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Janriê Rodrigues Reck

ASPECTOS TEÓRICO-CONSTITUTIVOS DE UMA GESTÃO PÚBLICA


COMPARTIDA: O USO DA PROPOSIÇÃO HARBERMASIANA DA AÇÃO
COMUNICATIVA NA DEFIÇÃO E EXECUÇÃO COMPARTILHADA DO
INTERESSE PÚBLICO

Dissertação de mestrado
apresentada ao Curso de Pós-
Graduação em Direito – Mestrado
– da Universidade de Santa Cruz
do Sul, para sua defesa em
argüição pública, em abril de
2006.
Orientador: Prof. Dr. Rogério
Gesta Leal.

Santa Cruz do Sul, março de 2006


Janriê Rodrigues Reck

A ASPECTOS TEÓRICO-CONSTITUTIVOS DE UMA GESTÃO PÚBLICA


COMPARTIDA: O USO DA PROPOSIÇÃO HARBERMASIANA DA AÇÃO
COMUNICATIVA NA DEFIÇÃO E EXECUÇÃO COMPARTILHADA DO
INTERESSE PÚBLICO

Esta dissertação de mestrado foi submetida ao


Curso de Pós-Graduação em Direito – Mestrado
– da Universidade de Santa Cruz do Sul, como
requisito para o obtenção do título de Mestre em
Direito.

Prof. Dr. Rogério Gesta Leal – Orientador

Prof. Dr. Inácio Helfer

Prof. Dr. Romeu Bacellar


RESUMO

Este trabalho busca investigar as contribuições de Jürgen Habermas para a


análise social, pragmática da comunicação, teoria da ação, Democracia
deliberativa, entre outros conceitos fundamentais, tendo em vista a construção de
parâmetros epistêmicos de uma gestão compartilhada social e democraticamente
do interesse público. Para tanto, a investigação deverá lançar mão de construtos
teóricos vinculados à Filosofia, Sociologia, Política e Direito (e, dentro das
disciplinas jurídicas, Direito Administrativo, Direito Constitucional e Teoria do
Direito), isto para dar conta da abordagem do problema central da pesquisa que é
a administração do público e a aplicação das idéias de Habermas a esta
problemática. Uma das hipóteses que orientam este trabalho na busca de
respostas é a crítica ao predomínio da razão instrumental e a apologia da razão
comunicativa como eixo constitutivo e operacional para a Administração Pública.
A outra hipótese é de que a materialização de tal racionalidade na Administração
Pública pode configurar a Gestão Pública Compartida. A pesquisa, portanto,
necessita abordar as linhas mestras do trabalho epistemológico, sociológico e
jurídico de Habermas; apontar o predomínio da razão instrumental na
Administração Pública, principalmente na doutrina administrativista cotidiana; e
descrever a teoria da Democracia deliberativa e demonstrar sua utilidade para a
construção da Gestão Pública Compartida do interesse público.

Palavras-chave: Gestão Pública Compartida – Administração Pública –


Democracia – Ação Comunicativa – Direito.
ABSTRACT

This work searches to investigate Jürgen Habermas’s contributions to the social


analysis, pragmatic of the communication, theory of the action, deliberative
Democracy, among other fundamental concepts, having in mind the construction
of epistemic parameters of an administration shared social and democratically of
the public interest. For such, the investigation might use theoretical constructs
linked to the Philosophy, Sociology, Politics and Law (and, inside the juridical
disciplines, Administrative Right, Constitutional Right and Theory of the Right), this
to administer the approach of the central problem of the research that is the
public's administration and the application of Habermas’s ideas to the this
problem. One of the hypotheses that guide this work in the search of answers is
the critic to the prevalence of the instrumental reason and the apology of the
communicative reason as constituent and operational axis for the Public
Administration. The other hypothesis is that the materialization of such rationality
in the Public Administration can configure the Shared Public Administration. The
research, therefore, needs to approach the guiding lines of Habermas’s
epistemological, sociological and juridical work; to point the prevalence of the
instrumental reason in the Public Administration, mainly in the daily administrativist
doctrine; and to describe the theory of the deliberative Democracy and to
demonstrate its usefulness for the construction of the Shared Public Administration
of the public interest.

Key-words: Shared Public administration - Public Administration - Democracy -


Communicative Action - Law.
5

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................7
1 INVESTIGANDO FUNDAMENTOS PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA MATRIZ
PRAGMÁTICA DE CRÍTICA DAS DEMANDAS PÚBLICAS .................................12
1.1 Notícia sobre transições na teoria do conhecimento: do sagrado à
linguagem..........................................................................................................12
1.2 Fundamentos de uma racionalidade comunicativa .....................................17
1.3 A Ação Comunicativa e suas possibilidades metodológicas de
compreensão social ..........................................................................................26
1.4 Pressupostos constitutivos da comunicação e delimitação categorial do agir
comunicativo .....................................................................................................35
1.5 Linguagem como meio de integração social, socialização e reprodução
cultural ..............................................................................................................47
1.6 Conceitos aproximativos relativos ao sistema e ao mundo da vida ............56
2 ESTADO, SOCIEDADE E GESTÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS NO BRASIL
CONTEMPORÂNEO.............................................................................................71
2.1 Perspectivas societais habermasianas .......................................................71
2.2 Compreensões da Administração Pública pela Sociologia moderna ..........78
2.3 Modelos de Gestão Pública no Brasil .........................................................98
2.4 Visões dogmáticas da Administração Pública...........................................105
2.5 Crítica comunicativa ao modelo de Gestão Pública ..................................113
2.6 Interlúdio: formatando a crítica da Administração Pública ........................136
3 ELEMENTOS TEÓRICO-REFLEXIVOS DE UMA TEORIA DISCURSIVA DO
DIREITO E DA DEMOCRACIA NA PERSPECTIVA DE JÜRGEN HABERMAS.143
3.1 Noções fundacionais e preliminares da teoria da Democracia discursiva.143
3.2 Reconstruindo o sistema de direitos fundamentais a partir da interação
entre autonomia privada e pública ..................................................................148
3.3 Poder Comunicativo e suas interlocuções com a sociedade ....................155
3.4 A noção Patriotismo Constitucional como elemento possibilitador de uma
cultura plural e democrática ............................................................................166
3.5 Princípios do Estado de Direito a partir da teoria do discurso...................183
3.6 A Política deliberativa e suas imbricações com a esfera pública na Gestão
Pública Compartida.........................................................................................189
3.7 A lógica da argumentação e suas aplicações na teoria jurídica e na Gestão
Pública Compartida.........................................................................................195
4 A CONSTRUÇÃO DA IDÉIA DE GESTÃO PÚBLICA COMPARTIDA EM UMA
PERSPECTIVA HABERMASIANA......................................................................220
4.1 Gestão Pública Compartida: aproximações preliminares..........................220
4.2 Categorias fundamentais da Gestão Pública Compartida à luz da teoria da
ação comunicativa ..........................................................................................232
6

4.3 Definindo categorias concretizantes de uma Gestão Pública Compartida 250


4.4 Tipologias e fenômenos afins à Gestão Pública Compartida ....................269
4.5 Questões discursivas relativas à Gestão Pública Compartida ..................282
4.6 Regime Jurídico da Gestão Pública Compartida e sua principiologia .......295
4.7 Interlúdio: retomando o conceito de Gestão Pública Compartida .............302
CONCLUSÃO......................................................................................................304
REFERÊNCIAS...................................................................................................313
INTRODUÇÃO

Um trabalho que tem a pretensão de lidar com conceitos ainda em


consolidação deve apresentar uma estrutura muito bem amarrada, a fim de evitar
prejuízos justamente para aquilo que visa consolidar. Esta é a tentativa aqui
realizada: buscar significados e seus consectários para a Gestão Pública
Compartida.

A Gestão Pública Compartida é, preliminarmente, uma peculiar


compreensão de um fenômeno chamado comumente de “participação”,
“democratização”, “Democracia direta”, “pluralismo”, dentre outros nomes. Esta
compreensão é peculiar porque, ao mesmo tempo, está vinculada aos aspectos
jurídicos de um regime jurídico-administrativo, à idéia de Administração Pública e
de Democracia radical. Pretende-se que estes fenômenos adquiram uma
coloração diferente e coerente a partir uma teoria da Gestão Pública Compartida.

Falar-se em uma teoria de algo, mesmo que de um tópico específico, atrai


as exigentes condições epistemológicas pós-metafísicas da contemporaneidade.
Implica que se perceba a historicidade do fenômeno, as possíveis relações com
outras questões conexas, bem como a utilização (ou tentativa de) de
compreensões e descrições transdisciplinares. Tal teoria insere-se em um
peculiar contexto contemporâneo de desacordo com relação à metodologia e
desprestígio ao positivismo (veladamente ainda aceito). Especificamente, falar-se
em uma teoria que dê conta da Gestão Pública Compartida é ter de descrever, ao
mesmo tempo, um instituto jurídico, mas também uma concepção sociológica,
filosófica e política. Trata-se de explicar como é possível fazer algo a partir de
8

uma gestão e isto implica uma série de coisas. É preciso, por exemplo, trazer um
diagnóstico mínimo de como andam as idéias em termos de epistemologia,
descrever rapidamente a sociedade e seus problemas, trabalhar com as
concepções vigentes de gestão pública e de Administração Pública, achar um
conceito de Direito capaz de satisfazer as condições pós-convencionais (onde a
metafísica não é mais possível) e agregar tudo isto para resolver tanto os
problemas marginas da Gestão Pública Compartida, como os fenômenos
relacionados mais diretamente, tais como políticas públicas, Estado,
Organizações da Sociedade Civil e demandas sociais, para então se estabelecer
uma interlocução direta com o fenômeno em suas diversas manifestações.

Esta tarefa será facilitada por uma escolha que se revelou acertada, e que
se configura em uma das interrogações principais: a obra de Jürgen Habermas.
Habermas será, ao mesmo tempo, matriz epistemológica geral, matriz de
epistemologia do Direito, fonte de conceitos de pragmática, Moral, Democracia,
entre outros fenômenos sociais relevantes. Ao mesmo tempo, esta fonte é
também problema: em que medida é possível se utilizar os conceitos esparsos na
obra de Habermas na consolidação dos conceitos e regime jurídico da Gestão
Pública Compartida? A hipótese é que isto é possível em larga medida.

Essas construções habermasianas serão analisadas tanto como conceitos


gerais, postulando perenidade e universalidade, mas também como construções
específicas para a realidade em que contextualiza o tema, qual seja, as
contradições do Brasil contemporâneo. É possível, a partir de Habermas, trafegar
com desenvoltura não só nos temas e disciplinas específicos do Direito, como o
Direito Constitucional, o Direito Administrativo, a Teoria do Direito e assim por
diante, mas também em outras perspectivas, notadamente as filosófica,
sociológica e política – privilegiadas neste trabalho em detrimento de outras
possíveis. A mera menção de vinculação a um cruzamento destas perspectivas –
transdisciplinaridade – não leva necessariamente à assunção desta última em um
trabalho acadêmico. A partir de Habermas, todavia, é possível vislumbrar um fio
condutor de integração, o qual também será a espinha dorsal do exame da
Gestão Pública Compartida: a racionalidade comunicativa, ou seja, aquela
racionalidade crítica que é capaz de defender pretensões de validade diante do
9

questionamento de outrem.

Este trabalho assume também pretensões críticas, ou seja, produção de


um saber voltado à emancipação. Como uma tal afirmativa necessita de forte
fundamentação epistemológica – e isto é altamente problemático – o problema é
resolvido ao vincular-se a Gestão Pública Compartida à idéia de Democracia, e,
com isso, a ela acudiriam os ideais utópicos da Constituição, incluindo a
emancipação. Com isso, é evitado um estabelecimento a priori da necessidade de
emancipação. Isto vai implicar, desta maneira, a refutação de concepções céticas
e decisionistas, complicando ainda mais o estabelecendo de conceitos capazes
de gerar adesão racional.

O problema da Gestão Pública Compartida inspira diversas hipóteses, as


quais se espera confirmação. Uma das hipóteses é a da falta de legitimidade da
Administração Pública, a qual pode ser lida a partir da idéia de colonização do
mundo da vida. Intui-se que esta crítica, formulada em termos mais gerais, cai
como uma luva à concepção vigente de Administração Pública presente nos
manuais de Direito Administrativo. Já a epistemologia que envolve a ação
comunicativa – um dos conceitos fundamentais de Habermas, vai possibilitar a
compreensão em termos discursivos de uma série de categorias fundamentais.
Finalmente, a concepção deliberativa de Direito inspira não só novas formas de
se perceber a Democracia como dá pistas para o regime jurídico da Gestão
Pública Compartida.

Justifica-se toda esta preocupação não só devido à relevância de um autor


como Habermas e da premência da discussão de temas como Democracia e
gestão pública, mas também e principalmente por que a Gestão Pública
Compartida pode configurar-se como um dos grandes instrumentos – jurídicos –
de implementação simultânea das promessas da Constituição e de uma
sociedade não-tutelada.

A matriz teórica deste trabalho está presente no primeiro capítulo. Trata-se


de um capítulo eminentemente epistemológico, e trata, de um lado, de dar as
bases não só da matriz que orientou a produção do texto, mas principalmente, por
outro, de estabelecer os conceitos fundamentais que são requeridos para a
10

compreensão dos passos seguintes. O capítulo está praticamente todo


estruturado tendo como espinha dorsal na obra Teoria da Ação Comunicativa,
com ressalva de seu início, que é um agregado de demais obras. Ao mesmo
tempo que, por óbvio, nem todas as temáticas presentes na obra principal de
Habermas foram tratadas, de outra banda foram juntadas as contribuições
pontuais de comentadores e de outros livros de Habermas. Parte da
argumentação acerca da colonização do mundo da vida fora interrompida para
ser continuada no segundo capítulo, onde guarda melhor coerência.

O segundo capítulo segue a linha argumentativa do primeiro ao utilizar-se


das mesmas categorias, mas já dá uma primeira guinada com relação ao tema.
Destina-se a examinar e refutar concepções decisionísticas de Administração
Pública, além de outras questões anexas. Para tanto, utiliza uma plêiade de
autores, incluindo os clássicos. Max Weber faz-se presente aqui na descrição da
Administração burocrática. Vários doutrinadores de Direito Administrativo
também. Habermas volta novamente com a Teoria da Ação Comunicativa,
estabelecendo os parâmetros de crítica da gestão convencional do público.

A guinada é mais forte no terceiro capítulo, que fala especificamente do


Direito em Habermas. A linha mestre é Direito e Democracia. Esta linha, contudo,
é interrompida em dois momentos fundamentais: quando é necessário abordar
com mais profundidade a ética discursiva e quando um exame mais extenso da
idéia de pluralismo faz-se necessária.

Finalmente, o quarto capítulo trabalha especificamente com a Gestão


Pública Compartida. Neste capítulo, dado o caráter provisório do conceito e
regime jurídico de Gestão Pública Compartida, foi possível o uso da criatividade
para a realização de tais fins. Assim, o estilo de texto muda radicalmente,
adquirindo uma cor não tão descritiva, mas sim mais construtiva.

Antecipando as conclusões, a Gestão Pública Compartida vai se configurar


como aquela situação pragmática de fala primariamente regida por uma ação
comunicativa que atribui coerência aos discursos que se constituem livremente na
esfera pública e que descem ao poder administrativo, materializando demandas
públicas. Implica na necessidade de estabelecimento de novas relações da
11

Administração com os cidadãos, seja pela abertura de novos procedimentos de


seleção de demandas, seja pela negociação de serviços a serem prestados por
entidades da comunidade.
1 INVESTIGANDO FUNDAMENTOS PARA A
CONSTRUÇÃO DE UMA MATRIZ PRAGMÁTICA DE
CRÍTICA DAS DEMANDAS PÚBLICAS

1.1 Notícia sobre transições na teoria do conhecimento: do


sagrado à linguagem

O pathos filosófico que vai do mithos ao logos distingue-se, em Habermas,


em três fases nitidamente distintas. Uma é baseada em ontologias metafísicas
primeiras, tendo por representantes uma longa tradição que se estende desde os
gregos até os escolásticos. Buscava-se o fundamento e o conteúdo de leis
naturais estatuídas por uma autoridade divina, as quais formavam um estatuto
imutável de verdades esotéricas1. A segunda, muitas vezes confundida com a
primeira, é materializada em uma filosofia do sujeito, e, finalmente, a terceira fase
é a da reviravolta lingüística.

Na primeira fase, o conhecimento em geral assume o status de verdade


esotérica que retrocedia à essência das coisas. O acesso à essência
pressupunha um espírito crítico e aberto, mas preparado e raro, para este
proceder instrospectivo, o qual era auxiliado por uma linguagem que meramente
comunica o atingimento do plano das verdades. São os principais representantes

1
HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.
p.22: “O verdadeiro conhecimento tem a ver com aquilo que é pura e simplesmente geral, imutável
e necessário. Pouco importa que esse pensamento seja interpretado à luz do modelo da
matemática como contemplação e anammese ou segundo o modelo da lógica, como discurso e
reflexão – trata-se, em ambos os casos, de estruturas do próprio ente, que se configuram no
conhecimento”.
13

desta fase Platão (427-347 a.C.), Aristóteles – em parte, vez que este já adianta
conclusões da filosofia do sujeito (384-322 a.C.), Santo Agostinho (354-430) e
São Tomás de Aquino (1227-1274).

Todavia,

Na época da modernidade, o conceito de teoria perde esta ligação com o


evento sagrado. Perde também o caráter naturalmente elitista, que se
ameniza, assumindo a forma de um privilégio social. O que se mantém é
a interpretação idealista do distanciamento em relação ao contexto de
interesses e da experiência cotidiana; na tradição universitária alemã que
chega a Husserl, o enfoque metódico destinado a imunizar o cientista
contra os preconceitos locais é supervalorizado e interpretado como
sendo o do primado, internamente fundamentado, da teoria frente à
práxis. No desprezo pelo materialismo e pelo pragmatismo sobrevive
algo da compreensão absolutista de uma teoria, que não se eleva
somente sobre a empiria e as ciências singulares, mas é “pura” no
sentido da eliminação catártica de todos os vestígios de seu contexto de
surgimento terreno. Assim se fecha o círculo de um pensamento da
identidade, que se introduz a si mesmo na totalidade que pretende
abranger, cuidando, portanto, de satisfazer à exigência de fundamentar
todas as premissas a partir de si mesmo. A independência da condução
teórica da vida sublima-se na moderna filosofia da consciência,
assumindo a forma de uma teoria que se fundamenta absolutamente a si
2
mesma .

Nesta segunda fase, identificada com o pensamento iluminista, o


conhecimento acerca de alguma coisa gradualmente sai do plano do céu para o
da terra. Toma-se por verdade aquele conhecimento repetível de maneira
intersubjetiva através de um método qualquer, através do qual, mundanamente,
tem-se acesso ao livro da natureza (e da sociedade). Esse conhecimento,
todavia, é objetivado e desvinculado da linguagem, que permanece como uma
terceira coisa que se interpõe entre o sujeito que conhece e a coisa conhecida.
Os principais autores desta fase são René Descartes (1596-1650), Emmanuel
Kant (1724-1804) e Edmund Husserl (1849-1938), dentre outros.

Contudo, em um movimento que se inicia em meados do século XIX, e que


se estende durante todo o século XX, difunde-se o giro hermenêutico, ou seja, a
tomada de consciência da linguagem enquanto experiência constitutiva de um
mundo vital.

A passagem do paradigma da filosofia da consciência para o paradigma

2
HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.
p.42.
14

da filosofia da linguagem constitui um corte de igual profundidade. A


partir deste momento, os sinais lingüísticos, que serviam apenas como
instrumento e equipamento das representações adquirem, como reino
intermediário dos significados lingüísticos, uma dignidade própria. As
relações entre linguagem e mundo, entre proposição e estados de
coisas, substituem as relações sujeito-objeto. O trabalho de constituição
do mundo deixa de ser uma tarefa da subjetividade transcendental para
3
se transformar em estruturas gramaticais .

A produção do sentido de algo, como acesso ao conhecimento, passa a ser


visto como prática social, a qual é estabilizada em consensos sociais prévios –
estáveis enquanto não forem tema de argumentações. Essa produção de sentido
se dá em uma forma de vida específica, ou seja, em uma comunidade que
compartilha uma plêiade de expectativas, crenças e consensos enredados
historicamente4.

O conjunto de atividades e de ações de fala é constituído através do


consenso preliminar numa forma de vida compartilhada
intersubjetivamente ou através da pré-compreensão de uma prática
comum regulada através de instituições e costumes. Aprender a dominar
uma linguagem, ou aprender como compreender as expressões numa
linguagem exige que nos exercitemos numa determinada forma de vida.
Esta, por sua vez, regula preliminarmente o emprego dos vocábulos e
das proposições numa rede de possíveis colocações de fins e de
5
possíveis ações [grifos do autor] .

Proposições – ou seja, linguagem – constituem a prática vital que


possibilita o acesso ao mundo através do significado – e não a coisa em si. As
pessoas compartilham experiências herdadas da tradição e consensos fundados
ou tradicionais porque ainda não criticados – comungam, assim, uma forma de
vida6, necessitando das capacidades coordenadoras da ação presentes na

3
HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.
p.15.
4
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta Lingüístico-pragmática na Filosofia
Contemporânea. São Paulo: Loyola, 2001.p.135: “O fato de alguém, realmente, compreender o
que uma frase significa, compreender seu sentido, não depende absolutamente de que eu tenha
querido significar isso. A compreensão depende da situação histórica em que a frase é usada e
não do ato intencional de querer significar. O compreender, como veremos depois, é um elemento
de uma forma de vida, na qual se está inserido em virtude do contexto sócio-histórico. Por fim, não
posso arbitrariamente decidir significar com uma palavra algo, sem que jamais essa palavra tenha
sido utilizada para isso. O que decide realmente sobre o sentido de uma palavra é seu uso real.
Mesmo que as pessoas anotassem a palavra escolhida por mim para significar algo, isso não
bastaria se elas, de fato, não a usassem. Não há atos autônomos, isto é, totalmente desvinculados
dos contextos de sentido [grifos do autor]”.
5
HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.
p.112.
6
APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia I: Filosofia analítica, semiótica, hermenêutica. São
Paulo: Loyola, 2000. p.143: “De outra parte, porém, o ser humano individual não dispõe, sob
qualquer hipótese, de seus conteúdos vivenciais como qualidades privadas isentas de qualquer
15

linguagem7. As interações cotidianas formam um pano de fundo que ao mesmo


tempo reproduz o conhecimento e o possibilita8. Desta maneira, a consciência
como condição de acesso ao mundo perde seu primado para a linguagem9.

[...] a possibilidade e necessidade do acordo mútuo sempre renovado


quanto ao sentido humano dos assim chamados “objetos” do mundo
experiencial, de um lado, e a possibilidade e necessidade de um acordo
mútuo quanto ao sentido – isto é, a “significação” – dos sinais lingüísticos

estrutura. É mera ficção a assunção do positivismo lógico de que todos os seres humanos
poderiam vivenciar conteúdos de mundo fundamentalmente distintos, mesmo que em meio a um
entendimento mútuo ideal. Todas as experiências hermenêuticas do ser humano depõem a favor
de que as substâncias vivenciais das pessoas tornam-se cada vez mais semelhantes, à medida
que se aprimora o acordo mútuo”.
7
APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia I: Filosofia analítica, semiótica, hermenêutica. São
Paulo: Loyola, 2000. p.437-438: “[...] ninguém pode seguir uma regra por si mesmo, como se
estivesse orientado por parâmetros acessíveis de maneira introspectiva. Alguém que quisesse
adotar uma linguagem compreensível apenas para si mesmo, e voltada aos dados da experiência
acessíveis apenas para si (dores, por exemplo) – ou seja, uma linguagem que não estivesse
regularmente ligada à linguagem pública e que, portanto, não fosse traduzível – não poderia dispor
de quaisquer critérios para uma correta aplicação da linguagem. Essa pessoa não lograria
distinguir entre arbítrio e norma, já que toda norma efetiva e que confere critérios de diferenciação
também se constitui pelo fato de que outras pessoas possam controlar o cumprimento dessa
mesma norma”.
8
WITTGENSTEIN, Ludwig. O Livro Azul. Edições 70: Lisboa, 1992. p.82-83: “Resumindo: se
examinarmos minuciosamente os usos que fazemos de palavras como “pensamento”, “sentido”,
“desejo”, etc., libertar-nos-emos da tentação de procurar um acto peculiar de pensamento,
independente do acto de expressão dos nossos pensamentos, e arrumado no meio peculiar. As
formas de expressão estabelecidas já não nos impedem o reconhecimento de que a experiência
do pensamento pode ser apenas a experiência da fala, ou pode consistir nesta experiência em
conjunto com outras que a acompanham. (Será útil também examinar o seguinte caso: supõe que
uma multiplicação faz parte de uma frase; pergunta a ti próprio o que será dizer 7X5=35. E pensá-
lo, e, por outro lado, dizê-lo sem pensar.) O exame minucioso da gramática de uma palavra
enfraquece a posição de certos padrões fixos da nossa expressão que nos tinham impedido de ver
os factos sem quaisquer ideias pré-concebidas”.
9
HABERMAS, Jürgen. Verdade e Justificação: ensaios filosóficos. São Paulo: Loyola, 2004.
p.241: “Assim como a querela dos universais no fim da Idade Média contribuiu para a depreciação
da razão objetiva, no fim do século XIX a crítica à introspecção e ao psicologismo contribuiu para
abalar a razão subjetiva. Quando a razão é situada não mais na consciência do sujeito
cognoscente, mas na linguagem como médium pelo qual os sujeitos se intercomunicam, a direção
de explicação se altera mais uma vez. A autoridade epistêmica passa do sujeito cognoscente, que
extrai de si os critérios para a objetividade da experiência, para a práxis de justificação de uma
comunidade lingüística. Até então, uma validade intersubjetiva de opiniões resultava de uma
convergência posterior entre pensamentos ou representações. E o acordo interpessoal se
explicava pela ancoragem ontológica dos juízos verdadeiros ou pelo equipamento psicológico ou
transcendental comum aos sujeitos cognoscentes. Mas, após a virada lingüística, todas as
explicações partem do primado de uma linguagem comum. Assim como a auto-representação de
vivências subjetivas a que o sujeito tem acesso privilegiado, a descrição de estados e eventos no
mundo objetivo também é dependente do uso interpretativo de uma linguagem comum. Por isso, a
expressão “intersubjetivo” não se refere mais ao resultado de uma convergência observada de
pensamentos ou representações de diferentes pessoas, mas à comunhão prévia – pressuposta da
perspectiva dos próprios participantes – de uma pré-compreensão lingüística ou de um horizonte
do mundo da vida no interior do qual os membros de uma comunidade lingüística se encontram
antes mesmo de se entender sobre algo no mundo. Desse primado que a intersubjetividade de
opiniões partilhadas tem sobre a confrontação com uma realidade (sempre já interpretada) resulta,
por fim, o questionamento contextualista, que não pode ser confundido com dúvida epistemológica
do ceticismo”.
16

já no nível das palavras, de outro, são expressão de uma e mesma


reflexividade da razão humana; esta última – diferentemente do instinto
dos animais – não está como que alojado em um mundo circundante de
sinais, mas tem que trabalhar, com a ajuda da linguagem, em uma
interpretação de mundo e, com a ajuda da interpretação do mundo
alcançada, trabalhar na construção de um sistema semântico da
linguagem. – Certamente o uso comunicativo e bem-sucedido da
linguagem – em especial a representação e transmissão de novos
estados de coisas com auxílio de um vocabulário limitado –
permaneceria ininteligível mesmo que não se pudesse pressupor
nenhum tipo de estabilidade (relativa) da interpretação sensata de
mundo, nem da estrutura semântica de um sistema lingüístico [...][grifos
10
do autor] .

São iniciadores do giro lingüístico Charles Sanders Peirce (1839-1914),


Martin Heidegger (1889-1976) e Ludwig Wittgenstein (1889-1951)

Como será visto em mais detalhe adiante, a razão humana, diante de


fracassadas tentativas de conceituação como uma faculdade mais elevada que,
por exemplo, o simples instinto dos animais, não tem mais como ser entendida
senão como a capacidade de agir comunicativamente, i.e., utilizar-se do saber
lingüístico disponível na comunidade para coordenar ações, comunicar
sentimentos e criticar o que quer que seja11. Isso implica um posicionamento
crítico das pessoas diante do proferimento do outro (sem, exclusão, contudo, da
vigência do princípio da indulgência que possibilita a consideração do outro como
também racional)12.

Este concepto de racionalidad comunicativa posee connotaciones que en


última instancia se remontan a la experiencia central de la capacidad de
aunar sin coacciones y de generar consenso que tiene un habla
argumentativa en que diversos participantes superan la subjetividad
inicial de sus respectivos puntos de vista y merced a una comunidad de
convicciones racionalmente motivada se aseguran a la vez de la unidad

10
APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: o a priori da comunidade de comunicação.
São Paulo: Loyola, 2000. p.390-391.
11
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la Acción Comunicativa, I. Madrid: Taurus, 1999. p.34: “Em
los contextos de comunicación no solamente llamamos racional a quien hace una afirmación y es
capaz de defenderla frente a un crítico, aduciendo las evidencias pertinentes, sino que también
llamamos racional a aquel que sigue una norma vigente y es capaz de justificar su acción frente a
un crítico interpretando una situación dada a la luz de expectativas legítimas de comportamiento. E
incluso llamamos racional a aquel que expresa verazmente un deseo, un sentimiento, un estado
de ánimo, que revela un secreto, que confiesa un hecho., y que después convence a un crítico de
la autenticidad de la vivencia así develada sacando las consecuencias prácticas e comportándose
de forma consistente con lo dicho”.
12
HABERMAS, Jürgen. Verdade e Justificação: ensaios filosóficos. São Paulo: Loyola, 2004.
p.173: “A comunicação não é um jogo auto-suficiente, por meio do qual os parceiros informam uns
aos outros sobre suas opiniões e intenções. Apenas o imperativo da integração social – a
necessidade da coordenação de planos de ação de participantes da interação que decidem de
modo independente – explica o que é primordial ao entendimento lingüístico mútuo”.
17

del mundo objetivo y de la intersubetividad del contexto en que


13
desarrollan sus vidas .

Assim como a linguagem é condição de possibilidade e necessidade vital,


também o são uma série de instituições sociais que possibilitam a interação
cotidiana. Deste modo, proposições que exprimem sentimentos, ideais regulativos
e constatações de estados-de-coisas no mundo permitem a estabilização diante
da incerteza e principalmente possibilitam que as pessoas se relacionem, i.e.,
estabeleçam ações em conjunto. Daí por que ser possível fundamentação de uam
teoria da ação comunicativa em termos de teoria da linguagem. Habermas,
contudo, ultrapassaria essa constatação para a fundamentação de uma matriz
teórica pós-giro lingüístico, mas que apresenta níveis analíticos mais detalhados
que a matriz hermenêutica. Esses níveis analíticos mais detalhados são
apresentados no contexto de uma teoria da racionalidade que é sensível ao uso
cotidiano da comunicação. Trata-se da racionalidade comunicativa – fundamental
para a idéia de Gestão Pública Compartida – que será apresentada com mais
detalhe a seguir.

1.2 Fundamentos de uma racionalidade comunicativa

O acesso ao conhecimento de algo remete ao problema da racionalidade.


Diante da impossibilidade do retorno a uma metafísica de conteúdos a priori, bem
como desafios tais, como incluir no campo da racionalidade os juízos claramente
cognitivos da Moral, da Ética e da estética, Habermas fundamenta sua teoria do
conhecimento a partir da noção de razão comunicativa. Para Habermas, além de
uma construção conceitual e compreensiva, é necessário o levantamento de
dados empíricos para que se proceda a uma reconstrução da realidade. Daí sua
opinião de que sua própria teoria é uma teoria sociológica14, porque a sociologia
seria a única ciência a manter ainda conexões globais, i.e., trocar conhecimentos
de forma efetiva com outras ciências bem como ser sensível a problemas de outra

13
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la Acción Comunicativa, I. Madrid: Taurus, 1999. p.27.
14
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la Acción Comunicativa, I. Madrid: Taurus, 1999. p. 18.
18

ordem que não os de descrição da sociedade. Nos termos deste trabalho, passa-
se por alto desta consideração de Habermas, concluindo que é possível extrair
conexões de várias matizes de sua obra, notadamente de cunho filosófico e
epistemológico.

O saber manifesta-se em proposições. Para Habermas, contudo, a


racionalidade de tais proposições está conectada mais com a maneira pela qual
se utiliza a comunicação do que com os conteúdos propriamente (vez que, se
esses fossem tomados aprioristicamente por alguma teoria, novamente se recairia
na metafísica). Habermas se interessa por tornar explícito, reconstruindo e daí
tornando disponível à crítica, as condições da comunicação (ou seja, tornar um
know how um know that).

A tese inicial de Habermas é no sentido de que, uma vez fracassadas as


tentativas de fundamentação da razão em termos conteudísticos ou metafísicos, a
prática diária permite a observação de que se consideram racionais aqueles que
agem motivados e capazes de defender seus pontos de vista em razões15. Por
exemplo, aquele que observou um dado fato, defende alguma demanda, ou
percebe os melhores meios de se atingir os fins de uma política pública, será
racional se for capaz de defender seus pontos de vista em razões (o contrário

15
FREITAG, Bárbara. A Teoria Crítica Ontem e Hoje. São Paulo: Brasiliense, 1988. p. 59-60.
"Habermas inclui em sua teoria da ação comunicativa a elaboração de um novo conceito de razão,
que nada tem em comum com a visão instrumental que a modernidade lhe conferiu, mas que
também transcende a visão kantiana assimilada por Horkheimer e Adorno, isto é, de uma razão
subjetiva, autônoma, capaz de conhecer o mundo e de dirigir o destino dos homens e da
humanidade. A concepção de uma razão comunicativa implica uma mudança radical de
paradigma, em que a razão passa a ser implementada socialmente no processo de interação
dialógica dos atores envolvidos em uma mesma situação. A razão comunicativa se constitui
socialmente nas intenções espontâneas, mas adquire maior rigor através do que Habermas
chama de discurso. Na ação comunicativa cada interlocutor suscita uma pretensão de validade
quando se refere a fatos, normas e vivências, e existe uma expectativa que seu interlocutor possa,
se assim o quiser, contestar essa pretensão de validade de uma maneira fundada (begründet), isto
é, com argumentos. É nisso que consiste a racionalidade para Habermas: não uma faculdade
abstrata, inerente ao indivíduo isolado, mas um procedimento argumentativo pelo qual dois ou
mais sujeitos se põem de acordo sobre questões relacionadas com a verdade, a justiça e a
autenticidade. Tanto no diálogo cotidiano como no discurso, todas as verdades anteriormente
consideradas válidas e inabaláveis podem ser questionadas; todas as normas e valores vigentes
têm de ser justificados; todas as relações sociais são consideradas resultado de uma negociação
na qual se busca o consenso e se respeita a reciprocidade, fundados no melhor argumento. A
razão comunicativa circunscreve um conceito para o qual o questionamento e a crítica são
elementos constitutivos, mas não sob a forma monológica, como ainda ocorria na Dialética do
Esclarecimento ou na Dialética Negativa, e sim de forma dialógica, em situações sociais em que a
verdade resulta de um diálogo entre pares, seguindo a lógica do melhor argumento”.
19

será uma posição decisionista e voluntarista). O outro será racional se capaz de


observar criticamente e tomar posição, gerando consensos ou dissensos16.

Habermas apresenta uma distinção fundamental, que segue a linha de sua


argumentação não só até o final de sua teoria da ação comunicativa mas também
durante toda sua obra: a distinção entre uma razão instrumental e uma razão
comunicativa17. As duas utilizam-se da linguagem, exigem razões para a
expedição de atos que se utilizam da linguagem e pressupõem posturas críticas
de aceitação ou rechaço. Todavia, estão orientadas a partir de um critério de
utilização do saber proposicional, ou à manipulação instrumental, ou ao
entendimento comunicativo18.

A razão comunicativa combina, ao mesmo tempo, elementos de uma razão


objetivadora (cognitiva-instrumental), em que existe o juízo crítico e intersubjetivo
de razões que se referem a um suposto mundo objetivo, com uma razão
fenomenológica, onde o mundo adquire objetividade a partir de seu
reconhecimento por uma comunidade histórica. Isto se conecta com a idéia de
desenvolvimento cognitivo e Moral, onde a evolução está ligada com a
capacidade de argumentação descentrada e intersubjetiva – racional, portanto19.

16
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la Acción Comunicativa, I. Madrid: Taurus, 1999. p.27: “Si
partirmos […] de la utilización comunicativa de saber proposicional en actos de habla, estamos
tomando una predecisión a favor de un concepto de racionalidad más amplio que enlaza con la
vieja idea de logos. Este concepto de racionalidad comunicativa posee connoctaciones que en
última instancia se remontan a la experiencia central de la capacidad de aunar sin coacciones y de
generar consenso que tiene un habla argumentativa en que diversos participantes superan la
subjetividad inicial de sus respectivos puntos de vista y merced a una comunidad de convicciones
racionalmente motivada se aseguran a la vez la unidad del mundo objetivo y de la intersubjetividad
del contexto en que desarrollan sus vidas [grifos do autor]”.
17
AVRITZER, Leonardo. A moralidade da Democracia. São Paulo: Perspectiva; Belo Horizonte:
Editora da UFMG, 1996. p.63: "O impasse habermasiano foi provocado por uma dupla
constatação: por um lado, Habermas estava convencido desde Técnica e Ciência enquanto
Ideologia acerca da impossibilidade de uma racionalidade técnica alternativa, desistindo, desse
modo, de explorar a via aberta por Marcuse de procurar uma racionalidade técnica não-
instrumental (Marcuse, 1967); por outro lado, Habermas procurava escapar também do beco sem
saída no qual havia se isolado o último Adorno, ao considerar certas concepções de música
erudita como o único lugar no qual a racionalidade de valores persistiria (Adorno, 1975). A solução
habermasiana para esse duplo dilema foi propor a separação entre dois tipos de racionalidade,
uma primeira, comunicativa, e uma outra, instrumental, posteriormente denominada de sistêmica.
A racionalidade comunicativa seria caracterizada pela dialogicidade, isto é, pela possibilidade de
alcançar um telos nos mundos objetivo, social e subjetivo através da comunicação com pelo
menos mais um participante”.
18
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la Acción Comunicativa, I. Madrid: Taurus, 1999. p.29
19
BEST, Steven. The Politics of Historical Vision: Marx, Foucault, Habermas. New York,
London: Guilford, 1995. p.157: “Habermas’s theory of social evolution allows for contingency,
20

Note-se, todavia, que Habermas, ao mesmo tempo em que abre o conceito de


razão, tenta fazer com que permaneça o mínimo de objetividade20. A isto tudo é
possível assomar-se a idéia de um proferimento que é emitido no aqui e agora da
situação da situação fática, mas que se projeta, em sua pretensão, para o futuro e
para além do contexto.

Este conceito de racionalidade mais amplo faz perceber que não é só


racional aquele que fundamenta um ato de fala em uma observação repetível e
criticável, como no paradigma do racionalismo crítico ou um estabelecimento de
uma relação meios-fins, mas também aquele que emite um juízo prático-Moral-
jurídico, estético e expressivo. Isso tem relevância para a seleção de demandas
sócias, uma vez que se percebe que as escolhas políticas não são decisões
irracionais: são, isso sim, decisões racionais disponíveis à crítica e ao controle
intersubjetivo21. Ou seja, são ações prenhes de sentido, inteligíveis em seu
contexto e que carregam pretensões de validez suscetíveis de crítica. A ação
orientada a normas, por exemplo, não se remete a um suposto mundo objetivo de
fatos, mas sim a um mundo normativo social de normas vigentes. Nesse sentido,
é uma ação auto-referente, trazendo consigo suas razões. Note-se que isto é
importante para a Gestão Pública Compartida, pois é possível fundamentar-se
epistemologicamente que as decisões políticas tomadas em um debate popular
são racionais.

discontinuity, and regressive developments in history, but he insists one can still identify a
developmental process that leads in the direction of human emancipation [...] For Habermas,
“evolution” refers to “cumulative processes that exhibit a direction” [...] As with Marx, this direction
can be analyzed in terms of a growing differentiation and complexity of social systems and forms of
individuality, able to be periodized according to distintict stages of development that represent
advances in a developmental logic, and that culminate in conditions for humam freedom and
autonomy”.
20
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la Acción Comunicativa, I. Madrid: Taurus, 1999. p.32: “Este
concepto más amplio de racionalidad comunicativa desarrolado a partir del enfoque
fenomenológico puede articularse con el concepto de racionalidad cognitivo-instrumental
desarrollado a partir del enfoque realista. Existen, en efecto, relaciones internas entre la capacidad
de percepción decentrada (en el sentido de Piaget) y la capacidad de manipular cosas y sucesos,
por otro […]
21
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la Acción Comunicativa, I. Madrid: Taurus, 1999. p.33-34: “En
los contextos de comunicación no solamente llamamos racional a quien hace una afirmación y es
capaz de defenderla frente a un crítico, aduciendo las evidencias pertinentes, sino que también
llamamos racional a aquel que sigue una norma vigente y es capaz de justificar su acción frente a
un crítico interpretando una situación dada a la luz de expectativas legítimas de comportamiento. E
incluso llamamos racional a aquel que expresa verazmente un deseo, un sentimiento, un estado
de ánimo, que revela un secreto, que confiesa un hecho, etc., y que después convence a un crítico
de la autenticidad de la vivencia así develada sacando las consecuencias prácticas y
comportándose de forma consistente con lo dicho”.
21

Essa prática social de defesa e crítica de razões conformam consensos, os


quais se estabilizam socialmente em um dado contexto e sob condições
apropriadas, formando um mundo da vida. Essa estabilização é, todavia, instável.
O risco do dissenso é, por outra vida, compensado por instituições sociais, como
o Direito. Para revelar como esses consensos22 são formados, Habermas recorre
à situação problemática de consensos estáveis que se vêem problematizados.
Assim, em argumentações (uma espécie de agir comunicativo, como será
anotado mais adiante), nas quais se tematizam as pretensões de validez daquele
que oferece o ato de fala, bem como as razões que a sustentam: “la fuerza de
una argumentación se mide en un contexto dado por la pertinência de las
razones”23. O comportamento do falante na argumentação demonstra sua
racionalidade: retrair-se ou comportar-se dogmaticamente denota irracionalidade;
a aceitação ou rechaço através de argumentos vislumbra uma ação racional24.
Observando-se o agir cotidiano dos atores sociais é possível perceber diferentes
formas de argumentações, diferenciadas a partir da modernidade. Estas formas
de argumentação serão pistas para o descobrimento de diferentes tipos de atos
de fala, ações sociais e referenciais hermenêuticos.

Formas de Manifestações ou Pretensões de validez


argumentação/ objeto emissões controvertidas
da argumentação problemáticas
Discurso teórico Cognitivo-instrumentais Verdade das
proposições-eficácia das
ações teleológicas
Discurso prático Práticas-morais Retidão das normas de
ação
Crítica estética Avaliativas Adequação a padrões de
valor
Crítica terapêutica Expressivas Veracidade das
manifestações

22
PIZZI, Jovino. Ética do Discurso: a racionalidade ético-comunicativa. Porto Alegre: Edipucrs,
1994. p.34: “O acordo comunicativo não nega a racionalidade cientificista, porém a proposta
coloca como condição básica do saber uma fundamentação que transcende a projeção feita
unicamente com vistas à auto-realização do indivíduo em si. O consenso torna-se, portanto, a
base das proposições e normas que emergem dos acordos lingüísticos à medida que pressupõe
um modelo argumentativo que interliga a comunidade real com real com a comunidade ideal de
comunicação [...]”.
23
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la Acción Comunicativa, I. Madrid: Taurus, 1999. p.37.
24
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la Acción Comunicativa, I. Madrid: Taurus, 1999. p.37: “A la
susceptibilidad de fundamentación de las emisiones o manifestaciones racionales responde, por
parte de las personas que se comportan racionalmente, la disponibilidad a exponerse a la crítica y,
en caso necesario, a participar formalmente en argumentaciones”.
22

Discurso explicativo - Intelegibilidade dos


produtos simbólicos

Tabela 1- Formas de argumentação25

Essa “lógica informal” da argumentação tem por objetivo explicar como é


possível que determinadas razões possam ser objeto de crítica e como
determinados argumentos em determinadas situações são mais fortes que outros.

Uma argumentação real dá-se em condições exigentes. Os atores26, por


exemplo, além de criticarem a pretensão de validez tornada problemática, têm de
adotar uma postura hipotética e examinar com razões (e apenas com elas), as
pretensões defendidas27, ou mesmo produzir aquelas. Note-se que o quadro
acima foi reproduzido no intuito de inserir a próxima temática, vez que a lógica da
argumentação terá um item a parte neste trabalho.

Em realidade, este quadro conceitual não se liga tanto à noção de tipos de


argumentação, mas sim a tipos de pretensão de validez defendidas. “Una
pretensión de validez equivale a la afirmación de que se cumplen las condiciones
de validez de una manifestación o emisión” [grifos do autor]28, a qual, também a
partir de razões, pode o ouvinte aderir ou rechaçar. Essa fundamentação de algo
a partir da forma pela qual a pretensão de validade é fundamentada demonstra
que, ao mesmo passo que se cambia a forma, também o sentido da
fundamentação. Assim,

La fundamentación de enunciados normativos, la demonstración de la


aceptabilidad de acciones o de normas de acción; la fundamentación de
enunciados normativos, la demonstración de la aceptabilidad de
acciones o de normas de acción; la fundamentación de enunciados
evaluativos, la demonstración de la preferibilidad de estos o aquellos

25
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la Acción Comunicativa, I. Madrid: Taurus, 1999. p.44.
26
HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada. São Paulo:
Tempo Brasileiro, 2002. p.49: "O agir comunicativo coloca em jogo um espectro mais claro dos
fundamentos - fundamentos epistêmicos para a verdade das asserções, pontos de vista éticos
para a autenticidade de uma escolha de vida, indicadores para a sinceridade das declarações,
experiências estéticas, explicações narrativas, padrões de valores culturais, exigências de direitos,
convenções, etc. A imputabilidade não se limita apenas aos critérios da moralidade e da
racionalidade objetiva (com respeito a fins). É muitas vezes somente objeto da razão prática,
porém consiste universalmente na capacidade de um ator de orientar seu agir por exigências de
validez".
27
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la Acción Comunicativa, I. Madrid: Taurus, 1999. p.37.
28
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la Acción Comunicativa, I. Madrid: Taurus, 1999. p.63.
23

valores; la fundamentación de enunciados expresivos, la demostración


de enunciados explicativos, la demonstración de que las expresiones
simbólicas han sido correctamente generadas. El sentido de las
correspondientes pretensiones de validez diferenciadas puede entonces
explicitarse especificando en términos de lógica de la argumentación las
condiciones bajo las que puede hacerse en cada caso semejante
29
demostración .

Habermas ressalta, todavia, que dada a peculiaridade que discursos


expressivos, terapêuticos e estéticos assumem, apenas os discursos teóricos,
práticos e explicativos assumem a possibilidade de uma intersubjetividade
completa, capazes de serem gerados em uma situação análoga à ideal de fala.
Aqueles primeiros discursos dificilmente geram intersubjetividade a partir de
razões. Por exemplo, não basta para convencer alguém de que se está
preocupado com alguma coisa apenas dizer que se está preocupado, pois “um
hablante sólo podrá demostrar que piensa realmente lo que dice actuando em
consecuencia”30.

Preliminarmente, pode-se dizer que os atores sociais atuam sob o pano de


fundo de um “mundo da vida” que, enquanto às costas dos participantes, é uno,
mas, analiticamente, é claramente diferenciado31:

- el mundo objetivo (como conjunto de todas las entidades sobre las que
32
son posibles enunciados verdaderos) ;

- el mundo social (como conjunto de todas las relaciones interpersonales


legítimamente reguladas), y

- el mundo subjetivo (como totalidade de las vivencias del hablante, a las


33
que éste tiene un acceso privilegiado).

Em sede de ciência social, não faz sentido perceber apenas racionalidade

29
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la Acción Comunicativa, I. Madrid: Taurus, 1999. p.65-66.
30
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la Acción Comunicativa, I. Madrid: Taurus, 1999. p.67.
31
Esta diferenciação é fruto da modernização ocorrida nas sociedades ocidentais.
32
HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada. São Paulo:
Tempo Brasileiro, 2002. p.39-40: "A "objetividade" do mundo significa que este mundo é "dado"
para nós como um mundo "idêntico para todos". De mais a mais, é a prática lingüística - sobretudo
o uso dos termos singulares - que nos obriga à suposição pragmática de um mundo objetivo
comum. O sistema de referência construído sobre a linguagem natural assegura a qualquer falante
a antecipação formal de possíveis objetos de referência. Sobre essa suposição formal do mundo,
a comunicação sobre algo no mundo converge com a intervenção prática no mundo. Para falantes
e atores, é o mesmo mundo objetivo sobre o qual se entendem e no qual podem intervir. Para a
garantia performativa dos referentes semânticos é importante que os falantes possam se colocar
como agentes em contato com os objetos das relações práticas e possam retomar tais contatos".
33
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la Acción Comunicativa, I. Madrid: Taurus, 1999. p.144.
24

tomada individualmente, mas sim a racionalidade de uma dada forma de vida.


Isso vai ser importante em uma metodologia que se proponha a examinar as
demandas públicas porque os espaços de comunicação serão abertos em
“formas de vida específicas”, mais ou menos racionalizadas. Isso significa
perquirir-se se uma a dada forma de vida é aberta à argumentação e é ao mesmo
tempo coerente em um largo espaço de tempo. Essa forma de vida ou mundo da
vida será retomada com vagar mais adiante.

Habermas discute acerca da racionalidade nas sociedades antigas e nas


sociedades modernas. Muito embora essa seja uma discussão muito longa na
Teoria da Ação Comunicativa34, neste trabalho prescindir-se-á de maiores
observações. Importa ressaltar, aqui, o resultado desta discussão: o pensamento
moderno diferencia pretensões de validade e, portanto, formas de argumentação
e instituições sociais. Existe, em sociedades primitivas, um nivelamento entre
“faticidade e validade” (ver, mais adiante, capítulo sobre o Direito). O que é
estável, é a verdade, ao contrário da maior abertura à crítica (relativamente às
sociedades primitivas) que caracteriza as sociedades modernas35. O belo, o
verdadeiro e o correto confundem-se nas sociedades primitivas. Essa maior
abertura à crítica nas sociedades modernas sem dúvida nenhuma se manifesta
em proposições mais universalistas36 nos seus respectivos âmbitos de validade. A
modernidade seria mais propícia à Gestão Pública Compartida porque certos
temas são passíveis de racionalização adequada, onde o certo pode não ser o
belo. Todavia, a razão ocidental ainda é muito ligada a uma noção cognitivo-

34
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la Acción Comunicativa, I. Madrid: Taurus, 1999. p.71-110.
35
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la Acción Comunicativa, I. Madrid: Taurus, 1999. p.78-79:
“[…] validez se confunde con eficacia empírica. Aparte de eso, aquí no podemos pensar todavía
en pretensiones de validez diferenciadas: en el pensamiento mítico las diversas pretensiones de
validez, que son la verdad proposicional, la rectitud normativa y la veracidad expresiva, todavía no
están diferenciadas en absoluto. Incluso el concepto difuso de validez en general aún no está
exento de adherencias empiricas; conceptos de validez tales como moralidad y verdad están
amalgados con conceptos relativos a nexos empíricos, como son los conceptos de causalidad y
salud. De ahí que la imagen del mundo constituida lingüísticamente pueda ser identificada hasta
tal punto con el orden mismo del mundo que no pueda ser reconocida como tal en su calidad de
interpretación del mundo, es decir, de una interpretación sujeta a errores y susceptible de crítica”.
36
BEST, Steven. The Politics of Historical Vision: Marx, Foucault, Habermas. New York,
London: Guilford, 1995. p.160: “in the historical process, societes evolve from na undifferentiated
organic unity organized around the family to a highly differentiated structure with compelx social
roles and forms of individual psychology and developed competencies in communication and Moral
reasoning. Historical developments results in a gradual expansion of secular reason over the
sphere of the sacred, a tendency toward increasing reflexivity and autonomy, and a movement
from tribal particularism to universalism”.
25

instrumental, i.e., a razão ocidental ainda é extremamente positivista, não


privilegiando o saber prático – o que vem em desfavor da Gestão Pública
Compartida.

Por outro lado, a razão ocidental permite a descentração, i.e., uma


“evolución cognitiva significa em términos generales la decentración de uma
comprensión del mundo de cuño inicialmente egocêntrico [grifos do autor]”37. Essa
descentração de personalidades individuais permite a construção de visões de
mundo também descentradas38. Isto é importante para uma teoria social porque
demonstra que existe: a) evolução cognitiva e, b) a descentração permite a
intersubjetividade e com isso uma “objetividade” para com o mundo. Essa última
afirmativa é fundamentada por Habermas no sentido de que, uma vez libertados
de suas perspectivas egocêntricas e abertas à argumentação, podem os atores
buscar cooperativamente reproduzir ou mudar seu mundo, interagindo, trocando
experiências e formando um pano de fundo comum39. Isto é: o mundo dos
participantes pode evoluir e, também, ser modificado. Esse pano de fundo comum
tenciona-se mais à medida que os participantes da sociedade assumem mais
posições descentradas. Estes assumem o risco de dissenso, e, portanto, se
quiserem conviver, terão de reconstruir comunicativamente, através de novos
consensos, o seu mundo da vida. Uma tradição, para permitir formas de vida
racionais, tem de, então, cumprir as seguintes condições: a) tem de dispor de

37
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la Acción Comunicativa, I. Madrid: Taurus, 1999. p.103.
38
HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada. São Paulo:
Tempo Brasileiro, 2002. p.55: "Na dimensão horizontal das relações que os sujeitos contraem
entre si, a suposição de racionalidade recíproca efetuada expressa o que eles, fundamentalmente,
esperam uns dos outros. Quando sobretudo o entendimento e a coordenação da ação devem ser
possíveis, os atores devem ser capazes de assumir uma posição fundamentada em relação a
exigências de validez criticáveis e de se orientarem por exigências de validez na ação própria".
39
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la Acción Comunicativa, I. Madrid: Taurus, 1999. p.103: “El
concepto de mundo subjetivo nos permite distinguir del mundo externo no solamente nuestro
propio mundo interno, sino también los mundos subjetivos de los otros. Ego puede considerar
cómo determinados echos (aquello que él juzga como estados de cosas existentes en el mundo
objetivo) o cómo determinadas expectativas normativas (aquello que él juzga como ingrediente
legítimo del mundo social compartido) se presentan desde la perspectiva de alter, esto es, como
ingredientes del mundo subjetivo de éste; puede además considerar que alter considera a su vez
cómo aquello que él (alter) juzga como estados de cosas existentes o como normas válidas se
presentan desde la perspectiva de ego, es decir, como ingrediente del mundo subjetivo de éste.
Los mundos subjetivos de los implicados podrían entonces hacer de espejos donde lo objetivo, lo
normativo, y lo subjetivo del otro, se reflejasen mutuamente cuantas veces quisiera. Pero los
conceptos formales de mundo tienen precisamente la función de impedir que el acervo de lo
común se evapore en este libre movimiento del recíproco reflejo de subjetividades; permiten
adoptar en común la perspectiva de un tercero o de un no implicado”.
26

conceitos diferenciados para um mundo social (construído pelos atores), objetivo


(existe independentemente dos autores) e subjetivo (ao qual o ator tem acesso
privilegiado), para os quais remetem a diferentes pretensões de validade (retidão,
verdade e veracidade); b) tem de permitir a auto-crítica e a mudança, percebida a
deficiência de algum dado tradicional; c) a diferenciação institucionalizada em
saberes especializados que permita uma ligação com o todo; d) a tradição, para
manter-se reflexiva, tem de suportar a autonomização dos sistemas, não
permitindo a cegueira de um ao código de outro. Mais adiante, estas idéias
servirão para analisar a adequação de uma sociedade à Gestão Pública
Compartida.

As pretensões de validez servem a um exame compreensivo, e, portanto,


adequado para a construção de uma metodologia capaz de verificar as demandas
sociais, tanto sobre o prisma de como se fundamentam com sob o prisma de
como se relacionam com o mundo. A defesa de pretensões de validade conecta-
se a conceitos de ação social, i.e., quando se perfaz uma ação social-racional se
defende um tipo específico de pretensão de validez.

Essas temáticas engendram-se com uma determinada perspectiva de


análise social, isto é, uma análise através da ação social. Esta análise permite a
compreensão da problemática social em algumas de suas nuanças. Este é o
objeto do texto a seguir.

1.3 A Ação Comunicativa e suas possibilidades


metodológicas de compreensão social

Os atores, ao constatarem algo, refletirem acerca de uma norma ou


expressarem um sentimento, fazem uso de um “mundo” que lhes está implícito.
Deste “mundo da vida” os atores extraem suas interpretações que permitirão uma
ação no mundo (ver, mais adiante, este conceito melhor trabalhado). Este mundo
da vida é o pano de fundo da ação comunicativa. A partir de discussões
preliminares sobre conceitos de ação consagrados sociologicamente e suas
27

relações com um mundo objetivo, social e subjetivo, Habermas vai introduzir a


categoria da ação comunicativa.

