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A paisagem como patrimônio cultural em São Paulo: estudo das ações de preservação

das paisagens paulistas pelo Condephaat (1969-1989)

FELIPE BUENO CRISPIM

O presente artigo aborda a experiência de preservação da paisagem pelo Conselho de


Defesa do Patrimônio Histórico Arqueológico, Artístico e Turístico (CONDEPHAAT), órgão
responsável pela preservação do patrimônio cultural paulista. O mapeamento das ações do
Conselho na preservação de áreas naturais entre as décadas de 1970 e 1980 revelou a
existência de um intenso debate sobre o conceito de paisagem como diretriz de atuação para o
campo do patrimônio cultural tendo em vista a atuação dos geógrafos na ação
preservacionista.1.

O inventário dos bens acautelados pelo Condephaat ligados aos domínios da paisagem
e do patrimônio natural revela que o uso do tombamento para preservar tipologias de bens
como serras, morros, maciços e demais elementos geológicos pouco considerados no cenário
da preservação do patrimônio cultural foi uma prática recorrente do órgão paulista
considerando os 37 bens dessa natureza tombados entre 1970 e 2005 (CRISPIM, 2014:52)
(SCIFONI, 2008:113).

A expressão “áreas naturais” foi o principal termo utilizado por técnicos e conselheiros
da instituição nos processos de tombamento analisados pela pesquisa. Essa característica foi
fundamental para a compreensão da construção do olhar do Condephaat para o mundo
paulista daquele período tendo em vista que para muito além de uma suposta beleza ou
monumentalidade, a paisagem foi lida enquanto patrimônio ambiental paulista, desdobrando o
valor cultural para os domínios da geografa e da ecologia política num movimento talvez
inédito entre as instituições de preservação do patrimônio cultural brasileiras.


Licenciado em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) – Campos Assis (2010). Mestre em
História pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) - Campus Guarulhos (2014). Aluno especial do
Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP) e historiógrafo
no Arquivo Público do Estado de São Paulo.
1
Ver CRISPIM 2014. A dissertação de mestrado foi orientada pelo Pro Dr. Odair da Cruz Paiva no Programa de
Pós Graduação em História da UNIFESP com o financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoas
em Nível Superior (CAPES).
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A forma como as instituições de patrimônio se apropriam da reflexão sobre a paisagem


é sempre uma ação política no sentido de determinar o modo como certa sociedade constrói
vínculos com a natureza. Ao fazer um balanço da presença da paisagem nas ciências humanas
Meneses (2002) evidencia a complexidade da questão e alerta os estudiosos para o risco da
perca de referencias sobre sua historicidade apontando a necessidade de situa-la enquanto
bem cultural indispensável ao equilíbrio da vida social, sendo sempre um dado da cultura.
(MENESES, 2002: 59)

Em viés semelhante Anne Cauquelin (2007) faz um balanço das formas pelas quais a
paisagem tornou-se uma categoria de pensamento no ocidente problematizando a formação de
representações e atitudes cognitivas em relação às concepções paisagísticas:

(...) de um lado, restituir a paisagem como única forma de torna-la visível (logo de
transforma-la por intermédio do trabalho paisagístico) de outro lado desdobra-la em direção
ao principio inalterável da natureza, apagando então a ideia de sua possível construção.
Confusão bem marcada no fluxo de noções de “sítio”, de “meio-ambiente”, de
“ordenamento” ou de “integração”. Pois os mesmos que querem salvaguardar a natureza da
paisagem como dado primitivo se dedicam também a proteger os “sítios” depositários de uma
certa memória, histórica e cultural. Ora o “sítio”, o que permanece ali”, designa tanto o
monumento (esse arco, essa cidade antiga, esse vestígio) quanto a forma geológica singular
que intervém num meio natural.(CAUQUELIN, 2007:40)

A relação de equivalência que se constrói entre “paisagem” e “monumento” é uma


construção política das instituições de preservação que ao conceberem a natureza pelo viés da
arte e da estética lhe atribuem caráter monumental e representativo da “nação”. Desse modo a
paisagem como projeto tem sua historicidade marcada por exercícios de olhar dados no tempo
e no espaço cujos produtos revelam o modo como uma sociedade se relaciona com seu meio
ambiente lhe atribuindo valores.

