Você está na página 1de 11

A luta pela democratização do acesso ao

ensino superior: o caso dos cursinhos


populares

Thiago Ingrassia Pereira*


Leandro Raizer**
Mauro Meirelles***

Resumo
Os vestibulares não estão baseados
O surgimento do movimento dos no conteúdo que o aluno recebe da
denominados “pré-vestibulares popu- rede pública. Os vestibulares estão
lares” está associado à desigualdade baseados no que os cursinhos caros
de acesso ao ensino superior brasi- fornecem para quem pode pagar.
leiro, particularmente aos pobres e Esse vestibular é desonesto, ele não
afro-descendentes. A luta pela demo- pode se basear no que os cursinhos
cratização do acesso ao ensino supe- caros oferecem, tem que se basear
rior abre um debate sobre o próprio
em outros saberes.
sistema de ensino, pois sua progres-
siva universalização ainda contrasta Frei David
com a qualidade do ensino ofertado à
juventude brasileira. Este artigo pro-
cura discutir o papel dos cursinhos
populares de Porto Alegre na inclusão
*
Sociólogo, doutorando em Educação pela Uni-
de segmentos sociais historicamente versidade Federal do Rio Grande do Sul; pro-
excluídos dos bancos universitários, fessor Assistente da Universidade Federal da
Fronteira Sul (UFFS), Campus Erechim. E-
na interface teórica entre a Sociologia
mail: thiago.ingrassia@gmail.com
e a Pedagogia, buscando alternativas **
Sociólogo, doutorando em Sociologia pela Uni-
teóricas e práticas para a construção versidade Federal do Rio Grande do Sul/Uni-
de um ambiente educacional que fo- versité de Montréal. Bolsista Capes. E-mail:
mente o crescimento econômico e tec- leandroraizer@gmail.com
nológico do país com justiça social. ***
Sociólogo, doutorando em Antropologia Social
pela Universidade Federal do Rio Grande do
Palavras-chave: Pré-vestibular popu- Sul; bolsista Capes. E-mail: mauro-meirelles@
lar. Democratização do ensino supe- hotmail.com
rior. Inclusão social. Pedagogia eman-
cipatória. Recebido: 16.03.2010 – Aprovado: 29.04.2010

86
86

REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 17, n. 1, Passo Fundo, p. 86-96, jan./jun. 2010
Introdução A conquista por uma vaga numa insti-
tuição de ensino superior (IES) pública
A Conferência Mundial sobre o En- – federal ou estadual – fica praticamen-
sino Superior, realizada em Paris em te inalcançável para aqueles que não ti-
outubro de 1998, reuniu a comunidade veram acesso aos recursos educacionais,
acadêmica para debater sobre os rumos familiares, afetivos e emocionais sufi-
da educação superior e o papel da uni- cientes para vencer a disputa. Dessa for-
versidade no contexto societário. Desse ma, devido ao contexto socioeconômico
encontro, por meio da Declaração de que oprime boa parte da população, ao
Paris, uma ampla agenda de questões sucateamento da escola pública que atua
foi levantada e, do ponto de vista for- decisivamente para a diminuição da
mal, reafirmou-se, entre outras coisas, o qualidade do ensino ofertado e à neces-
compromisso com o conhecimento como sidade permanente de qualificação que o
patrimônio social e com a educação pú- mercado de trabalho exige, configura-se
blica. um descompasso entre a excelência das
Além disso, foi definido no Acor- IES públicas e a sua disponibilidade de
do de Santiago, durante a I Cumbre – estar aberta àqueles que mais precisam
Reunião de Reitores de Universidades de seu serviço.
Públicas Ibero-Americanas, em agosto Assim, na prática, ainda é preciso
de 1999, o conceito de universidade pú- que se percorra um grande caminho en-
blica: “O público é o que pertence a todo tre as intenções expressas pela própria
povo. A universidade pública é a que comunidade acadêmica, que já está in-
pertence à cidadania e está a serviço do cluída no ensino superior, contidas na
bem comum” (PANIZZI, 2002, p. 13). A Declaração de Paris, e a realidade de
partir dessa reunião, seguiram-se diver- exclusão de pobres, negros e índios dos
sos outros encontros e outros protocolos bancos universitários. Para de fato per-
de intenções acerca do papel estratégico tencer “a todo o povo”, a universidade
do ensino superior público, ratificando a precisa ser repensada e criar mecanis-
educação como um direito. Nesse senti- mos de inclusão desses segmentos his-
do, vale lembrar que o Brasil é signatá- toricamente excluídos de seu ambiente.
rio de diversos protocolos que procuram Sabemos que, paradoxalmente, como
fortalecer a universidade pública, demo- patrimônio público e estatal, as univer-
cratizando o acesso e a permanência dos sidades públicas são mantidas inclusive
estudantes. pelos trabalhadores e desempregados
Contudo, mesmo diante de alguns que a elas não têm acesso.
avanços importantes em sua democrati- Este texto discute um dos mais inci-
zação, como uma maior oferta de vagas e sivos espaços na luta pela democra-
de cursos noturnos e da política de ações tização do ensino superior: os cursos
afirmativas (PEREIRA, 2008), o ensino pré-vestibulares populares. Breve-
superior público brasileiro é ainda mui- mente, será abordada a gênese desse
to elitista e extremamente excludente. movimento no Brasil e no Rio Grande

