Você está na página 1de 22

Educação Patrimonial,

Diversidade e Meio Ambiente

1
Presidente da República Governo do Distrito Federal Organização
Luiz Inácio Lula da Silva Vinicius Prado Januzzi
Governadora
Ana Carolina Lessa Dantas
Ministra da Cultura Celina Leão Hizim Ferreira
Vanessa Nascimento Freitas
Margareth Menezes da Purificação Costa
Secretária de Estado de Educação do Rodrigo Capelle Suess
Instituto do Patrimônio Histórico Distrito Federal Fábio da Silva
e Artístico Nacional Hélvia Miridan Paranaguá Fraga Inara Bezerra Ferreira de Sousa
Subsecretária de Educação Inclusiva e Autores
Presidente
Integral Alessandra Lucena Bittencourt
Leandro Antônio Grass Peixoto
Vera Lúcia Ribeiro de Barros Ana Carolina Lessa Dantas
Diretores do Iphan Gerente de Educação Ambiental, Átila Bezerra Tolentino
Maria Silvia Rossi Patrimonial, Língua Estrangeira e. Beatriz Coroa do Couto
Andrey Schlee Arte-Educação Beatriz de Oliveira Alcantra Gomes
Deyvesson Gusmão Silvia Alves Ferreira Pinto Cláudia Garcia
Desirée Tozi Fabiana Maria de Oliveira Ferreira
Hugo de Carvalho Sobrinho
Créditos da publicação Ilka Lima Hostensky
Superintendente do Iphan Laura Ribeiro de Toledo Camargo
Educação Patrimonial, Diversidade e Meio
no Distrito Federal Luís Fernando Celestino da Costa
Ambiente no Distrito Federal
Thiago Pereira Perpétuo Márcia Cristina Pacito Fonseca Almeida
Maria Andreza Costa Barbosa
Marielle Costa Gonçalves
Maurício Guimarães Goulart
Paulo Moura Peters
Rodrigo Capelle Suess
Rosângela Azevedo Corrêa
Rosinaldo Barbosa da Silva
Sônia Regina Rampim Florêncio
Vanessa Nascimento Freitas
Vinicius Prado Januzzi
Projeto gráfico e diagramação
Carolina Menezes
Revisão e Correções
Sarah Torres Nascimento de Abreu

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico


Nacional
www.iphan.gov.br
publicacoes@iphan.gov.br
iphan-df@iphan.gov.br
Educação Patrimonial
e Inventários Participativos

elaborado por

Sônia Rampim Florêncio1


Márcia Cristina Pacito Fonseca Almeida2
Paulo Moura Peters3

Para iniciar nossa conversa sobre educação patrimonial, é importante


nos determos um pouco nos significados dos dois termos dessa palavra
composta: educação e patrimônio.
Qual nosso entendimento sobre os conceitos e as práticas relacionados
à educação e ao patrimônio?

De qual Educação estamos falando?


saiba mais
Assim, algumas questões são forma, educação significa reflexão Considerado um dos patronos
fundamentais. Quais perspectivas constante e ação transformadora da educação brasileira, Paulo
dos sujeitos no mundo e não uma Reglus Neves Freire (1921-1997)
de educação devem pautar as ações foi um educador, escritor e filó-
no campo do patrimônio cultural? educação somente reprodutora sofo pernambucano. Figura de
Qual o papel dos educadores no coti- de informações, como via de mão proa do movimento da peda-
única e que identifique os educandos gogia crítica e entusiasta da
diano da educação formal? educação popular, é autor de
A Educação deve ser pensada como consumidores de informações. obras fundamentais no campo
como escolha de processos pelos Paulo Freire chamou esse último da educação como Pedagogia
modelo de “educação bancária” do oprimido (1968) e Pedagogia
quais exercitamos construções
da autonomia (1996).
coletivas de conhecimentos. Dessa (FREIRE, 1970).
1 Licenciada em ciências sociais (Unesp), mestrado em Educação (Unicamp). É servidora do Iphan, onde atua, também, como professora do mestrado
profissional.
2 Márcia Cristina Pacito Fonseca Almeida é historiadora do Núcleo de Educação Patrimonial do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN-
SEDE) e doutoranda em História Social pela Universidade de São Paulo. Possui mestrado, bacharelado e licenciatura pela USP, atuando como docente no
ensino básico e superior entre 2016 e 2019. É autora de Comércio, bens de prestígio e insígnias de poder: as agências centro-ocidentais africanas nos relatos
de viagem de Henrique de Carvalho em sua expedição à Lunda (1884-1888) (FAPESP/Editora Intermeios, 2019).
3 É formado em Antropologia (UnB), com mestrado em Patrimônio Cultural e Turismo (Uminho-Portugal). Atua como servidor público do Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) desde 2010. Atualmente trabalha na área de Educação Patrimonial.

