Você está na página 1de 5

Commedia dell’Arte: silhuetas e reflexões sobre uma poética

Rosa Adelina Sampaio Oliveira


Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas – UFBA
Mestranda – Poéticas e Processos da Encenação – Orª. Profa. Dra. Catarina Sant’Anna
Professora, Atriz e Produtora Cultural

Resumo: Este trabalho apresenta características da poética da Commedia dell’Arte, como o


seu contexto histórico-social renascentista, elementos da encenação, os canovacci, a
interpretação, a improvisação, os tipos – representações dos arquétipos e papéis sociais da
Itália do sec. XVI –, o capocomico, o caráter do riso e sua função – desde sua utilização em
rituais –, o teatro popular, o jogo cênico baseado em relações de opressão e antagonismos
(patrão/empregado, novo/velho, mulher/homem), etc. Explicita e define a poética enquanto
inapreensível, refletindo sobre a utilização e análise documental em pesquisas dessa
natureza que tratam de objetos de tempos passados. Concluindo com a definição acerca
das características citadas no texto enquanto, apenas, possíveis silhuetas da poética da
Commedia dell’Arte.

Palavras-chave: Commedia dell´Arte, Teatro popular, Artes cênicas.

O presente trabalho busca explicitar características da poética da Commedia


dell’Arte apresentando silhuetas sócio-históricas, cênicas e populares do gênero, tentando
suscitar reflexões sobre a dimensão complexa de tal objetivo.
A pesquisa sobre o contexto histórico-social da Commedia dell’Arte é de extrema
importância para o entendimento do movimento e dos tipos que a compunham. O período
do Renascimento apresenta uma modificação progressiva de uma mentalidade que, antes
submetida ao divino, se vê cada vez mais colocando o homem e a natureza como centro
das questões. Entretanto, apresenta ainda uma forte manutenção da estrutura feudal, com o
processo de crescente urbanização, e o domínio das classes populares pelo valor
monetário. A política mercantilista, embora venha assegurar as regalias da nobreza e dos
monarcas, vai aos poucos fortalecendo uma burguesia mercantil e posteriormente
capitalista, que irá questionar o poder político hereditário e nobre. É nesse momento que a
Igreja, com sua política de medo e opressão, tenta recuperar seu poder abalado, deixando
suas marcas também nas manifestações artísticas, dentre elas, a Commedia dell’Arte.
A Commedia dell’Arte surgiu na Itália do século XVI, sua denominação causa
muitas polêmicas em torno do seu significado. A principal definição do termo vem da
associação de dell’Arte com o significado de ofício, visto que, naquele contexto, grande
parte das coisas ainda eram construídas por artesãos que conheciam a Arte (o ofício) da
realização da encomenda. Embora muito contestada, essa definição apresenta-se coerente
por conter em si o conceito da profissionalização trazida pela Commedia dell’Arte.
Como parte de um teatro popular, traz a presença do obsceno e do riso como
mote para o desenvolvimento de suas situações, construídas através de um roteiro – o
canovaccio – que continha basicamente as entradas, saídas e objetivos de cena, em que o
texto surgia ao improviso, e como, afirma Dario Fo, da prática dessas improvisações, de
uma bagagem gigantesca "de situações, diálogos, gags, ladainhas, todas arquivadas na
memória, as quais utilizavam no momento certo, com grande sentido de timing, dando a
impressão de estar improvisando a cada instante.” (2005, p. 17).
Na época, a inexistência da figura do autor na Commedia dell’Arte causava
bastante incômodo ao teatro literário e, possivelmente, outro fator para tal olhar – segundo o
qual o ator era concebido enquanto interlocutor da grande obra que era o texto – eram
também as temáticas contidas nesses canovacci, sua origem e caráter popular, pois esses
roteiros estavam enraizados na vida do povo e dele é que retiravam sua inspiração, como
coloca Margot Bertholt (2005).
As companhias teatrais de Commedia dell’Arte possuíam diversas
