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Dos motivos de Antônio

8/11/2018

Discurso que culpa algum grupo


da sociedade pela crise pode ter
ganho apelo na eleição

Em coluna publicada nesta Folha


na segunda-feira (5), o professor
Marcus André Melo ressaltou a
necessidade de olhar a onda
conservadora ao redor do mundo
a partir de lentes distintas. 
Enquanto no Reino Unido ou nos
EUA a perda de empregos
industriais derivada da
globalização poderia explicar o
apelo do populismo de direita, o
mesmo não valeria para países
como o Brasil, que, ao contrário,
surfaram na onda do forte
crescimento chinês e do boom das
commodities nos anos 2000.

“Não houve revolta de perdedores


da globalização nem contra elites
internacionalistas. Pelo contrário:
foi sob a égide de um
redistributivismo forte que
sobreveio um desvario fiscal de
amplas consequências. (...) Foi
assim a frustração dos
'ganhadores da globalização', sua
revolta contra a corrupção e a
reversão brutal de expectativas
que balançaram o pêndulo dos
eleitores de média renda e baixa
identidade programática. Não
foram ameaças a seu status que
geraram a reação”, conclui Melo.
Não há dúvidas de que o cenário
externo favorável foi fundamental
para que o país conseguisse
combinar, nos anos 2000,
crescimento econômico maior,
equilíbrio fiscal e redução das
desigualdades na base da
pirâmide.
A universalização de benefícios
sociais, a valorização do salário
mínimo e a geração de empregos
formais em setores de serviços e
construção civil contribuíram para
que a renda dos mais pobres
crescesse em um ritmo maior do
que a renda média.
O que não houve foi redistribuição
do topo para a base. Os 10% mais
ricos mantiveram sua alta parcela
na renda nacional, causando o
fenômeno que o pesquisador Marc
Morgan, da Paris School of
Economics, chamou de “classe
média espremida”: as faixas
intermediárias perderam
participação na renda nacional
entre 2002 e 2014.
Desde a desaceleração da
economia e, sobretudo, na
recessão de 2015 e 2016, esses
trabalhadores viram sua situação
econômica se deteriorar também
em termos absolutos.
Como apontei na coluna “A
escolha de Antônio”, publicada na
quinta-feira (1º), os dados do
Datafolha sugerem que a maior
perda de votos do PT nessas
eleições presidenciais em relação
a 2014 se deu justamente entre os
trabalhadores com diploma de
ensino médio e renda familiar
mensal entre dois e cinco salários
mínimos, cujos domicílios estão
situados na faixa entre os 40%
mais pobres e os 20% mais ricos.
Não é possível, portanto, afastar a
hipótese de que, assim como no
caso dos perdedores da
globalização nos países ricos, a
insegurança econômica pesou
para a migração de votos de
trabalhadores de classe média
baixa no Brasil.
Diante do desemprego crescente
e da estagnação de salários, o
discurso que direciona a culpa a
algum grupo da sociedade —o
imigrante, as minorias, os
comunistas ou os “corruptos do
PT”— pode ter ganho apelo.
Em artigo recente intitulado “Brazil
Divided: Hindsights on the
Growing Politicisation of
Inequality”, Morgan e Gethin
mostram, a partir de dados do
Datafolha, que a faixa dos 40%
intermediários na distribuição de
renda atribui maior peso na
escolha de seu candidato à
corrupção e à segurança do que
os 50% mais pobres e para
emprego e saúde do que os 10%
mais ricos.
Quando se emplaca o discurso de
que a falta de emprego, renda e
saúde pública de qualidade é
culpa da “roubalheira do PT”, fica
um pouco mais difícil separar as
coisas. Aqui, como lá fora, é tarefa
do pesquisador se debruçar sobre
tais fenômenos sem perder de
vista a sua complexidade,
identificando tanto os traços
comuns quanto os particulares.
Dados não faltam.
 

Laura Carvalho
Professora da Faculdade de
Economia, Administração e
Contabilidade da USP, autora de
"Valsa Brasileira: do Boom ao
Caos Econômico".

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