurais (Ida Nobunaga, ToyotomiHideyoshi e IeyasuTokugawa), que lideraram
movimentos tanto civis quanto militares até 1603, desde o fortalecimento do poder
central até a busca por alargamento de fronteiras. Com a unificação do país, inicia-se o
período do mais longo Xogunato nas mãos de uma única família e também o último: o
Xogunato Tokugawa, quando se fortalece o período isolacionista do Japão.
Em 1854 os portos são forçadamente abertos por navios norte-americanos
comandados pelo Comodoro Perry, o que divide opiniões internas, mas que acaba por
trazer mudanças fundamentais na sociedade japonesa, incluindo a assimilação de lições
ocidentais de economia, política, novas tecnologias, etc.O fim da Era Tokugawa em
1867, devido a uma união de interesses contra a velha ordem sem condições de
expansão do comércio e ascensão social individual, forçou o último Xogun a abrir mão
do poder para o imperador. Deu-se início a Era Meiji (1868-1912), ou modernização do
Estado, que levou a Revolução Industrial japonesa, que reuniu reformas internas para
adaptar o Japão ao circuito capitalista (SAKURAI, 2013,p. 102-132).
Foi na Revolução Meiji que foram criadas as Zaibatsu,conglomerados verticais
controlados por algumas famílias, formados por uma holding, um banco e várias
empresas subsidiárias. Neste mesmo período há também o crescimento acelerado do
Japão no quesito empresas, cidades, urbanização, participação internacional e Exército.
É também na passagem do século XIX para o século XX que as primeiras pretensões do
Japão Imperialficam claras, levando aos movimentos de expansão em direção a China
(1894-1895), de conflito contra a Rússia (1904-1905) – que também buscava expansão
para a Coréia e Manchúria, e anexação da Coreia em 1910. Dois anos depois do fim da
Revolução Meiji, o Japão se alia à Grã Bretanha e à Tríplice Entente, colhendo os frutos
da vitória na Primeira Guerra Mundial. É elevado à condição de potência militar.
Em 1931, o Japão Imperial invade a Manchúria e em 1932 estabelece um Estado
Fantoche chamado Manchuko, subserviente ao Estado japonês. Em 1937, inicia-se a
Segunda Guerra Sino-Japonesa, que tem fim apenas em 1945 com a rendição do
Japão,na qual tropas japonesas invadem a costa leste chinesa e avançam em direção ao
interior. A vantagem era japonesa e, junto com os avanços das tropas em 1941, o Japão
é catapultado para a Segunda Guerra ao atacar as bases norte-americanas de Pearl
Harbor. Neste mesmo ano, começa a pôr em prática a política da Esfera de
Coproperidade da Grande Ásia Oriental4, através da invasão da Hong Kong em 1941,
Filipinas, Malásia e Cingapura em 1942, recebendo a rendição de Birmânia e Indonésia

4
Política do Japão Imperial para combater influência ocidental a partir da união das nações asiáticas. A
falta de adesão dos países faz com que Japão imponha sua política através da anexação de territórios. A
implantação da Esfera se dá em 3 partes (interno, meio, extremo): Interno: Japão, Manchúria norte da
China. Meio: Siberia Oriental, todo restante da China, Indochina, Sudeste Asiático. Extremo: Austrália,
índia e Ilhas do Pacífico (SAKURAI, 2013, p. 188).
no mesmo ano. Mais tarde ameaçam invadir Índia e Austrália, mas acabam enfrentando
contraofensiva dos EUA (SAKURAI, 2013,p.190).
Com o final da Segunda Guerra Mundial, que para o Japão veio com a rendição
do Imperador depois das bombas de Hiroshima e Nagasaki, e a derrota do Eixo, do qual
os japoneses faziam parte, todos os territórios anexados pelo país são devolvidos,
incluindo a península coreana. Também, sofre a ocupação americana, que exige uma
nova constituição incluindo um artigo pacífico5, que retirava do Japão a possibilidade de
ter qualquer tipo de exército. Vivendo sob o guarda-chuva nuclear dos EUA, voltando
seus investimentos para educação, industrialização, substituição de importações
voltados para exportação, aliados ao desenvolvimento de tecnologia e ao preenchimento
do vazio deixado pelas Zaibatsu por um modelo de Keiretsu, conjunto de empresas
interligadas (não mais donas de bancos, agora nas mãos do Estado) formadas
porstakeholders eshareholders, o Japão passou a apresentar um rápido
desenvolvimento: o milagre japonês.
Entre as décadas de 1950 e 1980 o Japão vive o seu período do milagre
estruturado através de um esforço nacional do povo, das elites e do governo, com uma
clara orientação governamental para enfatizar as empresas privadas das áreas escolhidas
pelo governo. Ainda na década de 1980, o Japão é centro financeiro mais importante da
Ásia, depois que o dólar é atrelado ao iene, e este se consolida como a segunda moeda
mais importante do mundo. A atração de diversas empresas e bancos internacionais para
Tóquio escalona os preços das propriedades do Japão, e entre 1986 e 1989 o Japão vive
a crise da bolha imobiliária, que afeta negativamente toda sua economia, que só dá
sinais de recuperação em meados da década de 1990 mediante medidas governamentais
e recuperação das economias asiáticas.
Atualmente, Japão é um país desenvolvido, mas que ainda enfrenta problemas
decorrentes do seu status de Estado não-normal, uma deflação crescente, o
envelhecimento da população e o relacionamento com os principais atores da região e
que atuam na região. A (re)ascensão6 da China e seu pesado investimento em defesa, a
posição vacilante dos EUA na região, principalmente depois da eleição de Donald
Trump, as constantes ameaças da Coreia do Norte quanto ao lançamento de mísseis, a
aproximação ainda complicada com a Coreia do Sul – como veremos adiante –, os

