Você está na página 1de 15

ARTIGOS

Dislexia ou processo
de aquisição da escrita?

Giselle de Athayde Massi *

Resumo

Investigamos, nesta pesquisa, a indefinição que acompanha a noção de dislexia vinculada a uma
perspectiva de distúrbio de aprendizagem ou dificuldade de aquisição da escrita. Discutimos a falta de
evidência capaz de indicar a causa desse suposto distúrbio e, também, a inconsistência descritiva do que
tem sido considerado como sintoma disléxico. Entendendo a linguagem como atividade dialógica, como
trabalho constitutivo, histórico e social, no contraponto de uma noção patologizadora, mostramos que
tais “sintomas” desvendam estratégias de reflexão lançadas pelo aprendiz sobre a escrita em uso e
construção. Denunciamos que, por se fixarem em aspectos gráficos do objeto escrito, ignorando os
textos elaborados pelos aprendizes, as diversas tarefas avaliativas propostas em manuais envolvidos
com o diagnóstico do que tem sido considerado dislexia não cumprem os seus objetivos, ou seja, não
avaliam a escrita. Para superar essas tarefas, analisamos, em concordância com o paradigma indiciário,
dois casos de crianças rotuladas como portadoras de dificuldades de aprendizagem da escrita. A partir
dessa análise, a qual se embasa na compreensão da singularidade do trajeto trilhado por esses sujeitos
no processo de aprendizagem da linguagem, indicamos que tais crianças, ao contrário dos rótulos que
carregam, produzem textos com progressão referencial e progressão tópica, lançando mão de diversas
estratégias textuais, bem como de diferentes hipóteses sobre aspectos gráficos e convencionais da escrita,
sinais da própria construção desse objeto de conhecimento.

Palavras-chave: escrita; lingüística textual; fonoaudiologia; dislexia.

Abstract

In the present study we examined the uncertainty that accompanies the definition of dyslexia associated
with a notion of learning disability or difficulties in acquiring written language. We discuss the lack of
evidence on the causes of this so-called disorder as well as the descriptive inconsistency of the “dyslexic
symptoms”. Understanding language as a dialogic activity, as a historical and social constitutive task in
contraposition to reducing it to a pathology, we have shown that such “symptoms” reveal the strategies
used by the leaner for using and constructing a written text. We noted that when the focus is directed
towards the graphical aspects of the written text and its content is ignored, the evaluative strategies
involved in diagnosis are not meeting their objective to evaluate writing. We have analyzed, using the
indices paradigm two cases of children who have been identified as having difficulties in learning to
write. Our analysis is based on the comprehension of the singularity of the subjects’ adopted process for
acquiring language, and observed that despite the label that they were given, they are able to produce
texts that have a referential progression and story development. We can hypothesize that the different
graphical and conventional aspects of the text are signs of the construction of this object of knowledge.

Key-words: writing; textual linguistics; speech pathology; dyslexia.

*
Professora da graduação em fonoaudiologia e do Mestrado em Distúrbios da Comunicação da UTP.

Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 16(3): 355-369, dezembro, 2004 355


Giselle de Athayde Massi
ARTIGOS

Resumen

Investigamos, en esta pesquisa, la indefinición que acompaña la nocíón de dislexia vinculada a una
perspectiva de disturbio de aprendizaje o dificultad de adquisición de la escritura. Discutimos la falta de
evidencia capaz de indicar la causa de ese supuesto disturbio y, también, la inconsistencia descriptiva de
lo que se ha considerado como síntoma disléxico. Entendiendo el lenguaje como actividad de conversación,
como trabajo constructivo, historico y social, en contraposición a una noción de problema patológico,
mostramos que tales “síntomas” desvendan estrategias de reflexión lanzadas por el aprendiz sobre la
escritura en uso y construcción. Denunciamos que, por fijarse en aspectos gráficos del objeto escrito,
ignorando los textos elaborados por los aprendizes, las diversas tareas calificativas propuestas en manuales
envolvidos con el diagnóstico de lo que se ha considerado dislexia no cumplen sus objetivos, o sea, no
conceptuan la escritura. Para superar esas tareas, analizamos, en concordancia con el paradigma
indiciario, dos casos de niños rotulados como portadores de dificultad de aprendizaje de escritura.
Desde esa análisis, que se basa en la comprensión de la singularidad del trayécto trillado por los sujetos
en el proceso de aprendizaje del lenguaje, indicamos que tales niños, a la inversa de los apodos que
cargan, producen textos con progresión referencial y progresión tópica, utilizando diversas estrategias
textuales, bien como diferentes hipótesis sobre aspectos gráficos y convencionales de la escritura, señales
de la construcción de ese objeto de conocimiento.

Palabras clave: escrita; lingüística textual; fonoaudiologia; dislexia.

Introdução do assunto e, também, o caráter equivocado dos


ditos sintomas disléxicos, apontando para o fato
Este trabalho nasceu de questionamentos rela- de esses sintomas revelarem atitudes de reflexão e
cionados a minha prática clínica em fonoaudiolo- análise lançadas pelo aprendiz sobre a escrita em
gia, a partir da qual eu recebia encaminhamentos uso e construção;
de crianças que, por não seguirem o padrão pro- 2. Analisar tarefas avaliativas citadas em ma-
posto pela escola, eram tomadas pela própria esco- nuais envolvidos com essa temática, mostrando que
la e por outros profissionais – médicos, psicólo- tais tarefas, afastadas das ações lingüísticas dos su-
gos, psicopedagogos – como portadoras de um dis- jeitos, não cumprem o que se propõem, uma vez
túrbio ou dificuldade de aprendizagem na escrita. que não avaliam a linguagem;
Contudo, pela formação em lingüística que me di- 3. Investigar as chamadas manifestações dis-
recionava, era possível perceber que os indícios léxicas que aparecem no interior de seqüências tex-
dessa dita dificuldade, relacionados, na maioria das tuais produzidas por sujeitos diagnosticados ou
vezes, a trocas, omissões, adições de letras ou síla- apontados como portadores dessa patologia, indi-
bas, escrita pautada na transcrição fonética, seg- cando que essas manifestações acompanham o pro-
mentação inadequada de vocábulos, quando inves- cesso de aquisição da escrita, indícios singulares
tigados lingüisticamente, não apontavam para um da relação estabelecida entre o aprendiz e a escrita.
distúrbio, mas desvendavam o próprio processo de Tendo em vista esses objetivos, investiguei a
aquisição da linguagem escrita. literatura que trata do que tem sido chamado de dis-
Partindo da análise lingüística desse processo, lexia, buscando recuperar a arbitrariedade termino-
pretendo mostrar que a dislexia não se sustenta lógica, bem como o equívoco que domina as expli-
como um distúrbio vinculado à aquisição da escri- cações causais, as descrições sintomatológicas e as
ta, mas, antes disso, evidencia a concretização da vias avaliativas relacionadas a essa dita patologia.
aprendizagem dessa modalidade de linguagem. Além disso, analisei dois casos de crianças diagnos-
Para tanto, pretendo: ticadas ou apontadas como portadoras de distúrbios
1. Analisar criticamente a (in)definição que en- na aprendizagem da escrita. Essa análise, lingüisti-
volve o que vem sendo concebido como dislexia, camente orientada, pautou-se em dois aspectos: as
procurando evidenciar a fragilidade das hipóteses questões gráficas e convencionais da escrita e as pro-
explicativas apresentadas pela literatura que trata duções textuais dos sujeitos da pesquisa.