2
A educação que se vislumbra
é aquela que se caracteriza como
mediação para a construção coletiva
do conhecimento, a que identifica
a comunidade como produtora de
saberes, que reconhece, portanto, a
existência de saberes locais. Enfim,
a que reconhece que os bens cultu-
rais estão inseridos em contextos
de significados próprios associados
à memória do local. A educação,
portanto, deve ser percebida como
aquela que ocorre nos espaços da
vida, indo ao encontro das perspecti- É a valorização de processos concebido, reconhecido e produ-
vas presentes na chamada Educação educativos que imbrica os saberes zido pelos sujeitos que a habitam. É
Integral, ampliando tempos, espaços escolares aos saberes que circulam preciso associar a escola ao conceito
e oportunidades educativas. Trata-se nas praças, nos parques, nos museus, de cidade educadora, pois a cidade,
da aproximação de práticas escolares nos teatros, nos encontros e manifes- no seu conjunto, oferecerá inten-
– e outras práticas sociais e cultu- tações culturais de um modo geral. cionalmente às novas gerações
rais – aos espaços urbanos e rurais Para Jaqueline Moll, a cidade experiências contínuas e significati-
tratados como territórios educati- precisa ser compreendida como vas em todas as esferas e temas da
vos (MOLL, 2009). território vivo, permanentemente vida (MOLL, 2009).

3
A Educação Integral considera Cognição. Vygotsky (1998) considera problemas e as situações para os
como “territórios educadores” o que os PPS se desenvolvem durante quais eles foram criados. Assim, a
bairro, a cidade, a roça, o quilombo, o a vida de um indivíduo a partir da mediação pode ser entendida como
assentamento rural, a aldeia, ou seja, sua participação em situações de um processo de desenvolvimento e
os lugares da vida comunitária, ou interação social, no qual participam aprendizagem humana, como incor-
ainda, todo espaço que possibilite e instrumentos e signos com os quais poração da cultura, como domínio
estimule, positivamente, o desenvol- os sujeitos organizam e estruturam de modos culturais de agir, pensar,
vimento e as experiências do viver, do seu ambiente e seu pensamento. de se relacionar com outros e consigo
conviver, do pensar e do agir conse- Os instrumentos e os signos, social mesmo. As ações educativas para a
quente, é um espaço educativo. e historicamente produzidos, em valorização do patrimônio cultural,
Outra categoria interessante para última instância, mediam a vida. Os nesse sentido, são ações mediadoras,
o tema da Educação Patrimonial é o diferentes contextos culturais onde no sentido pensado por Vygotsky,
conceito de mediação no universo de as pessoas vivem são, também, que contribuem para a afirmação
Vygotsky. Em Pensamento e Linguagem contextos educativos que formam e dos sujeitos em seus mundos, em
(VYGOTSKY, 1998), o autor mostra moldam os jeitos de ser e estar no suas culturas e em seus patrimô-
que a ação humana tem efeitos que mundo. Essa transmissão cultural é nios culturais.
mudam o mundo e efeitos sobre importante porque tudo é aprendido
a própria pessoa e é por meio dos por meio dos outros, dos pares que
elementos (instrumentos e signos) e convivem nesses contextos.
do processo de mediação que ocorre Dessa maneira, não somente
o desenvolvimento dos Processos práticas sociais e artefatos são
Psicológicos Superiores (PPS) ou apropriados, mas, também, os

