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Profissões,

Artes e Ofícios
Tradicionais Portugueses
Profissões,
Artes e Ofícios
Tradicionais Portugueses

Texto e Ideia Original | Cidália Vargas Pecegueiro


Fotografia | João Mariano
Design | Joana Nina
Devido ao lapso de tempo, decorrido entre a realização
deste livro, e, agora, a sua publicação, existem alguns
Índice 07 Prefácio 99 Carvoeiro 205 Marisqueiro
09 Introdução 107 Cauteleiro 213 Moleiro
artesãos e profissionais aqui representados, que,
infelizmente, já não se encontram entre nós. 11 Alfaiate 115 Ceifeira 223 Oleiro
Somos conscientes deste facto, e decidimos manter o texto 21 Amolador 127 Construtor naval 231 Pescador
tal como foi produzido, no momento em que os retratámos,
como tributo à sua enorme arte e dedicação. 31 Apicultor 137 Decorador de Vidro 243 Salineiro
Que sirva o mesmo para homenagear o seu maravilhoso 43 Avieiro 145 Embolador 253 Taberneiro
trabalho, de forma a manter vivo todo o seu legado. 51 Barbeiro 153 Encadernador 261 Tanoeiro
De igual forma, os preços e salários mencionados
pelos artesãos e profissionais, podem também ter sofrido 51 Calafate 163 Faroleiro 271 Tirador de cortiça
pequenas alterações. 69 Calceteiro 175 Ferrador 281 Vidreiro
79 Caleiro 185 Ferreiro 293 Vindimador
89 Campino 193 Forcado 305 Bibliografia
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Prefácio

Proponho ao possível leitor, ou leitora, que porventura hesite, famílias “da praia para o rio”; depois, do rio para terra, quando
perante a temática deste livro, que o folheie. Que antes de o ler, conseguiam poupar o suficiente para construir uma casa e deixar
olhe realmente para ele. Depois… que lhe percorra algumas de viver nos barcos. Aprendemos sobre a vida no rio Tejo em
páginas, lhe dê um momento da sua atenção. Estou certa de tempos de maior e menor abundância, e de seguida, por meio
que, assim que o fizer, se dará conta, logo de início, do inte- das palavras do Senhor Júlio e da D. Maria, avieiros de profis-
resse do conteúdo, do valor da abordagem, das fotografias, do são, demo-nos realmente conta da dureza do ofício e de como
cuidado gráfico. No fundo, do bem-querer que se adivinha que essa dureza, no seu caso, como certamente no de outras famílias,
a Cidália Vargas, o João Mariano e a Joana Nina, os seus artí- marcou as suas vidas com dores e desgostos comuns a tantas
fices, puseram na sua construção, tornando-o não apenas num pessoas que ainda hoje vivem da pesca no rio.
livro cativante, mas numa obra valiosa, que nos permite, de- Porque são algumas as profissões, e não devemos num prefácio,
zoito anos entrados no século XXI, uma viagem de uma beleza abrir o segredo todo da obra, remeto, para finalizar, para a ri-
algo mágica, até nostálgica, nos melhores dos sentidos destes queza da profissão de ceifeira, tão emblemática de momentos
termos, por Profissões, Artes e Ofícios Tradicionais Portugueses. da história mais recente do nosso país. Aqui podemos ler sobre
O livro ganhará certamente entusiastas e o leitor ou leitora, a história e a cultura do arroz, sobre searas, sobre ceifas, cei-
acabarão por embalar-se com o prazer de uma viagem que nos feiras e ceifeiros, no fundo sobre a vida no campo e a mudança
leva por um mundo que, apesar de nos ser próximo, se começa por que essa vida tem vindo a passar. Acabamos deixando-nos
cada vez mais a distanciar. comover com as histórias da D. Maria José e sobre os bailaricos
Para além da apresentação de cada profissão, e são aqui reunidas e as regras dos namoros num tempo em que era mais nova.
30, umas mais conhecidas do que outras, esta obra tem a qualidade Mesmo para terminar, permito-me voltar a chamar a atenção
de nos apresentar a razão de cada ofício, de nos dar a conhecer para o cuidado gráfico do livro e para a beleza das fotografias,
o seu historial, o seu interesse, as suas artes, e ainda as vidas de e que, em certa medida, também nos aproximam dos universos
alguns dos mestres e artesãos que as exerceram ou exercem. dos entrevistados. Impressionaram-me particularmente as das
Neste livro, tanto quanto aprendermos, por exemplo, sobre o ofí- páginas 63 e 67 que nos deixam espreitar aquilo que o Senhor
cio de alfaiate e sobre a história da profissão, interessantíssima Joaquim Nunes, calafate, considera ser o melhor da sua profis-
aliás, é muito cativante, a possibilidade de podermos conhecer o são, ou como ele próprio diz: (…) poder andar sozinho, a pensar
Sr. Júlio La Fuente, de vermos algumas fotografias do seu atelier, cá nas minhas coisas…
e de sabermos depois que, em pequeno, não queria ser alfaiate, Foi para mim um verdadeiro gosto conhecer este livro e escre-
mas que acabou mais tarde por apaixonar-se pela profissão, ver o seu prefácio. Muito agradeço à Cidália Vargas o convite
tendo chegado a abrir um atelier próprio, no bairro da Lapa em para o fazer.
Lisboa, onde fez fatos para políticos, embaixadores e embaixa-
trizes e para muitos artistas de teatro, cinema e novelas.
Conhecemos também a história da profissão de avieiro e pela SÓNIA FRIAS
mão dos autores aprendemos sobre a migração de muitas Antropóloga. Professora no ISCSP/ Universidade de Lisboa.
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Introdução

É incrível a riqueza e diversidade de conhecimentos, costumes, Memória de vidas difíceis, onde a dureza do trabalho era ame-
artes e ofícios de outros tempos. São formas de fazer e de estar, nizado apenas em ocasiões especiais, com cânticos, bailes e
do passado, muitas delas transmitidas oralmente, de que só al- confraternizações.
gumas lograram adaptar-se ao progresso e à evolução, enquanto Retrato de rostos marcados, curtidos pelo sol e ressequidos pela
outras, incompatíveis com o desenvolvimento tecnológico, aca- brisa do mar. Olhares profundos, recheados de mágoas e vivências
baram por cair no esquecimento. duras, e até mesmo, trágicas.
E são exactamente esses costumes, conhecimentos e hábitos, Registo da habilidade e destreza manuais de artesãos, que com
que constituem a herança cultural de um povo, uma herança a sua arte e engenho, dão, e deram, vida aos mais variados ob-
que cada geração se orgulha de transmitir à seguinte, como jectos utilitários, mantendo e preservando o saber que seus pais
garante das tradições que só assim se podem preservar. e avós lhes transmitiram.
Entendemos que a herança e os valores dos nossos antepassa- Gente diversa, camponeses e citadinos, que souberam lutar
dos devem ser honrados, e como tal, Profissões, Artes e Ofícios contra as dificuldades da vida, numa labuta extremamente
Tradicionais Portugueses, visa ser uma compilação digna da árdua, actualizando permanentemente o passado.
espontânea manifestação cultural do nosso povo, nas mais Um passado que faz parte da nossa história. Que nos pertence a
diversas actividades e artes, caracterizando diferentes regiões todos e que, aqui, desejamos preservar.
do nosso país. De referir ainda dois aspectos que se prendem com a selecção
Quando nos referimos a ofício, fazemo-lo como sinónimo de das Artes e Ofícios, incluídos neste trabalho, e com a escolha
ocupação: qualquer actividade, independentemente de consti- dos termos próprios de cada um deles.
tuir a profissão ou apenas uma função, desempenhada pelos Em primeiro lugar, o critério para tal selecção não teve em conta
intervenientes retratados. Arte, por seu lado, implica a apren- uma distribuição equitativa das Profissões, Artes e Ofícios pelas
dizagem e o domínio de um conjunto de técnicas, que podem diferentes regiões do país. Tentámos retratar Portugal de Norte
ser utilizadas para o desempenho de um ofício ou apenas de a Sul, o que não significa que não possam existir muitas ou-
um hobby. tras actividades, artes e ofícios, de outras regiões, que mereçam
O presente trabalho, ao privilegiar a relação que o homem igualmente ser referidos.
estabelece com o seu meio, numa cumplicidade entre saberes Por outro lado, entendemos por Termos Próprios, palavras ou
ancestrais, inovação e aproveitamento dos recursos que a nature- expressões que são, ou foram, utilizadas em cada actividade,
za põe ao seu dispor, pretende trazer um pouco da memória que mas que podem não ser exclusivas da mesma, e cuja escolha
percorreu o campo, o mar, aldeias e cidades, testemunhando resultou da informação recolhida directamente das entrevistas
comportamentos, vocabulário, técnicas e instrumentos próprios com os intervenientes e da diferente documentação consultada.
de cada labor. Estamos conscientes de que muitos outros termos poderiam ser
Das fainas do campo e do mar, registo do pulsar quotidiano das acrescentados. De qualquer forma, também não é nosso objec-
suas gentes: a forma como ganham, e ganharam, o seu alimento tivo fazer uma compilação exaustiva do vocabulário inerente a
e os instrumentos que utilizam, e utilizaram, nas suas ocupações. cada actividade.
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Alfaiate