5
Artigo 9º da atual constituição japonesa de 1946 (JAPÃO, 1946).
6
Utilizou-se o termo (re)ascensão pois, desde o ano 1 D.C., apenas no período entre o final do século
XIX e o final do século XX a China não ocupou o posto de maior ou segundo maior PIB do planeta. Ver
Maddison (2006).
percalços que disputas no Mar do Leste e no Mar do Sul da China podem acarretar e, de
fato, já acarretam para um país que ainda debate a possibilidade de aumentar seu
poderio para além das Forças de Autodefesa, ajudam a traçar o panorama
contemporâneo de um país que ainda não conseguiu totalmente fazer as pazes com o seu
passado.

3. Breve Histórico sobre a Coreia do Sul

A região da Península Coreana sofreu severa influência da China,


principalmente depois que esta se unificou politicamente7. De fato, os primeiros reinos
coreanos acabaram sofrendo seguidas pressões, até o governo de WimanJoseon ser
derrotado pela Dinastia Han (chinesa) em 108 D.C., com o estabelecimento das
chamadas Quatro Comandadas, subdivisões administradas de maneira centralizada.
Posteriormente, os coreanos começaram a se reagrupar e a unificação veio com o Reino
de Silla, em 676 D.C., e o de Koguryo, em 918 D.C. A Dinastia mais duradoura foi a de
Choson, de 1392 D.C.a 1910 D.C. No entanto, é necessário ressaltar que as dinastias
citadas passaram pelo processo de “Estado Tributário”, pelo qual Estados menores
reconheciam a superioridade hierárquica do Imperador Chinês, inclusive com a adoção
do respectivo calendário. Em troca, os Estados tributários tinham acesso comercial à
China e passam a usufruir de relativa autonomia. Portanto, vale destacar a posição
evidente da Península Coreana na configuração geopolítica chinesa.
Essa posição subordinada fica explicitada nas chamadas invasões mongóis, em
que estes, após assumirem o “Mandato Divino” do Imperador Chinês, instaurando a
Dinastia Yuan, resolvem invadir o Japão, justamente por este não aceitar a condição de
Estado Tributário. Os coreanos participaram de ambas as tentativas, como
destacamentos auxiliares às forças mongóis.
Tal subordinação (e a proximidade geográfica com a China) proporcionou a
Guerra com os japoneses, em que estes invadiram a Península e a deixaram, derrotados,
no final do século XVI.
Mesmo passando por tais eventos, a Dinastia Choson se manteve, mesmo no
século XIX, período em que tanto a China quanto Japão foram assediados pelas

7
Para uma visão histórica da Coreia, ver Tudor (2012) e Cumings (2005).
potências ocidentais para se abrirem ao comércio internacional, por meio de tratados
iníquos. Tal resistência proporcionou à Coreia alcunha de “Reino Ermitão”.
No entanto, mesmo a resistência do Reino Ermitão foi insuficiente para resistir
ao duelo geopolítico entre China e Japão. Após a Revolução Meiji, e combinado com o
crescente enfraquecimento da Dinastia Qing na China, o Japão resolve ampliar sua
esfera de influência, e mira justamente a Península Coreana. Depois de vários
entreveros, inclusive com golpes e contragolpes palacianos na Coreia entre grupos
sinófilos e nipófilos, além da derrota chinesa na guerra sino-japonesa em 1895, a Coreia
fica definitivamente na área da expansão japonesa, até ser transformada formalmente
em colônia do Império Japonês, em 1910.
Com o final da Segunda Guerra Mundial, o paralelo 38 foi escolhido como a
linha divisória para a permanência de forças dos EUA, acima do qual ficariam as tropas
soviéticas, ambas responsáveis pela rendição das forças japonesas8. Tal divisão, tornada
fixa pelos desdobramentos da Guerra Fria, levaram à Guerra da Coreia, entre 1950 e
1953, e a desestabilização potencial constante na Península, além de dividir a nação em
dois países com estilos de desenvolvimento e governança completamente antagônicos.
Enquanto a Coreia do Norte buscou um caminho de autarcização, minorado apenas pelo
intercâmbio eventual com China e URSS, a Coreia do Sul acentuou a opção pelo
capitalismo.
No entanto, vale ressaltar que a estabilização política na Coreia do Sul somente
ocorreu na década de 1960, com a ascensão do General Park Chung-Hee, por meio de
um golpe de Estado. Instituindo um governo autoritário, com grande repressão política,
Park (ex-estudante da Academia Militar de Tóquio, à época em que a Coreia era colônia
japonesa) replicou o modelo de desenvolvimento e governança econômica japonês, já
então um sucesso em termos de crescimento e recuperação do país, devastado na
Segunda Guerra. Com o fortalecimento dos chaebol (grandes conglomerados familiares,
semelhantes aos zaibatsu japoneses) e uma política industrial ativa, a Coreia do Sul se
fortaleceu economicamente. Mesmo o assassinato de Park, em 1979, não desviou o país
das principais tendências já estabelecidas.9
No final da década de 80, a redemocratização modernizou ainda mais a Coreia
do Sul, já então em pleno desenvolvimento econômico. Tentativas de reconciliação com

8
Ver McDougall (1993), especialmente p. 678-683.
9
Para um estudo sobre a industrialização sul-coreana, ver Amsden(1992).
a Coreia do Norte foram várias, inclusive com a chamada “sunshinepolicy”10;e mesmo
com algumas iniciativas pontuais (por exemplo, o estabelecimento de zonas de
processamento conjuntas, na fronteira entre os dois países), a tensão em termos de
segurança continua um dos traços marcantes no relacionamento bilateral. A instalação
do sistema THAAD11, para uma possível proteção contra mísseis da Coreia do Norte,
joga mais instabilidade na área, por constituir uma ameaça indireta à capacidade de
dissuasão chinesa e russa, conforme será analisado mais adiante.