4
De qual patrimônio estamos falando?

Agora, pensemos na palavra


patrimônio. De quem são os patri-
mônios? Quem faz esse patrimônio
existir? Quem seleciona? O que eles
representam? Quais memórias
eles expressam?
É preciso, portanto, ter clareza
acerca do conceito de patrimônio
cultural que é referência para as
práticas de Educação Patrimonial.
Tal noção, hoje, está ampliada. Essa expressão poética coaduna-se, com a defi-
Conforme as palavras do ex-mi- nição legal presente no artigo 216 da Constituição
nistro da Cultura, Gilberto Gil: Federal de 1988:

[...] pensar em patrimônio agora é Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens
pensar com transcendência, além de natureza material e imaterial, tomados individualmente
das paredes, além dos quintais, ou em conjunto, portadores de referência à identidade,
além das fronteiras. É incluir as à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da
gentes. Os costumes, os sabores, os sociedade brasileira, nos quais se incluem:
saberes. Não mais somente as edifi- I - as formas de expressão;
cações históricas, os sítios de pedra
II - os modos de criar, fazer e viver;
e cal. Patrimônio também é o suor,
o sonho, o som, a dança, o jeito, a III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
ginga, a energia vital, e todas as IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais
formas de espiritualidade de nossa espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
gente. O intangível, o imaterial
(IPHAN, 2014). V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisa-
gístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico
e científico.

5
É interessante notar que o texto que a formação da sociedade brasi-
legal ajuda a responder à ques- leira transcorre continuamente e
tão relacionada aos detentores do inclui os grupos sociais que vivem
patrimônio cultural brasileiro: aos nos diferentes territórios brasileiros
portadores de referência à iden- no hoje e cultivam, cotidianamente,
tidade, à ação, à memória dos suas referências culturais.
diferentes grupos formadores da O patrimônio cultural forma-se
sociedade brasileira. a partir de referências culturais que
Dessa forma, percebemos a estão muito presentes na história
ampliação do conceito de patrimônio de um grupo e que foram transmi-
cultural e, também, o deslocamento tidas entre várias gerações. Ou seja,
da identificação desse patrimônio, são referências que ligam as pessoas
antes atribuída somente aos órgãos aos seus pais, aos seus avós e àque-
oficiais de preservação e que, agora, les que viveram muito tempo antes
se coloca como atribuição desses delas. São as referências que se quer
grupos. Portanto, devemos pensar transmitir às próximas gerações.

6
Entre os elementos que consti- ria compartilhada, um edifício, uma Referências culturais são edifi-
tuem a cultura de um lugar, alguns festa ou um lugar que muitos acham cações e são paisagens naturais.
podem ser considerados patrimônio importante, ou outros elementos em São também as artes, os ofícios, as
cultural. São elementos tão impor- torno dos quais muitas pessoas de formas de expressão e os modos
tantes para o grupo que adquirem um mesmo grupo se identificam. de fazer. São as festas e os luga-
o valor de um bem — um bem O patrimônio cultural faz parte res a que a memória e a vida social
cultural — e é por meio deles que o da vida das pessoas de maneira tão atribuem sentido diferenciado: são
grupo se vê e quer ser reconhecido profunda que, algumas vezes, elas as consideradas mais belas, são as
pelos outros. Notem que nem tudo sequer conseguem dizer o quanto mais lembradas, as mais queridas.
que forma uma cultura é patrimô- ele é importante e por quê. Mas, São fatos, atividades e objetos que
nio cultural. Por exemplo, aspectos caso elas o perdessem, sentiriam mobilizam a gente mais próxima
como a falta de educação no trân- sua falta. Como exemplo, citamos a e que reaproximam os que estão
sito ou o costume de jogar lixo na rua paisagem do bairro; o jeito de prepa- longe, para que se reviva o senti-
são, sem dúvida, aspectos culturais, rar uma comida; uma dança; uma mento de participar e de pertencer
mas, definitivamente, não são patri- música; uma brincadeira. a um grupo, de possuir um lugar.
mônios culturais. Fazendo um inventário, é possível Em suma, referências são objetos,
O patrimônio cultural tem descobrir e documentar o repertório práticas e lugares apropriados pela
importância para muita gente, não de referências culturais que consti- cultura na construção de sentidos de
só para um indivíduo ou uma família. tuem o patrimônio da comunidade, identidade, são o que popularmente
Dessa maneira, interliga as pessoas. do território em que ela se insere e se chama de raiz de uma cultura
É sempre algo coletivo: uma histó- dos grupos que fazem parte dela. (IPHAN, 2000).

