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Educação Patrimonial,

Diversidade e Meio Ambiente

módulo 5

1
Presidente da República Governo do Distrito Federal Organização
Luiz Inácio Lula da Silva Vinicius Prado Januzzi
Governadora
Ana Carolina Lessa Dantas
Ministra da Cultura Celina Leão Hizim Ferreira
Vanessa Nascimento Freitas
Margareth Menezes da Purificação Costa
Secretária de Estado de Educação do Rodrigo Capelle Suess
Instituto do Patrimônio Histórico Distrito Federal Fábio da Silva
e Artístico Nacional Hélvia Miridan Paranaguá Fraga Inara Bezerra Ferreira de Sousa
Subsecretária de Educação Inclusiva e Autores
Presidente
Integral Alessandra Lucena Bittencourt
Leandro Antônio Grass Peixoto
Vera Lúcia Ribeiro de Barros Ana Carolina Lessa Dantas
Diretores do Iphan
Maria Silvia Rossi Gerente de Educação Ambiental, Átila Bezerra Tolentino
Andrey Schlee Patrimonial, Língua Estrangeira e. Beatriz Coroa do Couto
Deyvesson Gusmão Arte-Educação Beatriz de Oliveira Alcantra Gomes
Desirée Tozi Silvia Alves Ferreira Pinto Cláudia Garcia
Fabiana Maria de Oliveira Ferreira
Hugo de Carvalho Sobrinho
Superintendente do Iphan Ilka Lima Hostensky
Créditos da publicação
no Distrito Federal Laura Ribeiro de Toledo Camargo
Educação Patrimonial, Diversidade e Meio
Thiago Pereira Perpétuo Luís Fernando Celestino da Costa
Ambiente no Distrito Federal
Márcia Cristina Pacito Fonseca Almeida
Maria Andreza Costa Barbosa
Marielle Costa Gonçalves
Maurício Guimarães Goulart
Paulo Moura Peters
Rodrigo Capelle Suess
Rosângela Azevedo Corrêa
Rosinaldo Barbosa da Silva
Sônia Regina Rampim Florêncio
Vanessa Nascimento Freitas
Vinicius Prado Januzzi
Projeto gráfico e diagramação
Carolina Menezes
Revisão e Correções
Sarah Torres Nascimento de Abreu

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico


Nacional
www.iphan.gov.br
publicacoes@iphan.gov.br
iphan-df@iphan.gov.br
Educação Patrimonial e Diversidade

elaborado por

Ilka Lima Hostensky 1

Falar de patrimônio é falar de histórias, saberes, fazeres e expres- Cultura (Unesco). Nos sítios eletrô-
riqueza material e imaterial, de sões culturais que compõem o nicos do Instituto do Patrimônio
território, de territorialidade, de patrimônio cultural brasileiro. Cheia Histórico e Artístico Nacional (Iphan)
identidade, de experiências, de de entrelaçares de histórias também e da Secretaria de Turismo do DF é
subjetividades, de religiosidades, é Brasília e seu Entorno. Cidade possível obter maiores informações
de pertencimento, de diversidade sonhada, pensada, planejada, cons- a respeito da capital.
e muito mais. Em maio de 2020, o truída. Em 1987, com apenas 27
Instituto Brasileiro de Geografia anos, Brasília teve o seu conjunto saiba mais
e Estatística (IBGE) divulgou que urbanístico-arquitetônico reconhe- - Brasília completa 30 anos como
a área territorial brasileira é de cido como Patrimônio Mundial pela Patrimônio Mundial
8.510.295.914 km². Essa imensa Organização das Nações Unidas - Bra sília - Conhecer é
superfície abriga uma gama de para a Educação, a Ciência e a se surpreender
- Conheça os pontos turísticos
que vão te surpreender.

1 Ilka Lima Hostensky é mestre em Geografia pela Universidade de Brasília (UnB), especialista em Gestão Pública pela Universidade de Brasília (UnB),
especialista em Gestão e Manejo Ambiental pela Universidade Federal de Lavras – MG (UFLA), graduada em Geografia/Licenciatura pelo Centro Universitário
de Brasília (UniCeuB). Integrante do grupo de pesquisa Cidades e Patrimonialização na América Latina – GECIPA. Professora da Carreira Magistério Público
da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (SEEDF), componente curricular Geografia. Contato: ilkahoste@gmail.com

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A história da construção de tal destacar a atuação de sujeitos
Brasília é mesclada por cores, sabo- que por vezes foram excluídos da
res, odores e dores dos migrantes narrativa da construção da nova
– homens, mulheres, jovens e crian- capital, mas que tiveram e têm
ças – que para cá vieram em busca muito a contar. Nos documentários
de novas oportunidades. Porém, Memória Viva Eco-história do Planalto
cabe salientar que diversos povos Central, nos capítulos de 01 a 05 e
já habitavam essas terras bem Poeira e Batom no Planalto Central –
antes do início da construção da 50 mulheres na construção de Brasília, é
nova capital. Portanto, é essencial possível conhecer um pouco mais a
conhecer um pouco da história e da respeito da participação de impor-
atuação dos povos e atores sociais tantes atores sociais no processo de
que já habitavam esta região, como materialização de Brasília.
os indígenas, os quilombolas e as
mulheres. Igualmente necessário é
conhecer a atuação desses povos na saiba mais
contemporaneidade. É fundamen- Recomendações de materiais
audiovisuais:
1- Memória Viva: Eco-História
do Planalto Central. Capítulo 02.
Canal do Instituto Latinoamerica.

2- Documentário: Poeira e Batom


no Planalto Central – 50 mulheres
na construção de Brasília. Docu-
mentário de Tânia Fontenele.
Disponível no Youtube- Canal
Extraclasse.