87

REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 17, n. 1, Passo Fundo, p. 86-96, jan./jun. 2010
do Sul. Em seguida, o foco são as ex- dentro de universidades públicas e/ou
periências de Porto Alegre que, devido com apoio de administrações progressis-
ao seu caráter informal e voluntarista, tas; 4) década de 1990 em diante, onde
se constituem em seu fazer cotidiano, os cursinhos se vinculam a diversos
apontando para perspectivas possíveis movimentos comunitários, sendo um
de um trabalho onde aparece o com- “encontro” com as práticas de educação
promisso militante e a criatividade popular presentes nas fases anteriores.
pedagógica. Dessa forma, o trabalho desenvol-
vido pelos cursinhos populares aconte-
A invenção dos cursinhos ce por meio de um “duplo movimento”,
onde a preparação para as provas do
populares vestibular acontece junto com discus-
sões críticas sobre a realidade social
Os cursinhos populares surgem e, até mesmo, sobre o próprio processo
efetivamente a partir do final da década seletivo do vestibular. Em vista disso,
de 1970, contudo, é na década de 1990 Monteiro (1996) ratifica o desafio dos
que a experiência do pré-vestibular cursinhos populares:
para negros e carentes (PVNC), no Rio
de Janeiro, vai servir de parâmetro A proposta metodológica, ideológica e
para o grande surgimento dessas inicia- filosófica é de não apenas repassar os
tivas na atualidade. A pluralidade e a conteúdos programáticos do segundo
informalidade, aliadas ao idealismo de grau, mas ampliar a discussão de uma
proposta de transformação da socieda-
alguns estudantes universitários, são
de [...]. Nesse sentido a educação para
algumas das características marcantes
a cidadania é, também, um desafio e
dos cursinhos, o que os tornam labora-
objetivo político dos “prés”. (p. 58).
tórios de experiências pedagógicas que
ainda carecem de um melhor entendi- Com base nesses pontos, podemos
mento acerca das possibilidade e limites ver que os cursinhos são manifestações
que encerram. organizadas que se orientam para um
Em seu estudo sobre os cursinhos, determinado fim, sendo constituídos por
Castro (2005) aponta quatro fases da gê- pessoas das mais diferentes concepções
nese dos cursinhos populares no Brasil: políticas e pedagógicas, portanto, com
1) na década de 1950, por meio da jun- alto grau de pluralidade em seu corpo
ção dos cursinhos da Faculdade Politéc- docente e de colaboradores, uma plurali-
nica da USP e do Centro Acadêmico Ar- dade política que, segundo Santos (2005,
mando Sales de Oliveira, da USP de São p. 4), é composta de “duas vertentes, a
Carlos; 2) durante a ditadura militar daqueles que politizam sua inserção e a
(1964-1985), com algumas experiências daqueles que negam a dimensão política
advindas de movimentos da teologia da de sua atuação, se imbricam na cotidia-
libertação (“esquerda católica”); 3) déca- nidade dos cursos, disputando cada mo-
das de 1980 e 1990, onde os cursinhos mento de construção das iniciativas”.
surgem a partir dos chamados “novos Os organizadores e participantes
movimentos sociais”, principalmente dos cursinhos, via de regra, são estu-