As ações sociais são interações a partir das quais há um uso da linguagem


em um pano de fundo comum40. Essas interações, se bem que ocorram sob um
pano de fundo lingüístico, em absoluto isto significa que as ações
comunicativamente estruturadas devam ser analisadas semanticamente, ou seja,
do mesmo modo que se que interpretam frases. Isso porque o modelo
habermasiano é pragmático:

Para el modelo comunicativo de acción el lenguaje solo es relevante


desde el punto de vista pragmático de que los hablantes, al hacer uso de
oraciones orientándose al entendimiento, contraen relaciones con el
mundo, y ello no sólo directamente, como en la acción teleológica, en la
acción regida por normas o en la acción dramatúrgica, sino de un modo
41
reflexivo .

Os atores referem-se de uma só vez a referências objetivas, subjetivas e


sociais, entabulando processos de entendimento.

Que el entendimiento funcione como mecanismo coordinador de la


acción sólo pude significar que los participantes en la interacción se
ponen de acuerdo acerca de la validez que pretenden para sus
emisiones o manifestaciones, es decir, que reconocen
intersubjetivamente las pretensiones de validez con que se presentan
unos frente a otros. Un hablante hace valer una pretensión de validez
suscetible de crítica entablando con su manifestación una relación por lo
menos con un “mundo” y haciendo uso de la circunstancia de que esa
relación entre actor y mundo es en principio accesible a un enjuiciamento
objetivo para invitar a su oponente a una toma de postura racionalmente
42
motivada .

Assim, o conceito de ação comunicativa retroliga-se com o conceito de


racionalidade discursiva43. A ação comunicativa pressupõe atores capazes de,
utilizando-se da linguagem, tomarem postura frente às pretensões de validade
apresentadas pelo outro. Como o mundo da vida aparece desdiferenciado aos
indivíduos, a reconstrução de uma oferta de fala leva à conclusão de que as
pretensões de validade defendidas sempre estarão referenciadas aos três

40
Isto fundamenta, por exemplo, a diferença entre ação teleológica e ação estratégica, onde esta
última, apesar de fazer um uso não-cooperativo da linguagem, todavia utiliza-se de atos de fala.
ver HABERMAS, Jürgen. Teoría de la Acción Comunicativa, I. Madrid: Taurus, 1999. p.137.
41
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la Acción Comunicativa, I. Madrid: Taurus, 1999. p.143.
42
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la Acción Comunicativa, I. Madrid: Taurus, 1999. p.143.
43
DUTRA, Delamar José Volpato. Razão e Consenso em Habermas. Florianópolis: UFSC, 2005.
p.56.
28

mundos (objetivo, social e subjetivo)44. Desta forma, quem oferece um ato de fala
comunicativamente, ou seja, orientado à cooperação, necessariamente
fundamenta seu ato na pretensão de que é verdadeiro em relação ao mundo
objetivo, correto em relação ao mundo social e veraz com relação ao mundo
subjetivo. Como foi visto anteriormente, a capacidade de diferenciar estes
diferentes âmbitos de validade dos atos de fala denotam uma forma de vida
racional45. Estas pretensões pressupõem mais uma quarta pretensão de validez,
qual seja, o uso correto da linguagem46.

O mundo objetivo configura-se como a totalidade de estados de coisas ou


sucessos capazes de serem reproduzidos. A maneira excelente de acessá-lo é
através de uma experiência cognitiva, isto é, de um conhecer e elaborar planos de
ação. A ação referencia-se a fatos que podem ser verdadeiros/falsos ou planos de
ação alcançados/errados. Assim, as relações entre ator e mundo objetivo são
criticáveis em termos de verdade e eficácia47. As ações por excelência, que se
dão a partir deste mundo, são as ações constatativas e as
instrumentais/estratégicas48. O mundo objetivo, mesmo que seja reproduzido a
partir de interações cognitivas, não deixa de se conectar com uma práxis
intersubjetiva. Por exemplo, o conhecido conceito de verdade como consenso de
Habermas, examinado com rapidez mais adiante.
44
BEST, Steven. The Politics of Historical Vision: Marx, Foucault, Habermas. New York,
London: Guilford, 1995. p.177: “With the Enlightenment philosophers, Habermas sees this
differentiations as a positive effect of modernity, because it separates the cognitive potential of
various spheres of life and makes possible a rational organization of everyday life. The
differentiating logic of cultural modernity allows for questions of truth, justice and taste to came into
their own and promotes critical consciousness”.
45
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la Acción Comunicativa, I. Madrid: Taurus, 1999. p.144: “Si
prescindimos de la corrección formal de la expresión simbólica utilizada, el actor que en el sentido
indicado se oriente al entendimiento, tiene que plantear explícitamente con su manifestación tres
pretensiones de validez, a saber: la pretensión – de que el enunciado que hace es verdadero (o de
que en efecto se cumplen las condiciones de existencia del contenido proposicional cuando éste
no se afirma sino sólo se “menciona”); - de que el acto de habla es correcto en relación con
contexto normativo vigente (o de que el propio contexto normativo en cumplimiento del cual ese
acto se ejecuta, es legítimo), y – de que la intención expresada por el hablante coincide realmente
con lo que éste piensa.
46
PINTO, F. Cabral. Leituras de Habermas: modernidade e emancipação.. Coimbra: Fora do
Texto, 1992. p.218-219: “Um encadeamento de símbolos é válido como frase se, obedecendo ao
sistema de regras gramaticais em questão, for inteligível. Encarada sob o ponto de vista
pragmático, a inteligibilidade (Verständlichkeit) coloca-se entre as condições da comunicação e
não entre as pretensões de validade emitidas no interior da própria comunicação”.
47
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la Acción Comunicativa, I. Madrid: Taurus, 1999. p.126.
48
Note-se que, mesmo sendo social a interação estratégica, a orientação com relação ao outro é
reificante, ou seja, o outro é tomado como coisa – daí Habermas incluir tal tipo de ação como
conectada ao mundo objetivo.
29

Uma ação regulada por normas pressupõe, além do mundo objetivo,


também um mundo socialmente construído49, i.e., as instituições e valores
culturais. Este mundo é criticado a partir da correção e da incorreção das normas
e suas interpretações. A estabilidade e identidade deste mundo, todavia, não está
ancorada em certezas vivenciais advindas do contato com fenômenos objetivos
ou com planos de ação reputados eficazes; depende da permanente aceitação e
reprodução social da comunidade. Uma floresta, por exemplo, continuará a existir,
como evidência, mesmo que interpretada e constituída lingüisticamente, após o
fim da comunidade que a conhece; uma norma moral, jurídica, ou uma tradição ou
religião, de outra banda, depende unicamente de sua legitimidade social – daí por
que poderem ser substituídas em sua totalidade na medida em que se tem
consciência deste mundo.

É através de uma ação análoga à dramatúrgica que se faz uma


apresentação de si e das preferências pessoais, como as de gosto, impossíveis
de um acordo intersubjetivo no que toca ao conteúdo (apenas no que toca à
veracidade), em que os referenciais são gosto/desgosto50,
veracidade/inveracidade. O ator tem acesso privilegiado ao seu mundo subjetivo,
o qual comunica aos outros, que só podem acreditar ou não nesta informação e
verificar a ação conseqüente, sem possibilidade de formação de uma
intersubjetividade estável51.

Todas essas interações ocorrem sob uma pré-compreensão aproblemática,


e que assim permanece até que venha a ser tema de crítica. Deste modo, a
significação de algo se dá a partir da relativização dos pontos de vista individuais
– relativização essa que é resultado da crítica intersubjetiva. Em Habermas,
então, a individualização e conceitualização de algo estão ligadas com o
consenso, pois diferença conceitual é intersubjetividade. Assim, só existe
diferença no consenso e vice-versa. Essa diferença e este consenso são
formados pela linguagem; essa, por sua vez, é entendida como um meio, ou seja,
“um médio de comunicación que sirve al entendimiento, mientras que los actores,

49
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la Acción Comunicativa, I. Madrid: Taurus, 1999. p.128.
50
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la Acción Comunicativa, I. Madrid: Taurus, 1999. p.133.
51
Isso não exclui, por óbvio, que alguém modifique o mundo subjetivo de outrem, v.g.,
convencendo-o de que tal paisagem x é mais bela que a y.
30

al entenderse entre sí para coordinar sus acciones, persigue cada uno


determinadas metas”52. Todas as ações sociais da tipologia da ação
habermasiana, vista com mais detalhe adiante, são de algum modo teleológicas,
ou seja, os atores perseguem seus fins. Todavia, diferenciam-se pela forma em
que fundamentam a coordenação, onde a ação instrumental se diferencia da
comunicativa por ser “engrenaje de cálculos egocêntricos de utilidad [...]”53.

A idéia de racionalidade da ação vai se conectar com a problemática da


compreensão de algo (e da compreensão de algo nas ciências sociais). Em
Habermas, existe uma conexão entre racionalidade da comunicação e
observação social. Esta última se dá em termos de compreensão, o que significa
que o estudioso do fenômeno social não tem alternativa para compreender algo
se não assumindo uma postura crítica diante das pretensões de validade
levantadas, como se fosse um participante virtual daquela comunicação. Isto é, o
observador diferencia-se do participante mais pela sua função do que pela
estrutura de acesso ao mundo54.

Invocando referenciais hermenêuticos, Habermas vem a concordar com a


idéia de que a compreensão de algo é possibilitada pela sua inserção em um
modo de vida55 específico, e este modo de vida aparece já estruturado
comunicativamente de antemão ao participante. Isto significa que o cientista das
ciências sociais (aplicadas) se depara com um mundo já estruturado
simbolicamente, no qual ele mesmo é participante. Esse mesmo mundo56 é que é

52
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la Acción Comunicativa, I. Madrid: Taurus, 1999. p.145.
53
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la Acción Comunicativa, I. Madrid: Taurus, 1999. p.146.
54
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.153.
55
HABERMAS, Jurgen. O Discurso Filosófico da Modernidade: doze lições. São Paulo: Martins
Fontes, 2000. p.436: “Carece de uma ampliação [...] o conceito fenomenológico, elaborado
particularmente por Heidegger, de contexto remissivo do mundo da vida, que constitui, às costas
dos participantes da interação, o contexto inquestionado do processo de compreensão. Os
participantes extraem desse mundo da vida não apenas padrões consentidos de interpretação (o
saber de fundo do qual se nutrem os conteúdos proposicionais), mas também padrões de relações
normativamente confiáveis (as solidariedades tacitamente pressupostas sobre as quais se apóiam
os atos ilocucionarios) e as competências adquiridas no processo de socialização (o pano de
fundo das intenções do falante)”.
56
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.154: “El âmbito objetual de las ciencias sociales
compreende todo lo que puede caer bajo la descripción “elemento de un mundo da la vida”. El
significado de esta expresión puede aclararse intuitivamente por referencia a aquellos objetos
simbólicos que generamos cuando hablamos y actuamos, desde las manifestaciones inmediatas
31

objeto de análise por parte do estudioso. O mundo ao qual se tem acesso é um


mundo já pré-interpretado, daí porque Habermas concordar com Giddens quando
este afirma terem as ciências sociais uma perspectiva de dupla hermenêutica, ou
seja, compreende-se o que já fora compreendido em termos sociais mais
amplos57.

Con anterioridad a cualquier tipo de dependencia respecto de una teoría,


el “observador” sociológico ha de servirse, como participante en los
procesos de entendimiento, de los lenguajes con que se encuentra en sú
ámbito objetual, pues solo a través de esos procesos puede tener aceso
58
a los datos [grifos do autor] .

Isso tudo não é novidade, ainda mais em se percebendo que os posteriores


desenvolvimentos das ciências não-sociais também chegaram à mesma
conclusão. Uma vez impossível a objetividade de uma observação dentro dos
termos simplistas de uma filosofia analítica, a questão que se põe é como que se
torna possível alguma objetividade em um processo de entendimento, uma vez
que o observador, ao fazer parte do processo, modifica o produto cultural.
Visando problematizar a questão, Habermas a fundamenta em outra direção.
Apesar de participante e observador interagirem em termos de atos de fala, suas
orientações são diferentes. O observador não está ali para entrar em consenso
sobre planos de ação, ao contrário dos diretamente implicados59. O observador,

(como son los actos de habla, las actividades teleológicas, etc.) pasando por los sedimentos de
tales manifestaciones (como son los textos, las tradiciones, los documentos, las obras de arte, las
teorías, los objetos de la cultura material, los bienes, las técnicas, etc.) hasta los productos
generados indirectamente, susceptibles de organización y capaces de estabilizarse a sí mismos
(como son las instituciones, los sistemas sociales y las estructuras de la personalidad”.
57
MCCARTHY, Thomas. La Teoría Crítica de Jürgen Habermas. Madrid: Tecnos, 1998. p.190:
“Los conceptos sociológicos son “constructos de segundo nivel” (Schutz); los “constructos de
primer nivel” son aquellos mediante los que los actores sociales han preestructurado ya la realidad
social con anterioridad a la investigación científica de ésta. Y como la acción social viene mediada
por los esquemas interpretativos de los actores y no puede ser captada con independencia de
ellos, los constructos de primer nivel son el punto de partida necesario para la formación de
constructos de segundo nivel. La adecuación de los procedimientos de medida depende, en cierto
modo, de la forma en que se salve la sima entre los dos niveles (una sima que se hace manifiesta
con demasiada frecuencia cuando comparamos los problemas precientíficamente articulados de la
vida social con sus “soluciones” cuantificadas). Las dificultades son particularmente acuciantes
cuando los rasgos relevantes de la vida diaria están construidos ellos mismos de forma ajena a
toda consideración de tipo cuantitativo, porque entonces la “exigencia abstracta de medir los
hechos sociales” no encuentra punto de contacto obvio en los constructos de primer nivel”.
58
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.158
59
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.162: “El sistema de acción en que el científico
social se mueve como actor se encuentra a otro nivel; se trata por lo general de un segmento del
sistema de la ciencia, y en todo caso no coincide con el sistema de acción observado. En este
32

todavia, tem de examinar as pretensões de validade como se fosse um


participante virtual60. Uma descrição de uma demanda pública, a partir de um
topos de afastamento do fenômeno, terá como conteúdo uma descrição de
participantes que tentam provocar influência sobre outros em termos de decisões
vinculantes para toda a sociedade. Isso, por óbvio, é uma descrição
extremamente pobre, porque não examinou os motivos da demanda, por
exemplo. Tal exame implicaria a posição de um participante virtual, que tenta
entender o que se passa em termos conteudísticos61. Assim, o intérprete tem de
levar a sério os proferimentos, e não atribuí-los uma mera preferência subjetiva. O
contraponto de se levar a sério os participantes é o de que o observador já não
tem privilégio algum perante a situação dada, de modo que sua descrição não
será mais ou menos objetiva que a dos participantes.

Habermas acrescenta, por outro lado, que as mesmas estruturas da


linguagem ordinária que possibilitam o entendimento de algo possibilitam o
controle reflexivo do processo de entendimento. I.e., a compreensão traz consigo
o potencial de sua própria crítica. Se a critica se dá comunicativamente, o
problema da objetividade da observação não pode se dar recorrendo à figura de
um observador desinteressado, mas sim através de um exame crítico
comunitário62.

Essas construções vão levando ao progressivo abandono da diferença de


orientação antes mencionada. O “participante virtual”, como estudioso, também

último el científico social participa, por así decirlo, despojándose de sus atributos de actor y
concentrándose, como hablante y oyente, exclusivamente en el proceso de entendimiento [grifos
do autor]”.
60
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta Lingüístico-pragmática na Filosofia
Contemporânea. São Paulo: Loyola, 2001 p.326.
61
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.163: “Sólo entendemos un acto de habla si
sabemos qué lo hace aceptable. Pero ¿de ónde podría sacer el intérprete este saber si no es el
del contexto de comunicación que está observando o de contextos comparables? Sólo puede
entender el significado de los actos comunicativos porque éstos están insertos en un contexto de
acción orientada al entendimiento – ésta es la idea central de Wittgenstein y el punto de partida de
su teoría del significado como uso -. El intérprete observa bajo qué condiciones son aceptadas
como válidas las manifestaciones simbólicas y cuándo son aceptadas o rechazadas las
pretensiones de validez que esas manifestaciones llevan anejas, viendo cuándo los planes de
acción quedan rotas por falta de consenso las conexiones entre las acciones de los diversos
actores”.
62
DUTRA, Delamar José Volpato. Razão e Consenso em Habermas. Florianópolis: UFSC, 2005.
p.89.
33

acaba engajando-se na formação dos consensos:

En las comunicaciones cotidianas una manifestación nunca tiene


significado completo por si misma, sino que recibe parte de su contenido
semántico del contexto cuya comprensión el hablante supone en el
oyente. También el intérprete tiene que penetrar en ese plexo de
referencias como participante en la interacción. El momento exploratorio,
orientado al conocimiento, no puede separarse del momento creativo,
constructivo, orientado hacia la producción de un consenso. Pues el
intérprete no puede hacerse con la comprensión del contexto de la que
depende la comprensión de una manifestación ubicada en él si no toma
parte en el proceso de formación y reproducción de ese contexto.
Tampoco el observador científico goza de un acceso privilegiado al
ámbito objetual, sino que ha de servirse de los procedimientos de
interpretación que domina intituitivamente y que adquirió de forma no
63
reflexiva como miembro de su grupo social .

A partir dessas considerações Habermas, inicia a fundamentação de uma


hermenêutica profunda. Essa hermenêutica toma os seus pressupostos do caso
limite de uma comunicação que não fora bem sucedida. O intérprete que quer
interpretar algo terá de investigar tanto seu mundo subjetivo quanto o possível do
falante, de modo a se verificar se comungam do mesmo contexto vital. Terá ainda
de investigar as condições das comunicações para ver se foram preenchidas. Isso
significa que “el intérprete entiende, pues, el significado de un texto en la medida
en que intelige por qué el autor se creyó con derecho a hacer”64 afirmações
verdadeiras, tomar determinadas normas como corretas e manifestar vivências
como verazes. O intérprete, por mais “opacas”, no linguajar de Habermas, que
sejam as manifestações do outro, terá de pressupor, salvo melhor argumento, a
racionalidade da comunicação alheia, pena de não se perfectibilizar as
comunicações em geral65. Mas o entendimento da comunicação não bem-
sucedida vai ocorrer apenas quando o intérprete puder explicar por que não são
plausíveis as razões do falante em seu contexto66. Nesta seara, Habermas critica

63
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.175-176.
64
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.184.
65
HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada. São Paulo:
Tempo Brasileiro, 2002. p.79: "Nesta posição é enfatizado que o princípio da indulgência (ou
melhor, da "magnanimidade"), introduzido metodologicamente, obriga um intérprete a imputar a
um falante estrangeiro, como disposição de comportamento, "racionalidade" a partir da
perspectiva observacional. Esta assunção, sem dúvida, não deve ser confundida com uma
suposição de racionalidade considerada performativamente pelos participantes. Em um caso, o
conceito de racionalidade foi utilizado descritivamente; no outro, normativamente".
66
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.185: “Con otras palabras: el intérpretre está
34

Gadamer como sequaz de um giro unilateral, ou seja, o intérprete aprende do


falante; este, todavia, da perspectiva do intérprete, nada aprende. “El saber
encarnado en el texto es en principio, así piensa Gadamer, superior al del
intérprete”67.

Habermas reconhece as conclusões metodológicas da hermenêutica68,


mas critica a sinonímia entre entendimento e acordo com relação à coisa. Essa
vinculação à tradição ou ao contexto não explica, porém, a pretensão de uma
objetividade que se pretende, ultrapasse o contexto, ou seja, perfectibilize
conceitos básicos e gerais.

Ni desde el punto de vista metateórico ni desde el punto de vista


metodológico cabría suponer objetividad alguna al conocimiento
sociológico si los conceptos de acción comunicativa y de interpretación,
conceptos que están relacionados el uno con el otro, sólo fueran
expresión de una perspectiva de racionalidad ligada a una determinada
69
tradición cultural .

Para que a categoria da razão comunicativa seja útil em termos de


abordagem social, ela tem de ser universal. Como Habermas mesmo confessa,
esta é uma empreitada deveras forte para quem não opera com respaldo
metafísico, como ele, e tampouco tem a pretensão de fundamentação última,
como a pragmática-transcendental70. Habermas pretende fazer isso através de
três operações de fundamentação, quais sejam: a) o desenvolvimento de uma
pragmática formal capaz de reconstruir hipoteticamente o saber-como dos atores
em seus proferimentos cotidianos; b) avaliar os frutos de tal pragmática mediante
seu contraste com casos extremos permitindo a avaliação dos ruídos de

obligado a mantener la actitud realizativa que adopta como agente comunicativo, aun en el caso
em que se pregunta, y precisamente cuando se pregunta, por los presupuestos que subyacen a un
texto que a un texto que no entendemos”.
67
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.187.
68
Quais sejam: a de que só se conhece o significado de algo como participante virtual; que isto só
é possível a partir da existência de uma pré-compreensão em uma situação histórica; mas isto não
faz com que a interpretação seja relativizada; que faz parte de uma ação orientada ao
entendimento a pressuposição de racionalidade do falante; da necessidade de articulação entre os
diferentes mundos da vida que se põem à disposição crítica e; que o proferimento é passível de
crítica. HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.184.
69
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.191.
70
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.192.
35

linguagem, bem como contrastando essas construções com uma antropogênese


do conhecimento que ligue aprendizagem individual e social71; bem como em c)
vista do tamanho desta empreitada, Habermas vai aproveitar os fundamentos
teóricos que já existem em termos de sociologia, ou seja, “una historia de la teoría
sociológica realizada con intención sistemática”72. Essas construções, neste
trabalho, estão dispersas de maneira assistemática, muito embora sigam, no
geral, de maneira predominante, a linha da teoria da ação comunicativa. É com
base nestes referenciais que este trabalho se constrói.

Assentadas as bases da racionalidade, torna-se possível, adiante, delimitar


os pressupostos constitutivos da comunicação, isto é, o que a torna possível, bem
como a delimitação categorial, ou seja, as tipologias utilizadas nesta problemática.

1.4 Pressupostos constitutivos da comunicação e


delimitação categorial do agir comunicativo

O debate de Habermas acerca da comunicação e da tipologia da ação é


interessante para os fins de desvendamento da Gestão Pública Compartida em
dois sentidos: o primeiro, e principal, é que estas são as bases epistemológicas
tanto da observação que será feita do Direito quanto de sua fundamentação. O
segundo é que a questão da comunicação está referenciada diretamente à
possibilidade de uma Gestão Pública Compartida, como será visto no transcorrer
do trabalho. Habermas inicia seus estudos de comunicação através de uma
dialética com a semântica intencional. Para esta tradição, a comunicação é
possível quando se entende a intenção comunicativa de outrem com ajuda de
indícios. O intento de tal semântica fracassa, porque esta semântica não percebe
a diferença sutil entre o que se quer dizer a partir de um signo x ou qual a

71
THOMPSON, John B. Critical Hermeneutics: a study in the thought of Paul Ricoeur and Jürgen
Habermas. Cambridge University Press: New York, 1990. p.138: “There is a close connection
between the development of individual consciousness and the evolution of forms of collective
identity”.
72
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.194.
36

intenção em se usar o signo x. O reconhecimento do ouvinte da intenção do


falante em comunicar-se não leva necessariamente ao conhecimento acerca do
que se comunica. Habermas, além destes desenvolvimentos, incorpora os
desenvolvimentos de Karl Bühler, Peirce, Morris e Carnap em direção a uma
pragmática da comunicação, em um caminho que passa também pelos dois
Wittgenstein, Heidegger, Gadamer e Karl-Otto Apel. É com Austin que Habermas
dá um passo decisivo a uma pragmática formal, a partir da noção de atos de fala.

O mistério da filosofia pragmática é explicar a comunicação e os eventos


sociais a partir de como se forma um vinculo73 (ilocucionário) entre dois falantes
racionais, que sabem da existência de três mundos diferentes (objetivo, subjetivo
e social) e que conseguem compartilhá-los a fim de defender e criticar pretensões
de validez orientadas à verdade, à retidão e à veracidade. A partir daí é possível
distinguir, de maneira compreensiva, os atos de fala presentes nas distintas
línguas74.

Esta fundamentação inicia a partir tipologia da ação weberiana. Em


realidade, esta tipologia é reorganizada por Habermas, acrescentando de maneira
explícita uma ação comunicacional, latente não só na obra de Weber mas
também na de todos os autores modernos, os quais não tornaram explícitas suas
posições por várias razões, dentre elas um ceticismo cognitivo, ético, ou um
unilateralismo cientificista, etc75. Em realidade, e esta é uma avaliação do autor
deste trabalho, Habermas parece continuar o labor intelectual de um projeto
inacabado de uma modernidade que busca a emancipação, ou condução
consciente da vida e da comunidade, as quais foram, nas diferentes
oportunidades, eclipsadas por diferentes concepções instrumentais (notadamente
hoje as teorias pós-modernas assumem este papel).

A ação orientada ao êxito de fins é dividida em não-social (instrumental) e

73
DUTRA, Delamar José Volpato. Razão e Consenso em Habermas. Florianópolis: UFSC, 2005.
p.48.
74
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.358.
75
No livro “O Pensamento Filosófico da Modernidade” Habermas faz esta reconstrução de buscar
em cada um dos autores modernos a latência de um pensamento comunicacional, os quais foram
esquecidos por diferentes razões.
37

social (estratégica76), mas, paralelamente a estas, aparece um outro tipo de ação,


que é a ação comunicativa.

Situação da ação/ Ação orientada ao êxito/ Ação orientada ao


orientação da ação com vistas a fins entendimento

Não-social Ação instrumental X

Social Ação estratégica Ação comunicativa

Tabela 2 – Orientação da ação77

A ação instrumental é aquela a partir da qual, com fins bem definidos, se


emprega os meios técnicos para a obtenção do resultado pretendido, sem uma
intervenção social imediata (por óbvio, o material de que se obtém os fins e a
aprendizagem que subjaz a ação instrumental são sociais, mas mediatamente)78.
O melhor exemplo é o trabalho mecânico. A ação estratégica é uma relação social
e, portanto, está diretamente ligada à comunicação com o outro. Por exemplo, a
observação recíproca de contratantes pretendendo manter sua melhor vantagem
em dado negócio. Finalmente, na ação comunicativa os atores afastam-se do
cálculo centrado em si para compartilhar planos de ação com o outro79. Habermas

76
MCCARTHY, Thomas. La Teoría Crítica de Jürgen Habermas. Madrid: Tecnos, 1998. p.50:“La
acción racional con respecto a fines en sentido lato incluye la acción estratégica. Esta está ligada
a normas consensuales (las “reglas del juego”) y tiene lugar en el plano de la intersubjetividad (los
“jugadores” son sujetos capaces de seguir sus propias estrategias)” [...] En un sentido lato la
acción estratégica puede ser incluida como una forma restringida de interacción social”.
77
Tabela adaptada de HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad
de la acción y racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.366.
78
PIZZI, Jovino. Ética do Discurso: a racionalidade ético-comunicativa. Porto Alegre: Edipucrs,
1994. p.19: “Horkheimer e Adorno não negam que a razão instrumental tem, em si mesma, certa
possibilidade de emancipação. Esta é, porém, uma tentativa eivada de uma fé ingênua nas
ciências empíricas que, ao término de tudo, quase sempre recai no mito, na barbárie e na
dominação. A razão instrumental determina um saber voltado para a técnica e a dominação da
natureza e dos homens, tolhendo qualquer tentativa de promover uma situação na qual os sujeitos
possam almejar a verdade. Somente com a transformação dos mecanismos da sociedade técnico-
científica é possível criar condições para que proponentes e oponentes possam discutir “com
razões” qual pretensão de verdade se impõe e faz valer. Com essa mudança, todos os membros
da comunidade comunicativa podem afirmar ou negar os proferimentos enunciados”.
79
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
38

esclarece que a orientação do agir se esclarece a partir dos participantes


mesmos, mas não a nível psicológico (a final, a teoria habermasiana tem
predominância sociológica), mas sim ao nível de reconstrução do saber intuitivo
que já orienta os participantes em sua interação cotidiana.

A ação comunicativa80 caracteriza-se pela sua possibilidade de


entendimento. O entendimento é “un proceso de obtención de un acuerdo entre
sujetos lingüística e interactivamente competentes”81. Note-se que as pessoas
devem perceber o acordo como válido, e não meramente como faticamente
vigente. Isso inclui, deste modo, uma tomada de postura. Essa postura manifesta-
se na produção de convicções, convicções estas reputadas racionais por que
elaboradas de maneira livre de coações e estratégias. Mais adiante, esta idéia de
necessidade de tomada de postura vai fundamentar a idéia de uma perspectiva
crítica diante do Direito e da Gestão Pública Compartida.

Parte dessa interação pode ser explicada a partir da estrutura do ato de


fala. Habermas, como é sabido, é influenciado por Austin nesta seara.
Reorganiza, contudo, a teoria deste, de modo a tornar uno o ato de fala, muito
embora se distingam dois momentos, em um prisma analítico. Um ato

racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.367: “A una acción orientada al éxito la llamamos
instrumental cuando la consideramos bajo el aspecto de observancia de reglas de acción técnicas
y evaluamos el grado de eficacia de la intervención que esa acción representa en un contexto de
estados y sucesos; y a una acción orientada al éxito la llamamos estratégica cuando la
consideramos bajo el aspecto de observancia de reglas de la elección racional y evaluamos su
grado de influencia sobre las decisiones de un oponente racional. Las acciones estratégicas
pueden ir asociadas a interacciones sociales. Las acciones estratégicas representan, ellas
mismas, acciones sociales. Hablo, en cambio, de acciones comunicativas cuando los planos de
acción de los actores implicados no se coordinan a través de un cálculo egocéntrico de resultados,
sino mediante actos de entendimiento. En la acción comunicativa los participantes no se orientan
primariamente al propio éxito; antes persiguen sus fines individuales bajo la condición de que sus
respectivos planes de acción puedan armonizarse entre sí sobre la base de una definición
compartida de la situación. De ahí que la negociación de definiciones de la situación sea un
componente esencial de la tarea interpretativa que la acción comunicativa requiere [grifos do
autor]”.
80
HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada. São Paulo:
Tempo Brasileiro, 2002. p.72: "A expressão "agir comunicativo" indica aquelas interações sociais
para as quais o uso da linguagem orientado para o entendimento ultrapassa um papel
coordenador da ação. Os pressupostos idealizadores imigram, por cima da comunicação
lingüística, para dentro do agir orientado para o entendimento. Por isso, a teoria da linguagem, no
que concerne à semântica, que esclarece o sentido das expressões lingüísticas com base nas
condições do entendimento lingüístico, é o lugar no qual uma pragmática forma de herança
kantiana se poderia encontrar com pesquisas do lado analítico".
81
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.368.
39

comunicativo entabulado a partir de ação comunicativa terá um aspecto


locucionário, de conteúdo proposicional, bem como um aspecto ilocucionário, cujo
conteúdo é o vínculo para a ação que é gerado a partir da comunicação. Este
vínculo, como estamos a tratar de uma ação comunicativa, é público. E aí reside
uma diferença para a ação instrumental: esta é perloucionária; i.e, os efeitos de
coordenação presentes na linguagem são privados, uma vez que a orientação
para a ação não é a cooperação82, e sim a influenciação. Esta influenciação só é
possível porque a comunicação é usada, comumente, de maneira comunicativa83.
A comunicação, desta maneira, pode, sem dúvida nenhuma ser utilizada
estrategicamente. Abaixo serão analisadas, com mais detalhes, estas
construções visando responder o desafio de como é possível o entendimento a
partir de atos de fala e com isso explicar o fenômeno cotidiano da coordenação de
ações a partir da linguagem. Obviamente que estas conclusões terão de,
posteriormente, serem decodificadas em uma metodologia para o Direito, mas
salta aos olhos a utilidade de uma teoria pragmática da ação para o exame do
Direito.

Em uma ação comunicativa os atores buscam um acordo que sirva de base


para a coordenação das ações individuais. No que segue, alguns exemplos84 de
atos de fala, para os quais se apresentam as respostas:

[1] Prometo que apoiarei a demanda;

[2] Peço que ceda neste ponto;


82
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.378: “Cuento, pues, como acción comunicativa
aquellas interacciones mediadas lingüísticamente en que todos los parcipantes persiguen con sus
actos de habla fines ilocucionários y sólo fines ilocucionarios [grifos do autor]”.
83
HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-metafísico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. p.
73: "Esse caso de agir estratégico latente oferece um exemplo interessante, porém, deficiente
para o modo como o mecanismo de entendimento trabalha na construção de interações: o ator
somente conseguirá atingir seu objetivo estratégico de cumplicidade numa ação criminosa na
forma de um efeito perlocucionário, não público, se sua ordem puder produzir um sucesso
ilocucionário; ora, isso só será possível, se o falante afirmar que irá seguir sem reservas o objetivo
ilocucionário de seu ato de fala, portanto, se deixar o ouvinte na ignorância sobre o real e
unilateral rompimento dos pressupostos do agir orientado ao entendimento. O uso estratégico
latente da linguagem vive parasitariamente do uso normal da linguagem, porque ele somente pode
funcionar quando pelo menos uma das partes toma como ponto de partida que a linguagem está
sendo utilizada no sentido do entendimento [grifos do autor]”.
84
Adaptados para situações relativas a demandas públicas de HABERMAS, Jürgen. Teoria de la
Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y racionalización social. Madrid: Taurus, 1999.
p.379.
40

[3] Confesso que não concordo com esta medida administrativa;

[4] Espero que exista espaço para isto no orçamento deste ano.

As posturas afirmativas a estes atos de fala estariam assim estruturadas:

[1´] Assim esperamos...

[2´] Assim o farei...

[3’] Acredito em você...

[4´] Contamos com isso...

O interessante é que Habermas faz notar que a comunicação não é apenas


o reconhecimento do conteúdo semântico do ato, mas sim uma complexidade que
abrange três momentos, onde o ouvinte aceita a oferta feita pelo falante com um
“acto de habla y funda um acuerdo que se refiere, de um lado, al contenido de la
emisión, y, de outro, a las garantias inmanentes al acto de habla y a las
obligaciones para la interacción posterior [grifos do autor]”85. Destaque-se, então,
a complexidade de um ato de fala, o qual abrange não só o conteúdo semântico
proposicional, mas também a garantia de racionalidade que oferece o falante86 e
as obrigações de coerência que se projetam para o futuro. Essas garantias para o
futuro são observáveis em uma terceira perspectiva, permitindo que o
conhecimento acerca da comunicação desborde da relação direta entre os
participantes. Mas o mais importante é: em uma ação comunicativa, a
comunicação de agora vincula a ação e as cadeias de interação do indivíduo para
o futuro.

Essas constatações se conectam com as pretensões de validade

85
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.379.
86
PIZZI, Jovino. Ética do Discurso: a racionalidade ético-comunicativa. Porto Alegre: Edipucrs,
1994. p. 59: “A teoria da comunicação exige “algo mais”, pois não basta apontar a identidade a
partir da reciprocidade das expectativas comuns entre os sujeitos da interação. A reciprocidade
pressupõe que o sujeito comunicativo tenha a consciência de que está diante de um outro que é
também sujeito comunicativo, capaz de linguagem e ação. Esses “eus”, através do
reconhecimento recíproco, formam um “nós”, que não está isolado, mas está diante de outros
sujeitos (“eles”), que são participantes potenciais no diálogo”.
41

universais, vistas mais acima, porque, antes de tudo, o ouvinte tem de entender o
conteúdo proposicional, tomar postura com um “sim” ou um “não” diante da oferta
de ato de fala e, em seguida, cumprir com as obrigações assumidas. Assim,

El plano pragmático que representa este acuerdo dotado de efectos


coordinadores establece una conexión entre el plano semántico de la
comprensión del significado y el plano empírico del desarrollo
subsiguiente (dependiente del contexto) de la secuencia interactiva para
87
la que ese acuerdo resulta relevante [grifos do autor] .

O entendimento de um ato de fala vai se dar quando se sabe o que o faz


aceitável. Aceitáveis são aqueles atos que cumprem as condições necessárias
para que um ouvinte tome uma postura perante ele88. Essas condições não são
monológicas, mas sim condições só possíveis a partir de um reconhecimento
intersubjetivo da pretensão fundamentada, o que implica na capacidade do
ouvinte de não só parafrasear o conteúdo proposicional, mas também de
antecipar a ação que se pretende. Por exemplo, o entendimento de um texto legal
não prescinde só das condições de uma oferta racional de fala, mas também
aquele que entende tem de ser capaz de antecipar, em termos de coordenação
na ação, o que se quer a partir daquele ato de fala. Essa antecipação se dá a
partir do conhecimento das razões através das quais o falante profere algo e por
que o destinatário é capaz de empreender a ilocução do ato. Retomando o
exemplo anterior: no ato de fala “espero que exista espaço no orçamento para isto
este ano” implica que o falante cumpra as condições de fala racionais,
oferecendo-o inteligivelmente, verazmente, verdadeiramente e corretamente. O
ouvinte entende o que se quiser não só pelo domínio do sistema lingüístico, mas
também por que compreende o porquê do falante sentir-se autorizado a dizer
aquilo, bem como compreende qual o seu papel nesta interação, solidarizando-se
ou não com aquela expectativa.

Assim, em [1], o ouvinte coordena sua ação porque entende o que se quer

87
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.380.
88
HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada. São Paulo:
Tempo Brasileiro, 2002. p.79: "[...] a suposição refutável de que no campo dos falantes
observáveis, em regra, estes se relacionam racionalmente. Isso significa que geralmente
acreditam no que dizem e nas conseqüências de suas asserções não serem refutadas. Sob estes
pressupostos, o intérprete pode partir do fato de que os falantes e observadores, na maioria das
situações, igualmente como ele próprio, observam e opinam, de tal forma que ambos os lados
concordam em um grande número de convicções".
42

fazer a partir da dada demanda; em [2] conhecem as conseqüências da ação; em


[3] comungam de uma vivência e em [4] compartilham prognósticos, entendendo
o porquê de o falante tê-lo como razoável. De todo modo, persistem algumas
assimetrias entre os atos de fala, as quais possibilitam sua categorização nos
tipos89.

Paralelamente aos atos perlocucionários, tem-se os atos abertos, que


perseguem fins ilocucionários, mas onde não se defendem pretensões de validez
suscetíveis de crítica. Trata-se de ordens simples, como a dos pais perante os
filhos menores, nas quais a ilocução é clara, mas não há acordo devido à
menoridade de uma das partes90.

Um ato de fala pode, pragmaticamente, ser colocado em juízo diante de


vários aspectos. Suponhamos que um movimento social assim demande perante
o poder público em uma situação de Gestão Pública Compartida (no caso,
poderia ser nas reuniões para elaboração ou revisão do plano diretor): “existe um
terreno vago no bairro ‘Trinta e Três’ e lá é possível realizar uma operação urbana
consorciada”. Por óbvio, seria possível objetar-se quanto à correção da
proposição diante dos usos lingüísticos da comunidade. Neste caso, isto não seria
problema. Todavia, seria possível pôr em questão a retidão de conformidade às
normas com a objeção de “o orçamento já foi aprovado”, “este não é o foro
correto”, “o plano diretor só será revisado daqui a três anos”; ou então a
veracidade: “este movimento é ilegítimo, pois só pensa em seu benefício próprio”;
ou então acerca da verdade subjacente: “não existe déficit de moradias”,”não
existe terreno vago”.

En los contextos de acción comunicativa los actos de habla pueden


siempre ser rechazados bajo cada uno de esos tres aspectos: bajo el

89
DUTRA, Delamar José Volpato. Razão e Consenso em Habermas. Florianópolis: UFSC, 2005.
p.53.
90
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.391: “Para la acción comunicativa sólo pueden
considerarse, pues, determinantes aquellos actos de habla a los que el hablante vincula
pretensiones de validez susceptibles de crítica. En los demás casos, cuando un hablante persigue
con actos perlocucionarios fines no declarados frente a los que oyente no puede tomar postura, o
cuando persigue fines ilocucionarios frente a los que el oyente, como en el caso de los
imperativos, no puede tomar una postura basada en razones, permanece baldío el potencial que la
comunicación lingüística siempre tiene para crear un vínculo basado en la fuerza de convicción
que poseen las razones [grifos do autor]”.
43

aspecto de la rectitud que el hablante reclama para su acción en relación


con un determinado contexto normativo (e indirectamente, por tanto,
para esas normas mismas); bajo el aspecto de la veracidad que el
hablante reclama para la postración que hace de unas vivencias
subjetivas a las que él tiene un acceso privilegiado; y finalmente bajo el
aspecto de la verdad que con su emisión el hablante reclama para un
enunciado (o, en caso de actos de habla no constatativos, para las
presuposiciones de existencia anejas al contenido del enunciado
91
nominalizado) .

Deste modo, existe também a correspondência com os três mundos92


diferenciados, pois o entendimento remete aos pressupostos factuais de um
mundo objetivo, à normatização de um mundo social e à veracidade de um
mundo subjetivo. De outro lado, sob o prisma de sua função, os atos de fala
estabelecem e renovam constatações acerca do mundo objetivo; reproduzem um
saber cultural e prático-social e comungam e expressam vivências.

O não aceitar um ato de fala implica justamente uma oposição a estas três
pretensões, isto é, objeta-se um ato de fala ou porque não é correto, ou veraz, ou
verdadeiro. Todavia, como identificar o tipo de um ato de fala?

Habermas responde à questão dizendo que existe uma orientação


predominante em dado ato de fala, agrupando determinados verbos sob a
correção, verdade e vivência93. Aproxima-se de Weber ao lançar atos puros (ou
idealizados, em suas mesmas palavras) de fala, mediante os quais é possível
analisar em separado as pretensões de validade. Atos de fala constatativos
utilizam-se de orações elementares enunciativas; expressivos de orações
elementares de vivências; e regulativos em orações exigíveis ou de intenção.

91
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.393.
92
DUTRA, Delamar José Volpato. Razão e Consenso em Habermas. Florianópolis: UFSC, 2005.
p.51.
93
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.394: “Pero aunque los actos de habla orientados
hacia el entendimiento están insertos siempre, según lo dicho, en una red compleja de referencias
al mundo, de su papel ilocucionario (y, en condiciones estándar, del si, del significado de su
componente ilocucionario) se infiere bajo qué aspecto de validez quiere el hablante que se
entienda preferentemente su emisión. Cuando hace un enunciado, cuenta algo, expone algo,
predice algo, o discute algo, etc., busca un acuerdo con el oyente sobre la base del
reconocimiento de una pretensión de verdad. Cuando el hablante emite una oración de vivencia,
descubre, revela, confiesa, manifiesta, etc., algo subjetivo, el acuerdo sólo puede producirse sobre
la base del reconocimiento de una pretensión de veracidad. Cuando el hablante hace un mandato
o una promesa, nombra o exhorta a alguien, compra algo, se casa con alguien, etc., el acuerdo
depende de los participantes consideren normativamente correcta la acción [grifos do autor]”.
44

Daí os atos de fala poderem ser classificados, conforme Habermas, em


imperativos (onde existe uma ordem, mas não a defesa de uma pretensão de
validade), os constatativos, os regulativos (ordens com defesa de pretensão de
validade) e expressivos, além de atos comunicativos stritu sensu, onde se
tematizam as próprias condições da comunicação94. Trazendo novamente os atos
perlocucionários, temos um quadro de correspondência entre atos de fala e,
finalmente, ações sociais que se realizam a partir destes atos de fala:

Elementos Ação estratégica Conversação Ação regulada Ação


pragmáticos por normas dramatúrgica
formais/ tipos de
ação

Atos de fala Perlocuções, Constatativos Regulativos Expressivos


característicos imperativos

Funções da Influência por Exposição de Estabelecimento Apresentação de


linguagem sobre um estados de de relações si
oponente coisas interpessoais

Orientação da Orientada ao Orientada ao Orientado ao Orientado ao


ação êxito entendimento entendimento entendimento

Atitudes básicas Objetivante Objetivante De conformidade Expressiva


para com as
normas

Pretensões de (eficácia) Verdade Retidão Veracidade


validez

Relações com o Mundo objetivo Mundo objetivo Mundo social Mundo subjetivo
mundo

Tabela 3 – Tipos de ação e seus elementos pragmáticos95

Os tipos de ação e atos de fala não serão analisados em profundidade, a


não ser os normativos, mais adiante e em outro contexto.

94
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.416.
95
Adaptada de HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la
acción y racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.420.
45

Essas construções não têm relevância se não for possível transpor essas
descobertas da pragmática universal96 para uma empírica. No caso em questão,
trata-se de uma pragmática empírica relativa a demandas públicas. Habermas
explora uma série de procedimentos metodológicos a fim orientar tais demandas.
Neste trabalho, isto será feito, de forma superficial, mais adiante. Habermas fala
em um primeiro passo metodológico para uma pragmática empírica, o qual
consiste na observação de outras forças ilocucionárias, conexas com as
universais. Postula também que se deve examinar a forma de preenchimento
destes atos de fala, bem como as situações comunicativas, ambíguas. Por fim, a
análise da situação pragmática e do saber de fundo dos participantes.

É de se notar que Habermas percebe as ações constatativas, regulativas e


expressivas como um tipo fraco de ação comunicativa, uma vez que elas estão
voltadas ao entendimento. Existe um sentido forte de ação comunicativa que é
aquele onde as pretensões de validade são postas em dúvida, discutindo-se
acerca delas. Elas são alocadas em contraposição à ação instrumental e
estratégica. A pragmática formal pode ajudar a esclarecer as relações que se
colocam em nível instrumental e estratégico. Observe-se o quadro abaixo:

Ação social
Esquema a partir dos atos de fala
(interação com outros seres a partir da comunicação em um mundo
96
PINTO, compartilhado)
F. Cabral. Leituras de Habermas: modernidade e emancipação. Coimbra: Fora do
Texto, 1992. p.217: “Pode abordar-se a recepção Habermasiana da Filosofia da linguagem pelo
ângulo das funções pragmáticas universais da fala (descrição de estados de coisas,
estabelecimento de relações interpessoais e expressão das vivências do utilizador da língua) e
pela conexa tematização das respectivas exigências de validade (verdade proposicional, correção
normativa e veracidade ou autenticidade). Isto quer dizer que a Habermas interessa sobretudo a
Ação comunicativa
dimensão pragmática da(Ação que setendo
linguagem, utilizaeledaem vistaAção estratégica
a possibilidade de (Ação que se
“reconstruir, utilizadada
a partir
linguagem com o outro - categorias linguagem usando o outro)
base de validade do discurso, um conceito de razão não reduzido”. Este percurso acabará por
detalhadas
conduzi-lo à mais adiante)
proposta de uma pragmática universal (Universalpragmatik) como ciência
reconstrutiva das condições de possibilidade universais da intercompreensão ou – como ele mais
vezes repete – dos pressupostos universais e necessários sob os quais os sujeitos capazes de
falar e agir se entendem mutuamente sobre algo no mundo”.
Ação estratégica velada (Ação que se Ação abertamente estratégica (Ação que
utiliza da linguagem usando o outro, com a se utiliza da linguagem usando o outro,
aparência de se estar agindo sendo que é possível a este facilmente
comunicativamente) conhecer o caráter do ato de fala)
46

Figura 197

Para Habermas, a ideologia seria também a comunicação


sistematicamente distorcida, vista com mais detalhes adiante.

Esses saberes podem ser julgados a partir de diferentes pontos de vista.


Um saber instrumental, por exemplo, é criticado e transformado a partir de uma
crítica que se volta a esse saber em forma de mais conhecimento empírico. Em
um discurso constatativo, as conclusões são julgadas a partir de um discurso
teórico, o qual retroalimenta o discurso veritativo em teorias. As ações reguladas
por normas caem sob a crítica de um discurso prático, o qual se volta à sociedade
sob a forma de novas normas. Já os discursos expressivos estão sob a crítica de
discursos terapêuticos, os quais se transformam em uma melhor compreensão de
si mesmo. Habermas, como se vê, pensa que o conhecimento vai se acumulando
em uma progressão para melhor, devido à descentração individual e social
provocadas pela crítica98, possibilitada por uma razão situada historicamente mas

97
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p. 426.
98
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p. 427.
47

que possui pretensões universais99.

Tipos de ação Tipo de saber Forma de Tipo de saber


materializado argumentação transmitido

Ação teleológica / Saber utilizável em Discurso teórico Tecnologias,


técnicas e estratégias estratégias
Instrumental /
estratégica

Atos de fala Saber teórico-empírico Discurso teórico Teorias


constatativos
(conversação)

Ação regulada por Saber prático-Moral Discurso prático Representações


normas morais e jurídicas

Ação dramatúrgica Saber prático-estético Crítica terapêutica e Obras de arte,


estética conhecimento de si

Tabela 4 – Tipos de ação e outras variáveis100

A tabela acima demonstra os tipos de saber que envolvem os diferentes


tipos de ação, quais são as formas de argumentação que adotam e os saberes
que são transmitidos a partir dessas ações.

Estas ações materializam-se através da linguagem, a qual possui diversas


funções sociais. Essas funções sociais são de extrema relevância para o
entendimento da temática e, por isso, serão objeto de um tópico específico a
seguir.

1.5 Linguagem como meio de integração social,


socialização e reprodução cultural

99
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta Lingüístico-pragmática na Filosofia
Contemporânea. São Paulo: Loyola, 2001 p.347: “A especificidade da razão comunicativa, como
Habermas a entende, é que ela é, ao mesmo tempo, imanente, isto é, só encontrável em
contextos concretos dos jogos de linguagem e instituições da vida humana, mas, por outro lado,
transcendente, ou seja, é igualmente uma “idéia regulativa”, na qual nos orientamos, quando
criticamos nossa vida histórica”.
100
Adaptado de HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la
acción y racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.428.
48

Habermas pretende fundamentar a linguagem como meio para o


entendimento que gera a integração social, a socialização e a reprodução
cultural101. Como a Gestão Compartida ocorre por meio da comunicação, este
tema guarda o maior interesse. Para tanto, vale-se das construções de Mead. A
linguagem é um meio de interação mediada simbolicamente, i.e., trata-se de
utilizar símbolos para a formação de significados idênticos aos participantes da
interação. Muito embora a troca de gestos em observações recíprocas ocorram
com muita freqüência no mundo animal, os avanços em complexidade
comunicativa dar-se-ão a partir da habilidade de assunção do papel do outro, ou
seja, uma reflexividade para com o externo. Não é, todavia, o incremento da
subjetividade de sujeitos que se observam entre si, mas sim a formação de
consciências capazes de formar intersubjetividade, que possibilitam o surgimento
de sistemas lingüísticos complexos102.

Habermas critica Mead por este fundamentar a troca lingüística em termos


de subjetividade, ou seja, a fundamentação da comunicação como a formação de
uma expectativa de como o outro vai reagir a um dado estímulo provocado pelo
falante. Trata-se de um enfoque darwinista, onde

[...] la presión a adaptarse que los participantes en interacciones más


complejas, ya sea al verse forzados a cooperar, o, sobre todo, en los
casos de conflicto, ejercen unos sobre otros acaba premiando las
velocidades de reacción más elevadas, quedando en ventaja aquellos
participantes en la interacción que aprenden no sólo a interpretar los
gestos del otro a la luz de las propias acciones de base institintiva, sino a
entender ya el significado del propio gesto a la luz de las reacciones que
103
cabe esperar del otro .

Isso não leva necessariamente a se supor que, para falante e ouvinte,


exista um significado compartido. Demonstra, apenas, que o mesmo signo
provoca comportamentos semelhantes em ambos. Habermas, com Tugendhat,
acrescenta a idéia de reconhecimento do outro como intérprete do falante:
101
PIZZI, Jovino. Ética do Discurso: a racionalidade ético-comunicativa. Porto Alegre: Edipucrs,
1994. p.118: “Para Habermas, a linguagem preenche, portanto, três funções: a) a de reprodução
cultural ou a atualização das tradições, baseada na perspectiva da hermenêutica filosófica de
Gadamer; b) a integração social, ou a coordenação dos planos de diferentes atores na intenção
social, própria do agir comunicativo de Habermas; e c) a socialização da interpretação cultural das
necessidades, na linha da Psicologia Social de Mead”.
102
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón funcionalista.
Madrid: Taurus, 1999. p.20.
103
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón funcionalista.
Madrid: Taurus, 1999. p.22.
49

Después que el primer organismo ha aprendido a interpretar los propios


gestos de forma igual a como lo hace el otro organismo, no puede evitar
producir el gesto con la expectativa de que tenga para el segundo
organismo un significado determinado. Pero con esta conciencia cambia
la actitud del primer organismo respecto al segundo. Este aparece ahora
como un objeto social que ya no se limita reaccionar adaptativamente al
gesto de uno, sino que con su reacción comportamental da expresión a
una interpretación de ese gesto. El segundo organismo aparece ahora
ante el primero como intérprete del comportamiento de este último, es
decir, bajo un concepto distinto, con lo cual cambia también su actitud
frente a él. El primer organismo se relaciona ahora con el otro como con
un destinatario que interpreta de una determinada forma el gesto que se
le hace; y esto significa que de aquí en adelante hará su ademán con
104
una intención comunicativa .

A partir daí, os falantes passam a se relacionar uns com os outros em uma


atitude comunicativa, e não adaptativa. Todavia, não basta apenas observar
comportamentos semelhantes e agir com intenção comunicativa, como já visto
acima. O significado só se perfectibiliza quando o falante sabe como deveria
reagir diante do mesmo gesto significante. Esta última proposição se prova a
partir da decepção que surge diante da reação não-esperada. Para se evitar a
decepção tem-se de seguir as regras que possibilitam a comunicação.

Resumindo, pode-se dizer que a formação do significado é possível por


que existe: 1) observação recíproca; 2) assunção de papéis de ouvinte e falante;
3) obediência às regras de uso do signo. Note-se que este processo é mediado
pelas estruturas do mundo da vida, o que não prejudica a possibilidade de um
conhecimento válido105. A preocupação agora é com o terceiro ponto, a partir do
qual é utilizado Wittgenstein. A proposição fundamental é a de que o signo deve
ser reconhecido como tal por aqueles que o utilizam. Como existem regras de seu
uso, essas regras devem ter validade intersubjetiva106. Existe, assim, uma

104
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón funcionalista.
Madrid: Taurus, 1999. p.24.
105
HABERMAS, Jürgen. A Ética da Discussão e a Questão da Verdade. São Paulo: Martins
Fontes, 2004. p.57:"Se o crescimento do conhecimento é uma função desses processos que
interagem entre si, é errôneo postular uma separação entre o momento "passivo" do "descobrir" e
os momentos ‘ativos' de construir, interpretar e justificar. Não há necessidade de "limpar" o
conhecimento humano dos elementos subjetivos e das mediações intersubjetivas, ou seja, dos
interesses práticos e das matizes da linguagem".
106
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón funcionalista.
Madrid: Taurus, 1999. p.28: “La utilización del mismo símbolo con un significado constante no
basta con que sea algo dado en sí, son que también debe ser algo reconocible por los que utilizan
ese símbolo. Y tal identidad de significado sólo puede venir asegurada mediante la validez
intersubjetiva de una regla que fije de modo “convencional” el significado de un signo [grifos do
autor]”.
50

conexão entre identidade de signo para os falantes e validez intersubjetiva107.

A compreensão de um signo está ligada à capacidade de seguir uma regra,


como no conhecido exemplo de um jogo de xadrez, só jogável por mais de uma
pessoa, onde ambas têm de conhecer as regras do tabuleiro. A constituição e a
reprodução de uma regra são intersubjetivas, mas o momento de internalização
não deixa de ser monológico, i.e., aquele que aprendeu a regra tem de ser capaz
de segui-la sozinho (muito embora irá precisar de outro para aplicá-la, ou seja,
utilizar o signo). A identidade de um significado não significa a identificação de um
mesmo objeto sob observações diversas por pessoas diversas, mas a unidade
que surge da diversidade a partir de convenções, as quais são parâmetro de
crítica108 quando se desvia destas. Se ambos conhecem a regra, um pode criticar
o comportamento o outro, permitindo a correção. Os participantes, desta maneira,
podem julgar a correção do cumprimento de uma regra pelo outro. Mas, para
tanto, aquele que julga tem de mostrar ao outro o seu erro, para que se chegue a
um acordo109.

Assim, o ouvinte dispõe de uma expectativa de que o falante conheça e


siga e regra, ao mesmo passo que o falante espera que o ouvinte reconheça sua
fala como o cumprimento de uma regra.

Essas construções podem ser exemplificadas em termos de lógica da

107
STIELTJES, Cláudio. Jürgen Habermas: A descontrução de uma teoria. Jabaquara: Germinal,
2001. p.139: “Habermas observa que a utilização de um símbolo sempre com o mesmo significado
não é algo dado por si; a utilização de um símbolo com significado constante só pode ser mantido
pelo reconhecimento do significado pelos participantes da interação que utilizam o símbolo.
Portanto, a identidade de significado só pode ser estabelecida e garantida mediante a validez
intersubjetiva de uma regra que fixe de modo convencional o significado de um signo”
108
HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada. São Paulo:
Tempo Brasileiro, 2002. p.85:"Assim não está claro como um pode saber do outro que este reage
aos mesmos objetos como ele próprio. Ambos devem, diante do outro, descobrir se têm em mente
os mesmos objetos. Devem se entender sobre isso. Então, no entanto, somente podem entrar em
uma comunicação correspondente com o outro, quanto utilizam o modelo de reação percebido
como semelhante (ou uma parte dele) igualmente como expressão simbólica, e quando se dirigem
ao outro como parceiro".
109
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón funcionalista.
Madrid: Taurus, 1999. p.31: “Sin esta posibilidad de crítica recíproca y de mutua instrucción
conducente a un acuerdo, no quedaría asegurada la identidad de las reglas. Para que un sujeto
pueda seguir una regla, lo que quiere decir: para que un sujeto pueda seguir la misma regla, ésta
ha de regir intersubjetivamente a los menos para dos sujetos [grifos do autor]”.
51

argumentação. Tem-se, assim110:

[1] Que o falante “movimento social”, através de um documento, produza a


emissão simbólica “precisamos obstruir o desmatamento das matas ciliares que
protegem este córrego” (esta emissão será chamada q), sendo regido uma regra
(R) intersubjetivamente valida para falante e ouvinte.