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É imprescindível pensarmos e de negociação entre diferentes
e estudarmos Brasília para além segmentos, uma vez que envolve
de sua área reconhecida como a atribuição de valores, a definição
Patrimônio Cultural da Humanidade. de critérios de seleção, as práticas
Para Everaldo B. Costa (2016, 2017), de proteção de bens e manifesta-
os centros históricos se configu- ções culturais. Porém, segundo esse
ram como espaços repletos de órgão, o processo de desenvolvi-
significados, mas há que se anali- mento socioeconômico, assimétrico
sar a existência e a importância de e desigual é um dos fatores que
referências culturais que vão para contribui para “um desequilíbrio
além do sítio histórico declarado. de representatividade em termos
Referências essas que fazem parte de origem étnica, social e cultu-
do cotidiano das pessoas e impri- ral, o que provoca, por sua vez,
mem um sentido a vida delas. uma crise de legitimidade e uma
O debate patrimonial está baixa identificação da população,
presente em diversos setores: no em alguns casos, com o conjunto
universitário, no turístico, nas insti- do que é reconhecido oficialmente
tuições particulares e nas escolas de como Patrimônio Cultural nacional”
educação básica. Já não se restringe (IPHAN, 2014, p. 23).
à dimensão arquitetônica. O Iphan
(2014) destaca que falar de patri-
mônio cultural é falar de conflito

saiba mais
Como acompanhamos ao longo do curso, referências culturais são edificações
e são paisagens naturais. São também as artes, os ofícios, as formas de expres-
são e os modos de fazer. São as festas, os lugares a que a memória e a vida social
atribuem sentido diferenciado; são as consideradas mais belas, são as mais
lembradas, as mais queridas. São os fatos, atividades e objetos que mobilizam a
gente mais próxima e que reaproximam os que estão longe, para que se reviva o
sentimento de participar e pertencer a um grupo, de possuir um lugar. Em suma,
referências são objetos, práticas e lugares apropriados pela cultura na constru-
ção de sentidos de identidade, são o que popularmente se chama de raiz de uma
cultura (IPHAN, 2000, p. 20).

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Percebe-se um esforço por parte Tal aspecto favoreceu a valo- eficaz de preservação patrimonial,
dos estudiosos do tema e dos órgãos rização dos bens culturais de seja ela realizada via processo educa-
governamentais em abordar o determinados grupos – os asso- tivo formal ou não-formal.
conceito de patrimônio em sua forma ciados à elite – e a ocultação ou o Assim, o objetivo deste módulo
mais ampla. Buscam, desta forma, silenciamento daqueles associados é propiciar uma reflexão acerca da
lançar luz sobre os bens de natureza aos povos originários e aos prove- conexão entre educação patrimo-
imaterial, os ofícios, as expressões nientes do continente africano. A nial e diversidade. Propomos que os
culturais, os lugares, as celebrações ampliação do conceito de patrimô- docentes levem seus alunos a uma
coletivas e os saberes – reconheci- nio e a multiplicidade de estudos reflexão com base em perguntas
dos oficialmente ou não pelos órgãos dedicados a essa temática favore- como: O que é patrimônio? Qual a
governamentais – atribuindo uma cem, em certa medida, os grupos e importância da preservação? Qual
dimensão mais humana ao patrimô- povos que por séculos tiveram sua a importância da educação patri-
nio e valorizando a “dimensão viva história ocultada, visto que agora monial? Por que alguns bens são
da cultura” (CASTRIOTA, 2009). Mas, muitos desses grupos identifi- tombados e outros não? O patrimônio
ainda é necessário um olhar atento cam, reconhecem e declaram o que é de quem e para quem? E outras que
para as referências culturais e simbó- compõe o seu bem cultural, inde- possam surgir ao longo do processo.
licas de grupos como os indígenas e pendente da tutela governamental.
os afrodescendentes. Nesse contexto, a educação patri-
Para Ramón Grosfoguel, monial figura como um instrumento

[...] a pretensa superioridade do


saber europeu nas mais diversas
áreas da vida foi um importante
aspecto da colonialidade do poder
no sistema-mundo colonial /
moderno. Os saberes subalternos
foram excluídos, omitidos, silencia-
dos e/ou ignorados (2009, p. 69-70).

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Currículo em Movimento, Diversidade e Educação Patrimonial:
um diálogo com as especificidades históricas, culturais e
sociais da comunidade escolar

A escola não é composta só de lar convive com espaços e formas de é, originariamente, uma herança.
paredes, cadernos, livros, carteiras e aprender diversos, abertos e adap- Porém, ela também se relaciona ao
o sinal que marca o início e o término tados às necessidades de cada um. sistema de valores e às articulações
de cada aula. Ela é composta, sobre- Alinhada às ações do governo sociais de determinados grupos.
tudo, por pessoas que trazem para federal, a Secretaria de Estado de Envolve a transmissão de saberes,
o interior do espaço escolar suas Educação do Distrito Federal, por a forma de comunicação, o sistema
vivências e experiências, sua religio- meio da Portaria nº 265/2016, insti- de códigos e a memória, e influen-
sidade, seus hábitos, seus saberes e tuiu a sua Política de Educação cia no sentimento de pertença
seus sonhos. Desenvolver práticas Patrimonial. No tocante à educação grupal. Nesse sentido, Tomaz T. da
educativas de forma homogênea é patrimonial, a busca por melhores Silva (2000) considera que a diversi-
suprimir a multiplicidade de saberes práticas pedagógicas passa pela dade preexiste aos processos sociais,
e vivências que a comunidade esco- reflexão do que vem a ser a diver- ela está dada.
lar traz consigo, é tratar o discente sidade relacionada à cultura. Para
de forma generalista sem considerar Paul Claval (2004) “a cultura é a saiba mais
sua singularidade e sua particulari- soma dos comportamentos, dos “A sociedade contemporânea
dade. José Moran (2018) destaca a saberes, das técnicas, dos conheci- é caracterizada por sua diver-
sidade cultural, isto é, pela
importância do ensino regular, dado mentos e dos valores acumulados coexistência de diferentes e
o seu peso institucional, os investi- pelos indivíduos durante suas vidas variadas formas (étnicas, raciais,
mentos financeiros envolvidos e a e, em outra escala, pelo conjunto de gênero, sexuais) de manifes-
tação da existência humana,
certificação. Porém, esse autor é dos grupos de que fazem parte” (p. as quais não podem ser hierar-
claro ao evidenciar que o ensino regu- 71). Esse autor destaca que a cultura quizadas por nenhum critério
absoluto ou essencial. Em geral,
utiliza-se o termo para advo-
gar uma política de tolerância
e respeito entre as diferentes
culturas” (SILVA, 2000, p. 44).

