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7 O amanhã está anulado

23 Cinquenta tons de rupturas

61 Morte à política

83 Destituamos o mundo

109 Fim do trabalho, vida mágica

135 Todo mundo detesta a polícia

151 Para o que segue do mundo


oAMANHÃ ESTÃANUlADO

Todas as razões para fazer uma revolução estão aí.


Não falta nenhuma. O naufrágio da política, a arro­
gância dos poderosos, o reino do falso, a vulgaridade
das riquezas, os cataclismos da indústria, a miséria
galopante, a exploração nua, o apocalipse ecoló­
gico - de nada somos poupados, nem mesmo de
estar informados sobre isso. "Clima: 2016 bate um
recorde de calor", anuncia o Le Monde agora como
em quase todos os anos. Todas as razões estão reu­
nidas, mas não são as razões que fazem as revoluções,
são os corpos. E os corpos estão diante das telas.
Podemos observar uma campanha presidencial
.chegando ao ápice. A transformação do "momento
mais importante da vida política francesa" em um
grande tiro ao alvo só faz com que a telenovela seja
mais cativante. Não imaginávamos Kob-Lanta- com

1.Koh-Lanta é um reality show francês baseado no formato


internacionalmente conhecido como Sobreviventes. [N.T.]

7 O amanhã está anulado


tais personagens, repercussões tão vertiginosas, pro­ própria caricatura e tem orgulho disso. Mesmo os
vas tão cruéis, humilhação tão geral. O espetáculo da criadores de South Park jogam a toalha: "1:, muito
política sobrevive como espetáculo de sua decomposição. complicado, agora que a sátira se tornou realidade.
A incredulidade vai bem com essa paisagem imunda. Tentamos verdadeiramente rir do que estava acon­
A Frente Nacional, essa negação politiqueira da po­ tecendo, mas não conseguíamos manter o ritmo. O
lítica, essa negação da política no terreno dapolítica, que acontecia era muito mais engraçado do que
ocupa logicamente o "centro" desse tabuleiro de tudo que podíamos imaginar. Assim, decidimos
ruínas fumegantes. A humanidade assiste enfeiti­ esquecer o assunto, deixá-los representar sua co­
çada ao seu naufrágio como a um espetáculo de alto média, e nós faríamos a nossa." Nós vivemos em
nível. Está de tal modo tomada que sequer sente a um mundo que se estabeleceu além dr todajustifi­
i: água que já lhe cobre as pernas. Ao final, ela trans­ cação. Aqui, a crítica não pode mais nada, não mais
formará tudo em boia. É o destino dos náufragos que a sátira. Elas permanecem sem efeito. Apoiar­
transformar tudo o que tocam em boias. -se na denúncia das discriminações, das opressões,
Este mundo não é mais para ser comentado, das injustiças, e esperar delas recolher frutos é se
i:! criticado, denunciado. Vivemos envoltos por uma enganar de época. Os esquerdistas que ainda creem
'neblina de comentários e de comentários sobre que podemos sublevar algo acionando a alavanca
i; os comentários, de críticas e de críticas de críticas, da má consciência estão redondamente equivoca­
~; i de revelações que não desencadeiam nada, exceto dos. Eles podem muito bem se flagelar em público
revelações sobre as revelações. E essa neblina nos e fazer ouvir seus lamentos, acreditando despertar
retira toda apreensão do mundo. Não há nada a simpatia, mas suscitarão apenas o desprezo e o de­
criticar em Donald Trump. Ele já absorveu e in­ sejo de destruí-los. "Vítima" se tornou um insulto
corporou o pior que podemos falar sobre ele. Ele em todos os cantos do mundo.
o encarnou. Ele carrega no peito todas as queixas Há um uso social da linguagem. Ninguém mais
•>
que jamais pensamos poder lhe fazer. Ele é sua crê nisso. Sua cotação caiu a zero. Daí essa bolha
I
Ij.
8 9 o amanhã está anulado
AGORA
l
inflacionista do palavrório mundial. Tudo o que é o engano universal de si mesmo e dos outros. Por
social é mentiroso, agora todo mundo sabe disso. toda parte, trata-se apenas de preservar ou esten­
, Já não são apenas os governos, os publicitários e der os interesses. Em troca, o mundo povoa-se de
as personalidades públicas que "fazem comunica­ silenciosos. Alguns dentre eles explodem em atos
ção", mas cada um dos empreendedores de si, nos loucos, em datas cada vez mais próximas. Quem
quais esta sociedade pretende nos transformar, que pode se surpreender com isso? Não digam mais:
não cessam de praticar a arte das "relações públi­ "Os jovens não acreditam em coisa alguma." Di­
cas". Tornada instrumento de comunicação, a lin­ gam: "Merda! Elesjâ não engolem nossas mentiras."
guagem não é mais uma realidade própria, mas um Não digam mais: "Os jovens são niilistas." Digam:
utensílio que serve para operar sobre o real, para "Puta merda! Se isso continuar, eles vão sobreviver
obter efeitos em função de estratégias diversamente ao afundamento de nosso mundo."
conscientes. As palavras só são colocadas em circu­ A cotação da linguagem caiu a zero e, no en­
lação a fim de travestir as coisas. Tudo navega sob tanto, escrevemos. É que há um outro uso da lin­
falsas bandeiras. A usurpação se tornou universal. guagem. É possível falar da vida e é possível falar
I~ ; Não se recua diante de nenhum paradoxo. O es­ desde a vida. É possível falar dos conflitos e é pos­
:; tado de emergência é o estado de direito. Faz-se sível falar desde o conflito. Não é a mesma língua
.. ! a guerra em nome da paz. Os patrões "oferecem nem o mesmo estilo. Tampouco é a mesma ideia
'i; empregos". As câmeras de segurança são "disposi­ da verdade. Há uma "coragem da verdade" que con­
tivos de vídeo proteção". Os carrascos se lamentam siste em se refugiar atrás da neutralidade objetiva
porque são perseguidos. Os traidores proclamam dos "fatos". Há uma outra que considera que uma
sua sinceridade e fidelidade. Os medíocres são por palavra que não se compromete com nada, que não
toda parte citados como exemplo. Há, de um lado, vale como tal, que não se arrisca em sua posição,
a prática real e, de outro, o discurso, seu implacá­ que não custa nada, não vale grande coisa. Toda a
vel contraponto, a perversão de todos os conceitos, crítica do capitalismo financeiro empalidece diante

AGORA 10 11 o amanhã está anulado


Ir
de uma vitrine de banco estilhaçada e pichada com preciso ir, mas uma relação sem rodeios com o que
"Tome seus juros!". Não é por ignorância que os aí está. Ela só é um "problema" para os que já veem
"jovens" se tornam punchline2 de rappers em seus a vida como um problema. Ela não é algo que se
slogans políticos mais do que em máximas filosó­ professa, mas um modo de estar no mundo. Por­
ficas. E é por decência que não repetem o "Não tanto, não é possível detê-la nem a acumular. Ela
desistimos de nada!" que os militantes gritam no se dá numa situação e de momento em momento.
momento em que já desistiram de tudo. É que uns Quem sente a falsidade de um ser, o caráter ne­
falam do mundo e outros falam desde um mundo. fasto de uma representação ou das forças que se
A verdadeira mentira não é a que se diz aos movem sob o jogo das imagens, afasta-as de toda
outros, mas a que se diz a si mesmo. A primeira . influência sobre si. A verdade é plena presença em
é, comparada à outra, relativamente excepcional. relação a si mesmo e ao mundo, contato vital com o
" .' A mentira é recusar ver certas coisas que se vê, e real, percepção aguda dos dados da existência. Em
!
! :
recusar vê-las como se as vê. A verdadeira mentira um mundo onde todos atuam, onde todos ence­
são todas as telas, todas as imagens, todas as ex­ nam, onde quanto mais se comunica tanto menos
plicações que se colocam entre si e o mundo. É a se diz realmente, a simples palavra "verdade" ate­
maneira como pisoteamos cotidianamente nossas moriza, exaspera e suscita zombarias. Tudo o que
próprias percepções. De modo que, enquanto não esta época contém de sociável costuma se apoiar
se afrontar a verdade, não se afrontará nada. Não nas muletas da mentira a ponto de não mais po­
;! haverá nada. Nada além deste manicôrnio plane­ der deixá-las. Não há que "proclamar a verdade".
tário. A verdade não é algo em direção à qual seria Pregar a verdade àqueles que não suportariam nem
mesmo coisas ínfimas é se expor à sua vingança. No
2. Punchline é a conclusão de uma ideia por meio da que segue, não pretendemos de forma alguma dizer
aproximação de ideias contrastantes de uma maneira "a verdade", mas a percepção que temos do mundo,
insólita, como, por exemplo, o arremate de uma piada. [N.T.] aquilo a que nos atemos, que nos mantém em pé