4. Histórico do relacionamento entre os dois países até final da Guerra Fria

Conforme visto nas seções anteriores, a proximidade geográfica entre a


Península Coreana e o Japão tornou o relacionamento entre os dois algo inescapável. As
seguidas migrações de coreanos e o fluxo econômico-cultural (importação da cultura do
arroz, budismo, etc.) tornam a relação entre as duas regiões algo indelével em termos
históricos, e possivelmente mesmo na composição genética da atual população japonesa
(DIAMOND, 2004).
Ao mesmo tempo, relatos de sólido apoio japonês a um dos reinos coreanos,
antes da unificação efetuada pelo reino de Silla, demonstram a estreita convivência
política já entre os séculos IV e VII A.C.12
Em seção anterior, já se mencionou o quanto a unificação política da Coreia
levou o Japão a buscar empreender a sua própria. Para os japoneses, a possibilidade de
uma aliança mais estreita entre Coreia e China (já que aquela era um Estado tributário
desta) e a posição geográfica da Península constituía uma ameaça mais do que
previsível.
As chamadas “invasões mongóis”, em 1274 e 1281, comprovaram que tais
temores não eram infundados. Kublai Khan13, mongol, conseguiu assumir oficialmente
o Mandato Divino (segundo a tradição chinesa, o imperador tem a incumbência divina
de garantir a harmonia sobre esta dimensão) e instituir uma nova dinastia, a Yuan. Um

10
Lançada em 1998, foi uma iniciativa sul-coreana para aumentar as relações políticas e a aproximação
com o Norte. Contudo, em 2010, depois de dois testes nucleares norte-coreanos (2006 e 2009), a Coreia
do Sul pôs um fim na política de reaproximação e, desde então, o relacionamento entre os dois Estados
continua tenso (ABT, 2016).
11
Terminal High Altitude AreaDefense – Sistema de defesa antimíssil desenvolvido pelos EUA.
12
No entanto, a extensão desse contato e a possibilidade de que uma nobre coreana ligada ao reino
perdedor tenha acabado como mãe de um dos imperadores japoneses são vistas como controversas por
muitos.
13
Kublai Khan foi neto de Genghis Khan e fundador da dinastia Yuan.
dos primeiros atos de Kublai Khan foi enviar uma carta ao Imperador japonês, pedindo
que ele o reconhecesse como portador do Mandato Divino e assim se incluísse no rol
das nações que já lhe eram tributárias, como era o caso da Coreia. O imperador japonês
recusou a “oferta”. O rei coreano da Dinastia Goryeo, por sua vez, incentivou
KublaiKhan, por considerar que o Japão merecia uma lição (até mesmo por vários
samurais e piratas japoneses periodicamente atacarem as costas coreana e chinesa).
Nas duas tentativas de invasão, fatores climáticos (tufões que contribuíram para
desbaratar as frotas invasoras, alcunhados de “vento divino‟, kamikaze, em japonês) e a
união inédita dos vários clãs japoneses permitiram a derrota dos chineses e coreanos.
Posteriormente, já no final do século XVI, ToyotomiHideyoshi havia conseguido
unificar politicamente o Japão. Sabendo da então fragilidade da Dinastia Ming (de
origem chinesa, sucedeu a dinastia Yuan; em meados do século XVII, por sua vez, foi
sucedida pela Dinastia Qing, de origem manchu) e procurando novas fontes de
matérias-primas, além de utilizar todo o potencial bélico adquirido com a recém-
unificação, Hideyoshi resolve atacar a China passando pela Península Coreana. Esta foi
ocupada, mas tropas Ming a recuperaram. Posteriormente, novo ataque japonês tornou a
guerra uma situação de impasse, e logo depois ocorre a morte de Hideyoshi. 14 As
lideranças político-militares japonesas resolvem retornar ao Japão e proibir qualquer
incursão de japoneses ao exterior.
O conflito deixou marcas profundas no relacionamento entre Coreia e Japão, da
mesma forma que os ataques mongóis de trezentos anos antes. Com o fechamento do
Japão durante o Xogunato Tokugawa, até meados do século XIX, e a tendência de a
Coreia se fixar na estratégia do “Estado Ermitão”, o relacionamento diminuiu de
intensidade. No entanto, vale ressaltar que um dos únicos portos japoneses autorizados a
lidar com mercadores estrangeiros, durante esse período, era o de Tsushima, para
transacionar justamente com os coreanos.
Em meados do século XIX, as potências ocidentais fragilizaram a posição
chinesa, assim como a japonesa; esse processo acelerou a perda de dinamicidade da
Dinastia Qing, mas, no caso japonês, acabou provocando a Revolução Meiji, que
modernizou o país e ampliou a sua esfera de influência. No caso, a Coreia era um alvo
evidente, e no final do século estava decididamente sob os ditames japoneses, que se
ratificaram com a anexação, em 1910.