7
Agora sim! Qual Educação Patrimonial?

Para o entendimento do saiba mais


conceito de Educação Patrimonial, O Distrito Federal tem uma legislação própria de Educa-
é fundamental recorrermos a um ção Patrimonial, a Portaria nº 265, de 2016. Ambas as
portarias, vale lembrar, são igualmente válidas e apli-
importante marco legal para o cáveis no território do DF e devem ser trabalhadas em
campo da Educação Patrimonial: a conjunto.Essa Portaria traz importantes princípios para
Portaria Iphan nº 137, de abril de 2016, delinear ações, projetos e práticas no campo da Educa-
ção Patrimonial.
aqui reproduzida parcialmente:

portaria nº 137, de 28 de abril de 2016

Estabelece diretrizes de Educação art. 3º São diretrizes da Educação VI - Considerar a intersetorialidade


Patrimonial no âmbito do Iphan e Patrimonial: das ações educativas, de modo a
das Casas do Patrimônio. promover articulações das políti-
I - Incentivar a participação social cas de preservação e valorização
[...] resolve: na formulação, implementação e do patrimônio cultural com as de
execução das ações educativas, de cultura, turismo, meio ambiente,
art. 1º. Instituir um conjunto de modo a estimular o protagonismo
marcos referenciais para a Educação educação, saúde, desenvolvimento
dos diferentes grupos sociais; urbano e outras áreas correlatas;
Patrimonial - EP enquanto prática
transversal aos processos de preser- II - Integrar as práticas educativas ao
vação e valorização do patrimônio cotidiano, associando os bens cultu- VII - incentivar a associação das polí-
cultural no âmbito do Iphan. rais aos espaços de vida das pessoas; ticas de patrimônio cultural às ações
de sustentabilidade local, regio-
art. 2º Para os efeitos desta Portaria, III - valorizar o território como nal e nacional;
entende-se por Educação Patrimo- espaço educativo, passível de leitu-
nial os processos educativos formais ras e interpretações por meio de
e não formais, construídos de forma múltiplas estratégias educacionais; VIII - considerar patrimônio cultu-
coletiva e dialógica, que têm como ral como tema transversal e
foco o patrimônio cultural social- interdisciplinar.
IV - Favorecer as relações de
mente apropriado como recurso afetividade e estima inerentes à
para a compreensão sociohistórica valorização e preservação do patri-
das referências culturais, a fim de mônio cultural;
colaborar para seu reconhecimento,
valorização e preservação.
V - Considerar que as práticas
Parágrafo único. Os processos educativas e as políticas de preser-
educativos deverão primar pelo vação estão inseridas num campo
diálogo permanente entre os agen- de conflito e negociação entre
tes sociais e pela participação diferentes segmentos, setores e
efetiva das comunidades. grupos sociais;

8
É importante destacar que os Outro ponto importante para
processos educativos que tenham destaque é o entendimento de que
como foco o patrimônio cultural a Educação Patrimonial apresenta
são mais efetivos quando integra- uma dimensão política (IPHAN,
dos às demais dimensões da vida das 2014), a partir da concepção de que
pessoas. Em outras palavras, devem tanto a memória como o esqueci-
fazer sentido e serem percebidos nas mento são produtos sociais.
práticas cotidianas, como começa- É preciso enfrentar o desafio
mos a ver anteriormente, no módulo de encarar a problemática de que,
que abre nosso curso. É preciso, no Brasil, nem sempre a população
portanto, associar continuamente se identifica ou se vê no conjunto
os bens culturais e a vida cotidiana, do que é reconhecido oficialmente
como criação de símbolos e circula- como patrimônio cultural nacional.
ção de significados. Nas palavras de Sabe-se que as políticas de preser-
Carlos Rodrigues Brandão: vação se inserem num campo de
conflito e negociação entre dife-
rentes segmentos, setores e grupos
Não se trata, portanto, de pretender sociais envolvidos na definição dos
imobilizar, em um tempo presente, critérios de seleção, na atribuição de
um bem, um legado, uma tradi-
ção de nossa cultura, cujo suposto valores e nas práticas de proteção
valor seja justamente a sua condi- dos bens e manifestações cultu-
ção de ser anacrônico com o que se rais acauteladas.
cria e o que se pensa e viva agora,
ali onde aquilo está ou existe. Trata-
-se de buscar, na qualidade de uma
sempre presente e diversa releitura
daquilo que é tradicional, o feixe de
relações que ele estabelece com a
vida social e simbólica das pessoas
de agora. O feixe de significados que
a sua presença significante provoca
e desafia (BRANDÃO, 1996).