356 Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 16(3): 355-369, dezembro, 2004


Dislexia ou processo de aquisição da escrita?

ARTIGOS
Discussão e panorama teórico cações de doenças, como a CID – Código Interna-
cional de Doenças – 10, por exemplo, assumem
Quanto ao aspecto terminológico, convém res- que entendem a dislexia como um distúrbio sem
saltar que diversas nomenclaturas têm sido utiliza- explicação etiológica capaz de justificá-lo, ou seja,
das para se referirem, de forma indiscriminada, a um distúrbio sem causa e que acometeria aprendi-
fatos relacionados à aprendizagem ou ao uso da zes no momento em que estariam aprendendo a ler
escrita: dificuldade de aprendizagem, dificuldade e escrever.
de leitura e escrita, dislexia de evolução, dislexia Além da inconsistência etiológica, a descrição
de desenvolvimento, dislexia específica de evolu- sintomatológica apresentada pela literatura, quan-
ção ou simplesmente dislexia, são alguns exem- do analisada lingüisticamente, também não se sus-
plos. De acordo com Moysés e Collares (1992), tenta. Nesse ponto, antes de apresentar a investiga-
para exprimirem uma posição menos violenta ção dos chamados sintomas disléxicos, convém
diante do aprendiz, os termos dislexia ou distúrbio expor o quadro teórico que norteia o meu trabalho.
específico de aprendizagem da escrita têm sido Esse quadro me afastou de perspectivas que des-
substituídos pelas expressões dificuldade de apren- consideram a historicidade da linguagem, o sujeito
dizagem ou dificuldade de leitura e escrita. Porém, e suas ações lingüísticas em situações de uso efeti-
como bem afirmam essas autoras, independente- vo da escrita e o contexto social das interações ver-
mente da nomenclatura usada, o problema conti- bais. Assim, privilegiei em meu panorama teórico:
nua sendo localizado no aprendiz, obscurecendo a) a perspectiva sociointeracionista, representada
toda uma série de aspectos que pode interferir, de por Bakhtin (1992a,b) a qual aponta que é por
maneira contraproducente, no processo de ensino- meio da relação com o outro que o aprendiz,
aprendizagem. como sujeito e autor de transformações sociais,
Com relação às explicações causais, a pesqui- se subjetiva e se relaciona com a escrita como
sa bibliográfica me levou a perceber que a noção um objeto de conhecimento;
de dislexia, vinculada à aquisição da escrita, foi, b) a concepção de linguagem como atividade cons-
longe do contexto escolar, desenvolvida pela área titutiva, conforme proposto por Franchi (1992)
médica, a qual inicialmente se pautou em estudos e assinalada a partir de desdobramentos explici-
afasiológicos. A partir disso, uma patologia cha- tados por Geraldi (1995);
mada dislexia adquirida, completamente distante c) um conceito de texto que, de acordo com Koch
do âmbito deste trabalho, relacionada a sujeitos (2003), é tomado como atividade dialógica,
adultos vítimas de lesões cerebrais, parece ter ser- como um trabalho de interação entre sujeitos so-
vido de apoio para determinar uma visão equivo- ciais, contemporâneos ou não, co-presentes ou
cada que toma fatos lingüísticos associados ao pro- não, mas em diálogo constante;
cesso de aprendizagem e uso da escrita como si- d) estudos desenvolvidos por pesquisadores brasi-
nais de uma doença. Em outras palavras, pautada leiros – Abaurre (1991, 1992, 1996); Abaurre e
em um raciocínio clínico tradicional, o qual parte Silva (1993); Cagliari (1998); Abaurre, Fiad e
do princípio de que se X causa Y, Y só pode ser Mayrink-Sabinson (1997) – que apontam para
causado por X, a medicina supôs que se uma lesão o fato de que, durante o processo de aprendiza-
cerebral, em sujeitos adultos, poderia ocasionar gem da escrita, o aprendiz constrói, em conjun-
dificuldades para ler e escrever, então, dificulda- to com o outro, estratégias singulares para re-
des apresentadas por crianças que estão se apro- presentar essa modalidade de linguagem;
priando da escrita deveriam ser causadas por da- e) o modelo científico indiciário proposto por
nos neurológicos. Guinzburg (1989), que indica a possibilidade de
Nesse sentido, enfatizo a total inconsistência analisar essas estratégias singulares como mar-
das explicações causais que giram em torno do que cas subjetivas, pistas particulares das reflexões
tem sido tomado como um distúrbio de aprendiza- elaboradas pelos aprendizes durante o processo
gem da escrita, desde 1896, quando pela primeira de apropriação da escrita.
vez um menino foi diagnosticado como disléxico.
Essa inconsistência é tanta que, apesar de diversos Pautada nesse panorama, analisei os ditos sin-
estudos e hipóteses terem se desenvolvido, atual- tomas disléxicos apontados pela literatura. Partin-
mente manuais de classificações médicas e codifi- do de autores como Ianhez e Nico (2002) e Cuba

Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 16(3): 355-369, dezembro, 2004 357