[2] O movimento social tem a intenção de cumprir em um dado contexto


(hermenêutico) uma expectativa de comportamento (EC) relacionada com (q) do
“poder público”.

[3] O “movimento social” espera também o julgamento crítico (EJ -


expectativa de julgamento) por parte do “poder público” de uma regra de
significado que rege a situação, que neste caso se delineia “demandas sociais”.

[4] O “movimento social” também pressupõe que, dadas as condições, os


atores do “poder público” também poderiam produzir emissão semelhante.

[5] E que também o “poder público” seria capaz de satisfazer a expectativa


de comportamento.

[6] E, finalmente, o “movimento social” pressupõe que o “poder público”


teria também a expectativa de juízo crítico por sua parte, onde o “movimento
social” seria capaz de entender a regra de linguagem.

Assim,

Esta secuencia puede repetirse cuantas veces se quiera hasta que uno
de los participantes cumpla la expectativa de reconocimiento del otro,
lleguen ambos a un consenso fundado a través de tomas de postura
críticas y estén seguros de que R rige intersubjetivamente, lo que quiere
111
decir: de que tiene un significado idéntico .

Neste exemplo, os falantes conhecem as regras que regem a interação.


Mas interessa também a uma teoria da sociedade a gênese destas regras de

110
Adaptado de HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón
funcionalista. Madrid: Taurus, 1999. p.32.
111
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón funcionalista.
Madrid: Taurus, 1999. p.33.
52

linguagem. Isto passa pela antecipação de posturas críticas diante dos


proferimentos alheios. Quando o ator é capaz de tal, é sinal de que apreendera de
maneira suficiente a práxis social.

Por outro lado, à medida que a sociedade vai se tornando mais complexa,
vão surgindo estruturas baseadas na linguagem que vão mais além de sua função
de interação e reprodução do saber, torna-se ela meio pelo qual (mediante atos
de entendimento) se estabilizam padrões de identidade de si e de competências
de interação. Esses padrões estruturais permitirão, além de uma interação
simples, ações comunicativas normativas. Esse é um passo além, em termos
qualitativos e de complexidade, da formação de signos válidos para os falantes.
Isso por que interações normativas relacionam-se com complexos de interações,
dependentes de um saber cultural112.

Con la diferenciación de los modos básicos, el lenguaje como medio en


que llegar a entenderse adquiere la capacidad de vincular la voluntad de
actores capaces de responder de sus actos. Ego puede ejercer esta
fuerza ilocucionaria sobre alter tan pronto como ambos están en
condiciones de orientar su acción por pretensiones de validez [grifos do
113
autor] .

Em atos normativos os atores têm de, ao mesmo tempo, referir-se a algo


no mundo objetivo e no mundo social. Note-se que existe um incremento em
termos de circunstâncias e informações que os atores têm de lidar com a
assunção de papéis recíprocos. Habermas descreve como isto ocorre com as
crianças em uma minudência que é prescindida para os fins que se pretende
neste trabalho, assim como sua análise da religião em Durkheim. Suas
conclusões, todavia, interessam: a linguagem, em ações comunicativas, também
é meio através do qual as tradições se perpetuam114. Por outro lado, o contraste e
o contato com os outros é fundamental para a formação de estruturas de
personalidade. Essa estrutura de apresentação de si para com os outros,
finalmente, completa a trilogia dos elementos dos atos de fala: componente
proposicional, ilocução e expressão. Eles formam uma unidade, mas, a nível

112
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón funcionalista.
Madrid: Taurus, 1999. p.42.
113
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón funcionalista.
Madrid: Taurus, 1999. p.43.
114
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta Lingüístico-pragmática na Filosofia
Contemporânea. São Paulo: Loyola, 2001 p.336.
53

analítico, são intercambiáveis. Por exemplo, toda ilocução pode ser descrita em
termos assertórico, i.e., propositivo passível de verdade. Isso significa que tal
elemento é passível de objetivação115, e pode, portanto, virar uma forma de saber
culturalmente transmitido. Assim, um ato de fala que nunca teria forma assertórica
na perspectiva do participante, como “prometo x”, é passível de objetivação como
“poder público prometeu X”, sendo esta proposição passível não de verificação da
veracidade, mas sim de verdade/inverdade. Isto é interessante partir de uma
perspectiva da Gestão Compartida, pois permite obervações racionais tanto das
perspectivas objetivantes quanto das performáticas dos proferimentos ali
levantados.

O câmbio também funciona sobre os outros aspectos do ato de fala. Por


exemplo, a proposição “a melhor aplicação da norma X é Y” pode ser analisada
sob o prisma da veracidade, como “o conselho crê que a melhor maneira de
aplicar X é Y”. Estas constatações permitem notar que se torna mais clara a linha
que separa os diferentes “mundos” para os atores, uma vez que, ao descreverem
os atos de fala sob diferentes enfoques, percebem as relações que essas
partículas possuem com diferentes “mundos”. Pelo lado normativo, a oração se
converte em um exame normativo das regras subjacentes à interação em um
dado contexto.

Por outro lado, e retomando a linha de argumentação evolutiva para


fundamentar a linguagem como meio de integração social, é possível notar o
incremento da possibilidade de uma ação crítica após o desencantamento do
mundo116. Todavia, existe um traço contínuo que liga as antigas práticas ao
mundo moderno. Habermas lê em Durkheim que à positividade que ultrapassa o

115
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón funcionalista.
Madrid: Taurus, 1999. p.97: “E lenguaje proposicionalmente diferenciado está estructurado de
modo que todo lo que en general puede decirse, puede también decirse en forma asertórica”.
116
CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva: Elementos da Filosofia
constitucional Contemporânea. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2000. p.92-93: “Habermas parte do
pressuposto de que o traço fundamental da modernidade é a configuração do indivíduo como
sujeito capaz de auto-reflexão e crítica, o que lhe permite exigir igualdade de respeito e
disponibilidade para o diálogo. A hermenêutica, em Habermas, designa precisamente o espaço da
auto-reflexão e da crítica, enquanto que a pragmática inclui o território discursivo cujo núcleo
central é o entendimento. É através da conjunção da hermenêutica e da pragmática, isto é, do
processo de auto-reflexão que se processa no âmbito da interação comunicativa – de vez que está
esgotado o paradigma da Filosofia da consciência que pressupõe um sujeito racional isolado –
que se constitui a formação racional da vontade”.
54

dogmatismo no âmbito do Direito acrescenta-se uma idéia de legitimidade da


ordem vigente.

Desde la perspectiva de Max Weber podría parecer que lo que


llanamente está exigiendo aquí Durkheim es justificación material para el
derecho formal; pero en realidad su argumentación apunta en una
dirección distinta. Lo que Durkheim quiere hacer ver es que el carácter
obligatorio de los contratos no puede deducirse de la voluntariedad con
que las partes llegan a un convenio en vista de sus intereses. La fuerza
vinculante de un acuerdo Moral de base sacra solamente puede ser
sustituida por un acuerdo Moral que exprese de forma racional aquello a
que en el simbolismo de lo santa apuntaba ya siempre: la universalidad
del interés subyacente. El interés general, y en esto sigue Durkheim la
famosa distinción de Rousseau, no es en modo alguno la suma de, o un
compromiso entre, los intereses de todos; antes bien, el interés general
extrae su fuerza moralmente obligatoria de su carácter impersonal e
117
imparcial […] .

Os Estados, como guardiões do Direito, abandonam a legitimação sacra


para assentar-se em uma base de legitimação formada a partir de uma vontade
geral engendrada comunicativamente. Ou seja, a racionalização da sociedade,
por um lado, leva à erosão da antiga solidariedade, mas, por outro, permite a
emergência de suas novas formas. Uma delas é o Direito118, visto com mais
detalhe adiante, bem como uma Moral secularizada. Ambas evoluções são
possíveis porque, de um lado, existe um processo de descentração e, de outro,
um processo de autonomização do sujeito, ou seja, torna-se possível ao indivíduo
a escolha e a responsabilidade a partir de novas alternativas que se tornam
públicas. Dentro desta maior gama de alternativas a seleção, em vista da própria
compreensão da modernidade (em autores tais como os utilitaristas e Kant),
acaba sendo mais geral, ou seja, universal. Dentro da perspectiva da Gestão
Pública Compartida, isso vai significar novas formas de gestão e novos conteúdos
possíveis de ação.

Essa relação entre o universal e o singular desemboca na identidade de si


mesmo. A idéia da identidade de uma pessoa está completamente desvinculada
de uma compreensão geográfica de interior/exterior ou numérica. Está

117
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón funcionalista.
Madrid: Taurus, 1999. p.117.
118
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón funcionalista.
Madrid: Taurus, 1999. p.118: “A medida que el consenso religioso básico se disuelve y el poder
del Estado pierde su respaldo sacra, la unidad del colectivo sólo puede ya establecerse y
mantenerce como unidad de una comunidad de comunicación, es decir, mediante un consenso
alcanzado comunicativamente en el seno de la opinión pública política [grifos do autor]”.
55

relacionada com verbos como autodeterminação e autorealização119. A idéia de


crítica de si mesmo, através da linguagem, é o fio condutor da identificação do
sujeito perante os demais. O “eu” é uma expressão deítica que só adquire sentido
em uma situação concreta de fala120.

MIentras que las entidades se caracterizan en general porque un


hablante puede decir acerca de ellas algo, las personas pertenecen a la
clase de entidades que pueden adoptar ellas mismas un papel de
hablante y utilizar la expresión “yo” refiriéndose a sí mismas. Para su
categorización como personas no solamente es esencial que estas
entidades estén dotadas de la capacidad de hablar y de actuar y que
pueden decir “yo”, sino cómo lo hacen. La expresión “yo” no solamente
tiene el sentido deíctico de referirse a un objeto, sino que también indica
la actitud pragmática o la perspectiva en la que o desde la que el
hablante se manifiesta. Un ‘yo’ empleado en oraciones de vivencia
significa que el hablante hace emisiones en el modo expresivo [grifos do
121
autor] .

Assim, aquele que se apresenta de modo expressivo é capaz de emitir atos


de fala verazes, os quais são objeto de tomada de posição pelos outros. Com
isso, pode-se eliminar a posição objetivante de um terceiro que descreve a
identidade do outro. Essa estrutura de identidade conjuga na formação das
identidades grupais, as quais se formam a partir da “relación interpersonal ligada
a las perspectivas de primera, segunda y tercera persona, actualiza una relación
subyacente de pertenencia a um grupo social”122. Em um modo de vida
emancipado, a própria pessoa escolhe os critérios pelos quais prefere ser
identificada pelos outros.

Esses modos de vida ocorrem a partir de horizontes partilhados e de


grandes organizações sociais, cuja conceitualidade e operacionalidade
demandam atenção. É o que é realizado adiante.

119
BEILHARZ, Peter. Critical Theory – Jürgen Habermas. ROBERTS, David (org.)
Reconstructing Theory: Gadamer, Habermas, Luhmann. Melbourne: Melbourne University [s.d.].
p.45. “It also evokes Immanuel Kant´s answer to the question of what is enlightenment: namely the
capacity to be autonomous, which depends on the capacity to speak for oneself”.
120
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón funcionalista.
Madrid: Taurus, 1999. p.147.
121
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón funcionalista.
Madrid: Taurus, 1999. p.150.
122
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón funcionalista.
Madrid: Taurus, 1999. p.150
56

1.6 Conceitos aproximativos relativos ao sistema e ao


mundo da vida

Durkheim, com sua concepção de solidariedade orgânica, vista com mais


detalhe em outro contexto, busca explicar como é possível que uma sociedade
funcionalmente diferenciada sobreviva, isto é, mantenha laços de aproximação
que permitam a coordenação de ações. Não deixa de intuir, na visão de
Habermas, que isto só é possível em um pano de fundo normativo123. Para
Habermas a chave da resolução do problema é uma dupla perspectiva: a da
primeira pessoa, como pessoa participante de um mundo da vida, interagindo
com os demais; e a uma terceira, observadora de um sistema de ação. Neste
autor, o enfoque sistêmico e o hermenêutico são complementares124. Ele
refundamenta os dois enfoques a partir de sua própria perspectiva comunicativa.
Mas, em princípio, consegue manter as possibilidades explicativas da forte
intuição de uma normatividade legítima, organizada de maneira consciente pelos
atores, e as capacidades de análise complexa que o conceito de sistema permite.

123
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón funcionalista.
Madrid: Taurus, 1999. p.166: “La diferenciación del sistema de economía de mercado, con la
complejidad que comporta, destituye las formas tradicionales de solidaridad sin generar al propio
tiempo orientaciones normativos que pudieran asegurar la forma orgánica de solidaridad. Las
formas democráticas de formación de la voluntad política y la Moral universalista son, según el
propio diagnóstico de Durkheim, demasiado débiles para poner coto a los efectos desintegradotes
de la división del trabajo. Durkheim observa cómo las sociedades capitalistas se ven arrastradas a
un estado de anomía. Y esta anomía se origina, según él, en esos mismos procesos de
diferenciación de los que debía surgir, con la necesidad de una “ley natural”, una nueva Moral.
Este dilema responde en cierto modo a la paradoja weberiana de la racionalización social”.
124
AVRITZER, Leonardo. A moralidade da Democracia. São Paulo: Perspectiva; Belo Horizonte:
Editora da UFMG, 1996. p.122-123: “Para Habermas, a existência de dois tipos de racionalidade,
uma comunicativa e uma outra sistêmica, nos permitiria tratar adequadamente tanto o fenômeno
da burocratização quanto o fenômeno da pluralização. Os dois fenômenos teriam, na percepção
habermasiana, raízes distintas e se localizariam em esferas distintas da sociabilidade. A
burocratização estaria associada à racionalidade sistêmica e seria dominante na esfera
administrativa do Estado moderno, esfera essa estruturada em torno da lógica estratégico-
competitiva e de uma forma impessoal de coordenação da ação. A expansão da influência de tal
forma de ação certamente conduz a uma diminuição da autonomia dos indivíduos frente ao Estado
moderno. No entanto, diferentemente do suposto por Weber, esse não constitui o único fenômeno
com o qual a política moderna está associada. Habermas demonstra a existência de uma forma
distinta de racionalidade capaz de nutrir e fortalecer as formas interativas de comunicação com as
quais a Democracia foi identificada pelos teóricos da política moderna. A racionalidade
comunicativa não estruturaria a esfera do Estado e sim a esfera pública entendida enquanto uma
arena discursiva na qual os valores democráticos se formam e se reproduzem. Desse modo, o
diagnóstico habermasiano da Democracia consegue dar uma resposta para o problema da
burocratização".
57

Já foi visto que os atores se referenciam a um mundo da vida compartido,


isto é, compartilham convicções que lhes permitem interagir sobre um pano de
fundo inicialmente indiferenciado, muito embora os atores tenham a competência
de identificar o que é social, objetivo e subjetivo.

Al analizar en la introducción los presupuestos ontológicos de la acción


teleológica, de la acción regulada por normas y de la acción
dramatúrgica, distinguí tres distintas relaciones actor-mundo, que el
sujeto puede entablar con algo en un mundo: el sujeto puede
relacionarse con algo que tiene lugar o puede ser producido en el mundo
objetivo; con algo que es reconocido como debido en un mundo social
compartido por todos los miembros de un colectivo; o con algo que los
otros actores atribuyen al mundo subjetivo del hablante, al que éste tiene
125
un acesso privilegiado .

As emissões comunicativas, por que intercambiáveis, se referem


simultaneamente aos três mundos, mesmo quando pareçam claramente estar se
referindo a apenas um deles (os outros aparecem implícitos). A linguagem é um
meio de reprodução e crítica do mundo da vida porque os participantes estão
continuamente testando, reproduzindo e produzindo novas definições acerca de
seu mundo126. Este mundo da vida, na maior parte das vezes, não é
problematizado. Todavia, situações há em que os participantes têm de tencionar o
conteúdo do mundo da vida, criticando-o quando este acaba problematizado127.
Os atores se referem a um acervo de saber, o qual está organizado
lingüisticamente. Por exemplo, dada comunidade pretende pressionar o poder
público em vista de uma via que integra uma região metropolitana. A tradição lhes
provê a idéia de que a União é responsável pelas regiões metropolitanas, mas a
ineficácia de uma comunicação com a União acerca deste tema fará com que
percebam que a competência para os assuntos sobre regiões metropolitanas
pertence aos Estados-membros depois da Constituição de 1988. O próximo
esquema é emblemático acerca deste pensamento:

125
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón funcionalista.
Madrid: Taurus, 1999. p.170-171.
126
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón funcionalista.
Madrid: Taurus, 1999. p.173.
127
STEIN, Ernildo. Crítica da Ideologia e Racionalidade. [s.l.]:Movimento, [s.d.]. p.45-46: “A
razão humana pode mais do que lhe atribui a hermenêutica . Ela não tem apenas a capacidade de
acolher e reconhecer o que lhe é estranho; ela pode também recusá-lo”.
58

Mundo da vida

Cultura

linguagem
A1 A2
Mundo
interno 1 Mundo Mundo Mundo
subjetivo Comunicação subjetivo interno 2
(A1) (A2)

AC1 AC2

Mundo Mundo
objetivo social
(A1+A2)

Mundo Externo

Figura 2128

As setas duplas representam as relações dos atores com o mundo. As


siglas AC atos comunicativos. Neste modelo, o mundo da vida é vivenciado
aproblematicamente, de onde os atores sacam referências para a interação129.
Essas referências passíveis de verdade, de normatividade ou veracidade podem
tornar-se tema de crítica. Todavia, esse processo sempre se dá em vista do
mundo da vida. Por exemplo, demanda-se maior controle social de uma
determinada política pública através de um conselho. O significado de conselho
pode vir a se tornar tema de argumentação, saindo de um repertório em princípio
tranqüilo. O que faz um conselho ser um conselho? Quais suas características,
suas finalidades? As respostas dar-se-ão a partir do mundo da vida. Por exemplo,
“o conselho é um meio de atenuação da dominação burocrática”, o que outro
poderia objetar: “esta é uma resposta weberiana, e é um tanto pobre”. Poder-se-ia
128
Adaptado de HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón
funcionalista. Madrid: Taurus, 1999. p.180.
129
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón funcionalista.
Madrid: Taurus, 1999. p.186: “La forma en que el mundo de la vida nos es aproblemático ha de
entenderse de un modo radical: como mundo de la vida no puede tornarse problemático en
absoluto, lo más que puede es venirse abajo”.
59

tematizar o que vem a ser “weberiana” e “pobre”, em um fluxo crítico que vai
derrubando o mundo da vida, mas ao mesmo tempo o levando mais longe, como
um flecha que nunca atinge o alvo porque este também se move. O mundo da
vida é tão forte porque está na raiz da socialização e da formação da identidade
dos indivíduos e grupos130.

[...] solo a luz de la situación actual de acción cobra el fragmento


relevante de mundo de la vida el status de una realidad contingente que
también podría interpretarse de otra manera. Los miembros del colectivo
viven ciertamente con la conciencia del riesgo de que en todo momento
pueden presentarse situaciones nuevas; de que continuamente han de
afrontar situaciones nuevas; pero estas situaciones no pueden sacudir la
ingenua confianza en el mundo de la vida. La práctica comunicativa
cotidiana es incompatible con la hipótesis de que “todo podría ser
131
totalmente distinto” .

Deste pré-suposto básico, a partir do qual um cientista toma uma posição


ambígua, mas o participante não, decorre a noção de que tudo o que era antes
permanece como está, ou seja, os sucessos anteriores provavelmente se
repetirão (i.e, a certeza de que se a água for fervida a 100 Cº ela virará vapor em
todas as vezes que se repetir)132. O mundo da vida é criticável e instável; é, por
outro lado, imune às revisões totais. Retroligando à discussão pouco mais acima:
a compreensão moderna-ocidental de mundo é mais racional porque é capaz de
perceber o mundo da vida como passível de crítica, mesmo que não seja em sua
totalidade. Isto remonta à já mencionada idéia de invenção democrática da
Gestão Pública Compartida.

O mundo da vida é ponte para conceitos fundamentais. Mas antes é


necessário rememorar alguns conceitos sob um novo enfoque. Sob o aspecto

130
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta Lingüístico-pragmática na Filosofia
Contemporânea. São Paulo: Loyola, 2001 p.337.
131
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón funcionalista.
Madrid: Taurus, 1999. p.188.
132
HABERMAS, Jürgen. A Ética da Discussão e a Questão da Verdade. São Paulo: Martins
Fontes, 2004. p.61-62: "Em seu mundo vital, os agentes dependem das certezas e reagem às
surpresas e decepções. Têm de lidar com um mundo que presumem objetivo, e, em virtude desse
pressuposto, operam segundo uma distinção de senso comum entre o conhecimento e a opinião -
entre o que é verdade e o que só parece sê-lo. No decurso de nossa prática cotidiana, temos a
necessidade prática de confiar intuitivamente naquilo que consideramos incondicionalmente
verdadeiro. Para dirigir o carro ou atravessar uma ponte, não partimos de uma atitude hipotética,
refletindo a cada passo sobre a confiabilidade do know-how tecnológico ou estatístico dos
projetistas. Na mesma medida em que esses hábitos e certezas são postos em xeque e tornam-se
questionáveis, temos a opção de passar do envolvimento direto nas rotinas de fala e ação para o
nível reflexivo do raciocínio, onde buscamos saber se algo é verdadeiro ou não".
60

funcional do entendimento, a ação comunicativa serve à reprodução da tradição e


do saber cultural; sob o aspecto da coordenação de ações, a ação comunicativa
serve à coordenação de ações e à criação de solidariedades; e, finalmente, sob o
aspecto da socialização, à formação das identidades. Estes processos133 de
“reproducción cultural, integración social y socialización corresponden los
componentes estructurales del mundo de la vida que son la cultura, la sociedad y
la personalidad [grifos do autor]”134.

A cultura é um acervo de saber, personalidade é o complexo de


competências que permite os processos de entendimento e com isso a formação
da idéia de si e, finalmente, sociedade são “las ordenaciones legítimas a través de
las cuales los participantes em la interacción regulan sus pertenencias a grupos
sociales, asegurando com ello la solidariedad”135.

A reprodução material do mundo da vida se dá através das interações


teleológicas de indivíduos voltados à realização de seus fins. Já a reprodução
cultural estabelece a continuidade da tradição e a sua coerência com a prática
comunicativa cotidiana. “Esta continuidad y esta coherencia tienen su medida en
la racionalidad del saber aceptado como válido [grifos do autor]”136. Já a
integração social permite a coordenação de ações em vista de situações novas,
conectando-as com a tradição, ao mesmo em que gera a identidade e a
estabilização das identidades do grupo. Finalmente, a socialização assegura “a
las generaciones siguientes la adquisición de capacidades generalizadas de

133
PINTO, F. Cabral. Leituras de Habermas: modernidade e emancipação. Coimbra: Fora do
Texto, 1992. p.250-251: ”O processo de reprodução integra as situações novas nas formas
estabelecidas do mundo da vida, e isso tanto na dimensão semântica das significações ou
conteúdos (da tradição cultural) como nas dimensões espaço social (dos grupos socialmente
integrados) e do tempo histórico (da sucessão de gerações). A estas dimensões indissociáveis do
desenvolvimento colectivo – à reprodução cultural, à integração social e à socialização –
correspondem paralelamente os componentes estruturais do mundo da vida: a cultura (reserva de
saber da qual os participantes da comunicação, entendendo-se sobre algo no mundo, retiram as
suas interpretações susceptíveis de consenso); a sociedade (ordens legítimas através das quais
os participantes da comunicação regulam sua pertença a grupos sociais assegurando dessa forma
a sua recíproca solidariedade); e a personalidade (competências que tornam um sujeito capaz de
falar e agir e, daí, capaz de participar em processo de intercompreensão e afirmar a sua própria
identidade)”.
134
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón funcionalista.
Madrid: Taurus, 1999. p.196.
135
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón funcionalista.
Madrid: Taurus, 1999. p.180.
136
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón funcionalista.
Madrid: Taurus, 1999. p.200.
61

acción y cuida de sintonizar las vidas individuales con as las formas de vida
colectivas [grifos do autor]”137, bem como a formação autônoma de identidades.
Note-se que os processos se intercambiam. Assim, é fundamental coordenação
na ação, a qual permite a construção de identidades138 e a manutenção/crítica da
tradição.

Isto leva, no quadro seguinte, ao cruzamento dos processos comunicativos


com as respectivas instituições sociais.

Processos de Cultura Sociedade Personalidade


reprodução/
componentes
estruturais
Reprodução Esquemas de Legitimação Padrões de
cultural interpretação comportamento
suscetíveis de eficazes no
consenso (“saber implemento da
válido”) educação
Integração social Obrigações Relações Pertença a grupos
interpessoais
legitimamente
reguladas
Socialização Interpretações Motivações para a Capacidades de
atuação conforme interação
as normas

Tabela 5 – Processos de reprodução social e conteúdos dos


componentes139

137
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón funcionalista.
Madrid: Taurus, 1999. p.201.
138
STIELTJES, Cláudio. Jürgen Habermas: A descontrução de uma teoria. Jabaquara: Germinal,
2001. p.127: “Para Habermas, a evolução humana desenvolveu-se tanto com o processo de
individuação quanto de socialização do homem. A individuação e a socialização são processos
complementares de tal forma que a individuação se realiza durante a socialização”.
139
Adaptado de HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón
funcionalista. Madrid: Taurus, 1999. p.202.
62

As informações em negrito demonstram os processos predominantes em


cada esfera, e denotam, de cima para baixo, a possibilidade de uma racionalidade
no saber, a solidariedade entre os membros e a personalidade adulta, ou seja, a
responsabilização pelas próprias ações. Esses processos sociais predominantes
estendem-se aos outros, conforme as propriedades presentes no quadro. A
medida que esses processos predominantes sofrem crises, eles acabam por
“contaminar” os restantes, como no quadro abaixo.

Processos de Cultura Sociedade Personalidade Dimensão de


reprodução/ avaliação
componentes
estruturais
Reprodução Perda de Perda da Crise de Racionalidade
cultural sentido legitimação orientação e do saber
crise educativa
Integração Insegurança e Apatia Alienação Solidariedade
social perturbações dos membros
da identidade
coletiva
Socialização Ruptura das Motivações Psicopatologias Autonomia da
tradições para a pessoa
atuação
conforme as
normas

Tabela 6 – Processos de reprodução e patologias140

A tabela acima demonstra déficits de ações orientadas ao entendimento.


As ações orientadas ao entendimento cumprem especial função no que toca aos
processos de reprodução social e componentes estruturais da sociedade,
conforme a tabela abaixo:

140
Adaptado de HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón
funcionalista. Madrid: Taurus, 1999. p.203.
63

Processos de Cultura Sociedade Personalidade


reprodução/
componentes
estruturais
Reprodução Tradição, crítica, Renovação do Reprodução do
cultural aquisição do saber legitimatório saber eficaz nos
saber cultural processos de
formação
Integração social Imunização de um Coordenação de Reprodução dos
núcleo de ações através do padrões de
orientações reconhecimento pertença a grupos
valorativas de pretensões de
validez
Socialização Aculturação Internalização de Formação da
valores identidade
individual

Tabela 7 – Processos de reprodução e funções dos componentes141

Outra possibilidade de análise social, como visto, é a perspectiva sistêmica.


De toda maneira, a primeira providência de Habermas é eliminar de sua
perspectiva sistêmica as relações analógicas com os sistemas orgânicos, vez que
só se tem acesso aos sistemas sociais a partir de uma posição hermenêutica:

En cualquier caso, la conceptuación de las sociedades no puede


conectar sin discontinuidades con la de los sistemas orgánicos, ya que, a
diferencia de lo que acontece con las estructuras biológicas, las
estructuras que los sistemas acción exhiben, no resultan accesibles a la
observación y hay que abrirse paso hasta ellas hermenéuticamente, esto
es, desde la perspectiva interna de sus miembros. Las entidades a
subsumir bajo categorías propias de la teoría de sistemas desde la
perspectiva externa de un observador, tienen que haber sido
identificadas previamente como mundos de la vida de grupos sociales y
142
haber sido entendidas en sus estructuras simbólicas [grifos do autor] .

Nesta perspectiva, os componentes estruturais do mundo da vida – a

141
Adaptado de HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón
funcionalista. Madrid: Taurus, 1999. p.202.
142
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón funcionalista.
Madrid: Taurus, 1999. p.214.
64

sociedade, a cultura e a personalidade – não estão diferenciadas em


subsistemas. Enquanto que o sistema segue uma lógica de evolução em direção
à complexidade, o mundo da vida segue uma lógica de evolução em direção à
maior racionalidade. Sistema e mundo da vida conectam-se, todavia, no plano
analítico, quando se tem que explicar o mecanismo de diferenciações que levam
ao despregamento de determinados sistemas de ação estruturados com o todo.
Estes sistemas, em razão do enfoque que Habermas dá, têm de estarem ligados,
de outra banda, com a institucionalidade do mundo da vida; eles têm de legitimar-
se. Habermas pretende provar que, na evolução social, sistema e mundo
ancoraram-se mutuamente, mas que na modernidade, cuja pretensão maior era a
total liberdade comunicativa, os sistemas predominam por sobre o mundo da vida.

Prescindindo de maiores detalhes acerca da passagem histórica de


sociedades primitivas às diferenciadas, extrai-se de Habermas o seguinte quadro
de mecanismos de diferenciação sistêmica, quando surgem os subsistemas
sociais:

Diferenciação e Intercâmbio de bens Poder


integração/ coordenação
através de
Unidades de estrutura Diferenciação Estratificação
familiar segmentaria
Unidades funcionalmente Meios de controle Organização estatal
especificadas específico

Tabela 8 – Diferenciações sistêmicas143

Esta é uma maneira diferenciada de perceber a evolução social, que aqui


se dá por suficientemente assentada como senso comum, muito embora alguns
passos sejam retomados adiante. Interessa notar que esses mecanismos
sistêmicos conformam novas estruturas sociais:

Estruturas Mecanismos que operam Mecanismos que operam

143
Adaptada de HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón
funcionalista. Madrid: Taurus, 1999. p.234.
65

sociais/mecanismos a partir do intercâmbio a partir do poder


sistêmicos
Previamente dadas Sociedades primitivas Sociedades
igualitárias primitivamente
hierarquizadas
Induzidas sistemicamente Sociedades de classes Sociedades de classes
politicamente
estratificadas

Tabela 9 – Estruturas e mecanismos144

Essas transições permitiram a formação de sociedades altamente


complexas, capazes de fazer quase uma tábula rasa de seu passado,
racionalizando-se. Por outro lado, esses subsistemas perderam suas conexões
normativas com o todo.

Mientras que en las sociedades tradicionales el Estado constituye una


organización en que se concentra la capacidad de acción del colectivo,
esto es, de toda la sociedad, las sociedades modernas renuncian a la
acumulación de funciones de control en el marco de una única
organización. Las funciones relevantes para la sociedad global se
distribuyen entre distintos sistemas de acción. Con la administración
pública, con el ejército y con la administración de justicia, el aparato
estatal se especializa en la realización de fines colectivos a través de
decisiones vinculantes. Otras funciones quedan despolitizadas y
145
transferidas a subsistemas no-estatales .

Este sistema não-estatal a que se refere Habermas é o econômico:

El sistema económico capitalista marca la eclosión de este nuevo nivel


de diferenciación sistémica; debe su nacimiento a un nuevo mecanismo,
al medio de control sistémico que es el dinero. Este medio se especializa
en la función que para la sociedad global representa la actividad
económica, transferido ahora por el Estado, y se convierte en base de un
subsistema emancipado de contextos normativos. A diferencia del
Estado tradicional, la economía capitalista ya no puede entender como
un orden institucional; lo que se institucionaliza es el medio de cambio,
mientras que el sistema diferenciado a través de ese medio representa
en su conjunto un fragmento de socializad exenta de contenido
146
normativo .

144
Adaptada de HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón
funcionalista. Madrid: Taurus, 1999. p.235.
145
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón funcionalista.
Madrid: Taurus, 1999. p.241.
146
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón funcionalista.
66

Somente quando o dinheiro se consolida como um meio intersistêmico de


intercâmbio é que o mercado – que sempre existiu – se autonomiza perante o
Estado e a esfera privada. A Moral e o Direito acabam por ter a função de fazer
um acoplamento entre mundo da vida e sistemas diferenciados. Essas instituições
acabam sobrecarregando-se cada vez mais em vista do fracasso do
entendimento cotidiano. Em uma perspectiva evolutiva, percebe-se uma
crescente diferenciação entre Direito e Moral, bem como uma direção cada vez
mais universalista entre eles.

Níveis de Categorias Éticas Tipos de Direito


consciência Moral relativas ao lado
cognitivo da
interação
Pré-convencional Expectativas Ética mágica Direito revelado
particulares de
comportamento
Convencional Norma Ética da lei Direito tradicional
Pós-convencional Princípio Ética da intenção Direito Formal
e da
responsabilidade

Tabela 10 – Níveis de consciência Moral147

Essa racionalização da Moral e do Direito possibilitam o surgimento de


novos níveis de integração sistêmica. No caso da modernidade do Direito, o
surgimento do Direito formal autônomo ocorre ao mesmo tempo em que se
consagram “los derechos fundamentales y el principio de la soberania popular; en
ellas se encarnarn estructuras postconvencionales de la conciencia Moral”148. São
pontes prático-morais entre “una esfera jurídica amoralizada y reducida a
exterioridad, por un lado, y una Moral desinstitucionalizada y reducida a

Madrid: Taurus, 1999. p.241-242.


147
Adaptado de HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón
funcionalista. Madrid: Taurus, 1999. p.247.
148
Adaptado de HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón
funcionalista. Madrid: Taurus, 1999. p.252.
67

interioridad, por el otro”149.

Ao mesmo passo que o desencantamento provoca a generalização da


ação comunicativa, diante da carência de meios de solidariedade, de outro lado a
maior abstração Moral, afastando-se de um regramento concreto da vida, propõe
a separação entre a ação comunicativa e a ação instrumental, a qual leva ao
desacoplamento entre integração social e sistêmica.

Este desacoplamiento presupone en el plano de la interacción una


diferenciación no sólo entre acción orientada al éxito y orientada al
entendimiento, sino también entre los correspondientes mecanismos de
coordinación de la acción, según sea la forma en que ego mueve a alter
a proseguir la interacción y la base sobre que se forman las
orientaciones de acción generalizadas de alter. Sobre la base de unas
orientaciones de acción cada vez más generalizadas se teje una red
cada vez más tupida de interacciones que escapan a un control
normativo directo y que tienen que ser coordinadas por otras vías. Para
satisfacer esta creciente necesidad de coordinación puede echarse
mano, o bien del entendimiento lingüístico, o bien de mecanismos de
descargas que reducen las expensas en comunicación y de los riesgos
150
del disentimiento [grifos do autor] .

Existem dois desses mecanismos de descarga, consubstanciados em


meios de comunicação151 que substituem o entendimento lingüístico. É
necessário chamar a atenção para este ponto, pois este diagnóstico é
fundamental para a percepção das patologias da Gestão Compartida, mais
adiante explicitadas rapidamente. Trata-se do dinheiro e do poder. Nestes
subsistemas, o entendimento é substituído por ações racionais com vistas a fins,
de tal modo que substituem a linguagem enquanto entendimento. Assim, quem
utiliza o dinheiro para provocar determinada ação não precisa defender dadas
pretensões de validade; idem no que toca ao poder. À medida que a ação
instrumental se generaliza a partir destes meios de comunicação, o mundo da
149
Adaptado de HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón
funcionalista. Madrid: Taurus, 1999. p.252.
150
Adaptado de HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón
funcionalista. Madrid: Taurus, 1999. p.255.
151
MCCARTHY, Thomas. La Teoría Crítica de Jürgen Habermas. Madrid: Tecnos, 1998. p.471:
“En varios respectos se produce un desacoplamiento entre la acción y las tomas de postura de
afirmación o negación frente a pretensiones de validez susceptibles de crítica, con lo cual estos
medios neutralizan la habitual necesidad de consenso que caracteriza al mundo de la vida. Estos
medios “codifican” ciertas formas de actividad racional con arreglo a fines, generalizan
simbólicamente determinadas categorías de recompensas y castigos, y permiten ejercer una
influencia estratégica sobre la acción a través de medios no lingüísticos. Además, las
interacciones regidas por medios pueden concatenarse en redes funcionales cada vez más
complejas, sin que nadie pueda tenerlas presentes en conjunto o considerarse responsable de
ellas. El ejemplo más claro de un medio de esta especie es el dinero”.
68

vida se tecnifica, i.e., cada vez mais esferas perdem possibilidade de controle
prático-Moral. Ao passo que não é mais necessário justificar as ações, não “se
pueden atribuirse a la responsabilidad de nadie”152. Obviamente que, quando não
é mais necessário justificar-se a ação, implementa-se uma menoridade de espírito
nos sujeitos que atuam. Todavia, nestes subsistemas, dá-se por justificadas as
ações com base naqueles meios generalizados de comunicação, sem que se
examine as pretensões de validade. Daí a sociedade atual ser tão conformada, e
ser tão difícil a abertura de novas vias, vez que estas se convertem na linguagem
dos meios de comunicação:

El resultado de ello es una violencia estructural que, sin hacerse


manifiesta como tal, se apodera de la forma de la intersubjetividad del
entendimiento posible. La violencia estructural se ejerce a través de una
restricción sistemática de la comunicación; queda anclada de tal modo
en las condiciones formales de la acción comunicativa, que para los
participantes en la comunicación la conexión de mundo objetivo, mundo
social y mundo relativo del entendimiento queda prejuzgada de forma
153
típica [grifos do autor] .

Esse trabalho passa por alto de uma larga discussão que Habermas
propõe com Parsons para engatar diretamente este excurso com a teoria dos
meios de comunicação. Os meios generalizados de comunicação substituem a
ação voltada para o entendimento em contextos bem específicos, transformando-
se em meios de controle sistêmico. Evitam, neste sentido, os riscos do dissenso,
de modo a que não existam quebras nas cadeias de interação. Note-se que, em
Habermas, existe uma diferença entre meios generalizados de comunicação e
meios de controle sistêmico. Estes últimos são um passo além dos meios de
comunicação, tornando-se autonomizados em relação ao mundo da vida,
enquanto que as outras formas de comunicação generalizadas em Parsons, quais
sejam, a influência e o compromisso valorativo, estão vinculadas ao mundo da
vida, em Habermas.

No caso do dinheiro, especificamente, é possível vislumbrar quatro


características estruturais, as quais conformam cadeias de agir sem a
necessidade de entendimento: a) aplicação a classes delimitáveis de situações

152
Adaptado de HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón
funcionalista. Madrid: Taurus, 1999. p.261-261.
153
Adaptado de HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón
funcionalista. Madrid: Taurus, 1999. p.264.
69

(ex.: compra e venda de bens, remuneração ao trabalho, etc.); b) acordo de fundo


com relações aos valores monetários; c) o ouvinte (alter) tem apenas duas
opções (“pegar ou largar”), as quais são manipuláveis pelo falante (ego); e d)
predomínio da razão instrumental. Com relação aos aspectos qualitativos, o meio
tem de ser capaz de ser medido (conforme uma mensuração aceita pela
comunidade), possam circular e possam acumular-se. Assim, o meio dinheiro tem
valor conhecido e aceito pela comunidade; circula, mas, para manter seu valor,
tem de ser capaz de ser acumulado e convertido em bens154.

Apesar de seu poder, como visto, o dinheiro só tem valor na medida em


que é aceito consensualmente pela comunidade. Como não existe uma oferta de
fala por detrás do dinheiro para dar-lhe credibilidade, a motivação gerada para
que se perfaçam ações a partir dele só pode advir da institucionalidade.

Este tiene lugar a través de las instituciones de derecho privado que son
la propiedad y el contrato. Este punto es de gran importancia. De nuestra
lengua materna no podemos desconfiar (a no ser en casos límite como el
de la experiencia mística o el de la innovación creadora de lenguaje).
Pues a través del medio que es la formación lingüística del consenso
discurren, lo mismo la tradición cultural y la socialización que la
integración social y, por tanto, la acción comunicativa permanece
siempre inserta en los contextos del mundo de la vida. En cambio, el
medio dinero funciona de modo que la interacción queda desligada de
los contextos del mundo de la vida. Y esta desconexión es la que hace
precisa una reconexión formal del medio con el mundo de la vida. Esa
reconexión adopta la forma de una formación derecho privado de las
relaciones de intercambio, a través de la propiedad y del contrato [grifos
155
do autor] .

Assim como Parsons, Habermas percebe simetrias entre os caracteres do


dinheiro com os do poder. Mas percebe também assimetrias, por outro lado. No
código do poder, por exemplo, pode-se exigir algo de outro em termos mais
abertos, aos quais se pode resistir ou não. De todo modo, a ação é instrumental,
de modo que a exigência de comportamento está livre da carga de justificação
orientada ao entendimento.

Por outro lado, o poder não é mensurável como o dinheiro (porque não
dispõe de um sistema de signos aceitos, como o dinheiro). Também o poder não

154
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón funcionalista.
Madrid: Taurus, 1999. p.379.
155
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón funcionalista.
Madrid: Taurus, 1999. p.381.
70

pode circular tão facilmente como o dinheiro, e tampouco pode ser


“depositado”156. O poder também continuamente precisa ser demonstrado e
atualizado. O dinheiro está ancorado na institucionalidade, enquanto que o poder,
em Parsons, nos cargos públicos em organizações políticas. A necessidade de
legitimação do poder é também muito maior que a do dinheiro, i.e., a relação de
obediência só será constante se no mínimo for gerada uma idéia difusa de que os
destinatários da norma também são seus fautores. A diferença de fundo entre
esses dois meios de comunicação é, então, a forte ancoragem que o poder
precisa ter no processo comunicativo do mundo da vida de formação de
legitimidade do poder, ao contrário do dinheiro, cuja necessidade de legitimação é
mais rarefeita.

A questão da interação entre sistema e mundo da vida é abordada mais


adiante com mais detalhe, juntamente com outras questões fundamentais que
ajudaram a introduzir a categoria do Direito durante o desenvolvimento do
trabalho e, isto é fundamental, perfazer uma crítica da Administração Pública
para, no último capítulo, propor-se alguns novos enfoques para temática. Estes
são os temas do segundo capítulo.

156
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón funcionalista.
Madrid: Taurus, 1999. p.385.
2 ESTADO, SOCIEDADE E GESTÃO DE POLÍTICAS
PÚBLICAS NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

2.1 Perspectivas societais habermasianas

Já foi observado que a evolução social possibilitou não só maior


complexidade como também maior racionalidade e descentração. Todavia, não se
explicou em que consistiu esta modernização. O fio condutor destas breves linhas
resgatará esta temática, mas também e, principalmente, conduzirá a idéia de uma
sociedade moderna ou pós-moderna para a temática seguinte, que é a da
Administração Pública, sua compreensão e sua burocratização.

Nas formas primitivas de sociedade, os princípios organizacionais gravitam


em torno da idade e do sexo. Formam sistemas de parentesco, os quais regulam
de forma totalizante o inter-relacionamento social. Nestas visões culturais de
mundo, as normas aparecem indiferenciadas. Estas últimas aparecem
sancionadas por tabus. Não há excedente de produção e tampouco seria possível
gerá-los. Não existem meios sistemáticos de reprodução material e a sociedade é
altamente estabilizada internamente, só sofrendo câmbios a partir de influxos
externos, como as modificações da natureza ou a guerra157.

Já nas sociedades tradicionais o princípio organizacional exsurge da


dominação de classe em forma política. A partir do sistema de parentesco,
diferenciam-se castas dirigentes ancoradas em poderes divinos. A família perde

157
HABERMAS, Jürgen. A Crise de Legitimação no Capitalismo Tardio. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1999. p.32.
72

parte de suas funções econômicas, de socialização e dominação para estruturas


estataliformes que começam a surgir.

Neste estágio de desenvolvimento, subsistemas emergem servindo


predominantemente ou ao sistema social ou à integração social. No seu
ponto de intersecção jaz a ordem legal que regula o privilégio de
disposição dos meios de produção e o exercício estratégico do poder, o
qual, por sua vez, requer legitimação. Para a diferenciação entre o
aparelho de poder e a ordem legal de um lado, e as justificações
contrapactuais e os sistemas morais do outro lado, corresponde a
158
separação institucional de poderes seculares sagrados .

Nesta nova sociedade permite-se a construção incipiente de subsistemas


formados por meios que substituem o entendimento, como o dinheiro e o poder, e
mecanismos de auto-inflexão, como o Direito. É a era de visões de mundo
teológicas globalizantes, as quais aliviam os conflitos advindos de uma integração
social liderada por castas econômicas e políticas. As crises são resolvidas desta
maneira: os conflitos sociais são neutralizados como ordem de uma natureza
divina estatuidora de uma ordem social que ainda é reputada como dada, ou a um
recurso violento à força física. Ambos geram contra-reações em forma de crítica
ao instituído, de forma que se vai aos poucos se tomando consciência da
contingência social e, portanto, da mutabilidade das organizações sociais. A
revolução francesa é o exemplo por excelência de um movimento de classe que
toma consciência de que pode ter as rédeas da história.

Nas formações capitalistas, as relações engendram-se a partir de relações


entre trabalho e capital. Passa a existir uma sociedade civil, livre do Estado, bem
como zonas de ação estratégica. O Direito e o Estado passam a ser anexos de
um sistema econômico auto-regulativo. O Estado ainda assegura a integridade
territorial e a competição, bem como a paz interna.

Embora nas sociedades tradicionais uma diferenciação institucional entre


esferas de integração-sistema e integração social já se tem estabelecido,
o sistema econômico permanece dependente da oferta de legitimação a
partir de um sistema sócio-cultural. Só a relativa desconexão do sistema
econômico perante o político permite uma esfera emergida da sociedade
burguesa que seja livre dos laços tradicionais e transferidas as
orientações de ação estratégica utilitária dos participantes, de mercado.
Empresários competidores então tomam suas decisões de acordo com
níveis de competição orientada ao lucro e substituem a ação orientada

158
HABERMAS, Jürgen. A Crise de Legitimação no Capitalismo Tardio. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1999. p.32.
73
159
por valores a ações guiadas por interesse .

A ciência é instrumentalizada enquanto meio de produção, possibilitando


progressos impressionantes no ritmo de produção de excedentes. Diferentes
âmbitos proliferam e especializam-se. Perdem poder a família e o Estado,
protagonistas de épocas anteriores. Ao revés, a utilização da ação instrumental
na esfera do consumo e das relações de trabalho provoca desgastes de todos
conhecido, daí a necessidade da criação de contratendências por parte
principalmente do Direito e do Estado. A ideologia política é cada vez mais usada,
mas também cada vez se tenta mais escondê-la como regra naturais do jogo.
Abre-se uma tensão muito grande entre uma realidade que se vê inaceitável e um
plano de sociedade que se sabe realizável diante de um mundo contingente. Isto
se materializa, por exemplo, no idealismo das constituições, declarações de
direitos fundamentais e morais universalistas em contraste com o utilitarismo do
dia-a-dia das relações econômicas. O Direito acaba tendo, ao mesmo tempo,
legitimar-se perante a sociedade, dada as condições pós-metafísicas, mas
também garantir os dados espaços de ação estratégica. São contradições
deveras graves para que as sociedades suportem. Neste meio tempo, nota-se
uma transição do capitalismo liberal para o capitalismo organizado e novamente
para uma síntese entre os dois em forma de neoliberalismo.

Essas contradições geram crises várias, sempre respondidas de alguma


maneira. Como o Direito é o meio disponível à comunicação e o Estado o
responsável pelo cumprimento do Direito, ele vai ser um dos responsáveis pelas
contratendências. Um dos meios será, por exemplo, as políticas públicas, os
direitos fundamentais, sociais, etc. De outra banda, é necessário uma série de
medidas para que a autocompreensão da modernidade justamente não se realize.

Podemos falar de “contradição fundamental” de uma formação social


quanto, e apenas quanto, seu princípio organizacional necessite que
indivíduos e grupos respectivamente se defrontem com pretensões e
intenções que sejam, a longo prazo, incompatíveis. Nas sociedades de
classe este é o caso. Enquanto a incompatibilidade de pretensões e
intenções não for reconhecida pelos participantes, o conflito permanece
latente. Tais sistemas de ação forçosamente integrados são, sem
dúvida, dependentes de uma justificação ideológica para esconder a
distribuição assimétrica de possibilidades para a satisfação legítima de

159
HABERMAS, Jürgen. A Crise de Legitimação no Capitalismo Tardio. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1999. p.35.
74

necessidades. A comunicação entre participantes é, pois


160
sistematicamente distorcida ou bloqueada .

Dentro das crises e contradições é possível citar, por exemplo, o problema


do equilíbrio ecológico (capacidade do meio ambiente de suportar o consumo de
recursos e receber calor e materiais tóxicos), do equilíbrio antropológico (perda de
sentido da vida diante de socializações comunicativamente insuficientes),
equilíbrio internacional (inter-relações entre organizações e pessoas a nível
internacional que multiplicam as fragilidades fazendo-se sentir em nível mundial
as micro-crises militares, energéticas, financeiras e sociais). Esses frágeis
equilíbrios a nível mundial aparecem ao lado crises sistêmicas e crises de
identidade que sempre reaparecem e sempre são controladas. Como exemplos
de crises, a econômica (tensão entre intervenção necessária para proteger o
mercado de si mesmo e dos fatores externos, mas também a limitá-lo), de
racionalidade (impossibilidade de planificação das crises econômicas, gerando
necessidade de maiores estruturas administrativas e com isso maiores custos), de
legitimação (o predomínio da ação instrumental não recompensa a população
suficientemente em produtos inovadores, empregos e recursos disponíveis e a
invasão da espontaneidade da vida pela Administração) e crises de motivação (a
solidariedade não consegue ser restituída a partir dos meios disponíveis após o
desencantamento do mundo)161.

Paralelamente a isto, o processo de racionalização, como visto, permite a


descentração de expectativas, possibilitando um maior aprendizado:

En las sociedades neolíticas la integración normal está estructurada


convencionalmente; las imágenes míticas del mundo, que están todavía
directamente entrelazadas con el sistema de acción, contienen patrones
convencionales de resolución de los conflictos […] En las civilizaciones
arcaicas la interacción normal está estructurada convencionalmente; las
imágenes míticas del mundo, separadas ya del sistema de acción,
asumen la función de proporcionar legitimación a los ocupantes de las
posiciones de dominio […] En las civilizaciones desarrolladas la
interacción normal está estructurada convencionalmente; se produce una
ruptura con el pensamiento mítico y se inicia la formación de imágenes
del mundo racionalizadas (cosmológicas y monoteístas) que contienen
representaciones morales postcovencionales; los conflictos se regulan
desde el punto de vista de una moralidad convencional desligada de la

160
HABERMAS, Jürgen. A Crise de Legitimação no Capitalismo Tardio. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1999. p.42.
161
HABERMAS, Jürgen. A Crise de Legitimação no Capitalismo Tardio. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1999. p.66.
75

persona del gobernante[…] A principios del mundo moderno ciertas


esferas de la interacción están estructuradas postconvencionalmente –
esferas de acción estratégica (tales como la empresa capitalista) son
reguladas en términos universalistas, y existen inicios de una formación
de la voluntad política basada en principios (Democracia formal); las
doctrinas legitimadoras del dominio responden a esquemas
universalistas (derecho natural racional, por ejemplo); los conflictos se
regulan desde el punto de vista de una estricta separación de legalidad y
moralidad (derecho general, formal y racionalizado; moralidad privada
162
guiada por principios) .

No contexto deste trabalho não há porque detalhar as crises de legitimação


econômicas, administrativas e sociais, apenas noticiá-las, vez que o que importa
constatar é a contradição entre idealismo de uma república e de uma
modernidade que buscam a participação e uma Administração burocratizada não
só pelos seus próprios imperativos, mas também pelos econômicos.

Que se esvaziaram as grandes utopias da modernidade, isso não há


dúvida. A questão está na interpretação dos movimentos relacionados com os
ideários parecem ter substituído os ideais modernos. O ideal moderno por
excelência na contemporaneidade relaciona-se com o Estado social e com as
políticas públicas que se pretende aplicar a partir dele para alcançar a
equalização do conflito entre trabalho e capital. No senso comum até informado
acerca do trabalho, mantém-se a centralidade deste último, porém abandonando
a idéia de uma emancipação que se converte a heteronomia em autonomia163.
Percebe-se a alienação como ponto de referência imoral, mas que pode ser
compensado pela contraprestação de um Estado provedor de serviços públicos,
adquirindo, por um lado, um complexo de direitos informadores de cidadania
material e, por outro, recebendo uma máscara de cliente de burocracias. Mas, “a
alavanca para a satisfação do antagonismo de classes continua sendo, por
conseguinte, a neutralização do material de conflito embutido no status de
trabalhador assalariado [grifos do autor]”164. Tal projeto dependeu de condições
materiais e ideológicas capazes de estabilizar um Estado capaz de levar tais
políticas públicas a cabo – Estado social. Esta análise é importante, vez que é

162
MCCARTHY, Thomas. La Teoría Crítica de Jürgen Habermas. Madrid: Tecnos, 1998. p.294-
295.
163
HABERMAS, Jürgen. Diagnóstico do Tempo: seis ensaios. Tempo Brasileiro: Rio de Janeiro,
2005. p.17.
164
HABERMAS, Jürgen. Diagnóstico do Tempo: seis ensaios. Tempo Brasileiro: Rio de Janeiro,
2005. p.18.
76

neste contexto que está inserido o aumento de demandas para a Administração


Pública e seu incremento – e, conseqüentemente, de possibilidades para uma
Gestão Pública Compartida.

O projeto de Estado social ainda é utópico e, por isso, se alimenta de uma


legitimidade social, uma vez que se pretende para a massa da população
estabilidade material, a qual poderia, em seu conteúdo utópico, levar à auto-
emancipação. Todavia, as transformações profundas não tardam a aparecer,
incluindo crises, uma vez que o modelo é posto em cheque. Uma vez que se atua
dentro do sistema e não pode mudar o sistema de trocas, o Estado parece preso
tanto em mobilidade organizativa quanto em ampliação da base de
legitimidade165. Em épocas de crise, classes socialmente progressistas aderem ao
status quo temerosas de perda dos parcos privilégios, perdendo em base de
legitimação. Obviamente que se reconhece as conquistas do Estado social166. As
relações entre Estado social e capitalismo chegam ao ponto onde para que o
último sobreviva o segundo deve existir, mas, todavia, o capitalismo “não pode
continuar vivo se continuar desenvolvendo o Estado social”167.

Com Claus Offe, percebe três tendências: os legitimistas da sociedade


industrial, os quais, reconhecendo a estabilidade social, e pretendendo a sua
manutenção, recusam qualquer conteúdo idealista neste projeto. Os
neoconservadores postulam uma reorganização orientada ao mercado, de modo
que o Estado não tenha forças para atuar, e, portanto, muito pouco se possa
fazer. As políticas públicas não podem ser implementadas devido a uma “crise do
Estado”, o que implica crise de finanças e crise de governabilidade – as quais se
configuram mais como base ideológica para a justificação da guinada ao
mercado:

Nesse contexto, dá-se a promoção de desdobramentos


neocorporativistas, ou seja, a ativação do potencial de controle não
estatal de grandes agremiações, em primeira linha, e de organizações de

165
HABERMAS, Jürgen. Diagnóstico do Tempo: seis ensaios. Tempo Brasileiro: Rio de Janeiro,
2005. p.20.
166
HABERMAS, Jürgen. Diagnóstico do Tempo: seis ensaios. Tempo Brasileiro: Rio de Janeiro,
2005. p.23: “E os países que ainda não atingiram o nível de desenvolvimento do Estado social,
especialmente eles, não têm nenhuma razão plausível para se desviar desse caminho”.
167
HABERMAS, Jürgen. Diagnóstico do Tempo: seis ensaios. Tempo Brasileiro: Rio de Janeiro,
2005. p.23.
77

empreendedores e sindicatos, em segunda. Entretanto, a transposição


de responsabilidades parlamentares reguladas normativamente para
sistemas de negociações funcionais transforma o Estado num simples
parceiro de negociações, um entre muitos. E o deslocamento da
competência para as zonas cinzentas neocorporativas faz com que um
modo de decisão, que é obrigado, por normas constitucionais, a levar em
conta simetricamente todos os interesses envolvidos, perca cada vez
168
mais matérias sociais .

Tal postura parece a predominante entre os círculos de poder de esquerda


e direita, sendo sinonímia de neoliberalismo.

