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O espetáculo RASTROS DE OSSOS se propõe como

um retorno à terra em busca de renascimento, devotan-


do o pulso do coração ao reencontro dos elementais,
da ancestralidade e da pureza selvagem. Ouvindo um
chamado de cura e de recuperação de forças femininas
soterradas entre os escombros da psique, o germe desse
espetáculo partiu de experiência pessoais da artista da
dança GABRIELA DELLIAS. Contando com os músi-
cos Lígia Kamada e Denilson de Paula que conceberam
e executam ao vivo a trilha sonora original, esse solo de
Dellias é uma busca rigorosa para que movimento se en-
contrem em sinergia e foi criado com financiamento do
Fundo Municipal de Cultura de São José dos Campos.
PROCESSO DE CRIAÇÃO: DO OSSO À RAIZ.

Livremente inspirado no conto “La Loba” do livro


Mulheres que correm como lobos, de Clarissa Pinkola,
a concepção artística do espetáculo parte de um en-
raizamento em relação ao sagrado. Uma andarilha de
muitas faces, meio gente, meio bicho, meio curandei-
ra, meio nanã, percorre desertos, campos e florestas,
desenterrando ossos, trazendo nas costas suas vidas
e mortes, suas memórias e ancestralidades. Assim,
nesse espetáculo, encontramos as várias facetas de
uma mulher que se põe a caminho da libertação em
sua plena potência criativa, abraçando seus instintos e
intuições.

Mulher, mãe, filha, fogo e paixão


Durante o processo de criação, o amálgama entre movi-
mento e música, gestos e sonoridades foi cotidianamente
buscado na interação entre Gabriela Delias e os músicos
Lígia Kamada e Denilson de Paula.
Durante o processo criativo, Gabriela passou também
por uma retiro xamânico, onde teve contato com rituais e
aprendizados diversos. Destaca-se a “Busca da Visão”, quan-
do passou a noite dentro da mata com um tambor. Ocasião
em que lhe “vieram” as duas melodias que ela canta ao vivo
durante o espetáculo; uma delas faz referência à Nanã e à
Oxum.

Os desenhos que compõem este caderno foram feitos pela


artista durante esse retiro xamânico.

Caligrafia do caderno da artista, registro do retiro xamânico


Registro do tingimento com urucum pela artista
da calcinha a ser usada no espetáculo.
RELATOS: Durante o processo de criação, a artista fez visitas e con-
versas com mulheres, de varias idades e contextos sociais. Nessas con-
versas, Gabriela colocava questões à respeito de “ancestralidade”, “ma-
ternidade”, “empoderamento”, pedindo que relatassem livremente a
respeito de lembranças e experiências significativas para elas. A seguir,
apresentam-se extratos dessas conversas.

“De lembrança de ancestralidade, tenho a minha bisavó com a


A fé que ela tinha, aprendi muito com ela. Ela era devota de Santa

N Rita. Isso ficou muito marcado pra mim. É uma lembrança forte.
Aprendi com ela algumas orações”.
C
E
S “São aquelas que já passaram pela terra. Minha vó, minha tia,

T minha bisavó. Eram todas muito espiritualizadas. Eu vejo pela


minha mãe também. Todas descendentes de índio, de Natividade
R da Serra. Tem uma história muito forte. E com isso de eu morar
A aqui perto da natureza me faz ter uma conexão muito grande.
No meu espiritual, na minha transformação espiritual. Até então
L você aceitar que muitas vezes você tem que passar, por exemplo,
I por uma dorzinha em algum lugar, porque vai aliviar o seu ante-
passado em algum lugar, vai contribuir com isso, é meio difícil de
D entender. Mas a gente vai tentando transformar os acessamentos
A e se conectar mesmo com a força maior que é Jesus e os nossos
antepassados. Depois que tive consciência disso, porque comecei
D na Messiânica, eu achei isso muito interessante. Acabei tendo que
E ter um pouco mais de respeito por eles, porque é real. A gente tem
essa conexão com os antepassados e isso tem que ser iluminado
sempre. Não pode deixar de qualquer jeito, porque ela existe.”
“Uma lembrança que eu tenho é de quando era criança. Minha
mãe ficou de dieta e não tinha quem cuidasse dela. Então eu saí da
escola com oito anos, depois a professora foi em casa buscar. Não
deixou eu ficar sem aula. Foi até os 14 anos. Nessa idade comecei
a namorar o primeiro namorado meu. Com ele namorei quatro
A anos, casei e tenho muita lembrança dele. Ele morreu e deixou