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A discussão a respeito da homo- C. G Filice (2016) destacam que
geneização, da desigualdade, das “o processo histórico de constru-
diferenças e da diversidade não é ção curricular não é neutro e nem
nova no campo educacional. José mesmo inocente, ao contrário, é
G. Sacristán (2002) destaca que, dinâmico e carregado de interesses,
em diversos países, as pautas do das mais distintas ordens: políticas,
sistema educacional são condu- econômicas, sociais e religiosas”
zidas levando-se em conta uma (p. 99). Esses autores ressaltam
cultura universalmente válida. que o currículo, por ser um campo
Frente a essa situação, Sacristán de disputa de poder, pode privile-
(2002) afirma que a “diversidade giar determinados saberes e áreas,
significa ruptura ou abrandamento mas é “também uma possibilidade
da homogeneização que uma forma em moldar identidades individu-
monolítica de entender o universa- ais e coletivas de grupos sociais que
lismo cultural trouxe consigo” (p. historicamente tiveram suas histó-
23). E que, “em educação, a diversi- rias e seu legado esquecidos pelas
dade pode estimular-nos à busca propostas oficiais” (p. 97). Como
de um pluralismo universalista que ressaltado no primeiro módulo, a
contemple as variações da cultura, o escola é um espaço que comporta
que requer mudanças importantes diversos atores e seus saberes. Para
de mentalidade e de fortalecimento gerar significado à sua comunidade
de atitudes de respeito entre todas e ela deve estar aberta à participação
com todos” (p. 23). de todos. Na esteira dessa reflexão,
Vale ressaltar que, desde Silva e Filice orientam que:
o início do século XXI, uma série [...] é desejável que as frentes curri-
de reformas curriculares foram culares abarquem a diversidade
étnico-racial e cultural que cerceiam
feitas na rede pública de ensino do a sociedade. Para tanto, as escolas
Distrito Federal, levando ao atual necessitam trabalhar conteúdos
currículo da rede, o Currículo em das diferentes matrizes que forma-
ram a história brasileira: indígenas,
Movimento. A respeito do currículo africana, europeia, asiática, e até
escolar, Francisco T. Silva e Renísia mesmo comunidades que ainda
permanecem no limbo curricular,
como a cigana, [...]. (2016, p. 96)

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Essa reflexão parte da premissa e humanizadas” (DISTRITO FEDERAL, Os documentos normativos que o
de que cada unidade escolar deve 2013. p. 21). Dessa forma, no planeja- orientam vão desde a Constituição
traçar um perfil de sua comuni- mento, na organização e na execução Federal/1988 em seus artigos: 5º,
dade e discutir com ela as suas de suas ações, as escolas da rede 206, 201 e outros, passando pela
prioridades, ações, metas e objeti- pública do DF devem levar em conta Lei Orgânica do DF, pela Lei nº
vos de modo a operacionalizar suas os princípios da educação integral, 4.920/2012, pela Portaria nº 265/2016,
ações para que as mesmas atendam que são: integralidade; intersetoria- que institui a Política de Educação
aos anseios e necessidades desse lização; territorialidade; trabalho em Patrimonial da SEEDF, e pelo Plano
grupo. Quanto à educação patri- rede; diálogo escola comunidade; e Nacional de Implementação das
monial, o Iphan preocupa-se com o transversalidade. Um olhar atento a Diretrizes Curriculares Nacionais
desenvolvimento de ações educa- esses princípios nos propicia conec- para Educação das Relações Étnico-
tivas que estimulem a participação tá-los a uma proposta de educação Raciais e para o Ensino de História e
comunitária, a valorização dos bens patrimonial em diálogo com a diver- Cultura Afro-Brasileira e Africana,
culturais da comunidade, a constru- sidade. Propicia, também, que o dentre outras.
ção coletiva e o fortalecimento dos docente trabalhe de forma transver-
espaços educativos. sal e interdisciplinar. Outras leituras
Já a SEEDF empreende esfor- de mundo são possíveis e não só a
ços para conceber e implementar um que volta o olhar para os estudos
currículo que olha de forma atenta eurocentrados.
para a educação integral. Não se O documento que trata dos
trata aqui de meramente ampliar a pressupostos teóricos da SEEDF é
carga, mas propor “o currículo como claro ao destacar que o trabalho
um instrumento aberto em que os da educação para a diversidade –
conhecimentos dialogam entre si, conectado à educação patrimonial,
estimulando a pesquisa, a inovação ambiental e relações étnico-ra-
e a utilização de recursos e práticas ciais, dentre outros – é norteado
pedagógicas mais criativas, flexíveis por um amplo arcabouço legal.