88
88

REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 17, n. 1, Passo Fundo, p. 86-96, jan./jun. 2010
dantes universitários que, conscientes tante para a mobilização das pessoas,
de seu papel na universidade/sociedade, uma vez que o espaço de um cursinho é
buscam organizar cursinhos que deem uma reunião de sonhos e necessidades
conta de interferir na demanda dos seg- que congrega pessoas com trajetórias
mentos populares excluídos do acesso similares e que, de alguma forma, não
ao ensino superior. Contudo, existe uma se acomodam diante da estrutura social
grande pluralidade de visões dentro do que as oprime. Por isso, Sanger (2003)
cursinho e nem todos os seus colabora- defende que os cursinhos populares são
dores são conscientes e politizados, in- espaços de socialização e de troca de ex-
clusive muitos estudantes começam a periências que em muito ultrapassam a
dar aulas nos cursinhos com objetivos mera preparação ao vestibular, mexen-
que fogem da democratização do acesso do na própria autoestima das pessoas.
ao ensino superior ou da militância por Como uma das maiores dificuldades
um mundo menos desigual e injusto. no sistema ensino-aprendizagem é a
Nesse ponto, se destacam os profes- baixa auto-estima e o sentimento de
sores que visam apenas experiência em inferioridade que muitos candidatos
sala de aula e aqueles que, mesmo sen- apresentam, ao deparar com provas
do apenas uma ajuda de custo, realizam que exigem um grau muito maior de
o trabalho, diante da falta de outras reflexão e conhecimento, a atuação
oportunidades, com o objetivo de auferir desses cursinhos na preparação de
algum retorno em termos de dinheiro ou uma consciência crítica é muito mais
até de vale-transporte. útil do que a “simples” apresentação de
A partir da constatação de uma conteúdos (SANGER, 2003, p. 98).
realidade objetiva de que pobres, ne-
O trabalho desenvolvido pelos cur-
gros, indígenas e estudantes de escolas
sinhos populares, por meio da sociali-
públicas em geral apresentam muitas
zação oriunda das relações horizontais
dificuldades para passar pelo vestibular
de reciprocidade, pode influenciar po-
e chegar à universidade, principalmente
sitivamente as noções psicológicas das
nas IES públicas, grupos de pessoas que
pessoas envolvidas nos projetos. Um
geralmente viveram essas dificuldades,
dos fatores que faz parte do sucesso em
mas que, mesmo assim conseguiram
qualquer atividade humana é autoesti-
entrar na universidade, se organizam
ma, a consciência de que é possível fa-
e montam um espaço destinado para
zermos algo que trará benefícios não só
a revisão dos conteúdos das provas do
particulares (para a própria pessoa em
vestibular.
nível microssistêmico), mas coletivos
Os mais diversos locais são usados
(para o conjunto da sociedade em nível
para a “sala de aula” do cursinho popu-
macrossistêmico). Algumas pesquisas
lar: salão paroquial, associação de mo-
foram realizadas sobre a relação da
radores, escolas públicas ou privadas e,
autoestima do estudante com o seu de-
até mesmo, um espaço em alguma resi-
sempenho no vestibular (GOES, 1991;
dência. Assim, há um claro componente
BARROSO, 1976), mostrando que entre
de ativismo nessas tentativas de prepa-
os fatores que influenciam os resultados
ração ao vestibular, sendo isso impor-