I AGORA 12 13 o amanhã esta anulado


1­ "
"

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:1
e vivos. É preciso torcer o nariz para o senti.do co­ e uma função. Aliás, é um "funcionário", como l~

mum: as verdades são múltiplas, mas a mentira é de maneira sóbria ele próprio declara. Também o
uma, pois está universalmente ligada contra a me­ amigo tem gestos, movimentos e uma aparência
nor verdade que venha à tona. reconhecível. Há no motim uma incandescência
A cada ano nos guardamos das mil ameaças que da presença em relação a si mesmo e aos outros,
nos rodeiam - os terroristas, os perturbadores da uma fraternidade lúcida que a República é incapaz
ordem interna, os imigrantes, o fascismo, o desem­ de suscitar. O motim organizado pode produzir o
prego. Assim se perpetua o imperturbável dia a dia que esta sociedade é incapaz de engendrar: laços
da normalidade capitalista: com mil cornplôs ina­ vivos e irreversíveiaOs que se fixam nas imagens
cabados e cem catástrofes postergadas como pano de violência perdem tudo o que se joga no fato de
de fundo. É preciso reconhecer que o motim tem encarar juntos o risco de quebrar coisas, de pichar,
a virtude paradoxal de nos libertar da ansiedade de afrontar os policiais. Jamais se sai ileso de seu
I lívida que, dia após dia, tentam nos inocular a gol­ primeiro motim. É essa positividade do motim
!, i'. pes de patrulhas de militares armados, de breaking que o espectador prefere não ver e que, no fundo,
,"
netos e anúncios governamentais. É o que não po­ assusta muito mais do que os destroços, as inves­
:ii dem entender os amadores desses cortejos fúne­ tidas e as contrainvestidas. No motim há produ­
bres nomeados "manifestações", todos estes que, ção e afirmação de amizades, configuração franca
tomando um vinho tinto, apreciam o gozo amargo do mundo, possibilidades nítidas de agir, meios ao
de ser sempre derrotados, todos estes que soltam alcance das mãos. A situação tem uma forma e é
um flatulento "Isso vai dar merda!", antes de sa­ possível mover-se n.ela. Os riscos são definidos, di­
biamente entrarem em seus carros. Nos enfrenta­ ferentemente de todos os "riscos" nebulosos que os
mentos de rua, o inimigo tem um rosto definido, governos se comprazem em fazer sobrevoar nossas
seja vestido em trajes civis ou com armaduras. Tem existências. O motim é desejável como momento
métodos amplamente conhecidos. Tem um nome de verdade. Ele é suspensão momentânea da

AGORA 14 15 o amanhã estd anulado


confusão: entre gases, as coisas são curiosamente
Este mundo que tanto tagarela não tem nada a
claras e o real, enfim, legível. Difícil, então, não
dizer: é vazio de afirmação. Talvez acreditou tor­
ver quem é quem. Falando da jornada insurrecio­
nar-se desse modo inatacável. Ele sobretudo se
nal de 15 de julho de 1927, em Viena, durante a
colocou à mercê de toda afirmação consequente.
qual os proletários queimaram o palácio de justiça,
Um mundo cuja positividade eleva-se sobre tanta
Elias Canetti dizia: "É o que vivi de mais próximo }.
. destruição merece mesmo que o que nele se afirma
a uma revolução. Centenas de páginas não seriam
de vivo tome então a forma do saque, dos destroços,
suficientes para descrever tudo o que vi." Daí ele
do motim. Não deixarão de nos fazer passar por
tiraria inspiração para sua obra-prima, Massa e po­
desesperados sob o argumento de que nós agimos,
der. O motim é formador por aquilo que faz ver.
construímos, atacamos sem esperanças. A esperança,
Havia na marinha inglesa este velho brinde:
eis aí uma doença com a qual esta civilização não
"ConfUsion to our enemies!' A confusão tem um valor
nos infectou. Entretanto, não somos desesperados.
estratégico. Não é um acaso. Ela dispersa as Vonta­
Ninguém jamais agiu por esperança. A esperança
des e as proíbe de reunir-se novamente. Ela tem o
confabula com a espera, recusando ver o que aí
sabor das cinzas da derrota, mesmo que a batalha
está, temendo a irrupção no presente, em suma: te­
ainda não tenha acontecido, e é provável que ja­
mendo viver. Esperar é se declarar, de forma adian­
mais aconteça. Cada um dos recentes atentados na
tada, sem influência sobre aquilo de que, no entanto,
França era seguido de uma grande confusão, que
espera-se algo. É manter-se à margem do processo
oportunamente fazia crescer o discurso governa­
para não ter que assumir seu resultado. É querer
mental a respeito do assunto. Os que reivindicam
que as coisas sejam de outro modo sem querer os
esses atentados, os que convocam à guerra contra
meios para tal. É uma covardia. É preciso saber a
aqueles que os reivindicam, todos têm interesse em
que se ater, e a isso se ater. Mesmo ao custo de fazer
nossa confusão. Qranto aos que as realizam, com
, inimigos. Mesmo ao custo de fazer amigos. Uma
frequência são os filhos - os filhos da confusão.
h· vez que sabemos o que queremos, não estamos
~.'

AGORA 16 o amanhã está anulado


mais sós, o mundo se repovoa. Por todos os lados
segue imediatamente a percepção. É o presente e,
aliados, proximidades e uma gradação infinita de
portanto, o lugar da presença. É o instante, inces­
amizades possíveis. Nada é próximo para o que
santemente renovado, da tomada de partido. Pen­
flutua. A esperança, esta muito leve mas constante
sar em termos distantes é sempre mais confortável.
impulsão em direção ao amanhã que nos é comuni­
"No final", as coisas mudarão; "no final", os seres
cada dia a dia, é o melhor agente para manter a
serão transfigurados. Esperando, continuamos as­
ordem. Somos cotidianamente informados sobre os
sim, permanecemos Q que somos. Um espírito que
problemas a respeito dos quais nada podemos, mas
pensa em termos de futuro é incapaz de agir no
para os quais, por certo, amanhã haverá soluções.
presente. Ele não procura transformação: ele a evita.
Todo o asfixiante sentimento de impotência que
O desastre atual é 'como a acumulação monstruosa
esta organização social cultiva em cada um de nós,
de todos os adiamentos do passado, aos quais se
a perder de vista, é apenas urna imensa pedagogia
acrescenta, em um desmoronamento permanente,
::'1)
li;, da espera. É uma fuga do agora. Ora, sempre só
I.ll/I'"N! os de cada dia e de cada instante. Mas a vida se joga
houve, sempre só há e sempre só haverá agora. E
sempre agora, e agora, e agora.
mesmo se o ontem pode exercer uma ação sobre o
Todo mundo vê com clareza que esta civiliza­

agora, é porque esse ontem sempre foi apenas um


ção é como um trem em direção ao abismo, e que

agora. Como o será o amanhã. A única maneira de


acelera. Quanto mais acelera, mais escutamos os

compreender algo passado é compreendendo que


gritos histéricos dos bêbados do vagão discoteca.

