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FACULDADE DE SÃO BENTO DO RIO DE JANEIRO

PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA ANTIGA E MEDIEVAL


Disciplina: História Medieval II
Professor: Prof. Jerônimo D. E. de Barros

Resenha do texto O Homem Medieval a Procura de Deus

Aluno: Rômulo Coimbra do Nascimento

Rio de Janeiro, 20 de Junho de 2019


André Vauchez é um Medievalista francês especializado na História da
espiritualidade cristã. Vauchez foi como diretor de estudos medievais da École
française de Rome, como pesquisador Centro nacional francês de pesquisa científica e
também como professor nas Universidades de Rouen e Paris X. Atualmente atua como
membro correspondente da Academia Britânica, da Pontificia Accademia romana di
Archeologia (Vaticano) e da Medieval Academy of America e é professor emérito de
História da Idade Média na Universidade de Paris Ouest Nanterre.
Considerado uma das figuras mais significativas da renovação da historiografia
medieval que ocorreu sob a influência da “virada crítica” dos Annáles nos anos 70 e 80.
Vauchez nos parece um exemplo claro dos estudos da escola dos Annáles, padrão em
que se dá um caráter muito mais sociocultural a sua abordagem, e uma especial atenção
à religião e aos valores qualitativos das transformações pelas quais o mundo medieval
passa. A idade média aqui estudada não é a tradicional "Idade das trevas" mas sim um
período profícuo, repleto de mudanças e inovações. Dentre elas a principal sendo a
formação e cristalização do que veio se convencionar chamar de Cristandade.
nesta resenha iremos abordar especificamente o capítulo V: O Homem Medieval
à procura de Deus. Formas e conteúdos da experiência religiosa, do livro "A
Espiritualidade na Idade Média Ocidental: Séculos VIII a XIII". cujo objetivo principal
o autor define nas seguintes linhas:
(...)na Idade Média, época em que a coesão dogmática ainda não se
estabelecera em todos os domínios e um fosso profundo separava a elite
letrada das massas incultas; havia lugar, no próprio seio da ortodoxia, para
diversas maneiras de interpretar e viver a mensagem cristã, isto é, para
diferentes espiritualidades. É a história da formação dessas espiritualidades,
de sua coexistência às vezes difícil, de sua sucessão.no.tempo, que desejamos
traçar aqui. 1

Assim o autor define ao mesmo tempo o próprio conceito com que irá trabalhar
de "espiritualidade" como o tema de sua obra. Conceito que tem seu início apenas no
século XIX com o sentido de "ciência da ascese, que conduz, pela mística, à instauração
de relações pessoais com Deus. Quando essa experiência, depois de receber uma
formulação sistemática, passa de um mestre a seus discípulos..."2. Esse sentido porém
seria bastante limitado e abarcaria apenas um minoritário número de experiências
religiosas fora do contexto cronológico estabelecido pelo autor. Concordamos aqui com
Vauchez e com Ciro Flamarion Cardoso3 no sentido em que não é porque uma

1
VAUCHEZ, 1995. p. 8
2
idem. p. 7
3
CARDOSO, 2010
população em determinado período não formalizou determinados conceitos que a
impede de ter vivenciado a experiência que a posteridade poria em palavras. Seja a
economia ou a espiritualidade.
Segundo Vauchez as pesquisas a respeito da espiritualidade medieval se
mantiveram em grande medida limitados ao estudo das práticas correntes entre clérigos
e aqueles internos a hierarquia da Igreja. Para ele então se vê como uma alternativa
extremamente produtiva o estudo das chamadas "espiritualidades populares". Que se
constituíram de forma original e não como mera cópia míope da espiritualidade, dita,
oficial.
os humildes integraram em sua experiência religiosa, tanto pessoal quanto
coletiva, elementos provenientes da religião que lhes fora ensinada e outros
fornecidos pela mentalidade comum do seu ambiente e do seu tempo,
marcada por representações e crenças estranhas ao cristianismo. 4

