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À sombra dos mitos – Sinais de

reconhecimento, segredo,
fraternidade…
Tradução José Filardo

– por François Cavaignac

A Maçonaria, cuja originalidade consiste em misturar ritual e reflexão,


tradição e modernidade, simbolismo e solidariedade, não escapou do
mito. Ela tem uma dúzia de histórias ou referências míticas que ela
emprestou do fundo cultural judaico-cristão e que lhe permitiu
desenvolver uma visão particular do mundo.
Em relação à mitologia clássica, ela selecionou seus temas preferidos: ela
não destaca Édipo, Sísifo ou Eros, Zeus ou os Titãs, Orfeu e o submundo,
belas deusas e ninfas imprevisíveis, heróis metamorfoseados, monstros
fabulosos ou histórias de amor e incesto. Mas encontramos o crime
(assassinato de Hiram), tantas vezes presente nas relações entre os deuses
pagãos; encontramos a questão da transmissão do conhecimento (as duas
colunas) colocada por Prometeu ou Hermes; encontramos a culpa do
homem envolvendo a vingança de Deus (o Dilúvio e a Torre de Babel).

Basta dizer que a mitologia maçônica, apesar de dimensões restritas, não


pertence menos à mitologia universal. Ela pode se articular em torno de três
eixos: primeiro, a construção do Templo, imagem fantasista do templo de
Salomão. Este edifício é tanto o próprio templo interior de cada maçom que
deve dominar sua natureza, e o templo exterior representado pela Cidade
ideal; em todos os casos, assume-se que permanece inacabado. Em segundo
lugar, a lenda de Hiram, transposição de múltiplos arquétipos, retomada
parcial do mito de Ísis e Osíris, símbolo da transcendência diante da finitude
humana, realização de um destino e esperança de uma ressurreição.
Finalmente, o mito de cavalaria que não só penetrou o ritual desde o grau de
aprendiz (cerimônia de iniciação), mas também promove os valores
tradicionais atribuídos a esta instituição: honra, coragem, lealdade,
generosidade, altruísmo. Tal como o conjunto da sociedade, o fascínio
cavalheiresco também permeia a Maçonaria.

Esses mitos – com a exceção da cavalaria – aparecem nas Antigas Obrigações


que, entre 1390 e 1720 são os textos de referência dos maçons operativos
que serviram de corpus para o desenvolvimento da Maçonaria moderna.
Estes manuscritos (cerca de cento e trinta cópias) geralmente incluem uma
história lendária da profissão do construtor e uma lista dos deveres morais e
profissionais dos pedreiros. Existem ali também muitas ocorrências
religiosas: invocações a Deus ou os santos, à Virgem Maria ou à igreja, busca
da salvação da alma, referências e histórias bíblicas, orações. Uma
interpretação espiritualista deduzida ali, instalada no corpus maçônico no
início do século XVIII: entre 1710 e 1750 escolhas ideológicas decisivas
relacionadas aos mitos foram feitas: apagamento de Euclides e eliminação
de Noé em favor de Hiram e Salomão, uso sistemático de elementos bíblicos,
a promoção do Deus único. Esta concepção é hoje dominante no espaço
reflexivo maçônico.

Uma releitura secular e racional dos mitos maçônicas foi necessária; ela
desafia muitas concepções tradicionais, mas esta nova visão alternativa não
é destrutiva: ele não tem a pretensão de se livrar de Deus nem de outros
atributos do modelo dominante, mas ela prefere a geometria, fonte de outras
Ciência e local de raciocínio dedutivo. Para ela, o mito comporta tanto a
imaginação quanto a razão: é claro que a razão produz mitos e os mitos mais
irracionais têm uma razão.

Mas o maçom, na busca incessante do sentido que lhe sugere a presença de


seus mitos, deve reabilitar aqueles que lhe atribuem uma finalidade de
compreensão lógica da razão do mundo. Por esta inteligibilidade adogmática
distante dos abusos espiritualistas de discurso meloso, e sem negligenciar
uma certa consciência mítica, ele cumprirá totalmente sua missão:
compreender, aprender, construir e transmitir.

Dois personagens míticos eliminados: culpa de Hiram?

