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Quem matou Vargas

Copyright © 1994 Carlos Heitor Cony

Coordenação editorial: Mel Ribeiro


Revisão: Lourdes Araújo, Mel Ribeiro, Marcelo Gomes
Capa e diagramação: Vanderlei Lopes
Imagens de capa e quarta capa © arquivo cpdoc-fgv

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)


(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Cony, Carlos Heitor, 1926 –


Quem matou Vargas: 1954, uma tragédia
brasileira / Carlos Heitor Cony. – 3ª ed. rev. e ampliada –
São Paulo : Editora Planeta do Brasil, 2004.
isbn 85–89885–82–8
1. Brasil – História 2. Brasil – Política e
governo 3. Vargas, Getúlio, 1883-1954 4. Vargas,
Getúlio, 1883-1954 – Morte I. Título.
04-3276 cdd-981.064

Índices para catálogo sistemático:


1. Brasil : História : Era Vargas 981.064 2. Vargas, Getúlio :
Período governamental: Brasil: História 981.064

2004
Todos os direitos desta edição reservados à
editora planeta do brasil ltda.
Alameda Ministro Rocha Azevedo, 346 – 8o andar
01410-000 – São Paulo-SP
vendas@editoraplaneta.com.br
Carlos Heitor Cony

Quem matou Vargas


: uma tragédia brasileira
índice

15 [prólogo] como se faz um homicídio político


27 “levai-me convosco!”
45 a savana verde
67 vinte anos depois
91 a posse da posse – i
113 a posse da posse – ii
137 ações e reações
161 um golpe e seus golpistas
185 o aço e o petróleo
207 o crime e a crise
229 a vida e a história
251 nota do autor
nota à presente edição

Este livro foi publicado inicialmente em capítulos semanais na


revista Manchete, em . Encerrada a série, deveria ser lançado
em livro, mas a situação na época retardou a sua edição, em parte
por pressões da censura federal, em parte porque o marechal
Juarez Távora, invocando a lei de imprensa, escreveu cinco capí-
tulos adicionais que a revista foi obrigada a publicar, refutando
fatos e opiniões em que se julgava prejudicado.
Para sair em livro, a editora teria de publicar os extensos
capítulos escritos pelo ex-ministro de Vargas e ex-candidato à
presidência da república.
Passaram-se cinco anos, e somente em , após negoci-
ações com o Ministério da Justiça e com os órgãos da censura fed-
eral, pode finalmente o livro ser publicado, sem o apêndice pro-
posto pelo marechal, que faria parte de um outro livro assinado
por ele.
Quem Matou Vargas não é um livro conclusivo, nem pre-
tende ser uma biografia de Vargas. Repito: é uma interpretação.
Faltam-lhe momentos importantes de sua vida e de sua atuação no

cenário nacional. Uma de suas faltas é grave: diz respeito ao


ataque em que os integralistas, em , tentaram mata-lo no
Palácio Guanabara.
O capítulo chegou a ser escrito mas os censores o vetaram
integralmente, uma vez que a posição do general Eurico Gaspar
Dutra pareceu ambígua aos militares da época. Limitei-me a nar-
rar o ataque ao Guanabara com base em documentos e depoimen-
tos, muitos dos quais podem ser agora consultados no cpdoc da
Fundação Getúlio Vargas e em arquivos públicos e particulares.
Infelizmente, entre a data da redação dos capítulos na
revista e a sua edição em livro, teve o autor uma vida acidentada,
sendo impossível manter seus apontamentos, desbaratados em
sucessivas batidas policiais nas diversas residências em que
morou após a edição do ai-5, de  de dezembro de .
Ao lançar agora a terceira edição, pela editora Planeta, nos
cinqüenta anos do suicídio de Getúlio Vargas, não tive condições
de recuperar o material perdido, que em linhas gerais funcionaria
como um clone às avessas do movimento comunista de .
Do ponto de vista político, o motim comunista do regi-
mento da Praia Vermelha foi mais importante e gerou maiores con-
seqüências. Do ponto de vista pessoal, o ataque dos integralistas
ao Guanabara, em , foi episódio que mais colocou em risco a
vida de Vargas, que estava disposto a reagir de arma na mão em
defesa de sua vida e de sua família.
Este livro não é nem pretende ser uma biografia de Getúlio Var-
gas: é apenas uma interpretação. Uma – e não a interpretação.
Procurei situar a sua figura de estadista dentro de um tempo
maior do que realmente viveu.
Já foi dito que a era de Vargas não terminou com sua
morte, em . Que a sua era, realmente, terminaria dez anos
mais tarde, com o movimento de .
Os anos que medearam as duas datas –  de outubro de
 e  de março de  – marcaram uma etapa no processo do
desenvolvimento brasileiro. Evidente que a figura de Vargas,
sendo a mais importante do período, não foi a única. Seria injusto
esquecermos a presença de tantos nomes que imprimiram ao
período um caráter de “Era”. A legislação trabalhista de Lindolfo
Collor, por exemplo; a diplomática coragem de Osvaldo Aranha,
num momento difícil para a América; e a política desenvolvimen-
tista de Juscelino Kubitschek são momentos do período.
Partindo de tal referência, fui obrigado a enfatizar na vida
de Vargas determinados episódios que, na parte anedótica de seu


passado, não mereceriam sequer registro. De igual modo, omiti


totalmente muitas passagens importantes que seriam indispensá-
veis a uma biografia, mas ociosas à interpretação pretendida.
Contudo, o desenvolvimento de sua linha política, a lenta
e vigorosa conscientização de suas possibilidades no cenário
nacional – acredito – estão retratados. Para isso, fiz a narrativa
começar das vacilações que o cercaram por ocasião de sua campa-
nha eleitoral em . Era o retorno ao poder e ele sabia que paga-
ria preço bem caro por isso. Através de longos flashbacks, fiz a
continuidade de sua vida aflorar pouco a pouco, imprimindo,
porém, uma diretiva que conduzisse o leitor ao melhor entendi-
mento do processo de Vargas dentro do processo nacional.
Também na certa o leitor encontrará discrepâncias com a
realidade física dos fatos. Uso de tal expressão para designar os
possíveis erros de datas ou de nomes que não interferem essen-
cialmente na biografia ou na interpretação de Vargas. Um exem-
plo: cito dois generais que comandaram um ataque na frente pau-
lista, em . Dona Alzira Vargas do Amaral Peixoto contesta
um dos nomes, mas outros autores confirmam os generais que
cito. A questão, em si, é irrelevante, e para a missão a que me
propus tanto me fazia um ou outro nome.
De forma geral, essa seria a principal dificuldade da tarefa
a que me dediquei: não existem duas versões semelhantes sobre
nenhum dos episódios da vida de Vargas. Mesmo as pessoas que
mais conviveram com ele – seus filhos – não conservam do pai a
mesma lembrança acidental, embora saibam perfeitamente o que
ele foi e o que representou em sua substância humana e política. É
o caso, por exemplo, das leituras de Vargas: dona Alzira diz que o
pai lia Comte – ou lera Comte na mocidade; Lutero Vargas afirma
que o pai nunca leu Comte, que sua notória admiração por Júlio
de Castilhos é que provocara o habitual equívoco de considerar-se
Vargas um positivista.
As discrepâncias não são exclusivas da família Vargas. Há
conflitos flagrantes nas narrativas escritas de João Neves da Fon-
toura, de Lourival Fontes, de Luís Vergara, de Góis Monteiro, de
José Américo de Almeida e outros.
A solução foi tirar a média dos diversos relatos orais e
escritos que consegui, e, quando não obtinha essa média, optava
por uma das versões, uma vez que a opção não diminuía a reali-
dade e a validade do processo que me interessava, embora sua
definição física fosse discutível. É o caso, por exemplo, dos cochi-
los de Vargas após as refeições. Góis Monteiro e José Américo afir-
mam que o presidente tinha, nos primeiros anos de governo, um
sono doentio. Dona Alzira nega firmemente tal afirmação. Para
mim, tanto importava um Vargas com sono ou sem sono. Se fosse
eu o seu biógrafo, teria de tirar a limpo a questão. Mas contentei-
me, neste caso, com o pitoresco, e fiquei com o sono. Não preju-
dica a grandeza de sua figura política nem a complexidade de sua
figura humana.

•••

Vi Getúlio Vargas apenas uma vez na vida. Vi e não gostei. Aju-


dava o cardeal dom Sebastião Leme em uma cerimônia na catedral
e de repente passei por um homem ajoelhado num suntuoso genu-
flexório, próximo ao altar. Sabia que aquele homem não era cató-
lico, nem acreditava em Deus. Por que ajoelhar-se então? Por cor-
tesia, por bajulação à Igreja?
Tive um outro tipo de contato, ainda no seminário onde
estudei. Um grupo de admiradores do então ditador pretendia
erguer na avenida Presidente Vargas um monumento ao trabalha-
dor. Não sei bem o que ocorreu, mas o fato é que o monumento
não foi concluído, embora tenha sido iniciado: entupia o tráfego –
creio – ali pela altura da Praça Onze.
Também não sei por que, o cimento que se destinava ao
monumento foi doado ao cardeal para a construção do novo pré-
dio do seminário. Correu entre os alunos uma espécie de tele-
grama de reconhecimento e eu me recusei a assiná-lo. Não tinha
nada a agradecer pelo cimento ou por qualquer outra coisa.
Como todos os jovens de minha geração, tinha repulsa ao
ditador. Conhecia diversas pessoas que haviam sido torturadas pela
sua polícia. Isso bastava para um sentimento que ia quase ao ódio.


E eis, em verdade, a verdade: o tempo encarregou-se de des-


manchar essa repulsa. Mais: saindo do seminário, obriguei-me a
uma revisão de valores – revisão que não pára, fruto de uma posi-
ção permanentemente crítica em face do mundo e dos homens.
Não sou político, não precisei de Getúlio Vargas para nada
nem preciso hoje de sua memória. Elaborei um roteiro compli-
cado, que incluía entrevistas pessoais e a leitura de folhetos, rela-
tórios e coleções de jornais. Tive apenas quatro meses para fazer
um levantamento que, normalmente, deveria custar quatro anos
ou mais. Minha primeira surpresa: três homens de minha geração
(Dias Gomes, Flávio Rangel e Jorge Ileli) também faziam pesquisas
semelhantes. A coincidência era um sintoma. Significava, entre
outras coisas, que estava em início um processo de revisão de con-
ceitos a respeito de Getúlio Vargas.

Guimarães Rosa, no hall do Hotel Nacional, em Brasília,


disse-me uma de suas frases: “A morte de Getúlio não faz parte da
vida dele”. Concordei com Guimarães Rosa até certo ponto. Parti
para São Borja, visitei a savana verde da infância de Getúlio, de
seus silêncios e de seu exílio. Conversei com muita gente, ouvi
depoimentos, recebi algumas incompreensões e ameaças. Mas
senti que tinha diante de mim um homem cuja dimensão só ten-
deria a crescer. Há uma frase de Novalis que usei ao contrário:

Se avistares um gigante, observa a posição do sol e repara se o


gigante não é a sombra de um anão.

Pois foi isso, exatamente às avessas: comecei a ver a sombra de um


anão. À medida que procurava situá-la, contorná-la, comecei a
compreender o gigante.
Outro ponto importante: como narrar a vida de Getúlio?
Cheguei a pensar em usar a primeira pessoa, uma audácia que me
facilitaria a penetração do personagem, mas me custaria aborreci-
mentos com a verdade física dos fatos. Parti para uma solução
aproximada: usei a terceira pessoa, mas quem conta, praticamente,
a história de Getúlio é o próprio Getúlio. Procurei interpretar a
sua vida sob a luz de um farol retrospectivo que ilumina todo o
passado: a sua morte. Jogando esse foco de luz para trás, fui
buscá-lo na infância, na adolescência, na faculdade, em todas as
etapas de sua vida.
Entrevistei homens que trabalharam com e contra Getúlio.
Parentes e inimigos. Li também dezenas de livros, coleções de jor-
nais inteiras.
Não medi os quilômetros que voei nem o papel que gastei
em apontamentos e fichas. De qualquer forma, quando sentei à
máquina para escrever o primeiro capítulo, tinha, diante de mim,
uma verdade: se não fosse Getúlio Vargas, hoje eu estaria sentado
na Cinelândia, junto aos homens de minha geração, tocando
aquela flautinha para encantar serpentes. Turistas amáveis, de
blusões coloridos, dariam gorjetas e tirariam fotografias. Esse
seria mais ou menos o Brasil em que estaríamos vivendo se não
tivesse ocorrido aquilo que se pode chamar de Era de Vargas. Sei
que é preciso um pouco de audácia para afirmar isso, mas afir-
mado está. E a audácia vai mais longe: disse, no início, que não
devia nada a Getúlio. Pensando bem, vejo que lhe devo – que lhe
devemos – muito.