Já a vertente crítica do crescimento apóia-se freqüentemente em ideários


pós-modernos, estando representada pelos novos movimentos sociais. Criticam o
desenvolvimentismo defendido pelas vertentes anteriores, revoltando-se contra a
invasão do mundo da vida tanto pela burocracia quanto pela linguagem
monetária.

Habermas critica todas as vertentes lembrando dos meios pelos quais se


realiza a integração social, quais sejam, dinheiro, poder administrativo e
solidariedade.

Com isso, pretendo afirmar apenas o seguinte: o poder integrador e


social da solidariedade teria que se afirmar contra os “poderes” das
outras duas fontes de controle, isto é, o dinheiro e o poder administrativo
[...] E penso que uma formação da vontade política também deveria
beber da mesma fonte, uma vez que ela deve exercer, de um lado,
influência na delimitação destas esferas da vida estruturadas
comunicativamente e nas trocas entre elas; de outro lado, ela também
169
deve influenciar o Estado e a Economia .

Para Habermas, a emancipação tanto política quanto econômica caminham


juntas, e se converte em um projeto de democratização radical e racional onde
tudo pode ser disponível à crítica e à mudança. Isso passa por uma Gestão
Pública Compartida dos interesses públicos.

Antes, todavia, é necessário encontrar os principais fundamentos,


sociológicos e jurídicos, do caminho que leva à pré-compreensão burocrática da
Administração, tarefa que se tentará levar a cabo no próximo tópico.

168
HABERMAS, Jürgen. Diagnóstico do Tempo: seis ensaios. Tempo Brasileiro: Rio de Janeiro,
2005. p.25.
169
HABERMAS, Jürgen. Diagnóstico do Tempo: seis ensaios. Tempo Brasileiro: Rio de Janeiro,
2005. p.30.
78

2.2 Compreensões da Administração Pública pela


Sociologia moderna

A compreensão de algo que o mundo da vida possibilita às pessoas pode


ser reconstruída em parte pelo estudo das idéias subjacentes a determinado
assunto, materializados em forma de grandes obras causadoras de grande
influência acadêmica e social. Em um trabalho limitado como este, por óbvio que
alguns recortes tiveram que ser feitos. A busca aqui é a reconstrução da
conceituação da Administração Pública como um sistema autônomo-burocrático.
Para tanto, e seguindo a linha de Habermas, talvez mais sociólogo que filósofo, a
descrição aqui presente trará apenas os primeiros, e os mais importantes: Marx
(não existia Sociologia “oficialmente” na época de Marx, mas esta não é uma
questão importante, vez que o que importa é uma descrição material da
sociedade), Durkheim e Weber. Em realidade, os dois primeiros aparecem mais
como passos para o estudo do segundo.

Karl Marx (1818-1884) sofre influência de, como se sabe, Hegel. Este
postula um acesso racional ao real através de uma dialética que reconhece o
conflito na realidade das coisas, e não uma ordem estática de verdades estáveis.
Marx estabelece, todavia, uma relação inversa, onde uma reflexão racional
interpretativa do mundo em termos de dialética é transmudada em uma crítica
emancipadora da sociedade170. Marx diferencia-se ainda de Hegel por partir não
de uma reflexão absoluta (espírito), mas sim de suas relações vitais. Essas
relações vitais são tomadas em termos (pelo menos o senso comum acerca de

170
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p.38-
40: “A Filosofia da história de Hegel é a última expressão conseqüente, levada à sua ‘mais pura
expressão’, de toda essa maneira que os alemães têm de escrever a história e na qual não se fala
de interesses reais, nem mesmo de interesses políticos, mas de idéias puras; [...] A verdadeira
solução prática dessa fraseologia, a eliminação dessas representações na consciência dos
homens, só será realizada, repitamos, por meio de uma transformação das circunstâncias
existentes, e não por deduções teóricas. Para a massa dos homens, isto é, para o proletariado,
tais representações teóricas não existem e portanto não precisam ser suprimidas, e, se essa
massa já teve algum dia representações teóricas como a religião, há muito tempo já foram
destruídas pelas circunstâncias”. A famosa XI tese contra Feuerbach encontra-se na página 103
da obra citada.
79

Marx assim interpreta suas obras) de reprodução material da vida, ou seja, como
os homens produzem sua sociedade e os bens com os quais interagem:

Pode-se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião


e por tudo o que se queira. Mas eles próprios começam a se distinguir
dos animais logo que começam a produzir seus meios de existência, e
esse passo à frente é a própria conseqüência de sua organização
corporal. Ao produzirem seus meios de existência, os homens produzem
171
indiretamente sua própria vida material .

Desta idéia o Direito também não escapa, sendo fruto das interações
materiais172. Essas interações do homem com seu meio em forma de modificação
da natureza (produzidas, distribuídas e consumidas) moldam interações noéticas,
as quais estão historicamente fundadas, gerando novas necessidades e novas
criações, as quais criam novas necessidades e assim sucessivamente. Essas
interações acumulam-se em forma de cultura, sendo transmitida às outras
gerações. A principal dessas interações é o trabalho. As configurações de
interações vão gerando confluências que formam a sociedade. Esta sociedade,
por sua vez, é, em seu conjunto, perceptível como independente das pessoas que
a formam, à maneira de Durkheim. Todavia, a influenciação é uma via de mão
dupla: ao mesmo passo que as relações de produção engendram as relações
sociais, a atuação do homem como produtor de bens conflui para a formação da
consciência social173.

Essas relações materiais de produção formam a infra-estrutura. Ela é a


base a partir da qual se engendram outras relações sociais. Essas outras
171
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p.10-
11.
172
MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
p.4: “Nas minhas pesquisas cheguei à conclusão de que as relações jurídicas – assim como as
formas de Estado – não podem ser compreendidas por si mesmas, nem pela dita evolução geral
do espírito humano, inserindo-se, pelo contrário, nas condições materiais de existência de que
Hegel, à semelhança dos ingleses e franceses do século XVIII, compreende o conjunto pela
designação de “sociedade civil“; por seu lado, a anatomia da sociedade civil deve ser procurada
na Economia política“.
173
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p.18:
“Eis, portanto, os fatos: indivíduos determinados com atividade produtiva segundo um modo
determinado entram em relações sociais e políticas determinadas. Em cada caso isolado, a
observação empírica deve mostrar nos fatos, e sem nenhuma especulação nem mistificação, a
ligação entre a estrutura social e política e a produção. A estrutura social e o Estado nascem
continuamente do processo vital de indivíduos determinados; mas desses indivíduos não tais
como aparecem nas representações que fazem de si mesmos ou nas representações que os
outros fazem deles, mas na sua existência real, isto é, tais como trabalham e produzem
materialmente; portanto, do modo como atuam em bases, condições e limites materiais
determinados e independentes de sua vontade”.
80

relações sociais são conformadas pela idéia de superestrutura, ou seja, as


demais instituições sociais influenciadas determinadamente pelas relações de
produção, como o Direito e demais organizações sociais. Nenhuma outra
passagem de Marx fora tão citada quanto a seguinte:

A conclusão geral a que cheguei e que, uma vez adquirida, serviu de fio
condutor dos meus estudos, pode formular-se resumidamente assim: na
produção social da sua existência, os homens estabelecem relações
determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de
produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento
das forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção
constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a
qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual
correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de
produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social,
política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que
determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a
174
sua consciência .

A infra-estrutura é, assim, um supersistema que recebe influências de


outros; mas, todavia, dada a configuração da sociedade humana, é o que mais
provoca mutações nos demais. A grande questão é o que, afinal, significa isto. O
primeiro ponto é o da refutação de qualquer metafísica. Marx põe cal nos últimos
resquícios de uma sociedade formatada por Deus, pela natureza ou por uma
razão absoluta. A partir de Marx a sociedade é contingente de Deus e da natureza
(mas dela mesma) e, portanto, livre. Que os homens produzem suas instituições,
isso hoje não pode ser refutado. Mas produz como? O que é a base material que
molda todo o resto? Tudo aquilo que o homem faz socialmente transforma o resto
– se trabalho for entendido assim, não há dúvidas que Marx está certo. Mas o
trabalho tem um conceito específico, qual seja, a transformação da natureza em
produtos que satisfazem uma necessidade. Mesmo assim, quase tudo acaba
sendo trabalho. Diante destes problemas, que exigem um estudo mais
aprofundado, tem-se, para os fins deste estudo, como contribuição de Marx a
idéia de interações entre as relações sociais “básicas” de transformação da
natureza e relações sociais institucionais da superestrutura. Não é possível
interpretar, contudo, de maneira literal o determinar nas palavras de Marx, senão,
afinal, cometeria uma contradição performativa. Se é tão simples que as relações
de produção, quando cambiam, cambiam o resto, por que então Marx fazia

174
MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
p.5.
81

política de modo tão a pagar todos os anos para entrar é ? Se as relações de


trabalho – tomado em um sentido estrito – determinam o resto, torna paradoxal
investigar o apelo à justiça e à Moral presentes no Manifesto Comunista. A vingar
essa interpretação tão simples de Marx, não haveria porque fazer política, senão
esperar a revolução iminente, coisa que Marx não fez175.

O problema das relações entre marxismo e Estado são latentes na tradição


marxista. Ou seja, não existe uma teoria do Estado sob o viés marxista. É o que
diz Nicos Poulantzas176. Em realidade, é muito pobre dizer que o Estado e o
Direito são simplesmente superestruturas, a não ser que se busque uma visão
meramente econômica, e não mais em termos de teoria geral da sociedade. De
outra banda, a própria literatura marxista reconhece a violação dos valores
burgueses pelo Estado administrativo fechado177.

No toca à Democracia e à Administração, é possível notar um potencial


ambivalente. De um lado, a partir de Marx, não só o ser humano é responsável
por si próprio de maneira mais clara do que nunca, como também as idéias
adquirem uma coloração prática. É possível planejar e fazer (os burgueses
fizeram isso!). A filosofia torna-se prática de mudança social em uma sociedade
que se sabe dinâmica e, principalmente, contingente, ou seja, passível de
mudança. Essa mudança é previsível e consciente, muito embora não existam
praticamente alternativas – e este é o viés autoritário - senão as que advenham
das relações de produção. Aqui, o indivíduo já tem todas as alternativas aos seus
pés, mas pode muito pouco...

Já Émile Durkheim (1858-1917) é, como se sabe, precursor da sociologia,

175
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. 2ª ed. Rio de Janeiro:
Cátedra, 1987. p.25.
176
POULANTZAS, Nicos. O Estado, o Poder e o Socialismo. Rio de Janeiro: Graal, 1980.
177
POULANTZAS, Nicos. O Estado, o Poder e o Socialismo. Rio de Janeiro: Graal, 1980. p.258:
“O que é notável hoje em dia é que paralelamente ao declínio do parlamento, os vínculos
representativos entre os deputados e a administração de Estado romperam-se. As redes de
acesso dos deputados e dos partidos políticos, enquanto legítimos representantes de um
‘interesse nacional’, à burocracia de Estado estão quase totalmente bloqueadas, uma vez que a
administração está estanquizada em vaso fechado. Isso se aplica principalmente à oposição mas
também aos deputados da maioria, ou antes à grande maioria deles. Os circuitos partidos-
deputados-administração transitam de hoje em diante quase exclusivamente através das cúpulas
do executivo, ministros e gabinetes ministeriais, do qual eles fazem seu domínio privado [grifos do
autor]”.
82

ou seja, a disciplina que tem por escopo o estudo da sociedade. O critério ou


método de aproximação de Durkheim é o da observação dos fatos sociais178, ou
seja, reações sociais observáveis que geram certos efeitos, os quais, em
confluindo, são capazes de informar regularidades causaliformes179. A sociologia
poderia formatar-se, então, em leis, como em Marx.

A sociedade forma um todo maior que a soma de seus elementos, gerando


uma noética própria. Este “sistema social” tem propriedades distintas das dos
seus membros, i.e., a “vontade social” não consegue retroceder a soma dos
participantes em uma dada sociedade. Essa “consciência coletiva” forma
representações coletivas ou auto-observações, ou seja, a própria sociedade vai
criando compreensões de seus fatos sociais fundamentais, como mitos e
costumes. Ao contrário de Weber em diante, em Durkheim o modelo de
observação da realidade ainda é positivista, onde existe um desprestígio dos pré-
juízos e da ”imersão”. É necessária uma “coisificação” das relações sociais a bem
de seu estudo mais preciso.

A organização social baseia-se em uma noção de coação, a qual se


materializa em solidariedade. Essa solidariedade forma o “ser social”. A partir da
noção de solidariedade mecânica Durkheim denota aquela espécie de
representação social cuja autonomia individual é restrita, onde as aproximações
de ideais são a regra e vige uma circunscrição ao discurso, formando um
agregado homogêneo180. Durkheim nota outro tipo de solidariedade, a medida

178
DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p.1-
3: “Antes de procurar qual método convém ao estudo dos fatos sociais, importa saber quais fatos
chamamos assim [...] Eis portanto uma ordem de fatos que apresentam características muito
especiais: consistem em maneiras de agir, de pensar e de sentir, exteriores ao indivíduo, e que
são dotadas de um poder de coerção em virtude do qual esses fatos se impõem a ele. Por
conseguinte, eles não poderiam se confundir com os fenômenos orgânicos, já que consistem em
representações e em ações; nem com os fenômenos psíquicos, os quais só têm existência na
consciência individual e através dela. Esses fatos constituem portanto uma espécie nova, e é a
eles que deve ser dada e reservada a qualificação de sociais”.
179
DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
p.15: “A primeira regra e a mais fundamental é considerar os fatos sociais como coisas [...][grifos
do autor]”.
180
DURKHEIM, Émile. Da Divisão do Trabalho Social. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 79:
“Há em nós duas consciências: uma contém apenas estados que são pessoais a cada um de nós
e nos caracterizam, ao passo que os estados que a outra compreende são comuns a toda a
sociedade. A primeira representa apenas nossa personalidade individual e a constitui; a segunda
representa o tipo coletivo e, por conseguinte, a sociedade sem a qual não existiria. Quando é um
dos elementos desta última que determina nossa conduta, não agimos tendo em vista o nosso
83

que a sociedade vai se tornando mais complexa – a solidariedade orgânica. Essa


sim vai ser a raiz de uma futura visão sistêmica de sociedade, com uma divisão
do trabalho em termos de especialização de funções. Trata-se da solidariedade
orgânica. O advento da solidariedade orgânica é uma lei histórica irredutível:

É, pois, uma lei da história a de que a solidariedade mecânica, que, a


princípio, é a única ou quase, perde terreno progressivamente e que a
solidariedade orgânica se torna pouco a pouco preponderante. Mas
quando a maneira como os homens são solidários se modifica, a
estrutura das sociedades não pode deixar de mudar. A forma de um
corpo se transforma necessariamente quando as afinidades moleculares
não são mais as mesmas. Por conseguinte, se a proposição precedente
é exata, deve haver dois tipos sociais que correspondem a essas duas
181
sortes de solidariedade .

Nesta, a sociedade se diferencia internamente em diferentes “órgãos”,


funcionalmente diferenciados, os quais concorrem para a manutenção do “corpo”
social como um todo. Essa diferenciação dá-se em termos de divisão de trabalho
(muito embora este mesmo conceito não seja muito desenvolvido), novamente
colocada em termos irredutíveis e em um unilateralismo:

Portanto, se a evolução social permanece submetida à ação das


mesmas causas determinantes – e veremos mais longe que essa
hipótese é a única concebível -, é permitido prever que esse duplo
movimento continuará no mesmo sentido e que virá o dia em que toda a
nossa organização social e política terá uma base exclusivamente, ou
182
quase exclusivamente, profissional .

A especialização vai ser um fator de integração Ética porque o


especializado em X será útil para o especializado em Y e vice-versa183.

O fator de agregação das sociedades complexas organizadas em estados


nacionais vai ser uma espécie de religião ou Moral cívica, que gera solidariedade
entre estranhos. Esta solidariedade, todavia, é liderada pelo Estado. Este mantém
interações em maior um menor grau quantitativos e qualitativos – diferenças que

interesse pessoal, mas perseguimos finalidades coletivas. Ora, embora distintas, essas duas
consciências são ligadas uma à outra, pois, em suma, elas constituem uma só coisa, tendo para
as duas um só e mesmo substrato orgânico. Logo, elas são solidárias. Daí resulta uma
solidariedade sui generis que, nascida das semelhanças, vincula diretamente o indivíduo à
sociedade; [...] propomos chama-la mecânica”.
181
DURKHEIM, Émile. Da Divisão do Trabalho Social. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p.157.
182
DURKHEIM, Émile. Da Divisão do Trabalho Social. São Paulo, Martins Fontes: 2004. p.174.
183
DURKHEIM, Émile. Da Divisão do Trabalho Social. São Paulo, Martins Fontes: 2004. p.419.
84

possibilitam a distinção Democracia/autocracia184. Nas sociedades


contemporâneas, tanto o Estado quanto o Direito abarcam cada vez maiores
espaços, ao passo que sua velocidade de evolução aumenta.

O Direito nas sociedades complexas regula as diferentes funções. É, neste


sentido, um “supra-discurso”, especializado, mas capaz de trafegar entre os
diferentes órgãos:

Em definitivo, esse Direito tem na sociedade um papel análogo ao do


sistema nervoso no organismo. De fato, este tem por tarefa regular as
diferentes funções do corpo, de maneira a fazê-las concorrer
harmonicamente; ele exprime, assim, naturalmente, o estado de
concentração a que chegou o organismo, em conseqüência da divisão
do trabalho fisiológico. Por isso, pode-se medir, nos diferentes níveis da
escala animal, o grau dessa concentração segundo o desenvolvimento
do sistema nervoso. Isso quer dizer que se pode igualmente medir o
grau de concentração a que chegou uma sociedade, em conseqüência
da divisão do trabalho social, segundo o desenvolvimento do Direito
cooperativo com sanções restitutivas. São previsíveis todos os serviços
185
que esse critério nos prestará .

Durkheim assume um engajamento a favor da Democracia, defendendo


que a complexificação da modernidade leva não a uma maior velocidade de
decisões tomadas burocraticamente, mas a necessidade de maior
democratização:

Quanto mais a sociedades são amplas, complexas, mas elas têm


necessidade de reflexão para se conduzir [...] Quanto mais complexo se
torna o meio social, mais ele se torna móvel; é preciso, portanto, que a
organização social mude na mesma medida, e, para isso, como
186
dissemos, é preciso que ela tenha consciência de si mesma e reflita .

Na Democracia, o indivíduo não é tomado mecanicamente, como uma


peça móvel a ser movimentada pelos governos e sociedade, mas sim como um
ser autônomo que se relaciona em sua liberdade com os demais.

Durkheim não elabora de maneira específica uma teoria da Administração


Pública. Todavia, contribui ao esclarecer a crescente funcionalização social, ou
seja, a diferenciação de sistemas a partir de suas funções, as quais estão ligadas
ao todo. A Administração deve, então, ter uma função específica. Essa descrição

184
DURKHEIM, Émile. Lições de Sociologia. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p.114.
185
DURKHEIM, Émile. Da Divisão do Trabalho Social. São Paulo, Martins Fontes: 2004. p.105
186
DURKHEIM, Émile. Lições de Sociologia. São Paulo, Martins Fontes: 2002. p.126.
85

é uma das pontes para as compreensões levadas a cabo pela dogmática jurídica
da Administração Pública. No mais das vezes, é vista como um sistema, órgão ou
conjunto de órgãos especializado em alguma coisa, quais sejam, a execução da
lei ou do interesse público. Difícil dizer se Durkheim pavimenta o caminho até
Weber no que toca à descrição da Administração Pública, vez que a observação
weberiana se dá muito mais em nível de descrição de estruturas do que de
funções. De todo modo, é possível notar um potencial ambivalente (como todos
os sociólogos aqui citados) em Durkheim: Durkheim preocupa-se com a
Democracia, sendo que esta é tanto mais necessária quanto mais diferenciada for
a sociedade. O veículo da Democracia será, claro, o Direito, tomado como um
órgão análogo ao sistema nervoso, isto é, que coordena as decisões tomadas em
nível da mente. Esse potencial democrático da teoria durkheiniana compensa o
potencial autoritário de uma descrição social que coloca a diferenciação em
termos de trabalho somente e como algo irredutível e irresistível. Assim, em
Durkheim, a Administração necessariamente se especializará em algum trabalho,
e nisto fechando-se. Mas, por outro lado, a comunicação será cada vez mais
possível e cada vez mais necessária, a medida que a sociedade evolui. Essa
leitura ambivalente hoje seria cada vez mais complicada, à medida que não é fácil
encontrar uma “função” específica para a Administração e de outra banda, na
linha weberiana também é cada vez mais difícil distinguir burocracia
governamental de empresarial, por exemplo, ou vincular necessariamente
serviços públicos com cadeias piramidais de decisões tomadas por funcionários
especializados.

Max Weber (1864-1920), contudo, oferece uma teoria específica para a


Administração Pública.

A tarefa da sociologia, para Max Weber, é a compreensão do “significado”


de uma ação social187. A ação humana é aquela onde se enlaça um sentido
subjetivo, sendo uma ação social especificamente aquela onde a ação social está
orientada a outros. Uma ação com algum sentido é compreensível, e essa
compreensão em princípio é aberta, ao contrário das experiências mágicas, onde

187
WEBER, Max. Economía y Sociedad. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1999.p.5.
86

a compreensão é inacessível a quem não teve a experiência188. O acesso ao


sentido, em sede de uma ciência sociológica, dá-se pela evidência, as quais, por
sua vez, permitem a reconstrução da ação189. Em vista das evidências escassas
ou pouco acessíveis, o conhecimento possível estriba-se na reconstrução
intelectual dos fenômenos a partir das evidências possíveis190. O conhecimento
possível entrelaça-se com a cotidianeidade e com as pretensões de rigor
científicas a partir do ideal de tipos ou modelos que formam algo esperável e
padronizado191.

A ação social com sentido pode ser acessada a partir de um patamar de


explicação motivada, i.e., procura-se os motivos de uma ou outra ação. Os tipos
ajudam na compreensão. Por exemplo, a observação de um fiscal tributário
assinando um papel em frente a um estabelecimento leva à conclusão de que fora
feito um lançamento tributário a partir de uma infração, uma vez que nosso
conhecimento acerca da atividade do fiscal é o de que eles geralmente lançam
tributos e, quando estão in situ, a ação provável é o da geração de uma multa.

Llamamos “motivo” a la conexión de sentido que para el actor o el


observador aparece como el “fundamento” con sentido de una conducta.
Decimos que una conducta que se desarrolla como un todo coherente es
“adecuada por el sentido”, en la medida en que afirmamos que la
relación entre sus elementos constituye una “conexión de sentido” típica
192
[…] .

Essas conexões de sentido podem formar hipóteses legaliformes ou


probabilidades que geram expectativas que se confirmam. Estas são formadas
por ações, cuja observação só se dá ao olhando-se o indivíduo tomado
individualmente193, mas em contínua relação com o mundo.

A compreensão é tanto melhor quanto capaz de, através do exame dos

188
WEBER, Max. Economía y Sociedad. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1999.p.6.
189
ARGÜELLO, Katie Silene Cáceres. O Ícaro da Modernidade: Direito e Política em Max Weber.
São Paulo: Acadêmica, 1997. p.125: “A sociologia weberiana é, em síntese, uma ciência
compreensiva e causal, isto é, pode ser constatada a partir do sentido visado pelo indivíduo em
sua ação. Esse sentido é o motivo subjetivo-empírico que o sujeito possui para efetivar sua ação”.
190
WEBER, Max. Economía y Sociedad. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1999.p.7.
191
WEBER, Max. Economía y Sociedad. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1999.p.7.
192
WEBER, Max. Economía y Sociedad. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1999.p.10-
11.
193
Sendo as organizações coletivas complexos de ações individuais. WEBER, Max. Economía y
Sociedad. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1999.p.9
87

motivos, compreender a relação entre os fins planejados e meios utilizados (ação


racional). O porquê de se estatuir de pronto um modelo de racionalidade assim é
um tanto quanto obscuro em Weber – é como se fosse fundamentado a priori ou
como condição única para a formação de uma ação com sentido.

A compreensão liga-se com as hipóteses legaliformes descritas acima, as


quais possibilitam a formação dos tipos citados. A formação de conceitos tipos dá-
se pela generalização. Assim,

Como en toda ciencia generalizadora, es condición de la peculiaridad de


sus abstracciones el que sus conceptos tengan que ser relativamente
vacíos frente a la realidad concreta de lo histórico. Lo que puede ofrecer
como contrapartida es la univocidad acrecentada de sus conceptos
194
[grifos do autor] .

Para alcançar o desiderato da univocidade, cabe à Sociologia a criação de


tipos puros ou ideais. Uma aplicação desses tipos puros reflete-se na tipologia
das ações sociais. Elas podem ser (1) racionais vinculadas a fins: determinadas
por expectativas de comportamento do outro ou da natureza, sendo que estas
expectativas são condições para o alcance de fins racionalmente perseguidos; (2)
racionais vinculadas a valores: onde o valor determina determinada conduta, sem
preocupação com o resultado; (3) afetivas: determinada por estados emocionais
extremos; (4) tradicionais: ações sociais condicionadas por costumes
arraigados195.

Para os fins deste trabalho, importa dizer que, para Weber, as ações
sociais 1 e 2 podem aparecer ligadas, onde a seleção de distintos fins na ação
social finalística pode ser resultado de uma ação racional vinculada a valores196.
Todavia, desde a perspectiva da ação com relação a fins, a ação vinculada a
valores é irracional, ”acentuándose tal carácter a medida que el valor que la
mueve se eleve a la significación de absoluto, porque la reflexión sobre las
consecuencias de la acción es tanto menor cuanto mayor se la atención
concedida al valor propio del acto en su carácter absoluto [grifos do autor]”197.
Fazendo justiça a Max Weber, é bem claro na obra que nem a classificação é

194
WEBER, Max. Economía y Sociedad. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1999.p.17.
195
WEBER, Max. Economía y Sociedad. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1999.p.20.
196
WEBER, Max. Economía y Sociedad. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1999.p.21.
197
WEBER, Max. Economía y Sociedad. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1999.p.21.
88

exaustiva (ou seja, ele permite a existência de outras ações racionais, muito
embora estas sejam as predominantes) e, o que é mais importante, raramente
uma ou outra ação é encontrada exclusivamente em uma ou outra orientação (ou
seja, os tipos ideais raramente são encontrados no mundo real, de modo que os
fenômenos deste apresentam-se geralmente como uma mescla entre uma outra
orientação, mas com alguma predominância).

Esta é a interpretação de Giddens e também de Habermas. As


generalizações das condutas formam expectativas a partir das quais é possível
calcular a ação do outro e com isso formar estruturas estáveis de comportamento.

É importante enfatizar que, de acordo com seu esquema metodológico, a


“Moral” estava, do ponto de vista lógico, separada do “racional”. A
atribuição de racionalidade toma os objetivos morais ou os “fins” como
dados: Weber rejeitava completamente a concepção de que a esfera do
“racional” pudesse se estender à avaliação de padrões éticos
conflitantes. O que ele freqüentemente referia como “irracionalidade
Ética do mundo” era fundamental para a sua epistemologia. Afirmações
de fatos e julgamentos de valores estavam separados por um abismo
lógico absoluto: não havia nenhum caminho pelo qual o racionalismo
científico pudesse validar um ideal ético comparado a outro. O conflito
interminável entre sistemas éticos divergentes não poderia ser resolvido
198
pelo aumento do conhecimento racional [grifos do autor] .

A Sociologia preocupa-se com as regularidades na ação, ao contrário da


História, preocupada com questões singulares. Essas regularidades na ação tanto
mais se estabilizam quando estão vinculadas a uma ordem legítima ou capaz de
gerar obediência, “La probabilidad de que esto ocurra de hecho se llama “validez”
del orden em cuestión”199. Ordem é aquilo que teve relevância para ação, ou seja,
a pessoa praticou a ação porque existiu a ordem, e não por outro motivo. Quando
uma ordem tem prestígio e parece ser um modelo, trata-se de uma ordem
legítima. A ordem pode estar garantida por motivos íntimos (de ordem afetiva,
racional orientada a valores ou religiosa) ou por determinadas conseqüências
externas200. Essas conseqüências externas constituem, para Max Weber, a
diferença entre convenção social (reprovação social) e Direito (coação e
reprovação institucionalizada por um quadro de indivíduos especializados201).

198
GIDDENS, Anthony. Política, sociologia e teoria social: encontros com o pensamento social
clássico e contemporâneo. São Paulo: Unesp, 1998. p.53
199
WEBER, Max. Economía y Sociedad. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1999.p.25.
200
WEBER, Max. Economía y Sociedad. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1999.p.27.
201
ARGÜELLO, Katie Silene Cáceres. O Ícaro da Modernidade: Direito e Política em Max Weber.
89

Essas ordens podem ser internalizadas, todavia, por meio: a) da tradição (o que
sempre existiu), crença afetiva (novo revelado ou exemplar), crença racional
orientada a valores (o que é valioso deve ser preservado) e Direito estatuído
positivamente ou por decisão, em cuja legalidade se crê202. A legalidade deste
último pode advir de um pacto entre os interessados ou em virtude de uma
outorga.

La forma de legimidad hoy más corriente es la creencia en la legalidad:


la obediencia a preceptos jurídicos positivos estatuidos según el
procedimiento usual y formalmente correctos. La contraposición entre
ordenaciones pactuadas y “otorgadas” es sólo relativa. Pues cuando una
ordenación pactada no descansa en un acuerdo por unanimidad – como
con frecuencia se requería en la Antigüedad para que existiera
legitimidad auténtica -, sino más bien la sumisión de hecho, dentro de un
círculo de hombres, de personas cuya voluntad es empero discordante
de la de la mayoría – caso muy frecuente-, tenemos en realidad una
ordenación otorgada – impuesta – respecto de esas minorías. Por lo
demás, es también frecuente el caso de minorías poderosas, sin
escrúpulos, y sabiendo a dónde van, que imponen un orden, que vale
luego como legítimo para los que al comienzo se opusieran a él [grifos
203
do autor] .

O esquema de racionalidade também informa as diferenças entre


comunidade (ligada por laços traços afetivos ou tradicionais) ou sociedade
(compensação de interesses). A associação é uma relação social com regulação
limitadora “desde fuera cuando el mantenimiento de su orden está garantizado
por la conducta de determinados hombres destinada en especial a ese propósito:
un dirigente y, eventualmente, cuadro administrativo [grifos do autor]”204. Este
quadro administrativo, conforme o caso, ou é pessoal ou é criado com cargos.
Uma “ação na associação” ocorre quando aquele que ocupa o cargo realiza as
ordens da associação ou cumpre suas determinações. A associação conecta-se
tanto na comunidade como na sociedade.

É precisamente o conceito de “ação na associação” que inicia a explicação


weberiana de Administração Pública. As associações tanto influenciam seus
associados quanto os outros atores. Essa problemática está relacionada com a

São Paulo: Acadêmica, 1997. p.126: O Direito é, segundo Weber, um ordenamento legítimo, cuja
“validez” está garantida externamente, mediante a possibilidade de coação (física ou psíquica)
exercida por um quadro de funcionários instituídos para a função de fazer cumprir tal ordem”.
202
WEBER, Max. Economía y Sociedad. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1999.p.29.
203
WEBER, Max. Economía y Sociedad. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1999.p.30.
204
WEBER, Max. Economía y Sociedad. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1999.p. 39.
90

problemática do poder, ou seja, “la probabilidad de imponer la propia voluntad,


dentro de una relación social, aún contra toda resistência y cualquiera que sea o
fundamento de esa probabilidad”205. Ao poder liga-se outro conceito essencial
para os fins propostos que é o de dominação. Dominação é a possibilidade de se
encontrar obediência a um mandato entre pessoas dadas. Dominação é mais
específico que poder. Em uma situação de dominação alguém está mandando
eficazmente em outro.

Uma associação torna-se política quando funciona dentro de um âmbito


geográfico delimitado, a partir de um quadro administrativo capaz de fazer valer
seu poder. O Estado possui a pretensão específica de ter o monopólio legítimo da
coação física para a manutenção da ordem vigente206. Por conseguinte, uma ação
é orientada politicamente quando está a tentar influir em uma ordem de uma
associação política ou a uma nova distribuição de poderes207.

Para Weber, uma associação política como o Estado não pode ser definida
pelos seus fins, por que não há fim que não tenha sido ao menos tocado pelas
associações políticas. O Estado se desenvolve e gera unidade a partir de um
meio específico, qual seja, a coação física208. Importa salientar que “la coacción
no es en modo alguno el médio normal o único del Estado – nada de esto – pero
sí su medio específico”209.

Isso remete finalmente ao campo do político. Para Weber, este domínio é


extremamente vasto. Todavia, a política mais importante é a que se relaciona à
influência que se exerce sobre o grupamento “Estado”210. A política seria, para
Max Weber, a aspiração à participação no poder ou a influência neste através de

205
WEBER, Max. Economía y Sociedad. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1999.p.43.
206
WEBER, Max. Economía y Sociedad. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1999.p.44.
207
WEBER, Max. Economía y Sociedad. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1999.p.44.
208
WEBER, Max. Economía y Sociedad. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1999.p.
1056.
209
WEBER, Max. Economía y Sociedad. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1999.p.
1056.
210
WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações. São Paulo: Martin Claret, 2005. p.59: “Sem
dúvida, é próprio da nossa época o não reconhecer, com referência a qualquer outro grupo ou aos
indivíduos, o direito de fazer uso da violência, a não ser nos casos em que o Estado o tolere.
Nesse caso, o Estado se transforma na única fonte do “direito” à violência. Por conseguinte,
entenderemos por política o conjunto de esforços feitos visando a participar do poder ou a
influenciar a divisão do poder, seja entre Estados, seja no interior de um único Estado.
91

um uso lingüístico na comunidade. Quando se diz que algo é político, sempre


haverá problemas de distribuição e conservação de poder. O Estado211 será uma
relação de domínio de homens sobre homens considerada legítima. A coação “é
seu instrumento específico”212.

Toda a dominação sobre homens requer, de alguma maneira, um quadro


administrativo, “es decir, la probabilidad, en la que se puede confiar, de que se
dará una actividad, dirigida a la ejecución de sus ordenaciones generales y
mandatos concretos, por parte de un grupo de hombres cuya obediencia se
espera [grifos do autor]”213. A legitimidade de uma dada dominação é considerada
probabilidade de que se venha a obedecer às ordens.

É de todos conhecido os tipos puros (ou seja, raramente encontráveis em


sua totalidade em exemplos históricos) de dominação legítima: a) dominação
racional (crença na legalidade de ordenações positivas, autoridade legal214); b)
dominação tradicional (crença cotidiana) e; c) dominação carismática (entrega à
santidade, ao heroísmo ou exemplaridade).

En el caso de la autoridad legal se obedecen las ordenaciones


impersonales y objetivas legalmente estatuidas y las personas por ellas
designadas, en mérito éstas de la legalidad formal de sus disposiciones
dentro del círculo de su competencia. En el caso de la autoridad
tradicional se obedece a la persona del señor llamado por la tradición y
vinculado por ella (en su ámbito) por motivos de piedad (pietas), en el
círculo de lo que es consuetudinario. En el caso de la autoridad
carismática se obedece al caudillo carismáticamente calificado por
razones de confianza personal en la revelación, heroicidad o
ejemplaridad, dentro del círculo en que la fe en su carisma tiene validez
215
[grifos do autor] .

O Direito moderno, para Max Weber, é estatuído, ou seja, posto, e de


maneira racional, de modo a ser respeitado pelos membros da associação. O

211
WEBER, Max. Economía y Sociedad. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1999.p.
1060: “Desde el punto de vista de nuestra consideración importa, pues, destacar lo puramente
conceptual en el sentido de que el Estado moderno es una asociación de dominio de tipo
institucional, que en el interior de un territorio ha tratado con éxito de monopolizar la coacción
física legítima como instrumento de domínio, y reúne a dicho objeto los medios materiales de
explotación en manos de sus directores, pero habiendo expropriado para ello a todos los
funcionarios de classe autónomos, que anteriormente disponían de aquéllos por derecho propio, y
colocándose a sí mismo, en lugar de ellos, en la cima suprema”.
212
WEBER, Max. Economía y Sociedad. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1999.p. 60.
213
WEBER, Max. Economía y Sociedad. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1999.p.170.
214
WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações. São Paulo: Martin Claret, 2005. p.61.
215
WEBER, Max. Economía y Sociedad. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1999.p.173.
92

ordenamento é também um cosmo de regras, existindo funcionários para a


aplicação da norma ao caso concreto e uma Administração que busca os fins
previstos na ordenação216. A dominação racional só vai poder ser exercida a partir
de um exercício continuado, sujeito à lei, de funções dentro de um determinado
âmbito de competência. Competência, para Weber, é um âmbito delimitado de
deveres e poderes conforme a função e com a fixação estrita dos meios coativos
eventualmente necessários para a aplicação do ordenamento. Estas
competências são ocupadas por autoridades.

Todavia, e aí o âmbito propriamente dito da Administração parece aparecer


em Weber, essas autoridades estão estruturadas hierarquicamente pelo Direito a
partir de regras fixadas de antemão, de modo a que exista vinculação da
autoridade inferior com a superior217. Dentro da hierarquia só entram
conhecedores do assunto, ou seja, pessoas com formação profissional218. Estes,
uma vez inseridos dentro da burocracia, tornam-se funcionários. Note-se que,
neste pé, Weber descreve as organizações burocráticas em geral – como a
empresa capitalista, e não somente a Administração Pública. Em uma
organização burocrática vige ainda uma separação estrita entre pessoal e meios
de Administração e produção. Por exemplo, o fiscal de tributos não é dono do
automóvel e do computador com o qual irá lidar para realizar o lançamento.
Existe, além disso, diferença entre o cargo e aquele que o exerce. O cargo é
regido por determinadas normas legais, sendo que a pessoa que irá ocupar o
lugar desimporta, vez que será sempre um profissional selecionado apto a
cumprir a competência daquele cargo. A esses caracteres se acrescenta a idéia
de saber especializado e secreto de uma determinada burocracia:

La administración burocrática significa: dominación gracias al saber; éste

216
WEBER, Max. Economía y Sociedad. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1999.p.173.
217
WEBER, Max. Economía y Sociedad. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1999.p.174.
218
WEBER, Max. Economía y Sociedad. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1999.p.177:
“El grado de calificación profesional está en constante crecimiento en la burocracia. Incluso el
funcionario sindical o de partido necesita también de un saber profesional (empíricamente
adquirido). El que los modernos ‘ministros’ y ‘presidentes’ sean los únicos ‘funcionarios’ que no
requieren la calificación profesional demuestra: que son funcionarios sólo en sentido formal pero
no en sentido material, de igual modo que el director general (gerente) de una gran compañía
anónima. La situación de empresario capitalista representa algo tan plenamente “apropiado” como
la de monarca. La dominación burocrática tiene, pues, en su cima inevitablemente un elemento,
por lo menos, que no es puramente burocrático. Representa tan sólo una categoría de la
dominación por medio de un cuadro administrativo especial [grifos do autor]”.
93

representa su carácter racional fundamental y específico. Más allá de la


situación de poder condicionada por el saber de la especialidad la
burocracia (o el soberano que de ella se sirve) tiene la tendencia a
acrecentar aún más su poder por medio del saber de servicio:
conocimiento de hechos adquirido por las relaciones del servicio o
“depositado en el expediente”. El concepto de “secreto profesional”, no
exclusivo pero sí específicamente burocrático […] Superior en saber a la
burocracia – conocimiento de la especialidad de los hechos dentro del
círculo de sus intereses – sólo es, regularmente, el interesado privado de
una actividad lucrativa […] Todos los demás, en las asociaciones de
masas, están irremisiblemente sometidos al imperio burocrático, en igual
forma que la producción en masa lo está al dominio de las máquinas de
219
precisión [grifos do autor] .

Esse saber é utilizado de maneira grave e séria, formal, sem maiores


excitações. O formalismo seria justificado como tratamento igual a todos e,
portanto, afastamento da arbitrariedade.

Note-se, todavia, que para Max Weber, os colegiados e a divisão de


poderes são reduções e limitações da dominação:

Una dominación burocrática puede estar limitada (y debe estarlo


cabalmente de modo normal, en caso de un desarrollo completo del tipo
de legalidad, para que puede administrarse sólo según reglas) por
magistraturas que, por derecho propio, se colocan al lado de la jerarquía
burocrática y que poseen: a) el control y eventual comprobación del
cumplimiento de las normas, b) el monopolio, también, de la creación de
todas las normas o de aquellas decisivas para la libertad de disposición
de los funcionarios; y, eventualmente, y sobre todo, c) el monopolio,
asimismo, de la concesión de los medios necesarios para la
220
administración .

A divisão de competências levaria, com controle externo, a um


desempenho mais racional das funções próprias, com incremento da objetividade
e da possibilidade de evitar influências externas indevidas. Max Weber destaca
também tentativas históricas de participação junto à Administração, tais como: a)
prazos curtos para o exercício de cargos; b) revogação possível a todo instante;
c) princípios de turnos ou sorteio, de modos que todos possam alguma vez
ocupar o cargo (evitando a criação de um saber secreto); d) o estabelecimento de
mandatos de opinião vinculada à base; e) dever de prestação de contas à
assembléia; f) dever de levar à assembléia as condições especiais e não
previstas; g) a existência de numerosos cargos de controle, que são acessórios à
burocracia.

219
WEBER, Max. Economía y Sociedad. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1999.p.179.
220
WEBER, Max. Economía y Sociedad. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1999.p.218.
94

A organização jurídica, para Max Weber, influencia diretamente sobre a


distribuição de poder221 dentro de uma dada sociedade, a qual pode ser
observada mediante as categorias analíticas de classes, estamentos e partidos,
sendo estas categorias os espaços de geração de encadeamentos homogêneos
que permitem o acesso ao poder. Tanto é assim que Weber aloca a categoria
“dominação” como uma das principais na sociedade.

A dominação está ligada a questões de governo. Todo governo necessita


em algum nível de dominação. “El poder de mando puede tener una modesta
apariencia y el jefe puede considerarse como un “servidor” de los dominados.
Esto ocurre casi siempre en el llamado gobierno directamente democrático [grifos
do autor]”222. O governo é democrático para Weber quanto a) todos são
considerados igualmente habilitados para discutir assuntos comuns e b) porque o
poder de mando está reduzido ao mínimo. Os cargos estão distribuídos por
sistemas de turnos, correspondendo aos funcionários somente a preparação e
execução das disposições, assim, como a “dirección de los asuntos corrientes”223.

A dominação é legal em virtude de seu caráter.

Su tipo más puro es la dominación burocrática. Su idea básica es: que


cualquier derecho puede crearse y modificarse por medio de un estatuto
sancionado correctamente en cuanto a la forma. La asociación
dominante es elegida o nombrada, y ella misma y todas sus partes son
servicios. In servicio (parcial) heterónomo y heterocéfalo suelo puede
designarse como autoridad. El equipo administrativo consta de
funcionarios nombrados por el señor, y los subordinados son miembros
224
de la asociación (“ciudadanos”, “camaradas”) [grifos do autor] .

Uma associação, contudo, nunca é completamente burocrática porque


sempre será encabeçada por um chefe que não é funcionário, tal como um
presidente eleito pelo povo.

221
WEBER, Max. Economía y Sociedad. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1999.p.682:
“Todo ordenamiento jurídico (y no sólo el “estatal”) influye directamente, en virtud de su estructura,
sobre la distribución del poder dentro de la comunidad respectiva, y ello tanto si trata del poder
económico como de cualquier otro. Por “poder” entendemos aquí, de un modo general, la
probabilidad que tiene un hombre o una agrupación de hombres, de imponer su propia voluntad en
una acción comunitaria, inclusive contra la oposición de los demás miembros [grifos do autor]”.
222
WEBER, Max. Economía y Sociedad. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1999.p.701.
223
WEBER, Max. Economía y Sociedad. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1999.p.701.
224
WEBER, Max. Economía y Sociedad. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1999.
p.707.
95

A burocracia configura-se pela idéia de competência. Existe uma firme


distribuição de atividades e deveres metódicos considerados oficiais, com
poderes para a realização desses deveres bem especificados e a nomeação de
pessoas capacitadas a tanto225. Rege-se pelo princípio da hierarquia funcional. Os
funcionários aprendem os segredos da Administração e gozam do recebimento de
um numerário público e de estima social por parte do dominado226. A estrutura
burocrática é uma atividade contínua, sendo servida sempre de alguma utilidade
permanente para sua conservação. No regime administrativo burocrático, tal
atividade econômica que sustenta a burocracia encontra-se nos tributos.

As tarefas administrativas estendem-se cada vez mais, para Max Weber


em sua época, não só quantitativamente quanto qualitativamente. Esta expansão
qualitativa encontra explicação na complicação cada vez maior da cultura227. Esta
cultura, mesmo que demande mais qualidade e pluralidade e em termos de
serviços públicos, está acostumada à pacificação promovida pela burocracia, bem
como a segurança em todos os âmbitos promovida por ela.

A rigorosa organização administrativo-burocrática permite uma maior


segurança, rapidez, uniformidade, subordinação e continuidade em comparação
com outras formas de organização administrativa. Isso gera e reflete uma
contínua aceleração dos fatos e da necessidade de reação:

La exigencia de una tramitación en lo posible más rápida, precisa,


unívoca y continua es impuesta a la administración en primer lugar por la
economía capitalista moderna. Las grandes empresas capitalistas
modernas representan, por lo general, modelos no igualados de rigurosa
organización administrativa. Su vida de negocios descansa en una
precisión creciente, en una continuidad y sobre todo velocidad de las
operaciones. Lo que está condicionado a su vez por la peculiaridad de
los medios del tráfico moderno, de los que forma parte también el
servicio de informaciones de prensa. La extraordinaria aceleración en la
transmisión de comunicaciones oficiales, de noticias referentes a hechos
económicos o puramente político ejerce de por sí una presión constante
en el sentido de acelerar el ritmo de la reacción de la administración
frente a las situaciones dadas, y el óptimo en este sentido se consigue

225
WEBER, Max. Economía y Sociedad. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1999.
p.717.
226
WEBER, Max. Economía y Sociedad. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1999.
p.726.
227
WEBER, Max. Economía y Sociedad. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1999.
p.729.
96
228
con una burocratización rigurosa [grifos do autor] .

A objetividade da Administração burocrática é alcançada mediante a


previsibilidade a partir da congruência formada por normas e a desconsideração
do destinatário229. Esta congruência que forma a norma vincula a Administração
burocrática. É precisamente nesta seara que uma das hipóteses desta
dissertação é formulada. A descrição da racionalidade weberiana de meios-fins
atinge a objetividade necessária para o trato impessoal com o administrado.

Essas descrições culminam em uma certa melancolia por parte de Weber,


ao buscar antecipar os movimentos políticos vindouros. Interroga-se acerca de230:
1) como é possível salvar um mínimo de liberdade individual?; 2) como é possível
controlar a burocracia em termos de no mínimo limites razoáveis?; 3) como é
possível equalizar os binômios formação-responsabilidade, presentes em maior
escala nos funcionários e nos chefes, respectivamente? Esta situação é agravada
pela visão de que a “parlamentarização”, entendida como o domínio dos partidos,
é incompatível com a Democracia, vez que a ascensão dentro dos partidos dá-se
pela valoração honorária231. É de notar-se, todavia, que Weber não vê saída
factível ao sistema de parlamentos, os quais são mais adequados à complexidade
moderna.

Modernamente, na visão de Weber, a política exige disponibilidade de


tempo e relativa independência com relação aos frutos da política, daí ser mais
fácil ao capitalista que às outras classes dedicar-se à política232. Essa proposição
se conecta a uma metáfora de Democracia como seleção de elites comparada a
uma empresa privada:

Tudo se passa de maneira semelhante numa empresa privada. O


verdadeiro soberano, isto é, a assembléia de acionistas, numa empresa

228
WEBER, Max. Economía y Sociedad. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1999.
p.731.
229
ARGÜELLO, Katie Silene Cáceres. O Ícaro da Modernidade: Direito e Política em Max Weber.
São Paulo: Acadêmica, 1997. p.129: “[...] o recurso a normas gerais e abstratas, no processo de
decisão, é característica de uma ordem jurídica racional, que permite um grau elevado de previsão
e cálculo”.
230
WEBER, Max. Economía y Sociedad. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1999.
p.1075.
231
WEBER, Max. Economía y Sociedad. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1999.
p.1103.
232
WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações. São Paulo: Martin Claret, 2005. p.69
97

privada, está tão desprovida de influências a respeito da gestão dos


negócios quanto um “povo” dirigido por funcionários especializados. As
pessoas que têm poder de decisão na política da empresa, quer dizer, os
membros do “conselho administrativo”, dominadas pelos bancos, nada
mais fazem que traçar as diretrizes econômicas e designar quem seja
competente para dirigir a empresa, já que elas próprias não têm aptidão
233
para administrá-la tecnicamente .

Isso vai levar a uma divisão entre duas espécies de políticos, com
responsabilidades diferentes: um tipo de político “criativo”, que recebe adesão das
massas, tornando-se líder e agindo de maneira mais ou menos inovadora; e o
político “profissional”, o qual, mesmo mantendo alto grau de responsabilidade e
poder de decisão (comparado com o funcionário de carreira), incorpora-se
burocraticamente ao sistema, sem possibilidade de inovar234. Este último
geralmente é pouco independente e vive da política.

O político verdadeiro deverá ter: paixão, sentimento de responsabilidade e


senso de proporção:

Paixão no sentido de “propósito a realizar”, ou seja, devoção apaixonada


a uma “causa” [...] Certamente, só a paixão, por mais sincera que seja,
não basta. Quando se põe a serviço de um ideal, sem que o
correspondente sentimento de responsabilidade se torna a estrela polar
determinante da atividade, ela não transforma um homem em líder
político. Em suma, necessita-se do senso de proporção, que é a
235
qualidade psicológica fundamental do homem político .

A Ética adequada para o político é uma “Ética da responsabilidade”, onde,


mais do que assumir simples convicções, o político vai ter de assumir as
conseqüências de sua ação236.

Não é possível deixar de se impressionar com a descrição weberiana. A


questão será, daqui para diante, verificar se tal descrição precisa ser totalmente
reformulada ou adaptada. Habermas começa por criticar a noção de razão
instrumental subjacente.

233
WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações. São Paulo: Martin Claret, 2005. p77
234
WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações. São Paulo: Martin Claret, 2005. p.105.
235
WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações. São Paulo: Martin Claret, 2005. p.108.
236
PINTO, F. Cabral. Leituras de Habermas: modernidade e emancipação. Coimbra: Fora do
Texto, 1992. p.212: “É, pois, outra a Ética que preside à conduta do político profissional moderno.
Max Weber designa-a por “Ética da responsabilidade” (Verantowortungsethik) e vê nela a
exigência deste princípio: aquele que exerce a política como vocação deve assumir as
conseqüências das decisões que tomar nesse domínio“.
98

Antes, todavia, no próximo tópico, será verificada algumas observações de


Administração Pública no Brasil com o intento de perceber o predomínio da razão
instrumental neste âmbito.

2.3 Modelos de Gestão Pública no Brasil

O intento desta seção é fixar, rapidamente, os modelos de Gestão Pública


Compartida presentes na história brasileira. Despreza-se o período anterior ao
modelo de Estado Social da década de 30 não como irrelevante, mas sim porque
seria muito detalhamento em vista do objetivo desta seção.

Uma Administração Pública vai surgir com contornos mais definidos e mais
vigor a partir da revolução de 1930, levada a cabo pelos tenentistas e novas
oligarquias. O senso comum da época demandava, a reboque das tendências
mundiais, uma atuação já técnico-burocrática cada vez mais ampla. Esta atuação
foi construída como uma “terceira via” entre os defeitos do capitalismo e do
socialismo. A atuação do Estado é direta e ampla sobre os diversos setores. Se
os fins são postos, por óbvio, politicamente, as justificações são colocadas
apolicaticamente, como as únicas alternativas sérias diante das ideológicas. A
neutralidade do Estado reflete-se na formação especializada de seus
237
funcionários, aos quais é proibida a sindicalização e a greve . Aliás, o manejo do
funcionalismo público caracterizou esta primeira fase de Administração Pública
moderna. O empirismo da resolução casual de problemas é substituído por uma
racionalidade meios-fins planejadora de longos prazos (que, como se sabe, nem
assim funcionou), sendo que a Administração e o estudo desta especializa-se,
voltando-se para as melhores técnicas de atingimento dos fins postos
politicamente. Estes, na década de 30 do século XX, concentram-se na união dos
brasileiros e no desenvolvimento de um aparato estatal, motivo pelo qual também

237
KEINERT, Tânia Margarete Mezzomo. Administração Pública no Brasil: crises e mudanças
de paradigmas. São Paulo: Annablume, Fapesp, 2000. p.116.
99

a idéia de centralização política e administrativa era privilegiada238. Em termos


organizativos, caracteriza-se esta fase pela existência de um órgão encarregado
do planejamento administrativo, o DASP – Departamento Administrativo do
Serviço Público239.

Uma segunda fase da moderna Administração brasileira levou a um certo


questionamento da centralização e à verificação da necessidade de controles
sociais, muito embora a Administração de cunho varguista, porque baseada na
racionalidade estratégica, mantenha seus lineamentos principais até hoje. A partir
da década de 50, a ideologia administrativista volta-se a um desenvolvimentismo
nacional preconizando uma maior interação entre privado como empresarial e o
público como estatal. Os vários chefes do Poder Executivo desta época
apresentaram projetos de lei visando reformar a Administração. No governo
Juscelino Kubitschek fora criada a CEPA – Comissão de Estudos e Projetos
Administrativos, com o fim de levar as reformas a cabo; já João Goulart criou um
ministério específico para tanto. Estas novas variáveis culminam em um maior
prestígio, por exemplo, da Administração indireta, a partir do decreto-lei nº
200/1967. Note-se que tal documento fora produzido com fundamento de validade
em um ato institucional, já que naquela época, como se sabe, não existia governo
no sentido estrito do termo, isto é, uma organização, cujos chefes são escolhidos
pelos destinatários dos serviços que segue leis elaboradas por um parlamento
eleito. O próprio fato de tal medida materializar-se em decreto-lei demonstra o
quão prática e conceitualmente se concebia Administração Pública como afastada
de parâmetros democráticos240. Note-se já um arremedo privatizante nas
afirmações de chefes de Estado, como Castello Branco, em alcançar a eficiência
238
KEINERT, Tânia Margarete Mezzomo. Administração Pública no Brasil: crises e mudanças
de paradigmas. São Paulo: Annablume, Fapesp, 2000. p.130.
239
DIAS, Maria Tereza Fonseca. Direito Administrativo Pós-Moderno: novos paradigmas do
Direito Administrativo a partir do estudo da relação entre o Estado e a sociedade. Belo Horizonte:
Momentos, 2003. p.179: “As reformas intentadas no seio do DASP, como a imparcialidade no trato
das questões administrativas, a busca de uma neutralidade política, filosófica e religiosa com base
no processo decisório, o anonimato, ao invés da personalização, no desempenho da função
pública, o sistema de ingresso por concurso, perspectivas de ‘carreira profissional’ e ênfase nas
regras escritas, acabaram por construir uma burocracia qualificada baseada no mérito”.
240
DIAS, Maria Tereza Fonseca. Direito Administrativo Pós-Moderno: novos paradigmas do
Direito Administrativo a partir do estudo da relação entre o Estado e a sociedade. Belo Horizonte:
Momentos, 2003. p.187: “A questão posta na raiz da edição do Decreto-lei n.200/67 é a
inexistência de necessidade para instituir, por Decreto, a Reforma Administrativa Federal, oriunda,
segundo seus proponentes, de um amplo debate público. No regime militar, essa não foi, sequer,
uma questão suscitada para debate”.
100

da empresa privada241. O texto legal é emblemático:

Art.6º As atividades da administração federal obedecerão aos seguintes


princípios fundamentais: I – planejamento; II – coordenação; III –
242
descentralização; IV – delegação de competência; V – controle .

O Decreto-Lei nº 200 sofreu forte influência do ideário de


desburocratização do ministro do planejamento da época, Hélio Beltrão, o qual
sucedera Roberto Campos. Hélio Beltrão era funcionário público de carreira,
tendo atuado nos IAPIs e na Petrobrás. Note-se que Hélio Beltrão capitaneou
ainda novas tentativas de desburocratização nos anos 70 e 80.

Segue-se, já nos anos 70, o Plano Nacional de Desburocratização, também


focado na reorganização de hierarquias e eliminação de procedimentos inúteis.
Note-se que tais planos estavam embasados em uma noção de Administração
Pública ineficiente, gastadora e despreparada. A noção de cidadão como
trabalhador é substituída por cliente da Administração Pública, sendo que se inicia
um processo de colocação em pauta de maiores liberdades procedimentais e
maior foco em resultados.