N muita lembrança. Boas e ruins. Mas tudo passa, as boas passam e


as ruins passam. Tenho também muita lembrança da minha vó.
C Tenho um retrato dela. A vó Virgulina, e a outra era vó Ana. Eu
E tenho lembrança desse passado. Dos avós, do tempo que era cri-
ança. Na vida, tive dias muito bons e dias ruins também. Mas tudo
S passa. Estou bem, graças a Deus. Eu agradeço pela paz que eu ten-
T ho aqui, vivendo com meus filhos, meus netos.”

R
A “Essa busca de entender minha história tem muito mais a ver com

L não resolver certos problemas, olhar com pesar para o que eu faço
errado ou tentar corrigir minha postura na vida com os outros,
I com a minha família. Esses problemas que todo mundo tem e fica

D procurando solução, eu passei a olhá-los de outra forma, eu busco


aceitar o que eu sou e justamente querer saber mais, para poder
A gostar de ser esse ser errado e certo, e feio e bonito, para seguir a

D minha caminhada. Até porque cheguei a um momento em que


as perguntas da minha vida pararam de ser: ‘Será que eu vou ter
E sucesso no que eu programei?’ Porque eu não dava mais conta de
sonhar tanto. Um exemplo bom é a minha filha, eu fui mãe com
25 anos e fiquei morrendo de medo do que ela iria ser. A maior
prova se eu teria sucesso ou não seria com ela. Isso me deixava
consternada. No começo eu fiquei uns anos com essa preocupação
com o que ela iria ser. Depois de muito tempo, ela já estava com 8
anos, e o pai dela ia ser pai de novo. E a esposa dele me levou para
o chá de bebê.
Até foi uma cena muito louca, eu era a esposa traída por aquela
A mulher e fui no chá de bebê do primeiro filho deles com a minha
N filha. Lá ela fez uma espécie de ritual com as mulheres trabalhan-
do a aceitação da criança. Aí uma das mãe falou: ‘Eu tenho quatro
C filhos. E se tivessem me falado lá atrás que não era para eu criar
E expectativas sobre o que o meu filho iria ser, eu teria agradecido
S muito!’ Naquele momento, chorei quando era para eu falar. Eu não
T estava pronta para aquela situação. Uma vez, quando a gente estava
R junto, ele me falou que tinha sonhado que teria um filho negro. Eu
A não esqueci isso. Ele casou com uma mulher negra e iria ter um fil-
ho negro, como no sonho. Era muito pesado pra mim. Mas eu falei:
L ‘Bom, agora a família da minha filha vai ser um pouco maior, eu
I vou ter que conviver.’ Mas eu não tinha resolvido aquilo ainda. Foi
D um momento muito duro. Eu sei que esse sofrimento me ajudou a
A transformar isso. As pessoas viram ali o meu sofrimento e de algu-
D ma forma se compadeceram comigo. Eu expus ali a minha dor. A
E gente era concorrente e de repente eu estava ali. Mas entendemos
que estávamos juntas, porque ela ia ser mãe.”