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É primordial que as esco- para o fortalecimento do espaço
la s paut em seu s Pr ojet os e das ações escolares. Átila B.
Político-Pedagógicos (PPP) e suas Tolentino observa que
ações alinhados a essa legisla-
ção e ao Currículo em Movimento. [...] na história da patrimonialização
Sendo o PPP um instrumento defi- dos nossos bens culturais, a ideo-
logia de uma identidade nacional
nidor de caminhos, é fundamental homogênea e coesa, extremamente
que a comunidade escolar o revi- pautada numa herança europeia e
site quando necessário, proponha num poderio católico-militar, é o que
caracterizou a política preservacio-
projetos, ações e mudanças que nista implantada no Brasil nos anos
dialoguem com seus interesses e 1930 (2018, p. 53-54).
com os temas transversais, sempre
em busca de uma educação de quali- Apesar disso, o autor ressalta
dade, uma vez que “a aprendizagem a atuação de diversos grupos e
não ocorre solitariamente, mas na comunidades que reivindicaram e
relação com o outro” (DISTRITO reivindicam o reconhecimento da
FEDERAL, 2013, p. 33). O outro, nesse diversidade cultural, o que levou o
contexto, não deve ser tratado como Iphan, ao longo de sua atuação, a
o estranho ou o distante, mas como modificar a sua dinâmica de proce-
sujeito rico em história, saberes e dimento e a valorizar instrumentos
experiências que podem contribuir de preservação que reconheçam os
diferentes saberes e a diversidade
cultural. Nesse sentido,

[...] a atuação no campo do patrimô-


nio imaterial pelo Iphan tem sido
importante para a valorização das
referências culturais historicamente
subalternizadas ou silenciadas nos
processos de patrimonialização no
Brasil, bem como dos seus saberes,
fazeres e epistemologias, a exemplo
das referências culturais africanas e
indígenas (TOLENTINO, 2018, p. 55).

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Tolentino (2018), apoiado na Esses inventários, trabalha-
teoria da decolonialidade, em conso- dos particularmente no segundo
nância com a ideia de ecologia dos módulo, se baseiam “no trabalho
saberes de Boaventura Santos, que com a memória social, partem da
“baseia-se no reconhecimento da premissa de que os próprios grupos
pluralidade e da diversidade de e comunidades possam assumir, em
conhecimentos heterogêneos, que primeira pessoa, a identificação, o
podem estar sempre em interse- registro e a seleção das referências
ção e interações dinâmicas, em culturais significativas para a forma-
um diálogo horizontal e democrá- ção de suas identidades e memórias
tico” (p. 50), propõe uma Educação coletivas” (TOLENTINO, 2018, p.
Patrimonial Decolonial. De acordo 57). Verifica-se que a SEEDF está
com o autor, a educação patrimonial alinhada a essa ideia, uma vez que
decolonial admite que o colonia- a Portaria nº 265/2016, que institui
lismo se perpetuou, “o que torna a Política de Educação Patrimonial
necessário contestar e romper com do órgão, reforça a necessidade:
os processos de dominação sobre da participação comunitária; do
as memórias historicamente subal- fortalecimento da cidadania; da
ternizadas de grupos e segmentos temática estar inserida nos Projetos
sociais não hegemônicos ou estig- Político-Pedagógicos das Unidades
matizados” (TOLENTINO, 2018, p. Escolares; do foco nos temas trans-
56). O autor destaca a importância versais e no trabalho interdisciplinar;
da construção coletiva, da educação do reconhecimento, valorização
formal e não-formal, da valorização e fortalecimento das populações
das referências culturais dos povos tradicionais e comunidades locais; e
tradicionais e subalternizados e da da permanência de ações voltadas
atual metodologia de Educação para o desenvolvido da educação
Patrimonial adotada pelo Iphan que patrimonial dentro das escolas.
enfatiza os inventários participativos. Portanto, há que se tratar o assunto
de forma contínua e não pontual.

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Territórios de poder: a importância do diálogo entre educação
patrimonial e diversidade

A constituição de uma iden- Costa (2016, 2017) propõe que os cações e relações sociais; [...] Em
tidade vincula-se às questões conceitos de patrimônio e território outras palavras, o território signi-
relacionadas ao território e à terri- sejam tratados de forma acoplada; fica heterogeneidade e traços
torialidade. Claval (2014) observa além disso, o autor destaca a impor- comuns” (p. 83). Compreender
que as identidades se exprimem tância do protagonismo dos grupos o território é olhar para além de
por meio de símbolos, sendo o terri- subalternizados e de debates que sua dimensão física; envolve o
tório um dos símbolos que ajudam trazem à tona questões relaciona- simbólico, relações interpessoais,
a estruturar a identidade coletiva. das à resistência. Entende-se que identidade e memória. É no e por
Rogério Haesbaert (2016) destaca as questões étnico-raciais, iden- meio do território que diversos
que os conceitos de território e titárias, históricas, patrimoniais, povos tradicionais conseguiram
territorialidade se relacionam às de gênero, econômicas, culturais, manter suas referências culturais.
espacialidades humanas, mudando sociais e outras se interseccionam
o enfoque a depender da área – como pontua Grosfoguel (2009)
do conhecimento e da perspec- – e rebatem no espaço. Ao destacar
tiva analisada. Dessa forma, esses que o território é parte integrante
conceitos podem se vincular a rela- do espaço, Marcos Saquet (2006)
ções de poder, à dimensão simbólica, afirma que “o território é natureza
à produção, a relações sociais ou a e sociedade: não há separação, é
uma abordagem multidimensional. economia, política e cultura; edifi-