também ele foi um agora. É sentindo o fraco so­


Seria preciso aguçar os ouvidos para perceber o

. pro de ar no qual viviam os homens de ontem. Se " ..


duro silêncio dos .espíritos racionais que não com­

estamos tão inclinados a fugir do agora, é porque


preendem mais nada, o silêncio dos angustiados

ele é o lugar da decisão. É o lugar do "eu aceito"


d que roem as unhas e o tom de falsa serenidade nas

ou o "eu recuso "01 . ugar doo "eu dei


eixo passar " ou
exclamações intermitentes daqueles que dão as

do "tomo para mim". O lugar do gesto lógico que


cartas enquanto esperam. Interiormente, muitas

AGORA 18
19 o amanhã estáanulado
~r""~""""'" '

pessoas escolheram saltar do trem, mas se mantêm


no estribo. Muitas coisas ainda os tomam. Elas se
sentem tomadas porque escolheram, mas a decisão
ainda falta. Pois é a decisão que traça no presente a
maneira e a possibilidade de agir, de fazer um salto
que não seja no vazio. Essa decisão é a de desertar,
de sair das fileiras, de organizar-se, de fazer seces­
são, ainda que seja de modo imperceptível, mas, em
todo caso, agora.
A época é dos tenazes.

AGORA 20
CINQUENTA TONS DE RUPTURAS

"Não dá mais", dizem os maus jogadores. "O mundo


vai mal", opina a sabedoria popular. Antes, nós di­
zemos que o mundo sefragmenta. Tinham nos pro­
metido uma nova ordem mundial. É o contrário
que se produz. Anunciavam a generalização pla­
netária da democracia liberal. O que se generaliza
são, pelo contrário, as "insurreições eleitorais" con­
tra tal democracia e sua hipocrisia, como lamentam
amargamente os liberais. Bairro após bairro, a frag­
mentação do mundo prossegue, sem rodeios, sem
interrupção. E isso é apenas questão de geopolítica.
É em todos os âmbitos que o mundo se fragmenta,
em todos os d~iosem ,que a unidade se to~%urH('
problemática. Em nossos dias não há mais uniâade
na "sociedade" do que na "ciência". Os assalariados
explodem em toda sorte de nichos, de exceções;de
condições derrogatórias. A ideia de "precariado"
oculta de modo oportuno o fato de simplesmente

23
circulação, telecomunicação, rede, um caos de in­

~
já não haver mais experiência comum do trabalho,
formações em tempo real e imagens que pretendem

mesmo precário. Embora tampouco possa haver


captar nossa atenção, é fundamentalmente descon­

uma experiência comum de sua interrupção, e que \1


tínua. Em uma escala completamente diferente, os i
o velho mito da greve geral deva ser colocado na
interesses particulares dos notáveis cada vez mais
seção dos acessórios inúteis. A medicina ocidental
:)
têm dificuldade em se passar por "interesse geral".
se vê reduzida a fazer colagem com técnicas que 'I,
Basta ver como os Estados penam para realizar seus
explodem sua unidade doutrinal, como a acupun­
grandes projetos de infraestrutura, do Vale de Susa
tura, a hipnose ou o magnetismo. Para além das
a Standing Rock, para notar que a coisa já não vai.
usuais adulterações parlamentares, não há mais,
Qy.e agora seja preciso a intervenção do exército
politicamente, maioria para nada. O comentário
e suas tropas de elite no território nacional para
jornalístico mais judicioso, durante o conflito ini­
qualquer obra de pouca importância mostra muito
ciado com a lei do Trabalho, na primavera de 2016,
bem que estas já são percebidas como operações
constatava que duas minorias, uma governamental
mafiosas, que elas também são.
e outra de manifestantes, afrontavam-se diante dos As unidades da República, da ciência, da per­
olhos de uma população de espectadores. Nosso
sonalidade, do território nacional ou da "cultura"
Eu próprio se apresenta como um quebra-cabeça sempre foram apenas ficções. Mas elas eram efica­
cada vez mais complexo e menos coerente - ainda
zes. Certo é que a ilusão da unidade não consegue
que, agora, para que isso aconteça, sejam necessá­ mais iludir, alinhar, disciplinar. Em todas as coisas,
rios, mais do que sessões com psicólogos e compri­ a hegemonia morreu e as singularidades tornam-se
midos, os algoritmos. É apenas por antífrase que selvagens: levam em si mesmas seu próprio sen­
tido, que já ~ão esperam de uma ordem geral. A
chamamos de "muro" o fluxo contínuo de imagens,
de informações, de comentários, por meio do qual pequena visão aérea que permitia aos que tinham
o Facebook ensaia dar forma ao Eu. A experiên­ um pouco de autoridade falar pelos outros, julgar,
cia contemporânea da vida, em um mundo feito
iJ· :

2S' Cinquenta tonsde rupturas


AGORA 24
i
! !

classificar, hierarquizar, moralizar, intimar a todos


sobre o que devem e como devem ser, tornou-se fragmentação do mundo seja precisamente o lugar
inaudível. Todos os "é preciso" foram por terra. O de onde partiu sua unificação sob o nome de "ci­
militante que sabe o que é preciso fazer, o profes­ vilização", há cinco mil anos: a Mesopotâmia. Se
sor que sabe o que é preciso pensar, o político que certo caos geopolítico-perece ganhar o mundo, é
vai nos dizer o que é preciso para o país, falam no desde o Iraque e a Síria, isto é, desde o endereço
,; deserto. Nada mais pode estar acima da experiência exato onde começou a ordenação geral. A escri­
singular aí onde ela existe. Redescobrimos que se tura, a contabilidade, a História, a justiça real, o
abrir ao mundo não é se abrir aos quatro cantos parlamento, a agricultura organizada, a ciência, a
do planeta, que o mundo está aí onde nós estamos. medida, a religião política, as intrigas de corte e o
.: Abrir-se ao mundo é abrir-se à sua presença aqui poder pastoral- todas essas maneiras de preten­
.: e agora. Cada fragmento é portador de uma pos­ der governar "para o bem dos súditos", em bene­
sibilidade de perfeição própria. Se "o mundo" deve fício do rebanho e de seu bem-estar - , tudo isso
ser salvo, será em cada um de seus fragmentos. A a que se resume o que ainda chamamos hoje de
totalidade só pode ser gerenciada. "civilização", tudo issojá era, três mil anos antes de' .
". A época produz atalhos históricos surpreen­ Cristo, a marca própria dos reinos Ácadio e Sumé­
' dentes. A democracia é enterrada no mesmo lugar rio. É claro que haverá tentativas de estabelecer um
onde nasceu dois mil e quinhentos anos atrás pela novo Estado confessional iraquiano. É claro que
maneira COmo Alexis Tsipras, tão logo eleito, não os interesses internacionais culminarão em opera­
' cessou de negociar Sua rendição. É possíve1ler, so­ ções bizarras de state building na Síria. Mas tanto
bre sua tumba, ironicamente, as palavras do minis­ na Síria como no Iraque a humanidade estatizada
tro da economia alemão, Wo1fgang Schauble: "Não morreu, A intensidade dos conflitos cresceu de­
podemos deixar que as eleições mudem nada". Mas
masiado para que uma reconciliação honesta seja
. o mais assustador é que o epicentro geopolítico da
ainda possível. A guerra contrainsurrecional que o
regime de Bachar-Al-Assad comandou contra sua