carlos heitor cony


[1966]
[Prólogo]
COMO SE FAZ UM HOMICÍDIO POLÍTICO

 de outubro de . No quinto andar de um edifício na Cinelân-


dia, mais exatamente na rua Álvaro Alvim, o homem alto, de
cabelos quase louros, coça a testa, indeciso. Tem diante dele a
última página de um relatório. Na mão, a caneta. Ao redor, senta-
das na pequena mesa oval, há três outras pessoas.
– Como é? Regular ou Mau?
O homem vai assinalar, na folha, uma cruz no quadrado
correspondente a Regular. Acima desse quadrado há outros: Exce-
lente e Bom. Abaixo, há o quadrado vermelho: Mau. A caneta
balança entre os dois últimos quadrados e o homem quase louro
toma a decisão:
– Vamos pensar mais uma vez.
Os outros ficam impacientes. O assunto fora exaustiva-
mente estudado, todos eram a favor do Regular, mas o chefe, a
quem competia a decisão final, não se sentia nada convencido.
John Bathurst-Pithard abaixou a cabeça e esfregou as mãos
pelo rosto. Viera de longe: olhava o seu caminho e via que, mais
uma vez, encontrava-se diante de uma cilada. Saíra muito jovem


de sua cidade natal, Dubbe, na Austrália. Sua família era originá-


ria de Bathurst, cidade não muito distante de Sydney e terra de
seus antepassados, daí o seu nome. O Pithard era meio francês,
meio belga, nem mesmo ele sabia, nem se interessava mais em
saber. E isso não importava porque, afinal de contas, desde que se
entendia como gente que era cidadão inglês, até mesmo depois de
Dunquerque. Ah, Dunquerque! Ele servia então no Serviço Se-
creto, tinha um futuro à frente, era considerado o melhor homem
daquela região, mas Dunquerque deixou todo mundo de mau
humor. Reformularam os planos, culparam pela derrota até velhos
fantasmas dos castelos da Escócia e ele teve de explicar onde
estava e o que fazia na semana anterior ao embarque forçado das
tropas inglesas. Por azar, naquela semana estivera em Hamburgo,
seguira uma pista falsa e resolvera aproveitar os restos de uma
vida noturna que ainda havia por lá. Tomara uns drinques, esbo-
feteara e fora esbofeteado por um marinheiro norueguês, a queixa
não chegou a ser feita mas perdeu o emprego, recebeu algumas
libras de indenização e a ordem de regressar por complicada via
de espionagem que Inglaterra e Finlândia mantinham no Báltico,
com sede em Estocolmo.
Naqueles dias não era agradável ser desempregado em Lon-
dres. Mesmo assim ele fez o principal: sobreviveu. Quando a guerra
acabou tinha um emprego, uma renda de  dólares mensais e um
título de inspetor. E, o que era melhor, não trabalhava mais para
governo algum, aliara-se ao capital privado e superintendia, em
Genebra, uma espécie de sucursal da Companhia de Seguros que,
ao fim de alguns anos, reconhecera suas qualidades e o retirara do
quadro burocrático, encarregando-o de uma missão na frente. Não
podia, ainda, pretender um cargo em Roma, ou na Coréia, ou em
Berlim. Como os diplomatas, tinha de fazer a carreira, começar de
zero novamente. Recebeu o pacote com as instruções e a passagem
num velho navio da Mala Real Inglesa, o Alcântara, que breve seria
vendido como sucata à África do Sul e substituído por outro barco
do mesmo nome. Destino: Rio de Janeiro.
Sempre confundira essas capitais da América Latina. Rio
de Janeiro era capital de Havana ou de Buenos Aires? Recebeu as
[Prólogo] Como se faz um homicídio político

instruções na matriz da Companhia – um quarteirão próximo a


Wall Street – e tomou o táxi para apanhar a mala que ficara no
hotel. Sentia-se deprimido, beirava os cinqüenta anos e era des-
pachado para uma cidade distante dos acontecimentos, inconfor-
tável na certa, e na certa com uma cilada que ali deveria estar
encerrada ele sabia que um homem; com o seu passado, ou pro-
vava que valia alguma coisa ou não valia nada mesmo – e voltaria
para o lúgubre serviço de expediente, em Genebra.
Perguntou ao motorista se sabia onde era o Rio de Janeiro.
O motorista sabia. Era neto de portugueses e fora copeiro na resi-
dência de uma milionária brasileira, muito bonita, de nome fran-
cês, nem se lembrava mais. Disse apenas, e com certeza:
– Lá é a terra do general Vargas!

•••

As cautelas eram rigorosas. Ele viajou de avião para Madri e de lá


seguiu para Vigo, onde tomou o navio. No camarote de segunda
classe do Alcântara, Bathurst abriu o envelope. Rasgou o selo de
garantia e a cinta de papel vermelho, com as letras em branco: con-
fidencial. O velho navio começava a jogar, a segunda classe não era
confortável nem distraída, se as máquinas não dessem o prego ele
teria de aturar aquela pasmaceira durante dez dias. Mas não pôde
deixar de sorrir, logo depois. Da pasta caíra uma fotografia de 18
por , em preto e branco, de um homem gordo, seus sessenta e
tantos anos, a testa simpática, mas uma espécie de nuvem nos olhos
que viam claro e fixo para a distância. Embaixo, a legenda. Ficou
sabendo que o general Vargas do motorista nova-iorquino era ape-
nas o bacharel Getúlio Dornelles Vargas, nascido a  de abril de
, presidente constitucional do Brasil, ex-ditador do mesmo
Brasil e, atualmente, residente no Palácio do Catete, Rio de Janeiro.
Muito diferente de sua última missão, antes de Dunquer-
que. A fotografia que recebera, então, era de um jovem de trinta
anos, oficial do Exército Alemão e químico industrial. Aparente-
mente, era homem sem importância, mas Bathurst passara ano e
meio atrás desse camarada, até que aconteceu Dunquerque.


Agora tinha diante de si um velho, com residência fixa, e presi-


dente da República, ainda por cima. Afinal, era um trabalho.
Daquele homem dependeria o seu futuro. Sua renda de  dóla-
res podia ser aumentada e ele teria missão mais importante – se
fosse bem-sucedido.
Passou oito noites mergulhado nos relatórios que recebera –
durante o dia, dormia ou dava um giro pelo convés da primeira
classe, conhecia a bordo um oficial que viajava para Buenos Aires,
tomavam drinques lá em cima e discutiam golfe, mecânica espacial
e câmbio – assuntos que ambos entendiam sem muita profundi-
dade. Quando o Alcântara parou num cais tumultuado e feio, domi-
nado por um edifício quadrado e sem gosto, ele já sabia que tinha,
pela frente, uma nova cilada – e a mais decisiva. De seu relatório
iria depender a segurança de milhares de pequenos e médios inves-
tidores de todo o mundo, gente que, apenas no quinto ano do tér-
mino da guerra, começava a dispor de pequenos capitais e não
sabia onde e como investir. A Companhia funcionava como uma
espécie de resseguradora, garantia uma rede internacional de com-
panhias de seguros que, por sua vez, garantiam diversas compa-
nhias de investimento que dependiam de informações e previsões a
respeito dos mercados onde a soma desses pequenos capitais pode-
ria ser empregada. Evitava-se a colaboração dos governos, pois
tinham eles seus próprios interesses no assunto e, muitas vezes, por
vias transversas seriam ou já eram clientes da própria Companhia.
Apanhou o táxi num dos cantos da praça lateral ao cais.
Tinha de seguir para São Paulo, ele viajava, oficialmente, como
fiscal de uma firma que instalava e garantia por cinco anos o fun-
cionamento de máquinas pesadas. A sede, no Brasil, era em São
Paulo, e ele tinha de levar papéis de rotina para justificar sua via-
gem e estada.
Falava alguma coisa de espanhol – em , estreara com
uma pequena missão na Guerra Civil. Pediu que o motorista o
levasse ao aeroporto.
– Qual dos dois?
Ele não compreendeu. Foram necessárias palavras e mími-
cas para que Bathurst ficasse sabendo que havia dois aeroportos.
[Prólogo] Como se faz um homicídio político

Lembrou-se que o bacharel Getúlio Dornelles Vargas havia sido


ditador daquele país durante muitos anos e disse, com convicção:
– Para o aeroporto Getúlio Dornelles Vargas!
A cara perplexa do motorista fez-lhe ver que havia dito
alguma coisa de assombroso. Também, que diabo, esses ditadores
sempre deixam o nome nos hospitais, nas escolas, nos aeroportos,
até em cidades inteiras.
Entenderam-se, afinal, sem derramamento de sangue, e o
motorista levou-o a um moderno aeroporto. Passou seis dias em
São Paulo e quando regressou ao Rio já o esperavam, no mesmo
aeroporto, os três residentes da Companhia. Normalmente, a Com-
panhia mantinha apenas um residente em cada país. Em momen-
tos agudos, chegava a transferir dez a quinze homens para o foco
da crise. O fato de haver três homens significava que as coisas não
estavam tão pretas assim. Bem verdade que ele seria, por tempo
limitado, um quarto homem em serviço. Não se tratava de uma
crise. Mas também já não era o normal.
E dali em diante, por mais de cinco meses, foi uma tarefa
complicada e temerária: compreender e apreender a situação
daquele país e, da apreensão, passar à previsão dos próximos
quatro anos! A Companhia elaborava pequenos e grandes progra-
mas de trabalho. Os pequenos eram renovados de seis em seis
meses, comportavam determinada margem de enganos e omis-
sões. Mas os chamados “grandes planejamentos”, feitos de  em 
anos, eram sérios, tinham de ser exatos como um teorema, em
torno deles muitos orçamentos seriam feitos, muitas estimativas
iriam movimentar milhares e milhares de dólares, libras, francos
e até rublos.
E, agora, o gargalo. Ele sabia que todas as suas tarefas ter-
minariam ali, naquele estreitamento de paredes, tendo de decidir
entre um quadrado e outro. Vira, há tempos, num music hall lon-
drino, um sujeito que adivinhava o número do telefone dos clien-
tes. Sabia de cor a lista de telefones, ou tinha um truque para dar
a entender isso. Ele se sentia um pouco como esse homem: tinha
de acertar um dado exato entre milhares de dados, confusos e
contraditórios.


Na época, os quadrados estavam resumidos a três. O pri-


meiro quadrado – Excelente – era que nem aquela marca de
determinados copos de uísque que trazem marcações de nível:
para crianças, para senhoras, para senhores, para bêbedos e, lá em
cima junto ao bordo, o último nível: para os porcos. Quase nin-
guém chegava até lá. Em tempos de muita calma, Suíça, Suécia,
eventualmente a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, até mesmo o
Japão atingiam aquela excelente marca. Mas no momento, com a
guerra da Coréia, a crise em Berlim vivendo uma trégua que
podia acabar da noite para o dia, só um louco colocaria um país
naquela marca.
No segundo quadrado – Bom – figuravam dez ou doze paí-
ses. E o grosso da manada, exatamente % dos países, espremia-
se nos dois quadrados finais: Regular e Mau. Além disso, havia a
dança contínua das posições. O Brasil, no último programa de qua-
tro anos, figurara orgulhosamente no Regular, e, em um dos planos
semestrais, chegara a subir ao quadrado Bom. Mas houvera mu-
dança de governo e as possibilidades tinham de ser revistas, anali-
sadas e... previstas!
– Vamos pensar mais uma vez.
A frase decepcionara os três homens que durante aqueles
meses haviam trabalhado com e para ele. Conheciam bem a situa-
ção e certamente sabiam o que faziam quando aconselhavam que
ele colocasse o sinal no quadrado Regular. Mas havia – ou ele pen-
sava haver – aquele cretino sexto sentido das horas decisivas. Um
erro de sua parte e seria o fim, mofaria eternamente nos escritó-
rios sombrios de Genebra.
– Mas pensar mais uma vez para quê? – perguntou o resi-
dente mais antigo. – O homem está calmo, comporta-se como um
presidente constitucional, tem enorme lastro popular e a Oposi-
ção, embora violenta e intransigente, não tem outro remédio
senão esperar pelas novas eleições.
John Bathurst-Pithard tinha um jeito impertinente de
argumentar. Sua voz adquiria um tom irritado e sarcástico:
– Se houver eleições. Esse homem já cancelou uma eleição
em cima da hora, não?
[Prólogo] Como se faz um homicídio político

– A situação era outra. E, agora, nem mesmo ele deseja


isso. Quer governar até o fim, mostrar que também sabe fazer um
governo constitucional, com o Congresso funcionando, a liber-
dade de imprensa, tudo. Depois disso voltará para a fazenda. É lá
que ele pretende encerrar a sua vida.
Bathurst insistiu:
– Ele dizia mais ou menos isso em ...
–  – emendou um outro residente.
Bathurst mordeu o lábio superior, vício antigo e jamais
corrigido. Todas as vezes que cometia pequenos lapsos, mordia o
lábio superior.
– Em , sim. Ele pode repetir a dose.
Sentiu que o sexto sentido – “que expressão cretina!” –
pensou – começava a subir dentro dele. E logo acertou um argu-
mento forte, que abalou os demais:
– Mas admitamos que ele não pense em repetir a dose. Os
adversários poderão pensar por ele. Se até eu pensei, por que não
uma Oposição que vocês admitem violenta?!
– Bem, Pithard – o residente mais antigo tinha boa capaci-
dade de argumentar –, ainda que a hipótese seja válida, isso não
altera a situação. Ele governará até o fim. Tem generais a seu lado,
tem as leis, a fiscalização da política externa e, sobretudo, tem um
prazo fixo para sair com honra e até com glória. Só o fato de levar
o governo até o fim será uma glória para ele, compreende? E ele
sabe disso.
Bathurst não escutara o que o outro falara. Não gostava de
ser chamado de Pithard, lembrava um tempo antigo e agora indese-
jado, a ex-mulher com quem se casara, na França, o pacto de Muni-
que prometia uma trégua que, apesar de breve, foi mais longa que
o seu casamento. Ficou um instante em silêncio. Quando retornou
das sombras, tinha, insensivelmente um novo argumento:
– Esse homem é teimoso – falava com certa raiva agora. –
Não voltou ao governo apenas para provar que podia ser um pre-
sidente normal, como qualquer outro. Tem coisas na cabeça. São
coisas difíceis de prever, todos o consideram enigmático, a
“Esfinge dos Pampas”. Li isso num relatório que vocês me deram.