Para o historiador italiano Piero Camporesi antes de conformar-se nos domínios da


estética e da arte a expressão paisagem era empregada no sentido da demarcação de
territórios:

No século XVI no se conhecia a paisagem no sentido moderno, mas o país, algo equivalente ao
que é para nós hoje o território e para os franceses o environnement, lugar ou espaço
considerado do ponto de vista de suas características físicas, à luz de suas formas de
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povoamento humano e de seus recursos econômicos. (CAMPORESI, 1995:11 apud BESSE,


2006:20)

Desse modo, o caráter cênico da paisagem e sua construção enquanto monumento


natural é um fenômeno do alvorecer dos estados modernos, tendo o século XVIII e os
nacionalismos como suas principais fronteiras, pois possibilitam às nações materializarem seu
território “natural” (HOBSBAWM, 2011:111), (ANDERSON, 2008:238).

No século XX temos a consolidação da consciência de preservação do patrimônio


enquanto política estatal no Ocidente, internacionalizada no pós guerra através de organismos
como a UNESCO (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura)
protagonista das ações de preservação dos chamados patrimônios da humanidade. A lista do
Patrimônio Mundial foi criada em 1972 na Convenção do Patrimônio Mundial, Cultural e
Natural e apresentava uma dicotomia entre “natureza” e “cultura” como também o caráter
excludente dos critérios exigidos para a inscrição de bens como patrimônio da humanidade
baseados na ideia de valor excepcional Universal (RIBEIRO, 2007:51)2

Na tentativa de sanar essa dicotomia entre patrimônio cultural e natural a UNESCO


criou em 1992 a tipologia Paisagem Cultural considerando a natureza dos sítios onde as
relações entre homem e meio ambiente se mostravam imbricadas. Porém essa categoria
persistiu orientada por uma visão de paisagem e de natureza como oposição aos espaços
construídos pelo homem a exemplo dos núcleos urbanos.

Como o desenvolvimento dessas discussões em 2005 na Conferencia Internacional


sobre Patrimônio Mundial e Arquitetura Contemporânea lançou a categoria “Paisagem
Urbana Histórica” pela qual a UNESCO procurou incorporar os sítios urbanos à perspectiva
da Lista do Patrimônio Mundial. (RIBEIRO, 2015: 243)

No Conselho da Europa foi criada em 1995 a “Recomendação sobre a conservação


integrada das áreas de paisagens culturais como integrantes das políticas paisagísticas”
conhecida por Convenção Europeia da Paisagem. Numa perspectiva diferente da UNESCO a

2
É importante ponderar que a Lista do Patrimônio Mundial foi criada poucos meses depois do Programa das
Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) na Declaração de Estocombo da ONU ocorrida em julho de
1972. Do mesmo modo a criação da categoria Paisagem Cultural em 1992 é contemporânea a Conferência das
Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, a ECO-92. Não existem estudos que possam informar
sobre possíveis aproximações e influências entre as duas esferas internacionais de preservação.
4

Convenção fez da paisagem um instrumento de gestão do território considerando três


elementos primordiais a percepção do território; os testemunhos do passado e o
relacionamento entre os indivíduos, seu meio e as especificidades das culturas locais, práticas,
crenças e tradições. Sua abordagem congrega sentidos diversos da história, da sociologia, da
antropologia, da memória, da arte, da cultura, da ecologia e suas correspondências no meio
físico, seja nas edificações, nos objetos ou nos territórios – urbano, rural ou natural
(FIGUEIREDO, 2013: 85-86)

No Brasil considerando a historicidade da política federal de preservação o


acautelamento da paisagem esteve presente na legislação desde 1937 quando da criação do
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, então Serviço do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional (SPHAN)3. O decreto-lei 25/37 que cria a figura jurídica do tombamento
determina a preservação dos “monumentos naturais”, “sítios e paisagens” a partir do princípio
de equivalência ao conjunto dos bens móveis e imóveis de valor excepcional:

Equiparam-se aos bens a que se refere o presente artigo e são também sujeitos a
tombamento os monumentos naturais, bem como os sítios e paisagens que importe conservar e
proteger pela feição notável com que tenham sido dota dos pela Natureza ou agenciados pela
indústria humana. (RIBEIRO, 2007:72)

A paisagem foi incorporada como representação da nação através de seus atributos


cênicos e de rara beleza pela monumentalidade que poderiam expressar. Por esse viés foram
tombados em 1938 os morros da cidade do Rio de Janeiro, então distrito federal, seu Jardim
Botânico, as praias de Paquetá e a Ilha de Boa Viagem. (MONGELLI, 2011:58).