Neste sentido concordamos com Vauchez e retomamos também as ideias


expostas por Peter Brown que estabelece, em similar sentido, a espiritualidade popular
medieval como fruto da hibridização entre cristianismos primitivos e práticas e rituais
das religiões tradicionais romanas associadas ao mundo rural cristalizada na figura dos
Santos.
Vauchez destaca a importância que os locais de peregrinação, santificados, e o
ato da canonização tem para essa espiritualidade popular ao tornar o místico, de certa
forma, palpável para o homem comum. Segundo ele "no nível das massas, este se
traduzia por 'uma vontade evidentemente Inábil e imaginosa, de encontrar o Cristo em
sua vida mortal' "5.
Perspectiva partilhada por Brown. Toda árvore, monte ou nascente que antes
eram associados aos poderes de divindades naturais, são agora expressões da vontade do
Deus Cristão por intermédio da presença e ação dos Santos. O místico e metafísico
antes combatido era agora abraçado como milagres de Santos figura expoente da
hibridização dessas duas mentalidades religiosas antes em competição.
Os campos encontravam de novo a sua voz, para falarem, num antigo
vernáculo espiritual, sobre a presença dos santos. A água voltava a ser
sagrada. (...) Por toda a Gália, Podia ver-se grandes árvores a crescer sobre
o túmulo dos santos. Gregório olhava, feliz, para essas árvores; já não lhe
lembravam ritos pagões, panos claros a esvoaçar em ramos que obtinham a
sua força dos poderes sombrios e duvidosos da Terra. Em vez disso, traziam
agora do Céu um toque da energia vegetal do paraíso de Deus. 6

4
VAUCHEZ, 1995. p. 9
5
idem. p.163
6
BROWN, 1999
Os cristãos desse período experimentam uma nova forma de Cristianismo. Fruto
dos contatos entre as experiências de cristianismos que se espalhavam pelo
Mediterrâneo e as religiões tradicionais locais que informavam o contexto cultural local
em que esses cristianismos se inserem. O Cristianismo passa a ser capaz de atender as
necessidades em um contexto não urbano na medida em que se hibridiza com práticas
pré-existentes e as traduz e adapta7 de uma maneira que é ao mesmo tempo acessível
para aquelas populações que antes já a utilizavam sob outra forma, como também as
tornam acessíveis para a própria mentalidade cristã. A grande força do Cristianismo era,
dessa maneira, a mesma que garantiu tamanha longevidade ao Império Romana, uma
inigualável capacidade de traduzir, adaptar e aglutinar todas as formas culturais de seu
interesse com que entrassem em contato.

7
Homi Bhabha define seu "terceiro espaço" como um espaço que permite novas posições emergirem em
um continuo processo de hibridização das formas de cultura. Ele desloca as histórias que o constituem, e
estabelece novas estruturas de autoridade, novas iniciativas políticas, que são inadequadamente recebidas.
É ao mesmo tempo um processo de tradução e adaptação de formas culturais em contato, uma
hibridização que dá luz a algo novo, a uma nova área de negociação de significado e representação, não
simplesmente a uma mistura de duas culturas puras. Para Bhabha não existem culturas puras, apenas
culturas anteriores em, como dito acima, contínuos processos de hibridização
Bibliografia

BROWN, P. The Later Roman Empire in: The Economic History Review, New
Series, Vol. 20, No. 2, 1967, p. 327-343.
________. “Reverentia”, “Rusticitas”: de Cesário de Arles a Gregório de Tours. In. A
Ascensão do Cristianismo no Ocidente. Lisboa: Editorial Presença, 1999, p. 113-128.
CARDOSO, Ciro Flamarion. Conferência apresentada no XX Ciclo de Debates em
História Antiga – Unidade & Diversidade, realizado pelo Laboratório de História
Antiga (LHIA) do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ intitulada
"Existiu uma "Economia Romana"?", Rio de Janeiro, 2010.
RUTHERFORD, Jonathan. 1990. The Third Space. Interview with Homi Bhabha.
In: Ders. (Hg): Identity: Community, Culture, Difference. London: Lawrence and
Wishart, 207-221.
VAUCHEZ, André. O Homem Medieval à procura de Deus. Formas e conteúdos
da experiência religiosa. in: A Espiritualidade na Idade Média Ocidental: Séculos VIII
a XIII. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1995.

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