AGORA 26
27 Cinquenta tons de Tupturai
ter outra atividade senão sobreviver às avalanches
população, com os apoios que sabemos, chegou a ininterruptas de escândalos. Seja sob o pretexto de
tal ponto que nenhuma negociação jamais con­ "reforma' ou por um impulso de "modernizaçãd', os
seguirá algo como um "novo Estado sírio" digno Estados capitalistas contemporâneos se entregaram
desse nome. E nenhuma tentativa de peoplesha­ :,\" a um exercício de autodesmantelamento metódico.
ping - a operação sangrenta do poema irânico Sem falar das "tentações independentistas" que se
de Brecht que seguiu a insurreição operária de multiplicam pela Europa. Não é difícil discernir,
I953 contra o novo regime soviético na Alemanha por trás das tentativas de restauração autoritária
do Leste: "O povo por sua culpa/Perdeu a con­ em tantos países do mundo, uma forma de guerra
fiança do governo/E é apenas redobrando os es­ civil que não cessará mais. Seja em nome da guerra
forços /Qpe ele pode recuperá-la/Não seria/Mais contra "o terrorismo" ,"a droga" ou "a pobreza', por
simples então para o governo / Dissolver o povo/ E toda parte as costuras do Estado cedem. As facha­
eleger outro?"- será útil: as sombras dos mortos das permanecem, mas elas só servem para mascarar
não se deixam apagar por explosões de barris de um monte de escombros. A desordem mundial já
TNT. Quem quer que tenha se debruçado sobre o excede toda capacidade de reordenação. Como di­
que foram os Estados europeus no tempo de seu zia um antigo chinês: "Qy.ando a ordem reina no
"esplendor" só pode ver nisso que hoje sobrevive mundo, um louco não pode perturbá-la sozinho;
com o nome "Estado" um fracasso. Os Estados só quando o caos dele se apodera, um sábio não pode
se mantêm na condição de hologramas em relação reordená-lo sozinho."
às potências transnacionais. O Estado grego não é Somos os contemporâneos de uma prodigiosa
mais do que uma correia de transmissão de instru­ inversão do processO de civilização em processo
ções que o ultrapassam. Com o Brexit, o Estado de fragmentação. Agora, quanto mais a civili2ação
britânico está condenado a ser um funâmbulo. O aspira a seu \cumprimento universal, tanto mais
Estado mexicano não controla mais nada. Os Es­ ela se implode na base. Qyanto mais este mundo
tados italiano, espanholou brasileiro parecem não

Ci'P'l.qúe'7'lta tonsdr rupturas


29
AGORA ""
.0
=~,~."==" -,-,~-_.".-,,"=.~~ ~---

,
.
I
I

pequeno bando de sapiens escapou do vale do Rift.


~. pretende a unificação, mais ele se fragmenta. Até esse momento tínhamos a esperança de que os
Quando ele insensivelmente se desiquilibrou sobre chamados "responsáveis" encontrassem um acordo
li seu eixo? Foi pelo impacto mundial que sucedeu em comum, que os "responsáveis", em uma palavra,
aos atentados de II de setembro? A "crise financeira" seriam responsáveis. E catapum! O que aconteceu

de 2008? A derrota da cúpula de Copenhague so­ em Copenhague é que justamente não aconteceu

bre as mudanças climáticas em 2009? Com certeza nada. Aliás, é por isso que todo mundo a esqueceu.

e;ssa cúpula marcou um ponto de irreversibilidade Nenhum imperador e nem mesmo um colegiado.

nesse desequilíbrio. A causa da atmosfera e do Nada de decisão dos porta-vozes da Espécie. A

planeta oferecia à civilização o pretexto ideal para partir de então, com a "crise econômica" ajudando,
seu arremate. Em nome da espécie e de sua salva­ a pulsão de unificação tornou-se um salve-se quem
ção, em nome da totalidade planetária, em nome puder mundial. Uma vez que não haverá salvação
da Unidade terrestre, íamos poder reger cada uma comum, cada um terá de salvar a si mesmo, não im­
das condutas de cada um dos habitantes da Terra, porta em qual escala, ou renunciar a toda ideia de
e de cada uma das entidades que ela abriga em sua salvação. E tentar se embriagar numa fuga para as
superficie. Estávamos a dois passos de proclamar o tecnologias, ganâncias, festas, drogas e devastações,
imperium mundi universal e ecológico. Era "do inte­ com a angústia cravada na alma.
resse de todos". A pluralidade dos meios humanos O desmantelamento de toda unidade política
e naturais, dos usos, das formas de vida, o caráter induz em. nossOS contemporâneos um evidente
telúrico de cada existência, tudo isso cederia diante pânico. A onipresença da questão da "identidade
da necessidade da unidade da espécie humana, que nacional" no debate públicO o atesta. "A Françà',
íamos enfim poder gerenciar a partir de não se sabe manufatu mundial do Estado moderno, vive
ra
qual diretório mundial. Era a conclusão lógica do particularmente mal sua decomposiçãO. Eviden­
processo de unificação que não cessou de animar temente porque "se sentir francês" nunca teve tão
"a grande aventura da humanidade" desde que um

31 Cinquenta tons de rupturas


AGORA 30
'ii.
II:; pouco sentido como agora, e por isso os políticos geral é tão irrefreável que todas as brutalidades às
~! '
ambiciosos deste país se veem condenados a um quais se recorrerá, a fim de refazer a unidade per­
,·'1

I'~: fantasiar sem fim sobre "a identidade nacional". E dida, acabarão apenas por acelerá-lo, por torná-lo
'i,'

I'í'

como, apesar desses famosos "I500 anos de His­ mais profundo e irreversível. Quando não há mais
,
II',

tória" com os quais quebramos a cabeça, ninguém experiência comum, salvo encontrar-se diante das
parece ter uma ideia clara do que pode querer dizer telas, é possível criar breves momentos de comu­
"ser francês", nós nos debruçamos sobre os funda­ nhão nacional depois dos atentados, despertando
mentos: o vinho e os grandes homens, os terraços todo um sentimentalismo meloso, falso e oco; é
e a polícia, quando não simplesmente o Antigo possível decretar todos os tipos de "guerras contra
Regime e as raízes cristãs. Pálidas figuras de uma o terrorismo", prometer recuperar todas as "zonas
unidade nacional para manuais de quinta categoria. de não direito" que se queira, mas isso não passa de
Da unidade só resta a nostalgia, mas ela fala um boletim de notícias da BFM-TV1 no fundo de
~

cada vez mais alto. Por toda parte candidatos se uma lanchonete, e, portanto, não ouvimos seu som.
;I apresentam. para restaurar a grandeza nacional, para Esse tipo de bobagem é como os medicamentos:
"MakeAmerica greatagain" ou "Remettre la France en para que continuem eficazes, é preciso forçar a dose
ordre". Ao mesmo tempo, quando se é nostálgico continuamente, até a neurastenia final. Aqueles que
da Argélia francesa, de que não se pode ser nostál­ veern com bons olhos a perspectiva de terminar sua
gico? Por toda parte prometem assim refazer pela existência em uma cidadezinha minúscula e super
força a unidade perdida. Só que quanto mais se militarizada, mesmo grande como "a França", en­
"segrega" dissertando sobre o "sentimento de per­ quanto a água sobe ao seu redor e carrega os cor­
tencimento", mais se expande a certeza de não fazer pos dos desafortunados, poderão declarar "traidores
parte desse todo. Mobilizar o pânico para restau­ da Nação" todos aqueles que lhes desagradam. Em
rar a ordem é esquecer o que há de essencialmente
1. Canal de notícias 24 horas da televisão francesa. [N.T.]
dispersivo no pânico. O processo de fragmentação

AGORA 32 33 Cinquenta tons de rupturas


-- .._­
==='="'"""--=-~"=.r~

';,";

')'11i:!:.,k .
seus latidos se escuta somente suaJm:p-ôMffati;,A e determinação comuns que os clamores da publi­
longo prazo, o extermínio não é umasolíi~oft, , cidade procuram esconder. a acontecimento que foi
Não há que se desesperar com o estai\lo;deaw­ a aparição, nesse conflito, da "marcha de cabeça'?
tamento do debate na esfera pública: Senela se mostrou isso bem. Enquanto o corpo social naufra­
grita tão alto, é porque ninguém mais escuta. a que gavapor todas as partes, incluindo o velho corpo do
acontece verdadeira e subterraneamente é que tudo I')
enquadramento sindical, mostrou-se evidente, para
;

se pluraliza, tudo se localiza, tudo se revela situado, '~'."


