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Porque a negação de plataforma [no-

platforming] é às vezes uma posição


justificada
4 de março, 2019

Neil Levy

Publicado originalmente em Aeon


Editado por Nigel Warburton

A discussão sobre a negação de plataforma é frequentemente apresentada como um


debate entre os proponentes da liberdade de expressão, que pensam que a única resposta
apropriada ao discurso ruim seja mais discurso, e aqueles que pensam que o discurso pode
ser danoso. Penso que essa maneira de enquadrar o debate é certa apenas pela metade.
Defensores do discurso aberto [open speech] enfatizam as evidências, mas ignoram as
maneiras pelas quais o próprio fornecimento de uma plataforma fornece evidências.

A negação de plataforma é quando uma pessoa é impedida de contribuir para um debate


público, seja por meio de política ou protesto, sob o fundamento de que suas crenças são
perigosas ou inaceitáveis. Os defensores do discurso aberto destacam o que poderíamos
chamar de evidência de primeira ordem: evidências a favor ou contra os argumentos que
falantes [speakers] produzem. Mas eles ignoram evidências de ordem superior.

Uma evidência de ordem superior é uma evidência sobre como crenças foram formadas.
Frequentemente moderamos nossa confiança em nossas crenças à luz de evidências de
ordem superior. Por exemplo, você pode achar os argumentos a favor de reservar passagens
aéreas para Las Vegas nesse momento atraentes, mas hesitar à luz do fato de que você está
realmente bêbado. O fato de que você está bêbado é uma evidência de ordem superior: é uma
evidência de que você pode não estar processando bem as evidências de primeira ordem.
Talvez o cenário de ir a Las Vegas não pareça tão atraente pela manhã.

Evidências de ordem superior têm sido o foco de muita discussão na epistemologia


contemporânea, sob o título de significado epistêmico da discordância [disagreement]. Tome
um exemplo familiar: você e sua amiga decidiram dividir a conta em 50/50 para a refeição de
vocês. Cada um de vocês soma separadamente todos os itens consumidos por ambos,
usando os preços listados no cardápio (a conta está levando uma eternidade para chegar) e
dividem o total por dois. Você conclui que cada um de vocês deve £34, mas ela pensa que a
quantia certa é £36. Você sabe que você é mais ou menos igualmente confiável em aritmética
mental. Nesse caso, você tem toda a evidência de primeira ordem relevante facilmente à mão,
mas quando descobre a discordância você deve reduzir a confiança em sua resposta. Tendo

1 Tradução de Samuel Maia


descoberto que sua amiga discorda, você deve revisar o cálculo. Ao menos um de vocês
cometeu um erro, e você não tem mais razão para pensar que foi ela do que você. Então você
deve diminuir sua confiança em sua crença.

Um convite para falar em um campus universitário, um evento de prestígio ou para escrever


um artigo de opinião para um jornal fornece (prima facie) evidência de primeira ordem. É uma
evidência de que a palestrante é crível [credible]; que ela tem uma opinião que merece uma
audiência respeitosa. Ele tipicamente certifica proficiência [expertise], e proficiência é uma
evidência de ordem superior de que deve ser dado um peso particular à opinião da pessoa
(considere um caso como o do exemplo acima da conta do restaurante, mas agora as contas
envolvidas são difíceis e a disputa coloca você contra uma doutora em matemática; está claro
que você deve pensar ser muito mais provável que você cometeu um erro do que ela, e você
deve deferir a ela).

Epistemólogos apontam que às vezes podemos rapidamente nos apegar às nossas crenças
diante da discordância, pois a melhor explicação de porque ela discorda de mim é que ela não
é competente nessa matéria, ou ela estar brincando, ou me trolando. Um convite para falar em
um espaço crível é uma evidência de que a pessoa é competente e é sincera. Ele portanto
fornece uma pesada evidência de ordem superior.

Um convite para falar confere credibilidade porque seleciona pessoas, dentre a grande
multidão de falantes potenciais, como a pessoa que devemos ouvir. A credibilidade decorre
tanto do fato da seleção quanto do prestígio do espaço para o qual são selecionadas para
falar. A autosseleção não confere credibilidade alguma. Se eu subo em um palanque na
esquina do Hyde Park eu me autosselecionei, e nenhuma credibilidade extra é conferida a mim
(se alguma coisa é, falar nesse tipo de espaço confere uma evidência de ordem superior
negativa: as pessoas podem pensar que eu sou um pirado e me levarem menos a sério). O
quão forte seja a evidência de primeira ordem conferida por um convite depende do prestígio
do espaço – ser convidado para dar uma palestra TED confere muita credibilidade já que a
organização é tão prestigiada – e de fatos sobre como se supõe que o processo de seleção
funciona.