14
Curiosamente, esse vaivém no rumo da guerra vem a ser uma antevisão do que seria a Guerra da
Coreia, séculos depois.
A ocupação da Coreia pelos japoneses foi muito brutal, em termos de supressão
da cultura coreana e dos movimentos nacionalistas. Em termos econômicos, vários
autores, como Vogel (1993), argumentam que a ocupação foi modernizante e bem-
sucedida15; já Cumings (2005) faz uma síntese diversa, apontando para a brutal
exploração da Coreia como fornecedora de matéria-prima e trabalho compulsório.
De fato, a quantidade de migrantes coreanos para o Japão foi muito significativa,
durante a ocupação. No caso do trabalho compulsório, aumentou principalmente em
1944 e 1945, anos finais da guerra. Além disso, não se pode esquecer o expressivo
número de jovens e mulheres coreanas (além de outras nacionalidades) cooptadas ou
raptadas para a função de servirem de “consolo para os soldados” (daí a alcunha de
comfortwomen), um eufemismo sórdido para prostituição forçada.
Com a derrota na Segunda Guerra, o Japão é forçado a se retirar da Coreia, que
logo depois se veria dividida em dois blocos, a Coreia do Sul e a do Norte. Durante a
Guerra da Coreia, o Japão não enviou soldados, alegando que isto feriria a Constituição
(paradoxalmente, imposta pelos EUA, que o pressionavam para a ajuda militar). A
divisão das duas Coreias se refletiria, inclusive, nos grupos representativos de coreanos
(e descendentes) no Japão: Mindan se refere àqueles alinhados à Coreia do Sul,
Chongryon aos adeptos da Coreia do Norte.
A Guerra Fria, ao identificar tão nitidamente um inimigo comum (além da
implícita pressão dos EUA sobre os principais aliados na Ásia), contribuiu para Japão e
Coreia do Sul estabelecerem relações diplomáticas, em 1965, por meio do Tratado das
Relações Básicas entre Coreia do Sul e Japão. Segundo o acordo, todas as questões
pendentes, relativas ao que já havia transcorrido anteriormente entre Japão e Coreia do
Sul, ficariam solucionadas com as devidas reparações. Mesmo as preocupações do
Japão quanto a reparações individuais foram dissipadas pelo governo sul-coreano, que

15
Vogel(1993) afirma que, apesar de algumas peças-chave para a industrialização já existirem na Coreia
do Sul, outras foram alcançadas com dificuldade e contribuíram para sua modernização. Em seu livro, o
autor aponta que quando o acordo entre Moscou e Washington demarcou o paralelo 38 como a divisão
das duas Coreias, em 1948, boa parte dos avanços das indústrias trazidas pelo Japão na época da anexação
ficaram do lado do Norte. A base industrial sul-coreana diminuiu mais ainda depois da Guerra das
Coreias, e apenas com o fim desta foi possível dedicar-se à sua modernização, desenvolvimento e
industrialização, de fato. Para Vogel (1993), os esforços de modernização só ganham norte quando Park
ChungHee assume o poder no início da década de 1960, através de um golpe de Estado e da repressão da
oposição comunista. Esta 'peça-chave' para a industrialização, a união forçada, se unia a outras, como
recursos humanos motivados e disciplinados, eficiência na agricultura e o conhecimento do modelo e da
estrutura japonesa (VOGEL, 1993, p.43-65).
garantiu que repassaria o total enviado posteriormente para os indivíduos (SOUTH
KOREA…, 2005)16.
Após o Tratado, e esmaecidos pela força da Guerra Fria, enquanto aplanadora de
problemas históricos subjacentes, diversos temas contenciosos não vieram à superfície.
Por exemplo, apenas na década de 1990 o tema sobre as comfortwomen adquiriu
ressonância internacional. Ressalte-se, no entanto, que a Guerra Fria (e seus
subprodutos, como a Guerra da Coreia e a constante ameaça da Coreia do Norte, em
termos militares e paramilitares, com atentados muitas vezes não assumidos, assim
como a abdução de sul-coreanos e japoneses17) adquiriu, para a Coreia do Sul, um
caráter de perigo e animosidade com a contraparte do bloco soviético muito mais
pronunciado do que, por exemplo, com o que ocorreu com as duas Alemanhas.
Episódios como a derrubada do Jumbo da Korean Airlines por autoridades soviéticas,
em 1983, reforçaram a sensação de insegurança.
No entanto, a aparente falta de contenciosos entre Coreia do Sul e Japão não
conseguiu esconder problemas, como a abdução de um líder oposicionista, Kim Dae-
jung18, do hotel no qual se hospedava em Tóquio, por agentes sul-coreanos, em 1973.
Ao mesmo tempo, uma real cooperação entre os dois países, no campo da segurança,
ainda era vista como impensável. Para a maioria da população sul-coreana, o Japão
ainda não teria pedido perdão pelos seguidos exageros durante a anexação do país, entre
1910 e 1945. Além disso, os detalhes dos acordos diplomáticos de 1965 ainda não
tinham sido divulgados, o que contribuía para acirrar ainda mais os ânimos.
Portanto, o período da Guerra Fria presenciou, no caso do relacionamento sul-
coreano-japonês, a reiteração de um padrão histórico. Ou seja, o relacionamento se
torna menos turbulento, seja pela pressão exercida por uma potência ou potências
externas (no caso, os EUA), ou pelo aumento do perigo proporcionado por um agente
externo (nesse aspecto, com o fator Coreia do Norte).