"
;.:
todo manifestante vivo, que os desfiles em marcha
tudo fige. Não é apenas que o povo falta, que ele lenta exibiam a pacificação pelo protesto. Assim,
não se mostra, que não dá notícias, que mente aos :tt marcha após marcha, viu-se agregar à cabeça da
-..1 manifestação rodos que aspiram desertar do cadá­
entrevistadores, é que ele já fez as malas, em mil
direções insuspeitadas. Não é apenas abstencionista, ver social para não se contagiar por sua pequena
à margem, inencontrável: ele está em fuga, mesmo i.} morte." Isso começou com os estudantes do ensino
quando sua fuga seja apenas para o interior ou imó­ médio. Em seguida, todos os tipos de jovens e de
vel. Ele já está em outro lugar. E não vão ser os arre­ mais jovens, de militantes e de desorganizados, vie­
batadores da extrema esquerda, os senadores socia­ ram a engrossar suas fileiras.Para terminar, quando
listas ao estilo da Terceira República que se tomam da manifestação de 14 de junho, seções sindicais
por Fidel Castro, como Mélenchon, os que vão fa­
zê-lo voltar ao ninho. a que nomeamos "populismo" 2. Em francês, cortegl! detête. Trata-se da inversão da expres­
não é apenas o sintoma criador da desaparição do ~!~ são tê~1! de cortêge, que remete às "lideranças de uma marcha
(OU cortejo)". A expressão invertida designa um grupo de
povo, é uma tentativa desesperada para reter o que
pessoas quaisquer que se recusa a ser conduzido pela se­
nele resta de assombro e desorientação. Uma vez gurança da manifestação, e que, portanto, não reconhece
que uma situação política real sé apresenta, como o nenhuma liderança. [N.T.]
conflito da primavera de 2016, o que se manifesta de 3. Em francês, pl!títl! morte. Trata-se de expressão que tam­
maneira difusa é toda a inteligência, sensibilidade bém pode designar o gozo sexual [N.T.]

AGORA 34 35 CinfJuenta tons de rupturas


, ,'
,

inteiras, até mesmo os estivadores do Havre, uni­ "autónomas" - a multiplicidade de seus compo­
I ram-se à cabeça incontrolada de uma manifestação nentes dá um suficiente testemunho disso - , mas
,
I

de dez mil pessoas. Seria um erro ver na tomada é porque, para elas, existia, na situação, a presença, a
da cabeça dessas manifestações uma espécie de re­ vitalidade e a verdade que faltava ao resto.
vanche histórica daqueles que, "anarquistas", "au­ A marcha de cabeça era mais do que um sujeito
tônomos" e outros costumeiros frequentadores de 'Jl
. '~rr,' separável do resto da manifestação, apenas um gesto,
finais das manifestações, encontravam-se tradicio­ que a polícia jamais conseguiu, como ela se empe­
( nalmente no fim da fila da marcha, com o intuito nhou tão regularmente em fazê-lo, isolar. Para aca­
~ de se entregar a escaramuças rituais. O que ali se bar com o escândalo de sua existência, para rees­
passou naturalmente é que um certo número de tabelecer a imagem tradicional do desfile sindical
desertores criou um espaço político onde compor com, à sua cabeça, os chefes de diferentes centrais,
sua heterogeneidade, um espaço efêmero, por certo, para neutralizar essas cabeças da marcha sistema­
insuficientemente organizado, rnas acessível e, no "
~,
ticamente compostas de uma massa de jovens en­
período de uma primavera, realmente, existente. A capuzados que desafiam a polícia, de gente mais
marcha de cabeça se constituiu como o receptáculo velha que os apoia ou operários liberados que rom­
da fragmentação geral. Como se, ao perder toda pem a linha do batalhão de choque, finalmente foi
~f.
força de agregação, essa "sociedade" livrasse por preciso cercar a totalidade da manifestação. No fim
toda parte pequenos núcleos autônomos, territorial, de junho.sproduziu-se então a humilhante ronda
setorial ou politicamente situados, e esses núcleos ao redor do porto do Arsenal, encapsulada por um
conseguissem pela primeira vez se agrupar. Se a formidável dispositivo policial- bela manobra de
marcha de cabeça conseguiu finalmente atrair uma desmoralização levada a termo conjuntamente pe­
parte não negligenciável daqueles que combatiam las centrais sindicais e o governo. Naquele dia, o
o mundo da lei do trabalho, não é porque todas
jornal comunista L'Humanité destacava seus titula­
essas pessoas teriam repentinamente se tornado
. , . ".,."
res com a mSlgma vitona, que representava essa

AGORA 36 31 Cinquenta tons derupturas


"manifestação" - é uma tradição, entre os stalinis­ aqueles que tentam desertar. Cantos inéditos e
tas, cobrir suas retiradas com litanias de triunfo. A cheios de ironia aí nascem. Uma experiência co­
longa primavera francesa de 2016 teria estabelecido mum nela se faz. O dispositivo policial é inapto
esta evidência: o motim, o bloqueio e a ocupação para conter a saída vertical que nela se produz sob
formam a gramática política elementar da época. 1
}. a forma das pichações, que não tardam em figu­
-.1,
,
A "ratoeira" não constitui apenas uma técnica ~" rar em todo muro, marquise, comércio, testemu­
de guerra psicológica que as forças de segurança I nhando que o espírito se mantém livre, mesmo
V
francesas tardiamente importaram da Inglaterra." ~ quando os corpos são detidos. "Vitória pelo caos",
.~;
A ratoeira é uma imagem dialética do poder pre­ "em .cinzas, tud o se t orna possIve
'1""F
,a rança, seu
ti
sente. É a figura de um poder desprezado, deson­ .~Z1 .. '
vinho, suas revoluções", "homenagem às famílias
rado e que não faz mais do que manter a popu­ ,
;~~~
das vitrines", "kíss kiss bank bank", "penso logo
lação em suas redes. É a figura de um poder que .....
.~\
quebro": desde 1968 os muros não viam tanta li­
não promete mais nada e não tem outra atividade berdade de espírito. "Daqui, deste país onde nós
senão trancar todas as saídas. De um poder ao qual respiramos mal um ar cada dia mais rarefeito,
ninguém mais adere positivamente, do qual cada onde nos sentimos cada dia mais estrangeiros,
um tenta, à sua maneira, fugir e que não tem outra não podia nos chegar nada mais do que este can­
pavorosa perspectiva senão a de manter em seu saço que nos devora com tanto vazio, com tanta
estreito círculo todo aquele que, incessantemente, impostura, Na falta de algo melhor, nós nos con­
lhe escapa. Essa figura do encapsulamento o é formávamos com palavras, a aventura era literária
porque também reúne aquilo que tem vocação e o engajamento era platônico. A revolução de
de aprisionar. Nela se produzem encontros entre amanhã, a revolução possível, quantos dentre nós
ainda acreditávamos nela?" É assim que Pierre
4.Técnica conhecida como kettling. caldeirão de Hamburgo Peuchmaurd descreve, em Plus oioant quejamais,
ou encapsulamento. [N.R.] ° ambiente que maio de 1968 enterrou.