89

REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 17, n. 1, Passo Fundo, p. 86-96, jan./jun. 2010
dos estudantes a condição socioeconômi- ções em todas as suas atividades, desde
ca assume relevância. os alunos, comunidades, colaboradores,
Já na década de 1970, Mosquera universidades, escolas públicas e esco-
(1976) pesquisou as reações e relações las privadas, ONGs e o poder público
dos adolescentes que frequentavam cur- municipal.
sinho em Porto Alegre diante do vesti- Desde a década de 1990, os cur-
bular e sua autoestima, constatando que sinhos populares passam a integrar o
todo o processo do vestibular mexe com cenário da capital gaúcha por meio da
a autoestima das pessoas, sendo que, experiência pioneira do Pré-Vestibular
em relação ao aspecto de classe social, Popular Zumbi dos Palmares (PVZP)
“a de mais alto nível sócio-econômico- que segue, em linhas gerais, os pressu-
educacional manteve maior auto-estima postos desenvolvidos pelo Educafro no
e a de nível sócio-econômico-educacional PVNC e pelo Steve Biko na Bahia. Do
mais baixo diminuiu sua auto-estima”. trabalho realizado pelo Zumbi surgiram
(p. 79). outras experiências de cursinhos popu-
Dessa forma, trabalhando com esse lares em Porto Alegre. Contudo, existe
“duplo movimento”, os cursinhos vão uma controvérsia acerca do pioneirismo
agregando pessoas e ideias. Em novem- de outro cursinho, o do Centro dos Es-
bro de 2005, por exemplo, aconteceu o II tudantes Universitários de Engenharia
Encontro Regional de Cursos Pré-Vesti- (Ceue) da UFRGS, que teria surgido
bulares Populares em Santa Maria - RS, já nas décadas de 1950/1960. Como
organizado pelo Alternativa Pré-Vesti- um centro acadêmico, o Ceue insere-se
bular Popular de Santa Maria. Nesse num padrão observado na história dos
encontro, talvez o mais importante em pré-vestibulares, onde, até a década de
número de cursinhos e pessoas partici- 1960, universitários garantiam dinhei-
pantes realizado no estado, estiveram ro para o sustento de suas atividades
presentes coordenadores, professores e acadêmicas dando aulas preparatórias
alunos de cursinhos populares de Porto para o vestibular. (PEZZI, 2002).
Alegre, Viamão, Pelotas e Santa Maria. Além desses dois cursinhos cita-
dos que estão em atividade na cidade,

Da teoria à prática: a
temos cerca de outras 11 experiências
engajadas na democratização do acesso
experiência dos cursinhos ao ensino superior. Pesquisa realizada
populares em Porto em 2006 (PEREIRA, 2007) apurou a
existência de 13 cursinhos populares
Alegre em Porto Alegre, entre os quais, a ex-
periência do Cursinho Municipal, um
Com o objetivo de se constituírem intensivo realizado pela Prefeitura de
como espaços alternativos de prepara- Porto Alegre em parceria com o Pré-Ves-
ção ao vestibular, cursinhos populares tibular Monteiro Lobato que, diga-se de
foram sendo criados em Porto Alegre e passagem, apenas revisava conteúdos
hoje são uma realidade que atinge um para as provas sem a dimensão crítica
número relevante de pessoas e institui- desejável em cursos de caráter popular.