Essas coisas podem ser desde um simples golpe de estado, no es-


tilo do de , como até uma reforma da economia e da política.
E para completar o argumento – sabia que aqueles homens
pensavam e agiam de acordo com os chavões – disse rápido, mas
destacando as palavras:
– O Brasil tem ferro e parece que tem petróleo.
Não precisou olhar as fisionomias para ver que havia atin-
gido o alvo. Todos ali sabiam que o binômio ferro-petróleo depu-
nha até o Santo Padre. E o Brasil tinha, realmente, as duas coisas.
Minério e lençóis que dia a dia mostravam-se mais extensos e pro-
fundos. E – o que era mais grave – aquele mesmo presidente cons-
titucional mexera, enquanto fora ditador, no ferro.
O residente mais jovem, quase um rapaz, que sentava no
canto mais escuro da mesa e fumava um cigarro apagado, disse em
voz baixa:
– O aço já o depôs, em . Falta o petróleo.
A intervenção não foi bem recebida. Todos desconfiavam
que o rapaz tivesse ligações além da Companhia. Talvez fosse ele-
mento de algum governo – e qualquer que fosse, esse governo
seria o Inimigo. A Companhia tinha de trabalhar independente-
mente até contrariamente aos governos. No mais das vezes, eram
eles os principais clientes, os que melhor e mais pontualmente
pagavam.
Bathurst também não gostou da intervenção mas aprovei-
tou-a para desenvolver o raciocínio:
– Digamos que foi mesmo o aço que o depôs em . O
fato é que tinha, nos calcanhares, uma crise política incontrolável.
Ele não soube ou não pôde conduzir os acontecimentos. Naquela
ocasião, tinha também um prazo para deixar o governo, prazo que
ele mesmo, como ditador, se impusera. Mas acabou saindo antes
do tempo – e faltava tão pouco.
Bathurst readquiriu a calma e abriu sua pasta, procurou e
achou o que procurava. Estava dono de si:
– Vejam aqui. A Companhia tinha previsto, para aquela
época, um programa baseado na convicção de que a situação era
má. Os generais conspiravam, os políticos se exaltavam, tudo
[Prólogo] Como se faz um homicídio político

parecia prever uma débâcle política que acarretaria uma débâcle


econômica. E o que aconteceu? O governo ditatorial foi deposto e
nos meses seguintes o sucessor do ditador liberou as importações.
O Brasil tinha – consultou o papel que tirara da pasta – mais de
 milhões de dólares-ouro à sua disposição, saldo proveniente
de uma economia forçada pela guerra. Vargas não queria gastar
esse dinheiro à toa, queria empregá-lo em obras de estrutura, tal-
vez o alumínio, ou quem sabe, uma refinaria... E veio o sucessor,
que liberou essa fortuna e ela se derreteu em matéria plástica, em
latas de conserva, em sobras industriais da guerra, em cadilacs. Só
os oportunistas, daqui e de lá, ganharam com isso. Os investidores
honestos – os nossos clientes – que nos pagam para lhes darmos
boas informações e razoáveis certezas, esses ficaram à margem dos
 milhões de dólares. Não se perde um mercado desses!
O rapaz do canto mais escuro jogara fora o cigarro e elevara
a voz:
– Vargas tem um projeto sobre o petróleo.
O residente mais antigo fez um gesto condescendente,
como se a intervenção do rapaz fosse ociosa:
– Já sabemos disso. Mas ele não prevê o controle estatal do
petróleo. Muita gente está até surpreendida com isso. Todo
mundo imaginava que ele era a favor dessa tese.
– E quem disse que não é? – Bathurst encontrava, afinal, o
seu tom exato. Era o mesmo de vinte anos atrás, quando pintara
como um dos mais brilhantes membros do Serviço Secreto.
– Pelo que posso depreender desse homem – continuou –
ninguém sabe exatamente o que ele pensa e quer. Esse projeto do
petróleo que está em preparação pode ser uma cilada, das muitas
que ele armou até agora. Como é mesmo o nome daquele presi-
dente que ele depôs em ... o Jefferson Luís...
– Washington Luís – emendou o residente mais antigo.
Bathurst não mordeu o lábio dessa vez.
– Pois esse tal de Washington Luiz dizia... dizia... – con-
centrou-se para lembrar a frase que lera em um dos relatórios e
que tanto o impressionara – dizia que “os adversários de Vargas o
empurram sempre para onde ele quer ir”, não é essa a frase?


O residente mais antigo não se lembrava exatamente da


frase mas admitiu, sim, era qualquer coisa com esse sentido.
– Pois digamos que Vargas queira, justamente, o controle
estatal do petróleo. Se manifestar esse desejo de forma concreta,
a Oposição se concentrará, ferozmente unida, para torpedear o
projeto. Sabendo disso, ele obriga o adversário a levá-lo aonde
ele quer ir.
O rapaz elevou outra vez a voz:
– O argumento do sapo!
– Que sapo? – Bathurst estava sério e não admitia brinca-
deiras que o desviassem do tom exato que nem sempre encontrava.
– O sapo queria nadar. O macaco ia atirá-lo num precipí-
cio mas ele começou a gritar: “Não me atire na água! não me atire
na água!” Foi jogado na água.
A fábula quebrou a discussão. Ninguém riu da história do
sapo mas ninguém disse mais nada. Houve um silêncio forçado,
em que cada qual procurou se esforçar para reexaminar a ques-
tão. Para ganhar tempo, Bathurst colocou um cigarro na boca e o
acendeu lentamente, a mão em concha protegendo a chama do
fósforo de um vento inexistente.
Ele tinha de decidir. Fizera tudo para dominar o maior
número de informes sobre o caso. Só não conseguira, mesmo,
ver pessoalmente o presidente. Queria ter o homem frente a
frente, estudá-lo em silêncio e impressentidamente. O adido mi-
litar da Bolívia prometera levá-lo a uma recepção em que Vargas
iria. Mas Bathurst cometeu uma imprudência que o impediu de
comparecer. Dias antes, fora apanhar alguns dados na embai-
xada norte-americana e encontrara-se com um antigo conhe-
cido, dos tempos de Hamburgo. “Você por aqui, Pithard!” Ele
teve de sumir da circulação, viver quase clandestinamente esses
meses todos.
Abriu a pasta. Havia fotografias. Vargas em Itu, vestido de
bombachas e tomando chimarrão. Vargas deixando um hidroplano,
o riso forçado na boca. Vargas lendo discurso diante de um micro-
fone do tamanho de uma barrica. Vargas vestido de coronel, bai-
xote, lenço no pescoço, cara de quem não tinha apanhado muito
[Prólogo] Como se faz um homicídio político

sol nem muito tiro. Vargas de casaca, já idoso, na cerimônia de


posse para o segundo período presidencial.
O olhar de Bathurst brilhou, de repente. Nesta última foto-
grafia apareciam diversos homens que, evidentemente, nada
tinham com a cerimônia, embora estivessem também de casaca. Um
deles, negro, parecia discutir com um velho metido numa toga.
Bathurst lera, em algum relato, que a Guarda Pessoal de Vargas
criara incidentes durante a cerimônia de posse.
– “Como é mesmo o nome desse negro?”
Não teve coragem de perguntar em voz alta. Bastava a brin-
cadeira do sapo. Os residentes eram homens especializados em eco-
nomia política, tinham grau em Sociologia, em Direito, considera-
vam-se muito importantes para pensarem naquele crioulo.
Amassou o cigarro contra o cinzeiro e pegou novamente a
caneta. Não podia – nem devia – dar explicações. Aqueles
homens só entenderiam uma fórmula e ele a disse em voz alta:
– Aço e petróleo. Que diabo!
A caneta ainda hesitou entre os dois quadrados finais da
última folha do relatório que, dali a horas, um portador especial
conduziria à sede da Companhia. A pena tremeu em cima do qua-
drado Regular mas o olhar de Bathurst foi desviado para a foto-
grafia que ficara por cima das outras. Olhou novamente aquelas
caras todas e subitamente lembrou-se de que o nome do crioulo
era Gregório.
A caneta desceu e, no último quadrado – Mau –, fez uma
cruz.
1
“levai-me convosco!”

 de abril de  – No fim das coxilhas, acima dos capões que


marcam a savana verde, a umidade avermelhada do sol se anuncia,
lentamente, num céu metálico e áspero. A claridade é pouca e, de
quando em quando, um peão passa ao longe, para a faina diária.
No alpendre da casa principal, paredes nuas, duas entradas em
forma de ogivas, o gaúcho de bombachas, rosto descansado pelo
sono, prepara pausadamente o primeiro chimarrão do dia. Há uma
rede que divide em diagonal a estreita varanda. O homem está
sentado a cavaleiro. Antigamente, usava a chaleira de ferro, ene-
grecida pelo fogo dos braseiros. Hoje, a garrafa térmica que lhe
deram é menos típica e mais prática. O mate e a bomba são os mes-
mos e mesmo é o gosto amargo e másculo que lhe esquenta a boca.
O minuano ainda não varre forte a pele verde das coxilhas.
Mas a aragem do amanhecer já é fria, neste abril que corre, e é
bom sentir nas mãos o calor da cuia.
Há  anos, neste mesmo dia, esse homem nascia, não muito
distante dali, em São Borja, numa casa baixa, plantada diretamente
sobre o chão, seis janelas e duas portas voltadas para a praça prin-
cipal da cidade missioneira.


Muita coisa acontecera, de então para cá, na vida desse


homem solitário que, em gestos lentos, enche mais uma vez o
porongo. A largura dos horizontes em que nascera e se criara habi-
tuara-o a olhar para longe, e ele olha sempre para longe, mesmo
quando observa as três mudas de pau-brasil que plantou há meses,
em frente à varanda. Todos os dias, ao acordar, ele vê as três plan-
tinhas crescendo, sabe que elas só atingirão a fecundidade daqui a
cem, duzentos anos – e também por isso ele olha para longe.
Aproveita os momentos de solidão que talvez sejam os
últimos de seu dia – e de sua vida. Os hóspedes de sua casa – os
quartos estão abarrotados de visitas e as fazendas adjacentes, as
estâncias e granjas vizinhas estão cheias também – breve aparece-
rão e seu silêncio, talvez seu último silêncio verdadeiramente
silencioso, acabará.
A trajetória desses  anos fora marcada por sucessos e
derrotas, bem mais sucessos que derrotas, mas isso não o afeta,
são balizas que poderiam servir para os outros medi-lo, e aferi-lo,
não para ele. Tem de si mesmo uma perspectiva apática, quase
cruel. A savana verde ensinara-lhe fatalidade e submissão. Fatalis-
ticamente, ele olha o horizonte – o sol, afinal, pulara no horizonte
amanhecido, ainda suave. Olha os três pequenos pés de pau-brasil
que mal nasciam e já eram fustigados pelo vento, que às vezes
sopra mais forte, como um anúncio dos minuanos próximos.
Submisso e fatal, ele ouve os primeiros passos que descem,
os hóspedes despertam. Pouco a pouco surgem, no fundo das coxi-
lhas, os primeiros carros que chegam de São Borja ou de Itaqui.
Ouve a aproximação dos passos e alguém aparece na porta
que liga a varanda à sala de refeições.
– Bom dia, presidente. Feliz aniversário!
Ele encara o amigo sem surpresa e sem alegria.
– Bom dia.