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Falar em povos tradicionais e no Caribe” (LOPES, SIMAS, 2017, p.
é, sem nenhuma dúvida, falar de 33). Tratar a questão patrimonial
quilombo. O trabalho desses povos em consonância com as questões
foi fundamental no processo de cons- étnicas e quilombolas é imprescin-
trução de diversas cidades. Inúmeras dível para se compreender a riqueza
casas, casarões, ruas e igrejas foram patrimonial brasileira. Segundo
erguidas pelas mãos dos negros Rafael Sânzio dos Anjos, “a pala-
escravizados. Além disso, faziam- vra quilombo tem origem na língua
-se presentes nas minas — de ouro, banto e se aproxima de termos como:
de diamante e outros minérios — e habitação, acampamento, floresta e
nas lavouras. Eles também foram guerreiro. Na região central da Bacia
os “responsáveis pela introdução do Congo, significa “‘lugar’ para estar
no continente americano de múlti- com Deus” (2006, p. 46).
plos instrumentos musicais, como a
cuíca ou puíta, o berimbau, o ganzá
e o reco-reco, bem como pela cria-
saiba mais
ção da maior parte dos folguedos de O termo Banto refere-se ao
rua até hoje brincados nas Américas “conjunto de povos localiza-
dos principalmente na região
do centro-sudoeste do conti-
nente africano. Indivíduos dessa
origem, em especial os embar-
cados nos portos de Cabinda,
Luanda e Benguela, represen-
taram cerca de dois terços dos
enviados para as Américas como
escravos entre os séculos XV e
XIX” (LOPES,SIMAS, 2017, p. 32-33).

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Alguns estudos associam os Para Eliane C . O’Dw yer
quilombos ao período escravista, (2002), os sujeitos históricos exis-
mas cabe destacar que esse conceito tem no presente:
sofreu modificações ao longo dos
séculos e se atualizou. Givânia Maria [...] o texto constitucional não evoca
da Silva (2016) evidencia a importân- apenas uma “identidade histórica”
que pode ser assumida e acionada
cia da atuação do Movimento Negro na forma da lei. Segundo o texto, é
na luta para o reconhecimento preciso, sobretudo, que esses sujei-
das comunidades quilombolas ou tos históricos presumíveis existam
no presente e tenham como condi-
remanescentes de quilombo como ção básica o fato de ocupar a terra
sujeitos de direitos. que, por direito, deverá ser em seu
nome titulada (p. 14).
O texto constitucional de 1988
trouxe para o Estado brasileiro, por O dispositivo legal se refere a quilombo. Segundo Carril (2006),
meio do art. 68 do Ato das Dispo-
sições Constitucionais Transitórias um conjunto de indivíduos ou atores o conceito de quilombo se associa
(ADCT), conjugado com os arts. 215 sociais organizados, que podem ser à resistência territorial. A autora
e 216 da Constituição Federal (CF), conceituados como grupos étnicos observa a existência de quilombos
o reconhecimento das comunida-
des remanescentes de quilombos
que persistem e persistiram ao longo em áreas urbana e rural. Para ela,
como categoria, bem como o direito da história. Segundo Stuart Hall, o enquanto os quilombos rurais se
a terras, a manter seus saberes e termo etnia refere-se “às caracte- organizam basicamente em torno de
costumes como patrimônio brasi-
rísticas culturais – língua, religião, questões ambientais e da conquista
leiro (p. 60).
costumes, tradições, sentimento de de terras, nos urbanos a organiza-
“lugar” – que são partilhadas por um ção acontece em torno da música, da
povo” (2015, p. 36). Portanto, para dar arte e da dança. Em ambos, a solida-
conta de tamanha complexidade, riedade é muito marcante e a luta é
há que se trabalhar com o conceito de base territorial.
mais amplo e ressemantizado de

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Silva (2016) destaca que, por cendo participação fundamental na
séculos, os quilombos sofreram construção deste país e não podem
com o processo de “apagamento e ser vistos simplesmente como algo
esquecimento” por parte do Estado, “que sobrou ou restou”. Os territórios
não estavam presentes nas políti- quilombolas representam verdadei-
cas públicas e nem nas histórias de ros espaços de poder, são ricos em
“sucesso” contadas oficialmente. A referências culturais e simbólicas.
autora é enfática ao afirmar que esses Podem ser também chamados de
povos estiveram e estão presentes territórios étnicos.
em todo o território nacional, exer-
O território étnico seria o espaço
construído, materializado a partir
das referências de identidade e
pertencimento territorial, onde
geralmente a sua população tem
um traço de origem comum. As
demandas históricas e os confli-
tos com o sistema dominante têm
imprimido a esse tipo de estrutura
espacial exigências de organização
e instituição de uma autoafirmação
política, social, econômica e territo-
rial (ANJOS, 2006, p. 339).

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Voltando o olhar para o Goiás e
o para o Distrito Federal, observa-
-se que, antes do assentamento da
Pedra Fundamental – obelisco cons-
truído no Morro do Centenário, nas
proximidades de Planaltina, para
comemorar o centenário da inde-
pendência e “demarcar” o ponto de
localização da futura capital do país,
em 7 de setembro de 1922 –, na área
que no futuro abrigaria a nova capi- Falar do Quilombo Mesquita é
tal já se identificava a presença do retornar a 1746, quando o bandei-
quilombo Mesquita. A história desse rante Antônio Bueno de Azevedo se
quilombo associa-se à história de fixou na região da atual Luziânia –
Luziânia e à da capital, uma vez que antigo arraial de Santa Luzia – em
seus integrantes tiveram participa- busca de ouro. Com ele, encontrava-
ção essencial durante a construção. -se José Corrêa de Mesquita. Neres
Segundo Manoel B. Neres: (2016) assinala que, em paralelo à
exploração do ouro, o bandeirante
Os quilombolas foram muito Azevedo preocupou-se com a produ-
ativos na Missão Cruls, Coluna ção de alimentos como milho, feijão
Prestes, recepção a Juscelino e
sua comitiva, iniciaram as obras e mandioca. Com o declínio da extra-
do Catetinho, fizeram os servi- ção aurífera, por volta de 1775, muitas
ços domésticos do Presidente, e pessoas foram embora de Luziânia,
forneceram alimentos (cereais,
frutas, doces, rapaduras, marme-
os que ficaram passaram a se dedi-
ladas, queijos, etc.) aos candangos car à produção da cana de açúcar e
(2020, p. 17). à criação de gado.