90
90

REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 17, n. 1, Passo Fundo, p. 86-96, jan./jun. 2010
Ademais, essa ideia do cursinho popu- salas de aulas, principalmente no turno
lar da prefeitura não se sustentou, tan- da noite, servem de abrigo para as aulas
to que o curso não foi mais oferecido à e demais atividades dos projetos. Como
população. a criação de espaços alternativos de pre-
A própria estrutura da UFRGS paração ao vestibular não se configura
abriga alguns cursinhos populares. em política pública, a presença dos cur-
Além do Ceue, o Zumbi dos Palmares sinhos nas escolas é resultado da vonta-
utiliza uma sala da Faculdade de Edu- de política das direções e da capacidade
cação no centro da cidade, o Resgate de organização da comunidade escolar.
trabalha na Escola Superior de Educa- Inclusive, esse é o caso do Colégio Rosá-
ção Física (ESEF), no Jardim Botânico rio, escola privada tradicional de Porto
e no Campus do Vale atua o Alternativa Alegre, que abrigou diversas experiên-
Cidadã que, inclusive, possui registro cias de cursinhos populares e hoje conta
como projeto de extensão da universida- com dois cursinhos em funcionamento
de. Além disso, merece destaque a expe- em sua estrutura: o Xama, mantido pela
riência pioneira do cursinho popular da ONG Sociedade Beneficente Cultural de
Restinga ligado ao Programa Conexões Religião Africana Chama de Duas Fa-
de Saberes/PROREXT/UFRGS.1 O Pré- ces e o Comunidade, que é um projeto
Vestibular Esperança Popular Restinga de ação social da Congregação Marista.
foi criado em 2006 numa associação de Nesse sentido, outra escola Maris-
moradores do bairro e hoje trabalha ta, o Colégio Marista Assunção, que à
numa escola municipal à noite, contan- noite tem a denominação de Colégio Ve-
do com o apoio de bolsistas de extensão torello, em alusão à professora Ivone Ve-
da UFRGS. torello, ativista de causas sociais no âm-
A ligação de cursinhos populares bito da escola, abriga o Bicho da folha,
com associações de moradores e movi- também desde 2006. Esses exemplos
mentos sociais é muito forte. Junto à indicam a pluralidade das experiências
Associação Satélite-Prontidão, um clube que se constituem na fronteira entre o
histórico da comunidade negra de Porto público e o privado.
Alegre, funciona um cursinho popular Nesse sentido, além das experiên-
desde 1996. Também, há o cursinho na cias citadas, destaca-se a do cursinho
Associação de Moradores do Rubem Ber- popular da Organização Não-Governa-
ta (Amorb), em funcionamento desde mental para a Educação Popular (On-
2005 a partir do trabalho de estudantes gep). O Pré-Vestibular Popular (PVP),
da Faculdade Porto-Alegrense (Fapa) com início em agosto de 2000, é o pro-
que fica próxima à associação. Por meio jeto que fomentou a criação da Ongep
da militância do movimento Resistência em 2002, sendo criado por meio de uma
Popular, a comunidade do Morro Santa- proposta pensada por estudantes das
na passou a ter um cursinho popular em mais diversas licenciaturas na discipli-
abril de 2006. na Estrutura e Funcionamento da Edu-
É importante destacar o envol- cação, ministrada pelo professor Carlos
vimento de escolas, públicas em sua Machado, na Faculdade de Educação da
maioria, com os cursinhos populares. As UFRGS.

91

REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 17, n. 1, Passo Fundo, p. 86-96, jan./jun. 2010
As primeiras aulas do cursinho lho nas escolas, sob pena de responder
ocorreram na Escola Estadual Professo- a processo judicial por ocupação de es-
ra Gema Belia (Gema), situada na zona paços públicos sem autorização do po-
leste de Porto Alegre, no turno da noite, der responsável. Diversos entraves de
numa região caracterizada pela pobre- ordem burocrática e de vontade política
za e exclusão social de grande parte de dificultaram o estabelecimento de um
seus habitantes. Para a concretização convênio com o Estado, fato que impos-
da atividade na escola, os organizado- sibilitou a continuidade do cursinho nas
res contaram com a parceria do Movi- escolas no próximo ano.
mento Comunitário Jardim Carvalho Assim, no ano de 2006, a Ongep,
e o Jornal Espaço Aberto, mostrando o com recursos de um fundo de reserva
interesse da comunidade em contar com oriundo dos anos anteriores, investiu no
um cursinho acessível aos moradores e aluguel de um espaço no centro da cida-
trabalhadores do bairro. de e iniciou as aulas no mês de maio com
No ano de 2002, o PVP consolida-se o curso semiextensivo noturno. A oferta
como um espaço alternativo de prepa- foi de 55 vagas (cerca de setenta inscri-
ração ao vestibular com a sua expansão tos), número das carteiras constantes
para a Escola Estadual Florinda Tubino na sala de aula provenientes de doações
Sampaio, no bairro Petrópolis. A partir e aquisição da instituição. No mês de
desse ano, o PVP passou a ofertar 120 agosto, foram abertas mais cinquenta
vagas noturnas, 60 por escola, no es- vagas para o curso intensivo pela tarde
paço de duas salas para trinta alunos. (cerca de oitenta inscritos). Para a rea-
Mesmo com a sua organização jurídica, lização das aulas, a Ongep conta com 25
a Ongep não possuía sede e funcionários professores, desde estudantes a partir
efetivos, atuando basicamente apenas do quarto semestre da graduação até
durante os horários de funcionamento doutorandos.
das aulas nas escolas que cediam as sa- Em relação à grade curricular, a
las ociosas do turno da noite. Além dis- Ongep se organiza para atender as dis-
so, a Ongep ocupava as dependências da ciplinas que constituem as provas do
UFRGS para a sua reunião administra- vestibular da UFRGS, oferecendo opção
tiva mensal, onde se reuniam coordena- em Língua Estrangeira (espanhol ou
dores, professores e representantes dos inglês), mais a disciplina de Cultura e
alunos. Cidadania (atual Sociologia). O turno
Em 2005, a Ongep enfrentou gran- da noite está organizado em cinco pe-
des dificuldades em manter o PVP nas ríodos de 40min com intervalo de 10min
escolas públicas estaduais em que vinha entre o segundo e o terceiro período. Já
desenvolvendo o seu trabalho. Ocupan- a turma da tarde tinha seis períodos
do duas salas ociosas, no turno da noite, diários com intervalo entre o terceiro e
a Ongep foi notificada por meio de um o quarto período. Aos finais de semana,
despacho do departamento jurídico da acontecem as revisões dos conteúdos e
Secretaria de Estado da Educação do atividades extraclasse, como palestras,
Rio Grande do Sul (SEE) que deveria churrascos, saídas de campo, futebol
“imediatamente” encerrar o seu traba- entre professores e alunos, visitas a