•••

Por volta das onze horas iniciou-se a debandada. Os carros que


enchiam a frente da casa começaram a se movimentar, os aviões
 “Levai-me convosco!”

que taxiavam na improvisada pista de grama decolam em direção


à Granja São Vicente, de seu amigo Vicente Goulart, hoje adminis-
trada pelo filho, e também seu amigo, João Goulart.
Havia alegria, mais algazarra que alegria, pois no fundo
havia apreensão em todos: ninguém sabia exatamente qual seria a
decisão final daquele homem que alguém chamara de Esfinge dos
Pampas. E o churrasco em São Vicente não seria apenas um al-
moço de aniversário: era também um comício político e, mais que
isso, o encerramento de uma espécie de convenção partidária.
Vieram de longe, de todas as partes e por todos os motivos.
Sim, havia amigos no meio daquela gente, gente fiel, desinteres-
sada. Havia neutros, que apenas jogavam uma cartada no tabu-
leiro da oportunidade, para ver no que iam dar as coisas. E havia
os oportunistas, os carreiristas, os desesperados que precisavam
de uma tábua de salvação para sobreviverem mais um pouco ou
para sempre – conforme esperavam.
Ele conhecia aquela espécie de romaria que volta e meia
desabava sobre o pampa. Tão logo retirara-se do governo, em
, buscara uma fazenda próxima a Itu: Santos Reis, uma espé-
cie de casa-máter dos Vargas. Itu não dispunha de nenhuma resi-
dência onde pudesse morar, a solução foi passar os primeiros
meses com seu irmão Protásio. Quando a casa de Itu ficasse pronta,
ele se mudaria. De uma coisa estava certo: deitaria raízes no pampa
para sempre.
Até que, certa manhã, ainda em , viu o avião sobre-
voar a fazenda, examinando a possibilidade de pouso. Apesar do
seu tamanho e da exigüidade da pista de grama, o avião final-
mente baixou. Trazia a caravana chefiada por Hugo Borghi: dese-
javam uma declaração dele a respeito da candidatura de Dutra.
Nascia o “ele disse”.
Dali em diante, ele não se habituara, mas se conformara.
Itu tinha cancelas, podia ser fechada aos carros, mas as coxilhas
são planas e não havia defesa contra a invasão que descia do céu.
E tudo aquilo, aquela soma de interesses e dedicações, de amiza-
des e de especulações, convergia para ele e ele se defendia, mais
do que nunca, com um silêncio pesado que o tornava distante –


mais distante que o próprio olhar perdido na vastidão verde de


sua savana natal.
Na véspera daquele dia, numa reunião em que o partido
lhe entregara a decisão final, decisão que era uma imposição, ele
olhou surpreendido e perguntou naquele tom sombrio e calmo
que revelava, nele, um tipo de sofrimento muito seu:
– Quer dizer que o problema agora é meu?
Procurara fazer o possível para evitar que a situação che-
gasse àquele ponto. O psd tinha, em Nereu Ramos, o candidato
natural à sucessão de Dutra: era presidente do partido, tinha trân-
sito em áreas da udn, nenhuma incompatibilidade com os círculos
militares. Antes de Nereu, é verdade, fora lançada a candidatura
do condestável do regime, o general Canrobert Pereira da Costa,
através de uma legenda insignificante: o pot, pseudônimo de um
pretenso Partido Orientador Trabalhista. O general não conseguiu
transformar o seu nome em caso de salvação nacional. Teve uma
atitude digna: renunciou à candidatura.
Consultado oficialmente, ele mandou dizer ao psd que
apoiaria Nereu Ramos e que o ptb o obedeceria. Mas Dutra, que
já se tinha ligado à udn por um acordo de “pacificação”, com
medo que Nereu se transformasse num presidente getulista ou
dos getulistas, vetou. Preferia Bias Fortes; Afonso Pena Júnior,
que esteve a pique de ser aceito pela udn, mas foi também
vetado, Benedito Valadares, mais por hábito que por convicção
ou necessidade, articulava a fórmula mineira – o que era um pleo-
nasmo; todas as fórmulas são mineiras. A udn – felizmente – não
criava problemas nessas ocasiões: colaborava sempre para o seu
sossego e mais uma vez indicara o brigadeiro Eduardo Gomes.
Dessa vez, o brigadeiro iria. Em  não fora, porque o povo –
segundo a udn – não estava preparado para a democracia, entor-
pecera-se na longa ditadura que tanto o escravizara. Mas, agora, e
com a dolorosa experiência do governo pessedista que se encer-
rava, o povo reconheceria no herói lendário de tantas lendárias
glórias o seu salvador.
O psd sem Nereu, vetado por Dutra, e, sem Dutra, vetado
pela Constituição, suava sangue e suor mesmo para arranjar um
 “Levai-me convosco!”

candidato. Valadares regia um corpo de baile em que o primeiro


bailarino ora era Bias Fortes, ora Israel Pinheiro, ora Ovídio de
Abreu, esperando a ocasião em que a platéia exigisse em cena o
próprio régisseur. Mas a platéia não se manifestou e Valadares,
através do psd, vingou-se dela exigindo um modesto solista que
fazia discretos entrecharts nas últimas filas: Cristiano Machado.
Era homem de dignidade, revolucionário de , de bom cora-
ção. A udn esmiuçou a sua vida e só encontrou uma nódoa: ser
irmão do comunista mais puro e manso que já existiu nesta terra:
Aníbal Machado.
O governador de São Paulo, Ademar de Barros, candidato
potencial das forças ditas populistas, amargou suas cívicas vigí-
lias até o dia  de abril, prazo da desincompatibilização. No fim,
bom-senso e prudência fizeram-no preferir o pássaro que tinha à
mão. E, naquele momento mesmo, talvez estivesse forrando o
estômago com gim-tônica, preparando-se para o churrasco de São
Vicente.
O ptb, do qual era presidente de honra, não podia aceitar
a fórmula mineira. No fundo e na forma, era a mesma situação
anterior a : o candidato do partido majoritário tinha de ser
ou mineiro ou paulista e contar com o apoio do presidente da
República. Valadares fazia mais ou menos o papel de Antônio
Carlos, apenas não era um Andrada, era o Benedito. Por tudo
isso, a luta se arrastava. Havia quase um ano que, diariamente,
chegavam carros vindos de São Borja ou de Itaqui, aviões de
Porto Alegre e Uruguaiana. Traziam emissários solícitos e conse-
lheiros não solicitados.
Ele se retirara da vida pública, era senador relapso, per-
manentemente licenciado. Usara da tribuna poucas vezes e, a
rigor, só gostaria de tê-la usado uma única vez: aquela em que,
num longo discurso, prestou contas, à nação, de seu governo.
Governo transcorrido, em sua maior parte, sob regime ditatorial
ou discricionário.
Cometera uma violência contra a História: um ex-ditador
que vai ao Congresso e defende sua ditadura, declarando assu-
mir, perante Deus e perante a História, a responsabilidade de


todos os seus atos. Não era uma provocação, nem tampouco o


Senado era um tribunal.
Recolhera-se à vida particular e não precisou esperar que o
capim lhe nascesse à porta, conforme a tradição dos políticos decaí-
dos. Já havia bastante capim em torno dele, criara-se naquele
capim rasteiro e generoso que alimentava o gado e, macio, igual,
ondulava nas coxilhas, tapete de gigantescas dobras. Satisfazia-se
com sua vida frugal, solitária, sabia que aquele tipo de existência
parecia aos outros um abandono, uma decadência, até mesmo um
castigo. Mas gaúcho vive assim mesmo, na aspereza de seus hábi-
tos, de sua rusticidade desconfiada e consciente.
Aquela era a vida de seus antepassados, misto de guerrei-
ros e pastores, submetidos às incertezas de uma terra onde as
fronteiras naturais eram desprezadas e criavam-se outras, em
Madri ou em Roma. No território das Missões Ocidentais não
havia lugar para o conforto, muito menos para o luxo. Todos se
habituavam aos perigos que ora surgiam do Rio Uruguai, ora do
próprio litoral.
A fertilidade dos campos atraiu os jesuítas espanhóis, que
ali fundaram – ou pretenderam fundar – uma civilização à parte.
Os Sete Povos das Missões, dos quais São Borja é o mais antigo,
serviram de cobaia a uma experiência social e econômica de que
só a audácia do jesuíta seria capaz. Mas os portugueses consegui-
ram, gradativamente, empurrar o paralelo de Tordesilhas cada vez
mais para dentro do continente e, de uma hora para outra, o que
era campo de gado virou campo de batalha – ali, a expressão não é
uma figura de retórica, é uma experiência vivida e carnal.
Depois vieram os farrapos, os paraguaios, o cerco de Esti-
garríbia, a vila saqueada, os campos devastados. E vieram os
homens de Gumercindo Saraiva. Enfim, o são-borjense, como os
demais povos missioneiros, guerreava e cuidava do gado, sem
tempo nem gosto pela comodidade. Um fogo para as noites de frio,
um teto, um pedaço de carne bastava.
A fisionomia pastoril e guerreira fora, mais tarde, modifi-
cada pela emigração que Portugal destinara ao remoto continente de
São Pedro – o Rio Grande do Sul não merecia sequer a classificação
 “Levai-me convosco!”

de província. Vieram os açorianos – sem dúvida, o melhor coloni-


zador que o Reino enviou ao Brasil. Trouxeram a agricultura, a lín-
gua, a religião e o laço com o restante do Império.
Sim, o Império mantinha um posto avançado às margens
do Rio da Prata: a Colônia do Sacramento. Na realidade, era uma
posição apenas simbólica, não representava nem uma ocupação
nem uma proteção contra a concentração espanhola de Buenos
Aires. Entre Sacramento e Laguna (a última ponta do Império bra-
sileiro) havia uma vasta terra de ninguém; ia-se do Rio da Prata
até Laguna sem se atravessar cinco porteiras.
Os açorianos disciplinaram e disciplinaram-se. Quando
Saint-Hilaire visitou a região, escreveu um hino de louvor que o
historiador Carlos Reverbel acusa de responsável pelo narcisismo
do gaúcho: “Os homens que vi em São Borja” – diz Saint-Hilaire –
“são notáveis por sua grande estatura, brancura de pele, tamanho
e beleza dos olhos. Há neles um ar audacioso e resoluto, de causar
admiração. Vestem-se como os habitantes de Montevidéu e têm a
aparência dos vilões de melodramas”.
O retrato não se aplicava a ele: era baixo e nada fazia pre-
ver que tinha o ar de um vilão de melodrama. Ao fim da vida,
num gesto de audácia e de resoluta grandeza – nisso Saint-Hilaire
acertou em relação a ele –, seria o principal ator de uma tragédia
que abalou o país e comoveu o seu povo.

•••

Desde rapaz habituara-se a ouvir o som do minuano açoitando as


coxilhas. Acostumara-se àquele zumbido que convida ao fecha-
mento da alma e ao enrijecimento do corpo. Nos silêncios do iní-
cio da velhice, meditava sobre sua vida. Um dia confessou a seu
antigo secretário, Luís Vergara, que o fora visitar em Itu:
– Não consegui realizar muita coisa à frente do país. Gastei
o tempo inutilmente, carregando água em cestos.
Eram momentos de depressão. Mas era forte e se erguia.
O saldo lhe era favorável, ele confiava em que a História o absolveria
de erros e enganos. Mesmo assim, sentia que faltava alguma coisa.


Tivera uma oportunidade que a poucos homens era dada. Gover-


nara um país imenso, cheio de possibilidades, e o despertara para
algumas de suas realidades e para o seu futuro. Isso custara san-
gue, lutas, sacrifícios.
Pior mesmo, custara períodos de responsabilidade máxima
para si e de irresponsabilidade para todos os demais – e houve
torturados e torturadores, exilados e delatores –, um desfile
repugnante que todas as ditaduras acobertam e são obrigadas a
estimular. Por tudo isso não há ódio nem ressentimentos em seu
coração, mas também não pode haver alegria. Ele dissera, certa
vez, que “só há uma força permanente capaz de construir para a
eternidade – é o amor”. Essa frase, burilada por outros ou por ele
mesmo, tinha agora uma forma definitiva: “Só o amor constrói
para a eternidade”. De que forma ele amaria para a eternidade?
A frase era conseqüência das antigas leituras de Ésquilo:
“A violência gera a violência”. Fora pronunciada na Assembléia
gaúcha, quando ele, como líder da maioria, discursava na sessão
em que se comemorava o fim da guerra de . Sim, a violência
gera a violência, e ele fora obrigado a gerar violências.
Na véspera, recebera carta de um amigo. Costumava cha-
mar esse amigo de Daniel*, pois era seu emissário freqüente à cova
dos leões famintos que rodeavam o poder. Esse amigo – e alguns
poucos mais – era contra o seu regresso à presidência. Escrevera-
lhe uma carta pesada, quase sinistra:
“Os liberticidas são sempre sacrificados. O senhor escapou
da primeira, não escapará da segunda.”
A ameaça era clara, mas não o incomodava. A carta falava
em César, em Brutus, a cena sempre repetida – na vida e no palco –,
o sangue dos liberticidas sendo lavado de um chão e fecundando
em outro, até novo punhal.
A carta fizera-o lembrar-se de uma bobagem a que um
amigo o obrigara: uma espécie de astrólogo ou de profeta, nem ele
sabia mais, tomara a data e hora de seu nascimento, as impressões

* José Maciel Filho, o mesmo que em agosto de  deu o texto final à carta-testa-
mento divulgada após o suicídio de Vargas.
 “Levai-me convosco!”