M “Ser mãe é maravilhoso. Claro que tem momentos difíceis. Educar


é uma coisa muito complicada. Mas vamos ser mãe! É bom!”
A
T “Mãe? Mãe é um compromisso muito grande de ensinar a trilhar
E um caminho mais suave. Eu sou mãe de meninos. Estou aprenden-
R do bastante. Amo ser mãe. Eles me completam, sabe? Vejo cois-
N inhas minhas neles. Isso é muito gostoso. Mas adolescente assim,
é muito difícil, não é? Tem que ter muita paciência, tranquilidade
I para não criar conflitos com seu próprio filho. Ele pensa diferente
D de você. Tem uma diferença de idade. E na adolescência eles veem
A mais o mundo exterior do que interior. Então tem tudo isso. Mas
D um aprendendo com o outro, fica mágico. Muito amor. É isso que
E eu sinto por eles. É amor, dedicação, doação.”
“O pertencimento que a gente tem com a pessoa, a gente fala amor,
mas amor parece uma coisa tão aberta, tão difusa, mas é uma con-
centração grande de muitos sentimento. Eu olho e penso: ‘O que
estaria acontecendo comigo se eu não fosse mãe?’ Eu ia ser muito
menos pé no chão do que eu sou hoje. Apesar da minha família
ter uma participação muito grande na minha vida, acho que eu
não iria para muito longe daqui. Mas o fato de eu estar aqui em
São José tem a ver com a minha filha, o fato de eu estar fazendo
doutorado tem a ver com ela. É sempre uma busca, erros e acertos.
M E esse reconhecimento da fraqueza que a gente tem. Eu passei es-

A ses últimos anos com ela sem o pai, então minhas amigas e meus
pais foram muito importantes. Eu nunca fui uma mãe que ficou se
T preparando, lendo sobre psicologia infantil, sempre foi muito intu-
E itivo. Lembro de quando ela tinha seis anos, aí eu a levava pra to-
dos os lugares, e uma vez a Vivi fez um movimento de negociação
R com ela na minha frente. Eu levei isso pra sempre. Era algo simples,
N ela estava chorando porque não queria sair da piscina, aí a Vivi fez
uma negociação com ela, uma coisa tão simples e eu não fazia. Tem
I um monte de exemplos de amigos que fizeram pequenos gestos
D assim que você vai apreendendo. É uma grande família que a gente
tem.”
A
D
E “Ah, ser mãe é um prazer. Tenho filhos que são abençoados por
Deus. Vivem tudo na paz. Cuidando da vida deles. E a mãe vendo
os filhos felizes fica mais feliz ainda. Graças a Deus são uns filhos
que nunca brigaram, nunca discutiram com o outro. Se ele precis-
am de alguma coisa do irmão, eles pedem pra mim falar. E a gente
vive muito bem. Não queria morrer logo, queria viver pelo menos
mais uns vinte anos. Mas não tenho medo da morte não. É que tá
tão bom viver!”
“Tenho me sentido mais assim hoje, sabia? Hoje, porque instalei o
aparelho auditivo. Me trouxe de volta, através da acessibilidade, a
coragem. Eu estava bem antissocial, porque eu não escutava. Perdi

E minha audição, por decorrência de um acidente aqui na estrada.


Bati minha cabeça e não demorou fui perdendo a audição. E hoje
M eu estou muito bem, estou escutando os pássaros. É horrível não
P escutar. Tem uns sintomas decorrentes disso, que é ficar depressivo,
ficar antissocial. Porque você está numa roda de amigas ali conver-
O sando. É bem como na música: ‘Presto atenção ao que eles dizem
D mas eles não dizem nada’. Então preferia nem conversar. Por que
você vai ficar rindo? Comecei a ler os lábios das pessoas. E muita
E gente se incomoda. Você fica mais antissocial ainda quando você
R percebe isso? Eu estou legal agora, porque estou ouvindo os pássa-
ros, estou ouvindo o riacho, estou percebendo de novo que o ria-
A cho tem som. É hoje meu dia de empoderamento. Tem vários testes
M de audiometria pra chegar no que você precisa. Mas está ótimo

E agora. Meu ouvido biônico. Estou muito feliz.”