92
92

REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 17, n. 1, Passo Fundo, p. 86-96, jan./jun. 2010
museus (UFRGS, PUCRS), entre outras no: o método dialógico, a conscientiza-
atividades possíveis. ção e a opção política do ato pedagógico.
Assim, as atividades do PVP ilus- Para a autora,
tram por onde um cursinho popular
a educação do popular que prescreve,
caminha, ou seja, a tentativa de traba-
que dirige, que manipula, jamais será
lhar os conteúdos do vestibular a partir libertadora, já que, em Freire, os su-
de uma dimensão crítica, apostando no jeitos precisam tomar em suas mãos
estabelecimento de relações solidárias. a história de construção das suas ca-
Dessa forma, minhadas em direção ao “ser mais”.
o conhecimento deve ser trabalhado Caminhadas que são marcadas pelo
nos cursinhos populares a partir do medo, pela alegria, pela coragem, pelo
estabelecimento de relações humanas pessimismo, pelo amor, pela raiva, pela
em uma perspectiva horizontal, ou luta, mas que, uma vez iniciadas, mais
seja, que privilegia a troca de vivên- cedo ou mais tarde rebelam-se contra
cias entre os envolvidos nos projetos as prescrições independentemente de
(educandos, educadores, organizado- quem as pauta. A pedagogia de Freire
res, comunidade), tendo em vista as deixa claro que o aprofundamento e a
trajetórias de cada ente envolvido. Os recriação da concepção de Educação
próprios espaços informais nas comu- Popular e a qualificação das práticas
nidades ou mesmo nas escolas onde exigem dos educadores populares a ta-
funcionam os pré-vestibulares servem refa de pensar esta proposta político-
para o tensionamento das hierarquias pedagógica em diferentes espaços e
comumente observadas na relação tempos (PALUDO, 2001, p. 95).
pedagógica, além de outro fator que Dessa forma, a educação popular
também se verifica não raramente: a
é uma concepção progressista de edu-
indiferença com o outro (LEIPNITZ;
cação e vai ao encontro dos anseios e
PEREIRA, 2008, p. 109).
expectativas dos segmentos marginali-
Por isso, o trabalho com educação zados e excluídos do sistema capitalista.
popular é uma prática recorrente e um É na prática que encontra seu substrato
desafio pedagógico para as experiências teórico, mas uma prática que não pres-
alternativas de preparação ao vesti- cinde da teoria e do ato reflexivo, pois
bular. Para Paludo (2001), a educação nessa visão teoria e prática estão numa
popular surge em conexão com o que de- relação dialética.
termina de “Campo Democrático e Po- Respondendo aos imperativos que
pular” (CDP) e deve sempre ser recria- produzem a ordem material e simbóli-
da dentro dos movimentos sociais que ca da sociedade e compreendendo esta
lhe emprestam vida e dentre os quais sociedade como assimétrica e carente de
encontra sua razão de ser. Analisando justiça social, os cursos pré-vestibulares
a educação popular pela perspectiva de caráter popular nascem com o intui-
freireana, a autora argumenta a favor to de incidir concretamente neste qua-
da importância de alguns pressupostos dro. Historicamente, o ensino superior
centrais para o educador pernambuca- reveste-se, em nosso país, de um caráter