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Em seus estudos, Neres (2016) quilombolas do Mesquita se dedi-
afirma que foi no momento do declí- cam ao cultivo de mandioca, laranja,
nio da extração do ouro que José C. goiaba, cana-de-açúcar e marmelo.
de Mesquita, ou algum sucessor seu,
destinou as terras do quilombo a três
saiba mais
escravizadas: Maria Pereira Dutra,
Maria Abadia e Martinha Pereira Há materiais interessantes, de diferentes linguagens,
Braga. Segundo esse autor, “duas das que abordam os momentos anteriores à transferên-
cia da capital para Brasília e a ocupação quilombola no
três beneficiárias não eram apenas território hoje conhecido como Distrito Federal.
escravizadas, mas sim descenden-
tes do primeiro dono das terras, o - Reportagem: Nos tempos da Missão Cruls –
que não era incomum no período Revista Encontro.
da escravidão” (NERES, 2016, p. 51). - Youtube - Vídeo: Mesquita, Canal do Instituto de
Essas mulheres e seus descendentes Políticas Relacionais. Produzido por: Ancestralidade
Africana no Brasil – Memórias dos pontos de leitura.
foram os responsáveis pela manu- Disponível também em: http://ancestralidadeafricana.
tenção das referências culturais do org.br/quilombos/comunidade-quilombola-mesquita/
quilombo Mesquita. Atualmente, os - Youtube – Vídeo: Memória Viva: Eco-História do
Planalto Central. Capítulo 03. Canal do Instituto
Latinoamerica.

- Reportagem: A história do quilombo que ajudou a


erguer Brasília e teme perder terras para condomínio
de luxo. Da BBC News Brasil, São Paulo, de João Fellet.
01 de julho de 2018.

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O marmelo é um fruto seme- a religiosidade também era um e disseminar as festas, as danças, as
lhante à pêra. Os Mesquitas o traço marcante nessa comunidade. folias, a memória dos ancestrais e os
transformaram em um doce mara- Acredita-se que as três mulheres espaços educativos do grupo.
vilhoso cuja receita conta com 200 eram devotas de Nossa Senhora Em 2006, após intensa atuação
anos de tradição. O doce leva o da Abadia e que com elas surgiu a das lideranças da comunidade, o
nome de marmelada Santa Luzia. novena dessa santa. A produção quilombo Mesquita foi oficialmente
Neres (2016) afirma que a receita é da marmelada associa-se, de certa reconhecido como remanescente de
uma das heranças deixadas pelas forma, ao período de louvação à quilombo, recebendo o certificado
três mulheres que deram origem santa, “uma das principais festas da Fundação Cultural Palmares.
ao quilombo e que o primeiro pé de da comunidade, dedicadas à Nossa Porém, em seus estudos, Neres
marmelo foi plantado na fazenda em Senhora da Abadia, ocorre no início (2016) identificou divergências entre
1770. Entre as comunidades quilom- de agosto, período próximo à poda os quilombolas no tocante à certifi-
bolas, as atividades coletivas eram da planta. Na ocasião, entre outras cação e à identidade quilombola.
comuns, no caso do Mesquita, “os atrações, os foliões se divertem com Alguns identificam-se como quilom-
mutirões para a poda e as movimen- as danças Catira e Raposa” (NERES, bolas, outros não. O autor ressalta que
tações ligadas à feitura e consumo 2016, p. 58). A comunidade conta com
do doce proporcionavam sentimen- a Associação Renovadora Quilombo [o] Mesquita pode ser classificado
tos e ações coletivas sólidas” (NERES, do Mesquita (Arenquim), institui- como quilombo porque sua origem
é a do tempo da escravidão (inclu-
2016, p. 58). Segundo esse autor, ção que busca fortalecer, valorizar sive antecede 1888, fato comprovado
por registros paroquiais, desde 1854);
porque manteve sua estrutura fami-
liar tendo negros por maiorias;
porque guarda uma cultura especí-
fica e por seu espaço geográfico ter
sido sempre associado aos negros,
recebendo inclusive os títulos Arraial
dos Pretos, Mesquita dos Crioulos,
Crioulos... (NERES, 2016, p. 106)

17
Vale ressaltar que a preocupa- Brasília e Entorno, sendo inverídica coordenadora da Associação
ção com a educação sempre foi uma essa ideia, uma vez que a área do Quilombo Mesquita, que reuniu em
constante no quilombo Mesquita. quilombo Mesquita localiza-se, em um espaço objetos antigos, fotos
A comunidade sempre cobrou do grande parte, na região metropoli- e utensílios da comunidade, um
poder público atitudes com relação tana de Brasília. verdadeiro espaço de ativação da
à educação dos jovens. Além disso, Este reconhecimento é extre- memória e aprendizagem. Assim,
o autor destaca a proatividade de mamente importante para a esse espaço de memória e a prática
Aleixo Pereira Braga que, além do implantação de políticas públicas e da educação patrimonial são estra-
grande quantitativo de terras e para o reconhecimento da contri- tégias indispensáveis no combate
extensa plantação de marmeleiros buição histórica e cultural desse à desinformação, na divulgação do
– o que o tornou referência econô- quilombo na construção da capi- estilo de vida dos quilombolas e na
mica na região –, doou terras para tal. Apoiado em Paulo Freire (1979), preservação das tradições, saberes e
a construção de uma escola. Para Neres (2016) destaca a importância fazeres desse grupo.
Neres (2020), a educação (formal de uma educação reflexiva, revolu-
e não-formal) alinhada à questão cionária e que leve a uma consciência
patrimonial é uma importante ferra- crítica. Como ação de resistência e
menta no combate às informações conscientização, o autor cita a criação
falsas. Segundo esse autor, dissemi- do Espaço de Memória do Quilombo
na-se que não existe quilombo em Mesquita, iniciativa de Célia Braga,