9
Situação determinada, entre
outras causas, pelo assimétrico e
desigual processo de desenvolvi-
mento socioeconômico que, por um
lado, expande o regime da grande
propriedade rural e da agricultura
intensiva; por outro, determina
uma urbanização caracterizada por
grandes concentrações metropoli-
tanas, que estimulam o processo de
especulação imobiliária, gerando a
substituição de edificações e espaços
sociais, a segregação de populações e
a limitação do usufruto dos ambien-
tes públicos e comunitários.

10
Esse quadro acaba por originar se pautando pelo respeito à diversi-
um desequilíbrio de representativi- dade sociocultural.
dade em termos da origem étnica, A Educação Patrimonial tem,
social e cultural, o que provoca, desse modo, um papel decisivo
por sua vez, uma crise de legitimi- no processo de valorização e de
dade e uma baixa identificação da preservação do patrimônio cultu-
população, em alguns casos, com ral, colocando-se para muito além
Patrimônio Cultural nacional que é da divulgação do patrimônio. Não
oficialmente reconhecido. bastam a “promoção” e a “difusão”
Desse ponto de vista, ao assumir de conhecimentos acumulados
funções de mediação, as institui- no campo técnico da preservação
ções públicas devem, mais do que do patrimônio cultural. Trata-se,
propriamente determinar valores essencialmente, da possibilidade de
a priori, criar espaços de aprendi- construções de relações efetivas com
zagem e interação que facultem a as comunidades, verdadeiras deten-
mobilização e a reflexão dos grupos toras do patrimônio cultural.
sociais em relação ao seu próprio
patrimônio. Sua função primordial
é mediar todo tipo de processo de
patrimonialização, encaminhando
demandas e intervindo em ques-
tões pontuais e estratégicas, sempre

11
Dessa forma, os bens culturais de culturas marginalizadas ou exclu-
são considerados como suporte ídas da modernidade ocidental, e
vivo para a construção coletiva do que são fundamentais para o estabe-
conhecimento, que só pode ser lecimento de diálogos interculturais
levada a cabo quando se conside- e de uma cultura de tolerância com
ram e se incorporam as necessidades a diversidade.
e expectativas das comunidades Aí está o que pode ser uma apro-
envolvidas por meio de múltiplas ximação mais complexa e integrada
estratégias e situações de aprendi- das realidades sociopolíticas do
zagem que devem ser construídas fenômeno da cultura em geral e da
dialogicamente a partir das especi- Educação Patrimonial em particu-
ficidades locais. lar. E complexa, aqui, tem o sentido
Além disso, a Educação apontado por Edgar Morin:
Patrimonial deve ser tratada como
um conceito basilar para a valori- Complexus [do latim] significa o
zação da diversidade cultural, para que foi tecido junto; de fato, há
complexidade quando elementos
o fortalecimento de identidades e diferentes são inseparáveis, consti-
de alteridades no mundo contem- tutivos do todo (como o econômico,
porâneo e como um recurso para a o político, o sociológico, o psicoló-
gico, o afetivo, o mitológico) e há
afirmação das diferentes maneiras um tecido interdependente, intera-
de ser e de estar no mundo. O reco- tivo e inter-retroativo entre o objeto
nhecimento desse fato, certamente de conhecimento e seu contexto, as
partes e o todo, o todo e as partes, as
inserido em um campo de lutas e
partes entre si. Por isso a complexi-
contradições, evidencia a visibilidade dade é a união entre a unidade e a
multiplicidade (MORIN, 2011, p. 36).