AGORA 18 39 Cinquenta tons de rupturas


Um dos aspectos mais marcantes do processo se comportam como "inimigos da sociedade"? Não
de fragmentação em curso é que ele toca inclusive estão "eles próprios se excluindo do direito"? E não
aquilo que até agora tinha como dever. assegurar a devemos, a partir de então, admitir a existência,
manutenção da unidade social: o Direito. Legis­ para eles, de um "direito penal do inimigo", que
lações antiterroristas de exceção, esfacelamento do consiste justamente na ausência completa de todo
Direito do Trabalho, especialização crescente das direito? É, por exemplo, o que pratica abertamente,
jurisdições e das fiscalizações, o Direito não existe nas Filipinas, o presidente Duterte, que mede a efi­
mais. Tomemos o DireitoPenal. Sob o pretexto de cácia de seu governo na guerra declarada "às dro­
antiterrorismo e de luta contra o "crime organi­ gas" pelo número de cadáveres de "traficantes" que
zado", o que se desenha, ano a ano, é a constituição, chegam ao IML, sejam os "produzidos" pelos esqua­
em matéria penal, de dois direitos distintos: um drões da morte ou pelos simples cidadãos. No mo­
direito para os "cidadãos" e um "direito penal do mento em que escrevemos, a conta passa de 7 mil
inimigo". É um jurista alemão, valorizado em seu assassinatos. Qpe ainda aí se trate de uma forma
tempo pelas ditaduras sul-americanas, que o teori­ de direito, eis o que é atestado pelas interrogações
zou. Ele se chama Günther Jakobs.Jakobs nota que das associações de juristas que se perguntam se não
os desprezíveis, os opositores radicais, os "vadios", estaríamos, por acaso, a caminho da "saída do es­
os "terroristas", os "anarquistas", enfim, o conjunto tado de direito". O "direito penal do inimigo" é o
daqueles que não têm tanto respeito pela ordem fim do direito penal. E isso não é pouca coisa. Aqui,
democrática em vigor e representam um "perigo" a farsa está em fazer crer que ele seria aplicado a
para "a estrutura normativa da sociedade", cada vez uma população criminal previamente identificada,
mais têm reservado para si um tratamento derroga­ quando o que ocorre é justamente o contrário:
tório no direito penal normal, ao ponto de já não se só é declarado "inimigo" aquele que já se escutou,
respeitar seus diretos constitucionais. Não é lógico, prendeu, sequestrou, molestou, maltratou, torturou
em certo sentido, tratar como inimigos aqueles que e, finalmente, matou. Um pouco como quando os

AGORA 40 41 Cinquenta tons de rupturas


policiais denunciam por "desacato e rebelião" aque­ mais em desfazer todo um conjunto de garantias
les que acabam de chamar atenção de uma maneira das quais dispunham os assalariados - em relação
um pouco ostensiva. ao trabalho de domingo, às licenças ou as profissões
Por paradoxal que possa parecer essa afirmação, regulamentadas. A própria lei do Trabalho só con­
nós vivemos o tempo da abolição da Lei. A prolifera­ tinuava um movimento já muito avançado: o que é
ção por metástase das leis é só um aspecto dessa a famosa "inversão da hierarquia das normas" senão,
abolição. Se cada uma das leis já não tivesse se justamente, a substituição de qualquer marco jurí­
tornado insignificante no edifício rococó do di­ dico geral pelo estado de exceção de cada empresa?
reito contemporâneo, seria preciso produzir tan­ Se resultou tão natural para um governo socialde­
tas? Seria preciso promulgar uma nova legislação mocrata inspirado pela extrema direita a declaração
para cada fato pitoresco que se produz? Na França, de estado de urgência após os atentados de novem­
o objeto dos grandes projetos de lei dos últimos bro de 2015, é porque o estado de exceção já reinava
anos se resume quase exclusivamente à abolição sob aforma da Lei.
das leis em vigor, ao desmantelamento progressivo Aceitar ver a fragmentação do mundo até
de toda garantia jurídica. De modo que o Direito, mesmo no direito não é nenhuma obviedade. É que
que pretendia proteger os homens e as coisas dos :~I' na França, somos herdeiros, há quase um milênio,
"
acasos do mundo, tornou-se, antes, algo que au­ ~,',
do "Estado de justiça" - o bom rei São Luís, que
menta esta precariedade. Um traço distintivo das .'~i compartilhava a justiça sob seu robe etc. No fundo,
i~t
grandes leis contemporâneas é colocar tal ou qual ,,.-,; a chantagem que renova sem cessar as condições
administração, tal ou qual potência, sob leis. A lei . [ de nossa submissão é esta: o Estado, o Direito, a
da Informação abolia todo recurso diante dos ser­ :
, '
.! , Lei, a polícia, a justiça, ou a guerra civil, a vin­
.~
·1"
-,

viços de informação. A lei Macron, que pôde ins­ h


",.'
gança, a anarquia e todo seu barulho. Essa crença,
taurar o "segredo comercial", denomina-se "lei" em esse justicialismo, este estatismo, impregnam de
f
virtude de uma estranha novilíngua: ela consistia 'ilJ;r ;..
maneira uniforme o conjunto das sensibilidades
I(
s.:

AGORA 42 ';f 43 Cinquenta tons de rupturas


~-~~--------------------------------------

politicamente admissíveis e audíveis neste país, da anarquistas. Eles só não gostam que os outros o
extrema esquerda à extrema direita. É inclusive sejam. E os patrões sempre tiveram um coração de
segundo esse eixo inamovível que se opera a con­ bandido. É essa honorável maneira de ver as coisas
versão de uma boa parte do voto operário em voto que desde sempre inspirou os operários lúcidos à
na Frente Nacional, sem crise existencial maior prática de pequenos furtos e, até mesmo, da sabo­
para os envolvidos. É isso também que provoca to­ tagem. É de fato preciso chamar-se Míchéa" para
das as reações indignadas diante da enxurrada de crer que o proletariado sempre fora moralista e le­
"casos" que compõem o cotidiano da vida política galista. Na vida, é entre os seus que o proletário
contemporânea. Nós propomos outra percepção manifesta sua ética, não nas relações com a "socie­
das coisas, outro modo de apreendê-las. Aqueles dade". Diante da "sociedade" e sua hipocrisia, ele
que fazem as leis evidentemente não as respeitam. não .pode ter outra relação senão a guerra mais ou
Aqueles que pretendem inculcar em nós a "moral menos aberta.
do trabalho" têm empregos fictícios. Os policiais . É essa maneira de raciocinar que, da mesma
da "narcóticos" - e isso já é notório - são os forma, inspirou a fração mais determinada dos ma­
maiores traficantes de haxixe da França. E quando nifestantes do conflito da primavera de 2016. Pois
um magistrado é extraordinariamente submetido um dos traços mais chamativos desse conflito é o
à escuta, não se tarda a descobrir os inqualificáveis fato de ter acontecido em pleno estado de urgência.
arranjos que se escondem por trás do augusto pro­ ;,1,
Não é por acaso que as forças organizadas, que
:1
nunciamento de uma sentença, de urna apelação em Paris contribuíram para a formação da marcha
ou de uma suspensão processual. Apelar à Justiça de cabeça, sejam também aquelas que desafiaram
neste mundo é como pedir para um ogro cuidar de o estado de emergência na Place de la République
suas crianças. Quem quer que conheça o reverso
do poder, cessa imediatamente de respeitá-lo. Os 5. Jean-Claude Michéa é um filósofo francês que contesta o
amos sempre foram, em seu mais profundo íntimo, que, para ele, são as correntes dominantes da esquerda. [N.T.]
I