18
Neres (2020) ressalta que as cultural negra. Roger Bastide afirma
narrativas quilombolas devem ser que “os navios negreiros transporta-
levadas a sério, uma vez que esse vam a bordo não somente homens,
grupo foi silenciado por muito mulheres e crianças, mas ainda seus
tempo, mas têm muito a nos dizer deuses, suas crenças e seu folclore.
e ensinar. Há que se valorizar a luta Contra a opressão dos brancos que
desses povos, pois “essas lutas se queriam arrancá-los a suas culturas
traduzem na garantia do território, nativas para impor-lhes sua própria
no reconhecimento identitário, na cultura, eles resistiram” (1974, p. 26).
valorização cultural, na abordagem A religiosidade africana foi um dos
educacional, na inserção universitá- elementos culturais que, por aqui,
ria e no acesso a políticas públicas em se reinventou.
geral” (p. 18). Sendo assim, os quilom-
bos de ontem e de hoje representam
a materialização da resistência negra
no território.
Assim como os quilombos,
os terreiros também representam
a resistência e a persistência. No
Brasil, as religiões de matriz africana
representam outro elemento do
“continnum africano” e da resistência

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Os terreiros são espaços sagra- em especial às religiões de matriz
dos, territórios simbólicos e reais, afro, continua, como mostra o rela-
que exprimem a luta de grupos para tório sobre intolerância e violência
manterem as religiões de matriz afri- religiosa no Brasil – RIVIR (2011-2015).
cana. Zeny Rosendahl (2003) afirma Diversas lideranças de
que os lugares sagrados, além de terreiros espalhados pelo Brasil
disporem de bens simbólicos signi- desenvolveram e desenvolvem
ficativos para determinados grupos, estratégias de modo a preser-
envolvem as experiências humanas, var suas práticas religiosas. Diante
sendo de fundamental importância disso, o Iphan vem reconhecendo
a compreensão do significado desses a importância desses espaços
bens para seus usuários. Entre as como patrimônio cultural brasi-
inúmeras vias de resistência negra leiro, efetuando o tombamento de
no Brasil, a centrada na religiosidade nove terreiros no Brasil. No caso
tem seu lugar de destaque. Durante do Distrito Federal, o órgão lançou
todo o Estado Novo, a repressão em 2009 a 1º fase do Inventário
policial foi intensa aos terreiros, dos Terreiros do Distrito Federal e
que tiveram seus pejis – “Santuário Entorno, e, em 2012, o Inventário
ou conjunto de santuários” (Lody, Nacional das Referências Culturais:
1987) – saqueados em ações clara- Terreiros do DF e Entorno. Esses docu-
mente racistas. Segundo Raul Lody mentos representam uma resposta
(1987), essa situação mudou devido à às necessidades das comunida-
atuação das federações de culto afro- des religiosas de matriz africana
-brasileiro, mas a violência religiosa, do DF e Entorno.

20
Um dos objetivos é identificar Um dos primeiros terreiros conhecido como Águas Claras e
os lugares de culto, seus fazeres, fundado em Brasília, em 1965, foi o fixou-se em Sobradinho em 1974. No
seus saberes e suas tradições. Já Centro Espírita Assistencial Nossa espaço, desenvolvem o culto sagrado
na primeira fase, 26 terreiros em Senhora da Glória (CEANSG), obra dos orixás, plantam ervas sagradas,
Brasília e Entorno foram inven- de Jurema Faria, de seu companheiro mantêm o culto de tradição Ketu
tariados, mas a região conta com Jorge Faria e de um grupo de pionei- e Umbanda, e desenvolvem ações
aproximadamente 330 terreiros ros. De tradição Umbanda, a casa é sociais e celebrações. O documento
registrados. A construção de Brasília muito respeitada entre os adeptos do Iphan também registra uma filial
atraiu também as casas religiosas dessa linhagem. De acordo com o do terreiro Axé Opô Afonjá – o Ilê
de matriz africana. De acordo com Inventário (IPHAN, 2009), a casa de Salvador foi tombado pelo Iphan
o Inventário dos Terreiros, produ- desenvolve uma série de cerimônias em 1999 – de tradição Ketu. O Axê
zido pelo Iphan (2009), os primeiros litúrgicas, abertas ao público e fecha- Opô Afonja Ilê Oxum do Goiás foi
terreiros se instalaram em Brasília e das. Além disso, também presta a fundado em 1973 por Mãe Railda em
em seu entorno na metade de 1960 caridade e realiza assistência social. Valparaíso. Além de dar seguimento
e início dos anos 70. Como diver- Outra casa de grande importân- à tradição e cultivar ervas sagradas, o
sos terreiros espalhados pelo Brasil, cia é o Ilê Axé Orixá Deuy e Centro terreiro também realiza celebrações
também foram alvo de preconceito Espírita Caboclo Boiadeiro João abertas ao público.
e de perseguição – inclusive policial Chapéu de Couro. Sob o comando
–, levando-os a se organizar por meio do Babalorixá Pai Lilico, a casa foi
de federações. fundada em 1967 no território hoje