Giselle de Athayde Massi
ARTIGOS

dos Santos (1987), elenquei fatos que têm sido perspectiva que entende a linguagem como um
considerados como manifestações patológicas. código pronto e acabado, independentemente das
Dentre os quais destaco o que a literatura pesqui- atividades dos sujeitos em situações interacionais.
sada chama de: Com relação aos chamados pré-requisitos –
– escrita incorreta, com trocas, omissões, junções reconhecimento de partes do corpo, lateralidade,
e aglutinações de fonemas; organização espaço-temporal –, convém comentar
– confusão entre letras de formas vizinhas: que os mesmos, relacionados a uma noção de pron-
como na escrita de moite ao invés de noite tidão para alfabetização, repousam em aspectos
de espuerda por esquerda; completamente distantes da atividade da escrita em
– confusão entre letras foneticamente semelhantes: si. Abaurre (1987), inclusive, chega a afirmar que
como em tinda por tinta várias crianças que apresentam um desempenho
popre por pobre satisfatório nesse dito período preparatório encon-
gomida por comida; tram dificuldades com a leitura e a escrita propria-
– omissão de letras e/ou sílabas: mente ditas, exatamente porque faltou a elas um
com em entrando por encontrando contato efetivo com a linguagem escrita.
giado por guiado No que se refere aos testes avaliativos, esses
e a grafia das consoantes BNDT para representar enfatizam situações artificiais como:
o nome Benedito; – manipulação de fonemas (o aluno é solicitado a
– adição de letras e/ou sílabas: inverter os fonemas iniciais de duas palavras);
muimto por muito – fluência verbal (a criança examinada é solicitada
fiaque por fique a dizer o máximo de palavras começadas com
aprendendendo por aprendendo; uma determinada letra em um período limitado
– união de uma ou mais palavras e/ou divisão ina- de tempo);
dequada de vocábulos: – reprodução de sons que iniciam, que terminam e
Eraumaves um omem por Era uma vez um homem que estão no meio de palavras proferidas pelo
a mi versario por aniversário; examinador;
– formação de palavras (o aluno é solicitado a for-
A análise desses fatos, a partir do enfoque mar palavras a partir de sons e sílabas produzi-
teórico destacado anteriormente, permite-me afir- das pelo examinador);
mar que todos os “sintomas” apresentados pela – formação de frases a partir de palavras forneci-
literatura nada mais são do que o resultado de ela- das pelo avaliador;
borações e reelaborações lançadas pelo aprendiz – soletração e repetição de palavras;
sobre a escrita que está sendo apreendida. Afinal, – leitura e separação de palavras nos seus sons
as omissões, as trocas, as segmentações, as “ina- unitários, em sílabas, em encontros consonantais
dequações” que aparecem na escrita de aprendi- e em dígrafos;
zes não são sintomas patológicos, mas, nos ter- – leitura de logatomas, objetivando avaliar o reco-
mos do paradigma indiciário, evidenciam-se como nhecimento do sistema fonético-fonológico do
sinais, pistas, detalhes que revelam atitudes sin- aluno avaliado;
gulares de análises e reflexões sobre a escrita em – leitura em voz alta de textos simples, para ava-
construção. Por isso, as classificações da disle- liar habilidades de segmentações das orações;
xia, organizadas em função desses ditos sintomas, – extração de conceitos fundamentais de um texto;
devem ser falseadas, uma vez que apontam para – identificação e nomeação de letras do alfabeto,
agrupamentos de fatos – hipóteses sobre a escri- apresentadas em ordem aleatória;
ta, “incompletudes”, refacções – próprios do pro- – cópia e ditado de letras do alfabeto, de listas de
cesso de aquisição da linguagem. palavras, de frases e de parágrafos;
Na trilha dos meus objetivos, procurei mos- – escrita de logatomas.
trar, também, que as tarefas avaliativas propostas
em manuais relacionados a essa temática assentam- Quanto a essas atividades, ressalto que, por se
se ora em exercícios vinculados aos considerados pautarem em tarefas descontextualizadas e frag-
pré-requisitos para aquisição da escrita, ora em ati- mentadas, por desconsiderarem as ações dos sujei-
tudes artificiais desenvolvidas em função de uma tos e da própria linguagem, por apresentarem uma

358 Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 16(3): 355-369, dezembro, 2004


Dislexia ou processo de aquisição da escrita?

ARTIGOS
noção confusa entre a oralidade e a escrita, por ig- Fonoaudiologia e Linguagem Escrita da Universi-
norarem o texto como manifestação da língua, tais dade Tuiuti do Paraná.2 De um universo de 38
testes não avaliam a escrita. Pois não é possível crianças atendidas pelo núcleo – até a época em
avaliar a atividade da escrita “fora” da linguagem que concluí a coleta de dados –, 35 foram encami-
e distante do sujeito que a manipula. nhadas para atendimento a partir de solicitação di-
Com a intenção de superar avaliações que ob- reta da escola e três já haviam sido submetidas a
jetivam categorizar ou classificar “erros” ortográ- avaliações e atendimentos direcionados por dife-
ficos e gramaticais, encaixando-os em quadros di- rentes profissionais: um médico, uma fonoaudió-
tos patológicos associados a supostos diagnósticos loga e uma psicóloga. Dentre esses três casos que
de dislexias, analisei casos de dois sujeitos que fo- se diferenciavam do restante, uma vez que tinham
ram apontados ou diagnosticados como portado- o pré-diagnóstico levantado pela escola confirma-
res de dificuldades relacionadas à linguagem es- do por tais profissionais, elegi o caso de uma cri-
crita. ança que havia recebido confirmação diagnóstica
Nesta investigação, pautada em um procedi- do médico. E, para completar o quadro de análise,
mento abdutivo, nos termos de Peirce (1995), não propus-me investigar, também, o caso de uma me-
investiguei dados da escrita em função de regras nina que foi rotulada somente pela escola.
diagnósticas preexistentes, mas em função de uma Minha análise abrange, então, o caso de um
percepção intuitiva capaz de me encaminhar por menino reconhecido pelas iniciais de seu nome –
fatos, indícios e detalhes relevantes na recomposi- G.W.G. – e uma menina apresentada pelas suas
ção de casos e de textos analisados. Procurei con- iniciais M.S. A descrição e a análise desses dois
siderar a situação em que as seqüências textuais casos, completamente distantes da noção de dis-
foram construídas, as razões que as fomentaram, túrbio, me levaram a perceber diferentes hipóteses
as intenções do produtor do texto, o papel desem- provisórias lançadas sobre o objeto escrito, bem
penhado pelo outro. Também contemplei, depen- como histórias diferenciadas de relação com esse
dendo de cada caso estudado, as reflexões e ações objeto.
lingüísticas dos sujeitos da pesquisa em diferentes
níveis de análise. Quanto aos aspectos gráficos e O caso G.W.G.
convencionais, enfoquei a ortografia, a segmenta-
ção da escrita, o uso de sinais de pontuação, o uso G.W.G. é um menino que, aos oito anos de ida-
de maiúsculas e minúsculas, bem como o traçado de, quando cursava a 2a série do ensino fundamen-
da escrita. Na dimensão do texto, à luz de estudos tal, foi apontado pela escola como um estudante
da lingüística textual, procurei destacar o papel das que apresentava problemas de atenção e dificulda-
progressões referencial e tópica no estabelecimen- de com a escrita, apontamento que foi ratificado
to da organização e do sentido do texto, além das por um neuropediatra que lhe receitou o uso de Tro-
configurações textuais e da posição assumida pelo fanil, duas vezes por dia. Ao iniciar as atividades
sujeito como agente da ação da linguagem que se de escrita no Núcleo vinculado à Universidade
concretiza no texto. Tuiuti, G.W.G. estava com doze anos de idade e, na
época, cursava a 5a série pela segunda vez.
Apresentação e análise de casos Ele afirmou para a fonoterapeuta que não sabia
escrever e que tinha medo da atividade escrita, pois
Antes de apresentar minha análise, cabe dizer quando tentava escrevia errado, trocando as letras
que os dois casos de crianças apresentados na pes- ou esquecendo de grafá-las. A fonoterapeuta procu-
quisa estão vinculados ao Núcleo de Trabalho:1 rou encaminhar eventos com a escrita, nos quais ele