A História da Alfaiataria
A evolução da arte da alfaiataria deu-se com o desenvolvimento das cidades, à medida
que o progresso permitiu o aparecimento de novos materiais para a confecção
de vestuário. Desde a utilização de peles e produtos vegetais, em tempos pré-
-históricos, à fiação do linho na Idade do Bronze, ao aparecimento das túnicas, e
à concepção de modelos de vestuário segundo diferentes cortes e linhas, muitos
séculos se passaram.
Os Gregos, foram os primeiros a saber trabalhar os tecidos, de forma a moldá-los à
forma do corpo, algo que apesar da extrema simplicidade das peças, lhes conferia
uma enorme beleza. Sabe-se, por exemplo, que os alfaiates da época faziam estu-
dos geométricos para conseguirem que os tecidos caíssem com graça.
A indumentária romana, por seu lado, consistia num tecido rectangular, com o
qual os indivíduos cobriam parte do corpo e deixavam cair livremente, podendo
depois cada um realçar essa indumentária da forma que achasse mais bonita.
A este respeito, se referia por exemplo Quintiliano, quando sugeria que o orador
devia ter em atenção a forma como usava a toga, pois de tal cuidado dependia
a sua elegância.
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Alfaiate

Na antiguidade clássica, os alfaiates detinham o exclusivo do corte e costura de


diversas peças de roupa, tanto masculinas como femininas, assim como de roupa
interior, forros e almofadas para as armaduras.
Em França, nos séculos XIV e XV, foram criadas algumas normas para o ofício, que
retiraram em parte alguns dos privilégios de que os alfaiates haviam gozado até
então. Uma dessas normas, exigia por exemplo, que os alfaiates passassem a cortar
o tecido à frente do público, proibindo-lhes a utilização de mais de cinco varas de
tecido da mesma classe. E em caso de confecção defeituosa, o alfaiate não podia
cobrar o seu trabalho, tendo de pagar ao cliente o preço da roupa.
No século XVII, ainda em França, destaque para um acontecimento que marcou a
evolução futura da profissão. As modistas, a quem já tinha sido concedido o direito
de confeccionarem a roupa interior feminina, obtiveram também a possibilidade de
produzirem qualquer tipo de vestuário feminino, concessão que se difundiu ao resto
da Europa, e acabou com a produção secular exclusiva dos alfaiates.
No entanto, em termos de criatividade, e até ao século XVIII, o trabalho dos alfaiates
esteve bastante limitado, uma vez que não eram eles que forneciam os tecidos para a
confecção das peças, limitando-se a cortar e coser. Razão talvez pela qual, gozavam
de baixa reputação um pouco por toda a Europa. Em Espanha, por exemplo, não se
falava dos alfaiates sem antes pedir perdão, tal como o referiu Miguel de Cervantes
em D. Quixote: “con perdón de los presentes soy sastre examinado”.
A tradição na forma de confecção era imposta pelos éditos reais, mudando esta
muito lentamente. O corte era uniforme, ainda que se permitisse variedade na cor e
acessórios. E mesmo em relação à moda feminina, era a rainha, ou a favorita, que
ditava o toque da elegância.
O século XVIII, representou a época de ouro da alfaiataria, já que muitos dos símbo-
los de poder eram constituídos por um vestuário de aparato, que dependia da arte e
da técnica do mestre alfaiate. E, talvez, graças à sumptuosidade e elegância do ves-
tuário, o ofício adquiriu maior relevo, passando a ser socialmente bem considerado.
Em França, por exemplo, quando um alfaiate ia a casa de um cliente, tinha direito a
exigir melhor qualidade do pão e vinho que lhe serviam.
Com a Revolução Francesa, e mais tarde com a revolução industrial, a moda alterou
por completo o estilo barroco imposto pelos franceses. Eliminaram-se adornos, que
passaram a ser considerados inúteis, e a actividade do alfaiate começou a gozar
também de maior liberdade.
A este respeito, Inglaterra sempre se destacou pela espontaneidade dos seus cos-
tumes. Quando, em 1858, Charles Frederick Worth, um alfaiate-cortador inglês,
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Alfaiate

se instalou em Paris, levando consigo a tradição da alfaiataria inglesa, promoveu


importantes reformas na indumentária feminina, e revolucionou a actividade dos
tradicionais alfaiates. A partir de Worth, as alfaiatarias começaram a comprar te-
cidos directamente à fábrica, algo que permitiu eliminar os intermediários e criar
vários modelos para oferecer aos clientes.
Em meados do século XIX, com a invenção de várias técnicas de modelagem, com
um conhecimento mais exacto das medidas básicas do corpo humano, e sobretudo,
com a introdução da máquina de costura, foi possível confeccionar peças de ves-
tuário em grande escala, o que levou ao aparecimento das empresas de confecção,
e determinou, pouco a pouco, o desaparecimento do trabalho manual dos alfaiates.

Os Alfaiates em Portugal
As origens da alfaiataria em Portugal, revelam a nossa ligação ao mundo árabe, já
que a palavra alfaiate, deriva do árabe Al-Kahayyat, do verbo Khata, que significa
coser. A referência mais antiga ao ofício, de que temos notícia, data do século XII,
altura a partir da qual, os alfaiates começaram a ter um papel importante na nossa
história, medindo-se a sua afirmação pública durante séculos, tal como aconteceu
com outras profissões, pela sua participação na conhecida procissão “Corpus Christi”.
Aliás, o ofício chegou a ser um dos mais influentes na Casa dos Vinte e Quatro, dos
Mesteres de Lisboa, desde a sua fundação, em 1384, até ao seu encerramento, no
século XIX, assim como em corporações de outras cidades.
No século XVI, o desenvolvimento da arte da alfaiataria acompanhou o luxo e a
personalização do vestuário, verificados um pouco por toda a Europa. Um fenómeno
que se traduziu na especialização de certas actividades, como os algibebes ou os
camiseiros, por exemplo, e por uma regulamentação, que passou pela aprendizagem
do ofício e pela fiscalização das oficinas. Na capital, os alfaiates eram sujeitos a
“examinação”, segundo o livro dos Regimentos Oficiais Mecânicos, sendo-lhes pas-
sadas as respectivas cartas ou certidões assinadas pelos examinadores.
Por despacho do Senado da Câmara de 1768, formaram um só ofício com os algi-
bebes, ainda que os conflitos entre ambos tenham continuado até 1826, altura em
que por alvará, foram definitivamente fixados para ambos, os géneros de indústrias
e objectos de venda.
Em 1817, os alfaiates conseguiram que lhes fosse permitido adquirir os tecidos para
o exercício do seu ofício, e em 1853, foi constituída, primeiro na cidade do Porto,
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Alfaiate Alfaiate