93

REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 17, n. 1, Passo Fundo, p. 86-96, jan./jun. 2010
elitista e acessível, portanto, aos seg- disciplinas como Cultura e Cidadania
mentos detentores de capital. As classes explicitam essa proposta calcada em
populares, apesar de financiar as insti- princípios de educação popular.
tuições públicas, estão invariavelmente Mas quem faz o que e para quem?
excluídas do ensino superior público e Esta é uma indagação necessária para
gratuito. não cairmos em ativismos cheios de boa
vontade, mas ingênuos em seus atos
Considerações finais cotidianos. É preciso termos clareza de
alguns princípios e saber que esses es-
paços alternativos não possuem em si
É preciso que a educação esteja – em
capacidade de mudança estrutural, vis-
seu conteúdo, e em seus métodos –
adaptada ao fim que se persegue: per- to que trabalham já com um segmento
mitir ao homem chegar a ser sujeito, que conseguiu, pelo menos, chegar ao
constituir-se como pessoa, transfor- final do ensino médio. Talvez, o maior
mar o mundo, estabelecer com os mérito dos cursinhos populares esteja
outros homens relações de reciproci-
no fato de chamarem a atenção para o
dade, fazer a cultura e a história...
processo meritocrático e injusto do ves-
Paulo Freire tibular que, conforme a análise empre-
endida, exclui importante contingente
A tentativa de se compreender o de pessoas que, de uma forma ou de
papel desempenhado pelos projetos de outra, chegou ao final do ensino médio
cursinhos populares, em Porto Alegre, e tem o direito de prosseguir com seus
na democratização do acesso ao ensi- estudos.
no superior é uma tarefa que brota da Assim, a presença de pessoas de
inserção concreta dessas experiências. baixa renda nos cursinhos populares já
Por trás desse movimento está o con- cobre de êxitos parciais estas experiên-
texto societário mais amplo, no qual o cias, pois estão indo de encontro à lógica
capitalismo hegemônico redefine papéis excludente preponderante. Relatos de
e impõe novos desafios. professores e coordenadores de cursi-
Os cursinhos populares se colocam nhos populares apontam que, em média,
como uma resposta à sociedade assimé- um aluno de cursinho popular leva dois
trica que cobra de forma igual de seus anos para conseguir a aprovação e en-
membros (bastante desiguais) a sua in- trar na universidade pública. Mas será
serção nas estruturas sociais. Tentando que não entrar na universidade é sinô-
romper com o caráter utilitário do ensi- nimo de fracasso de um aluno que teve
no, mas não desprezando esta face, os passagem em cursinhos populares? Se a
cursinhos populares, via de regra, não resposta for positiva, não será que esta-
apenas reproduzem os conteúdos que mos caindo na mesma lógica (individua-
são cobrados no vestibular, mas tentam lista, concorrencial e meritocrática) que
dialogar com a existência dos sujeitos a tentamos romper e que gera a própria
partir de suas vivências. Nesse sentido, necessidade de cursinhos populares?