digitais, a assinatura, e mandara depois o resultado. Apesar de o


Dasp não ter criado nenhum cargo de profeta nos quadros da
nação, o cidadão candidatou-se a um, tentando bajular o dono do
país. Disse que, em outras gerações, ele havia sido Demóstenes,
Henrique iv, Danton e Lincoln.
Na ocasião, não ligara para aquilo. Mas, na véspera, ao rece-
ber a carta, lembrara-se daquela sucessão de nomes e de um deta-
lhe que lhe havia escapado: todos eles haviam tido morte violenta.
Por ora, e em relação a seu período ditatorial, ele tinha
explicativas. Confiava em que a História encontrasse as justifica-
tivas. A opção em que se encontrara, em , era cruel: tinha de
escolher entre um golpe político para a direita radical e um golpe
militar em que pudesse manter, no espaço que os generais lhe
destinassem, o liberalismo progressista que lhe era inato e no
qual acreditava.
Na verdade, ele recebera fatalisticamente todas as imposi-
ções do destino. Fora delegado de Borges de Medeiros no governo
do Rio Grande do Sul e só com muita astúcia e coragem conse-
guira neutralizar a pesada fiscalização do velho cacique. Basta
lembrar que Borges, num eventual hiato do poder, quis prender o
governador Carlos Barbosa por “desobediência partidária”: o
chefe do partido era Borges.
Mais tarde, fora delegado dos conspiradores militares e
políticos que, quase à sua revelia e quase contra a sua oposição, o
colocaram na chefia de uma revolução cujo conteúdo e cuja forma
eram heterogêneos e primariamente concebidos. Assumindo o
poder, fora delegado dos tenentes que haviam ganho a revolução
e de seu heterônimo civil, o Clube  de Outubro.
Delegado dos políticos mineiros e gaúchos no período
constitucional e, finalmente, delegado das forças armadas, em
, quando alguns generais e um jurista mais ou menos sem
emprego sentiram que só um golpe de estado restabeleceria a
classe militar dentro da hierarquia e da disciplina, subvertidas
por mais de quinze anos de revoltas e revoluções.
A Carta de , vulgarizada pelo nome de polaca, tinha um
artigo, o , que permitia a remoção ou demissão de qualquer


funcionário. Era a arma cruel de que dispunha o poder para


livrar-se de qualquer recalcitrante. Ninguém tinha direito de con-
tinuar na função, não havia estabilidade nem tempo de serviço.
Ele fora um funcionário por mais de quinze anos – tinha
direito de continuar em serviço. Mas, no dia em que o poder jul-
gou-o desnecessário ou nocivo, aplicou o mesmo artigo  contra
ele: foi removido. Saiu do governo sorrindo. Amargo, mas sor-
rindo. Anos mais tarde – e sem o saber agora – ele sairia morto.

•••

O pequenino avião pousou na pista de São Vicente. Lá de cima, ele


viu outros aviões parados, carros, cavalos, a multidão o aguardava.
À sombra dos sinamonos, as vastas mesas armadas pelo seu amigo
João Goulart. A pista era macia, bem gramada – tão diversa da aci-
dentada e precária pista que tivera de construir em Itu, para pou-
par, pelo menos, os acidentes que lhe dariam mais trabalho que dor.
Vieram os primeiros abraços. João Goulart aproximou-se,
naquele andar que um defeito físico tornava estranhamente simpá-
tico e frágil. Abraçaram-se, sem muita efusão. Goulart percebeu
que o amigo vivia um drama cuja intensidade ele apenas pressen-
tia; conhecia-o razoavelmente para adivinhar que ele ainda lutava.
Estava de paletó e gravata, o colarinho desabotoado, indumentária
bizarra para o gaúcho João Goulart, mas não tivera tempo de trocar
de roupa: gastara a noite em reuniões, em viagens pelos municípios
vizinhos. Sentia-se deslocado em sua própria casa.
O vento, agora mais suave, quase imperceptível, trazia o
cheiro da carne chamuscada. Nas mesas mais distantes, alguns
desesperados já tinham iniciado a comilança. Os abraços se suce-
diam, os conselhos não pedidos, as sugestões que vinham invaria-
velmente com cada abraço:
– Não nos deixe na mão!
O problema da maioria daquela gente era a própria sobre-
vivência política. “Não nos deixe na mão.” Precisavam dele, ape-
nas isso. Mas ele? De que forma precisaria novamente do poder?
Para provar o quê? Demonstrar que capacidade?
 “Levai-me convosco!”

Para abreviar o desfile dos abraços – que a multidão tornava


em verdadeiros empurrões –, ele segurou no braço de João Goulart
e de Epitácio Pessoa Sobrinho, conduzindo-os para a mesa central:
– Vamos ao boi!
Samuel Wainer, que não era gaúcho nem nada, lembrou,
por cima do ombro: havia também ovelha. Os judeus e gaúchos
têm, de seu passado pastoril, uma coisa em comum: gostam de ove-
lhas. Wainer se promovera, um dia, em cão-pastor daquela ovelha
apetitosa que trazia, nas dobras de suas lãs, o aconchego do poder.
Ele respondera a Wainer:
– Cão-pastor que prova sangue de ovelha, só matando.
Era um ditado gaúcho que continha a sua verdade.

•••

Por pior que estivesse a situação, o apetite era sempre o mesmo.


Começou a servir-se e recusou o pedaço de costela que um peão de
São Vicente lhe ofereceu. Tão logo o peão sumiu às suas costas,
surgiu à sua frente um outro pedaço, bem chamuscado, como ele
gostava. Olhou de lado e viu, pela primeira vez naquele dia,
aquele crioulo que praticamente nascera em casa dos Vargas, filho
de uma empregada.
Estranhou:
– Tu por aqui?
Gregório estava habituado a ouvir aquela frase – e, na rea-
lidade, não se incomodava mais com ela. De há muito que o patrão
lhe dava indiretas que não eram tão indiretas assim, ele as enten-
dia muito bem. Mas Gregório tinha como razão de sua vida, até
então, uma única e obstinada causa: proteger a integridade física
daquele homem que, constantemente, e cada vez mais, o repelia,
sem contudo livrar-se dele.
Em , Gregório sumira. Funcionário da polícia gaúcha,
foi destacado para trabalhar em Torres, bem longe das coxilhas, no
litoral. Vez por outra aparecia, dava os bons-dias, perguntava pela
saúde do patrão – pergunta aliás desnecessária, o patrão ia sempre
bem –, rondava Itu, até que outra vez sumiu e por longo tempo.


Quando começaram as caravanas, Itu transformada em


Meca, em oráculo, os romeiros assanhados trouxeram aos pampas
um cheiro antigo e sedutor. Gregório queixara-se, um dia, de seu
forçado exílio em Torres:
– Passei no Rio tanto tempo e saí de lá com as mãos aba-
nando. Não tive dinheiro nem para comprar um campo.
Um campo é importante para o gaúcho. Equivale, em ter-
mos de pequena burguesia carioca, a ter uma criação de galinhas
em Jacarepaguá. Ou em termos de operariado, a possuir um apar-
tamento no conjunto proletário do bairro. O campo dá, ao traba-
lhador rural dos pampas, a dignidade de um status; tem onde cair
morto, venceu na vida. Pois Gregório, tantos anos dentro do
Catete e do Palácio Guanabara, nem um campo tinha. Vivia de um
emprego quase sórdido, longe de suas coxilhas natais.
A experiência lhe servira. O patrão tinha fazendas, quando
perdeu o emprego federal voltou para o que era dele. Ele voltou ao
nada, de onde saíra. A questão, agora, era ter outra oportunidade.
Pois os romeiros despejavam-se dos aviões, trazendo
aquela agitação que Gregório tão bem conhecia. Era tempo de
agir. Encerrou sua vida de policial gaúcho e acampou com suas
malas e sonhos em Itu.
Benjamim Vargas, que em  fora responsável pela requi-
sição de Gregório para trabalhar na guarda do presidente, notara a
sua presença naqueles últimos dias em Itu. Observara ao irmão:
– O Gregório não é mais preciso. Tu serás um presidente
constitucional, não necessitarás de guarda pessoal. As forças
armadas são pagas, inclusive, para isso: proteger o chefe da nação.
O irmão não respondera. Depois de um silêncio, como se
voltasse a assunto sem importância, disse:
– Parece que ele quer ir. Como é que vou mandá-lo embora?
Nunca o mandou embora, aliás mandou-o um dia, mas
demasiadamente tarde. E agora ali estava o crioulo, leal e presta-
tivo, com sua afiada faca de cabo lavrado, a cortar as melhores
fatias de macias carnes. Como repudiar tamanha dedicação?
Durante tantos anos tivera-o a seu lado e nem os seus mais ranco-
rosos inimigos acusavam o negro de nada, nenhum escândalo,
 “Levai-me convosco!”

nenhum roubo, nenhuma falta de respeito. Se Gregório fosse ba-


charel, dar-lhe-ia um cartório e pronto. Mas o crioulo só sabia
fazer poucas coisas – e as fazia demasiadamente bem, até prova
em contrário.

•••

Antes mesmo de a carne acabar, começaram os discursos. A tarde


principiava a cair sobre as coxilhas, ele soprava baforadas, longas
e espaçadas, de um charuto que aos outros parecia sempre do
mesmo tamanho.
Olhava os campos de seu amigo Goulart, terras bem melho-
res que as suas. Itu era areia, com uma frágil camada de terra
coberta pela gramínea sempre igual dos pampas. Não tinha consis-
tência. Numa quadra de sesmaria criava, quando muito, de trinta a
quarenta bois, enquanto, em outros campos, havia sustento para
cem, cento e vinte bois! Em sua outra fazenda, a Santa Amélia, às
margens do Ibicuí, havia boa terra, mas era um campo pequeno,
que ele estava pagando ainda: era sonho antigo ter um pedaço de
terra banhado pelo rio das cantigas e das lendas gauchescas.
Já o seu amigo Goulart herdara alguns dos melhores cam-
pos da região. E, além da herança, sabia comprar terra e gado; com
a pouca idade que tinha já era um dos grandes estancieiros do Sul.
“Se a política não o estragar” – pensou – “será o mais rico
fazendeiro daqui. Mais que Otaviano Pereira. Mais que todos os
Vargas juntos. Mais que os Escobares, que os Silvas, de Uru-
guaiana.”
O diabo era a política. Ele também se reduzira a um lugar
modesto na hierarquia local. Seu irmão Protásio e seu sobrinho
Omar haviam feito o possível durante os anos de ausência. Agora
seu filho Maneco ajudava, era formado em agronomia, curso em
Piracicaba, entendia do assunto, sabia fazer render um campo,
não se limitava ao gado, plantava trigo, já pensava no linho; São
Borja, em breve, seria o maior produtor de linho do Brasil.
Os anos de separação trouxeram-lhe a falta de estímulo cam-
pestre – e ali estava, velho já, ouvindo discursos mais ou menos


interesseiros, dono de alguns hectares de terra ruim, de pouco


gado. Não era um falido – estava longe disso – mas não podia gozar
agora de situação mais tranqüila. Seus bens cresceram apenas vege-
tativamente, só podia se considerar rico pela valorização gradativa
e inexorável das terras; no mais, estava até endividado.
E se aceitasse aquela candidatura? Com que dinheiro cus-
tearia a sua participação pessoal na campanha? O partido ficaria
com a maior parte dos encargos – o problema era bem mais do
partido do que dele. Mas assim mesmo, muitas despesas teriam de
sair de seu bolso. O remédio era apelar para o crédito, endividar-
se mais ainda, que as reservas eram poucas: vivia dentro de um
orçamento restrito aos gastos de Itu e quando havia lucro – a safra
de lã fora razoável no ano passado – ele investia em benfeitorias,
que Itu não era nenhum modelo, necessitava de máquinas, de
uma porção de pequenas coisas cuja falta o obrigava a uma explo-
ração quase mesquinha da terra.

•••

Um orador, gaúcho dos antigos, trouxe retórica ao churrasco. No


tom e no conteúdo falou à alma gaúcha, que era a maioria ali –
apesar da presença de Samuel Wainer, que se esforçava, agora, em
não queimar a língua com o chimarrão que lhe serviram. Wainer
talvez preferisse um Cointreau, generosamente destilado em velhas
caves européias. Mas, até chegar ao Cointreau, tinha de engolir
muito chimarrão pelando.
Não há gaúcho que resista aos chavões que se formaram ao
longo de suas lendas e lutas, nascidas confusamente em Martín
Fierro, de José Hernández, ou em Antônio Chimango, de Ramiro
Barcelos. “Centauro dos pampas!”, “Monarca das coxilhas!” Por
mais repetidos que fossem, eram bons de ouvir.
Ele superara esses chavões, federalizara-se política e lite-
rariamente, chegara até a entrar para a Academia Brasileira de
Letras. Dominava uma oratória sóbria, mais técnica que emocio-
nal. Mesmo assim, prestou atenção e ficou sabendo que estava
oficialmente lançado por um partido político para a próxima
 “Levai-me convosco!”

sucessão presidencial. A vida dera algumas voltas e ele, agora,


tinha de reiniciar o longo caminho que já percorrera – e do qual
estava, não arrependido, mas farto.
No fim dos discursos, teria de falar, encerrando o chur-
rasco e a convenção. Agradecendo os votos de feliz aniversário e
aceitando ou não a sua indicação. Não tinha mais tempo nem ter-
reno para manobrar. Não havia retaguarda agora, somente futuro
– e futuro próximo.
Sem saber como, lembrou-se de uma cena de dias atrás.
Estava em Itu, sozinho, regando as mudas de pau-brasil que plan-
tara na véspera. Não percebeu que um visitante chegava, o dr.
Sírio Trois, marido de uma sobrinha de sua mulher. Quando se
virou, notou que o médico o observava em silêncio e havia muito.
Para se desculpar, ele disse uma frase:
– Essas árvores só farão sombra daqui a duzentos anos.
O médico o surpreendera e ele teve a incômoda sensação
de ter sido violado em sua intimidade.
O médico não disse nada, mas saiu dali com uma certeza:
– Ele voltará!