Essas concepções ideológicas serão reforçadas com o advento do


neoliberalismo. Novamente, percebe-se a Administração Pública como ineficiente
e gastadora. Nos anos 1990, porém, o enfoque não é uma nova reforma na
Administração Pública, mas sim o remanejamento de seu espaço, que deve ser
diminuído em determinadas matérias e transformado em outras. Em 1986 é criada
a Secretaria de Administração Pública da Presidência da República (SEDAP).
1990 é o ano do Programa Federal de Desregulamentação (Decreto n.99.179/90).
Em 1995 é elaborado o Plano Diretor da Reforma do Estado – note-se que pouco
a pouco a reforma administrativa passou de problemas de gerência do
funcionalismo à reforma do Estado brasileiro. Sob o advento do neoliberalismo e
dos novos populismos, a crítica à Administração recebe um plus, onde não só o
Estado é percebido como gigante, mas também seus funcionários como
portadores de privilégios, constituindo um entrave para o desenvolvimento

241
DIAS, Maria Tereza Fonseca. Direito Administrativo Pós-Moderno: novos paradigmas do
Direito Administrativo a partir do estudo da relação entre o Estado e a sociedade. Belo Horizonte:
Momentos, 2003. p.189.
242
BRASIL. Decreto-Lei n. 200, de 25 de fevereiro de 1967.
101

nacional243.

La política de reducir el Estado tiene como objetivo realizar un constante


arbitraje de éste a favor de los ingresos del capital en detrimento de los
ingresos del trabajo. Los detractores del Estado del Bienestar defienden
sus posiciones basándose en dos razones fundamentales […] La primera
de ellas, de orden económico, insiste en los problemas de sobrecarga
producidos en la demanda económica y la segunda, de orden político,
radicaría en los factores de ingobernabilidad que se derivan de esa
sobrecarga impuesta al Estado. La solución consiste, por tanto, en
descargar al Estado de esa pesada carga que le impide funcionar. De
ahí la necesidad de desreglar y liberalizar ciertas funciones que hasta
ahora habían sido asumidas por él mismo. Una liberalización que
afectaría no sólo a determinadas actividades económicas, sino también,
y sobre todo, a la política de bienestar social (sanidad, pensiones,
empleo, etcétera). Los actuales procesos de liberalización están siendo
impulsados fundamentalmente por las instituciones financieras a nivel
mundial y los gobiernos de los países más ricos abanderados por EE
UU. Detrás de este grupo institucional se encuentran las grandes
244
empresas transnacionales y el capital financiero .

Tudo é permeado por um discurso oficial que busca legitimar o modelo


como se fosse participativo. A Constituição de 1988 seria uma das culpadas pelo
atraso do Brasil com relação ao outros países, pois manteve os privilégios
corporativistas e patrimonialistas de então245. No início dos anos 90, os governos
que assumem proclamam a crise do Estado, a ineficiência da Administração
Pública e a incompetência de seus agentes – crítica essa advinda de uma nova
onde já consolidada nos países vizinhos. Esse movimento coincide com o apogeu
da doutrina neoliberal em sua forma mais pura, sem a notícia dos desastres que
se avizinham em termos sociais e econômicos. O presidente Fernando Collor de
Mello já toma medidas em tal sentido, propondo terceirizações e limites à
contratação de novos servidores. Culmina o processo de reforma administrativa,
pois, no plano da era Fernando Henrique, o Plano Diretor da Reforma do Estado.
Trata-se da visão de Administração Pública gerencial, de forte matiz

243
DIAS, Maria Tereza Fonseca. Direito Administrativo Pós-Moderno: novos paradigmas do
Direito Administrativo a partir do estudo da relação entre o Estado e a sociedade. Belo Horizonte:
Momentos, 2003. p.200.
244
PERALTA, Antonio Espantaleón. Neoliberalismo, Globalización y Estado de Bienestar. GóMEZ,
Manuel Herrera; REQUENA, Antonio Trinidad. Administración Pública y Estado de Bienestar.
Madrid: Civitas, 2004. p.130. Obviamente que incapacidade de o Estado lidar com demandas
públicas em grande parte é mito. O autor cita, por exemplo, a distribuição de subvenções estatais
pelo governo dos Estados a empresas de Nova York após o atentado de 11 de setembro.
245
DIAS, Maria Tereza Fonseca. Direito Administrativo Pós-Moderno: novos paradigmas do
Direito Administrativo a partir do estudo da relação entre o Estado e a sociedade. Belo Horizonte:
Momentos, 2003. p.200: “Bresser Pereira (1995) refere-se aos diversos mitos burocráticos
inseridos na Constituição de 1988, tais como, a estabilidade do servidor público, a rigidez da
norma de concurso público para qualquer situação, o sistema de carreira, entre outros”.
102

estadunidense – influência, sem falsas críticas, como se sabe, do Fundo


Monetário Internacional. O discurso oficial fora escandalosamente adotado por
renomados juristas:

A Administração Pública [...] passou por distintas fases [...] a fase do


estatismo, em que passou a prevalecer o interesse do Estado,
caracterizando a administração burocrática [...] a fase da Democracia,
ascendendo como prevalecente o interesse da sociedade,
246
caracterizando a etapa da administração gerencial [grifos do autor] .

O plano buscava enfrentar um Estado que se percebia como em uma crise


fiscal (dificuldade em financiar-se), ideológica (deslegitimação dos programas
assistencialistas do Estado Social) e administrativa (ineficácia). A visão era a de
redução do tamanho do Estado para que se resumisse a um núcleo essencial247.
Obviamente que o que vem a ser esse núcleo essencial fora posto de maneira
decisionística e apriorística, sem maiores discussões. Para tanto, adotou-se um
modelo regulativo, com a entrega de serviços à iniciativa privada. A ideologia da
época pareceu atrativa para grande parte da população, a despeito até da
maneira descarada e ingênua que era apresentada. Por exemplo, as
privatizações foram vistas como “devolução” de serviços à sociedade, antes
“adonados” pelo Estado, como se a totalidade da sociedade pudesse manejar
esses serviços...

Com atenção a essas vantagens, notadamente a agilização da decisão e


seu maior comprometimento com a eficiência, é que se passou a
considerar a conveniência de transferir certas atividades do Estado para
a sociedade, e por vezes não só a gestão como a normatividade
secundária, com isso não só se logrando eliminar longas discussões
políticas protelatórias e na maioria das vezes inúteis, como, ainda,
afastar as inevitáveis burocracias e desperdícios em sua execução, tudo

246
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo. 2ª ed. São
Paulo: Renovar, 2001. p.17
247
PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Crise Econômica e Reforma do Estado no Brasil: para uma
nova interpretação da América Latina. São Paulo: editora 34, 1996. p.50: “É essencial à
interpretação da crise do Estado a idéia de que a crise é uma conseqüência da existência de um
Estado muito fraco, e não de um Estado forte. A crise não é conseqüência de um Estado que
cresceu e se tornou demasiadamente forte e grande, mas de um Estado que cresceu e se tornou
grande mas fraco, e, portanto, incapaz de arcar com suas funções específicas de complementar e
corrigir as falhas do mercado. O Estado foi enfraquecido e imobilizado pela crise fiscal, que é
resultado do crescimento distorcido e desordenado do aparelho do Estado. O objetivo das
reformas estruturais não é atingir o “Estado mínimo”, mas reduzi-lo e definir uma nova estratégia
de desenvolvimento, consistente com as novas realidade econômicas internacionais –
particularmente a globalização e a redução da capacidade de intervenção do Estado”. Tais
observações talvez fossem diferentes diante dos sucessivos recordes de arrecadação do Estado
apenas com aumento da fiscalização (sem aumento de carga tributária) e de quitações de grandes
montantes da divida externa ocorridos na contemporaneidade.
103

dentro do marco que se convencionou denominar de privatização [grifos


248
do autor] .

A essa principal medida, buscou-se também a implantação do modelo


gerencial no que restar de Administração Pública, para tanto reduzindo custos,
simplificando procedimentos e introduzindo controles por resultados (perceba-se
novamente a repetição de conceitos, apresentados, à época, como novidade);
participação do cidadão na Administração (como cliente lesado por um serviço
mal-prestado) e publicização de certas entidades privadas, atribuindo-as serviços
públicos249. Note-se que, na citação acima, existe a idéia de também uma
despolitização da Administração Pública, agora voltada a um agir mais “prático”.
O modelo gerencial diferenciar-se-ia do modelo burocrático porque existe
descentralização do ponto de vista político e administrativo, gerências autônomas,
menos níveis hierárquicos, pressupondo-se confiança limitada e não desconfiança
total, controle dos resultados e não dos procedimentos, orientação ao cidadão e
não à própria Administração250.

Essas reformas foram levadas a efeito através de diversas normas, mais


notadamente as emendas constitucionais nº. 19 e 20, além de toda uma plêiade
de leis ordinárias que regularam o modelo gerencial, as privatizações e as
agências reguladoras e executivas. O discurso oficial pregou a reforma não só
como um imperativo da nova Economia e da globalização, mas também como um
anseio da sociedade251. Note-se que, à época das modificações no Estado, não

248
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo. 2ª ed. São
Paulo: Renovar, 2001. p.129.
249
Note-se que mesmo nesta postura o financiamento estatal parece longe de ser extinto, mesmo
na idealidade neoliberal. PEREIRA, Luiz Carlos Bresser; GRAU, Nuria Cunill. Entre o Estado e o
Mercado: o público não-estatal, in: PEREIRA, Luiz Carlos Bresser; GRAU, Nuria Cunill (orgs.) O
Público Não-Estatal na Reforma do Estado. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1999. p.
34: “O reconhecimento da relevância do setor público não-estatal na produção de bens públicos
não pode, no entanto, conduzir à negação do aporte do Estado para seu sustento. A
transformação de serviços sociais estatais em públicos não-estatais não significa que o Estado
deixe de ser responsável por eles. Pelo contrário, todas as evidências apontam para a conclusão
de que o financiamento público estatal será cada vez mais necessário”.
250
PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Reforma do Estado e Administração Pública Gerencial. In:
PEREIRA, Luiz Carlos Bresser; SPINK, Peter Kevin (orgs.). Reforma do Estado e Administração
Pública Gerencial. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999. p.243
251
PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Sociedade Civil, sua democratização para a reforma do Estado.
in: PEREIRA, Luiz Carlos Bresser; WILHEIM, Jorge; SOLA, Lourdes (orgs.). Sociedade e Estado
em Transformação. São Paulo: Unesp, 1999. p.86: “É nesse quadro que, nos anos 90, as
sociedades civis democráticas se colocam como projeto a reforma ou a reconstrução do Estado.
Nestes termos, quando proponho o problema da crise e da reconstrução do Estado, não estou
mais me referindo a um problema de afirmação do Estado perante a sociedade, mas à
104

existiam limites à edição das medidas provisórias – inseridas apenas após a


Emenda Constitucional n. 32, de 2001, de modo que o instrumento, na época com
feições nitidamente autoritárias, fora muito utilizado para tanto. Persiste a
dicotomia entre política e racionalidade técnico-administrativa252.

Releva apontar que as reformas da Administração e do Estado, como visto,


sempre foram motivadas pelas mesmas razões e sempre apontaram para a
mesma direção. Foram elaboradas de maneira política, conforme o momento,
mas com um discurso técnico-científico e, isto é o principal, ao largo de maiores
discussões com a sociedade253, sendo seus processos de implantação
geralmente violentos, com emendas constitucionais e medidas de exceção254.

Essas concepções foram agasalhadas pela doutrina especializada, a qual


assumiu conotações autoritárias dada sua vinculação com paradigmas teóricos

recuperação da governança do Estado que foi transitoriamente comprometida pela crise – estou
falando da reforma e do fortalecimento do Estado por iniciativa da sociedade civil, e não contra
ela”.
252
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo. 2ª ed. São Paulo:
Renovar, 2001. p.128-129: “Afirmado que nem todo público é necessariamente estatal, cumpre,
também, estabelecer-se uma distinção pragmática entre as decisões políticas, quando
indispensáveis às definições do público estatal, e as decisões técnicas, que devem ser feitas na
satisfação do interesse público tout court, seja ou não estatal [...] Ao se distinguir a decisão
técnico-administrativa, exclusiva ou preponderantemente racional, da político-administrativa, que
tanto pela complexidade de interesses quanto pela complexidade de fatores, deva ser
preponderante ou, por vezes, exclusivamente razoável, reconhece-se facilmente a conveniência
de não politizar o debate e a escolha do que pode ser simples e expedidamente decidido com
base em elementos meramente técnicos [grifos do autor]”.
253
O Presidente da época anota, com coerência em relação aos referenciais que marcaram a
reforma administrativa, que os partícipes da mudança são os funcionários públicos. CARDOSO,
Fernando Henrique. Reforma do Estado. In: PEREIRA, Luiz Carlos Bresser; SPINK, Peter Kevin
(orgs.). Reforma do Estado e Administração Pública Gerencial. Rio de Janeiro: Editora FGV,
1999. p.19: “Temos, portanto, um desafio tipicamente iluminista, no sentido que o termo tem desde
o século XVIII: ou se introduzem graus de racionalidade no processo das reformas e esta
racionalidade passa a ser sentida pelos próprios destinatários, que são os funcionários; ou então a
reforma fracassa, porque ela vai ser obstaculizada por pessoas que pensam que o governo é
capaz de fazer milagres, sobretudo no que diz respeito à remuneração. Se o governo for sério,
não fará milagres, nem enganará ninguém”.
254
Em tom irônico, Maria Dias (DIAS, Maria Tereza Fonseca. Direito Administrativo Pós-
Moderno: novos paradigmas do Direito Administrativo a partir do estudo da relação entre o Estado
e a sociedade. Belo Horizonte: Momentos, 2003. p.220) enumera constantes universais e
temporais que qualquer chefe do executivo poderia elencar para se tornar um arauto das reformas
administrativos, como foram todos os anteriores: - montar uma equipe intersdisciplinar para criar o
projeto, - apresentar na mídia os problemas da administração, - escolher um aparato teórico e um
modelo estrangeiro, de preferência de um país que o senso comum admire, - demonstrar como a
reforma vai criar um novo estado de coisas para o desenvolvimento do país, divulgar a idéia em
termos vagos nos meios especializados ou não, - utilizar medidas de exceção, justificando-as no
sentido da urgência da reforma da administração, - atacar as reações ao projeto como
corporativismo ou como entrave ao desenvolvimento da nação, à justiça social, à liberdade e à
igualdade.
105

metafísicos. Tal conclusão terá arrimo no próximo tópico.

2.4 Visões dogmáticas da Administração Pública

A dogmática jurídica, em geral, apresenta vários conceitos tanto para


Administração Pública como para interesse público. Esses conceitos, se bem que
variados, em primeiro lugar estão ligados à filosofia do sujeito, o que, obviamente,
dificulta em muito a construção, mas, e principalmente, estão conectados com a
tradição de compreensão seletiva-instrumental-moderna-funcionalista de
Administração Pública, expressada anteriormente naqueles autores (Marx,
Durkheim e Weber), muito embora geralmente não citados.

Hans Kelsen, como se sabe, é um defensor da Democracia parlamentar255.


Não cabe aqui repisar suas idéias principais e as críticas que a elas são
formuladas, até porque a idéia é apresentar rapidamente as idéias dos autores
sobre Administração Pública. Para Kelsen, o Estado é igual à ordem jurídica. O
Direito é uma ordem que monopoliza o uso da força. O Estado também é. Por
isso, na visão de Kelsen, ambos são a mesma coisa256. Kelsen também refuta,
com toda razão, as teorias que separam Direito Público e Privado em suas mais
diversas matizes, muito embora dê pistas para um diferenciação em termos de
autonomia e heteronomia. Para Kelsen, o Direito faz-se de maneira una, isto é,
aquele Direito que se aplica às pessoas no cotidiano é feito pelo Estado e ele
também é destinatário do mesmo Direito. A idéia de supremacia do Direito Público
sobre o privado é uma contradição em termos, pois a fonte dos dois é o mesmo
Direito. Assim, para Kelsen, não existe tal divisão.

Outra questão interessante é a da distribuição de poderes. O Direito regula

255
KELSEN, Hans. Esencia y Valor de La Democracia. México: Nacional, 1980. p.16: “Del
supuesto de nuestra igualdad – ideal – puede inferirse la tesis de que nadie debe dominar a nadie.
Pera la experiencia demuestra que para seguir siendo iguales necesitamos soportar un dominio
ajeno. Por esto la ideología política no renuncia jamás a hacer solidarias libertad e igualdad,
siendo precisamente característica para la Democracia la síntesis de ambos principios”.
256
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p.273.
106

a competência de determinados órgãos para criar Direito em normas individuais


ou gerais e para executá-lo. Assim, a rigor, só existem duas funções no Estado,
criar e aplicar o Direito257. O Executivo e o Legislativo produzem normas gerais e,
a rigor, elas em substância são iguais. O Judiciário também assume funções
legislativas. Para Kelsen, existiria uma distribuição de poderes levada a cabo pelo
próprio Direito. Todavia, Kelsen adota a teoria do ato administrativo como
característica da Administração Pública. A idéia é complexa e um tanto quanto
confusa. A aplicação de uma lei, por exemplo, o procedimento administrativo de
apreensão de mercadorias, é igual aquele levado a cabo pelos tribunais
jurisdicionais. Mas o ato que, por exemplo, concede licença para a instalação de
um empreendimento, é um ato da mesma natureza que aquele feito na transação
civil, mas a diferença é que no ato administrativo uma das partes é o Estado258.
Assim, a Administração Pública constitui-se daqueles órgãos aos quais o Direito
atribui a capacidade de criarem atos administrativos.

A observação que os operadores jurídicos fazem da Administração Pública


geralmente parte do Direito Administrativo. Isto quer dizer que o Direito
Administrativo seria aquele Direito da Administração Pública.

Para Gordillo, o objeto de estudo do Direito Administrativo é aquilo que


caracteriza a Administração Pública, ou seja, uma função pública. O Direito
Administrativo não se preocupa apenas com quem realiza uma função
administrativa, mas também o “cómo y con qué fundamento, con qué médios y
fundamentalmente hasta donde, con qué limitaciones se la ejerce [grifos do
autor]”259. A argumentação é circular no sentido de que os órgãos administrativos
cumprem função administrativa, e a função administrativa é aquela exercida pela
Administração.

Em Marienhoff a Administração Pública seria uma das funções do poder


estatal. O poder estatal teria uma coação autorizada, legítima, o qual se manifesta
em três poderes. O poder diferencia-se da “potestade”, ou seja, remonta o autor a

257
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p.386.
258
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p.394.
259
GORDILLO, Agustín. Tratado de Derecho Administrativo. Parte General. 5ª ed. Buenos
Aires: Fundación de Derecho Administrativo, 1998. T.I. p.V-3.
107

divisão entre atos de império e atos de gestão. O critério para se identificar a


Administração Pública seria um critério material, ou seja, a Administração seria
aquela função que realiza atos administrativos260. Assim para Marienhoff, a
Administração seria a “actividad permanente, concreta y práctica, del Estado que
tiende a la satisfacción imediata de las necesidades del grupo social y los
individuos que lo integran”261.

Para Santamaría Pastor o intento de delimitar a Administração Pública é


inútil, porque não existirão critérios capazes de tanto. As dificuldades, contudo,
são dobradas porque tanto a lei quanto a jurisprudência remetem ao conceito de
Administração Pública em suas bases teóricas, esperando que a doutrina dê
respostas quanto à sua delimitação262.

Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández qualificam como


despida de sentido a tentativa de conceitualizar a Administração Pública a partir
de algum critério material ou formal como ação organizada, ação de conformação
social, gestão de serviços públicos, exercício do poder executivo para agasalhar a
idéia de Administração Pública como pessoa jurídica. Dada a variâncias a que
está sujeita a atividade administrativa, estipulam como mais adequada a
consideração da Administração Pública como uma pessoa jurídica, i.e., um sujeito
capaz de direitos e deveres peculiares263. Essa idéia, como parece claro, além de

260
MARIENHOFF, Miguel S. Tratado de Derecho Administrativo. T.I. Buenos Aires: Abeledo-
Perrot, [s.d.]. p.49.
261
MARIENHOFF, Miguel S. Tratado de Derecho Administrativo. T.I. Buenos Aires: Abeledo-
Perrot, [s.d.]. p.66.
262
PASTOR, Juan Alfonso Santamaría. Principios de Derecho Administrativo. 3ª ed. Madrid:
Ramón Areces, 2000. p.84.
263
ENTERRÍA, Eduardo García de; FERNÁNDEZ ,Tomás-Ramón. Curso de Derecho
Administrativo, I. 10ª ed. Madrid: Civitas, 2000. p.30. Segundo sua opinião, “la personificáción de
la Administración no necesita de mística alguna. La Administración es una organización
instrumental, la cual actúa siempre ante el Derecho como un sujeto que emana actos,
declaraciones, que se vincula por contratos, que responde con su patrimonio ante de los daños
que causa, que es enteramente justiciable ante los Tribunales. Entre todos los poderes del Estado,
sólo ella actúa según esta técnica – con la reserva que inmediatamente haremos sobre los
aparatos de sostenimiento de ciertos órganos constitucionales -. ENTERRÍA, Eduardo García de;
FERNÁNDEZ ,Tomás-Ramón. Curso de Derecho Administrativo, I. 10ª ed. Madrid: Civitas,
2000. p.34. Na opinião dos mesmos autores o Direito Administrativo seria o Direito característico
desta pessoa jurídica, i.e., o critério de tipologia do Direito seria a destinação pessoal do Direito
(ENTERRÍA, Eduardo García de; FERNÁNDEZ ,Tomás-Ramón. Curso de Derecho
Administrativo, I. 10ª ed. Madrid: Civitas, 2000. p.41). A especificidade do Direito Administrativo
seria o equilíbrio entre privilégios para Administração executar suas normas e garantias do
administrado ante as potestades públicas.( ENTERRÍA, Eduardo García de; FERNÁNDEZ
,Tomás-Ramón. Curso de Derecho Administrativo, I. 10ª ed. Madrid: Civitas, 2000. p.49)
108

ser uma visão única e estritamente ligada a uma visão jurídica, não abandona os
critérios materiais (que servem ainda para identificar a atividade administrativa em
outros órgãos) e tampouco está em consonância com o Direito brasileiro, uma vez
que a Administração Pública está relacionada com uma pluralidade de órgãos e
competências, muitos deles nem sempre dispondo de personalidade jurídica.

O ponto alto de tal tentativa encontra-se na doutrina de Celso Antônio


Bandeira de Mello. A Administração Pública (e seu Direito, o Direito
Administrativo) está ligada a toda atividade que seja regida por um peculiar
regime jurídico, qual seja, o regime jurídico-administrativo. Este, por sua vez, está
assentado em dois princípios: o da supremacia do interesse público sobre o
privado e o da indisponibilidade, pela Administração, dos interesses públicos264.
Esses dois princípios são desenvolvimentos da velha doutrina dos poderes-
deveres da Administração. O interesse público é definido como a face pública dos
interesses das pessoas. Esse interesse, por sua vez, deve ser realizado pela
Administração. Esta realiza, portanto, uma função administrativa265. Celso Antônio
Bandeira de Mello é expresso ao tentar achar uma explicação jurídica “pura” para
o fenômeno do regime jurídico administrativo: “Nota-se, além disso, que, afinal,
este é definitivamente o único suporte para uma visão ”purificada” dos institutos
de Direito Administrativo. Só este procedimento elimina vestibularmente a imissão
entre os fatores jurídicos e extrajurídicos”266.

Para Hely Lopes Meirelles, o conceito de Administração Pública está ligado


ao de Estado, sendo este uma corporação de homens fixada em um território com
poder de mando e coerção. O Estado se divide em território, povo e governo,
sendo este tripartido. Há uma divisão entre Governo e Administração, sendo
aquele um poder fundamental e esta um secundário, servindo a materializar os
objetivos do Governo. A Administração não praticaria atos de governo, mas sim
atos de execução.

264
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros,
2000. p.27.
265
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros,
2000. p.32.
266
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros,
2000. p.48-49. Tal idéia de “pureza” vai se conectar, como parece, aos conhecidos problemas de
depuração da teoria kelseniana.
109

Comparativamente, podemos dizer que governo é atividade política e


discricionária; administração é atividade neutra, normalmente vinculada à
lei ou à norma técnica. Governo é conduta independente; administração
é conduta hierarquizada. O governo comanda com responsabilidade
constitucional ou política, mas com responsabilidade técnica e legal pela
execução. A Administração é o instrumental de que dispõe o Estado para
por em prática as opções políticas do Governo. Isto não quer dizer que a
Administração não tenha poder de decisão. Tem. Mas somente na área
de suas atribuições e nos limites legais de sua competência executiva,
só podendo opinar e decidir sobre assuntos jurídicos, técnicos,
financeiros ou de conveniência e oportunidade administrativa, sem
267
qualquer faculdade de opção política sobre a matéria [grifos do autor] .

Não é preciso muito dissertar sobre a impossibilidade, hoje, de diferenciar


atos de gestão de atos de soberania.

Mais precisamente, para Hely Lopes Meirelles o termo “Administração


Pública” designa tanto pessoas e órgãos governamentais, quanto a atividade
levada a cabo de administrar interesses alheios. Teria natureza de múnus público,
ou seja, a defesa dos interesses da coletividade, que é também a finalidade da
Administração268. A Administração Pública seria regida por doze princípios, quais
sejam, legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade, eficiência,
razoabilidade, proporcionalidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica,
motivação e supremacia do interesse público. Esses princípios não aparecem
como caracteres de identidade da Administração Pública, mas sim critérios
pautadores de sua ação269.

O interesse público aparece em Hely Lopes como princípio do Direito


Administrativo. O interesse público é caracterizado como o interesse geral, diante
do qual não é possível a renúncia270.

Para Lucia Valle Figueiredo, o que caracteriza a Administração Pública é o


exercício de uma função administrativa, uma seja, a concretização dos preceitos

267
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 27ª ed. São Paulo: Malheiros,
2002. p.64.
268
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 27ª ed. São Paulo: Malheiros,
2002. p.64: “Em última análise, os fins da Administração consubstanciam-se na defesa do
interesse público, assim entendidas aquelas aspirações ou vantagens licitamente almejadas por
toda a comunidade administrada, ou por uma parte expressiva de seus membros”.
269
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 27ª ed. São Paulo: Malheiros,
2002. p.86
270
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 27ª ed. São Paulo: Malheiros,
2002. p.100.
110

legais. Neste sentido, o critério é material, e não orgânico. Acrescenta a autora


que a função pública é também a edição de atos gerais e atos individuais que
reconhecem uma escolha entre as possíveis normativamente e que devem estar
em direção ao interesse público271. Interesse público seria aquele imposto no
ordenamento. A autora separa, ainda, interesse público de fins públicos, aqueles
fins que devem ser atingidos pela Administração272. O interesse público seria
indisponível, e isso constituiria o regime jurídico peculiar da Administração
Pública. O regime jurídico público seria peculiar, porque estaria regido por uma
série de princípios, como o da legalidade, igualdade, razoabilidade, motivação,
boa-fé, moralidade, publicidade e impessoabilidade273. A mesma autora reclama
da vagueza do conceito de interesse público, sem renunciar, contudo, a um
conteúdo a priori de tal conceito274.

Robertônio Pessoa disserta no mesmo sentido. Com amparo em Odete


Medauar, diz que a Administração “coadjuva as instituições políticas no exercício
das atividades de governo; organiza a realização das finalidades públicas postas
pelas instituições políticas de cúpula; produz serviços, bens e utilidades para
população”275. O referido autor nota três critérios sob os quais pode ser
examinada a função administrativa: material (conjunto de atividades
administrativas), orgânica (aparato administrativo) e processual (não define o que
vem a sê-lo)276.

Nota o autor que, diferentemente da Inglaterra, a Administração Pública


submete-se a um regime jurídico diferenciado, o Direito Administrativo, à moda
dos sistemas continentais. Hoje, este regime jurídico, além de seus traços

271
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2000.
p.32.
272
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2000.
p.33.
273
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2000.
p.41-60.
274
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2000. p.
62.
275
PESSOA, Robertônio. Curso de Direito Administrativo Moderno. Rio de Janeiro: Forense,
2003. p.30-31.
276
PESSOA, Robertônio. Curso de Direito Administrativo Moderno. Rio de Janeiro: Forense,
2003. p.31-32.
111

tradicionais, pautar-se-ia pelas idéias de eficiência, planejamento e regulação277.

Diferencia-se, contudo, da idéia de função como elemento único


caracterizador ao relembrar as noções de Relação Jurídica Administrativa, como
a relação entre administrado e Administração, “cuja principal referência axiológica
é a satisfação dos interesses públicos com respeito aos direitos subjetivos, cujo
sacrifício somente se impõe em situações extremadas”278. O regime jurídico-
administrativo é observado como o binômio poderes-deveres e os mesmos
princípios de sempre. Idem no que toca ao conceito de interesse público, bem na
linha de Celso Antônio Bandeira de Mello279.

Diógenes Gasparini abraça a conceituação de Administração Pública de


Hely Lopes Meirelles280, enfrentando os mesmos problemas.

Diogo de Figueiredo Moreira Neto pensa ser a Administração Pública as


atividades preponderantemente executórias, direcionadas à realização dos
interesses definidos como públicos. A definição do interesse público estará na lei,
sendo que, neste autor, existe diferença entre Administração Pública e política,
sendo esta última caracterizada pelas aquelas atividades essenciais,
281
concentradas nos chefes dos poderes .

Maria Sylvia Zanella di Pietro diz o que a Administração Pública tem um


Direito, preocupando-se com este, mas sem tecer maiores considerações mais
inovadoras sobre o que vem a ser Administração Pública282. No que toca ao

277
PESSOA, Robertônio. Curso de Direito Administrativo Moderno. Rio de Janeiro: Forense,
2003. p.40.
278
PESSOA, Robertônio. Curso de Direito Administrativo Moderno. Rio de Janeiro: Forense,
2003. p.45.
279
PESSOA, Robertônio. Curso de Direito Administrativo Moderno. Rio de Janeiro: Forense,
2003. p.90.
280
GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2002. p.41: “Pelo critério
formal, também denominado orgânico ou subjetivo, a expressão sub examine indica um complexo
de órgãos responsáveis por funções administrativas. De acordo com o material, também chamado
de objetivo, é um complexo de atividades concretas e imediatas visando o atendimento das
necessidades coletivas”.
281
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro:
Forense, 2005. p.113.
282
PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2001. p.23-95.
112

interesse público, o critério é o do interesse ao qual a norma visa proteger283.

Para Marçal Justen Filho, a Administração Pública pratica uma atividade


administrativa, isto é, uma

[...] atuação contínua, integrada por um conjunto de ações ativas e


omissivas, que devem ser consideradas unitariamente em vista de uma
finalidade comum e cujo desenvolvimento exige um aparato estruturado
de modo permanente e especializado. Os atos administrativos são uma
manifestação dessa atividade, e devem ser estudados com uma fração
da atuação administrativa. Ou seja, embora possam ser examinados
isoladamente, não será possível compreender adequadamente o ato
administrativo sem tomar em vista a atividade global em que se
284
inserem .

Marçal inova com relação aos outros administrativistas em vários aspectos.


Um deles é a vinculação da atividade administrativa à realização dos direitos
fundamentais. Outro é a descoberta da metafísica abstrativa de conceitos vagos
como interesse público e bem social. Por fim, a percepção de uma atividade
administrativa realizada em paralelo ao Estado, percebendo as conexões entre
legitimação democrática285, poder e Administração Pública, delimitando o
interesse público não como pressuposto das decisões, mas como resultado.

Os administrativistas em geral pensam que a Administração Pública286 vai


alcançar o interesse público, empreendendo esforços para caracterizá-lo. Essas
construções doutrinário-dogmáticas enfeixam o saber conceitual legitimador dos
modelos administrativos. Como visto, todos eles, não pela sua vagueza, mas sim
pela invariância dos modelos burocrático e gerencial-neoliberal, descrevem
alguma faceta do que parece ser a Administração Pública. Existe, porém, a
contra-tendência: a dogmática administrativista também ajuda na construção da
concepção de mundo imperante entre os juristas e a população. A doutrina
conforma o imaginário social e neste sentido, o conceito de Administração Pública

283
PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2001. p.70.
284
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005. p.2
285
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005. p.11:”O
tema da legitimação se relaciona com o modo de comunicação entre governo e sociedade. Se o
direito não encontra seu fundamento de validade numa base religiosa ou puramente Moral, e
como não pode manter-se por via da força, então a única alternativa restante é o consenso dos
cidadãos [...] Mas esse consenso pressupõe, primeiramente, a possibilidade de cada indivíduo ser
tratado como igual, como titular de direitos insuprimíveis. Não há consenso entre indivíduos que se
qualificam como desiguais. Portanto, é indispensável o reconhecimento dos direitos fundamentais
para haver o consenso [grifos do autor]”.
286
Balizada por seu Direito, o Direito Administrativo.
113

e Direito Administrativo repercute também na ação administrativa, mormente em


se tratando de dogmática jurídica, na maneira que os tribunais tratam de matérias
afeitas ao Direito Administrativo. Adiante, é retomada a idéia de sistema e mundo
e suas interações, mormente a instrumentalização da ciência pela racionalidade
instrumental administrativa e o caminho inverso como fenômeno específico de
uma descrição mais genérica caracterizada como colonização do mundo da vida.
Ao final do capítulo, serão retomadas as concepções aqui descritas sob a forma
de crítica da razão instrumental e também metafísica presente no imaginário
administrativo.

A seguir, será levada a termo, diante das constatações levantadas, a crítica


que cruza as concepções de colonização do mundo da vida de Habermas com o
modelo de Gestão Pública vigente.

2.5 Crítica comunicativa ao modelo de Gestão Pública

Habermas diz que o fio condutor de Weber é um progressivo processo de


racionalização social. Esta descoberta é um desenvolvimento da idéia de Marx de
desacoplamento entre saber comum e saber técnico orientado ao trabalho.
Todavia, para Weber, a Economia do capitalismo moderno é mais um subsistema
com orientação a fins em que se desenvolve o racionalismo. Em Marx, a ciência e
a técnica aparecem como uma racionalização emancipadora. Em Weber, como
uma ambivalência. Para Horkheimer e Adorno, um meio de repressão social287. A
crítica fundamental que se coloca é a seguinte: todas as três linhas288 percebem a
racionalização social como uma progressiva generalização e ampliação da
racionalidade instrumental. Todos vislumbram, por outro lado, possibilidades mais
amplas de um renovado respeito para com o outro e a natureza. Mas isto
aconteceria dentro de um esquema de ação racional com vistas a fins. Daí por

287
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.199.
288
Mais as pós-modernas, que parecem ter desperdiçado a conclusão, tão generalizada na
Europa nos anos 70.
114

que Habermas acusá-los de não construírem um esquema teórico mais além da


racionalidade instrumental em termos de racionalidade289.

Em termos de processo social, o predomínio da razão instrumental advém


de um processo que começa muito antes, no Iluminismo. Neste processo existe
um influxo da filosofia por sobre a opinião pública.

El progreso científico puede convertirse en racionalización de la vida


social si los científicos asumen la tarea de la educación pública con la
finalidad de convertir los principios de su propio trabajo en principios del
290
comercio y trato sociales .

A tradição fora duramente criticada, e com razão, na visão de Habermas,


em forma de repúdio aos pré-juízos. A ciência, como reflexão livre dos
dogmatismos medievais, tomara o posto de topos da reflexão social para
formação de uma sociedade emancipada, que não diferencia a priori as pessoas.
Marx posteriormente criticou essa visão como mera abstração, pois não adianta a
filosofia informar a esfera pública, ela tem de se realizar. De todo modo, a razão
iluminista confiava em uma mera acumulação como geradora de progressos tanto
cognitivos, como morais e emancipatórios. Esse progresso, todavia, deu-se em
moldes de ciências naturais, as quais aplicaram-se sem mediação filosófica à vida
social. Isto se converteu em visões da evolução social “en términos darwinistas,
como evolución de sistemas orgânicos”291. Assim, as tendências evolutivas como
o surgimento da Administração burocrática, a exploração de classes, etc.,
puderam ser tratadas acriticamente como um processo de diferenciação estrutural
dos sistemas sociais. Max Weber, de outro lado, vem a criticar este determinismo
evolucionista e este naturalismo ético da filosofia do século XIX. Weber, todavia,
concorda com Marx no sentido de uma progressiva racionalização, tanto da
empresa econômica quanto da Administração, como visto.

Apesar da crescente disponibilidade de temas à crítica, Weber sublinhou a


forma jurídica, a qual expressava uma dominação racional legal, ou seja, o Direito

289
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.199.
290
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.202.
291
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.207.
115

como instrumento de controle social que se põe à disposição de uma dominação


para a consecução de determinados fins, organizado de maneira científica em
forma de um sistema científico de proposições lógicas.

Isto vai se conectar com uma ambivalente posição weberiana no que toca à
racionalidade material. Como se viu anteriormente, ação instrumental é uma ação
baseada na racionalidade para o atingimento dos fins. Todavia, a sua
racionalidade material é meramente um desapego à tradição que se impõe
irreflexivamente292. Ou seja, a pessoa será racional se tiver consciência de suas
preferências e conheça o ambiente onde suas ações irão gerar efeitos. Isto é:
Weber é cético com relação a um acordo racional sobre valores e ações293, e isto
vai significar para a contemporaneidade uma concepção irresistível de
racionalidade como instrumental.

O processo de racionalização do mundo inclui vários dados, a partir das


quais é possível Weber construir sua famosa tese294: - aumento da tecnificação,
pelo adestramento metódico em procedimentos repetíveis; - racionalização no
sentido formal; - pluralismo de valores em sede de racionalidade material; - maior
complexidade e diferenciação dos subsistemas; - progressivo afastamento dos
preceitos religiosos da vida cotidina. Decodificando: a medida que a visão de

292
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.231: “En cuanto el actor se ha emancipado de las
ataduras de la tradición o de la compulsión de las pasiones hasta el punto de ser capaz de cobrar
conciencia de sus preferencias (y máximas de decisión) clatas, una acción puede ser enjuicidad
bajo ambos aspectos: bajo el aspecto instrumental de la eficacia de los medios y bajo el aspecto
de la crrección de la deducción de los fines a partir de preferencias, medios y condiciones de
contorno dadas. Al aspecto de racionalidad instrumental y al aspecto de racionalidad electiva,
tomados conjuntamente, es a lo que Weber llama racionalidad formal, por contraposición al
enjuciamento material del sistema del sistema de valores que subyace a las preferencias [grifos do
autor]”.
293
AVRITZER, Leonardo. A moralidade da Democracia. São Paulo: Perspectiva; Belo Horizonte:
Editora da UFMG, 1996. p.65-66: "O diagnóstico weberinao da modernidade supõe uma crescente
incompatibilidade entre Ética e racionalização na medida em que a modernidade se desenvolve.
Weber entende a modernidade enquanto um processo de incompatibilização entre as dimensões
cultural e societária da racionalidade. Se, por um lado, Weber deixa absolutamente clara a origem
cultural do processo de racionalização do ocidente, por outro, ele não tem quaisquer dúvidas de
que a societalização da racionalidade implica na impossibilidade de dar continuidade a tal
processo. Na medida em que as estruturas da Economia de mercado e do Estado moderno se
desenvolvem, a possibilidade de justificar eticamente a ação em relação a fins vai sendo
progressivamente inviabilizada por dois processos [...] pela secularização do mundo e pelo
aumento desmesurado da importância dos bens materiais".
294
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.244-248
116

mundo se racionaliza, as esferas culturais de valor se diferenciam e com isso se


cria a peculliariedade ocidental de um mundo racionalizado. Paralelamente
ocorre, devido ao desencantamento pela metafísica, um pluralismo de valores, e
este levaria à impossibilidade de acordos com relação a questões de fundo.

Esse mundo racionalizado apóia-se em um caráter binário de diferenciação


entre idéias e interesses. As primeiras tomadas como pretensões de justificação
de algo que se refere a um que fazer, os segundo denotados como regulativos
para a ação. Weber reconhece que uma dominação tem de ser legítima, e a
Democracia vem para responder a essa questão de modo mais otimizado que
outras organizações295. Essas ordens sociais baseiam-se em uma validez
consensual até que venham a ser abaladas. A modernidade, todavia, traz consigo
não só uma pluralidade de idéias, mas também um desacoplamento destas com
os interesses. Passa a existir uma tensão entre uma ordem que se almeja e a
organização social existente. Isso implica que o cientista social compreenda quais
as pretensões de validade que estão fundamentando o ideário social. De todo
modo, esta tensão implica em uma maior velocidade de mudanças na sociedade
moderna e uma maior abertura à aprendizagem.

Contribuíram para que a modernidade ocidental adquirisse esta


ambivalência de autoritarismo, mas também um caráter reflexivo, uma
progressiva junção entre pretensão universalista ética do cristianismo com a
curiosidade epistemológica da filosofia grega antiga, as quais desembocaram nos
movimentos de protesto religioso. Esses movimentos modernizados acabam por
entrar em conflito com o velho mundo religioso. A modernização, associada ao
progressivo descentramento do sujeito, leva à adoção de distintas posturas
perante segmentos do mundo ao qual os atores têm acesso, como visto no
primeiro capítulo.

Atitudes Objetivo Social Subjetivo

295
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.253: “Weber habla de validez y legitimidad cuando
un orden es reconocido subjetivamente como vinculante u obligatorio. Este reconocimiento se
apoya directamente en ideas, que son las que llevan consigo un potencial de fundamentación y
justificación, y no en tramas de intereses […]”.
117

básicas/mundos
Objetivante Relação cognitiva- Relação cognitiva- Relação objetivista
instrumental estratégica consigo mesmo
Conformidade com Relação estético Relação de Relação de
as normas Moral com um obrigação censura consigo
ambiente não mesmo
Expressiva objetivado Auto-encenação Relação de
sensibilidade
espontânea
consigo mesmo

Tabela 11 – Atitudes básicas e suas orientações para com o mundo296

Estas orientações para a ação, que se tornam standarts de comportamento


moderno, conectam-se com diferentes complexos de formação de saberes:

Atitudes Objetivo Social Subjetivo Objetivo


básicas/
mundos
Expressiva X x x
Objetivante Racionalidade cognitiva instrumental x
Ciência Técnica - Técnicas de
intervenção social
Conformida- X Racionalidade prática – Moral
de com as Direito - Moral
normas
Expressiva X x Racionalidade prático –estética
Erotismo - Arte

Tabela 12 – Atitudes básicas e diferenciação categorial297

A modernização permite o aprendizado, a partir de uma racionalidade


cognitiva instrumental, de técnicas de intervenção na natureza (mundo objetivo) e
na sociedade (social). De outra banda, a produção de um saber a partir de uma
296
Tradução livre HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la
acción y racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.309.
297
Tradução livre de HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de
la acción y racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.311.
118

racionalidade prática se conecta, evidentemente, com um mundo social e com a


subjetividade. Estes âmbitos de produção do conhecimento se ligam com
pretensões de validades diferenciadas, que por sua vez podem informar uma
pragmática universal298.

As idéias e os interesses se fundem em ordens sociais diferenciadas:

Si partimos de que las estructuras de conciencia modernas se


condensan en los tres mencionados complejos de racionalidad, entonces
la racionalización social estructuralmente posible podemos
representárnosla en el sentido ya indicado: las correspondientes ideas
(pertenecientes a los ámbitos ciencia y técnica, derecho y Moral, arte y
‘erótica’) se unen con intereses y se materializan en los correspondientes
órdenes de la vida diferenciados. Este modelo algo resbaladizo y no
poco osado nos permitiría deducir las condiciones necesarias de una
forma de racionalização no selectiva: las tres esferas culturales de valor
tienen que quedar conectadas con los correspondientes sistemas de
acción de modo que se asegure una producción y suministro de saber,
299
especializados según pretensiones de validez […][grifos do autor] .

Os potenciais de saber produzidos por especialistas nas diferentes esferas


têm de se conectar com os correspondentes sistemas de ação. Ou seja, o que se
produz, por exemplo, em sede de racionalidade prático-moral na academia tem de
aparecer na esfera pública cotidiana para julgamento, evitando com isso o
problema das “linguagens especializadas”. Isto, todavia, não significa falta de
autonomia das instituições sociais. Observando-se a questão sob outro ângulo,
existem problemas de assimetria entre os âmbitos culturais a partir da emergência
de um modelo seletivo de racionalização:

Un modelo selectivo de racionalización surge cuando uno (a lo menos)


de los tres componentes constitutivos de la tradición cultural no es objeto
de una elaboración sistemática o cuando una (por lo menos) de las
esferas culturales de valor sólo queda institucionalizada de forma
insuficiente, es decir, sin que tal institucionalización tenga efectos
estructurales para la sociedad global, o cuando una (a lo menos) de las
esferas de la vida prevalece hasta tal punto sobre las otras, que somete
los otros órdenes de la vida a una forma de racionalidad que les es
300
extraña .

Está-se falando aqui de fenômenos que afetam a compensação recíproca

298
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.312.
299
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.313.
300
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.313.
119

de influências entre os âmbitos culturais. Habermas vê em Weber a constatação


de que a racionalidade cognitiva-instrumental adquire predomínio não só na
ciência301 como também em todos os demais âmbitos da vida burguesa comum
na civilização ocidental (a qual, acrescenta-se, espalha-se ao oriente a partir da
novel globalização)302. A arte não se institucionaliza socialmente como crítica
generalizada e a racionalidade prática ética e moral acabam por se tornar
colonizadas pela racionalidade instrumental em forma de hedonismo e
utilitarismo, enquanto que o Direito converte-se como meio de controle social
tecnicizado303. Mais, o Direito permite a separação entre a racionalidade com
vistas a fins de considerações prático-morais. O sujeito moderno depara-se diante
do predomínio da razão instrumental em um mundo sem mais um sentido
unívoco, devido à perda de uma identidade unitária em termos
racionais/teológicos ou cosmológicos, e diante de uma perda da liberdade, ou
seja, de que as identidades individuais e sociais se formam a partir de
engendramentos funcionais nos quais o indivíduo não tem influência alguma304.
Habermas, já é possível antecipar, não concorda com tais conclusões, porque,
resumindo, Weber, ao adotar critérios substancialistas, não consegue perceber a
unidade que surge na diversidade. Além do mais, não percebeu a criticidade
301
PINTO, F. Cabral. Leituras de Habermas: modernidade e emancipação. Coimbra: Fora do
Texto, 1992. p.80: “Os cientistas foram se especializando, tornando-se, na seqüência disso, cada
vez menos filósofos e mais uma espécie de “artesãos”; por seu lado, os filósofos propriamente
ditos, sempre divididos pela parcialidade dos respectivos sistemas, capitularam diante dos êxitos
sempre crescentes das ciências positivas, deixando que as questões tidas por metafísicas
caíssem no irracionalismo. É neste perspectiva que o positivismo pode ser considerado um
conceito residual. O resultado deste processo foi-se traduzindo no império da falácia objectivista
que consiste em negar significação racional – no sentido de verdade – a todos os domínios da
realidade que não sejam redutíveis à dimensão físico-matemática“.
302
AVRITZER, Leonardo. A moralidade da Democracia. São Paulo: Perspectiva; Belo Horizonte:
Editora da UFMG, 1996. p.67: "Duas importantes conseqüências se seguem ao diagnóstico
weberiano da modernidade: 1) O primeiro é que a única forma de sobrevivência da Ética no
mundo moderno é o utilitarismo. Para Weber, o indivíduo que não mais consegue justificar suas
ações com base em uma Ética de valores, reinterpreta empiricamente a Ética transformando a
instrumentalidade em um valor. Perde-se, desse modo, a conexão interna entre intencionalidade
justificação cultural. 2) A segunda conseqüência importante do desenvolvimento da modernidade
constitui a transformação da ciência em critério único para a justificação da ação. Na medida em
que as formas de justificação Ética da ação não mais motivam os indivíduos devido à
secularização progressiva das sociedades modernas, a ciência vai se convertendo no único
consenso societário possível. Os limites da ciência enquanto forma de justificação da ação são, no
entanto, bastante claros na medida em que a ciência não é capaz de substituir a unidade
valorativa das cosmovisões em sua capacidade de determinar, simultaneamente, os critérios do
belo, do moralmente adequado e do verdadeiro [...]".
303
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.314.
304
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.322.
120

latente nos processos de comunicação cotidianos, ainda mais aqueles que


conformam a esfera pública.

Mas voltando à linha de argumentação acerca da racionalização social e


finalmente desembocando no Direito. Weber considera a racionalidade formal
aplicável tanto ao Direito, quanto à Economia e à Administração. Habermas pensa
que isto não é possível, devido não só a argumentos morais e éticos, mas
também conceituais: as pretensões de validade pelas quais se move quem age
no sistema jurídico são diferenciadas das orientações relativas ao valor
econômico ou o poder305. Habermas excepciona dizendo que a medicina é um
bom exemplo de aplicação social da racionalidade formal, mas

De ahí no sea lícito generalizar el caso de aplicación de saber teórico-


empírico que la medicina representa, caso que puede, en efecto, ser
adecuadamente analizado bajo el aspecto de implantación de
orientaciones de acción racionales con arreglo a fines, y entender
después la racionalización social en todos los ámbitos de la vida como
una racionalización de los medios para conseguir fines seleccionados en
306
función de valores particulares .

Ocorre que, como Weber antes notara, as ordens devem ser legítimas, i.e.,
devem sofrer uma crítica sob o prisma prático-Moral. Entretanto, Weber (e, para
os fins deste trabalho, a maior parte dos juristas que superaram o jusnaturalismo)
nota que o Direito se moderniza como racionalização cognitivo-instrumental307.

A meta agora é demonstrar como, então, em um processo de


diferenciação, o Direito e a Administração estariam, pelo lado das idéias
(modernas) ligados a uma racionalidade com vistas a valores, mas que,
ambivalentemente, se conectaram em realidade com a racionalidade cognitivo-

305
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.326.
306
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.329.
307
PINTO, F. Cabral. Leituras de Habermas: modernidade e emancipação. Coimbra: Fora do
Texto, 1992. p.85: “A dominação é forma fatal de um poder que actua segundo um conceito de
racionalidade reduzida ao controlo dos entes “coisificados”. Na sua expressão política, esse poder
tenderá a revelar-se contra as potencialidade de ser do mundo comunitário da vida mediante
programas técnicos de modelação social. O mundo idealizado da ciência, expulsando de si os
problemas decisivos da humanidade (justamente os da philosophia perennis), reduz a verdade ao
sucesso puramente técnico da sua relação ao mundo ambiente vital (Lebensumwelt) que
ontologicamente o promove; o objectivismo cientista afirma o seu dogmatismo contrariando os
valores mais amplos da subjectividade produtora do sentido de ser do mundo no qual também o
“facto cultural” da ciência se inclui“.
121

instrumental. Isto deve ajudar a explicar o dualismo pelo qual trafega o Direito
Administrativo: ou o bem público é tomado como apreensível monologicamente
(e, portanto, trata-se de uma proposição metafísica), ou é fruto de uma decisão
instrumental (decisionismo).

Um dos traços mais característicos da racionalização do Direito é a sua


transformação em um sistema profissionalmente diferenciado, onde não só a
aplicação da lei está na mão de juristas versados, mas também a criação do
Direito passa a depender de procedimentos formais legislativos de cunho jurídico.
A isto se assoma a dogmatização e axiomatização do sistema jurídico, tornado
coerente pela ação de uma doutrina cientifica do Direito308. Mas a principal
característica é a positividade do Direito, ou seja, a consciência de que sua
estatuição dá-se por uma decisão mundana, mutável historicamente. Habermas
vê analogias entre etapas cognitivas de conhecimento e o Direito:

En la etapa del derecho primitivo falta todavía el concepto de norma


objetiva, en la etapa del derecho tradicional las normas se consideran
dadas, como elementos de la tradición, y sólo en la etapa del derecho
moderno pueden las normas ser consideradas como reglas libremente
estatuidas, y enjuiciadas conforme a principios que por su parte sólo
tienen una validez hipotética […] La racionalización del derecho refleja la
misma secuencia de categorías preconvencionales, convencionales y
postconvencionales que la psicología evolutiva ha descubierto para la
309
ontogénsesis de la conciencia Moral .

O Direito moderno é, então, positivo, legalista e formalista (não só no


sentido de sua estatuição como também no sentido da liberação de espaços de
ação para a razão instrumental). Note-se que Weber descreve que o Direito
adquire a função de regular de maneira racional os espaços de ação privados
orientados ao êxito para um melhor implemento das trocas mercadológicas.
Habermas critica Weber por que este, todavia, não explica o porquê de o Direito
assim orientar-se. Ou seja, “el que el derecho moderna sea funcional para la
institucionalización de la acción racional con arreglo a fine no explica todavía las
características estructurales las cuales el derecho puede cumplir tal función”310.

308
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.332.
309
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.335.
310
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.337.
122

Para Weber, muito embora a ordem jurídica tenha de ser legítima, esta se explica
em termos exclusivamente a partir da racionalidade orientada a fins. Assim,
Weber

[...] pasa por alto el momento de que el derecho necesita


fundamentación, excluye del concepto de derecho moderno
precisamente las ideas de fundamentación racional que se introducen
con el derecho natural racional en el siglo XVII y que desde entonces son
una característica constante, si no de toda norma jurídica, sí del sistema
jurídico en su conjunto, y, en especial, de los fundamentos de derecho
311
público de la dominación legal .

Na visão de Weber, as construções metafísicas do Direito natural legaram


apenas uma forma positiva para um Direito que supera a tradição a partir da
razão. Nota-se que a leitura é seletiva por que, na visão de Habermas, o Direito
natural também legou a necessidade de justificação racional para o Direito312.
Weber confundiria uma estrutura de pensar mais universalista (ver, mais adiante,
quando o assunto desenvolvimento Moral for tratado) com valores particulares
europeus. Sob outra perspectiva, também tem uma visão seletiva de
procedimento gerador da legalidade. I.e., o procedimento não é tomado como um
sistema social gerador de decisões justificadas, mas sim a “observância de las
reglas procedimentales establecidas para la creación, interpretación y aplicación
del derecho”313. Nesta visão, o Direito acaba por fundamentar-se a si mesmo
através da formalização do procedimento legislativo314. O círculo argumentativo
aqui proposto se fecha quando se constata, então, que Weber percebeu uma
tendência, muito embora a tenha sobredimensionado, de predomínio da
racionalidade instrumental por sobre um sistema social que tem na sua auto-

311
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.340.
312
Interessante é que Habermas percebe nos contratualistas metafísicos as primeiras tentativas
de justificação de direitos procedimentalmente, ou seja, a partir de argumentos suscetíveis de
crítica: “Puede objetarse, en efecto, que el concepto de derechos naturales sigue teniendo todavía
en los siglos XVII y XVIII fuertes connotaciones metafísicas. Pero con su modelo de un contrato
mediante el que todos os sujetos jurídicos, como libres e iguales que son, regulan su vida en
común armonizando racionalmente sus intereses, los teóricos del derecho natural racional
moderno fueron los primeros a responder a la exigencia de una fundamentación procedimental del
derecho, es decir, de una fundamentación a partir de principios cuya validez puede, por su parte,
ser objeto de crítica”. HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de
la acción y racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.342..
313
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.343.
314
MCCARTHY, Thomas. La Teoría Crítica de Jürgen Habermas. Madrid: Tecnos, 1998. p.269:
“Habermas niega que la fe en la legitimidad pueda reducirse a una fe en la legalidad“.
123

compreensão uma visão prático-Moral315.

Desde a perspectiva de uma teoria da sociedade que percebe essa mesma


sociedade como estruturada a partir da ação comunicativa, a emergência de
subsistemas orientados instrumentalmente desde a modernização passa a ser um
risco para uma sociedade carente de solidariedade, em vista de seu processo de
racionalização mesmo316.

Cuando los contextos normativos saltan por encima de las barreras de


las instituciones consagradas por la tradición y la acción comunicativa se
libera de ellas, lo que quiere decir: cuando tanto los unos como la otra
se liberan del consenso adscrito, empieza a pesar sobre el mecanismo
del entendimiento (y a desbordarlo) una creciente necesidad de
coordinación. Por otra parte, en dos ámbitos de acción que resultan
centrales, en vez de instituciones aparecen “institutos” (Anstalten) y
organizaciones de un nuevo tipo, las cuales se constituyen sobre la
base de medios de comunicación que desenganchan la acción de los
procesos de entendimento y la coordinan a través de valores
317
instrumentales generalizados como son el dinero y el poder .

Estes meios, dinheiro e poder, acabam por substituir a linguagem como


meio de coordenação na ação. Este é o paradoxo da modernidade: quando
finalmente é possível uma ação comunicativa em termos mais gerais, esta é
eclipsada pela emergência destes sistemas de ação. Sobre a subjetividade dos
atores sociais pesa não considerações de cunho prático-Moral, mas sim
adaptibilidade aos sistemas em uma matriz darwinista.

De Weber, Lukács e os primeiros frankfurtianos, Habermas extrai o


diagnóstico da “coisificação”. Habermas interpreta, a partir das categorias da ação
comunicativa, a “coisificação” ou “reificação” como a prática generalizada de
referir-se ao mundo social e objetivo como se fosse o mundo objetivo318. Este

315
PINTO, F. Cabral. Leituras de Habermas: modernidade e emancipação. Coimbra: Fora do
Texto, 1992. p.167: “O carácter cada vez mais técnico dos problemas a resolver tem feito evoluir a
ordem político-administrativa para a tecnocracia. Porém, na medida em que as decisões políticas
continuam a subentender um prévio acordo formalizado na lei, não se dirá que elas são
determinadas pela racionalidade tecnocrática“.
316
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.437.
317
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.436.
318
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.453: “Y como quiera que esa comprensión y
manera de ver las cosas, hemos de añadir por nuestra parte, es elemento constitutivo de nuestro
trato comunicativo, ese malentendido de carácter categorial afecta a la praxis, no sólo a la “forma
de pensar”, sino también a la “forma de existir” de los sujeitos. Es el mundo de la vida mismo el
124

fenômeno ocorre analogicamente à transformação do trabalho em mercadoria319.