Euclides, a fonte racionalista esquecida

O Manuscrito Regius (1390), o mais antigo texto das Antigas Obrigações,


começa com uma fórmula claramente significativa: “Aqui começam os
estatutos da arte da geometria segundo Euclides.” Não só Euclides é o
padrinho do Regius, mas lhe é creditado ser o criador das sete ciências; em
todas as ações atribuídas a ele, Euclides sempre age de acordo com os
princípios da razão geométrica, tornando-se um homem providencial. Ele é
também – embora este ponto seja totalmente omitido pelos espiritualistas e
historiadores maçons – aquele que pela primeira vez formaliza as regras de
organização e funcionamento do ofício.

Ele é, assim, o autor de quatro “obrigações” decisivas:

1) A obrigação de transmissão recíproca: aquele que é mais avançado na


arte da geometria deve instruir os menos dotados, a fim de aperfeiçoar e
esta instrução deve ser recíproca;

2) O dever de fraternidade: os homens que praticam a arte devem “amar a


todos como irmãos e irmãs”;

3) A designação de um mestre: o mais avançado na arte deve ser chamado


de “mestre” para homenageá-lo particularmente;

4) O respeito mútuo: os maçons, para o bem da unidade, devem se chamar


companheiros entre si, qualquer que seja o seu nível profissional.

Outro texto das Antigas Obrigações, o Manuscrito Dumfries no. 4 (C 1710)


apresenta Euclides como aquele que cria quatro novas medidas
verdadeiramente constitutivas da Maçonaria especulativa: a criação em
forma de Ordem, o sinal de reconhecimento, o segredo e a regularidade do
trabalho em loja.

Apesar desse papel essencial, Euclides não foi mantido como um mito da
Maçonaria moderna: Anderson o cita pouco e os rituais desenvolvidos no
decorrer do século XVIII, lhe atribuem apenas algumas evocações em alguns
graus do Rito Escocês Antigo e Aceito.
Noé, um destino maçônico contrariado

Noé, mito universal e um dos mais antigos da humanidade, tanto como


resultado do dilúvio quanto da arca representa na Bíblia o fundador da nova
ordem mundial. Deus, vendo-o como o único justo e o único homem de
integridade, conclui com ele a sua primeira aliança depois do dilúvio. Os
termos dela são simples: Deus diz a Noé que ele nunca mais o amaldiçoará e,
portanto, não destruirá os seres vivos como acabou de fazer. Ele, então,
determina a Noé e a seus filhos uma missão de quatro pontos: eles devem
ser fecundos e prolíficos; eles dominarão a natureza; eles poderão se
alimentar de tudo o que há na terra, excepto o sangue; e eles deverão velar
pela vida de seus irmãos, ou seja, não matar. O arco-íris será o sinal dessa
aliança. Trata-se de uma nova filosofia equilibrando direitos e deveres:
possibilidade para o homem dominar a natureza, mas obrigação de respeitar
a vida dos outros.

Nos textos maçônicos do século XVIII, Noé é valorizado: Anderson o


apresenta em 1738 como o pai da maçonaria, cada maçom sendo um
“verdadeiro filho de Noé” e Ramsay como o restaurador da raça humana e o
primeiro Grande Mestre da Ordem. O Noaquismo é assim, a religião
primitiva anterior a todo dogma, uma espécie de religião natural global em
que todos os homens podem se reconhecer. Noé deveria ter sido o mítico
fundador da Maçonaria especulativa. No entanto, ele desaparece muito
rapidamente das referências maçônicas: ele já não é mencionado na edição
das Constituições de 1756 e não reaparece no novo texto da Constituição
Maçônica Inglesa de 1813. Ele não é mais encontrado hoje, senão no grau 21
do REAA chamado Noaquita ou Cavaleiro Prussiano e no Grau de Royal Ark
Mariner, novamente praticado na França há vários anos. Como Euclides, ele
foi deposto por Hiram.
Um novo rosto para Hiram: uma apresentação de sacrifício à luta de
classes

O mito de Hiram é a narrativa fundamental da Maçonaria especulativa;


aparecido na década de 1730, ele coloca em cena Hiram, Mestre Maçom do
canteiro de obras do Templo de Salomão, que foi assassinado por três maus
companheiros a quem ele não quis revelar o segredo dos mestres. Existem
cerca de cinquenta versões do mito hirâmico. Mas, Hiram continua a ser o
mestre perfeito, dotado de todas as virtudes humanas e de todas as
competências técnicas possíveis; ao invés de revelar um segredo, ele se
sacrificou e morreu: senso de Dever, recusa a ceder à fraude, ele representa
no imaginário dos maçons um modelo de coragem e de vida, ao mesmo
tempo um herói e um santo, o mito maçônico absoluto.