94
94

REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 17, n. 1, Passo Fundo, p. 86-96, jan./jun. 2010
Por fim, os desafios são grandes, of university seats at the interface
mas a luta cotidiana dos movimentos between theoretical sociology and
sociais e de intelectuais engajados já pedagogy, the findings in theoretical
começa a fazer, talvez, um novo mode- and practical to build an educational
environment that fosters economic
lo de ensino, onde o processo de imple-
growth and country’s technological
mentação de ações afirmativas nas uni- and social justice.
versidades públicas, as leis que tratam
do ensino da história afro-brasileira na Key words: Popular pré-entrance
formação de professores e na educação exam course. Democratization of
básica e a obrigatoriedade do ensino de higher education. Social inclusion.
Sociologia e Filosofia no ensino médio Emancipatory pedagogy.
estão a indicar novos tempos no cenário
educativo nacional. Junto a isso, o Exa-
me Nacional do Ensino Médio (Enem)
Nota
ainda precisa ser melhor analisado, por 1
O Programa Conexões de Saberes: diálogos
mais que a sua implementação como entre a universidade e as comunidades popu-
acesso ao ensino superior por si só já lares é desenvolvido pela Secretaria de Educa-
ção Continuada, Alfabetização e Diversidade
seja um indicativo da necessidade de (Secad) do Ministério da Educação em parce-
uma reinvenção/desnaturalização (PE- ria com o Observatório de Favelas do Rio de
REIRA, 2008) do vestibular. Janeiro. O programa teve início em 2004 em
cinco IES federais e, ao final de 2006, estava
presente em 32 IES federais. Na UFRGS, o
Conexões de Saberes desenvolveu atividades
The struggle for democracy entre 2005 e 2009.
of the access to higher
education: the popular
Referências
preparation courses case
BARROSO, C. L. M. O vestibular e a auto-
Abstract estima do jovem. Cadernos de Pesquisa, São
Paulo, n. 16, mar. 1976.
The emergence of the movement of
“popular pre-entrance exam course” CASTRO, C. A. Cursinhos alternativos e
is associated with unequal access to populares: movimentos territoriais de luta
education in Brazil, particularly the pelo acesso ao ensino público superior no
poor and african descent. The strug- Brasil. Dissertação (Mestrado em Geogra-
fia) - Universidade Estadual Paulista. Pre-
gle to democratize access to higher
sidente Prudente - SP, 2005.
education opens up a debate on the
education system itself, for its pro- GOES, M. C. R. Ansiedade: uma avaliação
gressive universalization still con- quantitativa de seus efeitos negativos sobre
trasts with the quality of education o desempenho no vestibular. Psicologia - teo-
ria e pesquisa, Brasília, v. 7, n. 2, maio/ago.
offered to the Brazilian youth. This
1991.
article examines the role of prepara-
tory of Porto Alegre in the inclusion of LEIPNITZ, L.; PEREIRA, T. I. A prática
historically excluded social segments pedagógica no cursinho popular da Ongep:

95

REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 17, n. 1, Passo Fundo, p. 86-96, jan./jun. 2010
aproximações com a pedagogia de Paulo SANTOS, R. E. Pré-vestibulares populares:
Freire. In: MELLO, M. (Org.). Paulo Freire e dilemas políticos e desafios pedagógicos (tex-
a educação popular: reafirmando o compro- to digitado), 2005.
misso com a emancipação das classes popu-
lares. Porto Alegre: Ippoa/Atempa, 2008.
MONTEIRO, S. C. F. Pré-vestibular para
negros e carentes – buscando o inédito-viá-
vel. Revista de Orientação Educacional, v. 3,
n. 23, set. 1996.
MOSQUERA, J. J. M. Reações do adolescen-
te em face do vestibular e sua auto-estima.
Educação e Realidade, n. 1, fev. 1976.
PALUDO, C. Educação popular em busca
de alternativas: uma leitura desde o campo
democrático e popular. Porto Alegre: Tomo
Editorial/Camp, 2001.
PANIZZI, W. M. (Org.). Universidade: um lu-
gar fora do poder. Porto Alegre: Ed. UFRGS,
2002.
PEREIRA, T. I. O sistema de ingresso na
UFRGS numa perspectiva histórica da for-
mação da universidade brasileira. In: TET-
TAMANZY, A. L. L.; BERGAMASCHI, M.
A.; SANTOS, N. I. S.; ARENHALDT, R.;
CARDOSO, S. (Org.). Por uma política de
ações afirmativas: problematizações do pro-
grama Conexões de Saberes/UFRGS. Porto
Alegre: Ed. UFRGS, 2008.
_____. Pré-vestibulares populares em Porto
Alegre: na fronteira entre o público e o pri-
vado. Dissertação (Mestrado em Educação) -
Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre, 2007.
PEZZI, A. C. Cursinhos – um rito de passa-
gem. In: ANDRADE, R. M. T.; FONSECA,
E. F. (Org.). Aprovados! Cursinho pré-ves-
tibular e população negra. São Paulo: Selo
Negro Edições, 2002.
SANGER, D. S. Para além do ingresso na
universidade – radiografando os cursos pré-
vestibulares para negros em Porto Alegre.
Dissertação (Mestrado em Educação) - Uni-
versidade Federal do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre, 2003.

96
96

REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 17, n. 1, Passo Fundo, p. 86-96, jan./jun. 2010

Você também pode gostar