Essa característica predominou no Iphan ao longo de décadas pautando as ações de


preservação do patrimônio paisagístico até fins dos anos de 1980. Cabe considerar na história
do Iphan as iniciativas de incorporação da paisagem recurso de preservação de conjuntos
urbanos, de preservação dos jardins históricos como também os trabalhos da Coordenação do
Patrimônio Natural entre 1985 e 1990, tema ainda não estudado. SANTANA (2015), Motta
(2000), DELPHIM (2004), RIBEIRO, (2007), MONGELLI (2011).

3
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) até 1937; Departamento do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (DPHAN) em 1946; IPHAN em 1970; Secretaria do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (SPHAN) em 1979 quando dividiu atribuições com a Fundação Nacional Pró Memória
(FNpM); Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural (IBPC) em 1990 e finalmente Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) a partir de 1994,
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O marco contemporâneo de proteção a paisagem no Iphan se dá em 2009 com a


“Chancela da Paisagem Cultural”, instrumento que abriu caminhos jurídicos para a superação
da dicotomia natureza/cultura. Concebida sem definições categóricas a paisagem é definida
pela portaria 127 de 30 de Abril como “porção peculiar do território nacional, representativa
do processo de interação do homem com o meio natural, à qual a vida e a ciência humana
imprimiram marcas ou atribuíram valores” (IPHAN 2009 p.17).

O instrumento não resultou até o momento em chancelas de paisagem realizadas,


embora tenha produzido conjunto considerável de inventários de reconhecimento desses bens
por parte dos técnicos do IPHAN em todo o país a exemplo do inventário das paisagens
culturais das jangadas de Dois Mastros em Pitimbu (PB) e dos Roteiros Nacionais de
Imigração em Santa Catarina. (MONGELLI, 2011)

Paisagem e patrimônio em São Paulo: a experiência do Condephaat

O Condephaat é um órgão deliberativo ligado a Secretaria de Estado da Cultura


paulista instituído pela lei 10.127/68. A lei estabelece a “adoção de todas as medidas para a
defesa do patrimônio histórico, artístico e turístico do Estado, cuja conservação se imponha
em razão de fatos históricos memoráveis, do seu valor folclórico, artístico, documental ou
turístico, bem assim dos recantos paisagísticos, que mereçam ser preservados” (São Paulo,
1968).

Tendo sua criação ligada a setores conservadores da sociedade paulista, organizados


em torno do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo e do Instituto Histórico Geográfico
Guarujá-Bertioga, instituições comprometidas com a propagação de valores pragmáticos de
história e a exaltação da figura do bandeirante, o Condephaat enfrentou desafios de toda
ordem para legitimar sua existência e importância política na dinâmica governamental.
(RODRIGUES, 2000:41-42).

Na inexistência de uma política cultural que pudesse inseri-lo num ideário de ações
mais amplo, a instituição do patrimônio paulista operou entre a tradição e a modernidade
tendo tombado em seus primeiros anos remanescentes da memória das antigas oligarquias do
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café no Vale do Paraíba priorizando a arquitetura de estilo neoclássico e o conjunto dos


vestígios dessa elite (MARINS, 2008:156).

Porém não houve no Condephaat a predileção por estilos arquitetônicos específicos


que pudessem corporificar alguma ideia de “identidade paulista”. Tendo como contraponto a
prática do Iphan em sua fase heroica, que elegeu o barroco mineiro como símbolo de uma
identidade nacional (FONSECA, 2009), a ação preservacionista em São Paulo seguiu
caminhos difusos guiados em grande medida, pelo olhar dos agentes envolvidos entre técnicos
e conselheiros, nos trabalhos do patrimônio, sempre na busca pela definição de uma política
de atuação.

Entre muitas singularidades e nuances da história do Condephaat como expõe


Rodrigues (2000), Nascimento (2006), Prata (2009), Scifoni (2008), Moura (2014), Crispim
(2014), De Bem (2014) e recentemente Moraes (2016), sua capacidade de recepcionar
demandas da sociedade civil em tempos de ditadura militar como também a capilaridade das
discussões que empreendeu em intercâmbio com o saber acadêmico constituíram um campo
propício à formulação de novos conceitos e práticas de preservação.

É nesse cenário que se dá construção de um olhar especifico para a preservação das


áreas naturais, considerando os diálogos entre a geografia e o campo do patrimônio para a
formulação de uma politica de preservação das paisagens. Essa politica visou em certa medida
superar o texto da lei 10.127/68 que previa a preservação de “recantos paisagísticos”
atribuindo a paisagem novos valores para além dos já usualmente a ela associados como o
histórico/monumental ou de entorno de bens edificados.