Esta lenda é incompleta porque um episódio crítico foi omitido pelos


redatores maçônicos do século XVIII.

O documento sobre o qual repousa o mito, o Manuscrito Graham (1726),


relata que um conflito profissional eclodiu no canteiro de obras: é uma
disputa entre os trabalhadores e os pedreiros sobre salários. Hiram ocupa o
cargo de vigilante de todo o canteiro de obra, mas é o proprio rei Salomão
quem intervém para se chegar a um acordo: ele explica para acalmar as
recriminações que todos os trabalhadores serão pagos da mesma forma, mas
ele dá aos pedreiros um sinal que os trabalhadores não conheciam: “E
aquele que podia fazer o sinal onde os salários eram pagos eram pagos como
pedreiros; os trabalhadores não o conheciam e eram pagos como antes”.
Embora a calma tenha voltado, Hiram se torna, portanto, cúmplice de uma
torpeza de Salomão, de uma manipulação e uma mentira, apagada do texto
maçônico, ostensivamente para dar a Hiram um papel idealizado.
Hiram é, portanto, o tipo de executivo dividido entre os objetivos do cliente
e as queixas dos trabalhadores, defendendo até a morte os interesses da
classe dominante.

As duas colunas antediluvianas, um mito negligenciado

Este mito é amplamente destacado por vários textos das Antigas Obrigações
e retomado por Anderson. Ele encontra sua origem nas Antiguidades
Judaicas do historiador Flavius Josephus (37-100). Ele indica que homens
que tiveram a presciência de um cataclismo universal querido por Deus e
que arriscava destruir a humanidade por água e fogo decidiram construir
dois pilares sobre os quais todo o conhecimento seria inscrito, com o
objetivo explícito de o preservar e transmitir às gerações futuras.

Pelo efeito de uma mudança de significado, uma confusão com as duas


colunas do Templo de Salomão ele foi gradualmente instalado na mitologia
maçônica; hoje, apenas no grau 13 do Rito Escocês o tema se mantém
intacto.

Diversos aspectos são dignos de nota:

1) De acordo com as versões, passamos de quatro construtores (os filhos de


Seth, terceiro filho de Adão e Eva) a um único construtor: Enoque, o
patriarca antediluviano que foi levado vivo para o céu. Da mesma forma, os
materiais de construção variam de pedra ao mármore, de tijolos ao latão.

2) A intenção inicial é motivada pelo medo de perder as invenções humanas;


estas dizem respeito principalmente à astrologia, depois a geometria e a
maçonaria. Finalmente, é Hermes que redescobrirá uma única coluna,
permitindo o sucesso da operação.
Muitos historiadores maçons integram este mito no Noaquismo; essa
assimilação é injustificada. Noé e as duas colunas não têm ligação alguma
entre si. Noé é um personagem bíblico, enquanto que o episódio das duas
colunas, invenção profana está ausente do texto bíblico; Noé é uma
personagem que faz a ligação com Deus, enquanto a decisão de construir as
duas colunas é puramente humana, sem um relacionamento anterior com
Deus. Pode-se até argumentar que esta decisão é a marca de um desafio a
Deus, os homens assumindo que arriscam perder permanentemente o que
eles ganharam.

É preciso lembrar a natureza Prometeana de um projeto perfeitamente


racional.

O duplo mito salomônico, ambiguidade da natureza humana

A Maçonaria é permeada pelo mito Salomoniano em dois aspectos: primeiro,


a construção do Templo como o canteiro ideal e por outro lado, a pessoa do
próprio rei Salomão, cujo papel é importante, especialmente nos graus
escoceses. Sejam quais forem os textos, o Templo é a expressão da perfeição;
ele representa o cosmos e para muitos maçons é a expressão simbólica do
Templo Maçônico. Solomão é apresentado em todos os atributos da
soberania: construtor, justiceiro, concedendo recompensas, presidindo
todas as assembleias; na plenitude de sua glória, ele é, especialmente no
REAA, o fiador simbólico da maestria sem defeito.

De acordo com a visão bíblica, Solomão é um homem sábio, possuidor do


dom do discernimento na origem de sua equidade e sua tolerância
proverbial, conhecimentos científicos e uma abordagem filosófica.