1
Convém esclarecer que esse Núcleo de Trabalho é composto por alunos e professores do curso de graduação em Fonoaudiologia
e do mestrado em Distúrbios da Comunicação da Universidade Tuiuti do Paraná. Além de pesquisas, produções científicas e
projetos de extensão universitária, tal núcleo tem, a partir de uma concepção interacional e discursiva de linguagem, atendido
crianças consideradas “problemas”, geralmente encaminhadas pelas escolas em que estudam.
2
Vale ressaltar que o meu interesse, nessa pesquisa, não é detalhar o acompanhamento fonoaudiológico desenvolvido no referido
núcleo. Em concordância com os meus objetivos, pretendo apenas indicar que os dados da escrita dos sujeitos deste estudo são
absolutamente previsíveis no processo de aquisição da linguagem e, por isso, não denotam sintomas patológicos.

Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 16(3): 355-369, dezembro, 2004 359


Giselle de Athayde Massi
ARTIGOS

pôde manipular essa modalidade de linguagem a crianças pudessem ler, registrou um relato de expe-
partir de atividades dialógicas. G.W.G. leu textos riência pessoal, criou textos publicitários.
narrativos, escreveu regras de jogos para que outras Analiso, na seqüência, duas de suas produções:

TEXTO 1

13/5/2002

Após ter lido um bilhete produzido pela tera- vizinha” – e evidencia explicitamente alguns dos
peuta, no qual ela narrava eventos de experiência locais onde vivenciou as atividades – “em casa”,
pessoal, G.W.G. foi solicitado a relatar-lhe por meio “no mercado Carrefour”, deixando outros não es-
da escrita fatos que havia vivenciado no dia ante- clarecidos. Ao afirmar, por exemplo, que almoçou
rior, produzindo a seqüência textual apresentada fora, ele não explicita se esse almoço foi em um
acima. Desse modo, tal texto foi produzido para restaurante ou na casa de alguém.
uma leitora bem definida – a terapeuta – e configu- Ao relatar “fomos ao mercado...”, ele também
ra-se como um relato de experiência pessoal rela- não evidencia quem o acompanhou: se a sua vizi-
cionado às atividades realizadas por G.W.G. no Dia nha ou sua mãe, ou a sua irmã, ou, ainda, se todas
das Mães. Ele inicia seu texto usando de maneira elas juntas. De qualquer maneira, o texto produzi-
contextualizada os dêiticos “ontem” e “eu” que, do por G.W.G. não é incompreensível. Longe dis-
construídos de acordo com a situação enunciativa, so, é um texto que mantém continuidade tópica, na
dão conta de cumprir a solicitação feita pela tera- medida em que centra o discurso na dimensão do
peuta esclarecendo a pessoa envolvida no relato e assunto em pauta – um relato sobre o dia anterior –
o tempo em que se deu o evento relatado. Dando fazendo uso de vários recursos textuais capazes de
continuidade ao seu texto, G.W.G. faz construções lhe conferir tal continuidade.
verbais assinaladas no pretérito perfeito que, con- Inegavelmente, esse menino sabe usar a escrita
forme Perroni (1992) e Koch (1996), são próprios para construir seus textos, e, nesse caso, queremos
do mundo narrado. Ele, também, garante a seqüen- apontar para a relevância do papel desempenhado
ciação de sua produção lançando mão dos recursos pelo outro no processo de aquisição da linguagem.
lingüísticos: “depois”, várias vezes, e “mais tar- É exatamente esse outro que, participando da cons-
de”. Além disso, G.W.G. esclarece, fazendo uso de trução da escrita e da constituição conjunta da signi-
possessivos, que outras pessoas participaram, com ficação, pode indicar a G.W.G. a necessidade de ele
ele, das atividades vivenciadas no dia anterior – esclarecer, nas suas produções, alguns pontos obs-
ele escreve “minha mãe”, “minha irmã”, “minha curos facilitando o trabalho dos leitores.

360 Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 16(3): 355-369, dezembro, 2004


Dislexia ou processo de aquisição da escrita?