características dos festejos e manifestações populares da época, pela forte ligação com
outras poéticas teatrais e com o carnaval; bem como, através de pessoas que já
trabalhavam na área que passaram a compor tais grupos. Esses artistas trouxeram para o
espetáculo uma noção de totalidade de competências e habilidades cênicas, com a junção
de canto, músicas, representação, acrobacias, truques, etc.
Alguns autores, como Anatol Rosenfeld (1996), afirmam que a movimentação
dos atores se assemelhava à de grandes marionetes. Com ações e gestos grandiosos,
grotescos, mas geralmente velozes e leves. A atuação baseava-se na improvisação, que
não era resultado apenas do momento, mas sim, uma conseqüência da especialização dos
atores com as máscaras e os tipos, que animavam por praticamente todo o percurso teatral
de suas vidas. Tal característica lhes conferia uma intimidade muito grande com as reações
e as ações das máscaras, ou seja, suas improvisações eram resultantes de muita pesquisa
e do estudo prático dos tipos e dos jogos cênicos da poética.
Apresentavam tipos que compunham a estrutura de papéis sociais do período e
em alguns de seus roteiros podem-se notar relações intensas de opressão ligadas tanto às
classes patronais e dos empregados, quanto no que alcança a relação entre o Novo e o
Velho e até mesmo opressões de gênero. Assim:
Segundo Pandolfi, "as máscaras reproduziam as características que os
italianos atribuíam a cada região do país: o mercador da República de
Veneza, o carregador de Bérgamo, o pedante de Bolonha, o apaixonado
toscano, o capitão espanhol ou italiano, ou napolitano (...)”. Assim a
representação da Commedia dell’Arte fornece um quadro completo das
classes e das regiões italianas (...)". (BARNI in SCALA, 2003, p. 22)
Mesmo que talvez de forma não consciente, ou politicamente assumida e ativa –
o que talvez nunca possamos atestar – com o riso e o obsceno, através de seus tipos e de
seus roteiros, realizavam críticas à sociedade da época. Os cômicos mostravam a fome do
povo, o êxodo rural, a ascensão da burguesia, o renascimento científico. Mas também
percorriam limites da manutenção de suas apresentações. Com suas sátiras grotescas,
arrancavam gargalhadas de todos, e a todos eles satirizavam, com exceção apenas da
igreja, a qual exercia grandes repressões no momento através da Contra-Reforma e que
decretou o desmantelamento dos espaços teatrais, acontecendo então um êxodo dos
cômicos dell’Arte da Itália..
Algo característico da Commedia dell’Arte é a utilização do grotesco, encontrado
tanto no corpo desfigurado dos atores, como nas máscaras expressivas que misturam
algumas vezes a imagem humana distorcida com figuras de animais. Para Rosenfeld (1976,
p. 60), a arte grotesca “tende a exprimir precisamente a desorientação em face de uma
realidade tornada estranha e imperscrutável”. No mesmo livro, um pouco adiante, comenta
sobre a presença desse grotesco na Commedia dell’Arte:

As figuras não são apenas excêntricas e caricatas; as suas máscaras dão-


lhes, sobretudo, o aspecto de animais estranhos, de aves de pesadelo, por
vezes semelhantes a morcegos; os seus gestos têm afinidade com os de
marionetes, parecem rígidos, excessivos e de uma elegância ao mesmo
tempo infra e sobre-humana (...). Os seres perdem seu aspecto familiar, há
uma completa subversão da ordem ontológica. A desproporção no miúdo
sugere uma desarmonia universal (ROSENFELD, 1996, p. 62).

A utilização da comicidade em determinadas sociedades e em determinados


períodos, em suas festas e ritos, eram relações conceitualmente indissociáveis, que existem
provavelmente desde as sociedades primitivas, como coloca Bakhtin:

“(...) nas etapas primitivas, dentro de um regime social que não conhecia
ainda nem classes nem Estado, os aspectos sérios e cômicos da divindade,
do mundo e do homem eram, segundo todos os indícios, igualmente
sagrados e igualmente, poderíamos dizer, “oficiais” (1993, p. 5).