Essa transformação das relações em mercadoria transmuda-se na racionalidade
predominante da sociedade, em um processo que se inicia a partir do
acoplamento das ações economicamente relevantes ao um subsistema de valor
que vai se consolidando320. Lukács conecta, na visão de Habermas, o fenômeno
marxista da coisificação com o da racionalização, percebendo como um
fenômeno uno de racionalidade seletiva321.

Horkheimer e Adorno, de outra banda, mantém contato com um outro tipo


de referências que as de Lukács. Eles têm de explicar, diante da confirmação da
tese de Weber de que o stalinismo levava à burocracia, como, em determinados
países (ex.: os EUA) a adesão ao status quo se dava espontaneamente, sem
qualquer violência por parte do poder organizado. Neste processo de legitimação
de relações sociais não-emancipadas jogam pesado papel não só a arte e a
mídia, mas também a ciência instrumentalizada, a qual perde seu telos
característico de rompimento com o estabelecido em busca da emancipação –

que se “coisifica”.
319
PINTO, F. Cabral. Leituras de Habermas: modernidade e emancipação. Coimbra: Fora do
Texto, 1992. p.201-202: “Habermas não nega a existência de motivos para o pessimismo cultural
(Kulturpessimismus) do pensamento neoconservador; afirma, pelo contrário, que tais motivos
existem e que não podem ser levianamente subestimados por uma avaliação optimista que se
faça do projecto da modernidade“[...] “Mas isso supõe que saibamos o que é que ameaça o
mundo da vida. Os neoconservadores confundem a causa e o efeito. Aos imperativos económicos
e administrativos – os chamados ‘constrangimentos objectivos’ – que não cessam de monetarizar
e burocratizar esferas da vida cada vez mais amplas, que mudam cada vez mais relações
humanas em mercadorias ou em objectos de administração, numa palavra, às verdadeiras fontes
da crise social, eles preferem em sua substituição acusar o espectro de uma cultura invadida pela
subversão”. Nessa falsa perspectiva, cresce irracionalmente o temor de uma desintegração social
e, com isso, a disposição conspirativa dos “guardiões da tradição” contra os inimigos do interior a
quem não custará identificar. O perigo que aí se vê é a apologia de um autoritarismo político a
fazer contravapor histórico[...]”.
320
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.456: “Las transacciones que discurren a través del
medio valor de cambio caen fuera de la intersubjetividad del entendimiento lingüístico, se
convierten en algo que tiene lugar en el mundo objetivo, en una pseudonaturaleza”.
321
PINTO, F. Cabral. Leituras de Habermas: modernidade e emancipação. Coimbra: Fora do
Texto, 1992. p.247-248: “Por seu lado, Habermas sustenta que não é a racionalização, mas a
racionalização selectiva do desenvolvimento capitalista, o facto a que causalmente deverá
reportar-se a reificação. Não é, segundo ele, a diferenciação estrutural da sociedade que está na
origem das patologias do diagnóstico weberiano, mas, sim, a entrada forçada de formas de
racionalidade económica e administrativa nas esferas do mundo da vida que são especializadas
na reprodução cultural, na integração social e na socialização e que, enquanto tal, dependem da
acção orientada para o entendimento. Só colocando as coisas nesta perspectiva é que se poderá
compreender com significação evolucionária a “rebelião da natureza” que se exprime, de forma
neutra do ponto de vista da luta de classes, nos novos movimentos sociais de resistência e
protesto”.
125

origem de seu prestígio a partir do Iluminismo. Os primeiros frankfurtianos


criticam a compreensão positivista de ciência justamente por isso, i.e., a ciência
“esqueceu” sua gênese crítica, objetivou-se em uma racionalidade
exclusivamente instrumental e, como não pode mais se legitimar algo científico a
partir de pretensões de validade, o pensamento científico dogmatizou-se:

El Empirismo Lógico tiene que recurrir, al igual que el tradicionalismo, a


principios supremos autoevidentes; solo que en lugar de Dios, la
naturaleza o el Ser, absolutiza el método científico sin aclararlo en sus
fundamentos. El positivismo rehúsa fundamentar la identidad que afirma
entre ciencia y verdad […] pero la cuestión de por qué determinados
procedimientos han de ser reconocidos como científicos necesita de una
322
justificación normativa […] .

Essa razão objetificante amplia-se em razão dominadora. Uma auto-


reflexão racional, na visão dos frankfurtianos, necessariamente levaria uma perda
da liberdade, daí a fuga destes para a arte, erotismo ou o que valha323. Habermas
critica esta postura ao mesmo tempo que a explica: trata-se de um dos últimos
fôlegos da filosofia da consciência, uma vez que os frankfurtianos ligam a razão a
um telos natural de autopreservação predatória em forma de mimética ao modo
de vida burguês-instrumental por todos324. Habermas estende esta crítica também
à teoria dos sistemas325. A fim de apontar um diagnóstico da contemporaneidade,
vai mesclar sua teoria comunicativa aos dois principais referenciais: Weber, com a

322
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.478.
323
PINTO, F. Cabral. Leituras de Habermas: modernidade e emancipação. Coimbra: Fora do
Texto, 1992. 122-124: “Mas uma teoria que, compreendendo o todo como falsidade ideológica, se
recusa a ser mais do que um processo infinito de negação crítica “é, de facto, uma teoria da
impossibilidade de toda a teoria”. Daí que nascesse a tentação de procurar em horizontes não
discursivos a via da reconciliação universal que a teoria se coibia de indicar à história. Horkheimer
acabou por se inclinar para a religião...“[...] Quanto a Adorno, ‘que era irremediavelmente ateu’, foi
antes na obra de arte que encontrou a última possibilidade não ideológica de ultrapassar a
modalidade negativa da utopia – porque a arte é ‘a única via que entretanto permite dizer o
indizível’“.
324
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.497.
325
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, I: racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus, 1999. p.504: “De ahí que Luhmann puede proyectar sin
dificultad sobre el plano de la teoría de los sistemas la reflexivización de las dos relaciones que el
modelo sujeto-objeto permite.La teoría de sistemas sustituye “sujeto” por “sistema” y “objeto” por
“entorno” y reduce la capacidad del sujeto para conocer y manipular objetos a la idea de
operaciones sistémicas que consisten en hacerse cargo de la complejidad del entorno y hacerla
manejable. Y cuando se nos dice que, aparte de eso, los sistemas también aprenden a referirse de
manera reflexiva a la unidad del propio sistema, ello no significa sino un paso más en el aumento
de la propia complejidad interna con que el sistema puede hacer frente mejor a un entorno
supercomplejo; también esta “autoconciencia” permanece sometida al hechizo de la lógica del
aseguramiento del patrimonio y pervivencia de los sistemas”.
126

teoria da ação, e Parsons, com a teoria dos sistemas. Toda a linha de


argumentação daqui para a frente seguirá as supostas descobertas seguintes a
partir da crítica aos dois autores citados:

- (p) el nacimiento de las sociedades modernas (lo que primariamente


quiere decir: de las sociedades capitalistas modernas) exige la
materialización institucional y el anclaje motivacional de ideas jurídicas y
morales postconvencionales, pero

- (q) la modernización capitalista sigue un patrón, a consecuencia del


cual la racionalidad cognitivo-instrumental desborda los ámbitos de la
vida comunicativamente estructurados y adquiere en ellos la primacía a
costa de la racionalid práctico-Moral y práctico-estético, lo cual

- (r) provoca perturbaciones en la reprodución simbólica del mundo de la


326
vida .

Para Habermas, Weber toma o termo “racionalização” de forma ambígua,


ligando-a à razão instrumental. Assim, a tese da perda de liberdade é, ao mesmo
tempo que fator real na sociedade, é também fruto de um enfoque seletivo que se
tornou popular na sociologia – incapaz que tem sido de observar outros tipos de
ação que não a instrumental. Mais tarde, o abandono de um referencial normativo
pela sociologia vai fazer com que se perceba a evolução social como
unidimensional, isto é, diferenciação pelo aumento da complexidade327.
Habermas, como se sabe, percebe saltos qualitativos328. Com relação à tendência
à burocratização329, Habermas concorda, desde que entendida como autonomia

326
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón funcionalista.
Madrid: Taurus, 1999. p. 431-432.
327
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón funcionalista.
Madrid: Taurus, 1999. p.435-436: “En cualquier caso, la tesis de la pérdida de libertad resulta más
plausible si se considera la burocratización como señal de un nuevo nivel de diferenciación
sistémica. Al diferenciarse los subsistemas Economía y Estado (a través de los medios dinero y
poder) de un sistema institucional inserto en el horizonte del mundo de la vida, surgen ámbitos de
acción formalmente organizados, cuya integración no discurre ya a través del mecanismo del
entendimiento, que se disocian del mundo de la vida y que se coagulan en una socializad vacía de
sustancia normativa [grifos do autor]”.
328
HABERMAS, Jürgen. Para a Reconstrução do Materialismo Histórico. São Paulo:
Brasiliense, 1983. p.154-155: “Finalmente, na transposição do modelo biológico para o
desenvolvimento social, surge uma outra dificuldade: a que resulta do fato de que do ponto de
vista do aumento da complexidade não basta para designar patamares ou níveis evolutivos de
desenvolvimento”.
329
LEAL, Rogério Gesta. A Teoria do Conhecimento em Habermas: conceitos aproximativos. In:
Revista do Direito, Santa Cruz do Sul, n. 17, p.17-31, jan./jun.2002. p.25: “Todavia, o que ocorre
majoritariamente na formação do conhecimento ocidental a partir da Idade Moderna é o fato de
que a racionalidade instrumental/estratégica que anima a força de produtiva dos mercados e do
capital em expansão – maximizando o lucro e reduzindo as despesas e os riscos dos
empreendimentos – vai-se impondo em face da racionalidade comunicativa – preocupada que
está com a busca do entendimento sobre as condições ideais de vida e desenvolvimento da
127

sistêmica perante o mundo da vida. O que importa ressaltar é que a integração


comunicativa ainda é o fato gerador da solidariedade predominante, de modo que
o processo de burocratização ainda não alcançou o seu ápice330. Assim, o
crescente predomínio da razão instrumental em mais âmbitos do mundo da vida é
sinal não de uma racionalização, mas sim efeito de um desacoplamento entre
sistema e mundo da vida. Sob a perspectiva do mundo da vida, é possível
perceber uma maior tecnificação, mas não total domínio, na vida cotidiana. No
quadro a seguir, é possível observar as relações entre o sistema e o mundo da
vida desde a perspectiva do sistema.

Ordens Relações de intercâmbio Subsistemas regidos


institucionais no por meios
mundo da vida
Esferas da vida 1) Trabalhador Sistema econômico
privada

Poder

Força de Trabalho

Dinheiro

Força de Trabalho
2) Consumidor

Dinheiro
Bens e serviços

Dinheiro

Demanda

espécie como um todo. Decorre daí a prevalência de uma forma de visualização e mesmo
compreensão do mundo, e das relações que nele se estabelecem, ancorada metodologicamente
por um conhecimento cindido em sujeito que conhece e objeto que é conhecido – o primado do
domínio econômico exploratório da natureza – formando-se o que Habermas passa a denominar
ideologia tecnocrática”.
330
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón funcionalista.
Madrid: Taurus, 1999. p.442-443: “A mi juicio, la debiildad metodológica del funcionalismo
sistémico, cuando se presenta con pretensiones absolutistas, radica en que elige sus categorías
teóricas como si ese proceso cuyos inicios describió Weber, estuviera ya cerrado, como si una
burocratización total hubiera deshumanizado ya por completo la sociedad, la hubiera convertido en
un sistema desprovisto de todo anclaje en un mundo de la vida comunicativamente estructurado y
éste, a su vez, hubiera quedado degradado al status de un subsistema entre otros. Este “mundo
administrado” era para Adorno una visión de máximo espanto; para Luhmann se ha convertido en
un presupuesto trivial”.
128

Esferas da 1) Cliente Sistema


opinião pública Dinheiro Administrativo

Impostos

Poder

Políticas Públicas
2) Cidadão

Poder

Decisões políticas

Poder

Lealdade da população

Tabela 13 – Ordens institucionais e relações básicas331

Note-se que, ao contrário da força de trabalho, a legitimidade não pode ser


“comprada”. Mas a tese a principal de Habermas não é esta. Sua tese principal é
a de que, no momento em que se estabelece a reprodução social como fruto da
ação comunicativa como o standart, a integração sistêmica, que se insinua com
cada vez mais força gera “efectos laterales patológicos”332.

Um destes efeitos laterais, pertinente a este trabalho, é o da


reinterpretação da “perda de sentido”. No momento em que a ação instrumental é
a única entendida como permitida em um mundo racionalizado, a burocratização
do mundo da vida parece inevitável, o que gera uma deslegitimação do poder
público, vez que parece ser impossível a inclusão de qualquer elemento ético na
política. Esses meios, dinheiro e poder, provocam no mundo da vida uma
racionalização seletiva, onde, por exemplo, o dinheiro faz com que se atue dentro
das relações familiares a partir de critérios utilitaristas (um exemplo disso é a
crescente “monetarização” de demandas familiares no âmbito da justiça), e o
poder provoca a adesão a um saber de especialistas, desconectados de uma

331
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón funcionalista.
Madrid: Taurus, 1999. p.454.
332
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón funcionalista.
Madrid: Taurus, 1999. p.457.
129

razão comunicativa333. Este abandono de uma perspectiva ética reflete-se em


desânimo com relação à racionalidade prática, prejudicando, de certo modo, a
implantação e estabilização da Gestão Pública Compartida.

Habermas ressalva que, ao mesmo passo que os subsistemas agem, um


outro evento paralelo ocorre de maneira independente, que é o empobrecimento
cultural – evento paradoxal, diante da revolução do ensino, o qual levara o ensino
básico à totalidade da população e universitário a considerável parte334. Em
realidade, esta mesma revolução contribuiu para a formação de experts,
incapazes de fazer as conexões entre questões de gosto, verdade e retidão. Este
é o empobrecimento do mundo da vida: não a diferenciação em questões de
verdade, sinceridade ou gosto e retidão, mas sim a incapacidade de formação de
referenciais noéticos a partir da conjunção destes e a falta de conexão das cada
vez mais impressionantes descobertas nestas áreas com o grande público.
Obviamente que isto é um grande fracasso para os iluministas e para outros
modernos, como Marx, que buscavam a ligação da filosofia com a prática.

Los procesos de entendimiento, en torno a los cuales se centra el mundo


de la vida, necesitan de una tradición cultural en toda su latitud. En la
práctica comunicativa cotidiana tienen que combinarse y fundirse entre sí
interpretaciones cognitivas, expectativas morales, manifestaciones
expresivas y valoraciones, y, a través de las transferencias de validez
que la actitud realizativa permite, constituir un todo racional. Esta
infraestructura comunicativa se ve amenazada por dos tendencias que
se compenetran y refuerzan mutuamente: por una cosificación inducida
335
sistémicamente y por un empobrecimiento cultural [grifos do autor] .

Nas sociedades modernas, os conflitos entre os sistemas que necessitam


legitimação e a sua intervenção no mundo da vida desembocam em paradoxos
333
LEAL, Rogério Gesta. A Teoria do Conhecimento em Habermas: conceitos aproximativos. In:
Revista do Direito, Santa Cruz do Sul, n. 17, p.17-31, jan./jun.2002. p.27: “Como sustenta o
autor, este tipo de ideologia tecnocrática impede a tematização discursiva do político, excluindo da
comunicação pública certas temas e motivos inconvenientes para o sistema de poder, e que
poderiam, precisamente, levar os indivíduos a promoverem a abertura de discursos
problematizadores. Esses temas censurados são retirados da linguagem pública. Nas condições
do capitalismo tardio, portanto, a luta política se desdobra em vários planos: o da ação estratégica;
o da elucidação pedagógica (discurso “terapêutico”), a fim de neutralizar uma ideologia – a
tecnocrática – que tenta legitimar o poder com a estratégia, historicamente nova, de negar a
existência de um poder a ser legitimado; e o dos discursos práticos a serem conduzidos entre
todos aqueles que sejam “discursivamente competentes”, e que deveriam, idealmente, incluir
todos os interessados”.
334
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón funcionalista.
Madrid: Taurus, 1999. p.462.
335
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón funcionalista.
Madrid: Taurus, 1999. p.464.
130

conhecidos, como a incompatibilidade entre um mercado regido pela ação


instrumental e um Direito que pretende formado comunicativamente e que influi
sobre este mercado. Sob outra perspectiva, existe também a tensão entre um
poder burocratizado que se legitima a partir de uma opinião pública e que atua em
direção à própria, burocratizando-a336. No Estado social, este processo adquire
cores interessantes, por que a tensão trabalhador-consumidor assume seu par
neutralizador na relação cidadão-cliente da burocracia337.

A perda de sentido, materializada em falta de integração entre as esferas


de gosto, verdade de retidão338 – diferenciadas a partir da modernidade -,
radicaliza-se em âmbitos de saber estanques só domináveis por especialistas, de
modo que a prática cotidiana tecnoburocrática é tomada como não-ideológica ou
quase-natural339. O movimento se completa quando se une o mundo da vida
fragilizado em termos de esfera pública e sistemas autonomizados:

Solo entonces se cumplen las condiciones para una colonización del


mundo de la vida: los imperativos de los subsistemas autonomizados, en
cuanto quedan despojados de su velo ideológico, penetran desde fuera
en el mundo de la vida – como señores coloniales en una sociedad
tribual – e imponen la asimilación; y las perspectivas dispersas de la
cultura nativa no pueden coordinarse hasta un punto que permitiera
percibir y penetrar desde la periferia el juego de las metrópolis y del
340
mercado mundial [grifos do autor] .

O Direito é um caso emblemático para o estudo de tais fenômenos.

336
PINTO, F. Cabral. Leituras de Habermas: modernidade e emancipação.. Coimbra: Fora do
Texto, 1992. p.179: “Uma vez que exista um opinião pública despolitizada, a separação hegeliano-
liberal entre sociedade civil e Estado pode ser de novo afirmada, agora no sentido positivo de uma
cooperação necessária entre as forças organizadas de uma sociedade e um poder estatal
exercido por especialistas sócio-politicamente neutros“.
337
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón funcionalista.
Madrid: Taurus, 1999. p.495: “La implantación de los derechos políticos fundamentales en el
marco de la Democracia de masas significa, por un lado, la generalización del rol de ciudadano,
pero, por otro, significa también la segmentación de ese rol respecto a los procesos efectivos de
decisión, significa que la participación política queda vacía de contenidos participatorios.
Legitimidad y lealtad de la población se funden en una amalgama que los afectados ya no pueden
analizar, que no pueden descomponer en sus ingredientes críticos”.
338
BEST, Steven. The Politics of Historical Vision: Marx, Foucault, Habermas. New York,
London: Guilford, 1995. p.178: “Everyday life cannot be changed simply by transforming only one
sphere; political programs must address and balance all three spheres. In a nonreified lifeworld one
would find an autonomization and interaction of the three spheres of value and their appropriate
forms of argumentation and validity claims”.
339
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón funcionalista.
Madrid: Taurus, 1999. p.502.
340
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón funcionalista.
Madrid: Taurus, 1999. p.502.
131

Habermas se fixa na evolução do Direito de família e no Direito educacional


durante o Estado burguês-absolutista, o Estado Liberal de Direito, o Estado
Democrático de Direito e o Estado social e Democrático de Direito.

Durante a fase do Direito absolutista foi possibilitada, pela


institucionalização, a diferenciação dos subsistemas. O Direito já conta aqui com
uma autonomia da vontade privada, tutelada pelo Estado, que se configura em
Direito privado aberto à ação instrumental. O Direito já é, também, formal,
universal e positivo, sendo estatuído por um Estado que detém o monopólio da
violência mas está restrito às leis que ele mesmo cria341. O Estado de Direito
caracteriza-se pela existência não de autolimitações criadas pelo Estado, mas
pela detenção, pelos cidadãos, de direitos subjetivos fundamentais
metafisicamente impostos desde fora, mas que precisam ser justificados de toda
maneira. A partir da revolução francesa é possível vislumbrar a compreensão de
um Estado democrático de Direito, aos quais se assomam aos direitos
fundamentais direitos de participação democrática efetiva em direção à
legislação342. Finalmente, no Estado Social e Democrático de Direito é possível
notar a consagração de direitos fundamentais. Em cada jornada de juridificação é
possível notar uma maior extensão e aprofundamento do Direito, sempre em
direção da institucionalização dos conflitos. Tais movimentos de juridificação
foram liderados por uma compreensão de maiores direitos a ações instrumentais,
inclusive no âmbito da legislação social. Para que seja possível um tratamento
jurídico de tamanha extensão na sociedade, houve a necessidade de abstração
das biografias individuais343, em um processo de seleção de fatos relevantes
unilateral, ou seja, relevantes apenas para o sistema344. A burocratização também

341
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón funcionalista.
Madrid: Taurus, 1999. p.506.
342
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón funcionalista.
Madrid: Taurus, 1999. p.509: “Esta exigencia es satisfecha mediante un procedimiento que liga la
legislación a procesos de decisión parlamentaria y a la discusión pública. La juridificación del
proceso de legitimación se implanta en forma de derecho de voto, universal e igual, y del
reconocimiento de la libertad de organizar y pertenecer a asociaciones y partidos políticos [grifos
do autor]”.
343
MCCARTHY, Thomas. La Teoría Crítica de Jürgen Habermas. Madrid: Tecnos, 1998. p.476:
“[...] la propia forma jurídico-burocrática de tratar administrativamente ciertos problemas lo que la
postre acaba estorbando su solución. Pues, en primer lugar, obliga a una redefinición de
situaciones existenciales en unos términos que resultan contraproducentes“.
344
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón funcionalista.
Madrid: Taurus, 1999. p.513: “Las burocracias encargadas de hacer las prestaciones han de
132

leva ao enfoque que permite observar o desacoplamento do sistema do poder


juridificado do mundo na medida em que a fundamentação das normas se afasta
de uma fundamentação material em direção a uma fundamentação
procedimental-jurídica, onde a mera obediência aos trâmites jurídicos de
produção da norma garantiria a legitimidade desta. Isto é possibilitado
socialmente por que o Direito como um todo ainda é legitimado, muito embora
grande parte das normas sejam estatuídas em desconsideração da esfera
pública. No Direito de Família e no Direito Escolar esta juridificação também se
faz notar, a medida em que as posições autoritárias pai-filho, homem-mulher,
mestre-aluno são reguladas em direções mais igualitárias impostas
paternalisticamente desde fora. O problema, para Habermas, novamente não é
juridificação em-si, mas a juridificação a partir do Direito como meio (em forma de
ação unilateral)345.

Essa tecnificação do Direito reflete-se nas teorias jurídicas formuladas


acerca da legislação. Muito embora o problema da fundamentação de um
conhecimento voltado à emancipação em termos jurídicos esteja resolvido por
uma decisão constitucional, não se constrói um saber voltado à emancipação346,
pelo menos no que toca à doutrina majoritária.

proceder de forma fuertemente reductiva seleccioanndo sólo os casos de necesidad que puedan
tratarse con los procedimientos legales propios de la dominación burocrática, esto es,
asimilándolos a la ficción jurídica de perjuicios a indemnizar [grifos do autor]”.
345
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Acción Comunicativa, II: crítica de la razón funcionalista.
Madrid: Taurus, 1999. p.522: “La formalización de las relaciones dentro de la familia y de la
escuela significa para los afectados una objetivización (Versachlichung) y desmundanización de la
convivencia familiar y escolar, que ahora queda regulada formalmente. Como sujetos jurídicos que
adoptan los unos frente a los otros una actitud objetivante, orientada hacia el éxito [grifos do
autor]”.
346
HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e Interesse. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987. p.34:
“Enquanto o interesse técnico e o interesse prático do conhecimento estão fundamentados em
estruturas profundas de ação e experiência (invariâncias?), entrelaçadas que estão com os
elementos constituintes dos sistemas sociais, o interesse emancipatório do conhecimento possui
um status derivado. Ele garante o elo do saber teórico com a práxis da vida, isto é, como uma
“área-de-objeto”, a qual apenas surge sob as condições de uma comunicação sistematicamente
deformada e de uma repressão aparentemente legitimada. O tipo de experiência e ação, o qual
corresponde a este domínio do objeto, é assim igualmente derivado. A experiência com a
pseudonatureza é reflexiva de um modo sui generis e se encontra imbricada com a ação que
remove as compulsões pseudonaturais: eu faço a experiência da coerção, essa que procede de
objetivações inescrutáveis – ainda que engendradas – tão-somente no instante da interiorização
analítica e da dissolução de um pseudocaráter-de-objeto, enraizado em motivos inconscientes ou
interesses recalcados [grifos do autor]. Esta citação está no contexto da obra conhecimento e
interesse, na qual Habernas divide as ciências em técnicas, interativas e críticas, todas voltadas,
de alguma maneira, à emancipação do homem. Como Habermas reformula esta tese, esta
temática não será desenvolvida com maiores detalhes [grifos do autor]”.
133

O fenômeno da tecnificação, induzido tanto pelos sistemas como pela


perda de sentido do mundo da vida, traduz-se em, ao mesmo tempo, um prestígio
a piori das ciências duras – dado seu visível sucesso e repercussões no
desenvolvimento de novas facilidades materiais – que gera um desânimo com
relação à racionalidade prática, e em uma extensão não apenas de uma
metodologia mecanicista (paulatinamente sendo superada) – isto é secundário,
mas sim e principalmente a extensão da racionalidade instrumental dominada por
especialistas a outros âmbitos do mundo da vida, notadamente no que toca à
racionalidade prática, que, aliás, é vista pelo senso comum como de impossível
racionalização.

Por consiguiente, según los principios de una teoría analítica de la


ciencia, aquellas cuestiones empíricas que no puedan plantearse y
resolverse en forma de tareas técnicas no tienen derecho a esperar de la
teoría ninguna respuesta. Todas las preguntas prácticas que no puedan
responderse de modo suficiente mediante recomendaciones técnicas,
sino que requieren también una autocompreensión en una situación
concreta, sobrepasan desde el principio el interés de conocimiento
investido de ciencia empírica. El único tipo de ciencia admitido por el
positivismo no es dueño de considerar racionalmente tales
cuestiones.[…] las cuestiones prácticas […] no son susceptibles de una
347
discusión vinculante y en última instancia han de ser decididas .

Obviamente que as questões de políticas públicas continuam sendo


decisões vinculantes entre alternativas várias e, neste sentido, são um exercício
de racionalidade prática. Mas em nível de autocompreensão social, as decisões
políticas superiores são vistas como irracionais – tomadas por um povo
manipulado ou um líder totalitário ou carismático – e as decisões em termos de
políticas públicas, notadamente no que toca as da política econômica, tomadas
cientificamente, à moda observacional. A imagem da ciência é instrumentalizada
e a política se burocratiza em racionalidade instrumental

Esta transição deita raízes em uma primeira desublimação levada a cabo


pela ideologia liberal da troca justa, a qual superara a metafísica da política
teológica e metafísica.

O capitalismo [...] oferece uma legitimação da dominação que já não


desce do céu da tradição cultural, mas que surge da base do trabalho
social. A instituição do mercado em que proprietários privados trocam
mercadorias, que inclui um mercado em que pessoas privadas e sem

347
HABERMAS, Jürgen. Teoria Y Praxis. Madrid: Tecnos, 1987. p.298.
134

propriedade trocam como única mercadoria a sua força de trabalho,


promete a justiça da equivalência nas relações de troca. Com a categoria
da reciprocidade, também esta ideologia burguesa transforma ainda em
base da legitimação um aspecto da acção comunicativa. Mas o princípio
da reciprocidade é agora princípio de organização dos próprios
processos de produção e reprodução social. Por conseguinte, a
dominação política pode doravante legitimar-se a "partir de baixo" em
348
vez de ser "a partir de cima" (apelando para a tradição cultural) .

Claro que a ideologia da troca justa é facilmente desmascarada como


também metafísica. Como era impossível um retorno à metafísica teológica, e
questões práticas consideravam-se irracionais, fica fácil explicar, nesta via, o
fenômeno da tecnificação pelo saber de especialistas da Administração Pública,
pois a racionalidade instrumental fora a alternativa a uma racionalidade
desencantada. Este é, afinal, o resumo da tese de Weber. A Administração
Pública vai buscar, assim, racionalmente, encontrar os meios técnicos-científicos
capazes de satisfazer os fins irracionalmente postos pela política. A racionalidade
do cálculo capitalista e da ação instrumental torna-se um marco referencial para
âmbitos do mundo da vida antes regidos por uma ação interacional349.

A dominação em termos de Democracia formal, própria dos sistemas do


capitalismo regulado pelo Estado, encontra-se sob uma necessidade de
legitimação, que já não pode resolver-se pelo recurso à forma pré-
burguesa de legitimação. Assim, para o lugar da ideologia da troca livre,
entra um programa substitutitvo que se orienta pelas conseqüências
sociais, não da instituição do mercado, mas de uma actividade estatal
que compensa as disfunções do intercâmbio livre. Esse programa
vincula o momento da ideologia burguesa do rendimento (que, sem
dúvida, desloca a atribuição de estatuto segundo a medida do
rendimento individual desde o mercado para o sistema escolar) com a
garantia de um mínimo de bem-estar da estabilidade no posto de
trabalho e da estabilidade dos rendimentos. Semelhante programa
substitutivo obriga o sistema de dominação a manter as condições de
estabilidade de um sistema global que garante a segurança social e as

348
HABERMAS, Jürgen. Técnica e Ciência como 'Ideologia'. Lisboa: Edições 70, [s.d.], p.64.
349
HABERMAS, Jürgen. Técnica e Ciência como 'Ideologia'. Lisboa: Edições 70, [s.d.] p.65-66:
"A partir de baixo, surge uma permanente pressão adaptativa logo que, com a institucionalização
de um intercâmbio territorial de bens e da força de trabalho, por um lado, e da empresa capitalista,
por outro, se impõe a nova forma de produção. No sistema do trabalho social, fica assegurado o
progresso cumulativo das forças produtivas e, assim, uma expansão horizontal dos subsistemas
de acção racional teleológica - sem dúvida, à custa de crimes econômicos. Por este meio, as
formas tradicionais sujeitam-se cada vez mais às condições da racionalidade instrumental ou
estratégica: a organização do trabalho e do tráfico econômico, a rede de transportes, de notícias e
da comunicação, as instituições do direito privado e, partindo da administração das finanças, a
burocracia estatal. Surge, deste modo, a infraestrutura de uma sociedade sob a coação à
modernização. Ela apodera-se, pouco a pouco, de todas as esferas vitais: da defesa, o sistema
escolar, da saúde e até da família, e impõe tanto na cidade como no campo como uma
urbanização da forma de vida, isto é, subculturas que ensinam o indivíduo a poder "deslocar-se"
em qualquer momento de um contexto de interacção para a acção racional teleológica [grifos do
autor]”.
135

oportunidades de promoção pessoal, e a prevenir os riscos do


crescimento. Isso exige um espaço de manipulação para as intervenções
do Estado que, à custa da limitação das instituições do Direito Privado,
asseguram, no entanto, a forma privada da revalorização do capital e
350
vinculam esta forma ao assentimento das massas [grifos do autor] .

Se o pano de fundo da era do Estado de bem-estar modificou-se, como se


modificaram os conteúdos dos discursos legitimadores deste Estado,
seguramente, todavia, é possível fundamentar-se que a estrutura de legitimação
continua a mesma na ordem neoliberal: uma decisão política na contingência é
arrogada como científica351 dentro de um âmbito de desprezo generalizado à
ideologia e à política (e com a vigência de uma idolatria à técnica e à ciência352).
Qualquer outra alternativa à burocratização de matiz neoliberal é de antemão
descartada como “ideológica” ou “política”, sendo a discussão restrita aos
melhores meios técnicos de alcançar-se o resultado apoliticamente (ou
decisionisticamente, uma vez que a discussão das razões da ação está
‘proibida’)353, além de altamente centralizada. Não é necessário fundamentar

350
HABERMAS, Jürgen. Técnica e Ciência como 'Ideologia'. Lisboa: Edições 70, [s.d.] p.70.
351
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia II: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.83. “O reducionismo cognitivista e empresarial dos discursos
neocorporativistas considera a sintonia entre sistemas apenas pelo ângulo dos problemas de
coordenação funcional. Ou seja, o saber relevante para a regulação, produzido por vários grupos
de especialistas, deve ser transformado em políticas e traduzido em programas jurídicos através
de juristas esclarecidos pela teoria do sistema. Essa concepção apóia-se na idéia não realista de
que o saber dos especialistas, mobilizado profissionalmente, pode prescindir de valores e pontos
de vista morais. No entanto, a partir do momento em que se apela para um saber especializado, a
fim de tratar de problemas relevantes para a regulação da política, percebe-se que ele possui um
teor normativo que desencadeia controvérsias polarizadoras entre os próprios especialistas.
Questões de coordenação funcional, elaboradas politicamente, estão entrelaçadas com a
dimensão Ética e Moral da integração social; isso decorre do fato de que, para percebermos as
conseqüências de uma integração insuficiente do sistema, temos que recorrer ao pano de fundo
do mundo da vida, ou seja, a interesses feridos ou identidades ameaçadas"
352
MCCARTHY, Thomas. La Teoría Crítica de Jürgen Habermas. Madrid: Tecnos, 1998. p.28:
“En nuestro tiempo, el desarrollo de las ciencias sociales como ciencias aplicadas al servicio de la
administración se nutre de una tendencia afín a excluir de la reflexión racional los fines de la
práctica política y a abandonarlos al resultado de la pugna entre los grupos de presión existentes.
Pero los modelos decisionistas de la relación entre experiencia técnica y práctica política están
siendo crecientemente sustituidos por modelos tecnológicos, en los que la necesidad objetiva
revelada por los expertos parece predominar sobre las decisiones de los líderes”.
353
HABERMAS, Jürgen. Teoria Y Praxis. Madrid: Tecnos, 1987. p.299-300: “Un decisionismo
elevado a concepción del mundo no vacila ya en reducir las normas a decisiones. En la forma,
surgida del análisis del lenguaje, de una Ética no cognitiva, el complemento decisionista de una
ciencia restringida a la manera positivista viene él mismo concebido en forma positivista […]
Desde el momento en que determinados juicios de valor fundamentales se toman como axiomas,
es posible analizar concluyentemente un nexo deductivo de proposiciones correspondiente a
aquéllos; sin embargo, tales principios no son accesibles a una aprehensión racional: su
aceptación descansa exclusivamente en la decisión […] las decisiones relevantes para la práctica
vital, ya consistan en la aceptación de valores, en la elección de un proyecto de historia vital o en
la elección de un enemigo, no son accesibles a un debate racional ni susceptibles de un consenso
racionalmente motivado” [grifos do autor]”.
136

fortemente tais assertivas, eis que observáveis na prática cotidiana dos


noticiários.

Tem-se, então, sedimentada uma prática administrativa tecnoburocrática354


que encontra legitimação no meio social – sendo criticada, no mais das vezes, no
sentido de seus altos custos e ineficiência. Ou seja, também a crítica da
Administração se faz em termos de ação instrumental.

A constatação da vigência de um paradigma tecnoburocrático encaixa-se


com perfeição, como será visto no próximo tópico, no diagnóstico habermasiano
da contemporaneidade.

2.6 Interlúdio: formatando a crítica da Administração


Pública

Habermas, como visto, faz ruir as bases da autocompreensão seletiva da


racionalidade instrumental como racionalidade por excelência para o manejo das
questões públicas, oferecendo tanto um modelo de crítica em termos mais gerais
quanto alternativas sob a forma das construções elaboradas em sede de ação
comunicativa, como o Direito e a Democracia, vistos com mais detalhe adiante.
Falta, ainda, concatenar esta crítica com a mitologia da Administração Pública
presente nos manuais.

O trato dos doutrinadores brasileiros com a Administração Pública é


extremamente pobre. Isso porque o conceito de Administração Pública aparece

354
MCCARTHY, Thomas. La Teoría Crítica de Jürgen Habermas. Madrid: Tecnos, 1998. p.30:
“Tanto los modelos decisionistas como los modelos tecnocráticos de la práctica política reflejan la
transformación de las cuestiones prácticas en cuestiones técnicas y su consiguiente exclusión de
la discusión pública. En los primeros, la única función de la ciudadanía es legitimar a los grupos
dirigentes mediante aclamación a través de plebiscitos periódicos. Las decisiones políticas mismas
caen fuera de la autoridad de la discusión racional en la esfera pública; el poder puede ser
racionalizado, pero una vez más sólo a expensas de la Democracia. La reducción del poder
político a administración racional – esto es, a una administración guiada por la visión teórica de lo
que es objetivamente necesario (para la estabilidad, la adaptabilidad, el crecimiento, etc.) – priva a
la esfera pública de toda función, salvo la de legitimar al personal administrativo y la de juzgar las
cualificaciones profesionales de los dirigentes”.
137

como mero adendo do Direito Administrativo e, às vezes, do Direito


Constitucional. Parece reinar entre os doutrinadores a idéia de autonomia do
Direito Administrativo e sua relação com um regime jurídico administrativo que por
sua vez define a Administração Pública. Nota-se, portanto, um início dogmático de
existência de sistemas de Direitos fechados e suficientes. O Direito Administrativo
é aquele Direito da Administração Pública. O desafio de conceituar Direito
Administrativo é, então transferido ao conceito de Administração Pública. Note-se
que se busca a criação de conceitos autônomos para o Direito Administrativo. A
observação que ele faz da Administração deve bastar para que se tenha um bom
regime jurídico administrativo. Assim, os doutrinadores do Direito Administrativo
não conseguem sair de suas armadilhas porque conceituam todo o resto dos
fenômenos que se deparam a partir do Direito Administrativo, que é tomado na
dogmática como autônomo e suficiente. Essas conceituações, é claro, são
insuficientes pela incapacidade que a dogmática tem de ver além de si mesma. É
como se a dogmática fosse auto-referencial. Um conceito de Direito
Administrativo e Administração Pública tem de buscar transcender os meros
espaços de uma dogmática do regime jurídico administrativo.

Diz-se que o problema da conceituação do Direito Administrativo é


transferido ao da Administração Pública. Este é o grande tormento dos juristas. É
como se os conceitos fossem um cobertor pequeno, que, ao passo em que se
cobre a parte de cima do corpo, os pés passam frio, e vice-versa. É comum a
descrição da Administração Pública como tendo a função de satisfazer o interesse
público ou realizar algum serviço público. O problema destas noções de atividade
administrativa está em sua relação com o problema que Enterría tentara resolver,
ou seja, a criação de um critério material. A operação material de primeiro
delimitar um campo de incidência de algo, apodá-lo de Administração pública e
após gerar as conseqüências em termos de princípios, os quais constituem um
regime jurídico, é congelar como administrativa determinada atividade que depois,
na realidade social, pode ser abandonada, tornar-se secundária ou ser realizada
por alguma organização que não assuma exatamente um perfil burocrático, como
as ONGs. Para evitar este problema, descreve-se então que a Administração
trabalha com interesses que não são seus (o que já é problemático), remetendo
ao interesse público. Esse, por sua vez, é abstrato, sem que ninguém possa
138

defini-lo, senão em termos que nada acrescentam. O problema do interesse


público e do interesse geral é a sua incognoscibilidade a priori. Isto é, não se
nega que possa ser identificado um interesse público. O problema é a sua
identificação antes de um procedimento democrático de sua definição e
identificação.

Não é necessário chamar ninguém mais que Kelsen para resolver o


problema da metafísica do interesse comum:

Outra abordagem sociológica do problema do Estado parte da


pressuposição de que os indivíduos pertencentes a um mesmo Estado e
estão unidos pelo fato de possuírem uma vontade comum ou – o que
redunda no mesmo – um interesse comum [...] Se a teoria do Estado não
deve transcender os dados da experiência e degenerar em especulação
metafísica, essa “vontade coletiva” ou consciência coletiva” não pode ser
a vontade ou consciência de um ser diferente dos indivíduos humanos
que pertencem ao Estado [...] o termo [...] pode significar apenas que
vários indivíduos querem, sentem ou pensam de uma certa maneira e
estão unidos por sua consciência desse querer, sentir e pensar comuns
[...] É improvável que tal identificação possa existir, exceto em grupos
355
relativamente pequenos [...] .

Kelsen ridiculariza também a idéia de vontade do Estado, que pode muito


bem ser transferida à Administração:

Declarar a vontade do Estado como uma realidade psicológica ou


sociológica é hipostatizar uma abstração em força real, ou seja, atribuir
caráter substancial ou pessoal a uma relação normativa entre
356
indivíduos .

Note-se que a primeira tentativa, a metafísica, de conceituar Administração


Pública fracassa. Nesta primeira tentativa pode-se colocar também a divisão entre
atos de império e atos de gestão, novamente uma divisão que, além de não ter
conteúdo algum, ainda serve de substrato ideológico à neutralização da
Administração, pois seus atos de gestão seriam técnicos e os atos de império
políticos. O sobra, então, é o decisionismo. Interesse público e Administração
Pública seria aquilo que a lei disse que é. Mas novamente o problema da
abstração retorna, uma vez que, em primeiro lugar, a atividade administrativa
claramente está livre da lei em diversos âmbitos de atuação; e, em segundo lugar
(e principal argumento), a lei é vaga e necessita ser concretizada a partir de uma

355
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p.266.
356
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p.267.
139

margem de liberdade a que a Administração goza.

Como em toda esta operação mental nada se definiu acerca da


Administração Pública, a saída é simplesmente dizer, como Enterría fizera, que
Administração Pública é o conjunto de órgãos com personalidade jurídica pública,
o que gera outros problemas, como a realidade de que órgãos que não estão
vinculados ao governo realizam serviços públicos (empresas, universidades,
ONGs). O problema está na racionalidade subjacente tanto de definição de algo,
como visto, mas também de fazer Administração Pública.

Para Celso Antônio Bandeira de Mello, a tarefa do jurista seria descobrir


uma racionalidade comum entre os diversos institutos jurídicos. Nesse sentido,
Mello se aproxima de uma concepção pragmática. Não consegue, todavia,
avançar muito porque seu modo de proceder é dedutivo-analítico, afastando o
fenômeno de suas relações357. Por outro lado, Mello está correto ao estatuir que
os conceitos só completam seu sentido a partir de determinado topos, que, no
caso do Direito Administrativo, seria o regime jurídico-administrativo. Mas
novamente a ambigüidade a que está enredado pende para a metafísica, de
modo a que regime jurídico-administrativo estaria ligado a uma decisão abstrata
legal. O legislador decidiria o que é Direito público e privado e o que é serviço
público, por exemplo. O problema é quando identificar quando isto foi feito. Essa
identificação, na dogmática cotidiana, novamente remete a conceitualismos
substantivos, vinculados a definições abstratas e metafísicas.

Tudo isto denota o verdadeiro perigo: já que não se faz nada a nível
dogmático, qualquer coisa vem a ser interesse público. Está-se, então, diante do
mais legítimo decisionismo, travestido de decisão técnica da Administração. A
descrição habermasiana, aqui, é perfeita. Óbvio que, neste contexto, está-se no
plano conceitual, vez que é possível, sem dúvida, identificar um núcleo mínimo
que seja de interesse público a partir das decisões já tomadas pela comunidade
em nível constitucional e infraconstitucional. Ninguém em sã consciência poderia
dizer que uma política estimuladora do desemprego (sem nenhuma

357
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros,
2000. p.49.
140

compensação), ou uma conduta imoral estão em conformidade com o interesse


público. A identificação deste núcleo mínimo, todavia, não é tarefa para este
trabalho.

Falta confirmar a tese da perda de sentido e da perda de liberdade. Antes,


todavia, umas notas sobre Reforma do Estado implementada na era FH.

Diz-se da reforma a superação da Administração de cunho burocrático. O


primeiro é o da “devolução” de determinados serviços públicos à sociedade. A
pergunta capciosa aqui a ser feita é se esses serviços realmente foram
“devolvidos” à sociedade ou foram entregues a pouco privilegiados. Este é um
argumento que nem merece ser desenvolvido, tamanha a ingenuidade ideológica
neoliberal. O foco da argumentação aqui vai se concentrar na idéia de
Administração gerencial. O cerne da Administração gerencial é a “imitação” da
“eficiência” das empresas. Lembre-se que, desde as primeiras reformas, este foi
um intento dos governantes, de modo que não é nenhuma novidade. A questão é
que Weber também descreve a burocracia como presente nas empresas
capitalistas. Esta é uma das características delas. Isto demonstra que, mesmo
que a Administração Pública imite tal qual a empresa, não necessariamente
estará livre do tipo weberiano. Pior ainda, na empresa privada o segredo
profissional é permitido pela Constituição; na Administração Pública, não. A
assunção de um tipo empresarial pela Administração tornaria ainda mais
conforme a descrição de Weber, pois, para ele, conforme visto, o segredo faz
parte da burocracia. A atenuação da estrutura piramidal seria um indicativo da
superação do tipo weberiano, mas isto não afasta a descrição de Weber: ele não
diz com quantos degraus se faz uma delas. A criação de agências de regulação é
a burocratização ao extremo da Administração Pública, uma vez que o acesso do
cidadão a elas dá-se em forma de cliente insatisfeito, e não de cidadão atuante. O
cidadão meramente vai à agência reclamar do serviço mal-feito; não pode, se não
for um dos poucos conselheiros escolhidos pelo Poder Público, tomar parte das
deliberações, vez que estas não teriam cunho político, mas sim técnico, de
manutenção do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos. Por fim, o controle
por resultados menos ainda supera a racionalidade weberiana, pois a
racionalidade meios-fins vai se fazer presente de modo ainda mais predominante:
141

a Administração terá a total liberdade para alcançar os fins postos politicamente!!!

Por fim, podemos perquirir se o imaginário administrativista contribui ou é


conseqüência de uma colonização do mundo da vida pela racionalidade
instrumental e se aquele vem perdendo sentido pela hiperespecialização. Não há
dúvidas que é possível responder que sim. Tanto a visão ingênua quanto a falácia
da Administração gerencial estão estruturadas a partir dos melhores meios
cientificamente controláveis para alcançar fins políticos irracionais. É o que se vê
diante da impossibilidade de saída do decisionismo, escamoteado que é sob a
forma de um interesse público decidido de maneira apriorística pela
Administração. Mais grave ainda é o não reconhecimento, após todas as
transformações, mormente após a Constituição de 1988, da racionalidade prática
a nível Administrativo. Isso tudo é ainda agravado pelas incursões
contemporâneas de ideais pós-modernos que percebem a diferença como
imutável e irredutível, onde a negociação e o entendimento são impossíveis, i.e.,
existem leituras de que o pluralismo de valores, descrito por Weber, chegou ao
ponto que prevera: é impossível a obtenção de acordos racionais em nível de
sociedade porque, em cada um buscando sua vantagem ou a preservação de sua
diferença, não podem mais agir de maneira adulta, negociando programas de
ação conjuntamente. A Constituição de 1988 consagrou o capitalismo, todavia,
não estendeu a racionalidade capitalista à Administração Pública; pelo contrário,
consagrou princípios como a Democracia, a República e a publicidade, logo,
inconcebível o predomínio da razão instrumental em nível de Administração
Pública. A alternativa hoje em dia é clara: como é impossível um retorno à
metafísica, ou se reconhece um “direito ao decisionismo” para a Administração
Pública, ou se busca a inserção de uma racionalidade prática (em realidade, uma
racionalidade comunicativa) dentro da Administração Pública. E isso implica
revisão também da compreensão de Administração Pública que, por sua vez,
demanda revisão do Direito358.

358
LEAL, Rogério Gesta. Estado, Administração Pública e Sociedade: novos paradigmas. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p.69: “Tal cenário, todavia, não nos leva à incredulidade em
face da principal promessa da modernidade: a razão emancipadora, eis que, até aqui, o que temos
visto imperar é, fundamentalmente, a utilização instrumental e estratégica da razão, voltada para
os fins que acabamos de delimitar. Por isto, estamos propondo um afastamento da cética
perspectiva da primeira geração da escola de Frankfurt e, com Habermas, acreditando que é
142

possível operarmos a razão a partir de outros lugares e fundamentos, resgatando sua dimensão
emancipadora, do entendimento à paz e à solidariedade, portanto, revelando sua função
procedimental valorativa, com as seguintes características: (a) observar os vetores axiológicos
universais não-metafísicos, como os direitos humanos e fundamentais; (b) partir e problematizar,
de forma permanentemente aberta e crítica, as proposições assertóricas de todos os atores
sociais que se encontram sob sua égide, numa perspectiva de entendimento e consenso,
consciente da natureza permanentemente tensional de tal tarefa; (c) explicitar os argumentos de
justificação e fundamentação que pretendem legitimar os modelos de organização social e
comunicação política que se encontram na base de sua constituição”.
3 ELEMENTOS TEÓRICO-REFLEXIVOS DE UMA TEORIA
DISCURSIVA DO DIREITO E DA DEMOCRACIA NA
PERSPECTIVA DE JÜRGEN HABERMAS

3.1 Noções fundacionais e preliminares da teoria da


Democracia discursiva

A teoria do Direito e da Democracia, hoje, tem de dar conta não só das


condições contemporâneas de produção de engajamentos sociais – altamente
complexos e problemáticos – mas também das questões relativas à
impossibilidade de um retorno às concepções metafísicas de Direito e de
linguagem.

A problemática da Democracia explica-se, em Habermas, através do


conceito de razão e ação comunicativa talhado por ele mesmo. Ou seja, quem
interage vê-se forçado a utilizar a linguagem natural e seus consectários
pragmáticos, ou seja, adotar um enfoque performativo e com ele certos
pressupostos359. Tem o participante de aceitar que os participantes agem
engatando sua ação na dos outros, que os participantes formam consensos
criticáveis em um contexto historicamente mediado. Quem interage tem de
posicionar-se contrafaticamente diante de regras de jogos de linguagem, sem
que, contudo, essas normas sejam normas de agir360.

359
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p. 20.
360
PIZZI, Jovino. Ética do Discurso: a racionalidade ético-comunicativa. Porto Alegre: Edipucrs,
1994. p.58:“Habermas diz que só é possível uma ordem social que corresponda à da ação
144

A idéia principal é não abandonar a perspectiva de uma condução


autoconsciente da vida – uma vida racional que se conecta de algum modo à
sociedade e ao Direito. O agir comunicativo exige atenção à importante função da
linguagem de coordenação de ação, a qual revela sua dimensão ilocucionária361.

O agir comunicativo ajuda a resolver o problema da coordenação de planos


de ação entre os atores de uma dada sociedade, de modo tal que exista
vinculação entre estes. A linguagem não é utilizada apenas como meio de troca
de informações, mas sim como meio possibilitador da criação de planos de ação.
A coordenação se forma a partir da defesa de pretensões de validade que podem
ser defendidas e resgatadas em “razões adequadas”362. Pressupõe-se, a partir do
enfoque do participante, racionalidade nos falantes, de maneira que seja possível
esperar que os atores ajam movidos por pretensões de validade. Esses
engajamentos comunicativos formam seqüências de comunicação que, por um
lado, estão bem situadas espacial e temporalmente em uma prática cotidiana,
mas, por outro lado, pretendem uma validade que transcenda o contexto. I.e., as
comunicações que se formam na interação, por exemplo, “precisamos de serviços
públicos”, estão ligadas a uma faticidade de atores identificáveis e localizáveis
nas duas dimensões; todavia, este proferimento pretende validade perante toda
uma sociedade porque conectado com pretensões de validade que transcendem
o contexto.

Essas cadeias de interação estão sob a constante ameaça do risco do


dissenso363 - uma vez que esse acarreta elevados custos para ação. A alternativa
para a liberdade do consenso é a violência, muito pior em termos de reprodução
social. De modo que o que resta é a busca de instituições capazes de manter o

comunicativa quando, pelo menos, dois participantes de uma interação podem coordenar seus
planos de ação de tal modo, que alter pode somar suas ações às ações de ego, sem ruptura da
interação entre ambos. Dessa forma, o sujeito se torna, ao mesmo tempo, o “iniciador”, que
domina as situações por meio de ações imputáveis, e “produto” das tradições nas quais se
encontra. A socialização preserva, pois, a identidade da personalidade individual num contexto
que permite ao sujeito relacionar-se consigo mesmo, com o outro e com as coisas, na perspectiva
de uma interação linguisticamente mediada”.
361
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p. 25.
362
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.37.
363
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.40.
145

pouco de entendimento que há. Uma dessas instituições será a Gestão


Compartida, como será visto mais adiante. Essas interações estão estribadas no
mundo da vida, o qual é estável enquanto não é tema de discurso364. Por
exemplo, a idéia de que o princípio da legalidade do Direito Penal preserva a
liberdade é estável enquanto não se reflete acerca dele. Há um peculiar
nivelamento da tensão entre faticidade e validade. É necessário desenvolver uma
teoria da evolução do Direito que, de um lado, homenageie as idéias de
progressiva diferenciação e complexidade, mas, por outro, e isto é o mais
importante, perceba uma progressiva geração de tensão entre esta faticidade e
validade. Em sociedades mais antigas, por exemplo, determinado direito com
relação ao casamento era inquestionável, até mesmo porque divinamente
estatuído. O que “é” é “válido”. A evolução da sociedade é compreendida por
Habermas pela contínua diferenciação entre a faticidade e a validade, de modo
que a crítica e mudanças das instituições, no exemplo, o casamento, torna-se
possível365. Nota-se que existe uma linha de continuidade entre a evolução social
em termos cognitivos tratada no primeiro capítulo e a evolução do Direito. O
Direito (e, conseqüentemente, a Administração) passam a estar mais disponíveis
à mudança na medida em que se descolam faticidade e validade.

É importante perceber a sociedade, linguagem e o Direito basicamente


como cadeias de ação estruturadas de alguma maneira com base na força
ilocucionária da linguagem, vista com mais detalhe em outro contexto neste
trabalho. Isso vai ser importante para, mais adiante, conceituar-se políticas
públicas.

Essa liberdade comunicativa de tematização de demandas – cada vez mais


livres – que segue ao fim do Direito natural e do início do desencantamento do

364
STIELTJES, Cláudio. Jürgen Habermas: A descontrução de uma teoria. Jabaquara: Germinal,
2001: “As análises que fizemos das críticas habermaseanas ao reducionismo da concepção
culturalista do mundo da vida e da introdução na concepção de reprodução simbólica do mundo
da vida de uma Filosofia da linguagem, fundamentada na pragmática universal, nos permitem
compreender de que maneira a teoria da ação comunicativa pode abrigar simultaneamente a
concepção de um consenso fundamentado na não-problematicidade e pré-reflexividade do mundo
da vida com o desenvolvimento de um consenso que, por ser obtido de forma crítica, evolui de
modo reflexivo no sentido da racionalidade”. p.268.
365
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.43.
146

mundo, permite um fluxo de maior de comunicações366. Essa constatação permite


observar uma maior liberdade na criação do que vem a ser Direito. Seu caráter de
mera decisão aparece de maneira nítida, o que remete ao problema da
estabilização da ordem: como, afinal, é possível algum Direito legítimo que seja
produto da ação consciente de pessoas, e não de uma autoridade
367
transcendente ?

A esta problemática acresça-se o fato de uma pluralidade de mundos da


vida com concepções diferentes de vida boa em um ambiente de consciência
Moral já no mínimo convencionais, i.e., em um mesmo Direito convivem grupos ou
pessoas com diferentes concepções do que vem a ser uma vida boa e
conseqüentemente um Direito específico. Com o desencantamento, interações
anteriormente assemelhadas a comunicativas são desprestigiadas, abrindo
grandes espaços para uma racionalidade formal de observações recíprocas e
busca de sucesso na ação com desprestígio de considerações de ordem ética368,
o que vem a piorar os escassos recursos de entendimento presentes, daí a
existência de coações em forma de sanções. Certos atores, todavia, ainda
continuam a agir comunicativamente, i.e., a orientar-se por pretensões de
validade resgatáveis racionalmente. Deste modo, as “normas do Direito são, ao
mesmo tempo e sob aspectos diferentes, leis da coerção e leis da liberdade”369.

Nesse sentido, o Direito apresenta uma face que busca a legitimidade


(validade), através de uma construção que recorre à ação comunicativa; mas, de
outro lado, necessita de uma faticidade de um corpo de funcionários e outros
meios administrativos capazes de impor coativamente estas normas. Isto permite
aos destinatários dois enfoques: perfomativo (aquele que participa), no primeiro

366
MOREIRA, Luiz. Fundamentação do Direito em Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos,
2002: “Em sociedades modernas, o Direito só pode se expressão da liberdade se cumprir as
exigências pós-metafísicas de legitimação, o que só é possível através da incorporação de um
caráter pós-tradicional de justificação, ou seja, somente quando sua legitimação estiver
desagregada tanto da religião quanto dos costumes. Como perdeu a vinculação com fontes
metafísicas e consuetudinárias, o ordenamento jurídico levante a pergunta pela validade de suas
pretensões, que só obtêm normatividade se forem legítimas”. p.31.
367
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.44.
368
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.46.
369
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.49.
147

caso, e objetivador (aquele que observa para planejar sua ação) no segundo370. A
validade está conectada com o primeiro enfoque, de modo que o ordenamento
jurídico tem de ser organizado de modo a que seja possível o simples respeito à
lei371. Essa organização está ligada com a idéia de autolegislação, ou seja, a
participação em processos de decisão onde os cidadãos possam “participar na
condição de sujeitos do direito que agem orientados não apenas pelo sucesso”372.
A legalidade é, então, fruto de processos que levam à normatização, e, neste
sentido, faticidade e validade estão indissoluvelmente ligados. Este assunto será
abordado mais adiante.