Esta visão é em grande parte distorcida e inequívoca. O templo não é apenas


um santuário religioso, mas também ao mesmo tempo um lugar político. Sua
construção interrompe o nomadismo da religião judaica e, simultaneamente
funda a identidade nacional do povo judeu. Os caprichos da história fizeram
dele um lugar de rivalidade e crimes, tanto religiosos quanto políticos.
Solomão, por sua vez, mandou assassinar seu irmão e vários dignitários ou
rivais para consolidar seu poder; depois de uma primeira parte do glorioso
reino, ele se tornou infiel a seu Deus, entregando-se ao politeísmo e à
poligamia, aumentando os impostos de seus súditos, usando escravos e não
respeitando seus compromissos comerciais com seus vizinhos. Com sua
morte, as tribos do norte se revoltaram e o país se dividiu em dois reinos.

Por que os maçons valorizam um lugar simbolicamente tão questionável e


uma figura criminosa? Esquecendo-se o lado escuro dos homens e sua
história, a Maçonaria quer mostrar a imperfeição da natureza humana?

A Torre de Babel, um mito amaldiçoado que se tornou benéfico

A Maçonaria propõe três grandes interpretações do mito da Torre de Babel:

1) A visão tradicionalista: construindo a Torre, os homens deram prova de


orgulho e vaidade insuportáveis para Deus; a ira divina é, assim, natural, a
confusão de idiomas é um castigo merecido, assim como a maldição do
homem sobre a terra. Esta concepção moralizante e culpabilizante baseada
na Bíblia está presente especialmente no Manuscrito Regius (1390), no
Manuscrito Graham (1726) e quase totalmente no grau 21 do REAA.

2) A interpretação construtivista: ela tem sua origem no Manuscrito Cooke


(c. 1400) que apresenta este mito como a capitalização da experiência
adquirida pela “ciência da geometria”, que levou a uma mestria da arte de
construir. Nada é dito sobre a intenção original dos homens nem sobre a
vingança divina. A torre não é mais o símbolo da vaidade humana, mas
torna-se o lugar da transmissão do conhecimento técnico. Estamos aqui na
origem de uma visão amplamente positiva do mito.

3) A síntese Andersoniana: As Constituições de Anderson (1723 e 1738)


ultrapassam as duas correntes anteriores, emprestando-lhes vários
elementos. A construção da torre não tem a intenção de desafiar a Deus, este
ponto não sendo mais que uma consequência; a sanção é a mesma para os
homens, a da confusão de idiomas e a dispersão; mas os homens adquiriram
por meio dela, uma competência excepcional que servirá ao
desenvolvimento da arte de construir.

Assistimos durante quarenta anos uma inversão axiológica: seguindo-se a


evolução geral da opinião a diversidade é agora uma bênção e o múltiplo é a
ordem natural do mundo. Babel permanece a metáfora da desordem
extrema e do excesso, mas a maioria dos maçons de nossos dias compartilha
a ideia de que a diversidade é uma riqueza em nome do princípio de que é
preciso “reunir o que está espalhado”. A reinterpretação regular desse mito
mostra que ele não se fossiliza, Babel tendo se tornado ao longo do tempo o
paradigma da unidade e da diversidade humana.

O mito no coração do homem

Todas as culturas o utilizam. É uma história que tem uma ou mais histórias;
elas retratam deuses ou seres sobrenaturais ou heróis divinizados que
adquiriram status divino; esses deuses têm relações entre si e com os
homens. Eles muitas vezes se comportam de forma imoral, mas isso é para
mostrar aos homens em contraponto aos valores morais que eles devem
respeitar. Para muitos – especialistas ou simples seguidores – a natureza
religiosa do mito é evidente, porque a intrigas na maior parte das vezes se
refere à origem dos deuses, do mundo, do mal, da morte. Todas as religiões
estabeleceram ligações com os mitos, porque eles são portadores de uma
visão sagrada. Portanto, a questão dos mitos fundadores é essencial porque
participa da crença coletiva em uma criação antiga, se não arcaica,
expressando uma verdade reconhecida como certa e que se tornou
atemporal.

Publicado 22 de fevereiro de 2017 em:

http://www.fm-mag.fr/article/focus/dans-lombre-des-mythes-1472

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