O tombamento de áreas naturais

Em 1976 o Colegiado do Condephaat passou por uma ampliação. Composto


inicialmente por nove representações4,passou a contar também com representantes do
Departamento de Geografia e do Departamento de História da Arquitetura e Estética do
Projeto ambas da USP como também da Comissão de Artes Plásticas do Conselho Estadual
de Cultura e da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil.

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Secretaria de Cultura, Esportes e Turismo; Serviço de Museus Históricos, Instituto dos Arquitetos do Brasil;
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional; Instituto de Pré-História e Departamento de História
ambos da Universidade de São Paulo; Cúria Metropolitana de São Paulo; Instituto Histórico e Geográfico de São
Paulo e seu congênere de Guarujá-Bertioga. (Rodrigues, 2000)
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A mudança ocorre com a criação da Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia em


1975 durante o governo de Paulo Egydio Martins. A pasta, que existiu até o ano de 1979
quando da criação da Secretaria de Cultura teve como secretário o empresário e bibliógrafo
José Mindlin e conformou uma conjuntura favorável à formulação de uma política cultural em
São Paulo. O cenário de aceno para uma abertura política possibilitava um sutil arejamento de
ideias como também o reaparelhamento da sociedade civil em conselhos com vistas a
retomada da cidadania, aonde o Condephaat teve importante papel.
Passam a representar as cadeiras de Geografia e da Arquitetura da USP no Condephaat
a partir de maio de 1976 respectivamente, Aziz Nacib Ab Saber e Benedito Lima de Toledo
tendo na presidência Nestor Goulart Reis Filho. Nesse momento o órgão se abriria a novas
perspectivas de atuação não apenas pela presença ampliada de representantes da
Universidade, mas também pela formação oferecida ao seu corpo técnico através do curso do
museólogo francês Varine-Bohan em parceria com a FAU/USP e o IPHAN. O curso tratou de
questões conceituais pouco debatidas até então no cenário brasileiro da preservação tratando o
patrimônio como fato cultural composto de três categorias: o meio ambiente, o conhecimento
e os bens culturais. (RODRIGUES, 2000)
Os diálogos dos agentes do patrimônio com as questões do planejamento urbano
também podem ser correlacionados a emergência de novas visões para a paisagem no
Condephaat. Em 1974 o Inventário de Patrimônio Edificado da cidade de São Paulo elaborado
por Carlos Lemos e Benedito Lima de Toledo para a Coordenadora Geral de Planejamento do
município introduziu a possibilidade de preservação de manchas urbanas, as Z8-200 a partir
da lei de zoneamento da cidade.
Em 1976 o Programa de Preservação e Revitalização do Patrimônio Ambiental
Urbano desenvolvido pela Secretaria Estadual de Economia e Planejamento, com participação
de Carlos Lemos, Eduardo Yazigi e Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses teve ampla
ressonância nos trabalhos do Condephaat considerando a receptividade para propostas e linhas
de atuação que seus agentes procuravam consolidar.
De forma contemporânea ao conceito de patrimônio ambiental urbano conceituado por
Meneses (1978) como “sistema de objetos socialmente apropriados percebidos como capazes
de alimentar representações do ambiente urbano”, em 1976 se inicia no Condephaat a
tentativa de formulação de uma política para a preservação das paisagens. O documento
“Diretrizes para uma política de preservação das reservas naturais do Estado de São Paulo” de
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autoria de Aziz Ab’ Saber foi oferecido ao Conselho para a proposição de um inventário das
áreas naturais ameaçadas do estado:

A busca de diretrizes para a preservação de reservas naturais e proteção do meio ambiente


para o Estado de São Paulo ainda se encontra no estágio de estudos básicos e das considerações
genéricas. Um grande número de órgãos cuida de administrar fatos isolados da natureza e do
patrimônio ambiental. A rigor, porém, nenhum deles tem o comando efetivo do gerenciamento do
quadro global de potencialidades, herdado dos fatores naturais. De um modo geral, devido ao excesso
de burocratização, tem havido pouca seriedade no trato com as coisas ligadas ao patrimônio primário,
de composição sutil e de inegável fragilidade perante as ações antrópicas predatórias. No entanto,
ninguém pode duvidar de que se trata de um campo de problemas que pode ser considerado vital para
a continuidade e sobrevivência dos grupos humanos envolvidos na aventura paulista de
desenvolvimento. (AB’ SABER, 1977)

Esse documento corresponde ao início dos diálogos da geografia com o campo do


patrimônio sendo referencial para a instrução do processo de tombamento da Serra do Mar,
(CONDEPHAAT. proc. 20868/79) que resultou em seu tombamento em 1985. A maior ação
de preservação de paisagem realizada por um órgão de preservação do patrimônio em
contexto brasileiro, considerando-se que até aquele momento, não havia em São Paulo o
entendimento de que um órgão responsável pela preservação do patrimônio histórico pudesse
também incorporar elementos da “natureza” mesmo que a legislação versasse a esse respeito.