ARTIGOS
Ao invés de procurarem falhas na escrita da cutores – o produtor do texto e o outro participan-
criança e fecharem diagnósticos repletos de cono- te do processo de produção, o professor, o fonoau-
tações negativas, profissionais envolvidos com a diólogo –, na prática viva da linguagem, à cons-
aprendizagem da escrita devem considerar, confor- trução de um diálogo, o qual poderia ser usado na
me apontado pelo panorama teórico do trabalho, reescrita do texto elaborado por G.W.G. Tendo em
que a internalização de um saber depende de um vista a constituição de uma atividade dialógica,
processo ativo que emerge de dinâmicas interati- esse outro participante da produção textual assu-
vas estabelecidas entre um aprendiz e um outro mais miria seu papel na interação verbal viva e real sem
experiente. Partindo desse entendimento, ressalto desvincular a linguagem de seu encontro com a
a relevância de um trabalho com G.W.G. na produ- vida. Como bem observa Geraldi (1995, p. 178),
ção de seus textos. Um trabalho sobre seu relato, “devolver a palavra ao outro implica querer escu-
por exemplo, abriria várias possibilidades de refle- tá-lo”, e a escuta e a leitura não são atitudes passi-
xão acerca dos apontamentos que faz: vas, mas dependem da interação. A partir dessa
a) Quando ele afirma “ontem eu dei um pre- contrapalavra, a reconstrução da seqüência tex-
sente para minha mãe”: caberiam perguntas como: tual elaborada por G.W.G. seria guiada por uma
por que comemoramos o Dia das Mães? Por que, série de reflexões capazes de imprimir-lhe modi-
nesse dia, lhe damos um presente? ficações relevantes.
b) Quando ele escreve “mais tarde fomos Percebendo o interesse desse menino pela pro-
almoçar fora”: seria produtivo questionar: em que dução de textos publicitários, a terapeuta propôs
lugar foram almoçar? Qual o tipo de comida que uma atividade lúdica em que ambos escolheram
mais apreciam? figuras representativas de eletroeletrônicos atri-
Essas perguntas, dentre inúmeras outras que buindo-lhes preços promocionais, conforme apre-
poderiam ser elaboradas, conduziriam os interlo- sentado em seguida:

TEXTO 2

Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 16(3): 355-369, dezembro, 2004 361


Giselle de Athayde Massi
ARTIGOS

Feito isso, a terapeuta solicitou que G.W.G. elaborasse seqüências textuais, a partir das quais, em
função de uma situação hipotética, ele passou a anunciar, por meio da escrita, os diversos produtos
representados nessa figura:

TEXTO 3

1º/7/2002

Nesse texto, assim como no anterior, é possí- dequações” gráficas que discutiremos depois. An-
vel verificar vários gestos de refacção, trocas da tes, convém considerar que, nessa produção, G.W.G.
letra o por u em monitor, de o por l em portátil, parece operar com um script bastante conhecido,
omissões de n em controle e de r em grátis, acrés- caracterizado por ações publicitárias de lojas de de-
cimo de h em lâminas (lamenhas), entre outras “ina- partamento e/ou supermercados que buscam ven-

362 Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 16(3): 355-369, dezembro, 2004


Dislexia ou processo de aquisição da escrita?

ARTIGOS
der produtos a partir de ofertas e planos promocio- tulo de portador de uma dificuldade ou distúrbio
nais, indicando preços e vantagens relacionados à de aprendizagem em função de apresentar trocas,
compra dos respectivos produtos. adições e omissões de letras.
Uma vez constatado esse script, torna-se pos- Se essa investigação estivesse pautada em ma-
sível interpretar os diferentes segmentos do anún- nuais que buscam classificar a dita dislexia como
cio elaborado por G.W.G. Além disso, a constru- um distúrbio de aprendizagem da escrita, tais ina-
ção: “barbeador da melhor marca de barbeador: dequações ortográficas apresentadas na escrita
PHILIPS. Duas voltagens 110 e de 220. Com três desse menino seriam encaixadas em quadros
lâminas e mais três lâminas grátis...” é elaborada diagnósticos que corroboram a noção de distúr-
por G.W.G. a partir de um processo anafórico que bio, desconsiderando as reflexões e as atividades
não conta com antecedentes ou subseqüentes ex- que G.W.G., de forma única e singular, lança so-
plícitos no texto. Nesse caso, as estratégias cogni- bre o objeto escrito.
tivas dispostas por esse menino estão vinculadas a Em direção contrária, tomando a linguagem,
conhecimentos semânticos armazenados no léxi- nos termos de Franchi (1992), como atividade cons-
co. A introdução dos referentes duas voltagens e titutiva de recursos expressivos próprios de uma
três lâminas está ancorada em vínculos semânti- língua natural, entendo os “erros” gráficos apre-
cos estabelecidos com o item barbeador, ou seja, sentados por G.W.G. como resultantes de seu pró-
está inscrita nas relações parte/todo, conhecidas prio trabalho de manipulação da escrita.
como relações mereonímeas, de acordo com Sete dias depois da elaboração do último texto
Marcuschi (2001). apresentado, a mãe de G.W.G. comunicou à fono-
Por isso, nessa seqüência textual, podemos terapeuta que, por ter conseguido vaga em um cen-
verificar um tipo de anáfora indireta. Para Marcus- tro psicopedagógico próximo a sua casa e recomen-
chi, “as anáforas indiretas evidenciam essencial- dado pelo neuropediatra, G.W.G. interromperia o
mente três aspectos: primeiro a não-vinculação com trabalho que estava sendo realizado. Por isso, não
a correferencialidade, segundo, a não vinculação tive mais contato com esse caso. De qualquer for-
com a noção de retomada e, terceiro, a introdução ma, enfatizo que os dados da escrita de G.W.G apon-
de referente novo”. tam para o fato de ele estar em pleno processo de
Esse exemplo simples indica uma seqüência construção, manipulando a escrita como um obje-
com uma referenciação implícita, sendo produzi- to de conhecimento.
da na atividade dialógica à medida que G.W.G. De um ponto de vista textual, é possível afir-
mobiliza, nos termos de Koch (2003), um vasto mar que esse menino dispôs de diferentes estraté-
conjunto de conhecimentos: o conhecimento lin- gias na produção de seus textos. Ele se valeu de
güístico, o conhecimento de mundo, o conheci- atividades de referenciação; fez uso de recorrência
mento da situação comunicativa e de suas “re- de termos garantindo um efeito de intensificação
gras”, o conhecimento tipológico de produções aos seus textos, lançou mão de operadores tempo-
textuais e, também, o conhecimento de outros tex- rais e de outros articuladores discursivos, dando
tos que permeiam a nossa cultura, envolvendo a progressão seqüencial às suas produções. Assim,
intertextualidade. como produtor/planejador, G.W.G., em função de
Além disso, no interior de construções tex- atividades dialógicas, organizou seus textos orien-
tuais, elaboradas e consideradas a partir do uso efe- tando o seu interlocutor, por meio de marcas tex-
tivo da linguagem, a investigação de aspectos grá- tuais, viabilizando a construção de um(ns) sentido(s).
ficos e convencionais da escrita aponta os “erros” De um ponto de vista gráfico, a investigação
ortográficos e refacções como atitudes previstas – dos textos apresentados mostra que G.W.G. se utili-
hipóteses lançadas sobre tal material lingüístico – za de letra cursiva, preocupando-se com o uso de
no processo de aquisição desse objeto de conheci- maiúsculas e minúsculas, com o uso de sinais de
mento. Chama a atenção o fato de esse menino ter pontuação, e, conforme já apontado, todos os “er-
afirmado que não sabia escrever. Sua afirmação, ros” e refacções apresentados por ele são lingüisti-
provavelmente vinculada à noção da escola e con- camente justificados e tomados, nos termos de
firmada pela conduta médica, denuncia a imagem Guinzburg (1989), como indícios, pistas, sinais da
negativa que ele estava lançando sobre si mesmo e concretização da aquisição da escrita mediante um
sobre a escrita. G.W.G. já havia incorporado o ró- trajeto único e particular percorrido por esse menino.

Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 16(3): 355-369, dezembro, 2004 363


Giselle de Athayde Massi
ARTIGOS

Analisando, por um lado, as possibilidades que nado à língua escrita, apresenta no momento de pro-
G.W.G. mostrou para a produção de textos e, por duzir seus textos. Assim, hesita diante da escrita,
outro, as suas “inadequações” ortográficas como escreve textos curtos, e busca, o máximo que pode,
hipóteses que fazem parte do processo de constru- manter-se afastado dessa atividade, afirmando que
ção da escrita, discordo da visão da escola e do mé- não sabe escrever, que tem medo, que escreve er-
dico que aponta esse menino como portador de um rado.
distúrbio relacionado à linguagem escrita. Em posi- Porém, ao invés de seguir os moldes de uma
ção contrária, distanciando-me de uma noção en- proposta que abstrai o indivíduo da relação que
volvida com a medida padronizada do reconheci- estabelece com a palavra do outro e, por aí, justifi-
mento e reprodução de sílabas, palavras e frases iso- car essa situação em função de questões inerentes
ladas de um contexto, antes de tomar dados da es- ao sujeito, tomo como unidade de análise, confor-
crita de G.W.G. como sintomas de um distúrbio, en- me proposta anunciada por Bakhtin, o vínculo in-
tendo tais dados como indícios da relação singular divíduo-sociedade em uma dimensão histórica e
que esse menino está estabelecendo com a escrita. entendo que o medo e o bloqueio apresentado pelo
Para finalizar a análise desse caso, convém sujeito tomado como portador de uma dificuldade/
comentar ainda sobre os efeitos de práticas discur- distúrbio denunciam, de maneira intersubjetiva, os
sivas, que, pautadas na noção de “erro” como ma- valores de seu grupo social. Afinal, o discurso em
nifestação patológica, agem sobre o aprendiz, pro- torno do medo é marcado pelas condições de sua
duzindo nele a sistematização de um distúrbio e produção e significação.
revelando interpretações equivocadas que desinte- Nesse caso específico, a significação da con-
gram a relação sujeito/linguagem. Nesse sentido, dição de ser tomado como portador de um distúr-
aponto para a necessidade de ser considerado que bio de aprendizagem da escrita constitui-se na ten-
a criança, o jovem ou o adulto que estão se apro- são estabelecida por meio de diferentes vozes que
priando da escrita não são meros organismos va- cruzam a história pessoal do sujeito. Por isso, o
zios. Antes disso, eles são afetados pelos sentidos medo, a insegurança, a relutância diante da escri-
veiculados em diferentes espaços sociais – na es- ta, antes de serem tomados como manifestações
cola, na clínica médica, no posto de saúde –, os sintomáticas de uma suposta debilidade indivi-
quais avaliam suas produções escritas e significam dual, refletem a aproximação e, ao mesmo tem-
suas supostas falhas como dificuldades, distúrbi- po, o confronto com a palavra do outro, pois, se-
os, dislexias. gundo argumenta Bakhtin (1992b, p. 317), nosso
Partindo de uma visão biologizante, esses as- próprio pensamento nasce e forma-se em intera-
paços sociais idealizam o sujeito-aprendiz e o abs- ção e em luta com o pensamento alheio”. Toman-
traem dos efeitos de sentido veiculados pela lin- do a elaboração do conhecimento como um pro-
guagem. Nessa direção, fatos da escrita que não cesso que se constitui socialmente, ressalto a ne-
coincidem com escalas normativas são intrepreta- cessidade de profissionais – professores, pedago-
dos como déficits que podem indicar problemas gos, médicos, fonoaudiólogos, psicólogos – re-
inerentes ao indivíduo, autorizando que o processo fletirem sobre os efeitos que uma visão patologi-
de escolarização seja analisado por meio de crité- zadora – do distúrbio, da imaturidade, da disfun-
rios perpassados pelo pensamento naturalista. Cri- ção, da lesão, da dislexia – produz sobre os pro-
térios esses que obscurecem a singularidade huma- cessos de construção da escrita e de constituição
na e sua profunda relação com o coletivo. de subjetividades.
Nos termos de Bahktin (1992a, p. 282), “a lín-
gua penetra na vida através dos enunciados con- O caso M.S.
cretos que a realizam, e é também através dos enun-
ciados concretos que a vida penetra na língua”. Por M.S. é uma menina que foi, diferente do outro
isso, pelo seu caráter intersubjetivo, o enunciado caso analisado, diretamente encaminhada, pela es-
verbal não se limita ao indivíduo que o expressa, cola, ao Núcleo de Trabalho: Fonoaudiologia e Lin-
mas pertence também ao seu grupo social. Esse guagem Escrita, quando, aos nove anos de idade,
caráter intersubjetivo do enunciado me leva a re- estava no 4o ano do ensino fundamental. Para a es-
fletir sobre o medo e o bloqueio que G.W.G., diag- cola, M.S. seria portadora de dificuldade de apren-
nosticado como portador de um distúrbio relacio- dizagem da língua escrita. Essa menina, em con-

364 Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 16(3): 355-369, dezembro, 2004


Dislexia ou processo de aquisição da escrita?