e depois em Lisboa, a Associação dos Alfaiates, constituição que determinou a sua TERMOS PRÓPRIOS DO OFÍCIO
participação em alguns dos acontecimentos mais importantes do Movimento Operário
Alfaiate
do século XIX. › actualmente a palavra refere-se ao indivíduo que
Foi também no século XIX, que surgiram as empresas de confecção, ainda que confecciona, à medida, peças de roupa exterior para
homem, e com menos frequência, para mulher.
entre nós, estas não tenham chegado a gozar de grande importância; segundo se Alfaiates que fizeram história: Jacinto Nunes
afirma, devido à qualidade do vestuário produzido, que não era a melhor. E talvez Correia, Strauss, Keil, Manuel Amieiro, entre outros.
por essa razão, a tradição continuou a ser o trabalho manual. De tal forma, que
Algibebe
na viragem do século XIX para o século XX, a alfaiataria portuguesa conheceu › oficial que vendia fato feito, principalmente
um período áureo, chegando alguns dos nossos alfaiates a adquirir renome in- capotes, véstias, calções, entre outras peças, quase
ternacional. sempre de lã, para gente da plebe. O respectivo
arruamento chamava-se Algibetaria. Em Lisboa,
Durante a primeira República, a aprendizagem começou a estruturar-se fora das a rua de S. Julião, chegou a chamar-se vulgarmente
oficinas, de forma mais sistemática, e de acordo com as exigências dos novos Rua dos Algibebes, por ali ter existido este ofício.
tempos. Mas as duras condições de vida dos trabalhadores do sector, acabaram Cair bem
por desencadear uma agitação laboral, e só nos anos trinta, é que a alfaiataria › utiliza-se esta expressão para indicar que o fato
conseguiu novo impulso, para o qual contribuiu certamente a estreia do filme “A assenta bem no corpo.
Canção de Lisboa”, onde a personagem principal era um alfaiate, interpretado pelo Corte de tecido
inesquecível António Silva. › refere-se à quantidade de tecido necessária para
No período da Segunda Guerra Mundial, e sobretudo na região de Lisboa, a profissão fazer um fato.
voltou a gozar de algum dinamismo, graças às encomendas dos exilados e refugia- Entretela
dos em trânsito. No entanto, e apesar da relativa prosperidade de algumas casas de › fazenda forte, que se coloca entre o forro
alfaiataria, a profissão começou a entrar em declínio, se bem que de forma mais e o tecido, para dar maior consistência.
lenta do que no resto da Europa, talvez pelo facto da tradição da alfaiataria estar “Estar em osso”
bastante consolidada nos nossos hábitos de vestir. › significa que a peça de vestuário ainda não está
terminada.
Nos anos sessenta, havia no país mais de seis mil alfaiatarias em actividade, mas
devido à concorrência do pronto-a-vestir, este número rapidamente diminuiu, Giz
evidenciando-se a partir de 1974, as fragilidades da profissão. › pedra com que se risca o tecido.
A simples implementação do ordenado mínimo, obrigou muitas oficinas a dispensar Ilharga
pessoal e a reduzir trabalho, ao mesmo tempo que o pronto-a-vestir continuava a › designa a costura relativa à zona do corpo situada
sua expansão, e as indústrias de confecção se tornavam um dos sectores mais im- por cima da anca.
No final da década de oitenta, os cálculos apontavam para a existência de menos de
portantes da economia. Incapazes de competir com a rapidez e os preços praticados oitocentas alfaiatarias em todo o país, cujo principal problema era a falta de apren- Riscar
por estas lojas, os serviços dos alfaiates passaram a ser encarados como um luxo, dizes que pudessem continuar o ofício, uma situação que acabou por prolongar a › marcar o tecido para cortar.
reservado apenas a alguns. crise da actividade até aos nossos dias. Traseiro
A escolaridade obrigatória e a fiscalização apertada do trabalho infantil, (convém Basta dizer, que actualmente não devem existir mais de mil alfaiatarias, e mesmo › denominação dada às costas de um casaco.
não esquecer que antigamente a maioria dos alfaiates se iniciavam na profissão entre estas, várias são aquelas onde os mestres se têm de adaptar às circunstâncias,
ainda crianças), encarregaram-se do resto, sendo várias as casas de alfaiataria que acumulando em simultâneo funções de alfaiate, como moldar, cortar e provar, com
tiveram de fechar portas. tarefas que anteriormente pertenciam apenas às costureiras: alinhavar e coser.
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Alfaiate

HISTÓRIA DE VIDA
Júlio La Fuente
72 anos de idade | Lapa – Lisboa

O Júlio, nascido no seio de uma família de alfaiates, decidiu, por uma questão de
rebeldia, que não queria seguir a profissão. Aos catorze anos, saiu de casa e começou
a trabalhar num escritório. Mas o destino trocou-lhe as voltas, e depois de perder o
emprego, acabou por pedir ajuda ao pai, que o recebeu de braços abertos na alfaia-
taria. Ainda hoje, recorda aquela época com carinho, pois rapidamente se apercebeu
da sua verdadeira paixão, e como filho de peixe sabe nadar, foi com extrema facili-
dade que aprendeu as técnicas do ofício.
Posteriormente, colaborou com alguns dos nomes mais reconhecidos desta arte, e depois
de cumprido o serviço militar, decidiu instalar-se por conta própria neste atelier na
Lapa, onde ainda hoje continua a trabalhar. Há mais de quarenta anos, que aqui passa
os dias, a medir, cortar e provar fatos de homem, senhora e trajes de montar.
As mãos do mestre, confundem-se com a própria tesoura, dada a destreza com que a
domina. E tudo na peça é feito com o maior esmero. Desde o riscar, pespontar, abrir
casas à medida dos botões, desenhar as golas, acertar o desenho da fazenda com
os ombros, realizar as costuras perfeitas… o resultado final tem de ficar impecável.
Basta olhar para os vários fatos dependurados, para perceber como o mestre é exi-
gente e perfeccionista. É daquelas pessoas que sente orgulho no que faz, e sobretu-
do, no facto de saber cortar roupa de cavalheiro e senhora, pois na sua opinião, só
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Alfaiate

Amolador
assim pode afirmar que domina a verdadeira arte da alfaiataria. Algo, que segundo
me conta, não está ao alcance de todos os alfaiates, e que justifica, certamente, o
facto do seu atelier ter sido um dos mais procurados, não só por políticos e homens
de negócios, como também por embaixatrizes e outras ilustres senhoras da capital.
Mas após o 25 de Abril, o Júlio viu a procura de fatos diminuir cerca de oitenta por
cento, algo que no seu entender, se ficou a dever à associação feita no novo regime,
entre a indumentária de fato e gravata e os fachistas. A maioria dos clientes desapa-
receu, e a moda ditou o uso de calças à boca de sino e camisolas de gola alta, peças
adoptadas como símbolos revolucionários.
Entretanto, surgiram os artistas, e com eles, uma época dourada para o Júlio, que ainda
se emociona quando fala das maravilhas que criou para o teatro, televisão e cinema. Na
memória, guarda histórias dignas de livro, e a satisfação de ter colaborado como res-
ponsável pela criação da indumentária de época, em produções tão importantes, como a
telenovela Vila Faia, o filme a Balada da Praia dos Cães e várias peças de teatro.
– Era um trabalho muito gratificante. Ainda me lembro, de um dia em que o Nicolau
Breyner e o Herman José apareceram aqui a pedir-me um casaco, do qual tinham de
tirar facilmente as mangas, para o programa Feliz e Contente. Nem sei as voltas que
tive de dar à cabeça, pois naquela altura o velcro ainda não existia. Foram tempos
magníficos, e que já não se repetem, pois esta é uma profissão em vias de extinção. A História dos Amoladores
Não há ninguém interessado em aprender a arte. E dos poucos que me procuram,
quando se dão conta das exigências do ofício e das privações que vão ter de passar, A escassa informação que encontrámos, em textos antigos e enciclopédias, sobre
acabam por desistir. Para trabalhar com brio, é necessário dedicar muito tempo a a história e actividade dos amoladores, pode explicar-se, talvez, pelo facto de as
cada peça, e o preço final não compensa tanta dedicação. O pronto-a-vestir acabou operações de afiar, aguçar, e amolar instrumentos, terem sido realizadas durante
com o mercado dos alfaiates tradicionais. Basta dizer, que para fazer um bom fato séculos, pelos mesteirais do ferro e do fogo, e não por profissionais autónomos.
à medida, necessito cerca de quarenta horas, quando o cliente não pede muitas Quanto à operação, propriamente dita, de afiar, sempre interessou a todas as artes
emendas, pois caso contrário, ainda são mais, e infelizmente, o preço final não tem e ofícios que utilizavam objectos de corte, já que da mesma dependia a adequada
acompanhado esta exigência. utilização deste tipo de ferramentas.
Actualmente, no seu atelier, faz apenas cerca de dez fatos por mês, que mal dão para Como se sabe, um instrumento de corte, depois de ser utilizado algum tempo, é fre-
cobrir gastos, quando há quarenta anos, as encomendas superavam os cinquenta quente começar a cortar mal, exigindo um grande esforço por parte do trabalhador
fatos, e chegou a dar trabalho a sete pessoas, enquanto agora conta apenas com a que o utiliza, altura em que necessita, então, ser afiado.
colaboração de uma. Sobre a utilização de pedras de afiar, foram encontradas nas civilizações Indiana
Quanto à evolução dos preços, na década de sessenta, um fato podia custar entre tre- e Chinesa, pedras de afiar feitas de laca e outros materiais fundíveis semelhantes,
zentos e quatrocentos escudos, quando actualmente, o mesmo fato, pode variar entre ainda que estas não fossem capazes de atingir grandes velocidades.
os quinhentos euros e os mil, ainda que o preço dependa, logicamente, do tecido, dos Na Europa, e sobre a penosa vida dos amoladores, se debruçaram grandes nomes
botões e dos acabamentos, pois para um fato de vicunha, por exemplo, o material da pintura, como Teniers, Goya ou Fortuny, imortalizando nas suas telas as duras
mais caro que existe, só o tecido vale dois mil euros por metro. condições em que estes, e suas famílias, viviam.
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Amolador

Não será por acaso, que um dos aspectos mais abordados em relação à activi-
dade dos afiadores, foi o dos acidentes e problemas de saúde que estes sofriam
enquanto trabalhavam.
Para além de traumatismos diversos, as doenças derivavam da humidade que tinham
de suportar, e que lhes impregnava a roupa durante o trabalho, assim como das
poeiras metálicas e silícicas que respiravam enquanto afiavam os instrumentos.
A tísica calcária, ou doença dos afiadores, por exemplo, foi uma das infecções mais
estudadas. Conhecida e descrita no século XVII, por Diemerlvoeck, a doença limitava
bastante a esperança de vida de quem a padecia, e parecia estar relacionada com
dois problemas. Por um lado, com o grande desprendimento de pó silícico, que
penetrava directamente nas vias respiratórias. E, por outro, com a inexistência de
um sistema de aspiração adequado das poeiras desprendidas.
Quanto à criação de uma indústria do ramo, esta surgiu na Europa, e sobretudo nos
Estados Unidos da América, no século XIX, altura em que foi possível constituir uma
manufactura em grande escala, graças à utilização de pedras artificiais e à substitui-
ção da areia pelo esmeril.
A grande vantagem destas pedras, consistia, para além da resistência, na grande
velocidade que podiam alcançar, afiando com maior facilidade instrumentos duros,
como os de aço, por exemplo.