12
Outro aspecto importante é vistas a uma melhor compreensão
que a Educação Patrimonial pode das realidades locais.
contribuir para a criação de canais No que se refere à prática
de interlocução com a sociedade e educativa, é preciso considerar o
com os setores públicos responsáveis patrimônio cultural como tema
pela política de patrimônio cultural, transversal e interdisciplinar, ato
por meio de mecanismos de escuta essencial ao processo educativo
e observação que permitam acolher para potencializar o uso dos espaços
e integrar as singularidades, identi- públicos e comunitários como espa-
dades e diversidades locais. ços formativos. Além disso, é preciso
Dessa forma, são possíveis a incentivar o envolvimento das insti-
identificação e o fortalecimento tuições que atuam nos processos
dos vínculos das comunidades com educacionais, formais e não formais,
o seu patrimônio cultural, o que no campo da Educação Patrimonial.
pode potencializar a articulação de
ações educativas de valorização e
proteção do patrimônio cultural.
saiba mais
É preciso, portanto, identificar e Para a compreensão dos valores afetivos e os proces-
promover ações que tenham como sos de ressignificação do patrimônio cultural a partir do
exercício de escuta das populações locais, conferir, por
referência as expressões culturais exemplo, a publicação: ROMEO, Gabriela (org.). NOVAS
locais e territoriais, contribuindo, (velhas) BATALHAS - Educação patrimonial no contexto
dessa maneira, para a construção de das fortificações de Pernambuco. Brasília: IPHAN, 2019.
mecanismos junto à sociedade com

13
Outro fator importante para o Em consonância com essas
sucesso das ações educativas de perspectivas, faz-se necessária a
preservação e valorização do patri- compreensão dos espaços territo-
mônio cultural é o estabelecimento riais como espaços vivos, passíveis
de vínculos entre políticas públi- de leitura e interpretação por meio
cas de patrimônio e as de cultura, de múltiplas estratégias educacio-
turismo cultural, meio ambiente, nais. Seus efeitos se potencializam
educação, saúde, desenvolvimento quando conseguem interligar os
urbano e de outras áreas correlatas, espaços tradicionais de aprendi-
favorecendo, então, o intercâmbio zagem a equipamentos públicos,
de ferramentas educativas de modo como centros comunitários, biblio-
a enriquecer o processo pedagógico tecas, praças e parques, associações
inerente a elas. de moradores, teatros e cinemas.
Desse modo, são possíveis a Tais estratégias tornam-se também
otimização de recursos na efetiva- mais efetivas quando integradas às
ção das políticas públicas e a prática demais dimensões da vida e articula-
de abordagens mais abrangentes e das a práticas cotidianas e marcos de
intersetoriais, compreendendo a referências identitárias ou culturais
realidade como lugar de múltiplas de seus usuários. As cidades, reite-
dimensões da vida. ramos, precisam ser compreendidas
como territórios vivos, produzidos
pelos sujeitos que as habitam e as
saiba mais modificam continuamente.
Você sabia que recentemente o Museu da Repú-
blica lançou uma plataforma contendo atividades de
Educação Patrimonial? É possível acessar materiais que
enfocam atividades colaborativas que contemplam as
dimensões afetivas do Patrimônio.

14
Os inventários participativos

Com base nos princípios de Inventário Pedagógico, fruto da


atuação da Educação Patrimonial, participação do Iphan na atividade de
apontados acima e na preocupa- Educação Patrimonial do Programa
ção sempre presente no Instituto Mais Educação, da Secretaria de
do Patrimônio Histórico e Artístico Educação Básica do MEC.
Nacional (Iphan) em inserir o tema Decidiu-se, à época, que em
do patrimônio cultural na educação função da diversidade de contextos
formal, a Coordenação de Educação culturais e faixas etárias atendidas
Patrimonial do Departamento de pelo Programa, seria necessário
Cooperação e Fomento do Iphan pensar uma atividade que abar-
optou pela utilização de uma casse tais diferenças culturais,
ferramenta pedagógica onde a geracionais e territoriais, criando
comunidade escolar pudesse olhar uma aproximação inicial com o tema
para o patrimônio do seu territó- patrimônio cultural. Além disso, a
rio e tornar-se protagonista para partir do trabalho inicial de reco-
inventariá-lo e apresentá-lo em dife- nhecimento proposto pelo material,
rentes formatos. esperava-se incentivar a criatividade
Com base em metodologias e a inventividade em cada escola
de ferramentas já existentes no para desenvolver seus próprios
Iphan, principalmente o Inventário produtos e ações.
Nacional de Referências Culturais
(INRC), foi desenvolvido e dispo-
nibilizado, portanto, em 2012, o