•••

O último orador atacou a peroração. Relembrou feitos do governo


que se encerrava em , falou nos trabalhadores, nas mulheres e
nas crianças do Brasil. Notou que o orador dizia Getúlio e mais
uma vez meditou sobre os dois nomes que tinham ficado na boca
do povo. Um quase íntimo, matreiro, que se dizia com carinho,
mas sorrindo: Getúlio. O outro, mais solene, o antigo dip se esfor-
çava bravamente para tornar o Vargas em vargas. No fundo, ele
era uma mistura dos dois nomes, com mais um, ainda por cima,
que geralmente era omitido: Dornelles.
Os Dornelles de São Borja! Seu pai, o então capitão Vargas,
caçando durante o dia Dinarte Dornelles e, à noite, namorando a
irmã desse mesmo Dornelles! Ele nasceria desse casamento, dessa
união impossível de Dornelles e Vargas, Montecchios e Capuletos
de uma Verona pampeira, chimangos e maragatos, republicanos e


federalistas, uma tradição de guerras e degolamentos, de ódios e


extermínios.
No dia em que Manuel Vargas casou-se com Cândida Dor-
nelles, ruiu o velho sistema político do Rio Grande do Sul. Os de-
goladores de  – e com mais razão os degolados – deveriam ter
dado voltas nos túmulos rasos que marcam as coxilhas com cente-
nas de cruzes rústicas e antigas.
Ele era fruto físico e político dessa união. Não tinha diante
de si apenas um destino. Tinha uma missão.

•••

Às vezes, o orador o chamava de Vargas. Ele sentia a dicotomia em


seu passado e em sua vida, explícita nessa simples troca de nomes.
Havia um Getúlio e havia um Vargas. Um que talvez tivesse gasto
o tempo inutilmente, carregando água em cestos. Outro que lutara
como um garrote ferido pela siderurgia, pela admissão dos traba-
lhadores ao estado moderno que pretendera criar. Falhara em
parte: o seu estado moderno não passara do estado Novo. Mas
acertara no todo: erguera a estrutura maciça de uma nação a pre-
parar-se para o seu futuro. Ouatros homens viriam, após ele, que
prosseguiriam na obra começada e a desenvolveriam com oti-
mismo e grandeza, sem necessitar dos apelos de força, nem vio-
lentar as liberdades essenciais de uma geração inteira.
Por isso, talvez aproveitasse a oportunidade que se abria à
sua frente. Precisava unir as duas partes de sua personalidade his-
tórica. Seus adversários o davam como metido em conluio com
Perón, ditador na Argentina, visando o massacre geral de toda a
América do Sul. Outros o acusavam de ter aderido ao comunismo,
de manter uma intrincada rede de ligações com Moscou. Eleito,
daria o tiro de misericórdia nas classes conservadoras, na burgue-
sia, instauraria o regime socialista à força bruta, com as cadeias
cheias, fuzilamentos e extermínios em massa, inspirados ao
mesmo tempo em Stálin e Hitler. Outros, os mais brandos, o acu-
savam de estar conspirando, de preparar nova revolução para
fazer de Dutra um novo Washington Luís.
 “Levai-me convosco!”

No fundo, falta de imaginação – mais isso que perversi-


dade – de seus adversários.
Sua ascensão fora sempre fruto de união. União de chiman-
gos e maragatos, em . De Minas e Rio Grande do Sul, ainda em
 e . Por que não unir-se uma vez mais? Realizara muitas
coisas, mas faltava em sua vida e em sua obra um fecho, um testa-
mento que servisse de presença e estímulo a um povo que durante
tantos anos dependera dele. Teria de violentar a História, ainda
que se violentando.
O orador acabou. Ele tinha preparado um discurso para
responder à homenagem. Meteu a mão no bolso errado e tirou a
carta que recebera na véspera. Lembrou com apreensão a frase
que tanto lhe doera, “os liberticidas serão sacrificados, uma se-
gunda vez será fatal”. César e Brutus, quantas vezes a cena não
seria repetida?
De repente, como um raio que lhe estremecesse a carne,
ele teve um clarão: e se unisse César e Brutus num só braço, Getú-
lio e Vargas num mesmo gesto?

•••

Continuou procurando nos bolsos, talvez tivesse esquecido o dis-


curso em Itu. Vendo-o em dificuldade, Gregório aproximou-se,
perguntou-lhe em voz baixa se precisava de alguma coisa. Ele
afastou Gregório com um gesto discreto e enfrentou, trágico e
consciente, o seu destino:
– Levai-me convosco!
2
a savana verde

O gaúcho não é um brasileiro nato: é brasileiro por escolha, por von-


tade e por luta. Não se compreenderá a personalidade humana e
política de Getúlio Vargas sem antes retrocedermos à história do
antigo Continente de São Pedro, esquecido e desprezado pelo Império
e hostilizado pela incipiente República. Getúlio Vargas – e o que ele
representou – consolidou a integração do gaúcho na comunidade bra-
sileira. E como acontece nesses casos, o elemento causador dessa
integração tinha de ser, ao mesmo tempo, a tese e antítese dos com-
ponentes dissociados. Para atingir a síntese, Getúlio tinha de ser
simultaneamente o gaúcho e o antigaúcho.
Quando cheguei em São Borja, numa tarde quente de março,
assustei-me com os homens armados que andavam pelas ruas da
cidade. Afirmaram-me que “esse tempo está passando” mas ainda
há muito gaúcho acintosa e desnecessariamente armado. No hotel,
procurando o bar para um drinque, vi chegar um cidadão curiosa-
mente parecido com o ex-presidente Arthur da Costa e Silva, só que
com as bochechas mais coradas. Vestia a caráter: bombachas, lenço
ao pescoço, tudo. Inclusive dois baitas revólveres na cintura. Um


ficou no coldre. O outro, ele fez um gesto para colocá-lo em cima da


mesa, mas logo o recolocou no coldre. Até que deu de cara comigo,
prudentemente espremido num canto do bar. Olhou-me – uma fisio-
nomia nova é sempre uma ameaça em potencial – e, pelas dúvidas,
tirou o revólver e o colocou em cima da mesa, o cano mais ou menos
voltado em minha direção.
O uísque já não era grande coisa e com aquele arsenal apon-
tado para mim ficou pior. Levantei-me, fui à portaria, perguntei ao
gerente se todo mundo andava assim. O homem me respondeu que
andava quem queria, a maioria já “não era disso”, mas havia
recalcitrantes.
– E os jovens? – perguntei.
Bem, a juventude já não se reconhecia naqueles tipos estra-
nhos que dia a dia diminuíam, presos mais a um exotismo folclórico
que propriamente a uma necessidade. Pensam os jovens em outras coi-
sas, estudam, ouvem o rádio, compram os discos do momento;
Roberto Carlos estava fazendo pela integração nacional muito mais
que o duque de Caxias, o Pacificador. Evidentemente um homem como
aquele do bar era impermeável a Roberto Carlos, ao radinho de pilha.
Isolava-se, formava uma ilha no arquipélago humano do Sul.
Apesar de saber que a maioria já havia aderido aos sadios
postulados da civilização cristã e ocidental via Roberto Carlos,
decidi agir com cautela em minhas andanças por São Borja. Soube
que um ex-elemento da guarda pessoal de Vargas tinha agora um
varejo de cigarros, material elétrico de emergência e outras inofensi-
vas quinquilharias. Fui até lá. Atrás do balcão, vi um homem silen-
cioso e de cara amarrada, que ficou mais amarrada ainda quando
me viu. Comprei fósforos e disse a que vinha, fazendo uso de uma
cordura bem rara em mim. O homem me encarou, sem raiva, mas
sem nenhuma condescendência. Disse-me três coisas:
] Não gostava de perguntas;
] Não gostava de falar com estranhos;
] Dava-me um conselho: que eu fosse embora o mais de-
pressa possível.
Agradeci o conselho e estava disposto a segui-lo, cheguei a
pensar em ir à agência da Varig para marcar regresso no avião do
 A savana verde

dia seguinte. Mas desisti. Em princípio, não sou corajoso, Deus é tes-
temunha de minhas covardias. A coragem é a mais perigosa das vir-
tudes e não sou dado a cultivar nem virtude nem perigos. Voltei da
porta. Joguei a caixa de fósforo em cima do balcão e pedi o meu
dinheiro de volta. O homem me olhou com espanto – percebeu que eu
o provocava. Respondeu que não era costume devolver o dinheiro.
Insisti. O dinheiro era meu e eu o exigia. Ele foi à caixa registradora
e de lá retirou a mesma cédula que eu lhe tinha dado. Perguntei onde
mais vendiam fósforos naquela cidade e ele me indicou com o queixo
uma porta em frente à sua. Atravessei a rua e comprei fósforos na
loja rival. Havia cadeiras junto à porta, sentei-me numa delas e
esperei pelos acontecimentos. Meia hora depois ele atravessou a rua
e me perguntou se eu era do Rio, se era da polícia. Respondi que era
do Rio mas com a polícia mantinha relações apenas inamistosas.
Perguntou-me se eu conhecera Getúlio Vargas. Disse-lhe que não.
– Eu sei pouca coisa...
Mas esse homem não precisava falar mais nada. Já me havia
revelado uma coisa importante: o gaúcho é tímido, quase medroso.
Dito assim, pode parecer uma provocação gratuita ao povo
gaúcho que tem justificada fama de valente. Mas a verdade é que o
gaúcho, em seu primeiro estágio psíquico, é tímido. Tal como o
mineiro. Apenas, no caso do mineiro, superada a timidez ele parte
para a astúcia. O gaúcho parte para a coragem, não raras vezes
para a valentia.
Folheei no Foro de São Borja – buscava indícios da passagem
do advogado Getúlio Vargas pelo foro local – muitos processos de
crime. Eis um caso: o cidadão entrou no botequim e pediu uma
bebida. Enquanto esperava, olhou em volta e deu com um sujeito no
fundo da sala, escondido nas sombras da última mesa. Veio a bebida
e ele preparou-se para beber. Enchia o copo quando alguma coisa,
talvez a semelhança do sujeito com algum conhecido, obrigou-o a
olhar novamente para trás. Encararam-se por um tempo, até que o
cidadão notou que se havia enganado. Voltou à bebida, acabou de
encher o copo e levou-o à boca. Não chegou a molhar os lábios: dois
tiros o abateram. O criminoso não fugiu. Disse à polícia e ao juiz
que o estranho o havia olhado duas vezes. Era uma razão.


Passei alguns dias olhando o chão, só levantava a cabeça


em casos de extrema necessidade. Até que encontrei o motorista
que me levou à fazenda do Itu, duas horas de viagem em direção a
Itaqui. O motorista me informou que não há habitante daquela
zona, com mais de quarenta anos de idade, que não tenha o seu
caso de morte. O motorista era homem de seus quarenta e cinco
anos e isso me intranqüilizou um pouco. Mais tarde, o sr. Benja-
mim Vargas contestou essa informação, disse que era exagero.
Mas a verdade é que o motorista ia me apontando as cruzes finca-
das no meio da estrada, ou perdidas em plena coxilha. Dava
nomes, datas e causas. Parecia um cicerone romano mostrando as
ruínas do Forum ou do Coliseu: “Aquela ali foi o compadre Juve-
nal. O desgraçado roubou um cavalo do primo. Ali foi o Eudóxio,
era parente de minha primeira mulher. Foi a faca”. Mostrou-me
um trecho de estrada: “Aqui o Gregório matou uns argentinos. Foi
há muito tempo, eu era menino”. Até que o dedo do motorista
apontou o capão que fazia uma sombra verde-escura no horizonte:
“Ali fui eu”.
Não era agradável a idéia de fazer tão longa viagem pelas
coxilhas desertas ao lado de um homem que já tinha matado outro.
Fiz que não ouvi ou que não entendi, mas ele insistiu: “Foi o meu
primeiro caso de morte. Um soldado que me desfeiteou. Passei-lhe a
faca e fui absolvido”.
O inquietante na afirmação é que ele havia falado no pri-
meiro, era elementar a dedução de que havia outros casos de morte.
– E o outro?
– Bom, no outro eu peguei dois anos.
– Foi dinheiro? Mulher?
– Nada disso. Não se mata ninguém por isso. Foi um agravo.
Agravo. A palavra mágica que provoca e redime o crime de
morte. Em geral, não há ladrão naqueles pagos. Respeita-se a pro-
priedade alheia, um ladrão de cavalo é pior que um assassino de
homens. E o crime dito passional também é raro, a honra do homem
não está na mulher dele, está nele mesmo, em sua cara, é uma coisa
quase que física. Daí a importância, o malefício e a complexidade
do agravo.
 A savana verde

Mais tarde, compreendi que havia razões históricas para


justificar esse horror ao agravo. E também para explicar essa fami-
liaridade, essa promiscuidade com o assassínio, que ali não chega a
ser um crime. É um caso.