O Amolador Ambulante em Portugal


O Amolador, constituiu entre outros ofícios uma das ocupações típicas da nossa capi-
tal, ainda que não exclusivas da mesma, que representaram durante séculos, uma das
suas riquezas.
Personificação da cidade, especialmente dos bairros populares, foi um dos seus maio-
res animadores, com a sua inconfundível música. Fez parte da Lisboa antiga, uma
cidade cheia de cores, sons e personagens pitorescas, tão bem retratadas nos versos de
António Nobre, na prosa de Eça de Queirós e Camilo Castelo Branco, nas caricaturas de
Rafael Bordalo Pinheiro, e nos quadros de Roque Gameiro e José Malhoa, entre outros.
Era uma figura simpática, que provinha, na sua maioria, da Galiza, ainda que
houvesse, também, originários da zona de Arganil, e muito esporadicamente, da
própria capital.
Fazia-se anunciar com um pregão sincopado, que alternava com o silvo de uma
gaita, ou apito de tubos, de forma a chamar a atenção das senhoras, que estavam
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Amolador

em casa, e que pouco depois desciam à rua, com facas, tesouras, ou qualquer outro
objecto que necessitasse ser reparado.
A sua presença, era frequente nos meses de Inverno, razão, talvez pela qual, ficou
associada ao mito de ser prenúncio de chuva.
A primeira referência, que encontrámos, ao significado da palavra amolar, foi no
Elucidário das Palavras, Termos e Frases, de Viterbo(1), onde o autor, ao localizar
o termo num documento de 1420, relacionado com pipas de vinho, deduziu que o
vocábulo tinha o sentido de compor ou consertar pipas e tonéis.
No entanto, o filólogo brasileiro Jorge Daupiás, desconfiou da doutrina de Viterbo,
afirmando dever tratar-se de um erro de leitura, de cópia, ou de quem redigiu o
documento a que este se referia, ao pretender escrever amolhar e não amolar.
Margarida Ribeiro(2), por seu lado, afirma que o vocábulo amolador é de desinência
moderna, e coloca algumas hipóteses sobre a sua evolução. Por um lado, e segundo
refere, pode ter o seu étimo numa das formas de evolução do nome, que aparece
no documento citado por Viterbo. Mas por outro, também considera ser possível
que o nome tenha evoluído por influência da fonética portuguesa, ou vindo direc-
tamente do galego.
De qualquer forma, independentemente da origem, o nome designa um ofício que
se exerce, ainda que actualmente esteja em vias de extinção, de forma autónoma,
devido ao incremento da arte dos mesteirais do ferro e do fogo, sobretudo a partir
do final do século XVI, altura em que se assistiu a um enorme progresso artístico do
ferro forjado e a uma vulgarização das armas de fogo.
Em relação ao engenho utilizado pelos amoladores ambulantes, verificou-se uma
evolução importante, que converteu a simples mesa de transportar sobre o ombro,
numa complexa banca móvel.
Foi assim que, desde a banca portátil, tal como aparece reproduzida em gravuras de
1809-1819, a maquineta parece ter passado por uma fase intermédia, de carrinho
de mão, do qual conservou os varais, até chegar a uma época tardia, na qual se
associou a uma grande roda de eixo móvel, provida de ranhura em toda a periferia
do arco, tendo a dupla função de transportar a carga, por impulso do condutor, e
accionar, depois de recolhida com uma corrente, e convenientemente ligada a uma
correia, o rebolo.
(1) VITERBO, Joaquim de Santa Rosa, Elucidário de Palavras,
Posteriormente, alterou-se a posição da máquina. Fez-se uma adaptação mais externa
Termos e Frases que antigamente se usaram e que hoje regular- da roda grande, provida de eixo e dotada de carga de rolamento, até o engenho
mente se ignoram, Livraria Civilização, Porto, 1865.
(2) RIBEIRO, Margarida, O amolador: Figuras de Lisboa, Junta
atingir a sua expressão nos anos sessenta, quando vulgarmente se passou a designar
Distrital, Lisboa, 1967. como roda.
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Amolador Amolador

A roda, tinha então duas características: estava virada em sentido contrário ao do TERMOS PRÓPRIOS DO OFÍCIO
condutor, pousando no solo sobre duas pegas laterais, que este agarrava para a
Afiar
impulsionar. E a ferradura, ou arco de ferro, que obrigava a roda a movimentar-se › tornar cortantes as lâminas de aço, como
por pressão sobre o pedal. as das facas, tesouras, brocas, formões, buris
e outras ferramentas, usadas em diversas artes
Pensa-se que o facto do movimento da roda estar conjugado por intermédio de uma e ofícios.
correia sem fim, pode ter sido adoptado por influência da máquina de costura ou
qualquer outro sistema de movimento idêntico. Amolar
› aguçar, afiar o gume de instrumentos cortantes.
Mas a verdade, é que foi este aperfeiçoamento mecânico, que tornou possível a di- Utiliza-se habitualmente, como sinónimo de afiar.
gressão a maiores distâncias, venceu os obstáculos e atritos dos caminhos, e, trans-
formou o antigo amolador num artífice, com aptidão para substituir o deita-gatos, Amolador
› indivíduo cujo ofício é amolar instrumentos
guarda-soleiro ou reparador de chapéus de chuva. cortantes.
É que a deslocação do rebolo e da caixa, onde se guardavam as pontas de broca e o
arame para gatos e grampos, para um lugar mais prático e adequado, fez com que o Deita-gatos
› humilde artífice, que por meio da colocação
amolador pudesse arranjar faiança e peças de olaria de uma forma muito mais rápida. de gatos de arame consertava louça de barro.
Mais tarde, à medida que o trabalho começou a rarear, e se instalou a moda do usar
Gato
e deitar fora, a maioria dos amoladores adaptaram o engenho a uma bicicleta peda- › pedaço de metal que prende a louça quebrada.
leira, para percorrerem ainda maiores distâncias e visitarem mais clientes.
E tal como a maquineta, também o trajo sofreu alterações, como se pode apreciar Guarda-soleiro
› fabricante ou vendedor de guarda-sóis.
nos exemplos iconográficos reproduzidos desde 1809 até 1966. Basta referir, por
exemplo, a obra de Alberto Sousa(3), onde numa gravura de um amolador de Lisboa, Rebolo ou mó de amolar
o trajo tem a seguinte descrição: “dólman verde, à militar; colete azul; calças pretas › pedra circular de grés, móvel, que gira em torno
de um eixo, movida a pedal ou mecanicamente,
e lenço castanho ao pescoço”. Já Margarida Ribeiro, na sua obra de 1967, refere que e que serve para afiar objectos cortantes. Costuma
o trajo habitual consistia num fato de ganga azul e boina, no Verão, e num casaco girar dentro de uma tina com água, para evitar que
o aço da ferramenta aqueça em demasia.
de fazenda e calças de bombazina castanha ou preta, no Inverno.
Actualmente, entre os poucos amoladores que ainda laboram, não se verifica a uti- Rectificadora
lização de qualquer trajo específico. › instrumento que serve para alisar a pedra
do rebolo.

Roda de amolador
› refere-se ao suporte utilizado pelo amolador
para transportar o rebolo.