16
Tal fato somente foi descoberto quando os documentos secretos sul-coreanos foram liberados ao
público, quarenta anos após o tratado.
17
Nas décadas de 1970 e 1980 uma série de incidentes envolvendo sequestros de cidadãos japoneses pela
Coreia do Norte levou tensão na relação entre os dois Estados. Segundo o Ministério das Relações
Exteriores do Japão, 17 vítimas haviam sido identificadasaté o final de 2015. Apenas em setembro de
2002, os norte-coreanos admitiram a ocorrência dos sequestros e pediram desculpas oficiais ao Japão.
Nesse mesmo ano, cinco japoneses raptados voltaram ao solo de seu país, mas a Coreia do Norte ainda
não apresentou explicações aceitáveis sobre o paradeiro dos demais raptados (JAPÃO, 2015).
18
Mais tarde, Kim Dae-jung foi presidente da Coreia do Sul entre 1998 e 2003. Foi em seu governo que o
país lançou a Sunshine Policy.
5. O pós-Guerra Fria, a (re)ascensão da China, o século XXI

O pós-Guerra Fria, no caso de Coreia do Sul e Japão, já seria suficiente para


trazer alterações políticas em uma região com um potencial tão alto de conflagração. No
entanto, no caso dos dois países essas alterações foram ainda maiores, tendo em vista
que esse período coincidiu com a (re)ascensão econômica da China, que foi se
traduzindo em poder político e militar cada vez maiores.
A unificação alemã na Europa levou muitos analistas a considerarem que um
evento análogo ocorreria com as duas Coreias. No caso, como em inúmeros outros, um
eurocentrismo até certo ponto ingênuo (ou seja, que supõe que o que se aplica à Europa
automaticamente se reproduzirá em outras áreas do globo, indistintamente) não levou
em conta as especificidades da região e dos países que a compõem. Apesar de várias
tentativas, os esforços para a unificação continuam infrutíferos, mesmo na época em que
este texto está sendo escrito. De fato, enquanto a unificação alemã não confrontava os
interesses das principais potências envolvidas (EUA, URSS e a então Comunidade
Europeia), o mesmo não ocorria no caso da Coreia do Norte, por diversas razões.
Primeiro, não se tinha ideia (e ainda não se tem) de como a unificação se daria,
devido ao caráter antípoda, em termos políticos e econômicos, de ambas as Coreias. Sob
que predominância o processo ocorreria?Lembra-se que, no caso alemão, isso estava
bem claro. Segundo, o Estado resultante seria potencialmente desestabilizador de uma
região importantíssima do ponto devista geopolítico e econômico; contribuiriam para
isso: grande força militar, reforçada ao longo de décadas pelo dilema de segurança,
possível capacidade nuclear, poderio econômico, etc. Dimensionar e definir qual o papel
da Coreia unificada no equilíbrio de poder regional, dependendo de que alianças
viessem a ser concretizadas, deixa os principais atores estatais na situação de preferirem
adiar a solução de tal dilema.
Logo, à exceção das duas Coreias (e mesmo elas somente aceitariam a
unificação nos próprios termos, à exceção de alguma catástrofe política, climática,
alimentar, etc.), não há um interesse claro no processo de unificação, até o momento,
por parte das demais potências envolvidas.
Curiosamente, o pós-Guerra Fria trouxe um aprofundamento das políticas até
então empreendidas por cada uma das Coreias. Enquanto a Coreia do Norte passou por
uma acentuada autarcização, mantendo apenas com a China laços mais próximos e ao
mesmo tempo desenvolvendo um processo de dissuasão nuclear, a Coreia do Sul
aumentou seu potencial econômico, com internacionalização expressiva de seus
chaebol.
No caso do relacionamento bilateral entre Coreia do Sul e Japão, temas antes
pouco comentados, como o das comfortwomen, voltaram a ocupar um papel de
destaque. Ao mesmo tempo, o ressurgimento do poder chinês levou a um
relacionamento comercial cada vez mais intenso entre China e Coreia do Sul. Nesse
sentido, ambos os países passaram a vocalizar conjuntamente a insatisfação mútua com
as desculpas “consideradas insuficientes” do Japão pelos eventos no século XX
(ocupação da Península Coreana, invasão da China).
Essa posição de insatisfação perante a contrição japonesa se manteve mesmo
após um discurso do primeiro-ministroShinzo Abena ocasião dos 70 anos do fim da
Segunda Guerra Mundial19,considerado pacífico e contrito em relação aos excessos e
brutalidade da expansão bélica japonesa na primeira metade do século XX20. Ainda
assim, boa parte dos vizinhos – incluindo principalmente a Coreia do Sul e a China –
que sofreram invasões ou anexações do Japão durante a primeira metade do século XX,
enfatizaram a falta de desculpas formais do governo japonês(TIEZZI, 2015). O impacto
do discurso foi grande no Leste Asiático, o que nos conduz a levantar a questão de quão
útil não é conferir ao governo japonês um status de insuficiência política recorrente com
seus vizinhos mais próximos.
Em 2005, uma série de documentos sensíveis sobre o fim da Segunda Guerra
Mundial foram liberados pelo governo da Coreia do Sul,em ocasião dos 60 anos do fim
da Guerra. Parte desses documentos, de cerca de 1.200 páginas e elaborados entre 1963
e 1965, indicavam que o governo sul-coreano concordou, depois de ter recebido uma
quantia em torno de US$ 800 milhões de dólares do Japão em forma de doações e
empréstimos, em não mais exigir compensações a nível governamental ou individual
pelos abusos do regime colonial impostos pelo Japão à península coreana de 1910 a
1945(SOUTH KOREA…, 2005).
A retomada de relações amistosas entre a Coreia do Sul e o Japão se deu no ano
de 1965, sob uma série de protestos da população sul-coreana. Parte das vítimas de
guerra ameaçam processar o governo sul-coreano por manter por tanto tempo segredo