15
Assim, entendia-se que era Assim, o Inventário Pedagógico imersão no universo de pesquisas
possível estimular e mobilizar comu- pode se constituir em um potente que extrapolam a consulta a publi-
nidades escolares de todo o território in s t r u m ent o d e E d u c aç ã o cações e à internet, tão comumente
brasileiro para o entendimento do Patrimonial para, em primeiro presente no universo dos estudantes.
patrimônio cultural como um eixo lugar, estimular a mobilização e a Em razão de solicitações de
de desenvolvimento local. participação social em torno das técnicos das unidades do Iphan
Para Hugues de Varine: referências culturais nos diferen- e de outros setores do Ministério
tes territórios do país, estimulando da Cultura, bem como por suges-
Inventário compartilhado é ao grupos sociais a identificá-las e valo- tões e demandas de determinadas
mesmo tempo um objetivo e um rizá-las a partir das escolas. organizações da sociedade civil,
meio: trata-se, com certeza, de
chegar a um produto, utilizando Essas construções coletivas e de decidiu-se adaptar o material para
todos os meios de coleta, de registro pesquisas sobre as referências cultu- aproveitamento em iniciativas e
e difusão; mas é também, e talvez rais permitem o acesso aos valores atividades para além do Programa
principalmente, uma pedagogia
que visa a fazer nascer no territó-
afetivos e cotidianos do patrimônio Mais Educação. Foram feitos ajustes
rio a imagem complexa e viva de e a articulação de contextos multi- textuais, redefinindo seus poten-
um patrimônio comum, de múlti- culturais (presentes na realidade ciais usos e objetivos. A partir dessa
plos componentes e facetas, que
escolar) com o objetivo de favorecer reformulação, o alvo primordial dos
se tornará o húmus do desenvolvi-
mento futuro, e que será igualmente a cooperação de diferentes saberes. inventários participativos passou
compartilhado por todos. (VARINE, Para além de consistir num a ser a mobilização e sensibilização
2012, grifos nossos) instrumento de mobilização e de das comunidades para a importân-
sensibilização, os inventários têm cia de seu patrimônio cultural, por
como objetivo identificar, reunir, meio de uma atividade formativa
sistematizar (e, no limite, compa- que envolve produção de conheci-
rar) informações possibilitando uma mento e participação.

16
O Inventário Participativo cons- Inventariar, nessa perspectiva,
titui-se, portanto, numa ferramenta é um modo de pesquisar, coletar e
de Educação Patrimonial com objeti- organizar informações sobre algo que
vos principais de fomentar no leitor a se quer conhecer melhor. Nessa ativi-
discussão sobre patrimônio cultural, dade, é necessário um olhar voltado
assim como estimular que a própria aos espaços da vida, buscando iden-
comunidade busque identificar e tificar as referências culturais que
valorizar as suas referências cultu- formam o patrimônio do local.
rais, numa construção dialógica do
conhecimento acerca de seu patri-
mônio cultural.
Alinha, ainda, o tema da preser-
vação do patrimônio cultural ao
entendimento de elementos como
território, convívio e cidade como
possibilidades de constante aprendi-
zado e formação, associando valores
como cidadania, participação social e
melhoria de qualidade de vida.

17
A ferramenta apresenta-se,
antes de tudo, como um exercício
de cidadania e participação social, de Um de seus objetivos é fazer
forma que os seus resultados possam com que diferentes grupos e dife-
contribuir para o aprimoramento do rentes gerações se conheçam e
papel do Estado na preservação e na compreendam melhor uns aos
valorização das referências culturais outros, promovendo o respeito
brasileiras, assim como servir de pela diferença e o reconhecimento
fonte de estudos e experiências no da importância da pluralidade. A
contínuo processo de aprendizado. integração de diversos agentes da
Este inventário é, assim, uma comunidade – sejam pais e familia-
atividade de educação patrimonial. res, mestres ou produtores de cultura
Portanto, seu objetivo é construir – é fundamental para a eficácia das
conhecimentos a partir de um amplo ações educativas a serem construí-
diálogo entre as pessoas, as institui- das com sua utilização.
ções e as comunidades que detêm A public aç ão Edu c aç ão
as referências culturais a serem Patrimonial: Inventários participati-
inventariadas. vos (Manual de Aplicação), lançada
pelo Iphan em 2016, pode ser aces-
sada no portal Iphan.