(3) SOUSA, Alberto, O trajo popular em Portugal nos séculos XVIII


e XIX, s.n., Lisboa, 1924.
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Amolador Amolador

HISTÓRIA DE VIDA
Américo Saldanha Rodrigues
58 anos de idade | Lisboa

O Américo, é alfacinha de gema. Nascido no bairro de Campo de Ourique, tinha apenas Depois, passou a construtor civil, dando serventia a pedreiros, e até gostava do que
dezoito meses quando o pai faleceu e a vida lhe deixou de sorrir. fazia. Mas, entretanto, havia conhecido uma rapariga, pela qual se perdeu de amo-
A sua casa sempre foi pobre, e com o falecimento do pai, a situação ainda piorou. res, e como o padrasto não aceitou o namoro, decidiu fugir com ela.
Sozinha, a mãe não ganhava suficiente para o sustento dos filhos, razão talvez pela Tinha tão só dezasseis anos, e muito pouca experiência de vida. Correu o país à
qual, se decidiu juntar, algum tempo depois, com um funileiro, que ia de porta em procura de uma ocupação, decidindo fixar-se em Coimbra, onde tentou a sorte.
porta, consertar objectos e amolar facas e tesouras. E foi com ele, que o Américo Mas o pouco dinheiro que tinha, rapidamente se esgotou. Os gastos começaram a
acabou por aprender o ofício. acumular-se, e teve de aceitar o primeiro emprego que apareceu, apesar de não lhe
A escola nunca o atraiu, pelo que a única forma que teve de ocupar o tempo, foi agradar demasiado. Ajudante numa pista de carros de choque, daqueles que andam
acompanhar o padrasto nas suas deambulações pela cidade. Naquela altura, trabalho de feira em feira. O ordenado era extremamente baixo, e o dinheiro continuava a
não faltava, pois segundo afirma, ainda havia o hábito de arranjar chapéus de chuva, não dar para nada.
consertar tachos de alumínio e afiar facas e tesouras. Desesperado, decidiu que o seu futuro não era ali, e tal como outros companheiros
Bastava ao amolador, passar de porta em porta, e tocar a gaita, para que rapidamente pobres, acreditou que havia um mundo melhor à sua espera do outro lado da fron-
aparecesse clientela a solicitar o serviço da roda, que de tantos arrebites e arame que teira. A ilusão fez-se sonho, e um dia decidiu passar a salto para França.
transportava, mais parecia um ferreiro ambulante. Mas a sorte não esteve do seu lado. Ainda em terras de Espanha, alguém o tentou
Mas o Américo, nem sempre foi amolador, e ainda tentou a sorte noutros ofícios. assaltar, e ao oferecer resistência, acabou por levar uma facada nas costas.
No primeiro, foi moço de recados, numa mercearia na Parede, para onde a mãe e o O Américo, acha que o destino tem sido cruel com ele. E é com a voz entrecortada pela
funileiro se haviam mudado. A experiência não foi das melhores, e passou a polir emoção, que me conta, que quando foi assaltado, tudo o que tinha era pouco mais que
móveis, tarefa que acabou também por não o satisfazer. nada. No entanto, esse pouco era o único que lhe podia permitir ir mais longe.
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Amolador

Apicultor
A única possibilidade de chegar ao outro lado da fronteira, e como tal, não o quis soltar.
Mas o ladrão, tão ou mais desesperado que ele, embargou-lhe a viagem, e fez com
que todos os seus sonhos se desvanecessem. Ferido, e extremamente debilitado,
viu-se obrigado a regressar à casa da mãe. E ainda nem se tinha recomposto, quando
soube que a rapariga que adorava, aquela com quem tinha fugido, e por quem se
tinha aventurado a procurar uma vida melhor, o tinha abandonado, sem vontade
de o ajudar.
Entrou em desespero, sem querer acreditar em semelhante traição. O desgosto foi
enorme, e tirou-lhe toda a alegria de viver.
– Nunca tive sorte na vida. Os outros, conseguem aquilo que querem. Mas eu, nunca
fui capaz. Desabafa, com os olhos cheios de lágrimas.
Cumprido o serviço militar, onde aproveitou para tirar a Quarta Classe, surgiu-lhe a
oportunidade de comprar uma roda galega, por oitenta e cinco contos, começando
a trabalhar por conta própria. E os primeiros anos nem foram maus. Vivia-se no
período anterior à revolução, e trabalho era o que não faltava aos amoladores. Mas
depois da década de oitenta, o negócio começou a correr mal, pois a partir dessa
altura, as pessoas perderam o hábito de consertar os objectos.
Por outro lado, o Américo, acha que, desde que as mulheres começaram a trabalhar,
o seu ofício se ressentiu bastante, porque quando aparece de manhã, já as donas de A História das Abelhas
casa sairam para o trabalho.
Agora, o negócio vai tão mal, que está a ponto de vender a roda para o museu. Se Para compreender a história das abelhas, é necessário recuar no tempo vários mi-
conseguir fechar negócio, receberá 500 euros. Quase o que lhe custou, há trinta e lhões de anos. A forma mais antiga de abelha, (Electerapis), foi descoberta na região
dois anos atrás, mas como ninguém dá mais, prefere aceitar a não receber nada. báltica, datando do Eoceno Superior (43 a 37 milhões de anos), sendo provável que
Pergunto-lhe quanto custa afiar uma faca. - Se for pequena um euro, e uma tesoura já nessa altura vivesse em sociedade, porque no fragmento de âmbar encontrado,
quatro euros. Fico a imaginar quantas facas e tesouras terá de afiar para conseguir estavam seis abelhas juntas.
viver do ofício. Decido então acompanhá-lo, a ver a sorte que tem. Deambulamos O género Apis, que engloba todas as espécies actuais de abelhas, deve ter-se formado
cerca de duas horas, pelas ruas de Campo de Ourique, tocando a gaita, e empurrando há cerca de trinta milhões de anos, altura em que já estava perfeitamente adaptado
a roda. Mas infelizmente, não aparece ninguém. para o tipo de vida que tem actualmente.
Durante a Época Glaciar, a área de distribuição da abelha na Eurásia, a sua região
de origem, ficou limitada às zonas que, pela sua situação, sofreram menos com o
rigor das glaciações, nomeadamente, as penínsulas Ibérica, Itálica e Balcânica, assim
como a Ásia Menor.
A península Balcânica, devido à sua localização mais meridional, conservou durante as
glaciações uma flora suficientemente rica, que permitiu a recuperação florística da Europa
no período pós-glaciar. Paralelamente, finda a Época Glaciar, a abelha estendeu-se a
toda a Eurásia, com excepção do Alasca e da Sibéria, onde só penetrou no século XVII.
32 | Profissões, Artes e Ofícios Tradicionais Portugueses

Apicultor

Em relação à criação e cuidado de abelhas melíferas, embora existam indícios


seguros de que o homem da Idade da Pedra já utilizava o mel, tal como se pôde
comprovar em pinturas rupestres encontradas em Espanha, foram os Egípcios os
primeiros povos a praticar a apicultura. Sabe-se que já utilizavam o fumo para
afastar as obreiras, durante a cresta, e recolhiam os enxames em cilindros de
barro cozido.
Também os Judeus, tinham mel em abundância nas regiões que povoaram e cul-
tivaram. Na Bíblia, aparecem referências ao mel, a propósito da Terra Prometida,
sendo também conhecida a passagem do Evangelho, relativa a S. João Baptista,
onde o mel era um dos seus alimentos preferidos.
Os Gregos, praticaram igualmente a cultura das abelhas, usando inclusivamente,
uma espécie de colmeal, que já tinha compartimentos móveis. Toda a Grécia pro-
duzia mel, e os habitantes de Creta, por exemplo, dedicaram-se com tal paixão à
cultura das abelhas, que chegaram a gravá-las nas suas moedas.
Também os Romanos, desenvolveram a apicultura, contribuindo para a sua expan-
são em muitos pontos da Europa. Os tratados apícolas, que nos deixaram autores,
como Plínio ou Virgílio, por exemplo, ensinaram os restantes povos com tanta
inteligência, que desde então até hoje, não mais se deixou de cultivar abelhas, ou
pelo menos, de utilizar o mel e a cera que estas fabricam.
No século XVII, os estudos científicos de Clutius, um naturalista flamengo, sobre
a vida das abelhas, marcaram o início do conhecimento, da descodificação e da
eliminação de muitas noções erradas, que até então se aceitavam como correctas.
Posteriormente, novas descobertas vieram aprofundar o conhecimento da anato-
mia das abelhas, para o qual muito contribuiu Swammerdam, com a utilização do
microscópio nestes estudos.
Na segunda metade do século XVIII, François Huber, legou-nos os fundamentos
científicos da biologia das abelhas. Em especial, da sua fecundação, ao verificar
que a fecundação da rainha era feita pelo macho ao ar livre, e ao descobrir que as
obreiras eram fêmeas e não neutras, como até então se pensava.
Em meados do século XIX, a descoberta, com Langstroth, da colmeia de quadros
móveis, veio triplicar a capacidade produtora das colónias, acabando com a matança
de abelhas durante a cresta, e simplificando o tratamento das suas doenças. O poste-
rior aparecimento da cera moldada e do extractor centrífugo, acabaram por conduzir
à apicultura industrial, assistindo-se, a partir do século XX, a um desenvolvimento
da apicultura mobilista em todo o mundo, a par com diversos estudos científicos e
pormenorizados sobre o comportamento das abelhas.
34 | Profissões, Artes e Ofícios Tradicionais Portugueses