Segundo Bakhtin, é de quando começam a ser estabelecidos regimes de classes


e de Estado que aparece a necessidade de distinção entre o “sério” e o “riso”, de modo em
que as formas cômicas passam a pertencer progressivamente a um espaço não-oficial, no
qual, o sentido do cômico também se modifica, passando a se relacionar com as formas
essenciais de expressão da cultura popular (BAKHTIN, 1993, p. 5). A comicidade na
sociedade primitiva, e posteriormente, na Idade Média Ocidental, acompanhava a vida
festiva, ritualística e, principalmente, a vida cotidiana da população.
A sátira das manifestações cômicas, através da utilização das estruturas dos
papéis sociais, não é algo exclusivo ou genuíno da Commedia dell’Arte. Já no séc. IV a. C.
os mimos trabalhavam com tal mote, como coloca Benício:

“(...) os mimos começaram a imitar os tipos cômicos da sociedade,


mantendo vestígios do figurino dos atores do século V a. C. Seus
personagens utilizavam estômagos acolchoados, calções ajustados, capas
curtas e abaixo delas exibiam grandes phallus, como símbolo da fertilidade.”
(BENÍCIO, 1999, p. 30)

Para concluir esse passeio pela Commedia dell’Arte, tem-se que chegar a uma
contradição coerente, que é o mais relevante: a Commedia dell’Arte é, como afirma Barni
(2003), inapreensível. Nada do que foi dito acima pode ser tido como absoluta verdade, visto
que os documentos (registros em cartórios, pinturas, cartas) mostram traços que ilustram a
silhueta de um movimento extraordinário, mas que não podem defini-lo. Para Bloch (2001),
documentos representam vestígios e o passado é uma estrutura em progresso, uma idéia
que contrapunha a visão de sua época com relação à história, que compreendia o passado
como um dado rígido. Para uma compreensão da poética dell’Arte, tem-se que escolher
quais linhas de descrição são as mais coerentes, e obviamente essas escolhas recaem em
opções políticas, ideológicas e estéticas. Como coloca Le Goff, no prefácio do livro
“Apologia da história, ou, O Ofício de historiador” de Marc Bloch: “A história é busca,
portanto escolha” (2001, p.8).
A Commedia dell’Arte descrita acima é a que apresento, uma poética
pertencente a um teatro popular, tendo como mote propulsor dramático relações humanas,
conflitos sociais e opressões, reflexo direto da história do seu tempo, alegre, sarcástica e
perspicaz, que retirou do riso a crítica.
Para efeitos de reflexão sobre um trabalho de pesquisa que busca a análise
acerca da ressignificação da Commedia dell’Arte, é importante ser afirmado que reviver um
movimento do passado é impossível, visto que o teatro como arte humana reflete seu
tempo. Tal como ela é apresentada hoje, a Commedia nunca existiu. Mas como afirma Dario
Fo (2004), a Commedia dell’Arte, não se encontra lá atrás, já que vive, pulsa e se renova
naqueles que dela extraem sentidos e fome.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de


François Rabelais. Trad.: Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Editora Hucitec; 1993.

BENÍCIO, Eliene. Saltimbancos Urbanos: A influência do circo na renovação do teatro


brasileiro nas décadas de 1980/1990. Tese de Doutorado. São Paulo: USP; 1999.
BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2005.

BLOCH, Marc. Apologia da história, ou, O oficio do historiador. Prefácio, Jacques Le Goff;
apresentação à edição brasileira, Lilia Moritz Schwarcz; tradução, André Telles. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

FO, Dario. Manual Mínimo do Ator. Trad.: Lucas Baldovino e Carlos David Szlak. São Paulo:
Senac São Paulo, 3ª edição, 2004.

LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval. Trad.: José Rivair de Macedo.


Bauru/SP: Edusc, 2005.

PORTICH, Ana. A arte do ator entre os séculos XVI e XVIII. São Paulo: Perspectiva, 2008.

ROSENFELD, Anatol. Texto/Contexto I; Coleção Debates. São Paulo: Perspectiva, 1996.

SCALA, Flamínio. A loucura de Isabella e outras comédias da Commedia dell’Arte. Trad. e


Introdução: Roberta Barni. São Paulo: FAPESP/ Iluminuras, 2003.

Você também pode gostar