18
Algumas ações inspiradoras

Deixamos agora, alguns exemplos de produtos resultantes de usos


dos inventários participativos:

⚫ Inventários participativos no contexto da candidatura das forti-


ficações brasileiras a patrimônio mundial, realizados em Recife e
Itamaracá – PE
http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/livro_nv_batalhas.pdf

⚫ Inventários participativos em Ceilândia – DF


http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/ceilandia_minha_
quebrada_mundo.pdf

⚫ Rede Catarinense de Engenhos de Farinha - SC


https://engenhosdefarinha.wordpress.com

⚫ Inventário participativo do Minhocão em São Paulo – SP


Dossiê do Inventário Participativo Minhocão contra gentrificação.
São Paulo, 2019.
bit.ly/minhocaocontragentrificacao

⚫ Inventários participativos no Museu Indígena kanindé – CE


http://mkindio.blogspot.com/
https://kanindeescola.wixsite.com/escola-kaninde

19
Referências

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O difícil espelho: limites e MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do
possibilidades de uma experiência de cultura e educação. futuro. São Paulo: Cortez, 2011.
Rio de Janeiro: IPHAN, 1996.
ROMEO, Gabriela (Orgs.). NOVAS (velhas) BATALHAS -
BRASIL. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Educação patrimonial no contexto das fortificações de
Nacional. Manual de Aplicação do Inventário Nacional de Pernambuco. Brasília: IPHAN, 2019. Disponível em: http://
Referências Culturais. Brasília: IPHAN, 2000. portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/livro_nv_batalhas.
pdf. Acesso em 19 maio. 2023.
______. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacio-
nal. Educação Patrimonial: histórico, conceitos e processos. VARINE, Hugues de. As raízes do futuro – o patrimônio a
Brasília: IPHAN, 2014. Disponível em: http://portal.iphan. serviço do desenvolvimento local. Tradução de Maria de
gov.br/uploads/publicacao/EduPat_EducacaoPatrimo- Lourdes Parreiras Horta. Porto Alegre: Ed. Medianiz, 2012.
nial_m.pdf. Acesso em 28. jan. 2021.
VYGOTSKY, Lev Semenovich. A formação social da mente.
______. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
Nacional. Manual de Aplicação – Inventário Nacional de
Referências Culturais. Brasília: IPHAN, 2000. NITO, M. K.; SCIFONI, S. Ativismo urbano e patrimônio cultu-
ral. Revista eletrônica arq.urb, PGAUR/USJT, n. 23, p. 82-94,
_______. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico dez. 2018. Disponível em: https://revistaarqurb.com.br/
Nacional. Portaria 137, de 28 de abril de 2016. Estabelece arqurb/article/view/40. Acesso em 16 set. 2020.
diretrizes de Educação Patrimonial no âmbito do Iphan e
das Casas do Patrimônio. Diário Oficial da União, 29 abr. NITO, Mariana Kimie; SCIFONI, Simone. O patrimônio contra
2016, sec. 1, n.81, p. 06. a gentrificação: a experiência do Inventário Participativo de
Referências Culturais do Minhocão. Revista do Centro de
_______. Constituição da República Federativa do Brasil. Pesquisa e Formação do Sesc, n. 5, nov. 2017, p. 38-49. Dispo-
Brasília: Senado Federal, 1988. nível em: https://www.sescsp.org.br/files/artigo/e41e4678/
e25f/4759/adf4/75827c81fcbb.pdf. Acesso em 16 set. 2020.
______. Museu da República. Educação Patrimonial.
Disponível em: https://museueducativo.com.br/category/
educacao-patrimonial/. Acesso em 30/03/2021.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz


e Terra, 1970.

_______. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e


Terra, 2011.

MOLL, Jaqueline. Um paradigma contemporâneo para a


Educação Integral. Pátio, Revista Pedagógica, n. 51, p. 12-15,
ago./out. 2009.

20
21

Você também pode gostar