19
O discurso completo (JAPANESE PRIME MINISTER..., 2015) pode ser acessado no link:
<http://blogs.wsj.com/japanrealtime/2015/08/14/full-text-japanese-prime-minister-shinzo-abes-world-
war-ii-statement/> Acesso em: 30/03/2017
20
Essa é também a opinião dos autores deste capítulo.
sobre essa decisão, que os afeta diretamente e que exime o Japão de uma série de
acusações feitas, inclusive, pelo próprio governo.
Entretanto, há esforços por parte dos dois países de aumentar as relações
amistosas, principalmente no pós-Guerra Fria. Em 2002, pela primeira vez, o torneio
final da Copa do Mundo21 foi realizado conjuntamente por dois países, justamente Japão
e Coreia do Sul, que se uniram para tentar derrotar o México, que também era
pretendente.Contudo, analistas apontam que politicamente não houve maiores ganhos
para o relacionamento de Japão e Coreia do Sul em realizarem a primeira Copa do
Mundo na Ásia sendo ambos as sedes; 15 anos depois da realização do evento, a análise
que se faz é que se, por um lado, a correalização da Copa não trouxe nenhum grande
avanço político entre os Estados, pelo menos não trouxe nenhuma cisma entre eles
(CHA,2002).
Alguns anos depois da realização conjunta da Copa do Mundo de 2002 e do
convite por parte do Japão e da Coreia do Sul para que a Coreia do Norte também
oferecesse espaço para ser sede dos jogos, negado na época, a Coreia do Norte, dando
continuidade a seu programa de mísseis e de testes nucleares22, lança em 2006 o que foi
tido como seu primeiro míssil de longo alcance e, no mesmo ano, faz sua primeira
detonação nuclear. Segundo os EUA, o teste norte-coreano foi um fracasso, mas ainda
assim alterou as relações entre os Estados vizinhos, principalmente.
O progressivo aprofundamento do programa nuclear norte-coreano, com a saída
do Tratado de Não-Proliferação Nuclear, levou à criação das chamadas Conversações
Hexapartites (Six-PartyTalks), envolvendo as duas Coreias, Japão, China, Rússia e
EUA. A partir de 2009, as conversações foram descontinuadas e, embora de vez em
quando ocorram rumores de uma retomada, a aceleração do programa norte-coreano
(inclusive com o desenvolvimento de mísseis balísticos de cada vez maior alcance) não
aponta para o sucesso da iniciativa.
De 2009 em diante, a Coreia do Norte realizou uma série de novos lançamentos
de mísseis, foguetes e testes nucleares. Tais testes e lançamentos elevaram a tensão
entre Japão, Coreia do Sul, EUA e até mesmoa China. Apesar de o Japão haver se
aproximado da Coreia do Norte e aumentado as negociações sobre o rapto de japoneses
pelo governo norte-coreano nas décadas de 1970 e 1980 – admitido pela Coreia do

21
Segundo a FIFA, a Copa do Mundo é uma competição que se inicia já nas etapas de qualificação
(eliminatórias). Logo, o que a maioria da população chama de Copa é apenas o final de um longo torneio.
22
Para uma linha do tempo dos lançamentos e testes nucleares norte-coreanos verDavenport (2017).
Norte apenas em 2002 –,criando um Comitê conjunto em 2014 para dar continuidade a
essa questão, as sucessivas ameaças norte-coreanas sobre testes nucleares e lançamento
de mísseis amargaram essa relação. Em fevereiro de 2016, o comitê criado dois anos
antes foi dissolvido em resposta norte-coreana a sanções impostas ao país pelo vizinho
japonêsdevido a testes nucleares e de lançamento de míssil de longo alcance realizados
poucos meses antes(NORTH KOREA…, 2016).
Foi também em fevereiro de 2016, já no governo da então presidente Park
GeunHye, que EUA, Coreia do Sul e Japãoemitiram uma declaração conjunta
condenando o disparo do míssil da Coreia do Norte e cobrando uma resposta mais séria
por parte da ONU (Organização das Nações Unidas) a respeito. Poucos meses mais
tarde, a Coreia do Sul e os EUA anunciaram a decisão de implantar o THAAD em
território sul-coreano, como medida defensiva para garantir a segurança do país com o
intuito de interceptar mísseis de pequeno e médio alcance.As primeiras peças do
THAAD chegaram no território sul no início do mês de março de 2017, e a possível
concretização dessa obra traz mal-estar nas relações entre Coreia do Sul e China, pois
há medo por parte do governo de Beijing que o equipamento seja utilizado para espiar
atividades chinesas. Entretanto, apesar das oposições, a colocação do THAAD, em
conjunto com os EUA e apoiado pelo Japão, parece seguir seu curso.
Apesar das conturbadas relações entre Japão e a península coreana nos últimos
20 anos, com momentos de maior aproximação e maior tensão, a partir do governo da
então presidente Park GeunHye23, que teve início em 2013, houve uma sensível
reaproximação dos governos sul-coreano e japonês, apesar de muitas reações contrárias
da população sul-coreana. Eleita a partir de uma onda de conservadorismo e saudosismo
do período ditatorial no qual seu pai, Park ChungHee, liderou a Coreia do Sul por quase
duas décadas em direção ao desenvolvimento e modernização, a presidente, sem deixar
de aproximar suas relações com a China, o fez também com o Japão, que acabava de
eleger, mais uma vez, Shinzo Abe como seu primeiro-ministro24.