Para além da Serra do Mar a proposta de Ab’ Saber consistia no mapeamento das
reservais naturais paulistas a partir de três níveis de prioridade: as consideradas “áreas críticas
e ecologicamente estratégicas”, as “áreas de exceção” e em terceiro plano as “paisagens de
substituição” que considerava próprias para o aproveitamento turístico.

As diretrizes correspondiam à possibilidade de classificar as paisagens nos domínios


da preservação da cultura paulista através do grau de ameaça que sofriam, disciplinando
também suas potencialidades em termos da gestão do território. As atribuições de valor
estabelecidas nas Diretrizes dão caráter secundário às “áreas de exceção” isto é, as paisagens
monumentais e de beleza cênica e terciário aos domínios da arquitetura e do paisagismo como
parques e jardins por ele chamadas de “paisagens de substituição”.
Do aporte conceitual da geografia, as áreas críticas e ecologicamente estratégicas
pontuadas como prioritárias correspondiam àquelas porções do território ameaçadas pela
expansão desenfreada das cidades que Aziz chamada de “filtros da Biosfera” como a Serra do
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Mar, a Serra do Japi, o Maciço da Juréia, a Serra da Cantareira ou mesmo a Serra de Atibaia e
Itapetininga todas tombadas pelo Condephaat entre 1979 e 1985. A expressividade desses
dessas ações se dá pela proteção de valores ambientais ligados a agenda das políticas de meio
ambiente por meio do tombamento, figura jurídica de reconhecimento dos valores culturais.
(CRISPIM, 2014).
Nos anos de 1980 a preservação de paisagens ganhou folego entre os técnicos do
Condephaat com a criação da Equipe de Áreas Naturais como núcleo de trabalhos do Serviço
Técnico de Conservação e Restauro (STCR), grupo que congregou profissionais de diversas
áreas entre geógrafos, biólogos e engenheiros agrônomos - principal indício de um acúmulo
de experiência com relação às áreas naturais. Nesse sentido o documento “Subsídios para um
plano sistematizador das paisagens naturais do estado de São Paulo” conhecido como Ordem
de Serviço n.1/82 correspondeu ao principal meio de atuação da equipe técnica em processos
de tombamento de áreas naturais partindo de uma conceituação própria de paisagem para na
operacionalização dos trabalhos:

A paisagem corresponde à globalidade dos componentes naturais articulados num


determinado contexto espacial e temporal. Não se confunde com “recurso natural”
que implica aproveitamento econômico. Assim, pode se considerar o termo paisagem
como síntese das diferentes formas de arranjo e dos diferentes processos de interação
dos componentes naturais. Sendo o sistema ambiental dinâmico, no tempo e no
espaço, ele gera uma sucessão de paisagens. O que existe hoje são paisagens onde a
interferência da ação antrópica se faz sentir em diferentes graus de intensidade, em
detrimento do tipo de paisagem que se convencionou chamar de quadro natural.

Portanto, os poucos quadros naturais existentes são documentos vivos da


evolução biológica e geológica da Terra e as paisagens onde a ação humana se faz
sentir mais direta e intensamente são documentos da história do Homem. Toda
paisagem é um bem cultural, seja por seu valor como acervo para o conhecimento em
geral, ou pelo simples fato da paisagem integrar a noção de Mundo, no âmbito da
consciência humana. É imprescindível, portanto, salvaguardar determinados tipos de
paisagens ou componentes de paisagens. (CONDEPHAAT.proc.20868/79 fl.61)
10

Nos limites da atuação do Condephaat a paisagem conformou-se como um interesse


lugar comum de reelaboração das práticas de preservação do patrimônio cultural em
contraponto a legislação brasileira de patrimônio que tem no bem edificado e na arquitetura
suas principais matrizes. A história da busca de uma política de preservação das áreas naturais
em contexto paulista, o que nunca se efetivou é uma história marcada pelo intercambio
conceitual e quebra de paradigmas da ação preservacionista, na perspectiva de uma história
ambiental paulista.

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