•••

 de outubro de . Ele abre a janela que dá para o sol. O quarto


está escuro e, embora ele não o perceba, impregnou-se do cheiro de
fumo. Em Santos Reis, onde passara os primeiros tempos de recolhi-
mento, após sua deposição em , até hoje o seu sobrinho Omar
sente o cheiro do charuto impregnado nas paredes de um quarto
que quase nunca é aberto. Mas em Itu o cheiro não ficaria para sem-
pre. Ele mesmo abre as janelas todas as manhãs, é a primeira coisa
que faz ao acordar. Gosta de olhar os campos, a casa não é alta mas
as coxilhas são planas e longas, de sua janela ele tem uma vista igual
à de um marinheiro que acorda em alto-mar e olha o horizonte.
Aquele é um despertar importante. É seu último despertar
na savana natal. Ele não sabe disso agora – sabe apenas que tão
cedo não abrirá aquelas janelas para ver os campos e o sol nascido
do ventre das coxilhas amanhecidas. Na véspera, fizera de carro os
noventa quilômetros que separam Itu da cidade de São Borja, fora
cumprir aquilo que um lugar-comum dos jornais e dos oradores de
comício chama de “dever cívico”.
Ele afirmara, há tempos, que voto não enchia barriga de
ninguém. Tecnicamente, a frase podia ser correta, mas hoje ele não
a pronunciaria, ainda que tecnicamente certa. Já explicara, no
Senado, num breve aparte, que sua intenção ao proferir essa frase
fora outra. Queria dizer que a democracia não se realiza simples-
mente através do voto, que a existência do voto e da liturgia elei-
toral não basta para caracterizar uma democracia. Bem verdade
que ele acabou por suprimir a própria democracia, mas tinha suas
explicações e confiava que a História, um dia, justificasse o longo
hiato ditatorial em que espremera a nação.
Hoje começariam a aparecer os resultados e ele desejava
aproveitar a trégua aberta na agitação daqueles últimos dias.


Foram todos votar em seus respectivos distritos, deixaram-no


sozinho, no dia seguinte reapareceriam. Em caso de derrota,
seriam poucos e breve sumiriam para sempre. Mas em caso de
vitória não teria mais sossego, o remédio era emigrar, bater à porta
de Batista Luzardo, na Estância São Pedro, em Uruguaiana. Lá fi-
caria preso apenas aos amigos do dono da casa, por muitos que
fossem seriam em menor número que os de Itu.
O quarto é amplo, móveis rústicos, não fosse a maciez da
cama, que se adivinha no grosso colchão abafado de cobertas, e
pareceria a cela de um cenobita. O banheiro, ao lado, é tão grande
e largo quanto o quarto, mas sem aquecimento; no inverno, os
ladrilhos brancos ficam embaciados de frio. As malas estão pron-
tas, não leva quase nada. Se sair vitorioso nas urnas, terá de enco-
mendar novos ternos, nos cinco anos de Itu engordara vinte e três
quilos, seu guarda-roupa resumia-se a dois ternos batidos na cam-
panha eleitoral. O chefe de seu partido, Danton Coelho, ficara de
enviar o alfaiate De Cicco ao Sul, para tomar as medidas e provi-
denciar o novo guarda-roupa. Eram precisos ternos, e uma casaca
nova para a cerimônia de posse, a recepção aos embaixadores
estrangeiros, o jantar no Itamarati.
A idéia de trazer o alfaiate ao sul talvez fosse otimismo
exagerado do chefe do partido; normalmente, se ele saísse eleito
pelas urnas, teria assegurada a posse, mas seus adversários esta-
vam apenas amansados pela perspectiva de uma vitória eleitoral:
em caso de derrota ressurgiriam assanhados e famintos.
Mas com otimismo ou sem ele, o fato é que um empregado
da fazenda havia acabado de pegar um noticiário no rádio: muni-
cípios do Paraná, de Pernambuco e de São Paulo já tinham encer-
rado as apurações, sua margem de vitória era ampla. Nos grandes
centros, a Justiça Eleitoral só começaria o trabalho ao meio-dia,
mas era justamente nesse eleitorado que ele mais penetrara.
Quando soube desses primeiros resultados, inconsciente-
mente voltou à janela, para olhar os campos. Sim, era uma despe-
dida. Quando regressasse, dali a cinco anos, seria bem mais velho,
talvez não tivesse interesse ou energia para cavalgar pelos pam-
pas. E se ele não voltasse? O que lhe reservaria o destino, que para
 A savana verde

ele era apenas fatalidade, e ao qual se ligava por plácida e apática


submissão? Quantas vezes, em seu passado, ele não se despedira
daquela paisagem, em situações também difíceis, ou mais difíceis
ainda, e acabara sempre retornando?
Sua primeira separação da terra natal foi em criança,
quando seguiu com seus irmãos, bem mais velhos que ele, para
Ouro Preto, cursar os preparatórios. Foi para demorar muito, aca-
bou ficando pouco. Houve um incidente – que seus adversários
até hoje exploravam. Numa briga entre estudantes paulistas e
gaúchos, uma troca de tiros, cai morto um rapaz de São Paulo, de
nome Prado. Seu irmão mais velho, Viriato, é acusado, preso, pro-
cessado e finalmente absolvido. Mas o general Vargas surge em
Ouro Preto e leva dali os filhos.
Na época, o incidente ficou encerrado com o processo, e
muitas águas rolaram até que a briga dos estudantes foi revolvida
de todos os ângulos. Seus adversários chegaram a alegar que ele,
menino de treze para quatorze anos, havia matado a tiros um rapaz
muito mais velho, num episódio do qual não participara, pois a
briga se limitara aos alunos dos cursos superiores. E mesmo que ele
quisesse não poderia freqüentar a roda dos mais velhos – praxe
estudantil que até hoje vigora em Ouro Preto e em outros lugares
do mundo. Seus adversários também acusaram o general Vargas de
ter subornado a Justiça e, em especial, o juiz. Mas a realidade é
que o pivô do incidente fora seu irmão Viriato – e tudo começara
com um açucareiro derramado num bar, o tradicional agravo.
Apesar disso, o incidente marcara – fora o seu primeiro
contato com a tragédia e com o sangue. Anos mais tarde, o inci-
dente de Ouro Preto seria lançado em seu rosto como um estigma.
Mais: como uma vocação.
Vieram outras separações. O curso de Direito, em Porto
Alegre. Lia-se Nietzsche, Zola, Comte, Spencer, e, necessaria-
mente, a dupla infausta de toda uma geração: Eça e Anatole. Ele
lia Raul Pompéia, sabia de cor diversos trechos de O Ateneu, admi-
rava não apenas a obra mas o autor, fez questão de ir, anos mais
tarde, a Angra dos Reis, ver a casa onde Raul Pompéia havia nas-
cido. Isolou-se de sua comitiva e ficou, em silêncio, observando a


casa onde nascera aquele rapaz que após escrever uma obra-prima
e alguns artigos polêmicos, metera uma bala no peito para provar
à nação que “não era um infame”.
Ao ser recebido na Academia Brasileira de Letras, Ataulfo
de Paiva, que o saudou, cometeu sua única obra realmente literá-
ria ressaltando o pormenor de meditação e silêncio de um político
todo-poderoso diante da casa de um escritor suicida.
Foi na faculdade que se formou o embrião daquilo que hoje
podemos chamar de geração mas que alguns, na época, chamavam
de bando: João Neves da Fontoura, Osvaldo Aranha, Lindolfo Col-
lor, Maurício Cardoso e outros. Publicou na revista dos estudantes
um ensaio sobre Zola, que o dip, anos mais tarde, quis classificar
como transcendental mas que é apenas um estudo inteligente
sobre o autor dos Rougon-Macquart. Impressionara-o, sobretudo,
a leitura de Germinal. Trecho do ensaio:

Ninguém como Zola tinha o sentimento de conflagração das massas


e sabia objetivar no romance o movimento das multidões. O arrojo
desses operários, individualmente humildes, educados na passivi-
dade cega da obediência, desagrega parcelas de energia, formando
essa resultante uniforme, assustadora e irresistível que se despenha
como uma avalanche, levando em seu seio uma ameaça de explosão.

O leitor de Zola já assinalava os pontos básicos que coincidiriam


com a sua personalidade. Outro trecho do ensaio:

O inconsistente governo de Luís Felipe, que uma revolução erguera e


outra derrubara, procurou manter-se em termos meios, imoral e
trêfego. Pêndulo oscilatório entre os dois extremos da Câmara fran-
cesa, rodeara-se de uma brilhante corte de áulicos parasitários. E,
distribuindo pensões à larga, reduzira os recalcitrantes, acenando-
lhes com a mercê favorita da Legião de Honra.

João Neves da Fontoura, outro leitor de Zola e de Victor Hugo, rom-


peria com Getúlio anos mais tarde, por causa da chamada revolução
paulista. Em seu libelo, Acuso (a influência de Zola até no título),
 A savana verde

João Neves diria que Getúlio se inspirara politicamente na figura


desse Luís Felipe, que a dois de outubro dissolvera a Câmara e sob
nome de Napoleão III inaugurava a ditadura e presidia a série dos
Rougon-Macquart. Mas na época da publicação do ensaio, João
Neves era o diretor-responsável da revista, cuja epígrafe fora mal
copiada de Dante: segui il tuo curso e lascia dir le genti.

•••

Ainda como estudante, Getúlio ensaiou-se na vida pública com


um discurso, na homenagem que a mocidade universitária de
Porto Alegre prestava a Afonso Pena, eleito mas não empossado
ainda, e o primeiro presidente da República a visitar o velho
Continente de São Pedro. Getúlio tinha vinte e três anos, era
quartanista de Direito. Pronunciou essas palavras que formariam
a sua mais constante e pessoal idéia política:

Quantas causas de estagnação pesam sobre um país novo, exau-


rido pela captação e pelo fisco, sopeando o livre desenvolvimento
das atividades industriais! Amarga resultante para quem se vê
coato a comprar manufaturados no estrangeiro os gêneros da pró-
pria matéria-prima que exporta!

Entre o rapaz que saudou o presidente Afonso Pena, em , e o


presidente que, cinqüenta anos mais tarde, daria um tiro no pró-
prio coração, havia já um ponto de contato.

Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos


e financeiros internacionais (...) quis criar a liberdade nacional na
potencialização de nossas riquezas através da Petrobrás (..) a Ele-
trobrás foi obstaculada até o desespero.

(Não é aqui o momento de tratarmos da carta-testamento. De qual-


quer forma, a idéia básica daquele testamento não foi improvisada,
nem colada a esparadrapo no pensamento de Getúlio Vargas. Aos
 anos ele já tinha esse pensamento. Talvez tenha sido o seu único


pensamento político, sua única fidelidade ao ideário que criou ou


que deixou que outros criassem para ele. Uma constante houve e é
justamente essa constante que marca o modesto início e o trágico
fim da vida pública mais longa e discutida de nossa selva política.)

•••

Formado em Direito, aceita o cargo de promotor público na pró-


pria capital gaúcha, presente de Borges de Medeiros, que assim
premiava o rapaz que fazia parte da redação de O Debate. Era um
jornalzinho polêmico que complementava o grande jornal oficial
do Partido Republicano e do próprio governo gaúcho: A Federa-
ção. Dirigido por João Neves da Fontoura, O Debate formava a
tropa de choque, uma espécie de squadra, de ss intelectual do par-
tido de Borges. A Federação, ungida pela memória de Júlio Casti-
lhos, tinha uma rígida noção de austeridade. Até para chamar de
ladrão ao adversário apelava para uma palavra mais austera: lará-
pio. Aos rapazes de O Debate ficava destinada a missão menos
nobre e mais prática de dar nome aos bois. Getúlio e o próprio
João Neves faziam de tudo na redação, desde o editorial político
até a crítica teatral. (Usa-se a expressão à falta de outra melhor
para designar o que se fazia no Brasil, até recentemente, em maté-
ria de palpite sobre teatro.)
Armaram uma cilada para os dois críticos teatrais, que na
certa seriam rigorosos, como soem ser os críticos teatrais. Recebe-
ram dois ingressos para um espetáculo a ser encenado no Teatro São
Pedro. Só quando chegaram ao teatro perceberam que, sob o pre-
texto da encenação de uma peça local, os adversários do Partido
Republicano, os inimigos de Borges e de O Debate preparavam uma
consagração a um político que eventualmente – como também sói
acontecer em matéria político-teatral – havia gerado uma peça. Con-
trariando o hábito, antes de a peça ser exibida, pediu-se o ator ao
palco. Um orador exigiu que a platéia, de pé, ovacionasse o Ibsen
gaúcho. Todos olharam para as duas poltronas reservadas aos rapa-
zes de O Debate. João Neves perguntou ao ouvido de Getúlio:
– E agora?
 A savana verde

Getúlio não respondeu. Calmamente, levantou-se da pol-


trona e assistiu respeitosamente à ovação do adversário que amea-
çava ao mesmo tempo a Borges de Medeiros e a Pirandello.
Repetiu, talvez sem saber, um personagem de Dickens.
Mr. Pickwick chegou a uma cidade onde havia uma multidão
dando vivas. Saltou do carro e começou a dar vivas também.
Seus discípulos, perplexos, perguntaram ao mestre se sabia a que
ou a quem estavam vivando. Pickwick respondeu:
– Quando encontrarem uma multidão dando vivas, vivem
com a multidão.
– E se houver duas multidões, uma dando vivas, outra
dando morras?
– Gritem com aquela que estiver gritando mais alto.