23
Park GeunHye é filha do antigo líder sul-coreano Park ChungHee, que ascendeu ao poder através de
um golpe na década de 1960. A governante, que foi eleita em 2012 e teve seu mandato iniciado em 2013,
sofreu um processo de impeachment em meio a um escândalo que envolvia corrupção e uma seita
religiosa.No início de 2017, foi presa acusada de corrução de alto nível, suborno, abuso de autoridade,
tráfico de influência e coerção. Para mais informações sobre o processo de impeachment e prisão da ex-
presidente Park GeunHye ver McCurry(2017).
24
Shinzo Abe foi primeiro-ministro do Japão entre 2006 e 2007 e reeleito em dezembro de 2012, e
mantém seu cargo até o momento em que este texto está sendo escrito.
O lançamento do Pivô para a Ásia25, do governo Barack Obama, também no ano
de 2013, colocou novamente a Ásia do Leste no centro das intenções do governo norte-
americano que, entre outros, passou novamente a ter maiores relações com Japão e
Coreia do Sul, sem deixar em segundo plano o crescimento acelerado chinês e seu
aumento cada vez maior em gastos militares. Exercícios militares conjuntos entre os
dois ou três atores acontecem frequentemente no Pacífico, como uma forma de mostrar
presença e força, mas também como uma possível contraofensiva às atividades norte-
coreanas no que diz respeito a testes nucleares e de mísseis balísticos.
Embalados pelo retorno da família Park ao poder, muitos analistas enxergavam
que a aproximação dos governos de Park GeunHye e Shinzo Abe remeteria a um
saudosismo militar da época de Park ChungHee no poder, que tinha ampla ligação com
o Japão, uma vez que frequentou a academia militar japonesa atuando em Manchuko,
sob domínio japonês. Mesmo causando desconforto a parte da população sul-coreana,
os diálogos entre os dois governos aqueceram suas relações e fortaleceram os laços
também políticos e econômicos com Washington – que vê com bons olhos relações
amistosas entre os dois –, em relações trilaterais (SOUTH KOREA'S…, 2016).
Em 2015, em um esforço inédito, os governos japonês e sul-coreano chegaram a
um acordo sobre a delicada questão das comfortwomen. Mediante reparações japonesas
em forma de doação para um fundo destinado às vítimas, os dois Estados entrariam em
consenso tido como irreversível. Os protestos foram enormes na Coreia do Sul. De fato,
um ponto final não foi colocado nessa questão; no final de 2016, um grupo de ativistas
levou uma estátua símbolo das comfortwomen para frente de um consulado japonês em
um ato de protesto que fez o governo do Japão retirar seu Embaixador do país
temporariamente.
Apesar dos percalços, o impeachmentda presidente Park GeunHye
impossibilitou que novos diálogos se perpetuem momentaneamente. A nova eleição sul-
coreana deve acontecer ainda no primeiro semestre de 2017, e as relações Japão-Coreia
do Sul dependem também do novo governante e de sua perspectiva para o país.
Frequentemente, a Coreia do Sul é rotulada como um camarão entre baleias, um país

25
O presidente Barack Obama, na época do lançamento do Pivô para a Ásia, o caracterizou como
reequilíbrio ou um reengajamento dos EUA na região. Entretanto, segundo Ford (2017, s/p), o "pivô não é
bem compreendido [...] na Ásia [...]. A China suspeita que o único propósito real do pivô é sua própria
contenção, embora Washington negue isso. No Sudeste Asiático, alguns países acreditam que um maior
compromisso dos EUA aumentará a estabilidade; outros veem isso como um risco para a estabilidade".
Com a chegada de Donald Trump ao poder, no início de 2017, a manutenção ou adaptação da postura
norte-americana sobre a Ásia ainda está em jogo.
com potenciais econômico e político suficientes para ser considerado uma potência
média de destaque, algo que a Coreia do Sul nem sempre alcança, apesar de seu
desenvolvimento acelerado, e de ser a quarta maior economia asiática.
Mesmo que a Coreia do Sul seja o Estado mais fraco nas relações com Japão,
China e Rússia, toda vez que buscou perseguir uma política externa mais voltada para
os seus próprios interesses e prospecção de poder, houve piora nas relações com os
Estados japonês e chinês. Vale destacar que a eleição do novo presidente sul-coreano, e
a maneira como os principais atores da região, além do próprio Japão (leia-se China,
EUA e Coreia do Norte), receberão sua nova política, irá ditar o futuro do
relacionamento entre a adaga e a baleia.