ARTIGOS
junto com a fonoterapeuta, desenvolveu atividades de M.S. A primeira delas configura-se como um
interacionais e discursivas com a escrita: ela parti- diálogo compartilhado, no qual ambas as partici-
cipou de um diálogo compartilhado, fez leituras de pantes da prática clínica – fonoterapeuta e a
regras de jogos, escreveu cartas. criança –, fazem uma à outra perguntas e respostas
Apresento, a seguir, a análise de duas produções por escrito.

TEXTO 4

Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 16(3): 355-369, dezembro, 2004 365


Giselle de Athayde Massi
ARTIGOS

Continuação do Texto 4

22/10/2001

Na análise dessa produção, é possível perce- forma, mobilizando esse conjunto de conhecimen-
ber que, ao levar em consideração as perguntas fei- tos, ela também fez uma série de perguntas a sua
tas pela terapeuta, M.S. foi capaz de organizar suas terapeuta. E elaborando perguntas e respostas, ela
respostas de maneira condizente, construindo sen- pôde cumprir seu papel na situação interativa, dan-
tido para sua leitura. Ela respondeu a todas as ques- do continuidade ao jogo dialógico a partir do uso
tões elaboradas pela terapeuta, na medida em que de vários elementos textuais. Ela fez uso de dêiti-
assumiu o papel de interlocutora que atua sobre o cos – aqui, ano que vem, eu, você –, como expres-
material lingüístico, compreendendo os enuncia- sões lingüísticas cuja interpretação se apóia em
dos produzidos pelo outro. Por isso, ressalto que a parâmetros de lugar, de tempo e de pessoas envol-
compreensão não é mera decodificação, mas re- vidas na situação da enunciação. Ela lança mão de
quer um processo de inferência. articuladores – mas e porque – entrelaçando rela-
A inferência é, segundo Koch (2002; 2003), ções causais. Portanto, apesar de ser apontada como
uma operação pela qual o leitor/ouvinte, utilizan- portadora de dificuldades relacionadas à escrita,
do-se de um conhecimento de mundo, é capaz de M.S. mostra que pode usar essa realidade lingüís-
compreender o texto. Com isso quero dizer que para tica em eventos dialógicos, cumprindo seu papel
responder aos enunciados elaborados pela terapeu- como leitora e também como autora de sua escrita.
ta, M.S. mobilizou um vasto conjunto de saberes Fato que pode ser confirmado, na apresentação e
no interior de um evento comunicativo. Da mesma análise do próximo texto:

366 Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 16(3): 355-369, dezembro, 2004


Dislexia ou processo de aquisição da escrita?

ARTIGOS
TEXTO 5

12/11/2001

Esse texto foi produzido no último encontro da no texto em uma cadeia referencial, pela substi-
realizado entre M.S. e a terapeuta. Depois de ana- tuição em elipse – “Sabe que eu gostei de traba-
lisar a escrita dessa menina e não encontrar proble- lhar com você” –, pelo uso dos pronomes te e você.
mas capazes de justificar um atendimento clínico, Para finalizar, anuncia e introduz dois versos co-
a terapeuta, anunciando essa situação para M.S., nhecidos, relacionando-os com os demais elemen-
sugeriu que ambas escrevessem – uma para outra – tos do texto e com a situação enunciativa. Portan-
uma carta de despedida. Então, M.S. elaborou o to, sem dúvida, ela mostra que sabe fazer uso de
sua bilhete sem fazer perguntas. conhecimentos que lhe permitem construir uma
Nessa produção, assim como na anterior, essa seqüência textual.
menina novamente escreve, assumindo-se como Além das questões textuais, ao analisarmos
agente da ação da linguagem, para uma interlocu- esses dois textos, é possível afirmar que essa meni-
tora definida, a fonoterapeuta. M.S. estabelece re- na já domina vários aspectos gráficos e convencio-
lações entre segmentos textuais e garante progres- nais da escrita. Ela estabelece correspondências
são temática ao seu texto, articulando tema-rema pertinentes entre grafemas e fonemas, apresentan-
e, dessa forma, a partir de uma informação dada, do poucos “equívocos”. M.S. escreve, por exem-
introduz novas informações; na situação discursi- plo, “iram” para irão e “juelhos” para joelhos. To-
va, ela faz referência à interlocutora, que é retoma- davia, esses fatos são absolutamente previsíveis

Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 16(3): 355-369, dezembro, 2004 367