•••

O primeiro processo do novo promotor público foi um deflora-


mento. Em , a menina Antônia Maria da Conceição foi deflo-
rada pelo sr. Cassiano Lacerda. Getúlio não fez a acusação. Conver-
sou separadamente com as partes e convenceu-as a se casarem. O
processo foi arquivado e o advogado convidado ao casamento. No
mesmo ano, um caso oposto ao primeiro: um rapaz violentou
sexualmente uma senhora de  anos. O promotor pediu e obteve a
pena máxima para o delito: quatro anos de prisão. Era o agravo.
O cargo não atraía o jovem advogado. Pediu demissão antes
mesmo de acabar o ano, sendo nomeado, para substituí-lo, o sr.
João Neves da Fontoura, outro rapaz de O Debate, e que o acom-
panharia durante muitos anos como uma espécie de vice ad hoc.
Regressou ao pampa, mas demorou pouco. Eleito deputado
estadual, voltou a Porto Alegre. Mal tomou posse e renunciou ao
mandato. A Assembléia não era propriamente uma assembléia, era
mais ou menos um tribunal de contas que aprovava rotineira-
mente os gastos e as economias do sr. Borges de Medeiros. Não
tinha função legislativa. Mas não foi essa a razão da renúncia.
Usando de um direito da Constituição gaúcha, acrescido de um
direito bem maior que lhe era dado pela presidência do partido


oficial, Borges obrigava alguns deputados de Cachoeira a renun-


ciarem ao mandato, a fim de promover a ascensão de outros. Getú-
lio não tinha nada a ver com a briga, era questão pessoal de Bor-
ges com os políticos de outra região do estado. Mas vislumbrou a
sua grande oportunidade. Dar uma bofetada com luvas em pleno
rosto do chefe onipotente de toda a política estadual.
Não podia romper ostensivamente com o velho cacique.
Seria condenar-se a um ostracismo definitivo e inglório. Mas era
uma forma de fazer sentir que não seria um joguete nas mãos do
soba gaúcho. Além do mais, a sua atitude seria devidamente
anotada pelos adversários de Borges. O Rio Grande do Sul vivia
profunda e eternamente dividido entre chimangos e maragatos,
federalistas e republicanos, posições irredutíveis, adversários
irreconciliáveis. E ele, filho físico de chimango e maragato, sen-
tia-se destinado a promover a união política que um dia haveria
de vir.
Renunciou ao mandato de forma discreta, fazendo apenas
o barulho necessário para ser notada a sua independência em
relação ao borgismo. Assis Brasil, chefe do partido contrário, to-
mou conhecimento da existência daquele rapazinho que enfren-
tava astuciosamente o homem contra o qual ninguém ousava
mexer um dedo.
Em seu discurso de renúncia, Getúlio falou nas “escada-
rias” da Assembléia gaúcha. Mais tarde falaria nas escadarias do
Catete. Mas essa segunda referência só se tornou possível através
daquele mesquinho episódio da política provinciana. Naquele
dia, nascia o embrião de uma futura coalizão que, sob o nome
genérico de Aliança Liberal, faria uma revolução e tomaria o
poder. Beneficiário dessa aliança, o modesto deputado que des-
ceu as pouco imponentes escadarias da Assembléia retirou-se à
sua savana para passar quatro anos advogando, criando os filhos
e esperando que frutificasse a pequenina semente que ele plan-
tara em solo já regado de tanto sangue – e, por isso, fecundo.

•••
 A savana verde

Perguntei a vários parentes e amigos de Getúlio sobre o período


mais feliz da vida dele. Todos me responderam: os quatros anos
que mediaram entre  e . Entre a renúncia de seu
mandato estadual e o seu novo mandato. Atribuem a Getúlio uma
frase: “Foi ali que aprendi a conhecer os homens”. O general Var-
gas deu-lhe um terreno, ele construiu o seu teto com os próprios
recursos. Uma casa feia, sem nenhum critério de arquitetura,
coisa sólida e sem gosto, mas dentro das linhas gerais do que se
poderia chamar de “arquitetura são-borjense”. Rezam as crônicas
que ali havia, remanescente do tempo das Missões, uma bela
igreja jesuítica, só inferior em arquitetura à Igreja de São Miguel,
cujas ruínas fazem parte do roteiro turístico do Patrimônio Histó-
rico Nacional. Em lugar dessa igreja, construíram a coisa mais
feia e insuportável que meus olhos já viram em matéria de arqui-
tetura religiosa: uma igreja que consegue ser mais feia que a
Igreja do Carmo, em Belo Horizonte, onde os banqueiros de
Minas casam suas filhas.
Mas a casa de Getúlio era confortável: o corredor central
dando diretamente para as salas, e, ladeando o corredor, dois
quartos de janelas para a rua. Do outro lado dessa rua, numa casa
de quina e varanda, morava o seu amigo Vicente Goulart. Sua vida
era simples. Reuniões no Clube Comercial, causas de terra e gado,
vez por outra uma viagem a Itaqui ou a Santo Ângelo para defen-
der um réu.
A política de São Borja estava na mão dos Vargas. Seu
irmão Viriato era prefeito, e Benjamim colou seu diploma de far-
macêutico na parede de uma farmácia e abriu um laboratório de
análises clínicas. Volta e meia um tiroteio entre adeptos dos Vargas
e dos Escobares, o município exibia, em  milímetros, o que a
política estadual apresentava em cinemascope, com som e fúria ete-
reofônicos: quem falasse em união uniria contra si os adversários
todos e acabaria num precoce repouso no cemitério local. Getúlio
existia e sobrexistia além das disputas municipais.
Mas houve uma causa. Advogados das partes contrárias,
Rafael Escobar e Getúlio Vargas, um duelo de Capuleto com Mon-
tecchio, em termos pampeiros. Juntou gente para ver a carnificina.


Os advogados aproveitariam o pretexto da causa para se entrede-


vorarem. Adeptos de uma e de outra causa foram ao tribunal,
revólveres escancarados nos coldres abertos. O primeiro a falar
foi Getúlio. Atirou no plenário a pedra fundamental da concilia-
ção política de São Borja e ofereceu a pá ao adversário, para
cimentar a aliança. Mais uma vez os mortos de  rolaram nas
tumbas.
Aproximaram-se as eleições. Borges não esquecera da des-
feita do jovem deputado, mas não pôde vetar a sua indicação.
Tinha Getúlio, atrás de si, um município unido, uma retaguarda
protegida. Agora, era providenciar a união do plano estadual.
Depois, quem sabe, ele seria, conforme se definiu a si mesmo,
“não um oportunista, mas um escravo das oportunidades”.
Em  disse novo adeus a São Borja. Mais uma vez jun-
tou-se o povo para levar o deputado ao trenzinho que demorava
um século para chegar a Porto Alegre. Conversei com um sujeito
que o acompanhou à estação nesse ano de . Getúlio usava
bigode e sorria. Apertou a mão de todos, chamava a maioria pelo
próprio nome. Na hora em que colocou o pé no estribo do vagão,
virou-se para trás e disse para alguém:
– Um dia eu volto, e ficarei aqui para sempre.
Em , esse mesmo homem estava no aeroporto, quando
um avião da Cruzeiro do Sul despejou no campo de São Borja um
ataúde, tragicamente pesado. Lembrou-se da cena antiga e me
disse, com um brilho alucinado nos olhos:
– Ele já sabia.

•••

Quando chegou ao Rio, era deputado federal. Seria líder da ban-


cada gaúcha. O Rio Grande do Sul vivia, então, outra crise de
armas. Os agravos políticos também contam e Assis Brasil de um
lado e Borges de Medeiros de outro reeditavam os velhos dias dos
farrapos e da luta federalista. Não houve, no entanto, as atrocida-
des de . Sousa Docca, um historiador gaúcho que se recusou
a historiar o movimento de , por selvagem e bárbaro demais,
 A savana verde

chamou a esta batalha entre Borges e Assis de “guerra entre


cavalheiros”. Na realidade, o que Assis Brasil desejava era provo-
car a intervenção federal, a fim de acabar com o eterno governo de
Borges, que há vinte e cinco anos sentava-se na cadeira presiden-
cial. A Constituição gaúcha, elaborada por Júlio de Castilhos, era
a única constituição que o positivismo ortodoxo dera ao mundo.
Imaginemos um país da África ou da mais remota Ásia que
tenha uma constituição baseada, digamos, na filosofia do sr.
Alziro Zarur ou do almirante Sílvio Heck. Só assim poderemos
compreender a perplexidade dos franceses ao saberem que, numa
remota província de um país sul-americano, um governo havia
que obedecia a uma constituição positivista. Em linhas gerais, o
positivismo também influíra na formação de nossa República, mas
a Constituição de  diluiu os arroubos de Benjamin Constant e
outros menos votados. A essa altura, o positivismo decaía intelec-
tualmente, o próprio Augusto Comte se interessava muito mais
pelo amor de Clotilde do que pelo amor da Humanidade.
Assis Brasil não era exatamente contra Comte nem contra
o positivismo. Era apenas contra a perpetuidade do sr. Borges de
Medeiros no poder. Herdeiro político e espiritual de Júlio de Cas-
tilhos, Borges grudara-se no governo e de lá não queria sair. Tinha
a seu favor a lei e o hábito. Assis Brasil era mais prendado como
personalidade pública. Bom orador, homem elegante, viajado,
culto, técnico. Chegou a cultivar uma espécie de milho nos cam-
pos do Sul. E abriu uma poderosa campanha a favor do cultivo do
milho. Violentou a oratória da época num célebre discurso. Era de
praxe, antanho, encerrarem-se os discursos com uma série de
vivas. Os manifestos do pc também se encerravam com esses
vivas. Viva a República! Viva o Proletariado Universal! Viva o Rio
Grande do Sul! Viva a Sagrada União dos Povos! Por piores que
fossem os discursos, o efeito era sempre o mesmo: todos aplau-
diam. Pois Assis Brasil encerrou um discurso, numa Exposição
Agropecuária, com um novo brado:
– Viva o milho!
Houve estupor na assistência, todos se olharam e ninguém
tomou a corajosa iniciativa de responder ao viva. Foi preciso que


o próprio Assis Brasil vivasse novamente o milho e batesse pal-


mas para si mesmo.
Pois em  esses dois homens – Assis e Borges – lutavam
e faziam lutar. Os pretextos eram antigos, vinham mais ou menos
de , e de mais longe ainda. Assis sabia que perderia nas
armas, mas forçava o governo central a comprar uma briga alheia
e a federalizar o Rio Grande o Sul, levando o sr. Borges de Medei-
ros a encarar a sucessão presidencial como um fato de rotina repu-
blicana e não como um agravo pessoal. Borges, por seu lado,
garantiu as duas frentes de luta: no Sul, colocou o grosso dos pro-
visórios e da brigada contra os homens de Assis; e despachou
Getúlio Vargas para o Rio, a fim de impedir a intervenção federal
que já fora motivo de um projeto, em curso no Senado.
Como líder da bancada, Getúlio atacou frontalmente esse
projeto. Foi um discurso hábil, brilhante mesmo. Em termos obje-
tivos, ganhou sua batalha pessoal, impedindo a intervenção no
Rio Grande do Sul. Borges também ganhou a sua batalha, mas
perdeu a guerra: o acordo, celebrado em Pedras Altas, estabeleceu
a reforma da Constituição. Borges não mais seria reeleito indefini-
damente. Assis, em compensação, depunha as armas e ficava com
os prejuízos.
A pax gaúcha caía sobre os pampas e, entre mortos e feri-
dos, ficou assentada uma verdade: o beneficiário imediato dessa
pax teria diante de si um futuro imprevisível. Pela primeira vez o
Rio Grande do Sul ficaria na mesma posição dos demais estados
influentes numa sucessão presidencial. Até então, as rivalidades e
os ódios locais impediam que os gaúchos tivessem voz ativa no
plano federal. Quando muito, conseguiam uma voz oblíqua, como
a de Pinheiro Machado. Mas o herdeiro dessa pax gaúcha teria o
direito de roncar feio e grosso na próxima sucessão presidencial.
Tão ou mais que São Paulo e Minas.
Não foi Getúlio Vargas quem percebeu isso, de imediato.
Foi João Neves da Fontoura. Foi Francisco de Campos. Foi, sobre-
tudo, na hora oportuna, Antônio Carlos, presidente de Minas.
Mas isso já é outra história.

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