AGORA 44 45 Cinquenta tons de rupturas


durante acor 21. 6 Há duas formas de afrontar o afeto nostálgico, reacionário, conservador "de di­
estado de emergência. Pode-se denunciá-lo ver­ reita" e um pós-modernismo caotizante, multicul­
balmente e suplicar o retorno a um "Estado de turalista, "de esquerda". Ser de direita ou de es­
Direito" que, se bem nos recordamos, sempre nos querda é escolher dentre as inumeráveis maneiras
parecia excedente no tempo em que ainda não es­ que se oferecem ao homem para ser imbecil. E, de
tava "suspenso". Mas é possível dizer: "Ah! Façam fato, de um lado a outro do espectro político, os
o que quiser! Vocês se consideram livres das leis apoiadores da unidade estão equitativamente re­
das quais supõem obter sua autoridade! Então nós partidos. Há nostalgias de grandeza nacional por
também, vejam!" Há aqueles que protestam contra todos os lados, à direita e à esquerda, de Soral a
um fantasma, o estado de urgência, e aqueles que o Ruffin.? Há a tendência em esquecer, mas já há um
tomam como causa e a partir dele desenvolvem seu século. que um candidato se apresentou para tomar
próprio estado de exceção. Aí onde um velho reflexo o lugar da forma de vida universal: o Trabalhador.
de esquerda nos leva a tremer diante do estado de Se pôde aspirar a tal cargo, é como consequência
exceção fictício da democracia, o conflito da pri­ do grande número de amputações que ele se im­
mavera de 2016 preferiu justamente opor, na rua, pôs - em termos de sensibilidade, de apegos, de
seu estado de exceção real, sua própria presença no gosto ou de afetividade. Isso lhe dava; por certo,
:;\-->
mundo, a forma singular de sua liberdade.
',(,;
:""]'.
um ar curioso. De modo que, ao vê-lo, o júri fugiu
O mesmo vale para a fragmentação do mundo: -N,'
~~'
e, desde então, o candidato vaga sem saber aonde ir
;'Ir:·
é possível deplorá-la e tentar subir a nado o rio ,
'1
7.Alain Soral é um ensaísta francês que, depois de sua
do tempo, mas também se pode dela partir e ver
,j,.t\ participação no Partido Comunista Francês, nos anos 1980,
como fazer. Seria demasiado simples opor um tem sido considerado como um ideólogo da extrema direita,
/' sobretudo depois do início dos anos 200o.Já François Ruffin
6. Conferência Mundial das Nações Unidas sobre mudan­ é um jornalista e ensaísta francês. É fundador do jornal Fakir,
considerado da esquerda radical. [N.T.]
ças climáticas. [N.T.]

AGORA 46 47 Cinquenta tons derupturas


ou o que fazer, sobrecarregando o mundo de forma
"incontroláveis", saía no braço com a S08 da CGT
lastimável com sua glória passada. No tempo de
Lille, ainda mais desesperadamente stalinista. A
seu esplendor, contava com fãs de todos os cantos,
CGT Energia reivindicava, em Haute-Loire, a sa­
nacionalistas ou bolcheviques, até mesmo nacio­ "

botagem dos cabos de fibra óptica utilizados pelos


"

nal-bolcheviques. Observamos, em nossos dias, ij:


;l~
bancos e operadoras de telefonia. Durante todo
uma explosão da figura humana. A "Humanidade" ~,
o conflito, o que acontecia no Havre em nada se
como sujeito não tem mais rosto. À margem de
parecia com o que acontecia em outras partes. As
um empobrecimento organizado das subjetivida­
datas de manifestação, as posições da CGT local, a
des, somos testemunhas da persistência tenaz e do
discrição imposta à polícia: tudo isso acontecia em
surgimento de formas de vida singulares, que tra­
um sentido autônomo do todo nacional. A CGT, no
çam seu caminho. É esse escândalo que pensamos
~:,. Havre, votou essa moção e convocou as forças de
esmagar, por exemplo, com a selva de Calais. Esse polícia e o prefeito para avisá-los: '~ cada vez que
ressurgimento de formas de vida, em nossa época, .{ !
JI
um estudante for levado para a delegacia de polícia,
resulta assim da fragmentação da universalidade não é complicado, fecha -se a porta!" O Havre tinha
perdida do trabalhador. Ela realiza o luto do tra­ Ac; a fragmentação feliz. As fricções entre "marcha de
balhador como figura. Um luto mexicano, no mais, ;j~~'~~
:1; \~: cabeça" e afiliados sindicais marcaram um com­
que não tem nada de triste. ....,," ~
promisso notável. Então aconteceu que um bom
)!1~,
Desde os conflitos da primavera de 20I6, por :~~, número de, afiliados da CGT passou à posição estri­
~ ~
assim dizer, temos assistido, coisa impensável há t ~:.
tamente defensiva: não mais pretendiam se fazer de
alguns anos, à fragmentação da própria CGT [Con­ ':,~II',
, ,
policiais nas manifestações, quebrar a cara dos "au­
federação Geral do Trabalho]. Enquanto a CGT "
'. "
I'
tônomos" e entregar "os selvagens" para os policiais,
Marselha desembainhava os cassetetes contra os ~~
"jovens", a CGT Douai-Arrnentiêres, aliada dos :':~
8.Membres du service d'ordre, afiliados da Confederação.
,.;
,
[N.T.]

AGORA 48 49 Cinquenta tons de rupturas


só se concentravam na simples proteção de seu "integração à sociedade" que se revela ter sido uma
canto na marcha. Um deslocamento apreciável e, lenta perda de ser, uma separação continuada, um
quem sabe, durável. Não obstante um comunicado deslizamento para uma vulnerabilidade cada vez
de condenação das "violências", exigido após a ma­ mais frequente e sempre mais maquiada. A ZAD
nifestação contra a Frente Nacional em Nantes, em [zona a ser defendida] de Notre-Dame-des-Lan­
25 de fevereiro de 2017, a CGT 44 se organizou para des ilustra o que pode significar o processo de frag­
a ocasiã~;4J~m2:adistas9 e outros incontroláveis. É mentação do território. Qpe uma porção de terra
'.é,o","
}:
,
um do$!~sief~itos do conflito da primavera de se destaque do continuum nacional para entrar em
'i· 2016 'eq:q,~i~(>IIi::êertezadeve inquietar alguns do secessão e aí permanecer de forma durável; para um
i: lado do~VilmO:e'também do lado da central. Estado territorial tão antigo como o Estado francês,
,
",
, Uma veiltcóntecido, o processo de fragmenta­ prova de forma ampla que este não existe maíslda
i:"
ção do mundo pode levar à miséria, ao isolamento, mesma maneira que no passado. Algo assim téria
à esquizofrenia. Ele pode se mostrar, na vida dos sido inimaginável sob de Gaulle, Clemenceau ou
seres, como uma pura perda. A nostalgia então nos Napoleão, Na época, seria enviada a infantaria para
invade. O pertencimento é tudo o que resta àqueles liquidar o assunto. Agora, nomeia-se uma operação
que não têm mais nada. Ao preço de admitir a frag­ "Cesar" e saem em retirada diante de uma guerri­
mentação como ponto de partida, ela pode também lha de bosques. Qpe nas rodovias das imediações
dar lugar a uma intensificação e uma pluralização da Zona os ônibus da Frente Nacional possam ser
dos lugares que nos conformam. Fragmentação, então, atingidos num "ataque de diligênciá', ou que uma
não significa separação, mas cintilação do mundo. viatura de polícia colocada num canto de um bairro
Visto em perspectiva, é muito mais o processo de para vigiar uma câmera que vigia "os traficantes"
seja incendiada por um coquetel Molotov, indica
9.Zadistes, termo referente aos militantes que atuam numa que, de fato, este país se converteu um pouco num
ZAD, Zone à Déftndre [Zona a ser defendida]. [N.T.] faroeste. O processo de fragmentação do território