Apicultor

A Apicultura em Portugal
A apicultura não teve dificuldade em prosperar no nosso país, não só pela riqueza e
variedade de montados, onde as abelhas facilmente encontraram alimento, como tam-
bém porque os primeiros monarcas incentivaram o aumento e distribuição de colmeias
por todo o país, criando através de forais, medidas de protecção das abelhas.
No entanto, com a descoberta da cana do açúcar e a substituição de vários montados,
sobretudo no Alentejo, por campos de trigo e outros cereais, o número de colmeias
sofreu uma ligeira descida.
A utilização da cortiça na construção de colmeias fixas é bastante antiga. O cortiço,
tipicamente português, é um cilindro feito de casca de sobreiro, ou um paralelepí-
pedo, formado por quatro pranchas da mesma matéria-prima. A proliferação dos
cortiços, um pouco por todo o país, foi de tal ordem, que a palavra cortiço passou
a ser sinónimo da própria colmeia fixa, independentemente da natureza do produto
com que esta fosse construída. Na realidade, e dependendo da região, também exis-
tiam colmeias fixas feitas de barro cozido, de tábuas e até de tronco de castanheiro
ou pinheiro.
A utilização de colmeias fixas, manteve-se em exclusivo, até finais do século XIX, e só
no início do século XX é que surgiu uma corrente favorável à expansão da apicultura
mobilista, já então em pleno desenvolvimento noutros países. Em 1935, por exemplo,
havia no país cerca de 15.000 colmeias móveis, contra 485.000 cortiços, uma des-
proporção que diminuiu, quando os apicultores se aperceberam, de que conseguiam
uma exploração mais racional das abelhas, e uma maior colheita de mel em relação
às quantidades obtidas através das técnicas fixistas. Razão pela qual, na década de
oitenta, a desproporção já era menor: cerca de 235 000 cortiços e 106 000 colmeias
de quadros móveis.

O Apaixonante Mundo das Abelhas


Segundo Eduardo Sequeira(4), as abelhas são dos insectos mais inteligentes, sociáveis
e de organização mais perfeita, passando a sua evolução por várias metamorfoses,
desde o nascimento até à fase adulta.
As larvas, desprovidas de asas, crescem depressa, mudando quatro vezes de pele, antes
(4) SEQUEIRA, Eduardo, Tratado de apicultura mobilista, Editorial
de serem encerradas nas células, altura a partir da qual tecem um casulo, metamorfo-
Domingos Barreira, s.d. Porto. seiam-se em ninfas, e, depois, em abelhas adultas.
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Apicultor Apicultor

Uma colónia de abelhas, pode ter no Verão, uma rainha, cerca de 60.000 obreiras,
e algumas centenas de zângãos. Além disso, os favos em que a colónia vive con-
têm ovos, larvas, mel e pólen. No Inverno, a colónia é muito diferente, consistindo
numa rainha, e apenas cerca de 20.000 obreiras, tendo os zângãos desaparecido.
Nesta altura, não haverá provavelmente ovos ou larvas, mas deve haver um stock
de mel e pólen suficiente para assegurar a sobrevivência até à Primavera.
As obreiras ou operárias, são as abelhas fêmeas infecundas da colmeia. Procuram o
seu alimento, num raio que pode ir até aos três quilómetros, em torno da colmeia,
e cada uma das suas viagens à procura de pólen, costuma demorar cerca de uma
hora, período durante o qual chegam a visitar centenas de flores.
A rainha, é a única fêmea fértil da comunidade, com a função de pôr os ovos que
darão origem às novas abelhas, e produzir uma substância especial, que as obrei-
ras lambem directamente do seu corpo, passando umas às outras, e que parece ser
essencial para manter a coesão da colónia.
A reprodução sexual da rainha é extremamente interessante. Depois de abandonar
a célula, a jovem precisa de alguns dias para atingir a maturidade, altura em que
começa a sair da colmeia em pequenos voos, realizando o voo nupcial, geralmen-
te, entre o sétimo e o décimo dia de vida. A cópula é feita com vários zângãos, e
depois de regressar à colmeia, é limpa pelas obreiras, começando a pôr ovos dentro
de alguns dias.
Antes de pôr um ovo, a rainha inspecciona a célula do favo de criação, para ver
se as obreiras a limparam bem. Em caso afirmativo, baixa o abdómen até à célula Inimigos e Doenças
onde deposita um ovo branco, que fica colado à mesma, em posição vertical. No
segundo dia, depois de ter sido depositado, o ovo começa a inclinar-se, até ficar Os principais inimigos das abelhas melíferas, são as formigas, não só pelo mel que
completamente deitado. Nessa altura, as abelhas amas envolvem-no com uma roubam, como também pelo mau sabor que transmitem quando ficam retidas no
papa especial, um alimento leitoso muito nutritivo, com o qual alimentam as lar- mel. Mas as aranhas, caracóis, lesmas, vespões e traças dos favos (Galleria mellonella)
vas durante os dois primeiros dias de vida. são igualmente nefastos, assim como pardais, andorinhas, ratos, cobras, doninhas e
Passado esse período, só as larvas de rainhas continuam a alimentar-se desta papa, sapos, entre outros.
enquanto as larvas de obreiras e zângãos recebem-na diluída com pólen e néctar, No reino vegetal, destaque para a árvore do ailanto, e para a Sectária Verticilata,
e em menor quantidade. também denominada apanha abelhas.
Os zângãos são machos férteis. Não trabalham, e a sua única função é fecundar Em relação às doenças, existem algumas de extrema virulência. A acariose, provoca-
uma jovem rainha virgem quando se proporcionar a ocasião. No entanto, têm um da pelo ácaro (Acarapis woodi), a loque, provocada por bactérias do grupo Bacillus
fim trágico, já que morrem durante o processo da cópula. Fisicamente, são maiores e Paenibacillus, e a disenteria, entre outras.
do que as obreiras, com o abdómen grosso, e asas e olhos grandes. No entanto, a mais recente epidemia, que está a causar o desaparecimento de milhões
de obreiras, e a mortandade da restante colónia, que fica sem alimento, ainda não
está devidamente explicada. O problema foi detectado na Europa, em 2006, tendo-se
38 | Profissões, Artes e Ofícios Tradicionais Portugueses

Apicultor

alastrado depois aos Estados Unidos da América, onde atingiu trinta dos cinquenta
estados, além do Canadá, Brasil e Taiwan. Os cientistas, denominam a doença como
transtorno do despovoamento em massa de colmeias, ou colapso da colónia.
Existem vários estudos sobre a origem do problema, e enquanto uns indicam
como possível causa, um vírus proveniente da Austrália, outros apontam as al-
terações do organismo das abelhas, como causa da doença, admitindo a hipótese
de existir uma relação com os transgénicos, na medida em que o problema é
maior em áreas de monocultura, onde não existem matas nativas e com planta-
ções extensas de transgénicos.
Infelizmente, ainda não há certezas em relação a este assunto, e enquanto não
for descoberta uma solução, o desaparecimento em massa de milhões de abelhas
acabará por afectar todas as plantas cuja reprodução se faz através da polinização
por insectos.

TERMOS PRÓPRIOS DO OFÍCIO dos favos (cresta de cabeça). Depois, a palavra Fixismo
veio a aplicar-se também à extracção total › consiste na utilização de colmeias rudimentares,
Abelha-mestra; abelha-mãe ou rainha dos favos (cresta de sacada). E, mais tarde, cortiços, onde os favos estão fixos às respectivas
› abelha cuja função na colónia é pôr os ovos os apicultores mobilistas adoptaram o vocábulo paredes ou ao tampo. É o processo tradicional
que garantirão a continuidade da comunidade. para significar a extracção, colheita ou recolha de exploração de abelhas.
dos quadros com mel das colmeias.
Alças e meias alças Fumigador
› caixas com que se formam as colmeias. Crestadeira › aparelho utilizado, durante a cresta, para
Dependendo da estação do ano, as colmeias têm › colher de ferro com a qual o abelheiro submeter as abelhas à acção do fumo. Desta
mais ou menos meias alças. destapava o cortiço e tirava os favos. forma, é possível fazer com que a maioria das
abelhas passem para as meias alças inferiores
Apiário ou colmeal Crisálida e não morram.
› conjunto de colmeias ou o lugar da sua › ninfa dos lepidópteros. Corresponde a uma das
instalação. Dependendo das regiões do país, metamorfoses pelas quais a abelha tem de passar Mobilismo
tem uma denominação diferente. No Alentejo, desde o nascimento até atingir a fase adulta. › método que utiliza as colmeias de quadros
era conhecido por malhada, enquanto na zona móveis, verticais ou horizontais, de construção
de Bragança se denominava silha. Desopercular quente ou fria, em cujo interior existem uma
› retirar o opérculo dos favos, ou seja, cortar série de quadros guarnecidos com folhas de cera
Apicultor, abelheiro ou colmeeiro a cera que tapa os favos, de forma a facilitar moldada, com os esboços dos alvéolos, que
› indivíduo que se dedica a criar, cuidar de a sua centrifugação. as abelhas transformam depois em favos.
abelhas melíferas e a aproveitar os seus produtos.
Favo
Cresta › alvéolo (ou conjunto de alvéolos) de cera
› inicialmente, designava a colheita do mel dos fabricado pelas abelhas para depositarem o mel,
cortiços, na qual se retirava apenas uma parte o pólen e os ovos.
Profissões, Artes e Ofícios Tradicionais Portugueses | 41