Deste modo, se a Gestão Pública Compartida for entendida como um


espaço de produção de decisões jurídicas que queiram ser jurídicas, será
necessário observá-la desde uma perspectiva performativa.

O princípio da legalidade está ligado também ao desencantamento do


mundo e com a orientação não-circunscrita (liberdade temática) das modernas
sociedades como um alívio para os riscos do dissenso, normalmente crescentes.
Por outro lado, a positivação, como decisão que a todo instante pode se
modificada, permite uma maior crítica da ordem vigente, de modo que esta pode
ser substituída por outra373. A positivação significa uma ordem criada pela mera
decisão. Trata-se de congruências de expectativas artificiais em relação ao
mundo da vida, vez que as normas foram criadas de maneira consciente. Por
outro lado, uma autolegitimação do Direito só vai ser possível enquanto menos
“garantias metassociais”374 existirem. Apoiar-se a fundamentação do Direito em

370
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.51.
371
GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e Diferença: Estado Democrático de Direito a partir
do Pensamento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002: “Por faticidade, e
acompanhando Habermas, quero aqui me referir ao caráter histórico e contingente do Direito
moderno que o liga, indissoluvelmente, ao fato de ser um sistema de ação que recorre inclusive à
força para sua concretização e, assim, à política. Por validade quero aqui me referir à dimensão de
justificativa racional do Direito moderno, que o liga, indissoluvelmente, à exigência de sua
fundamentação, vale dizer, às questões acerca da sua legitimidade e justiça, e, assim, à Moral
moderna”. p.18-19.
372
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.53.
373
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.59.
374
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.62.
148

uma teleologia, teologia ou na Moral só vai prejudicar a própria legitimidade


daquele, que tem de gerar por si próprio sua validade a partir de seus processos
de criação, abertos a conteúdos racionalmente defensáveis. Também a Gestão
Pública Compartida comunga destes mesmos problemas.

Esta inadequação de garantias a priori reflete-se também nos direitos


fundamentais. Estes têm de ser observados como se fossem também resultado
da autolegislação de indivíduos soberanos e autônomos. É o que será
demonstrado a seguir.

3.2 Reconstruindo o sistema de direitos fundamentais a


partir da interação entre autonomia privada e pública

Como será observado, o princípio da legalidade liga-se ao mesmo tempo


com procedimentos democráticos de elaboração de normas bem como a direitos
fundamentais. Trata-se de pressuposições recíprocas, de maneira que a falta de
conexões entre os dois fenômenos não permitem a existência de um ou outro. A
idéia de direitos fundamentais está ligada mais propriamente à liberdade e
autonomia, ou, melhor dizendo, autonomias pública e privada. Como direitos que
são, por óbvio a explicação dos direitos fundamentais tem de levar em conta o
meio do Direito, ou seja, Direito só se faz a partir do Direito. E é precisamente
essa uma dificuldade: esses direitos têm de ser fortemente legítimos, mas essa
legitimidade tem de estar ligada à legalidade nas condições pós-metafísicas.

Um sistema de direitos fundamentais tem de explicar, no mesmo tempo, o


fato da existência de âmbitos de liberdade onde a ação instrumental é permitida,
mas também tem de dar conta daqueles que agem comunicativamente375. Isso

375
DUTRA, Delamar José Volpato. Razão e Consenso em Habermas: a teoria discursiva da
verdade, da Moral, do dirieto e da biotecnologia.Florianópolis: UFSC, 2005. p.198: “Temos, aqui,
uma dupla validade do direito, coerção e liberdade. Assim, sob um ponto de vista empírico, o
direito pode ser analisado somente a partir da perspectiva da coerção. Porém, sob o ponto de
vista da validade, encontramos um amálgama de conceitos complexos, ou seja, o sentido da
validade do direito só se explica pela referência simultânea à validade social ou fática [Geltung], à
legitimidade [Gültigkeit] e à coerção, já que o direito apóia-se sobre uma faticidade artificial,
149

tudo diante do caráter reflexivo do próprio Direito. Como direitos que são, só
fazem sentido em comunidade:

Direitos subjetivos não estão referidos, de acordo com seu conceito, a


indivíduos atomizados e alienados, que se entesam possessivamente
uns contra os outros. Como elementos da ordem jurídica, eles
pressupõem a colaboração de sujeitos, que se reconhecem
reciprocamente em seus direitos e deveres, reciprocamente referidos
uns aos outros, como membros livres e iguais do direito. Tal
reconhecimento recíproco é constitutivo para uma ordem jurídica, da
qual é possível extrair direitos subjetivos reclamáveis judicialmente.
Neste sentido, os direitos subjetivos são co-originários com o direito
objetivo; pois este resulta dos direitos que os sujeitos se atribuem
376
reciprocamente .

Pretende-se aos direitos fundamentais uma legitimidade maior do que a do


processo político, tanto que, de antemão, estariam mais ou menos imunes a este.
Todavia, aqueles decorrem do processo político. A tese é de que existe uma co-
imbricação entre autonomia privada e pública e de que uma oposição entre
direitos humanos e soberania do povo é um argumento falacioso, uma vez que
direitos humanos e soberania do povo só podem aparecer juntas.

Tanto Kant quanto Rousseau377, na opinião de Habermas, centralizam a


reflexão em algum sujeito: seja em um eu transcendental, na versão kantiana
(que depois vai informar as noções libertarianas e liberais de Direito), seja uma
nação tomada como um corpo homogêneo, no caso de Rousseau (posteriormente
concepções comunitaristas e substancialistas)378. Isso é um problema advindo da
filosofia da consciência, não permitida nas condições contemporâneas.
Habermas, como não vincula a razão comunicativa a nenhum sujeito, até por que
todos a têm, pode perceber a conexão entre autonomia pública e privada. Um

estabelecida a partir de sanções. No que concerne à legitimidade, ela faz referência ao próprio
caráter discursivo do resgate da validade de uma proposição. Já a validade social remete à
aceitação concreta por parte de uma sociedade”.
376
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.121.
377
HABERMAS, Jürgen. La necesidad de Revisión de la Izquierda. Madrid: Tecnos, 1996: “En
la medida en que la Revolución francesa vino inspirada por Rousseau, se distinguió de la
Revolución americana en que los derechos humanos no se hacían anteceder como un filtro a la
práctica autónoma que representa la actividade legislativa, sino que habían de deducirse de esa
misma práctica. En los Derechos del Hombre Rousseau no reconoce otra cosa que las estructuras
y presupuestos de los procesos de formación democrática de la voluntad coletiva. Cuando se los
entiende así, se evita la lectura selectiva que de ellos hace el liberalismo. Entonces no cabe
oponer unos derechos humanos entendidos en sentido individualista a las metas que representan
la emancipación social”. p.146.
378
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.138.
150

sistema de direitos que leve a sério as condições pós-metafísicas de


impossibilidade de um esquema racionalista ou natural de disposição de direitos
com a soberania do povo tem de levar em conta que o Direito tem de ser formado
por uma decisão, mas uma decisão legítima. Esta decisão, contudo, só poderá
ser legítima se os seus participantes tiverem liberdade comunicativa379.

As normas de ação em geral, sejam éticas, morais ou jurídicas, como


implicam esquemas de ação que de alguma maneira tem de ser criadas, acabam
regidas por um princípio contrafático, que, apesar de não normativo, tem de ser
aceito em favor de uma interação não violenta. Trata-se do princípio do discurso,
ou “D”: “São válidas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos
poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos
racionais”380. Esse princípio, que será detalhado mais adiante, possibilita a
amarração da participação com o código do Direito. Tem como conteúdo a
necessidade de se levar em conta a opinião daqueles que são destinatários das
normas381. Ele explica como é possível fundamentar imparcialmente alguma
máxima da ação. O princípio do discurso, quando conectado ao Direito, torna-se
princípio da Democracia, destinando a “amarrar um procedimento de
382
normatização legítima do Direito” . Enquanto que em uma argumentação Moral,
vista mais adiante, só cabem regulações universalistas, no princípio do discurso
adentram todas as variantes que compõem os interesses sociais, quais sejam,
normatizações pragmáticas, éticas e morais. Nesse sentido, só serão legítimas as
normas que puderem retroceder a um discurso livre de sua produção383.

379
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.139.
380
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.142.
381
HABERMAS, Jürgen. La necesidad de Revisión de la Izquierda. Madrid: Tecnos, 1996. p.
170:“Que una norma sea justa o redunde en interés de todos no significa otra cosa sino que la
norma merece reconocimiento o es válida. La justicia no es nada material, no es un “valor’, sino
una dimensión de validez. Así como las oraciones descriptivas pueden ser verdaderas, es decir,
expresar lo que es el caso, así las oraciones normativas pueden ser correctas (richtig) y espresar
lo que se debe hacer. Pero a un nivel distinto están los distintos principios y normas, que tienen un
contenido específico, independientemente de que sean válidos o no”.
382
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.145.
383
MOREIRA, Luiz. Fundamentação do Direito em Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos,
2002. p.146: “Mesmo assumindo a perspectiva de que a autoria do ordenamento jurídico emana
da vontade democrática de pessoas livres e iguais, institucionalizada juridicamente, observando
151

Normas morais, em um contexto pós-convencional (ver, mais adiante, o


conceito deste estágio) são geralmente orientadas a indivíduos insubstituíveis,
tomados em uma comunidade concreta. Normas jurídicas são criadas em vista de
pessoas dotadas de personalidade jurídica em uma comunidade criada por uma
decisão e, portanto, juridicamente constituída384.

Habermas prefere ver a Moral como complementar ao Direito,


compensando em parte tanto os déficits de legitimidade e autonomia deste último,
mas contribuindo à primeira em engajamento para ação institucionalizado.

A Moral é mais rigorosa, vez que observa toda ação à luz de um princípio
da universalização, visto mais adiante. Todavia, após o desencantamento, mesmo
assim permanece como poderosa motivação individual para ação, sem, todavia,
maiores conseqüências sociais do seu descumprimento385. É fruto de um
procedimento reflexivo na própria tradição, sem que existam ritos com hora
marcada como no Direito.

O Direito, dado o princípio do discurso transformado em princípio da


Democracia, é aberto à considerações morais. Complementa esta, contudo, no
sentido de que, a partir da estatuição do código do Direito e sua faticidade, o
Direito tem atributos que permitem tanto um alívio motivacional pela confluência
de expectativas (as pessoas passam a saber o que fazer com um pouco mais de
certeza) bem como pela institucionalização do Direito em poderes organizados
em força, compensando também os déficits de programação para a ação
instrumental (a eventual sanção pode levar ao comportamento previsto)386.

O Direito, como linguagem coordenada por pessoas revestidas de

uma correição processual, há sempre a possibilidade de que a normatividade, decorrente de tal


vontade seja injusta. Sendo injusta, a normatividade jurídica abre-se a dois caminhos: o primeiro,
permanecer injusta e aí ela deixa de ser uma ordem legítima e passa a constituir-se como arbítrio,
violência. O segundo, atrelar ao conceito de direito a possibilidade de que sua normatividade seja
fruto não da vontade democrática dos cidadãos, mas do arbítrio e da violência. Então criva-se,
nessa normatividade, a abertura para a falibilidade e com isso a presunção de que preceitos
jurídicos possam ser revistos, revogados”.
384
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.147.
385
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.149.
386
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.152.
152

personalidade jurídica, resolve o problema da imputação através de abstrações


como o conhecimento da lei (o que não é possível em termos morais, dada sua
difícil cognoscibilidade), além de aliviar deveres morais através da organização de
burocracias destinadas à satisfação de direitos fundamentais antes imputados ao
indivíduo que agora estão a cargo da coletividade organizada, como os direitos
fundamentais de cunho social387.

O direito não é recomendado apenas para a reconstrução dos


complexos de instituições naturais que ameaçam ruir devido à subtração
da legitimação. Em virtude da modernização social, surge uma
necessidade organizacional de tipo novo, que só pode ser satisfeita de
modo construtivo. O substrato institucional de áreas de interação
tradicionais, tais como a família e a escola, é reformulado através do
direito, o qual torna possível a criação de sistemas de sistemas de ação
organizados formalmente, tais como mercados, empresas e
administrações. A economia capitalista, orientada pelo dinheiro, e a
burocracia estatal, organizada a partir de competências, surgem no
388
médium de sua institucionalização jurídica .

O problema da liberdade com a vontade de uma comunidade na formação


de direitos fundamentais é resolvido pela idéia de autonomia. Habermas, em um
primeiro momento, reconstrói, passo-a-passo, o engate entre o princípio do
discurso, descrito acima, e a forma jurídica – existente como diferenciação de um
sistema social – para criação de um sistema in abstracto de direitos, algo que ao
filósofo do Direito cabe apenas sugerir389 como organização social excelente da
sociedade: querer fundamentar tal sistema de direitos como uma razão
necessária ou algo que o valha é cair de pronto em uma metafísica superada.
Tais direitos seriam: (1) direitos fundamentais que resultam de uma configuração
política onde exista um maior número de liberdades possível; para estribar este
direito, seria necessário (2) status de membro de uma associação política e (3)

387
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.153.
388
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.154.
389
HABERMAS, Jürgen. Passado como Futuro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993. p.98:“Eu
jamais tive a pretensão de meus famosos colegas americanos – Rawls e Nozick – de desenvolver
uma teoria política normativa. Eu não contexto a validade de tal projeto, porém eu não tento
construir na escrivaninha as normas fundamentais de uma “sociedade bem organizada”. O meu
interesse fundamental está voltado primordialmente para a reconstrução das condições realmente
existentes, na verdade sob a premissa de que os indivíduos socializados, quando no seu dia-a-dia
se comunicam entre si através da linguagem comum, não têm como evitar que se empregue esta
linguagem também no sentido voltado ao entendimento. E ao fazerem isso, eles precisam tomar
como ponto de partida determinadas pressuposições pragmáticas, nas quais se faz valer algo
parecido com uma razão comunicativa”.
153

possibilidade de reivindicação jurídica desses direitos; estes direitos garantem


sua autonomia privada, todavia, como direitos, são criados e regulamentados por
lei, daí um (4) direito à participação política para criação de um direito legítimo,
i.e., um direito onde os destinatários do direito participam performativamente de
seu processo de construção390. Isso tudo não seria possível se não existisse (5)
condições materiais para uma vida garantida social e ecologicamente391.

Acerca de (1), Habermas fundamenta no sentido de que somente serão


legítimas as normas que sejam compatíveis com o máximo de iguais direitos para
todos. Já em (2) tenta-se resolver o problema da solidariedade em uma situação
de autolegislação, ou seja quem se autolegisla. Obviamente só pode ser um
grupo que reconhece seus membros como tais, e, mesmo que tal organização
seja universal, ainda é limitada com relação ao tempo e ao espaço, ou seja,
nunca existe inclusão total, de modo que não faça sentido um nós. Em (3), a
fundamentação é óbvia: não faz sentido direitos se não é possível reivindicá-los.
Em (4) se criam os direitos a partir da participação e em (5) se os possibilitam392.

Para Habermas, todavia, isto é uma perspectiva filosófica, vez que o que
importa para a legitimidade dos direitos fundamentais é uma perspectiva
performativa, e não uma perspectiva teórica como a do filósofo do Direito, de
modo que este é o momento para Habermas introduzir a interessante noção de
direitos fundamentais a partir de um procedimento democrático. Aliás esta
operação resolve as tensões entre um substancialismo metafísico e um
procedimentalismo vazio. A idéia é de que só é possível reconhecer direitos
fundamentais a partir do exercício da autonomia. Os direitos fundamentais têm de
ser criação de um corpo de cidadãos para eles mesmos, e não impostos
paternalisticamente de fora por uma entidade metafísica:

Ora, são os próprios civis que refletem e decidem – no papel de um


legislador constitucional – como devem ser os direitos que conferem ao
princípio do discurso a figura jurídica de um princípio da Democracia. De
acordo como princípio do discurso, podem pretender validade as normas

390
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.159.
391
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.160.
392
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.162.
154

que poderiam encontrar o assentimento de todos os potencialmente


393
atingidos, na medida em que estes participam de discursos racionais .

Deste modo, não existe oposição alguma entre soberania popular e direitos
fundamentais, pelo contrário, eles se pressupõem, são co-originários394:

Nada vem antes da prática da autodeterminação dos civis, a não ser, de


um lado, o princípio do discurso, que está inserido nas condições de
socialização comunicativa em geral, e, de outro lado, o medium do
Direito. Temos que lançar mão do medium do Direito, caso queiramos
implementar no processo de legislação – com o auxílio de iguais direitos
de comunicação e de participação – o princípio do discurso como
princípio da Democracia. Entretanto, o estabelecimento do código
jurídico enquanto tal já implica direitos de liberdade, que criam o status
de pessoas de Direito, garantindo sua integridade. No entanto, esses
direitos são condições necessárias que apenas possibilitam o exercício
da autonomia política; como condições possibilitadoras, eles não podem
circunscrever a soberania do legislador, mesmo que estejam à sua
395
disposição [grifos do autor]

Para fundamentar qualquer direito, nem o princípio do Direito nem o


princípio do discurso é suficiente por si só. O princípio do discurso, quando
interligado com o Direito, permite a existência do princípio da Democracia,
formando um sistema de direitos que pressupõe reciprocamente tanto autonomia
pública quanto privada. Para buscar sua autonomia privada tem de se exercer
uma autonomia pública; para exercer uma autonomia pública é necessária a
existência de uma vida privada. Vê-se, desta maneira, que os direitos
fundamentais são uma auto-atribuição de direitos de uma dada comunidade (que
pode ser global) que se auto-organiza.

Essa auto-atribuição de direitos e a posterior construção de um

393
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.164.
394
MOREIRA, Luiz. Fundamentação do Direito em Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos,
2002. p.163-164: “Por conseguinte, a explicitação da estrutura intersubjetiva dos direitos, através
da institucionalização de procedimentos que acoplaram a dimensão discursiva da opinião e da
vontade, torna possível que a composição entre direitos humanos e soberania do povo seja
explicitada em termos jurídicos. Assim, o ordenamento jurídico pode ser entendido como fruto de
uma legislação que os sujeitos de direito se dão a si mesmos, sendo, por seu turno, os direitos
humanos o substrato que é inserido nas condições formais para a institucionalização jurídica
desse tipo de procedimento. A composição entre direitos humanos e soberania do povo somente
se mostra à medida que a estrutura intersubjetiva dos direitos é parte componente de um
procedimento que incorpora a dimensão discursiva da formação da opinião e da vontade como
algo que lhe é intrínseco. Sendo assim, os direitos humanos são, desde logo, incorporados às
condições formais de institucionalização jurídica e o princípio da soberania do povo compõe a
esfera de explicitação do procedimento legislativo”.
395
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.165.
155

ordenamento jurídico legítimo só são possíveis na medida em que estão abertos


os canais de interlocução sociais. Como isso é possível é tema da argumentação
infra.

3.3 Poder Comunicativo e suas interlocuções com a


sociedade

Habermas apresenta de pronto a tese de que Direito e Moral estão em uma


relação de complementação recíproca. Ambos estão diferenciados do ethos da
sociedade, isto é, são, por óbvio, fruto de uma sociedade, mas, por outro lado,
não são o espelho desta mesma sociedade. Elas são também respostas a
mesmos problemas: “como é possível ordenar legitimamente relações
interpessoais e coordenar entre si ações servindo-se de normas justificadas?396” e
“Como é possível solucionar consensualmente conflitos de ação na base de
regras e princípios normativos reconhecidos intersubjetivamente?”397.

Ambos têm de ser gerados em condições pós-metafísicas, o que significa


que não podem se escorar em garantias metassociais. Sua diferenciação,
empiricamente confirmada, refuta uma idéia platônica de cópia entre direitos
humanos e direitos morais fundamentais, e tampouco a liberdade jurídica é igual a
liberdade Moral. Habermas fundamenta, então, a diferença entre Moral e Direito
para ilustrar as comunicações entre ambos.

Uma primeira linha de argumentação, para uma Ética ou Moral, é


estabelecer sua ‘cognoscibilidade’, ou sua possibilidade de apreciação racional.
Uma das linhas de argumentações relativistas é a de que a Ética estaria situada
no plano dos sentimentos, e não seria objeto passível de uma argumentação

396
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.141.
397
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.141.
156

racional. Alguns idealistas, incorporando tal erro, sustentam a mesma coisa398.

Uma apreciação Moral só é possível como participante em uma interação.


Uma injúria só vai ser vista como ‘fato injurioso’ em uma situação hermenêutica,
onde os participantes reconhecem a racionalidade de um e de outro. A injúria
advinda de criança de tenra idade, por exemplo, não provoca reação alguma,
porque não há possibilidade de imputação no agir daquela criança. Há, em
conjunção com a imputação de racionalidade, o fator de existência de uma
expectativa de comportamento. Efetivamente, há um dado, anteriormente
apreendido, que fez com que se frustrasse aquela expectativa, conhecido por
ambos participantes399. Essa autocensura aponta para uma expectativa
impessoal, ou seja, além da experiência subjetiva. Isso significa que há razões
para se fazer ou deixar de fazer algo. Nesse sentido, parece claro que há uma
dimensão argumentativa, e, portanto racional, nas discussões morais ou éticas,
pois cotidianamente as pessoas entabulam conversações com tais conteúdos na
formação de expectativas intersubjetivas.

Se, por um lado, descobre-se que existem normas morais e éticas, e que
essas normas morais e éticas podem ser fundamentadas, tanto a partir de
preferências pessoais como com base em um mundo intersubjetivamente
compartilhado, é necessária a existência de princípio que transcenda o contexto
pessoal e hermenêutico, senão a mera tradição e costume ficam tomados como o
Moral e ético. Para Habermas, o princípio que consegue tal proeza é o princípio
da Universalização, onde os indivíduos devem examinar:

- se podem querer a entrada em vigor de uma norma controversa


relativamente às conseqüências e efeitos colaterais que teriam lugar se
todos a seguissem; ou

- se todo aquele que se encontrasse em semelhante situação poderia


querer a entrada em vigor de semelhante norma;[...]

398
Habermas distingue proposições valorativas e descritivas das vivenciais (as quais
demonstrariam estados interiores do sujeito). As éticas metafísicas, emotivistas ou decisionistas
confundem proposições vivenciais com valorativas, negando, por isso, caráter cognitivo da Moral.
HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1989. p.62
399
“É só assim que se explica o fenômeno do sentimento de culpa, que acompanha a autocensura
do autor da infração”. HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. p.68.
157

- que as conseqüências e efeitos colaterais, que (previsivelmente)


resultarem para a satisfação dos interesses de cada um dos indivíduos
do fato de ser ela universalmente seguida, possam ser aceitos por todos
os concernidos (e preferidos a todas as conseqüências das
possibilidades alternativas e conhecidas de regragem) [grifos do
400
autor] ;

Tal imperativo categórico401 precisa, ainda, de mais dado, qual seja, uma
reformulação no sentido de que se inclua também o diálogo e conseqüente
consenso dos envolvidos. Ou seja, não basta pensar universalmente a máxima de
conduta, há de se colocar aos outros as máximas de conduta para que se
examine a possibilidade de universalização daquele ‘que fazer’, em um processo
onde o ator realiza um ‘ideal role taking’, ou seja, uma assunção ideal de
papéis402.

A fundamentação filosófica de tal princípio de universalização (princípio ‘U’)


utiliza-se do critério da autocontradição performativa. Habermas, com Apel,
descobre que, ao se negar a possibilidade do princípio da universalização, está-
se reivindicando ele na argumentação, pois não é possível dizer a ‘verdade’ de
que ‘U não é possível’ sem pressupor a capacidade do outro de ouvir, entender e
introjetar as razões, e que tais razões são universalmente válidas não só para si
como também para outros em igual situação.

400
HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1989. p. 86.
401
HABERMAS, Jürgen. A Ética da Discussão e a Questão da Verdade. São Paulo: Martins
Fontes, 2004. p.8-9: "Gostaria de esclarecer desde já que a interpretação intersubjetivista do
imperativo Categórico não tem a intenção de ser outra coisa senão uma explicação do seu
significado fundamental, e não uma interpretação que dá a esse significado uma nova direção. A
transição da reflexão monológica para o diálogo explica uma característica do procedimento de
universalização que permaneceu implícita até o surgimento de uma nova forma de consciência
ihstórica, na virada do século XVIII para o XIX. Quando tomamos consciência de que a história e a
cultura são as fontes de uma imensa variedade de formas simbólicas, bem como da especificidade
das identidades individuais e coletivas, percebemos também, pelo mesmo ato, o tamanho do
desafio representado pelo pluralismo epistêmico. Até certo ponto, o fato do pluralismo cultural
também significa que o mundo se revela e é interpretado de modo diferente segundo as
perspectivas dos diversos indivíduos e grupos - pelo menos em um primeiro momento. Uma
espécie de pluralismo interpretativo afeta a visão de mundo e a autocompreensão, bem como a
percepção dos valores e dos interesses das pessoas cuja história individual tem suas raízes em
determinadas tradições e formas de vida e é por elas moldada".
402
HABERMAS, Jürgen. La necesidad de Revisión de la Izquierda. Madrid: Tecnos, 1996.
p.207.“[…] considerar algo desde un punto de vista Moral significa que nos elevamos nuestra
propia comprensión del mundo y de nosotros mismos a criterio de universalización de una forma
de acción, sino que examinamos su universalizabilidad también desde la perspectiva de todos los
demás. Esta exigente operación cognitiva apenas sería posible sin esa simpatía generalizada,
capaz de sublimarse en capacidad de empatía y de apuntar más allá de nuestros vínculos
afectivos con las personas primarias de referencia, que nos abre los ojos para la “diferencia”, es
decir, para la peculiaridad y peso propio del otro que se atiene a su “otridad””.
158

O mesmo critério da autocontradição performativa é utilizado para


fundamentar outro princípio da Ética do discurso, o princípio do discurso403, ou ‘D’.
Diante da contingência moderna, os atores deparam-se com algumas
constatações: 1) todos estão inseridos e socializados em mundos lingüísticos, que
se reproduzem lingüisticamente, e, portanto, isso é algo que lhes é dado de
antemão; 2) a princípio, todas as razões são igualmente boas; 3) há necessidade
de alguma decisão; 4) a decisão possível, não fundada na violência, é a
intersubjetiva. Portanto, um princípio do discurso, ou ‘D’404, que diga que a norma
Moral ou Ética é aquela decidida/conhecida intersubjetivamente, é necessário405.

Esse princípio é fundamentado da seguinte maneira: quem se enreda em


uma argumentação faz uma série pressuposições acerca da situação de fala, na
maior parte das vezes inconscientemente. O conteúdo de tais pressuposições
configura-se nas condições pragmáticas para a fala406. Não é possível alguém

403
APEL, Karl-Otto. Ética do Discurso como Ética da Responsabilidade. Cadernos de Tradução
nº 3. São Paulo: USP, 1998. p.13:“[...] pressuponho de antemão que a argumentação – assim
como o pensamento nela expresso com pretensão de validade – é iniludível na Filosofia. O
discurso argumentativo não pode ser recusado por um cético ou relativista no sentido em que se
poderia encontrar ali um contra-argumento à possibilidade de uma fundamentação filosófica
última. Não poderíamos saber nada de um cético que não argumenta. Eu também pressuponho
naturalmente que o iniludível discurso argumentativo da Filosofia tem seriedade e é tematicamente
ilimitado. Nesse sentido, é preciso ficar claro, a todo participante do discurso, que o discurso tema
função de conseguir soluções obrigatórias de todas as questões pensáveis eu possam ser
levantadas no mundo vivo. Ele não é, portanto, algo como um jogo auto-suficiente, mas a única
possibilidade existente para nós humanos de solucionar, por exemplo, conflitos sobre pretensões
de validade sem o uso da força. E materialmente também é pressuposto que todos os
participantes do discurso estejam em princípio interessados na solução de todas as questões de
validade pensáveis, e não estão interessados em instrumentalizar o discurso com os outros
somente para seus fins, assim como se pode explorar, em um discurso estrategicamente limitado,
o saber do especialistas”.
404
HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro. São Paulo: Loyola, 2002. p.56: “[...] só podem
aspirar por validade as normas que puderem merecer a concordância de todos os envolvidos em
discursos práticos”.
405
GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e Diferença: Estado Democrático de Direito a partir
do Pensamento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p.133: “Já se tentou
desacreditar a possibilidade do discurso (ou de sua racionalidade) dizendo-se que um
convencimento puramente racional é impossível. Mas não se pode fazer essa afirmação sem
cometer uma contradição performativa: não se pode afirmar que o discurso é impossível a não ser
no discurso”.
406
APEL, Karl-Otto. Ética do Discurso como Ética da Responsabilidade. Cadernos de Tradução
nº 3. São Paulo: USP, 1998: p.14:“A meu ver, nos já pressupomos, em toda questão séria no
plano do discurso filosófico, a co-responsabilidade – a própria e a de todos os participantes
potenciais do discurso: e isso significa também aqueles problemas que – pensados sem a forma
de reflexão do discurso – no mundo vivo só poderiam ser resolvidos através do combate ou da
negociação estratégica. A seguir, com todo argumento sério, que nolens volens antecipa relações
de comunicação, nós sempre reconhecemos já além da co-responsabilidade, também a igualdade
de princípios dos direitos de todos os participantes da comunicação. Pois nós sempre supomos
necessariamente a meta do discurso como sendo a consensualidade (universal) de todas as
159

proferir algo aqui e agora sem pressupor certas condições, quais sejam algumas:
a de que há racionalidade entre os intérpretes, de que há liberdade temática,
possibilidades de resgate discursivo do pano-de-fundo hermenêutico.

A Ética do discurso é, por assim dizer, um procedimento de teste


pragmático, não um sistema de derivações semânticas. Nesse sentido, é formal,
mas na direção processual:

Ela não indica orientações conteudísticas, mas um processo: o discurso


prático. Todavia, este não é um processo para a geração de normas
justificadas, mas, sim, para o exame da validade de normas justificadas,
mas, sim, para o exame da validade de normas propostas e
consideradas hipoteticamente. Os discursos práticos têm que fazer com
que seus conteúdos lhes sejam dados. Sem o horizonte do mundo da
vida de um determinado grupo social e sem conflitos de ação numa
determinada situação, na qual os participantes considerassem como sua
a tarefa de regulação consensual de uma matéria social controversa, não
teria sentido querer empreender um discurso prático. [...] Formal, por
conseguinte, esse procedimento não o é no sentido da abstração de
conteúdos. Em sua abertura, o Discurso precisa justamente que os
conteúdos contingentes “dêem entrada” nele. Todavia, esses conteúdos
serão processados no discurso de tal sorte que os pontos de vista
axiológicos particulares acabem por ser deixados de lado, na medida em
que não são passíveis de consenso; não será esta seletividade que torna
407
o processo imprestável para a solução de questões práticas ?

O ponto de corte entre o bom e o justo, ou seja, entre o ético e o Moral,


entendido o primeiro como uma totalidade cultural localizada e o segundo como o
dado universal, é justamente a possibilidade de ‘universalização’ de normas éticas
para morais.

De certo, os valores culturais transcendem o desenrolar factual da ação;


eles condensam-se nas síndromes históricas e biográficas das
orientações axiológicas à luz das quais os sujeitos podem distinguir o
“bem viver” da reprodução de sua vida como “simples sobrevivência”.
Mas as idéias do bem viver não são representações que se tenham em
vista como um dever abstrato; elas marcam de tal modo a identidade de
grupos e indivíduos que constituem uma parte integrante da respectiva
cultura ou personalidade. Assim, a formação do ponto de vista Moral vai
de mãos dadas com uma diferenciação no interior da esfera prática –as
questões morais que podem, em princípio, ser decididas racionalmente
do ponto de vista da possibilidade de universalização dos interesses ou
da justiça, são distinguidas agora das questões valorativas, que se
apresentam sob o mais geral dos aspectos como questões do bem viver
(ou da auto-realização) e que só são acessíveis a um debate racional no
interior do horizonte não-problemático de uma forma de vida

soluções de problemas – assim, por exemplo, também de todas as soluções obrigatórias de


problemas de fundamentação de normas”.
407
HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1989. p.126.
160

historicamente concreta ou de uma conduta de vida individual [grifos do


408
autor] .

As questões éticas colocam-se na primeira pessoa do plural ou do singular,


destinando-se ao auto-entendimento do bem viver de uma comunidade ou vida
específica. As reflexões alimentam-se da prática cotidiana e sua inserção cultural.
As questões éticas não escapam do resgate crítico, não estando imobilizadas em
algum argumento dedutivo ou mesmo, em um argumento da moda, em uma
preservação ‘ecológica’, na verdade paternalista, de modos de viver409.

Habermas, contudo, busca a primazia do justo sobre o bom, e aí a Moral


estaria inserida, pois a Moral representaria esta justiça por sobre a Ética, que é o
bem viver. A diferença é necessária por vários motivos. O principal deles reside
na condição contemporânea: o pluralismo e as trocas de bens e pessoas entre
diferentes lócus éticos fazem com que ou se direcione a reflexão em direção à
uma visão universalista, que busca o bem de todos, ou se tente impor visões
éticas a outros grupos éticos, com as conseqüências trágicas vistas todos os dias
nos noticiários. O princípio-ponte que satisfaz tal condição de justiça é o da
universalização, ou ‘U’, como já observado. Há uma transcendência de dentro,
preservando a autonomia do sujeito, o qual alarga a pretensão de validade de seu
proferimento para além da faticidade do aqui e agora em direção a uma base
alargada de participantes410. É claro que não há um ponto de vista privilegiado

408
HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1989. p.130-131.
409
HABERMAS, Jürgen. HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro. São Paulo: Loyola, 2002.
p.39: “Sob o ponto de vista ético nós esclarecemos, portanto, questões clínicas de uma vida que
está sendo bem-sucedida, ou melhor, que não está indo pelo caminho errado, as quais se
colocam no contexto de determinada forma de vida ou de uma história de vida individual. A
reflexão prática é executada na forma de um auto-entendimento hermenêutico. Ela articula
valorações fortes, pelas quais orienta-se minha autoconsciência. A crítica das auto-ilusões e dos
sintomas de uma forma de vida forçada ou alienada mede-se na idéia de uma vida consciente e
coerente. Aqui, a autenticidade de atos expressivos de linguagem, pode ser compreendida como
um pretensão de validade de grau mais elevado[...] do ponto de vista ético, a liberdade de vincular
meu arbítrio a máximas da prudência se transforma na liberdade de decidir-me por uma vida
autêntica”.
410
HABERMAS, Jürgen. Comentários à Ética do Discurso. Instituto Piaget: Lisboa, [s.d.]. p.112-
113: “Nos discursos ético-existenciais a razão e a vontade determinam-se reciprocamente, sendo
que a vontade permanece enraizada no contexto tematizado da história de vida. Nos processos de
autocompreensão, os intervenientes não se podem desligar da história ou da forma de vida que,
de facto, se encontram. Os discursos prático-morais exigem, em contrapartida, uma fractura com
todas as evidências dos costumes concretos e estabelecidos, assim como um distanciamento em
relação àqueles contextos práticos com os quais a identidade individual está entretecida de forma
inextricável. É unicamente a partir dos pressupostos comunicativos de um discurso de âmbito
universal, no qual todos os eventuais indivíduos envolvidos possam tomar parte e assumir uma
161

para o alargamento universalístico. As alternativas já são, desde sempre,


construídas através de dados tradicionais, mas que, de alguma maneira, são
recriados de uma maneira nova. A única pseudo-garantia de que os resultados,
nunca previstos de antemão, serão razoáveis, é a confiança no exercício da
crítica e da auto-crítica. Essa pretensão “transcendental” nada tem de metafísica,
pois, por um lado, está bem escorada na prática cotidiana, onde continuamente
os falantes pretendem validez universal, não local, para seus proferimentos, e, por
outro, por ser uma prática bem comum também nas ciências duras, onde
continuamente são simuladas saídas do mundo hermenêutico, através de
idealizações matemáticas, condições “ceteres paribus”, abstração de variáveis,
etc411.

Há um conteúdo normativo na Ética discursiva. Esse conteúdo, contudo,


não é “ético” ou “Moral”, é a explicitação, e ação no sentido de implementá-las, de
pressuposições que já existem nos proferimentos do cotidiano das
argumentações morais, tais como a busca de auditório universal, a liberdade
comunicativa, a competência lingüística, etc. Tal como a Ética kantiana, essa
Ética é formal, e, nesse sentido, não tem uma visão paternalística. Isso condiz
com a postura sempre problemática de Habermas, onde, a princípio, todos os
discursos são falíveis e não há um falante privilegiado – nem mesmo a filosofia,
como no caso da Moral.

Enquanto que a Moral regula as interações em geral, o Direito adquire uma


função especifica de meio de auto-organização específica de uma sociedade
limitada no tempo e no espaço. Esta dada sociedade apresenta uma determinada
configuração em sua problemática interna. Neste sentido, apresentam também,
além de considerações simétricas de todos, como em discurso Moral, concepções
particulares daquela sociedade (ou seja, uma concepção Ética) bem como

atitude hipotética e argumentativa face às pretensões de validade de normas e de modos de


conduta tornadas problemáticas, que se constitui o nível superior de intersubjetividade relativa a
um intercruzamento da perspectiva individual com a perspectiva de todos. Este ponto de vista da
imparcialidade dilacera a subjetividade da perspectiva individual de cada participante, sem, no
entanto, perder a ligação à atitude performativa dos participantes. A objectividade do chamado
observador ideal iria obstruir o acesso ao conhecimento intuitivo do universo de vida. O discurso
prático-Moral quer dizer o alargamento ideal da nossa comunidade comunicativa a partir da
perspectiva de dentro. Neste fórum, só aquelas propostas de normas que exprimem o interesse
comum de todos os intervenientes poderão obter uma anuência justificada”.
411
HABERMAS, Jürgen. Comentários à Ética do Discurso. Instituto Piaget: Lisboa, [s.d.]. p.156.
162

negociações pragmáticas. Isso vai exigir mais rigor em termos de


autocompreensão Ética de uma dada sociedade (o que vem a ser o nós e o que
nós queremos) do que um discurso Moral, o qual, partindo desse contexto, tem de
desconsiderá-lo.

Quanto mais concreto for o caráter do direito e mais concreta a matéria a


ser regulada, tanto mais a aceitabilidade das normas fundamentadas
exprime a autocompreensão de uma forma de vida histórica,
412
empiricamente informada entre fins alternativos .

É necessário aprofundar mais este ponto, por que é desses discursos


morais que as negociações travadas nos espaços públicos de comunicação
também se alimentarão. Discursos morais, por que orientados em direção a uma
ética universalista, desconsideram a “ordem concreta de valores de uma
sociedade”. Questões morais, como por exemplo “não matar”, apesar de gestados
e discutidos em contextos fáticos bem visíveis e delimitados, são orientados
universalisticamente. A esses discursos morais Habermas chama justiça. Já os
valores são formados, a partir de processos sociais vários, em processos de
autocompreensão. Esses processos de autocompreensão, por óbvio, refletem no
Direito. Um exemplo é a utopia presente na Constituição de 1988 no Brasil,
denotando um povo que tem como valor a igualdade. Exceto os direitos
fundamentais, normas jurídicas em geral dificilmente alcançam as exigências
universalistas da Moral, estando mais bem incrustados nos mundos da vida.
Todavia, é possível perceber fortes tendências universalistas nas modernas
constituições.

O medium “direito” também é solicitado para situações problemáticas


que exigem a persecução cooperativa de fins coletivos e a garantia de
bens coletivos. Por isso, os discursos e fundamentação e aplicação
precisam abrir-se também para o uso pragmático e, especialmente, para
o uso ético-político da razão prática. Tão logo uma fundamentação
racional coletiva da vontade passa a visar programas jurídicos concretos,
ela precisa ultrapassar as fronteiras dos discursos da justiça e incluir
problemas do auto-entendimento e da compensação de interesses
413
[grifos do autor] .

Daí porque até mesmo a justiça, dentro de um esquema argumentativo

412
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.192.
413
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.194.
163

habermasiano, não ser desejável em certo ponto, porque o Direito vai regular uma
sociedade concreta que tem seus desejos e compromissos específicos. Deste
modo, impossível uma “simetria” entre justiça e ordenamento jurídico, muito
embora este seja altamente permeável àquela. E, neste mesmo sentido, incorreta
a avaliação acerca da justiça ou injustiça de uma norma como fundamento de sua
validade, uma vez que a observância de sua origem democrática que vai
possibilitar uma adesão racional. A Gestão Pública Compartida, importa adiantar,
serve tanto à Moral quanto à Ética específica da comunidade, pois é abertura à
processualização dos mais diversos argumentos em busca de uma decisão
racional.

Em termos discursivos, uma autonomia de criação e autovinculação vai ser


uma autonomia política, i.e., uma autovinculação a partir da liberdade em uma
resposta à pergunta “que devemos fazer”. Isto tudo em um contexto onde já existe
um sistema de direitos que pretende um reconhecimento recíproco entre os
participantes414. Note-se que este “o que devemos fazer” é uma pergunta que
pode ser processualizada de várias maneiras. A Gestão Pública Compartida é
uma delas.

Essa mesma razão prática que faz uso de um poder comunicativo assume
diferentes configurações conforme o tipo de argumentação que se coloca, e isto é
importante para um futuro aclaramento da Gestão Pública Compartida415.

Questões pragmáticas se colocam quando da auto-observação recíproca


de atores que buscam se influenciar em direção de uma maior utilidade. A lógica
da argumentação rege-se por uma influenciação que toma as reivindicações e
suas avaliações entre os atores, formando-se compromissos em torno de fins ou
para a execução de fins já estabelecidos416. Dentro da perspectiva da Gestão

414
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.199.
415
HABERMAS, Jürgen. A Ética da Discussão e a Questão da Verdade. São Paulo: Martins
Fontes, 2004.p.14-15: "O que pesa sobre as decisões dos participantes de um discurso prático é a
força de obrigatoriedade daquela espécie de razões que, em tese, podem convencer a todos
igualmente - não só as razões que refletem as minhas preferências, ou as de qualquer outra
pessoa, mas as razões à luz das quais todos os participantes podem descobrir juntos, dado um
assuntos que precisa ser regulamentado, qual a prática que pode atender igualmente aos
interesses de todos'”.
416
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
164

Compartida, significa perquirir-se acerca dos melhores meios administrativos para


o alcance dos fins políticos postos.

Questões éticas colocam questões existenciais na primeira pessoa do


plural, buscando os desejos de futuro de uma comunidade, a qual preserva ou
recicla sua identidade417 a partir de seus desejos e seu autoconhecimento. Eles a
descrevem como uma espécie de projeto de vida, que pode incluir tanto a
manutenção quanto a modificação da forma de vida em questão. Em sede de
Gestão Pública Compartida, pode-se dizer que a abertura cognitiva destes
espaços e sua operacionalização servirão à alteridade de uma dada comunidade,
possibilitando a materialização dos projetos de vida comunitários.

Uma política ética, todavia, não pode deixar de ser permeada por uma idéia
de justiça, em um câmbio da pergunta “que devemos fazer” para “que” tomado
universalisticamente, ou seja, “uma norma só é justa, quanto todos podem querer
que ela seja seguida por qualquer pessoa em situações semelhantes”418.
Questões de justiça são, por isso, questões morais, onde

o sentido imperativista desses mandamentos pode ser interpretado como


um dever-ser que não depende dos fins ou preferências subjetivas, nem
419
do fim, para nós absoluto, de um modo viver bom ou não-fracassado .

Uma situação vivida na prática cotidiana informa as discussões morais que,


contudo, a descontextualizam para a formação de máximas passíveis de
aceitação em discursos de justificação, mas que, num futuro próximo, terão de ser
concretizadas em discursos de aplicação. Os contextos fáticos, em uma
argumentação Moral se retraem, ao contrário dos outros discursos.

Tempo Brasileiro, 1997. p.200.


417
HABERMAS, Jürgen. La necesidad de Revisión de la Izquierda. Madrid: Tecnos, 1996:
p.215:“[…] la identidad de una persona, de un grupo, de una nación o de una región es siempre
algo concreto, algo particular (aunque, por supuesto, siempre ha de satisfacer también criterios
morales). De nuestra identidad hablamos siempre que decimos quiénes somos y quiénes
queremos ser. Y en esta razón que damos de nosotros se entretejen elementos descriptivos y
elementos evaluativos. La forma que hemos cobrado merced a nuestra biografía, a la historia de
nuestro medio, de nuestro pueblo, no puede separarse en la descripción de nuestra propia
identidad de la imagen que de nosotros nos ofrecemos a nosotros mismos y ofrecemos a los
demás y conforme a la que queremos ser enjuiciados, considerados y reconocidos por los demás”
418
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.203.
419
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.203.
165

Essa discussão demonstra o vínculo que há entre formação comunicativa


da vontade em discursos e sua posterior institucionalização em uma linguagem
jurídica. Habermas vê nas condições pós-metafísicas finalmente a possibilidade
de combinação entre os diferentes discursos:

Dado que a formação de compromissos não pode substituir discursos


morais, não se pode reduzir a formação política da vontade à formação
de compromissos. Mutatis mutandis, isso vale também para discursos
ético-políticos. Pois seus resultados têm de ser ao menos compatíveis
com princípios morais. [...] Somente nas condições do pensamento pós-
metafísico os discursos ético-políticos podem levar a regulamentações
que são per se do interesse simétrico de todos os membros. Por
conseguinte, para que o princípio do discurso seja levado em conta por
todos sem exceção, é preciso supor a combinabilidade de todos os
programas negociados ou obtidos discursivamente com aquilo que pode
ser justificado moralmente. No modelo do procedimento, a formação
política racional da vontade apresenta-se como uma rede de discursos e
420
negociações que podem ser retroligados entre si por várias sendas .

Discursos pragmáticos

Negociações reguladas Discursos ético-políticos


através de processos

Discursos morais

Discursos jurídicos

420
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.209.
166

Figura 3 - Modelo de fluxo comunicativo421

Por óbvio, e Habermas ressalta isso de maneira bem forte, visível e clara,
que as normas geradas por esse fluxo comunicativo terão de passar por um teste
de coerência com o restante do ordenamento: “Isso implica, no final das contas,
um controle das normas, quando se examina a possibilidade de os novos
programas se encaixarem no sistema jurídico vigente”422. A estrutura da
argumentação Moral e do seu desenvolvimento são importantes, todavia, para
que se torne a visualização do entrelaçamento entre princípio discursivo e o meio
jurídico.

3.4 A noção Patriotismo Constitucional como elemento


possibilitador de uma cultura plural e democrática

O auto-entendimento ético e Moral ocorre dentro de âmbitos territoriais


artificialmente delimitados, dentro dos quais as normas irão viger. Esses territórios
– usualmente Estados – nem correspondem a uma sociedade cada vez mais
mundializada, de um lado, e nem tampouco a uma sociedade cada vez
particularizada e fragmentada em termos de concepções de vida boa, de outro.
Estas considerações servem para fundamentar a importância desta temática com
a cidadania. Na construção de um modelo administrativo faz-se imperioso
perquirir acerca da base legitimatória da autoinflexão dos sujeitos de direito, daí
uma investigação rápida de um conceito fundamental de compreensão da
legitimidade da Constituição para os fins propostos de uma Administração
democrático-procedimental que é o conceito de patriotismo constitucional. O
debate aqui travado em termos mais amplos acerca de cidadania, Constituição e
inclusão informam as noções de Administração presentes da Gestão Pública
Compartida, permitindo uma análise mais ampla das condições e possibilidades
de uma Gestão Pública Compartida emancipadora.
421
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.210.
422
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.210.
167

Para Habermas, os conceitos de “nação”423 e “Estado” são conexos e se


mostram entrelaçados, de uma forma ou outra, em todas as etapas da construção
do Estado, tanto antes da própria nação, como concomitante a ela e mesmo a
moldando. Ou seja, Estado e nação, para Habermas, são fenômenos co-
imbricados, a contrário da maioria das análises, que percebem uma precedência
da nação para com o Estado ou aquela como elemento constitutivo deste.

Por representar uma estrutura organizacional forte, a figura do Estado


adquiriu prestígio em temos coordenação de políticas, constituindo-se em uma
forma máxima de organização social, apresentando características marcantes:

Em grande parte, o êxito histórico do Estado nacional pode ser


esclarecido em decorrência dos méritos do aparato estatal moderno
como tal. É evidente que o Estado territorial com monopólio de poder e
administração diferenciada, autônoma e financiada por impostos pôde
cumprir melhor os imperativos funcionais da modernização social,
cultural e sobretudo econômica do que as formações políticas de origem
424
mais remota [grifos do autor] .

Atualmente o Estado moderno delineia-se a partir de outros contornos,


diferenciando-se por uma série de caracteres marcantes, quais sejam: (a) está
organizado politicamente, delimitando-se entre outros Estados como partidos
independentes e soberanos, além de sustentar uma burocracia estruturada que
se mantém pelo poder policial da força e do exército, controlando a ordem interna
e também a externa; (b) há a nítida separação entre poder público e sociedade
civil, o que serve para medir o grau de Democracia existente em determinadas
comunidades, já que, mesmo simbolicamente separados, estes segmentos se
423
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.282: “A história do surgimento do Estado nacional reflete-se na história
do conceito ‘nação’. Entre os romanos, ‘natio’ é a deusa da origem e do nascimento. Ao contrário
da ‘civitas’, a ‘natio’, do mesmo modo que ‘gens’ e ‘populus’, refere-se a populações (muitas vezes
“selvagens”, “bárbaras” ou “pagãs”) que ainda não se organizaram em associações políticas.
Segundo este uso clássico, as nações são comunidades que têm a mesma origem, sendo
integradas, do ponto de vista geográfico, através de colônias de vizinhança, e, do ponto de vista
cultural, através da linguagem, dos costumes e de tradições comuns; porém ainda não se
encontram integradas politicamente através de uma organização estatal. A “nação” mantém este
significado durante a Idade Média. No século XV, ela se introduz nos idiomas populares [...]
Porém, no início da modernidade, surge um novo uso: a nação como titular da “soberania”. As
corporações representam a “nação face ao rei”. E desde meados do século XVIII, ambos os
significados, o de “nação”, no sentido de uma comunidade que tem a mesma origem e de “povo de
um Estado”, se entrelaçam. Com Sieyès e a Revolução Francesa, a “nação” se transforma na
fonte da soberania do Estado. A partir daí, cada nação deve ter o direito à autodeterminação
política. O complexo étnico cede, pois, lugar à comunidade democrática intencional [grifos do
autor]”.
424
HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro. São Paulo: Loyola, 2002. p.124.
168

conectam em certa medida. Outro ponto a ser mensurado pela separação referida
diz respeito à relação dicotômica entre dois fenômenos sociais: Direito e
Economia. O paradigma que se estabelece entre ambos é que, enquanto através
do Direito se busca regular e disciplinar a Economia, esta, por outro lado, dirige-
se em forma de um sistema que dificilmente pode ser regulado pelo Direito.

Mas Habermas observa que o fator determinante da situação enfrentada


pelo Estado moderno não é especificamente os mecanismos oficiais e aparatos
burocráticos, já que estes não são novidade em termos de evolução social (já
eram presentes já em sociedades arcaicas mais desenvolvidas), mas a fusão que
ocorreu a partir do século XVIII, entre o Estado e a Nação, a partir do ideário
fortemente normativo da modernidade425.

A Nação se caracteriza inicialmente como

comunidades de ascendência comum, que se integram geograficamente


por vizinhança e assentamento, culturalmente por uma língua, hábitos e
tradição em comum, mas que ainda não se encontram reunidas no
426
âmbito de uma forma estatal ou política .

Num primeiro momento, a Nação representa um conceito restrito, de grupo.


Com o passar do tempo, e a partir da influência burguesa, tal conceito amplia-se,
abrangendo toda a camada popular. A Nação sofreu forte influência de fatores
culturais, vindo a ganhar contornos artificiais que acabaram por consolidar uma
crença geral de que o povo tem origem e destino em comum. No entanto, essas
conclusões são passíveis de críticas, na medida em que, historicamente, a
ocorrência de crimes bárbaros demonstrou que houve uma rejeição ao não-
nacional, um fechamento do conceito de nacional e, portanto, de cidadão (e, com

425
HABERMAS, Jürgen. La necesidad de Revisión de la Izquierda. Madrid: Tecnos, 1996: “El
contenido normativo de la Ilustración se expreso en las ideas de autoconciencia,
autodeterminación y autorrealización. Pero la “frialdad” burguesa, de que habla Adorno, interpretó
ese “auto” en el sentido de subjetividad y autoafirmación, en el sentido de un individualismo
dispuesto a instrumentalizar todo y someter todo a su servicio. Y así, esas ideas acabaron
haciéndose dudosas. Tal duda se ha vuelto hoy omnipresente; pues se nutre de las experiencias
suministradas por una sociedad supercompleja, explotadora, caracterizada por .los riesgos que
dimanan de su propia opacidad e inabarcalidad. De los contextos sociales mismos y no ya
directamente de la naturaleza es de donde brotan hoy las contingencias que nos abruman o
avasallan. El marxismo funcionalista, el estructuralismo y esa teoría de sistemas que se ha hecho
cargo de l herencia de ambas reflejam en la propia construcción de la teoría esa experiencia de
impotencia. Luhmann lo dice: todo es posible y, sin embargo, cabe emprender muy poco”. p.29.
HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro. São Paulo: Loyola, 2002. p.126.
169

isso, um estatuto de direitos e deveres relativos ao próximo) em sua relação com


o outro. Acrescente-se a isso o fato de que esse conceito desconsidera o direito
de autodeterminação do outro.

Contudo, a Nação garantiu ao Estado estabilidade e, além disso, um


vínculo entre os indivíduos que não possuíam nenhuma ligação, razão pela qual o
Estado dependia da Nação para manter-se estruturado. Analisando o processo de
consolidação histórica do Estado-nação, Habermas percebeu que o Estado fora
além dos meios de solidariedade antes existentes, como laços de sangue e
religião, instituindo um elo de outra natureza entre as pessoas, mais abstrato, qual
seja, a cidadania, ou o sentimento de estar ligado a um determinado grupo
nacional, em detrimento do de fora, o estrangeiro, o outro. Na Europa, esse fato
coexistiu com o pluralismo de confissões. Assim, graças ao Estado, indivíduos
com interesses427 diversos e até por vezes conflitantes, puderam conviver e
ocupar o mesmo espaço.

[...] o problema da legitimação resultou de que se desenvolveu, na


seqüência da cisão entre as confissões, um pluralismo de visões de
mundo que pouco a pouco privou a autoridade política de sua base
religiosa, a “graça divina” [...] A população foi arrancada dos liames
sociais organizados em estamentos, existentes no início da Era
Moderna, e viu-se assim, ao mesmo tempo, posta em movimento e
individualizada. Aos dois desafios o Estado nacional responde com a
mobilização política de seus cidadãos. Pois a consciência nacional
emergente tornou possível vincular uma forma abstrata de integração
social a estruturas políticas decisórias modificadas. Uma participação
democrática passo a passo cria com o status da cidadania uma nova
dimensão da solidariedade mediada juridicamente; ao mesmo tempo, ela
revela para o Estado uma fonte secularizada de mediação [grifos do
428
autor] .

O Estado de Direito representa a última etapa (até a contemporaneidade)


de um processo evolutivo voltado para a inclusão do indivíduo na ordem
legitimadora, para que aquele não mais se sujeite a esta. No aspecto do avanço
social em busca da Democracia o fator cultural Nação foi decisivo. Foi através

427
E visões de mundo, aquilo que Rawls chama de “doutrinas abrangentes”, ou doutrinas que
preenchem, os significados e possibilidades do mundo da vida. Essas doutrinas podem ou não
serem razoáveis. As que não são razoáveis são dogmáticas. As razoáveis levam em conta o “fato
do pluralismo”. “Não se deve esquecer que as doutrinas abrangentes razoáveis são as que
reconhecem as ‘dificuldades da razão’ e que aceitam o fato do pluralismo como uma das
condições da existência humana em instituições democráticas e livres, que, portanto, aceitam a
liberdade de pensamento e a liberdade de consciência”. RAWLS, John. Justiça e Democracia.
São Paulo: Martins Fontes, 2000. p.357-358.
428
HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro. São Paulo: Loyola, 2002. p.128.
170

deste vínculo de ligação entre as pessoas, onde todos assumiram uma parcela de
responsabilidade pelo grupo, por sentirem-se parte deste, que possibilitou a
formação de uma estrutura jurídica que viabilizava, além de ações privadas, a
defesa de direitos políticos e sociais.

A Nação tem duas faces. Ao passo que a nação dos cidadãos ligados ao
Estado, fruto da vontade, é fonte de legitimação democrática, a nação de
compatriotas, gerada de maneira espontânea, provê a integração social.
Os cidadãos, por força própria, constituem a associação política entre os
livres e iguais; os compatriotas encontram-se em uma comunidade
cunhada por uma língua e história em comum. Permitiu-se que a tensão
entre o universalismo de uma comunidade jurídica igualitária e o
particularismo de uma comunidade histórica que partilha um mesmo
429
destino ingressasse na conceitualidade do Estado nacional .