Giselle de Athayde Massi
ARTIGOS

durante o processo de aquisição da escrita: no pri- de tarefas avaliativas assentadas em uma perspec-
meiro caso, ela grafa “iram”, mostrando que, nes- tiva de linguagem que a concebe como mero códi-
se contexto, ainda não sabe como representar a na- go de comunicação estanque. Com a intenção de
salização; no segundo caso, escreve “juelhos” pro- suplantar procedimentos avaliativos que ignoram
vavelmente por pautar-se na oralidade. a interação socioverbal e descrevem formas lingüís-
M.S. também apresenta “equívocos” vincula- ticas fragmentadas e distanciadas de um contexto
dos ao uso das letras f/v, como no caso da escrita significativo, analisei casos de sujeitos rotulados e
das palavras: “voi” para foi e uma hipersegmenta- diagnosticados como disléxicos ou portadores de
ção em “com migo”. Essas inadequações, porém, dificuldades com a linguagem escrita, sem perder
são freqüentes no processo de aquisição da escrita de vista a construção conjunta de atividades dialó-
e nada têm de patológico. Além do domínio da gicas, o conhecimento partilhado, a constituição dos
mecânica básica da escrita, ou seja, de saber que interlocutores e de suas imagens, a situação ime-
segmentos gráficos correspondem a segmentos so- diata de manifestação da linguagem e o seu caráter
noros, M.S. faz uso apropriado de maiúsculas e social mais amplo.
minúsculas e, embora faça em diversas situações Nessa direção, foi possível perceber que
uso “inadequado” de sinais de pontuação, ela já se G.W.G. e M.S. construíram unidades textuais, de
deu conta da necessidade de pontuar o texto, usan- acordo com diferentes propósitos e situações, as-
do vírgulas, pontos finais e de interrogação. sumindo-se como locutores, ou seja, como sujei-
No contraponto de uma interpretação pautada tos que tinham algo a dizer/escrever para outros,
na noção de distúrbio, tendo em vista a análise dos seus interlocutores leitores. Levando em conta as
textos produzidos por M.S., bem como os recursos situações de interlocução das quais participavam,
utilizados na construção dos mesmos e perceben- eles produziram textos diversos: escreveram car-
do as “inadequações” que envolvem a parte gráfi- tas, relataram experiências pessoais, participaram
ca e convencional de sua escrita como parte do pró- de diálogos compartilhados, a partir da emergên-
prio processo de aprendizagem e uso da escrita, cia de traços individuais na seleção de recursos lin-
distancio-me da posição assumida pela escola. Afi- güísticos vinculados aos aspectos gráficos e con-
nal, crianças capazes de formular hipóteses como vencionais.
as apresentadas por M.S. já sabem escrever, já en- A investigação de tais traços, os quais têm sido
tendem a base de um sistema alfabético e, sobretu- fonte de preocupação de escolas, na mesma medi-
do, já reconhecem os usos significativos que po- da em que são usados como critérios diagnósticos
dem fazer da escrita. para supostos distúrbios de aprendizagem, revela
indícios de manipulação da linguagem a apontar
Últimos apontamentos para a efetivação da apropriação da escrita. Nas
diferentes produções textuais, verifiquei diversas
Levando em consideração os objetivos propos- reflexões vinculadas à grafia e à convenção da es-
tos neste estudo, pude perceber que o conceito de crita: marcas de sinais de pontuação, o uso de
dislexia vinculado aos processos de aquisição da maiúsculas e minúsculas, a convenção ortográfica,
escrita é vago e impreciso. De um ponto de vista a segmentação da escrita.
etiológico, a literatura apresenta diferentes hipóte- Enfatizo, nos dois casos apresentados, que os
ses explicativas, sem contar com evidências capa- sujeitos manuseiam o objeto escrito em função de
zes de sustentá-las. Da mesma forma, as descri- estratégias diversas: apoio na oralidade, uso “inde-
ções sintomatológicas apresentam-se fragilizadas, vido” de letras em função do próprio sistema orto-
pois fatos que dizem respeito à construção da es- gráfico, transcrição fonética, gestos de refacção,
crita – uso indevido de letras, segmentação impró- segmentação “inadequada” por influência da ora-
pria de vocábulos, escrita pautada na transcrição lidade ou pelo conhecimento já interiorizado acer-
fonética, trocas ortográficas, entre outros – são des- ca da própria escrita. Estas estratégias, próprias do
critos como sinais de um déficit, os quais se apre- processo de aprendizagem da linguagem, coope-
sentam completamente desprovidos de uma inves- ram para a compreensão da relação que se instaura
tigação lingüística para elucidá-los. entre as características gerais dos sujeitos e as dife-
Ainda, sobre os ditos sintomas disléxicos, cabe rentes manifestações de sua singularidade e, por-
ressaltar que eles vêm sendo descritos em função tanto, não podem ser tomadas como sinais de dis-

368 Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 16(3): 355-369, dezembro, 2004


Dislexia ou processo de aquisição da escrita?

ARTIGOS
lexia ou de distúrbios/dificuldades de leitura e es- Recebido em julho/04; aprovado em novembro/04.
crita. Mas, ao contrário, indicam mecanismos de
Endereço para correspondência
reflexão sobre a linguagem escrita em uso e cons- Giselle de Athayde Massi
trução. Rua Monsenhor Manoel Vicente, 532, ap. 61, Água Verde,
Curitiba, CEP-80.620-230
Referências
E-mail: giselle.massi@utp.br

Abaurre MBM. Lingüística e psicopedagogia. In: Scoz B, et al.


Psicopedagogia: o caráter interdisciplinar na formação e atuação
profissional. Porto Alegre: Artes Médicas; 1987. p. 186-216.
Abaurre MBM. A relevância dos critérios prosódicos e
semânticos na elaboração de hipóteses sobre a segmentação na
escrita inicial. Bol ABRALIN 1991;11:203-17.
Abaurre MBM. O que revelam os textos espontâneos sobre a
representação que faz a criança do objeto escrito. In: Kato MA,
organizadora. A concepção da escrita pela criança. 2.ed.
Campinas: Pontes, 1992. p.135-42.
Abaurre MBM. Os estudos lingüísticos e a aquisição da escrita.
In: Castro MFP. O método e o dado no estudo da linguagem.
Campinas: Ed.UNICAMP; 1996. p. 111-65.
Abaurre MBM, Fiad RS, Mayrink-Sabinson MLT. Cenas de
aquisição da escrita: o sujeito e o trabalho com o texto.
Campinas: Mercado de Letras; 1997.
Abaurre MBM, Silva A. O desenvolvimento de critérios de
segmentação na escrita. Temas Psicol 1993;1:89-102.
Bakhtin M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins
Fontes; 1992a.
Bakhtin M.Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo:
Hucitec; 1992b.
Cagliari LC. Alfabetizando sem o bá – bé – bi – bó – bu. São
Paulo: Scipione; 1998.
Cuba dos Santos C. Dislexia específica de evolução. São Paulo:
Sarvier; 1987.
Franchi C. Linguagem: atividade constitutiva. Cad Est Ling
1992;22:9-39.
Geraldi JW. Portos de passagem. 3.ed. São Paulo: Martins
Fontes; 1995.
Guinzburg C. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história.
São Paulo: Companhia das Letras; 1989. Sinais: raízes de um
paradigma indiciário; p.143-80.
Ianhez ME, Nico MA. Nem sempre é o que parece: como
enfrentar a dislexia e os fracassos escolares. São Paulo: Alegro;
2002.
Koch IGV. A coesão textual. 8.ed. São Paulo: Contexto; 1996.
Koch IGV. Formas lingüísticas e construção do sentido. In: Silva
DEG, Vieira JA, organizadoras. Análise do discurso: percursos
teóricos e metodológicos. Brasília (DF): Plano; 2002. p. 21-37.
Koch IGV. Desvendando os segredos do texto. 2.ed. São Paulo:
Cortez; 2003.
Marcuschi L. Letramento e oralidade no contexto das práticas
sociais e eventos comunicativos. In: Signorini I, organizadora.
Investigando a relação oral/escrito e as teorias do letramento.
Campinas: Mercado das Letras; 2001. p. 23-50.
Moysés MAA, Collares CAL. A história não contada dos
distúrbios de aprendizagem. Cad CEDES 1992;28:23-50
Peirce CS. Semiótica. São Paulo: Perspectiva; 1995.
Perroni MC. Desenvolvimento do discurso narrativo. São Paulo:
Martins Fontes; 1992.

Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 16(3): 355-369, dezembro, 2004 369

Você também pode gostar