Apicultor

HISTÓRIA DE VIDA
José Costa Viegas
66 anos de idade | Carrapateira

O José, nasceu e cresceu na Carrapateira, onde é conhecido pela paixão com que se
dedica às abelhas, e pela sua bravura e destreza como nadador, pois todos guardam
na memória, as ocasiões em que arriscou a sua vida, para salvar a de outros, da fúria
do mar. Algo que o emociona e enche de orgulho.
Com as abelhas, começou a lidar aos onze anos de idade, seguindo as pisadas do
avô, que já era um grande produtor de mel. Na altura, como trabalhava com cortiços,
tinha de utilizar um pano molhado em enxofre para os poder abrir e retirar os favos.
Um procedimento, que matava muitas abelhas e que o incomodava bastante. Portan-
to, logo que teve oportunidade, juntou as economias e começou a comprar colmeias.
Hoje, tem perto de 1500. Demasiadas, quando pensa no trabalho que é necessário,
mas poucas, porque esta é a sua verdadeira paixão.
Aliás, segundo me explica, só aguenta tantas horas de trabalho porque é mesmo
apaixonado pelas abelhas. Tanto, que quanto mais sabe, mais vontade tem de aprender
sobre o assunto. As abelhas são a sua vida. É com elas que passa a maior parte do
tempo. De manhã, ainda cedo, começa a fumigar as colmeias e a fazer a cresta, e só
termina de madrugada, quando o corpo já não aguenta mais. Quanto aos proveitos
do negócio, dependem dos anos e da floração existente.
42 | Profissões, Artes e Ofícios Tradicionais Portugueses Profissões, Artes e Ofícios Tradicionais Portugueses | 43

Apicultor

Avieiro

A colheita deste ano, por exemplo, foi boa, pelo que conta tirar perto de vinte e cinco
toneladas de mel, que lhe darão para compensar os magros rendimentos do ano
anterior, com uma colheita que não passou dos setecentos quilos.
Relativamente a preços, quando o José começou nestas lides, vendia um quilo de mel
por três escudos, e actualmente cobra dois euros e oitenta cêntimos.

Um Dia de Cresta
É no mês de Julho, quando os termómetros marcam perto de quarenta graus, que
vamos ao encontro do José, em plena serra algarvia. Mais concretamente, na ladeira
dos Cabeços, perto da Bordeira. O relógio marca meio-dia. O sol aperta nas encostas,
e à nossa volta, as únicas sombras que avistamos, são alguns sobreiros sofridos que
parecem ter dificuldade em vingar.
Quando o apicultor nos faz sinal para não avançar mais, desligamos o motor do
carro, e ficamos a vê-lo, a mascarar-se com um fato estranho, que mais parece de
astronauta, e um peneiro.
Entretanto, as abelhas esvoaçam à volta do carro, e lá fora, começa a fumigação com
folhas de esteva, da meia alça superior da colmeia. O objectivo, é fazer com que as A Origem da Palavra Avieiro
abelhas passem para as meias alças inferiores, de forma a prejudicar o menos possível
o habitual funcionamento da comunidade. O dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de
O procedimento seguinte é soltar, lateralmente, as meias alças, com a ajuda de uma Lisboa, é o primeiro a referir-se à origem e significado da palavra avieiros, apre-
raspadeira. Levantá-las, e bater na meia alça subsequente, obrigando as abelhas a sentando como hipótese mais credível para a sua formação, a contracção do artigo
passarem para a alça inferior, que corresponde ao ninho, ou à casa da rainha mãe, definido (a) com o topónimo Vieira (de Leiria).
na qual nem sequer se deve tocar. Quanto ao seu significado, designa os pescadores que migraram de Vieira de Leiria
Segue-se o mesmo procedimento para inúmeras colmeias, umas atrás de outras, até para o Ribatejo, para pescar no Tejo.
a carrinha já não ter lugar para albergar mais. E só então, o José pára de fumigar, Em relação à história destes nómadas do rio, tal como lhes chamou Alves Redol,
ainda que o trabalho não esteja concluido. que privou com eles e lhes romanceou a faina, afirma-se, ter sido a procura de uma
Agora, tem de carregar as meias alças, com os quadros cheios de mel, para o local vida melhor, que os fez abandonar o mar, durante o Inverno, e procurar sustento
onde realiza a centrifugação. E depois, um novo turno de trabalho o aguarda: há noutras paragens. O começo destas migrações não é certo. Sabe-se apenas, que a
que desopercular, centrifugar, filtrar o mel, e, finalmente, encher os frascos com o partir de determinada altura, habitualmente apontada como finais do século de-
tão apreciado néctar. zanove e inícios do século XX, as gentes da Praia de Vieira de Leiria, fugindo dos
Invernos rigorosos e da bravura do mar, procuraram o seu sustento no Tejo, onde
o peixe abundava.
Durante anos, várias famílias viveram uma vida repartida entre o rio e o mar, para
onde regressavam no Verão. Mas com o passar dos tempos, e com o crescimento dos
44 | Profissões, Artes e Ofícios Tradicionais Portugueses

Avieiro

agregados familiares, o processo migratório cessou. As viagens tornaram-se muito


dispendiosas, e a fartura do rio, também não justificava o contínuo vaivém.
Como tal, a actividade sazonal, em água doce, transformou-se em modo de vida cons-
tante, e os pescadores trouxeram, então, para o Tejo, tudo o que tinham, que de tão pouco,
coube num barco de reduzidas dimensões, transformado em habitação permanente.
Eram gentes, portadoras de um tipo de cultura desajustada das terras ribeirinhas,
onde a luta com a terra ou com o touro, se tinha como a única capaz de conferir
dignidade ao homem.
Segundo Maria Micaela Soares(5), na época das migrações entre a Praia e a Lezíria, estes
pescadores moravam em pequenas embarcações de proa alta, quer durante a faina, quer
quando estas acostavam, constituindo a sua casa flutuante.
Para cozinharem e se aquecerem, era frequente fazerem lume num alguidar de barro
meio de terra. Para lavarem e enxugarem a roupa, improvisavam um estendal onde
podiam, e com enorme sabedoria, logravam albergar famílias inteiras num espaço tão
exíguo. E nem a perseguição dos guarda-rios, os conseguiu expulsar deste modo de vida.
Só quando o mar transbordava e as águas invadiam os campos, é que trepavam ao
cimo dos valados, onde erguiam toldos, de pano cru, ou barracas de caniço, ao jeito
das que os Ribatejanos utilizavam durante as colheitas. Ao descer das águas, as bar-
racas deslizavam pela encosta e fincavam-se no solo. Naquela altura, o caniço era
um material barato, que crescia espontâneo, razão pela qual, estas barracas foram
durante muito tempo, a morada dos avieiros sem posses, chegando a existir grandes
aldeias com este tipo de construção.
Mas o sonho dos avieiros, depois de ter barco, era ter casa. E para tal, logo que
as condições económicas melhoraram, começaram a comprar madeira. Por vezes,
compravam apenas uma tábua por semana, mas não descansavam enquanto não
construíam o seu refúgio. Casas, que contrastavam com as ribatejanas, já que eram
uma cópia dos palheiros da costa ocidental portuguesa, que se estendia pelo areal,
desde Espinho à Praia da Vieira, e talvez, ainda um pouco além. Casas de tabuado,
elevadas do solo, e sustentadas por estacas de madeira ou troncos de árvore, que
passaram, mais tarde, a assentar sobre pedras ou pilares de cimento.
A dada altura, a Junta Central das Casas dos Pescadores, mandou edificar na Póvoa
de Santa Iria, um bairro de moradias de lusalite e cimento, com características
muito diversas das da casa tradicional avieira, e que os moradores começaram a
modificar, adaptando-a progressivamente ao seu gosto.
(5) SOARES, Maria Micaela, A Cultura Avieira. Continuidade e E foi assim que, um pouco por todo o lado, as colónias de casas de madeira entraram
mudança, In Separata do Colóquio “Santos Graça” de Etnografia
Marítima, Lisboa, s.d. em completa transformação, conservando, apenas, os moradores mais antigos, as
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Avieiro