N
T “Eu me sinto assim sempre. Mas sobre isso de uma vez que sen-
O ti em mim uma força, ser empoderada que nem você disse, foi as
duas vezes sendo mãe. A primeira vez com vinte anos e a segunda
vez com vinte oito. Isso pra mim foi muito forte. A primeira vez
com vinte anos, eu me senti mais poderosa ainda.”
“Tenho uma memória recente de um trabalho meu, na verdade
é um trabalho com um perfil que eu teria tudo para não gostar,
era diferente de tudo que eu imaginei. Eu me imagina mais uma
professora, pertencer mais ao mundo da reflexão. Aí eu fui parar
E numa prefeitura, numa função em que eu tinha que chefiar um

M grande projeto e tinha só homens comigo. Num dado momen-


to, as tomadas de decisão que eu tinha que ter exigiam muito de
P mim, eu me boicotava um pouco. Então, percebi que os proces-
O sos de cura por que eu estava passando, eu tinha machucado o
pé, eu tinha entrado no movimento feminista por causa de uma
D relação. Tudo isso tinha me dado elementos que eu não estava
E usando ali naquele trabalho, que foi principalmente a coisa da
contração da pelves. Então, quando eu consegui juntar isso, eu
R estava me apropriando daquele momento que era meu, eu estava
A num cargo de primeiro escalão, onde não tinha outras mulheres,
só tinha eu no primeiro escalão. Pensei: ‘Poxa, por que eu não
M vou ocupar esse espaço?’ Então, eu comecei a usar o músculo
E feminino, que era minha maior força, eu contraía a pelves e tudo

N se resolvia. Eu quero até um dia conversar com um fisioterapeu-


ta para entender isso. Esse foi um momento em que eu me senti
T muito poderosa. Tem também uma conjunção de fatores que

O hoje me fazem me sentir muito poderosa. Eu estou em São José e


as coisas que estão acontecendo comigo eu não pedi para acon-
tecer. Sabe quando você olha e pensa: ‘acho que estou vivendo o
meu local’? As pessoas estão me chamando, os projetos que eu
estou fazendo estão andando. Você está no seu local. Você não
se sente a mais ali. Você tem uma formação, uma história que
pode complementar a dos outros... Eu criei uma rede aqui. Não
sei como se chama isso. Acho que é empoderamento. É o que eu
estou sentindo.”
“O dia que eu me senti forte e segura foi quando estava conver-
sando com o meu sobrinho. Eu estava quase separando do meu
E marido, depois de quase cinquenta anos de casada. Meu sobrin-
M ho falou: ‘Tia, não separa do tio, que ele não vai durar mais nada.
Ele vai morrer logo.’ Aí eu escutei o que ele falou e pensei: ‘É isso
P mesmo, já aguentei quase cinquenta, agora aguento mais um
O pouco!’ E não foi que uns trinta dias depois ele morreu mesmo?
Em trinta dias ele morreu e eu me senti forte assim, porque se-
D gui o que o meu sobrinho falou, ficou guardado. E passou trinta
E dias ele morreu mesmo e ficou tudo em paz. Ele morreu. A gente
sente muito, mas está tudo em paz. Essa foi a força que eu tive,
R tive coragem. Quem aguentou cinquenta aguenta mais um pou-
A quinho, não é? Então nisso venci com a morte. Deus separou.
Minha mãe sempre falava: ‘Tenha paciência, Virgulina. Um dia
M você vence!’ Mas o dizer da minha mãe era de vencer com a
E morte. Pra mim morrer, pra ter paciência. Mas eu falava: ‘Mãe,
não quero vencer com morte. Quero vencer em vida. Tudo vivo,
N em paz. Com a morte não quero vencer nada não. Não morrer
T um para o outro ficar feliz.’ Mas aconteceu que ele morreu. Eu
estou feliz até, porque está tudo bem. Se ele não morresse, iria ser
O eu. Um de nós dois tinha que ir na frente. Ele foi primeiro. Eu es-
tou cuidando da minha vida. Ele espera lá que um dia eu vou lá.”

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