AGORA 50 51 Cinquenta tons de rupturas


~~---- -«"'~~-- .. _-~--

nacional, em Notre-Dame-des-Landes, longe de Há na fragmentação algo que aponta na direção


constituir um distanciamento do mundo, só multi­ do que chamamos "comunismo": é o retorno à terra,
plicou as circulações mais inesperadas, as mais pla­ a ruína de todo pôr em equivalência, a restituição a
netárias e as mais próximas. A ponto de ser possível si mesmas de todas as singularidades, a derrota da
dizer que a melhor prova de que os extraterrestres subsunção, da abstração, do fato de que momentos,
não existem é que eles não tiveram contato com lugares, coisas, seres e animais adquirem todos um
a ZAD. Por sua vez, o destacamento desse pedaço nome próprio - seu nome próprio. Toda criação
de terra induz sua própria desagregação interior, nasce de uma ruptura em relação a tudo. Como
sua fractalização, a multiplicação dos mundos mostra a embriologia, cada indivíduo é a possibili­
em seu seio e, assim, territórios que aí coexistem dade de uma espécie nova, desde que faça seus os
e se sobrepõem. Novas realidades coletivas, novas dados do que está ao Seu redor de maneira imediata.
construções, novos encontros, novos pensamentos, Se a Terra é tão rica em recursos naturais, isso se dá
novos usos, recém-chegados em todos os sentidos, em virtude de sua completa ausência de uniformi­
com os confrontos necessariamente induzidos pela dade. Realizar a promessa de comunismo contida
fricção entre os mundos e os modos de ser. E daí na fragmentação do mundo demanda um gesto, um
uma intensificação considerável da vida, um apro­ gesto a se refazer interminavelmente, um gesto que
fundamento das percepções, uma proliferação de é a própria vida: o gesto de compartilhar passagens
amizades, de inimizades, de experiências, de hori­ entre os fragmentos, de colocá-los em contato, de
zontes, de histórias, de contatos, de distâncias - e organizar seu encontro, de abrir os caminhos que
uma grande fineza estratégica. Com a fragmenta­ levam de uma extremidade de mundo amigo a um
ção sem fim do mundo, cresce também, de maneira outro, sem passar por terra hostil, o gesto de esta­
vertiginosa, o enriquecimento qualitativo da vida, belecer a boa arte das distâncias entre os mundos.
a profusão de formas, por pouco que se apegue à Qjie a fragmentação do mundo desoriente e
promessa de comunismo que ela contém. desconcerte todas as certezas herdadas, que ela

AGORA 52 53 Cinquenta tons de rupturas


.........
---- - - - - - - - - - - - - -

desafie todas as nossas categorias políticas e exis­ de ser percebido contraditoriamente. É aí que nós
tenciais, que ela faça desaparecer o solo sob os pés nos colocamos.
da própria tradição revolucionária, é algo certo: Contra a possibilidade do comunismo, contra
ela nos põe um desafio. Lembremo-nos do que toda possibilidade de felicidade, levanta-se uma hi­
Tosquelles contava a François Pain a propósito da dra de duas cabeças. Na cena pública, elas fingem
guerra civil espanhola. Alguns, então, eram milicia­ ser inimigas juradas uma da outra. De um lado, há
nos; Tosquelles era psiquiatra. Ele constatava que o programa de restauração fascistizante da unidade,
os doentes tendiam a se rarefazer, porque a guerra, de outro, há a potência mundial dos mercadores
rompendo a trama da mentira social, curava os psi­ de infraestruturas - Google tanto quanto Vinci,
cóticos de forma mais segura do que o manicômio. Amazon quanto Veolia. Quem crê que é ou.umou
Ele dizia: "A guerra civil está em relação com a não outro terá osdois. Pois os fascistas têm apenas o fis­
homogeneidade do Eu. Cada um de nós é feito curso folclórico em relação àquilo de que os gfan­
de pedaços contrapostos com uniões paradoxais e des construtores de infraestruturas têm os meios.
desuniões no interior de cada um de nós. A per­ Para estes, a crise das unidades antigas é, então, a
sonalidade não é feita como um bloco. Se assim o oportunidade de uma nova unificação. Há, no caos
fosse, seria uma' estátua. É preciso reconhecer um contemporâneo, na desagregação das.instituições,
fato paradoxal: a guerra não produz novos doentes, na morte da política, um mercado perfeitamente
ao contrário. Há muito menos neuroses durante a rentável para as potências infraestruturais e paras
~'f!Il:'

guerra do que na vida civil, e há até mesmo psico­ os gigantes da internet. Um mundo perfeitamente
ses que se curam". Eis o paradoxo: a coação à uni­ fragmentado permanece de todo gerenciável do
,'.',
dade nos descompõe, a mentira da vida social nos ponto de vista cibernético. Um mundo dividido
psicotiza e é o abraçar a fragmentação que nos faz é mesmo a condição da onipotência daqueles que
reencontrar uma presença serena no mundo. Há gerenciam os meios de comunicação. O programa
um certo ponto na mente em que esse fato deixa dessas potências consiste em desdobrar, por trás das

r~'

AGORA 54 55 Cinquenta tons de, rupturas


fachadas esfaceladas das velhas hegemonias,uma reduzidos ao simples estatuto de "usuários", nós
nova forina de unidade, puramente operacional, pertencemos à cloud, que não tem nenhuma neces­
que não se incomoda com a pesada produção de sidade de proclamar isso. Dito de outro modo: só a
um sentimento de pertencimento sempre vacilante, fragmentação não nos protege de uma tentativa de
mas opera diretamente no "real", reconfigurando-o.. reunificar o mundo pelos "governantes de amanhã":
Uma forma de unidade sem limites e sem preten­ para estes, isso é inclusive a condição e a textura
sões, que intenta construir sobre a fragmentação ideal. De seu ponto de vista, a fragmentação sim­
absoluta a ordem absoluta. Uma ordem que jamais bólica do mundo abre espaço para sua unificação
pretende fabricar um novo pertencimento fantas­ concreta; a segregação não se opõe à configuração
mático, mas se contenta em fornecer, por suas redes, em rede, ela lhe dá, pelo contrário, sua razão ,deiser.
seus servidores, suas rodovias, uma materialidade A condição do reino dos Gafa (Google, Aprle,
que se impõe a todos de modo inquestionável. Ne­ Facebook, Amazon) é que os seres, os lugares,los
nhuma outra unidade senão a uniformização das fragmentos do mundo, permaneçam sem contáto
interfaces, das cidades, das paisagens; nenhuma ou­ real. Onde os Gafa pretendem "vincular o mundo
tra unidade exceto a da informação. A hipótese do inteiro", o que fazem é, ao contrário, trabalhar para'
Vale do Silício e dos grandes mercados de infraes­ o isolamento real de cada um. É imobilizar os cor­
trutura é a de que não há mais necessidade de se pos. É manter cada um recluso em sua bolha sig­
·,i"
fatigar para pôr em cena uma unidade de fachada: [~;
nificante. Q golpe de força do poder cibernético
eles pretendem criar a unidade no mundo mesmo, ;:. consiste em gerar, em cada um, a sensação de ter
incorporada em suas redes, colada em seu cimento. acesso ao mundo inteiro, quando se está, na reali­
Evidentemente que não nos sentimos pertencer a .~:.
dade, cada vez mais separado; de ter cada vez mais
uma "humanidade Google"; mas isso é proveitoso "amigos", quando se é cada vez mais autista. A mul­
para a Google toda vez que nossos dados lhe per­ tidão em série nos transportes coletivos sempre foi
tencem. No fundo, por pouco que aceitemos ser uma multidão solitária, mas cada um que dela fazia

AGORA 56 57 Cinquenta tons de rupturas


parte não transportava consigo sua bolha pessoal,
tal como acontece depois do aparecimento dos
smartphones. Uma bolha que imuniza contra todo
contato, além de constituir uma vigilância absoluta.
Essa separação desejada pela cibernética leva, de
maneira não fortuita, à constituição de cada frag­
mento como uma pequena entidade paranoica, a
um processo de deriva dos continentes existenciais
em que o estranhamento reinante entre os indiví­
duos nessa "sociedade" se coletiviza ferozmente em
mil pequenos agregados delirantes. Contra isso, é
preciso sair de nossa casa, ir ao encontro, tomar o
caminho, trabalhar a ligação conflitiva, prudente e
feliz, entre os fragmentos de mundo. É preciso se
organizar. Organizar-se verdadeiramente nunca foi
outra coisa do que se amar.

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