Para ver como isso se desenrola na prática, considere a controvérsia sobre o documentário
Root Cause (2019) [“Causa Raiz”, em tradução livre], que vende a desacreditada ideia de que
tratamentos de canal radicular causam câncer. O documentário está disponível na Netflix e na
Amazon. Recentemente, em uma entrevista ao The Guardian, a pesquisadora de mídia Erica
Austin da Universidade do Estado de Washington disse que, diferente do YouTube onde o
conteúdo é gerado pelo usuário, estar disponível nesses sites confere credibilidade ao
documentário. Estar no YouTube é como subir no meu palanque: nenhuma credibilidade extra
é conferida a mim pela autosseleção. Mas ter sido selecionado pela Netflix ou Amazon confere
alguma credibilidade. É claro, a Netflix e a Amazon não são muitos seletivas, e a credibilidade
conferida é quase mínima. Ser convidado para falar em uma universidade confere muito mais
credibilidade.

2 Tradução de Samuel Maia


Evidências de ordem superior são evidências genuínas. É racional responder a evidência
de ordem superior moderando nossa confiança em nossas crenças, algumas vezes até para
abandoná-las completamente (como quando eu me vi discordando de alguém com muito mais
proficiência do que eu). Defensores da negação de plataforma podem portanto citar
considerações epistêmicas em favor de sua visão. Eles podem argumentar razoavelmente que
convidar alguém para apresentar argumentos que são ruins ou falsos gera evidência
enganosa, e que devemos evitar gerar evidência enganosa. Se alguém provavelmente falará
em favor de uma visão que sabemos ser falsa, temos fundamento para negá-la plataforma,
porque sabemos que fornecer a ela uma plataforma por si fornece evidência de ordem
superior em favor dessa visão.

Importante ressaltar, evidências de ordem superior são extremamente difíceis de rebater. Se


minha universidade dá uma plataforma para uma cética sobre mudanças climáticas, está
fornecendo evidência de primeira ordem em favor da visão dela. Essa evidência de ordem
superior não é rebatida pelo convite posterior da universidade a outra palestrante para
“balanceá-la”, ou se ela for submetida a uma resposta devastadora da plateia. Podemos
rebater sua afirmação de que o aquecimento global não está ocorrendo, mas não podemos
rebater sua afirmação de que o convite certifica minha proficiência.

É claro que o convite é apenas prima facie evidência de ordem superior. Se descobrirmos que
ela foi convidada somente porque fez uma grande doação à escola, ou porque ela é prima do
decano, essa evidência é enfraquecida consideravelmente. É esse tipo de consideração – não
um argumento racional – que rebate evidências de ordem superior. Rebatemos evidências de
ordem superior usando abordagens que muitos argumentos do discurso aberto deploram,
porque elas não abordam evidências de ordem superior. Um ataque ad hominem (ele está
sendo financiado pela indústria do petróleo; ele é um racista) ou ataques à credibilidade
daqueles que forneceram a ele uma plataforma não abordam seus argumentos, mas eles são
frequentemente respostas apropriadas a evidências de ordem superior.

A liberdade de expressão é genuinamente valiosa. O conhecimento é produzido através de


discussão e debate, e boas sociedades permitem a expressão do dissenso. Existem custos na
supressão da fala. Mas o fato de que o fornecimento de uma plataforma fornece evidência de
ordem superior em favor de uma visão implica que existem considerações epistêmicas em
ambos os lados desse debate. Quando temos boa razão para pensarmos que uma posição
defendida por uma falante potencial está errada, temos uma razão epistêmica em favor da
negação de plataforma: podemos estar confiantes de que fornecer uma plataforma a ela irá
produzir uma evidência em favor de suas visões que é muito difícil de rebater (e que não pode
ser rebatida por argumentos). Às vezes, ao menos, essa consideração será pesada o bastante
para a recusa de uma plataforma a alguns falantes ser justificada.

Neil Levy é um pesquisador sênior do Centro Oxford Uehiro para Ética Prática e professor de
filosofia na Universidade Macquarie em Sidnei. Ele é o autor de Consciousness and Moral
Responsibility (2014). Ele mora em Sidnei.

Disponível em: https://aeon.co/ideas/why-no-platforming-is-sometimes-a-justifiable-position

3 Tradução de Samuel Maia

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