21
Esses espaços sagrados também cia em um local permite aos seus
são espaços educativos, onde os inte- moradores uma ligação cultural e
grantes aprendem as tradições, os um sentimento de pertencimento a
costumes, as danças, as orações e um grupo e a uma base física simbó-
os toques, ouvindo e vendo os mais lica” (CARRIL, 2006, p. 24). Nesse saiba mais
velhos fazerem. Uma excelente sentido, em 2020, o Iphan publi- O jogo Contos de Ifá
iniciativa aliada à tecnologia é a que cou o segundo volume da Coleção pode ser acessado via
instagram [https://www.
foi desenvolvida por Mãe Beth de patrimônio para Jovens, em home- instagram.com/contos-
Oxum, Ialorixá do Ilê Axé Oxum Karê nagem à Ceilândia. Criada em 1971, deifa/]. Para conhecer
de Olinda. Ela, juntamente com seus é a maior Região Administrativa mais sobre sua idealiza-
ção e construção, clique
filhos de santo, criaram o jogo intitu- (RA) do DF, conta com quase 500 em [https://youtu.be/
lado Conto de Ifá, que narra a história mil moradores e muita histó- hcawb3ieJ8c].
dos orixás e, dessa forma, divulga as ria. Ceilândia, minha quebrada é
religiões de matriz africana. maior que o mundo é o nome do
Falar do presente, que se inter- volume lançado pelo Iphan, em
conecta com o passado, também é parceria com a SEEDF. A proposta
falar de patrimônio cultural. Para girou em torno das referências
que ocorra a preservação e a valo- culturais mais significativas para a
rização patrimonial, é fundamental comunidade. Contou com a partici-
que os sujeitos conheçam os bens, pação ativa de escolas públicas do
mas, mais importante ainda, é que ensino médio e fundamental e da
vivenciem e se vejam representados associação de moradores.
nesses bens, isso porque “a vivên-

22
O trabalho foi construído com dessa RA; a Casa do Cantador, espaço
base na metodologia proposta pelos projetado por Oscar Niemeyer, dedi-
Inventário Participativos – sobre os cado à música e à cultura nordestina,
quais é possível ler mais no Módulo um dos poucos projetos de Niemeyer
2! – e nos leva a refletir a respeito da materializados fora do Plano Piloto.
importância das referências culturais Além dessas referências, a publica-
situadas para além do sítio histórico ção também destaca a importância
tombado. Em formato de diálogo, de eventos e espaços que se dedi-
inicia abordando a origem do nome cam à música, à dança e à comida
Ceilândia e apresenta ao leitor típica, como o Quarentão, o Ferrock,
diversos locais e espaços de grande o Maior São João do Cerrado e o
importância para a população, como Elemento em Movimento. Os parti-
exemplo: a Caixa d’água, construída cipantes também citaram como
na década de 1970, um projeto do referência cultural de Ceilândia a
arquiteto Gerhard Linzmeyer, com Biblioteca Pública, uma reivindica-
capacidade para armazenar até 500 ção da comunidade. Logo:
mil litros de água e que foi declarada Defender a construção coletiva
patrimônio cultural do DF em 2013; e democrática do conhecimento
e a participação efetiva dos dife-
a Feira Central de Ceilândia, onde é rentes atores nos processos de
possível encontrar diversos produ- apropriação do patrimônio cultu-
tos e alimentos típicos da região ral (considerando tantos os agentes
institucionais como os detentores
nordeste do Brasil – região de onde das respectivas referências cultu-
provém a maior parte dos moradores rais) é trabalhar sob o ponto de vista
da ecologia dos saberes proposta
por Boaventura Sousa Santos. Confi-
gura, também, reconhecer que o
patrimônio cultural é produto das
relações sociais e dos significados
que os indivíduos lhe atribuem.
(TOLENTINO, 2018, p. 56)

23
Portanto, não só de Lucio, Oscar, um currículo que prima pela partici- é imprescindível para uma educa-
Bernardo, Israel, Juscelino e Ozanam pação ativa de todos os segmentos ção patrimonial em diálogo com
é feita a história de Brasília e seu da comunidade escolar e pela a diversidade.
Entorno, ela também tem muito de gestão democrática nesse espaço A SEEDF, ao instituir sua Política
Mesquita, Kalunga, Goyá, Sandra, de aprendizagem de Educação Patrimonial, as
Maria, Aline, Jurema e muitos outros Entendemos que a educação Jornadas do Patrimônio, ao incen-
atores sociais fundamentais no patrimonial deve ultrapassar os tivar que as escolas insiram em
processo de construção desse terri- muros da escola, ser um processo seus PPPs ações e projetos volta-
tório. Não se pretendeu esgotar o permanente e sistemático, no qual dos para a educação patrimonial
assunto, mas procurou-se estimu- os envolvidos na ação se sintam em conexão com diversas áreas do
lar uma reflexão e colocar em pauta representados. Nesse sentido, o conhecimento, mostra-se alinhada
as referências culturais por sécu- reconhecimento e a valorização do aos órgãos federais. Além disso, ao
los “esquecidas”, além de incentivar patrimônio dos povos originários e propor um currículo aberto e possi-
práticas pedagógicas que privile- de origem africana e das referências bilitar que o docente trabalhe com
giem uma educação patrimonial em situadas para além do sítio histórico temas transversais, o órgão expressa
diálogo com a diversidade e suas declarado representam um enri- a sua preocupação em oferecer uma
múltiplas possibilidades. Colocar em quecimento do debate e sinalizam educação de qualidade, pautada no
evidência as referências culturais de uma mudança de mentalidade no respeito e no fortalecimento das
grupos por séculos invisibilizados é pensar o patrimônio de uma loca- narrativas por tempos esquecidas.
alinhar-se à proposta do Currículo lidade. Além disso, fortalecer a
em Movimento. Além de aberto, é formação continuada dos docentes

24
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