6. Perspectivas e Conclusão

Ao longo do século XXI, os líderes sul-coreanos tentaram várias abordagens em


relação à Coreia do Norte, no intuito de reduzir as tensões na região. Ao mesmo tempo,
os laços econômicos com a China aumentaram, o que favoreceu uma aproximação
maior também no campo político. Esses dois movimentos permitiram o fortalecimento
de uma posição mais incisiva em relação ao Japão, como ao exigir um pedido de
desculpas mais significativo pelos excessos de brutalidade durante a ocupação, um
século antes.
No entanto, o pouco sucesso das iniciativas em relação à Coreia do Norte,
embora tentadas por vários governos, fizeram a mais recente presidente eleita (que veio
a sofrer impeachment por conta de atos violadores da Constituição, no final de 2016),
Park GeunHye, procurar uma reaproximação com o Japão, uma abordagem mais dura
em relação à Coreia do Norte, e um certo esfriamento político com a China.
As razões para a mudança envolvem o comportamento recalcitrante da Coreia do
Norte – numa escalada de iniciativas cada vez mais ameaçadoras, inclusive no campo
nuclear e de mísseis balísticos –, a incapacidade da China em refrear tais movimentos
por conta da Coreia do Norte, e o sentimento de ameaça também compartilhado pelo
Japão. Acresce-se a tudo isso a decisão dos EUA de dedicar atenção redobrada à região,
como parte da política do Pivô Asiático. Nesse sentido, cabe lembrar que os EUA
possuem ao menos 12 bases militares significativas na Coreia do Sul, com 28.500
soldados estacionados, enquanto há 21 bases no Japão, com 54 mil soldados (THE
FOUNDATION…, 2017). Logo, uma reaproximação e coordenação mais amistosa
entre os seus dois principais aliados na região é de claro interesse para os EUA.
Após os repetidos lançamentos de mísseis da Coreia do Norte, a presidente Park
também concordou com a instalação do THAAD, conforme já mencionado. No entanto,
tal iniciativa provoca reações de outras nações que não a Coreia do Norte. Caso
plenamente operacional e bem-sucedido, o THAAD é um sistema que afeta de maneira
muito negativa a capacidade de dissuasão tanto da China quanto da Rússia.
Afinal, se um país (ou aliança) possui um sistema que diminui as probabilidades
de êxito de um ataque (ou contra-ataque) inimigo, maiores são as chances daquele país
(ou aliança) lançar um primeiro ataque. Mesmo que isso não aconteça, o poderio
relativo (no sentido de vir a oferecer ameaça militar e, por isso, ser temido e respeitado
em termos de equilíbrio de poder) tanto da China quanto da Rússia ficaria diminuído.
De fato, a presença do THAAD, tanto na Coreia do Sul quanto no Japão, é um passo a
mais para tornar o panorama geopolítico da região ainda mais complexo.
As eleições presidenciais na Coreia do Sul,previstas para maio de 2017, podem
trazer novas reviravoltas quanto ao assunto. Boa parte dos candidatos mais promissores,
em termos eleitorais, defende publicamente uma reaproximação com a Coreia do Norte,
a não instalação do THAAD e o esfriamento das relações com o Japão. Mesmo que um
candidato com esse perfil seja eleito, ainda há dúvidas se tal posicionamento, contrário
ao das lideranças diplomáticas e militares, desiludidas após anos de tentativas amistosas
para lidar com a Coreia do Norte, seria mantido, especialmente caso o vizinho do Norte
ouse ainda mais em termos de uma possível miniaturização de artefatos nucleares e
crescente aprimoramento de mísseis, podendo atingir caráter intercontinental (e, nesse
caso, ameaçando o próprio território dos EUA).
No caso de ocorrer a reviravolta mencionada, com o consequente resfriamento
de relações com o governo japonês, poucas opções restariam a este último, a não ser
buscar uma solução cada vez mais individualizada, fora do concerto com o seu vizinho
ocidental. Nesse sentido, recentes declarações de personalidades japonesas influentes,
vindas de um dos líderes do Partido Liberal Democrata e de um ex-ministro da Defesa,
são explícitas: „O Japão não pode esperar ser destruído‟ ou „Creio que devemos levar
em consideração a capacidade de atacar‟ (FIFIELD, 2107).
Essa visão de que um relacionamento amistoso ou mesmo produtivo entre os
dois países não seja viável, em termos políticos, mesmo no longo prazo, é
compartilhada por analistas como Luttwak, que imagina um Leste Asiático cada vez
mais polarizado entre duas grandes alianças, lideradas pelos EUA e pela China. Neste
cenário, a Coreia (unificada) tenderia a ficar na aliança chinesa, por questões históricas
como o relacionamento na época de Estado Tributário chinês e, principalmente, pelas
lembranças da ocupação japonesa, que não seriam cicatrizadas mesmo após tantas
gerações (LUTTWAK, 2012).
Em suma, a visão da Península Coreana como uma adaga no arquipélago
japonês ainda se mantém, tendo por grande ameaça as iniciativas da Coreia do Norte.
Ao mesmo tempo, a Coreia do Sul se vê como uma potência média tendo que se
equilibrar perante os movimentos de potências maiores, como na imagem inicial de
camarão entre baleias.
E, ao longo do capítulo, confirmou-se que o relacionamento bilateral sul-
coreano-japonês é diretamente influenciado tanto pelo reconhecimento mútuo de
ameaças comuns aos dois (Coreia do Norte), quanto por decisões de um líder de aliança
(EUA). No futuro próximo, tais perspectivas continuam válidas, a não ser na
eventualidade de acontecimentos completamente inesperados, porém significativos (ex:
unificação coreana, crise chinesa, queda do governo japonês e fim da Doutrina Abe,
etc.).

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