TERMOS PRÓPRIOS DO OFÍCIO habitações de tabuado, riscadas segundo as regras tradicionais. Aglomerados como
a Palhota, o Conchoso, Escaroupim, Lezirão e Caneiras, passaram a ser algumas das
Caçadeira
› barco mais pequeno. populações avieiras mais conhecidas.
A pesca, era a profissão desta gente, e o rio, a sua única riqueza. Toda a família pes-
Colher as redes cava: o homem, a mulher e os filhos. A mulher remava, e o homem largava e recolhia
› recolher as redes para dentro do barco.
as redes. Mas ambos se ajudavam mutuamente, não havendo uma distinção clara de
Galricho tarefas. Pescavam sempre de noite, porque durante o dia havia que vender o peixe.
› nassa de tamanho médio, utilizada para pescar
fataça. Há também, entre os avieiros, quem O casal de pescadores constituía um todo, que raramente se separava. E até os fi-
denomine o próprio barco de galricho. lhos participavam da faina, sendo poucos os que iam à escola. Primeiro, porque no
trabalho todos os braços eram bem vindos, e depois, porque tinham fama de não
Frisa
› local do rio onde se pára o barco para pescar. aprender. A sua vida era o barco, e este o seu ganha-pão.
Os avieiros faziam, de facto, uma vida à parte. Tinham uma cultura própria, que os
Lance diferenciava dos demais, persistindo entre eles, tal como noutras colectividades pis-
› tempo que demoram a pescar.
catórias, um sentido gregário que os impedia de se afastarem da sua gente, mesmo
Manaça que as relações dentro do grupo nem sempre fossem pacíficas. Era um sentimento de
› rede para pescar enguia e camarão.
comunhão, que provinha do tempo recuado, da luta pela conquista de um palmo de
Nassa ou narsa terra, aos valados ou ao lodaçal da margem.
› rede circular com armação feita com arcos Mas a partir da década de cinquenta, o peixe começou a desaparecer. Na opinião
de salgueiro, unidos com canudos de sabugo.
dos pescadores, devido à construção de barragens, aos diversos produtos químicos
Panda da mão lançados ao rio, assim como à apanha da enguia miúda, e de outros peixes recém-
› bóia. -nascidos, praticada em certas zonas do Tejo.
Sabogar E à medida que o rio foi morrendo, o peixe desapareceu, condenando para sempre
› rede para pescar lampreia. este modo de subsistência. E perante tal desastre, os avieiros tiveram de procurar
Sarrico alternativas noutros ofícios.
› espécie de saco de rede que o avieiro coloca dentro Para trás, ficou a história de um rio farto, que o homem um dia agrediu e acabou por
de água com a lampreia, depois de pescada, matar. Muitos dos pescadores, tiveram de se dedicar à agricultura, ainda que com
para a manter viva.
grandes dificuldades. E esta nova adaptação, acabou por constituir a sua inte-
Savara gração definitiva na sociedade de terra firme. De tal forma, que actualmente, pouco
› rede mais aberta para pescar o sável. se diferenciam dos demais, mantendo apenas um grande amor ao rio e à pesca, e
Toletes uma saudade do tempo, em que apesar das agruras da vida, podiam fazer aquilo para
› apoio dos remos. que haviam sido ensinados, e que constituía toda a herança dos seus antepassados.
Vara
› a tão característica vara dos avieiros, que serve
para impulsionar o barco nas zonas baixas.

Varar o barco
› fazer encalhar.
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HISTÓRIA DE VIDA
Júlio Letras
65 anos de idade
Maria da Silva Petinga
66 anos de idade | Escaroupim

São oito da manhã quando chegamos a Escaroupim, e já o senhor Júlio nos aguarda
dentro do Mário Rui, o nome que decidiu dar ao seu barco, por ser também, o do
seu primeiro filho. Hoje, acompanha-o a cunhada, porque a esposa está de baixa e
o controlo da Segurança Social é cada vez mais apertado. —A minha mulher está de
baixa e se a apanham aqui no barco comigo há logo sarilho!
A Dª Maria está toda vestida de preto, e no seu rosto, adivinham-se as agruras de
uma vida que não deve ter sido fácil. Os olhos, denunciam mágoas, e basta-nos
entrar no barco, para conhecer algumas. —Olhe, foi ali que me aconteceu a última
desgraça. A Dª Maria, aponta na direcção da margem esquerda do rio. - Na semana
passada, o meu genro teve um ataque de coração. Caiu dentro de água e morreu
afogado. Deixou um filho pequenino para criar. A crueza da história embarga-me
a voz. E ainda há quem diga que o destino é o que cada um quer que seja! Infeliz-
mente, casos como este, demonstram que, por vezes, o fado pode ser trágico demais.
A Maria, passou toda a vida no rio. Tinha tão só oito dias, quando os pais a me-
teram no barco, que acabou por ser a sua casa. Foi ali que criou os filhos. Os que
vingaram… Ali chorou muitas mágoas e ali teve também algumas alegrias. Poucas,
porque a sua vida foi extremamente penosa. O Inverno era frio e húmido. Sobretudo
à noite, que era quando pescava, já que os dias eram para vender o peixe. E enquanto
ela remava, o homem lançava e colhia as redes, e os filhos ajudavam no que era
preciso e no que podiam. A labuta não permitia ter frio, e mesmo nos Invernos mais
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Avieiro

Barbeiro

rigorosos, lá saía sempre no barco com a família, à procura do ganha-pão, que nem
sempre conseguia apanhar.
Ainda hoje se lembra, de querer dar de comer aos filhos, e não ter peixe para vender.
E quando isso acontecia, tinham mesmo de passar fome. O peixe era a sua moeda de
troca, e quando a pesca era fraca, a barriga ficava vazia.
O destino dos avieiros repetia-se de geração em geração. O que a Maria viu os pais
passarem, também ela passou. E o que aprendeu com eles, foi o que ensinou aos seus
filhos: a arte da pesca, e a adaptação à vida dentro do barco. Um barco tão peque-
nino, que a cozinha estava confinada a um petromax e a uma panela onde cozia o
que podia. O quarto, resumia-se a uma manta, a maioria das vezes encharcada. E os
haveres, limitavam-se ao barco, dentro de água, e aos toldos, em terra, onde se abri-
gavam da intempérie. Mais tarde, os toldos deram lugar a uma barraca de madeira,
montada sobre estacas. E, só depois, teve direito a uma casinha de cimento.
Dos cinco filhos que teve, dois faleceram e os outros três andaram sempre com eles no
barco, logo depois de nascer. Foi ali que cresceram, numa alcofa ao lado do peixe, su-
portando o frio no Inverno e o calor no Verão. Às vezes brincaram, mas outras enjoa-
ram, choraram, tiritaram de frio e lamentaram a sua sorte. Mas como o destino não os
quis ouvir, acabaram por se habituar, aprendendo a viver da mesma forma que os pais.
E só quando o rio deixou de dar peixe, é que decidiram procurar outra vida e outro A Barba ao Longo da História
lugar para viver. Entre a monda do arroz, a construção civil e a Marinha, todos aca-
baram por arranjar trabalho. Segundo José Leite de Vasconcelos(6), Deus distinguiu o homem da mulher, com
O fado do Júlio não foi melhor. Começou a pescar aos onze anos, depois de uma pas- a insígnia da barba, para demonstrar o seu sexo e ânimo viril. Algo que, no seu
sagem bastante traumática pela escola, onde a professora lhe batia com uma cana entender, justifica a importância que lhe foi atribuída, ao longo da história, pelas
na cabeça, porque, segundo dizia, não tinha jeito para aprender. E foi por isso, que diferentes civilizações.
decidiu pôr os ensinamentos do pai à prova, tentando a sorte com o peixe. Desde épocas remotas, que os diferentes tipos de barba, e processos de corte, têm va-
A infância e a juventude não foram fáceis, pois seus pais viviam com enormes difi- riado, segundo povos, épocas e classes. No Ocidente, por exemplo, a barba foi objecto
culdades financeiras. Ainda hoje se recorda, das vezes em que teve de adoçar o café de flutuações da moda ou opinião, sendo a sua presença, ou supressão, determinadas
com um rebuçado do Dr. Bayard, por não haver dinheiro para o açúcar. E mesmo por distinções de classe, luto e superstições.
depois de trabalhar por conta própria, em épocas de fartura no rio, quando ainda Entre os Judeus, por exemplo, a barba foi sempre alvo dos maiores cuidados, sendo
abundava a lampreia, a enguia, a saboga e a fataça, o lucro nunca lhe permitiu luxos. descurada, apenas, em ocasiões de luto ou grande calamidade.
Na sua opinião, foi sempre o pescador a sair prejudicado. Se pescava pouco, não lhe Na Índia, entre os filósofos gimnosofistas, era símbolo de sabedoria. No Egipto,
dava para comer. Se pescava muito, o preço descia e também não ganhava. distintivo da nobreza, e entre os Assírios, constituía motivo de orgulho usá-la ex-
—Nunca estivemos bem. Basta dizer que, enquanto a nós nos compravam um quilo tremamente longa.
de lampreia a três contos, no restaurante chegavam a pagar sete. Portanto já vê a Na arte arcaica da Grécia, deuses e heróis aparecem representados com barbas, tendo
diferença… e isto, era quando havia peixe, agora imagine como vivemos hoje em sido Alexandre Magno, por influência do Egipto, onde se usava rapar a cara, que (6) VASCONCELOS, José Leite de, A Barba em Portugal: Estudo de
que o rio está morto! introduziu esse costume, mandando os soldados Macedónios cortar as barbas, para que Etnografia Comparativa, Dom Quixote, Lisboa, 1996.

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