A solidariedade criada a partir do vínculo nacional gerou, todavia, como


anotado, uma tensão a partir de uma ênfase mitológica presente um discurso
ético-comunitário radical, onde se vislumbrava um futuro uno e unívoco para a
Nação, (e as diversas fases de autoritarismo vividas pela Alemanha
demonstraram, na visão de Habermas, a inconveniência de tais simbolismos).
Com a radicalização desses discursos, conseqüentemente, há uma ruptura com a
visão normativa universalista inclusiva da cidadania presente no Estado de
Direito, gerando uma inimizade com o não-nacional. Como resultado extremo da
incorporação da idéia de Nação no seu sentido lato, chegou-se à intolerância e à
guerra. Apesar de estar direta e originariamente ligada à estabilidade do Estado, o
entendimento acerca do conceito de Nação apresenta-se no seu nascedouro
como inadequada por intolerante430.

429
HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro. São Paulo: Loyola, 2002. p.132.
430
HABERMAS, Jürgen. Diagnósticos do Tempo: seis ensaios. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
2005. p.110: “O nacionalismo constitui, na forma que assumiu a Europa desde o final do século
CVIII, uma forma moderna de identidade coletiva. Após a queda do Ancien Regime e após a
dissolução das ordens tradicionais da sociedade burguesa inicial, os indivíduos se emanciparam,
apelando para liberdades cidadãs abstratas. Além disso, a massa dos indivíduos liberados torna-
se móvel – não somente no âmbito político como um conjunto de cidadãos, mas também na área
econômica, como força de trabalho; no campo militar, os cidadãos são obrigados ao serviço militar
e, na esfera da cultura, são obrigados à escolarização, aprendendo a ler e a escrever e sendo
absorvidos pela esteira da comunicação de massa e da cultura de massa. Nesta situação, o
nacionalismo satisfaz à necessidade de novas identificações. Ele se distingue, em vários
aspectos, de formações de identidade mais antigas. Em primeiro lugar, as idéias fundadoras da
identidade surgem de uma herança profana, independente da Igreja e da religião, preparada e
mediada através das ciências do espírito que se anunciavam na época. Elas abrangem, de modo
análogo, todas as camadas da população e se apóiam numa forma reflexiva, auto-ativa, de
apropriação da tradição. Em segundo lugar, o nacionalismo preserva a herança comum da
linguagem, da literatura e da histórica junto com a forma de organização do Estado. E o Estado
171

Na Europa, os Estados construíram uma identidade nacional baseada em


laços de sangue somente após serem afastadas algumas restritas concepções
atinentes à família, clãs e dinastias, por um apego ao ideal de uma comunidade
cujo destino estaria ligado pela etnia. Esse caminho mostrou-se incoerente, pois,
como se sabe, diversidade genética está presente mesmo em Estados
considerados mais homogêneos, o que impede uma unicidade étnica. Isso se
conecta com o nível administrativo mais local para demonstrar que certas
identidades – tradicionalmente tomadas como unas, como em certas regiões do
Brasil marcadas por culturas peculiares – podem sim sofrer críticas em face de
um inevitável pluralismo, evitando a “colagem” autoritária, sem procedimento, de
uma cultura ao Direito sem o exame crítico de seus conteúdos.

As nações, então, passaram a se valer do seu passado histórico de


“pureza” para legitimar a sua autodeterminação. Cada povo era representado por
um Estado soberano, ao qual competia conduzir o “destino” da Nação. Nessa
estrutura, o povo ocuparia a posição de um macrosujeito um tanto quanto
homogêneo. Essa justificativa e remonta sua faceta mais radical à obra de Carl
Schmitt431, autor que vai se contrapor veementemente ao republicanismo a partir
de um conceito de político baseado em um código amigo-inimigo. Segundo
Schmitt, nação é elemento homogêneo que surge antes do próprio Estado, e,
conseqüentemente, a idéia de Democracia ganha contornos
valorativo/substanciais pré-concebidos historicamente, restando, portanto,
432
incompatível com uma organização democrática . Essa constatação é
importante para se perceber o autoritarismo do estabelecimento de direitos e

nacional democrático, oriundo da Revolução Francesa, continua sendo o modelo pelo qual todos
os movimentos nacionalistas se orientam”.
431
SCHMITT, Carl. O conceito do Político. Petrópolis: Vozes, 1992. p.56: “O antagonismo
político é a mais intensa e extrema contraposição e qualquer antagonismo concreto é tanto mais
político quanto mais se aproximar do ponto extremo, do agrupamento amigo-inimigo. No interior do
Estado, enquanto unidade política organizada que, como um todo, coincide com a distinção
amigo-inimigo, e, além disso, ao lado das decisões primariamente políticas e sob a proteção das
decisões tomadas, produzem-se numerosos conceitos secundários de "político"”
432
HABERMAS, Jürgen. Diagnósticos do Tempo: seis ensaios. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
2005. p.111: “A forma da identidade nacional exige que cada nação se organize num Estado, a fim
de se tornar independente. Contudo, na realidade histórica, a idéia de um Estado abrangendo uma
população nacionalmente homogênea jamais passou de mera ficção. O próprio Estado nacional é
o princípio gerador dos movimentos autonomistas, nos quais as minorias nacionais oprimidas
lutam por seus direitos. E à medida que o Estado nacional submete às minorias à sua
administração central, ele se coloca em oposição às premissas da autodeterminação, às quais ele
mesmo apela. Uma contradição semelhante perpassa a consciência histórica em cujo meio se
forma a consciência de uma nação”.
172

valores a priori como se fosse possível captar a “vontade” da nação. Isso vai
demonstrar e valorizar a participação através do procedimento em instâncias mais
concretas que vão materializar as vagas palavras da Constituição.

A auto-regulação dos povos normalmente se dá através de uma


Constituição, que vai sendo melhorada a partir de revisões e revisitações
constantes. É nessa construção que certos grupos sociais pleiteiam o seu
reconhecimento, mesmo que sejam necessários fortes embates. Tais lutas
ocorreram em determinadas sociedades que acabaram por instituir em códigos
jurídicos os direitos buscados pelos grupos em questão, como as garantias
liberais e sociais. Para Habermas, até mesmo os direitos sociais compatibilizam-
se com o individualismo do Direito moderno (quanto às liberdades individuais),
uma vez que podem ser pleiteados individualmente.

Em um primeiro momento, no entanto, as coisas parecem ser diferentes


quando se trata de reivindicar reconhecimento para identidades coletivas
ou igualdade de direitos para formas de vida culturais. Feministas,
minorias em sociedades multiculturais, povos que anseiam por
independência nacional ou regiões colonizadas no passado e que hoje
reclamam igualdade no cenário internacional, todos esses agentes
sociais lutam hoje em favor de reivindicações com as que acabei de
mencionar. O reconhecimento de formas de vida e tradições culturais
marginalizadas – ora no contexto de uma cultura majoritária, ora na
sociedade mundial dominada por forças eurocêntricas ou do Atlântico
Norte – não exige garantias de status ou de sobrevivência? Não exige ao
menos uma espécie de direitos coletivos que faz ir pelos ares a
autocompreensão do Estado democrático de Direito que herdamos,
moldada segundo direitos subjetivos, e portanto de caráter ’liberal’ [grifos
433
do autor]?

A concepção de Habermas mostra-se coerente, considerando-se que


detentores de direitos individuais subjetivos têm seu berço em meios que
possibilitam a intersubjetividade, e que, além disso, é a própria sociedade que
promove a socialização além de, finalmente, não pré-existir algo que se possa
chamar de uma consciência “natural”, “pré-societal” ou “pré-política”. Assim, um
indivíduo que convive no contexto de uma comunidade política, se não se quiser
agir paternalisticamente, acabará por seguir uma política de reconhecimento para
com o Outro e de seus próprios espaços de ação.

Com a neutralização do processo jurídico, vai se viabilizando cada vez

433
HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro. São Paulo: Loyola, 2002. p.231.
173

mais a possibilidade de integração com o Outro. O Direito, ao ser criado,


contemplaria não apenas as concepções ético-culturais dos indivíduos, mas se
manteria “neutro” quanto a essas informações. Essas conclusões são importantes
para uma teoria da gestão por que permitem explicar o respeito ao pluralismo e
ao mesmo tempo a definição de algo em termos públicos.

Normas jurídicas remontam a decisões de um legislador local; estendem-


se a uma coletividade socialmente delimitada de integrantes do Estado,
no interior de um território estatal geograficamente determinado; e levam
decisões políticas – efetivas para a própria sociedade estatal organizada
que as toma – a integrar-se em programas coletivamente vinculativos, no
âmbito dessa área e validação claramente circunscrita. Por certo, a
consideração de fins coletivos não pode dissolver a estrutura do Direito,
não pode destruir a forma jurídica como tal, e com isso suprassumir a
diferenciação entre Direito e política. Mas faz parte da natureza concreta
de matérias carentes de regulamentação que a normatização das vias de
relacionamento no medium do Direito – diversamente do que ocorre na
Moral – venha abrir-se para as demarcações de objetivos pela vontade
política de uma sociedade. Por isso, toda ordem jurídica é também
expressão de uma forma de vida em particular, e não apenas o
espelhamento do teor universal dos direitos fundamentais [grifos do
434
autor] .

Apesar de os direitos se efetivarem através de um meio ético, não se pode


concluir que isso constitua um discurso apenas de auto-compreensão. O que a
sociedade concebe como sendo o Direito correspondente a cada um não está
diretamente conectado a um contexto referido pela Ética e pela política, já que,
sobre isso, há a influência de fatores como os argumentos morais, pragmáticos,
interesses e acordos. Contudo, em virtude dos vários exemplos, não se pode
olvidar que os ambientes éticos têm o condão de, praticamente, determinar o
auto-entendimento dos indivíduos constante na própria Constituição. Aqui reside
um fator importante, que diz respeito à extensão dos direitos de comunicação aos
menos favorecidos, permitindo assim que colaborem na elaboração desse
discurso. Uma das alternativas está na federalização, ou na concessão
atribuições mais abrangentes aos territórios e residência das minorias, tal como
se deu no Canadá. Essa estrutura desenvolve-se com sucesso no contexto de
uma cultura de tolerância e aceitação quanto a uma divisão do território, ainda
que bastante flexível. Certos espaços multiculturais, entretanto, não possibilitam a
separação, assim como ocorreu na Alemanha e nos Estados Unidos.

434
HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro. São Paulo: Loyola, 2002. p.245.
174

Imagine-se agora que em sociedades como a acima referida, ou seja,


multiculturais, em um contexto cultural liberal prenhe de associações voluntárias,
exista uma cultura política comunicativa não simplesmente baseada em uma
herança tradicional, mas sim que fomentem e possibilitem os discursos de auto-
entendimento. Neste contexto, é bem possível imaginar a efetivação de direitos
subjetivos iguais com a asseguramento das diferentes formas de vida dos
grupos435. Obviamente que no Brasil a questão das diferenças culturais não é tão
dramática por que as diferenças, em regra, não se constituem em demandas de
secessão. Mas o pluralismo não precisa ser compreendido como diferenças
agudas em termos de cultura, pois pode ser observado como diferença em termos
de concepções morais e de fins pragmáticos – isso sim muito presente em países
como o Brasil.

O Direito de reconhecimento está presente em grande parte das atuais


Constituições, inclusive sendo obrigatório para todos os Estados signatários da
Carta das Nações Unidas. Esse direito reconhece juridicamente as diversas
culturas como tendo igual valor, onde todos têm liberdades equivalentes a partir
de uma hermenêutica viabilizadora dessa igualdade. Dessa forma, pode-se
responder ao questionamento colocado anteriormente, afirmando que o Direito,
apenas com poucas modificações em quanto ao seu sistema originalmente
individualista, apresenta-se como o suporte necessário para solucionar demandas
coletivas atinentes ao reconhecimento de culturas, se os indivíduos envolvidos
assim o quiserem436. Na visão de Habermas, em uma comunidade
multiculturalista é possível viver-se conforme a cultura de origem, fundi-la com
uma outra cultura ou ainda, deixá-la, tendo uma postura apática ou até mesmo
desvinculando-se por completo da sua tradição. Esses fenômenos podem ocorrer
devido ao fato de que a ”mudança acelerada das sociedades modernas manda

435
HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro. São Paulo: Loyola, 2002. p.249.
436
HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro. São Paulo: Loyola, 2002. p.251: “O caminho do
Direito estatal nada pode senão possibilitar essa conquista hermenêutica da reprodução cultural
de universos vitais. Pois uma garantia da sobrevivência iria justamente privar os integrantes da
liberdade de dizer sim ou não, hoje tão necessária à apropriação e manutenção de uma herança
cultural. Sob as condições de uma cultura que se tornou reflexiva, só conseguem manter as
tradições e formas de vida que vinculem seus integrantes, e isso por mais que fiquem expostas à
provação crítica por parte deles, e por mais que dêem às novas gerações a opção de aprender
com as outras tradições, ou mesmo converter-se a elas e migrar, portanto, para outras paragens
[grifos do autor]”.
175

pelos ares todas as formas estacionárias de vida. As culturas só sobrevivem se


tiram da crítica e da cisão força para uma autotransformação437”.

Habermas segue o entendimento de Rawls ao tratar dos aspectos de tais


culturas, afirmando que, em um Estado de Direito somente podem sobreviver as
doutrinas que contemplem a sua falibilidade ou que não sejam construídas a partir
de verdades metafísicas, permitindo, ao menos minimamente, a reflexividade438,
vez que as doutrinas não-razoáveis estão sempre prontas a recorrer a armas para
impor suas verdades.

O chamado patriotismo constitucional, concebido como sendo o sentimento


de solidariedade criado a partir de uma situação de autolegislação embasada em
normas fundamentais, com solidez quase absoluta439, no entendimento dos
críticos de Habermas, não tem força o bastante para, sozinho, promover
solidariedade dentro do multiculturalismo.

Para Habermas, no entanto, o multiculturalismo possibilita a convivência de


interesses variados, não apenas de ordem econômica, mas inclusive culturais,
como por exemplo um direito fundamental, indispensável para a segurança da
Democracia. Tais direitos têm sua fundamentação idêntica a dos direitos sociais:

437
HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro. São Paulo: Loyola, 2002. p.252.
438
GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e Diferença: Estado Democrático de Direito a partir
do Pensamento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p.209: “Realizar projetos de
vida alternativos juntamente com aquele majoritário só é possível se concebermos as normas que
fundamentam essa tarefa do Direito como princípios. Temos de conceber a norma que prescreve
a igualdade como um princípio jurídico porque a maneira pela qual essa igualdade se realiza no
mundo pode gerar conflitos entre projetos alternativos, que precisam ser também realizados, se
não quisermos que se esvaziem e se extingam”.
439
Já em 1990, Habermas antecipava sua opinião posterior: “A existência de sociedades
multiculturais, tais como a Suíça e os Estados Unidos, revela que uma cultura política, construída
sobre princípios constitucionais, não depende necessariamente de uma origem étnica, lingüística e
cultural comum a todos os cidadãos. “Uma cultura política liberal forma apenas o denominador
comum de um patriotismo constitucional capaz de agudizar, não somente o sentido para a
variedade, como também a integridade das diferentes e coexistentes formas de vida de uma
sociedade multicultural. Numa futura República Federal dos Estados Europeus, os mesmos
princípios jurídicos terão que ser interpretados nas perspectivas de tradições e de histórias
nacionais diferentes. A própria tradição tem que ser assimilada numa visão relativizada pelas
perspectivas dos outros, para que possa ser introduzida num cultura constitucional transnacional
da Europa Ocidental. E uma ancoragem particularista deste tipo não diminuiria, num só ponto, o
sentido universalista dos direitos humanos e da soberania popular. Portanto, não há o que mudar:
não é necessário amarrar a cidadania democrática à identidade nacional de um povo; porém,
prescindindo da variedade de diferentes formas de vida culturais, ela exige a socialização de todos
os cidadãos numa cultura política comum [grifos do autor]”. HABERMAS, Jürgen. Direito e
Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p.289.
176

Presumo que as sociedades multiculturais só poderão manter-se coesas


440
por meio de uma cultura política como essa , que já deu mostras de
sua eficiência, se a Democracia for compensada não apenas sob a
forma de direitos liberais à liberdade e direitos políticos à participação,
mas também mediante o gozo profano de direitos sociais e culturais ao
compartilhamento. Os cidadãos precisam poder experienciar o valor de
uso de seus direitos também sob a forma da segurança social e do
reconhecimento recíproco de formas de vida culturais diversas. A
cidadania democrática e ligada ao Estado só exercerá força integrativa –
ou seja, só promoverá solidariedade entre estranhos – quando der
mostras de sua eficiência enquanto mecanismo pelo qual os
pressupostos constitutivos das formas de vida desejadas possam de fato
441
tornar-se realidade [grifos do autor] .

O patriotismo constitucional poderia ser consolidado a partir uma matriz


fundamental que adviria da positivação de direitos em uma Constituição442. Esse
processo de constitucionalização, que normalmente é doloroso, muitas vezes
surge como o rompimento com o velho e o início de uma inovadora solidariedade
entre os envolvidos. Habermas, juntamente com Frank Michelman, postula
historicisticamente para a Constituição uma perenização do desejo dos membros
do povo de se tornarem sujeitos de direitos democráticos. Esta perenização e
ênfase do discurso constitucional traz sempre a lume a intrincada questão acerca
do controle constitucional das normas:

Michelman certamente se apóia na intuição segundo a qual o assédio


discursivo do tribunal através de uma sociedade mobilizada produz uma
interação capaz de gerar conseqüências favoráveis para os dois lados,
pois o alargamento da base de decisão faz com que o tribunal, que
continua a decidir de modo independente, amplie também o campo de
visão dos especialistas. E, aos olhos dos cidadãos que tentam influir no
tribunal através de uma opinião pública provocativa, cresce a
legitimidade do procedimento que conduz à decisão. Ora, a avaliação
adequada das possíveis contribuições desse modelo para solução do

440
A referência aqui é a cultura americana que se formou com a revolução: “Primeiro as idéias de
liberdade religiosa e política formadas nos países germânico-protestantes mudaram-se para a
Europa, por sobre o Atlântico, para a América, para então, migrar novamente de volta para o leste
em 1789. As idéias de liberdade, no entanto, retornaram à Europa apenas depois de terem sido
filtradas através do meio multiconfessional e multicultural de imigrantes da sociedade americana e
purificadas das “impurezas” [Beimischungen] confessionais bem como nacionais”. HABERMAS,
Jürgen. A Constelação Pós-Nacional. São Paulo: Littera Mundi, 2001. p. 24
441
HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro. São Paulo: Loyola, 2002. p.136.
442
HABERMAS, Jürgen. A Ética da Discussão e a Questão da Verdade. São Paulo: Martins
Fontes, 2004. p.35: "A cidadania é uma posição definida pelos direitos civis. Mas temos de
considerar também que os cidadãos são pessoas que desenvolveram sua identidade pessoal no
contexto de certas tradições, em ambientes culturais específicos, e que precisam desses
contextos para conservar sua identidade. Em determinadas situações, devemos portanto ampliar o
âmbito dos direitos civis para que inclua também os direitos culturais. Esses são direitos que
garantem igualmente a todos e a cada um dos cidadãos o acesso a uma tradição e à participação
nas comunidades culturais de sua escolha, para que possam estabelecer sua identidade. Essa
ampliação diz respeito ao acesso em um ambiente cultural. Esse modelo, como é óbvio, leva em si
o perigo intrínseco da fragmentação".
177

suposto paradoxo implica uma análise detalhada do papel cognitivo que


o discurso impetuoso de um espaço público jurídico desempenha na
prática de decisão do tribunal e o papel funcional que esta desempenha
na aceitação social dos juízos. Temo, porém, que razões pragmáticas e
circunstâncias históricas são muito mais decisivas, quando se trata de
saber o modo como a tarefa de controlar as normas, numa dado
443
contexto, deve ser organizada [grifos do autor] .

A Constituição que está restrita aos direitos de comunicação não apresenta


dificuldades quanto a sua fundamentação – tarefa que é facilitada pelo argumento
circular. A complicação surge quando é necessário proceder à fundamentação e
aplicação, pelo Judiciário, dos demais direitos, como por exemplo, os liberais, os
sociais, os programas etc. O discurso ético-político de um povo concebe esses
direitos como possibilitadores da Democracia. O discurso ético, apesar de ser
fluído e indeterminado, toma forma a partir das discussões no processo
constituinte e torna-se positivado no discurso especial constitucional, quando
então se torna estável.

É através do processo de criação e recriação constitucional que os


indivíduos acabam por desistir de buscar as garantias sociais de solidariedade
baseadas na cultura, na religião ou na história, por uma solidariedade que se
concretiza por meio da cidadania, ou uma organização de direitos ativável
contra/na sociedade. Desse modo, os fundamentos da cidadania deixam a esfera
cultural e passam para a fundamentação do processo constituinte. A razão para
isso estaria no fato de, ao se analisar a racionalidade das comunicações no
processo de elaboração das legislações, ocorreria um retorno ad infinitum. Nesse
ponto, insurge-se no problema da fundação constitucional e a sua atualização:

[...] sugiro que entendamos o próprio regresso como a expressão


compreensível de um aspecto do caráter da constituição dos Estados
Democráticos de Direito, isto é, a sua abertura para o futuro: uma
Constituição que é democrática, não somente de acordo com seu
conteúdo, mas também de acordo com a fonte de sua legitimação,
constitui um projeto capaz de formar tradições com um início marcado na
história. Todas as gerações posteriores enfrentarão a tarefa de atualizar
a substância normativa inesgotável do sistema de direitos estatuído no
documento da Constituição, a legislação em vigor continua a interpretar
e a escrever o sistema dos direitos, adaptando-o às circunstâncias atuais
(e nesta medida, apaga a diferença entre normas constitucionais e
simples leis). É verdade que essa continuação falível do evento fundador
só pode escapar do círculo da autoconstituição discursiva de uma
comunidade, se esse processo, que não é imune a interrupções e a

443
HABERMAS, Jürgen. A Era das Transições. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p.158.
178

recaídas históricas, puder ser interpretado, a longo prazo, como um


processo de aprendizagem que se corrige a si mesmo [grifos do
444
autor] .

O exemplo do New Deal encaixa-se na reinterpretação constitucional por


excelência, por motivos por todos conhecidos. A inclusão de certas políticas, e a
exclusão de outras, demonstra que efetivamente a comunicação pode levar a
reformas de interpretação no texto para melhor. Demonstra, também, que uma
vez sedimentada essa interpretação, a auto-compreensão do corpo de cidadãos
toma consciência desse processo. O processo de aprendizagem, porque radicado
em graves conflitos sociais, precisa ser, e é constantemente relembrado pela
legislação445, a fim de que a integração racional torne-se mais eficaz e legítima.
Enfim, a Constituição precisa evocar a conquista de uma comunidade que
conseguiu integrar-se considerando seus membros reciprocamente livres e iguais.

Interessa a este estudo o resgate das possibilidades de criação de laços de


solidariedade capazes de levar adiante os procedimentos comunicativos de
criação e interpretação que não estejam fundados em concepções naturalistas de
mundo ou que se fundamentem fortemente na cultura política localizada. Além do
mais, é necessária a introjeção de comportamentos individuais capazes de operar
no nível do procedimento com conteúdos universalistas. O patriotismo
constitucional tem a virtude de esclarecer a possibilidade de laços solidários que
operam não em uma matriz histórica, mas sim engatados pelo Direito, o que
possibilita considerações universalistas por parte dos participantes.446

Habermas atribui a considerações históricas e pragmáticas a razão para a

444
HABERMAS, Jürgen. A Era das Transições. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 165.
445
HABERMAS, Jürgen. A Constelação Pós-Nacional. São Paulo: Littera Mundi, 2001.p. 98: “Os
direitos fundamentais liberais e políticos fundamentam um status de cidadania que é auto-
referencial na medida em que autoriza os cidadãos, reunidos democraticamente, a aperfeiçoarem
o seu status pela via da legislação. A longo prazo, apenas um processo democrático que cuide de
um aparelho adequado de direitos divididos de modo justo pode valer como legítimo e instituir
solidariedade. Para permanecer uma fonte de solidariedade, o status de cidadão deve manter um
valor de uso e também se fazer pagar na moeda dos direitos sociais, ecológicos e culturais. Nesse
sentido, a política de bem-estar social assumiu uma função de legitimação não desprezível [grifos
do autor]”.
446
HABERMAS, Jürgen. A Ética da Discussão e a Questão da Verdade. São Paulo: Martins
Fontes, 2004: "Uma comunidade não pode se fragmentar na multiplicidade de suas subculturas, e
penso que isso só pode ser permitido sob a condição de que todos os cidadãos possam se
reconhecer numa única cultura política que transcenda as fronteiras de suas diversas subculturas.
Para tanto, é preciso que a cultura política seja pelo menos um pouco separada das diversas
subculturas". p.36.
179

viabilidade de uma Democracia desprovida da nação e de identidade nacional.


Num enfoque histórico, Habermas447 relembra que as identidades “nacionais”,
desde sua origem, estruturam-se sobre um sistema de exclusão do outro. Eram
formados conjuntos de nações de acordo com determinados fatores, como a
língua, os hábitos e as tradições. Ganhavam características de grupos comerciais,
universidades, ordens de cavalaria, aristocracia, etc.

A transformação da “nação aristocrática” em “nação popular”, que


avança a partir de fins do século XVIII, pressupõe uma mudança de
consciência, inspirada por intelectuais, que se impõe inicialmente na
burguesia citadina, sobretudo academicamente letrada, antes de
alcançar eco em camadas mais amplas da população e ocasionar
progressivamente uma mobilização das massas. A consciência nacional
popular cristaliza-se em “comunidades imaginárias” [...] engendradas
nas diferentes histórias nacionais, as quais se tornaram o cerne da
448
consolidação de uma nova auto-identificação coletiva .

A hipótese acerca de uma nação favoreceu uma outra alternativa de


integração social, nunca antes imaginada, que ocupou o lugar da junção de bases
metafísico-religiosas, em virtude de que estas, naquela situação, estavam se
esgotando. Foi através do Estado que se tornou possível essa integração de
forma mais abstrata, onde se superou uma concepção de mundo religiosa-
metafísica, que deu lugar a uma “crença nacional”, na qual os indivíduos de um
determinado território criam vínculos de solidariedade entre si por compartilharem
este espaço, dirigidos por um governo cuja legitimidade vem representada por
uma história compartilhada. Foi no Estado Democrático de Direito que Estado
desenvolveu-se com maior plenitude, pois foi aí que o considerável nível de
esclarecimento da esfera pública interna legitimou o processo de elaboração do
Direito; e, além disso, foram prestados serviços públicos indispensáveis, que
normalmente possuíam um caráter redistributivo. A partir do aspecto útil-funcional
assumido pelo Estado, associado a um movimento político/ideológico/cultural449

447
HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro. São Paulo: Loyola, 2002. p.126.
448
HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro. São Paulo: Loyola, 2002. p.127.
449
HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro. São Paulo: Loyola, 2002. p.129: “Para a
mobilização política que ocorreu foi necessária uma idéia cuja força fosse capaz de integrar as
consciências morais, com um apelo ainda mais forte aos corações e ânimos do que aquele
exercido pela soberania popular e os direitos humanos. Essa lacuna é preenchida pela idéia de
nação. É ela que torna consciente aos habitantes de um mesmo território a nova forma de
pertença a um todo, política e juridicamente mediada. Apenas a consciência nacional que se
cristaliza em torno da percepção de uma ascendência, língua e história em comum, apenas a
consciência de se pertencer a “um mesmo” povo torna os súditos cidadãos de uma unidade
política partilhada – torna-os, portanto, membros que se podem sentir responsáveis uns pelos
180

ao redor da nação, criou-se, desde a paz westfaliana até hoje, uma solidariedade
entre estranhos.

Apesar disso, a nação compõe-se de dois lados: um, que promove a


integração democrática com a idéia de autodeterminação dos povos; e outro, que
traz um estranhamento com relação aos não-nacionais, negando a integração.

Essa ambivalência só não oferece perigo, enquanto um entendimento


cosmopolita da nação de cidadãos vinculados ao Estado puder
prevalecer sobre a interpretação etnocêntrica de uma nação que se
encontra em um estado de guerra latente e duradouro. Apenas um
conceito não-naturalista de nação amolda-se sem dificuldades a uma
autocompreensão universalista do Estado de Direito Democrático. Aí sim
a idéia republicana pode assumir a liderança e penetrar, de sua parte, as
formas de vida socialmente integrativas, bem como estruturá-lasP de
acordo com modelos universalistas [...] Mas essa conquista republicana
passa a correr perigo se, ao invés, a força integrativa da nação de
cidadãos for atribuída a um dado que se pretenda anterior à política, ou
seja, a existência de um povo constituído por via natural e, portanto, algo
independente da formação política da opinião e da vontade dos próprios
450
cidadãos .

Para Habermas, resta clara a solução. O Estado precisa dissolver essa


força ambivalente, o qual já impulsionou, num momento pretérito, no sentido de
uma forma de integração mais abstrata, desvinculada da história ou de um
volksgeist. A realidade vivida pelo Estado gerou, em contrapartida com a
consolidação da legitimidade na forma de nação, uma diferente forma de
legitimação, com maior abstração, e que preocupa Habermas: a solidariedade
mediada pelo Direito. Na concepção de Habermas, essa condição pós-metafísica
viabilizaria a consolidação da solidariedade por vínculos estritamente
jurídico/procedimentais, inclusive pela ausência de outra opção racional. O

outros”. A abordagem aqui tratada gira em torno da mitificação das identidades coletivas.
Habermas, contudo, não vê a questão fragmentariamente; pelo contrário, aceita o pluralismo das
visões de mundo. Parece, contudo, que considera uma visão mitificada ou patológica quando esta
se fecha para o Outro (ou não é razoável, numa linguagem rawlsiniana). CITTADINO, Gisele.
Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000. p.177:
“Ressalte-se, por outro lado, que ao recusar uma concepção comunitária de Constituição
enquanto ordem concreta de valores, isto não significa que Habermas opte por uma proposta
liberal de Constituição como ordenamento-garantia assegurador de um âmbito de liberdades
negativas. Segundo ele, a Constituição, ao configurar um conjunto de Direitos Fundamentais,
contextualiza princípios universalistas e, assim, transforma-se na única base comum a todos os
cidadãos. Em outras palavras, em mundos pós-convencionais, onde indivíduos não integram
sólidas comunidades étnicas ou culturais, são as Constituições que, incorporando um sistema de
direitos, podem conformar uma “nação de cidadãos”. É a partir desta argumentação que
Habermas formula a concepção de patriotismo constitucional enquanto modalidade pós-
convencional de conformação de uma identidade coletiva”
450
HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro. São Paulo: Loyola, 2002. p.132.
181

simples fato de conviver conjuntamente e poder se autocoordenar, seria razão


suficiente para desencadear uma aproximação entre as pessoas, sendo
indiferente a dimensão do território (este mesmo conceito um anacronismo) no
qual vivam 451.

A cidadania democrática – no sentido de citizenship – gera uma


solidariedade entre estranhos, relativamente abstrata, ou em todo caso
juridicamente mediada; e essa forma de integração social, que desponta
inicialmente com o Estado nacional, realiza-se sob a forma de um
contexto comunicacional que se estende até a socialização política. Esse
contexto certamente depende do cumprimento de exigências funcionais
importantes e que não podem ser simplesmente criadas por meios
administrativos. A isso também pertencem condições sob as quais se
pode constituir e reproduzir comunicativamente uma autocompreensão
ético-política dos cidadãos – mas de modo algum uma identidade
coletiva independente do processo democrático, e portanto dada de
452
antemão [grifos do autor] .

Voltando à questão: o Estado, através do Direito, promoveu uma


substituição de solidariedades fundamentadas em casos concretos, por uma
solidariedade mais abstrata. Apesar de bastante eficaz, a legitimação fundada na
concepção de Nação passa a enfrentar uma crise, pelo fato de criar contendas
catastróficas, e também por, num segundo momento, mostrar-se incapaz de
corresponder à velocidade das mudanças resultantes da globalização. Habermas,
considerando as razões históricas que acompanharam a passagem para a era
moderna, sugere que se aumente o grau de abstração de cidadania no sentido de
uma cidadania alicerçada nos Direitos Fundamentais e na Democracia
Procedimental, discursivamente estruturada.

Em termos mais específicos de Brasil, a cultura para a participação ainda


parece se encontrar em estágios iniciais de desenvolvimento. Ainda estritamente
ligada aos contextos egocêntricos, é difícil até mesmo a mobilização para a
Democracia, quiçá a conscientização da necessidade de se pensar o coletivo, ou
seja, de se transcender o mero interesse de seu, de família ou de classe. A falta

451
Habermas critica a idéia de Carl Schmitt acerca de nação: “É certo que a Democracia só pode
ser exercida como um práxis comunitária. Mas Schmitt não constrói essa comunidade como a
intersubjetividade de grau superior de um acordo mútuo entre cidadãos, que se reconhecem
reciprocamente como livres e iguais. Ele a coisifica enquanto homogeneidade dos membros de um
povo”. HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro. São Paulo: Loyola, 2002. p.154. Parece certo
que a exemplificação vem do caso extremo alemão. O sentimento cultural, em outros Estados,
contudo, não parece ser muito diferente.
452
HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro. São Paulo: Loyola, 2002. p.181.
182

de informação é um empecilho453, assim como uma cultura política híbrida, não


voltada para a participação:

Não temos no Brasil uma cultura democrática. À luz das pesquisas


disponíveis, pode-se afirmar que o que temos é a substituição de um
padrão caracteristicamente autoritário, vigente até os anos 1970, por
uma nova cultura política a partir dos anos 1980, gestada no processo de
redemocratização do país. Todavia, a permanência de uma grave crise
econômica e social, associada às constantes denúncias de corrupção e
práticas ilícitas nas instituições sociais, impediu que os traços
democráticos da nova cultura política se fortalecessem [...] Assim,
paralelamente a atitudes e orientações próprias da Democracia
(valorização do voto, pluralismo partidário, condenação do arbítrio
estatal, respeito aos direitos das mulheres, etc.) estabeleceu-se na
cultura nacional a descrença nas instituições e nos agentes políticos. No
ideário popular, há uma dualidade bastante marcante: de um lado está o
mundo cotidiano dos cidadãos e do outro, o mundo da política, com
454
regras incompreensíveis .

Essa configuração híbrida na cultura implica que os cidadãos, ao passo


que confiam na Democracia, não assumiram totalmente os comportamentos
necessários para que seja possível um bom funcionamento daquela. Se há uma
confiança difusa nas instituições democráticas, não há, porém, a confiança na
eficácia da participação e tampouco disposição à participação voltada para o
interesse público, uma vez que as orientações ainda são pragmático-utilitárias455.

453
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2004. p. 210: "No entanto, pode-se dizer que, dos direitos que compõem a
cidadania, no Brasil são ainda os civis que apresentam as maiores deficiências em termos de seu
conhecimento, extensão e garantias. A precariedade do conhecimento dos direitos civis, e também
dos políticos e sociais, é demonstrada por pesquisa feita na região metropolitana do Rio de
Janeiro em 1997. A pesquisa mostrou que 57% dos pesquisados não sabiam mencionar um só
direito e só 12% mencionaram algum direito civil. Quase a metade achava legal a prisão por
simples suspeita. A pesquisa mostrou que o fator mais importante no que se refere ao
conhecimento dos direitos é a educação. O desconhecimentos dos direitos caía de 64% entre os
entrevistados que tinham até a 4ª série para 30% entre os que tinham o terceiro grau, mesmo que
incompleto. Os dados revelam ainda que educação é o fator que mais bem explica o
comportamento das pessoas no que es refere ao exercício dos direitos civis e políticos".
454
SCHMIDT, João Pedro. Condicionantes Culturais das Políticas Públicas no Brasil. In: LEAL,
Rogério Gesta; et al (org.) Direitos Sociais e Políticas Públicas: desafios contemporâneos.
Santa Cruz: Edunisc, 2001. p.309.
455
SCHMIDT, João Pedro. Condicionantes Culturais das Políticas Públicas no Brasil. In: LEAL,
Rogério Gesta; et al (org.) Direitos Sociais e Políticas Públicas: desafios contemporâneos.
Santa Cruz: Edunisc, 2001. p.297-298: “Um conjunto de pesquisas e surveys recentes mostram
uma convergência em torno de um conjunto de traços fundamentais que configuram o que
denomino de cultura política híbrida:
(i) há um apoio difuso ao regime político democrático – os cidadãos tem demonstrado uma
preferência majoritária pela Democracia frente à ditadura ou outro regime político, bem como a
rejeição à hipótese do retorno dos militares ao poder;
(ii) o voto é valorizado como mecanismo de escolha dos dirigentes políticos;
(iii) a confiança nos agentes e nas instituições políticas existentes é muito pequena, bem menor do
183

Toda esta problemática está intimamente ligada à Gestão Pública


Compartida porque a sociedade é o ambiente na qual aquela se desenvolve.
Neste sentido, parece estar correta a proposição que diz ir de encontro
intolerância e democracia. Isso porque a sociedade, para que a Gestão Pública
Compartida funcione bem, tem de aceitar condições ótimas de fala para o outro, o
que implica em uma pressuposição de desenvolvimento mínimo para a instalação
da Gestão ..

Assentadas as bases de uma cultura democrática, toca agora, no próximo


tópico, explicitar os princípios gerais de um Estado Democráticos, os quais regem,
dentro de suas grandes balizas, a Gestão Pública Compartida.

3.5 Princípios do Estado de Direito a partir da teoria do


discurso.

O momento metafórico da autoconstituição de direitos que, todavia, se


perpetua na prática cotidiana, não carrega consigo sozinho nem o fardo da
legitimação do ordenamento e tampouco a institucionalização. Nem é preciso
dizer que é utópico pensar que uma Constituição prenhe de direitos basta para
legitimar o ordenamento e coordenar a ação456. O poder político também tem de

que aquela em instituições sociais, como a família e a Igreja;


(iv) prevalece, entre os cidadãos, uma visão negativa do Estado, ao mesmo tempo em que parece
crescer a valorização da sociedade civil;
(v) o sentimento de eficácia política, ou seja, a confiança na capacidade subjetiva de influenciar as
decisões políticas, é bastante reduzia entre os cidadãos;
(vi) o cidadão comum não se guia por orientações ideológicas, prevalecendo o pragmatismo e
personalismo por ocasião de escolhas eleitorais;
(vii) há uma valorização genérica da participação política por parte dos cidadãos, mas mesmo
entre os que lhe atribuem valor a efetiva participação em atividades e instituições políticas, é
pequena;
(viii) há uma percepção crítica dos cidadãos em relação ao autoritarismo social, mas prevalece,
ainda, a resignação e a impotência diante das relações hierárquicas no cotidiano”.
456
MOREIRA, Luiz. Fundamentação do Direito em Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos,
2002. p.146: “O ordenamento jurídico só passa a ser normativo no momento em que incorpora a
dimensão da liberdade comunicativa, pois essa normatividade é tão-somente mediata, porque,
para constituir-se como normativo, o ordenamento jurídico precisa ser reconhecido como legítimo.
O simples fato de ser fruto de um procedimento legislativo não confere à norma jurídica autoridade
absoluta. Antes, porém, o fato de ser norma jurídica lhe confere o status de autoridade relativa,
pois estando aberta à comprovação fática sua legitimidade é tributária de sua vinculação a
184

ser domesticado pelo Direito e este tem não pode ser autoprogramável, tendo de
ser informado por considerações políticas457. Um ponto polêmico em Habermas,
pelo menos em Direito e Democracia, é que é ele seria um tanto quanto
estadocêntrico:

O Estado é necessário como poder de organização, de sanção e de


execução, porque os direitos têm que ser implantados, porque a
comunidade do direito necessita de uma jurisdição organizada e de uma
força para estabilizar a identidade e porque a formação da vontade
política cria programas que em que ser implementados. Tais aspectos
não constituem meros complementos, funcionalmente necessários para
o sistema de direitos, e sim, implicações jurídicas objetivas, contidas in
nuce nos direitos subjetivos. Pois o poder organizado politicamente não
se achega ao direito como que a partir de fora, uma vez que é
pressuposto por ele: ele mesmo se estabelece em formas do direito. O
poder político só pode desenvolver-se através de um código jurídico
458
institucionalizado na forma de direitos fundamentais [grifos do autor] .

Isso demonstra que nem uma mera forma jurídica instaura o Direito, mas
tampouco ele pode ser metafisicamente deduzido como espelho de uma Moral
superior. Direito e poder pressupõem-se mutuamente, vez que o poder seria
disforme e ilegítimo sem o Direito, e, este, sem poder, seria nada mais que uma
linguagem vazia. Esta questão se comunica novamente com o problema de
coordenação da ação. Claro que, neste contexto, a argumentação aqui traçada já
pressupõe tanto poder quanto Direito diferenciados, ou seja, pressupõe a
modernidade459. Assim, de um lado, as trocas permitem o conhecimento de
demandas sociais, mas, por outro lado, os procedimentos de criação do Direito
possuem uma força motivadora, mesmo que pequena, nas palavras de
Habermas. O reconhecimento de uma pretensão de validade e a formação de um
vínculo ilocucionário “cria uma nova realidade social”460. Nesse sentido, a
descrição de Habermas é mais complexa do que a constatação de uma
confluência de expectativas, vez que permite observar a formação de vínculos
sociais políticos.

processos democráticos”.
457
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.169.
458
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.171.
459
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.182.
460
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.186.
185

Como poder e Direito estão em interligação, o poder político vai ter de estar
constituído juridicamente, assim como o Direito tem de ser legitimamente
estatuído por uma decisão democrática. O Direito não é apenas o código
institutivo para o poder, é também o meio que transforma o poder comunicativo
em administrativo.

Para Habermas, o desenvolvimento desta idéia implica em (a)


reconhecimento da soberania popular como processo democrático plural; (b)
ampla garantia legal ao indivíduo, “proporcionada através de uma justiça
independente”461; (c) princípios de legalidade da Administração Pública e seus
controles judicial e parlamentar e; (d) separação entre Estado e sociedade. Estas
idéias visam evitar autoprogramações, uma vez que a Administração Pública não
poderia ela mesma decidir que demandas atingir, e, ao mesmo tempo, uma
concepção de Estado simetricamente igual a sociedade geraria graves
problemas. Separa-se Estado e sociedade principalmente porque aquele é mais
especializado que esta, mas principalmente porque o poder social não pode
entrar diretamente no Estado, sem procedimento. Por outro lado, os processos
sociais de formação de vontade têm de estarem livres da burocracia estatal, ou
seja, devem existir espaços espontâneos de formação da vontade, pena de
destruição da própria base racional.

Os princípios do Estado de direito, desenvolvidos de a) até d) se juntam


numa arquitetônica construída sobre a seguinte idéia: a organização do
Estado de direito deve servir, em última instância, à auto-organização
política autônoma de uma comunidade, a qual se constituiu, com o
auxílio do sistema de direitos, como uma associação de membros livres
e iguais do direito. As instituições do Estado de direito devem garantir um
exercício efetivo da autonomia política de cidadãos socialmente
autônomos para que o poder comunicativo de uma vontade formada
racionalmente possa surgir, encontrar expressão em programas legais,
circular em toda a sociedade através da aplicação racional, da
implementação administrativa de programas legais e desenvolver sua
força de integração social – através da estabilização de expectativas e
da realização de fins coletivos. Ao se organizar o Estado de direito, o
sistema de direitos se diferencia numa ordem constitucional, na qual o
medium do direito pode tornar-se eficiente como transformador e
amplificador dos fracos impulsos sociais integradores da corrente de um
462
mundo da vida estruturado comunicativamente .

461
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.212.
462
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.221.
186

Muito embora só se atinja de maneira aproximada os pressupostos


idealistas de uma argumentação, a forma do Direito, por forçar a tomada de
decisões em momentos inequívocos compensa as ineficiências do procedimento.
E esse procedimento faz com que exista sentido em uma separação de funções
do poder, ao dar primazia à legislação democrática e à democratização do poder
comunicativo.

Se o direito deve ser normativamente fonte de legitimação e não simples


meio fático da organização do poder, então o poder administrativo tem
que ser retroligado ao poder produzido comunicativamente. Essa
retroligação do poder administrativo teleológico ao poder comunicativo,
que produz o direito, pode realizar-se através de uma divisão funcional
dos poderes, porque a tarefa do Estado de direito democrático consiste
não apenas em distribuir equilibradamente o poder político, mas também
463
em despi-lo de suas formas de violência através da racionalização .

Habermas inova ao demonstrar que, do ponto de vista da lógica da


argumentação, as instâncias que fazem, aplicam e executam as leis estão regidas
por diferentes lógicas argumentativas em vista de sua função. Em princípio,
somente a função legislativa dispõe de modo plenamente livre dos argumentos
geradores do Direito (essa proposição deve ser interpretada ser perder de vista o
caráter vinculante da Constituição naquilo que é possível construir a partir de suas
normas). Já a função judiciária dispõe da liberdade de reconstruir de maneira
coerente estes mesmos argumentos, enquanto que a Administração, em vista das
normas sugeridas

[...] amarram a persecução de fins coletivos a premissas estabelecidas e


limitam a atividade administrativa no horizonte da racionalidade
pragmática. Elas autorizam as autoridades a escolher tecnologias e
estratégias de ação, com a ressalva de que não sigam interesses ou
464
preferências próprias – como é o caso de sujeitos de direito privado .

Isso não corresponde, por óbvio, a um esquema rígido de divisão de


competências com base nos atores correspondentes. Essa separação de
funções, todavia, não é propriamente o que constitui o Estado de Direito. O
Estado de Direito é, como visto, mais que isso.

Muito embora Habermas não tenha catalogado isso expressamente, é

463
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.235.
464
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.239.
187

possível perceber que a compreensão normativa acerca do Estado de Direito


envolve três pares de princípios, todos co-originários, imbricados e relacionados
dialeticamente entre si:

a) Princípios da autonomia privada e pública: a interação entre privacidade


e publicidade, o que é privado é determinado pelo público e vice-versa, visto em
mais detalhe acima;

b) Princípio discurso e princípio da linguagem jurídica e;

c) Princípio da Democracia e direitos fundamentais.

Sobre b), conforme já abordado mais acima, o princípio da Democracia é


uma adaptação do princípio do discurso (‘D’) analisado em sede da
fundamentação da Moral. Os conteúdos gerados no discurso transformam-se em
Direito, ou seja, assumem a linguagem jurídica. Esta linguagem, conforme já
observado, não se diferencia em termos semânticos da linguagem ordinária, mas
sim por possuir uma série de caracteres pragmáticos diferenciados, frutos de uma
diferenciação histórica. Estes caracteres são

Decisões políticas servem-se da forma de regulamentação do Direito


positivo para tornarem-se efetivos em sociedades complexas. Ante o
médium do direito, porém, deparamos uma estrutura artificial com a qual
se relacionam certas decisões normativas prévias. O direito moderno é
formal porque se embasa na premissa de que tudo o que não seja
explicitamente proibido é permitido. Ele é individualista porque faz da
pessoa em particular o portador de direitos subjetivos. É um direito
coercivo porque sanciona de maneira estatal e estende-se apenas ao
comportamento legal ou conforme as normas – ele pode, por exemplo,
tornar livres as religiões, mas não pode prescrever nenhuma consciência
Moral. É um direito positivo porque retrogradas às decisões –
modificáveis – de um legislador político, e é, finalmente, um direito
escrito por via procedimental, já que legitimado mediante um
465
procedimento democrático .

Existe, desta maneira, um laço conceitual entre os dois princípios, pois um


não existe sem o outro, muito embora, à primeira vista, a dinâmica do discurso e a
estática da positividade se contradigam466. Assim, muito embora na positividade

465
HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro: estudos de teoria política. São Paulo: Loyola,
2002. p.242
466
HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro: estudos de teoria política. São Paulo: Loyola,
2002. p.286-287: “Dessa maneira cria-se uma relação conceitual entre o caráter coercivo e a
modificabilidade do direito positivo, por um lado, e um modo de estabelecimento do direito capaz
188

se exija comportamentos legais, o Direito precisa ser legítimo, pois tem de ser
constituído de modo a que seja possível a obediência por simples respeito. Isso
só é possível quando os destinatários se entendem como feitores da legislação467.

Por fim, a última dialética é travada entre Democracia e direitos


fundamentais. No senso comum, esses dois princípios são contraditórios, visto
que os direitos fundamentais são dados ou por uma autoridade transcendental, ou
uma comunidade abstrata de valores concretos, ou uma constituição apriorística.
Em Habermas, todavia, novamente as identidades se formam a partir de relações
dialéticas entre os princípios. Como já fora observado, os direitos fundamentais
têm de ser, para que adquiram legitimidade, vistos como fruto de um exercício de
autonomia privada e pública dos cidadãos. A criação de direitos fundamentais vai
ser então explicada pela forte legitimação advinda dos conteúdos e processos de
geração desses direitos468, os quais passam a ser incrustados em discursos de
positivação mais estável que a média dos direitos, como a Constituição e as
grandes cartas de reconhecimento dos direitos.

Uma vez estabelecidos os princípios, trata-se agora, infra, de observar de


maneira mais pontual como os fluxos comunicativos transitam em um ambiente
de democracia deliberativa.

de gerar legitimidade, por outro. Por isso, de um ponto de vista normativo subsiste não apenas
uma relação historicamente casual entre a teoria do direito e a teoria da Democracia, mas sim
uma relação conceitual ou interna”.
467
HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro: estudos de teoria política. São Paulo: Loyola,
2002. p.242-243: “É bem verdade que o direito positivo só exige comportamentos legais; no
entanto, ele precisa ser legítimo: embora dê margem aos motivos da obediência jurídica, deve ser
constituído de maneira que também possa ser cumprido a qualquer momento por seus
destinatários, pelo simples respeito à lei. Uma ordem jurídica é legítima quanto assegura por igual
a autonomia de todos os cidadãos. E os cidadãos só são autônomos quando os destinatários do
direito podem ao mesmo tempo entender-se a si mesmos como autores do direito. E tais autores
só são livres enquanto participantes de processos legislativos regrados de tal maneira e cumpridos
sob tais formas de comunicação que todos possam supor que regras firmadas desse modo
mereçam concordância geral e motivada pela razão”.
468
HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro: estudos de teoria política. São Paulo: Loyola,
2002. p.243: “Do ponto de vista normativo, não há Estado de direito sem Democracia. Por outro
lado, como o próprio processo democrático precisa ser institucionalizado juridicamente, o princípio
da soberania dos povos exige, ao inverso, o respeito a direitos fundamentais sem os quais
simplesmente não pode haver um direito legítimo: em primeira linha o direito a liberdades de ação
subjetivas iguais, que por sua vez pressupõe uma defesa jurídica individual e abrangente”.
189

3.6 A Política deliberativa e suas imbricações com a esfera


pública na Gestão Pública Compartida

A criação do Direito depende de condições exigentes “derivadas dos


processos e pressupostos da comunicação”469 racional mediada pelo
procedimento. Essa política, em uma descrição sã da sociedade, enreda-se em
argumentos pragmáticos, morais e éticos, fugindo tanto de uma descrição
“realista”, liberal ou republicana470.

Preliminarmente, pode-se dizer que uma teoria do discurso percebe a


política de maneira mais normativa que o viés liberal – tomado este último como
um ideário estatuidor e defensor de uma separação rígida entre sociedade civil
tomada como mercado e um Estado reputado opressor. Por outro lado, a
Democracia deliberativa não exige, como no republicanismo, uma cidadania
motivada e politizada. Para uma teoria do discurso é essencial a existência de
procedimentos capazes de realizar a ligação entre a linguagem jurídica e as redes
informais de comunicação que formam a esfera pública471.

Essa esfera pública é destituída de sujeitos, i.e., não há classe ou categoria


capitaneadora da sociedade. Pelo contrário, a descentração possibilita o engate
intersubjetivo e a formação de uma opinião “mais ou menos racional”472. O
modelo de política procedimental detecta uma teia de opiniões esparsas que,
através do procedimento, são transformadas em poder comunicativo, os quais
irão, de um modo ou outro, transformar-se em linguagem do Direito e programar o
sistema administrativo473. Esse procedimento produz solidariedade, funcionando

469
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.II. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.9.
470
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.II. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.19.
471
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.II. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.21.
472
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.II. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.22
473
LEAL, Rogério Gesta. Estado, Administração Pública e Sociedade: novos paradigmas. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p.28: “É Habermas que, novamente, vem desenhar os
quarantes desta realidade, ao dizer que desde o modelo mais liberal do Estado de Direito, nós
constatamos que a soberania popular não se encontra mais encarnada no conjunto de cidadão
reunidos em assembléias de forma autônoma e perfeitamente identificáveis, mas ela migra para
190

em paralelo com os outros mecanismos de integração social, como o poder e o


dinheiro. Por outro lado, a transformação das comunicações políticas em Direito
permite a comunicação daquela com todos os demais sistemas sociais, uma vez
que o Direito, na linha de Habermas, é língua franca entre os diferentes sistemas
sociais.

Uma indagação fundamental, ligada com a problemática sobre pluralismo


visto logo atrás, é a de como, através do procedimento474, é possível gerar
solidariedade entre estranhos a partir de uma instituição social criada por decisão
e que pode se modificar a qualquer momento, como o Direito, em uma sociedade
pluralista e descentralizada. Note-se que, como os atos da Gestão Pública
Compartida irão se materializar em Direito (ver, mais adiante, a defesa de atos de
Gestão Pública Compartida como atos administrativos), estes problemas também
dizem respeito diretamente à temática de como é possível legitimar-se políticas
públicas que a todo instante podem modificar-se.

Um procedimento que se pretende inclusivo na pluralidade regula-se, a


partir do princípio do discurso, por uma idéia de que os a) procedimentos são
argumentativos, bem como b) inclusivos e públicos, além da c) necessidade de
não-coação externas e d) internas, ou seja, igual chance de contribuição.
Imperativos políticos exigem ainda que, sob o aspecto da legitimidade, as
discussões possam sempre ser e) revisadas, mas, por outro lado, concluídas, de
modo a possibilitar a ação pelo Direito. Ainda as f) contribuições não estão

outros espaços, verdadeiros círculos de comunicação de instituições e corporações, lócus em que


os sujeitos se encontram despersonificados (sem faces nem corpo definidos). Com esta forma
anônima que o poder se comunica, delimitado pelo sistema jurídico de forma geral, conectando
interesses multifacetados e por vezes antagônicos, é que o Estado Democrático de Direito vai
surigr, como espaço político e jurídico de gestão comunicacional e, pela via do seu corpo
administrativo, desenvolvendo ações políticas de gestão ainda e tradicionalmente forjadas em
manifestações monológicas, não afetas à maturação interlocucional com os demais atores sociais
envolvidos ou alcançados por suas deliberações”.
474
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.II. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.28: “De minha parte, pretendo interpretar o procedimento que legitima
as decisões corretamente tomadas como estrutura central de um sistema político diferenciado e
configurado como Estado de direito, porém, não como modelo para todas as instituições sociais
(nem mesmo para todas as instituições do Estado). Se a política deliberativa assumisse os
contornos de uma estrutura capaz de abranger a totalidade social, o esperado modo discursivo de
socialização do sistema jurídico teria que alargar, assumindo a forma de uma auto-organização da
sociedade, e penetrar na sua complexidade. Ora, isso é impossível, pelo simples fato de que o
processo democrático depende de contextos de inserção que fogem ao seu poder de regulação
[grifos do autor]”.
191

circunscritas e g) as deliberações políticas permitem as contribuições variadas,


inclusive aquelas que se fundam nas formas particulares de vida. Os
procedimentos, mais importante, devem ser sensíveis à esfera pública
espontaneamente formada:

[...] as estruturas de tal esfera pública pluralista formam-se de modo mais


ou menos espontâneo, num quadro garantido pelos direitos humanos. E
através das esferas públicas que se organizam no interior de
associações movimentam-se os fluxos comunicacionais, em princípio
ilimitados, formando os componentes informais da esfera pública geral.
Tomados em sua totalidade, eles formam um complexo “selvagem” que
não se deixar organizar completamente. Devido à sua estrutura
anárquica, a esfera pública geral está muito mais exposta aos efeitos de
repressão e exclusão do poder social – distribuído desigualmente – da
violência estrutural e da comunicação sistematicamente distorcida, do
que as esferas públicas organizadas do processo parlamentar, que são
475
reguladas por processos .

Uma esfera pública em que um procedimento onde a ação comunicativa, e


não a ação irracional ou uma ação instrumental, seja regra, permite a construção
de uma expectativa de racionalidade dos procedimentos em sede de esfera
pública. Isso ocorre uma vez que o fluxo de opiniões é do conhecimento de todos,
torna-se mais difícil que aqueles com intenções duvidosas exponham suas
opiniões.

O modelo de fluxo comunicativo habermasiano utiliza-se da metáfora das


comportas, ou seja, os procedimentos são vistos como procedimentos de abertura
e seleção dos fluxos comunicacionais das periferias, os quais garantem a não-
ocorrência da autoprogramação e do corporativismo.

A esfera pública, como lócus de produção das demandas sociais, não é


uma estrutura normativa e tampouco uma instituição ou organização (vez que não
traz normas ou competências). Desta maneira, “a esfera pública pode ser descrita
como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de
posição e opiniões [grifos do autor]”476, sendo que, nela, os “os fluxos
comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em

475
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.II. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.33.
476
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.II. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.92.
192

opiniões públicas enfeixadas em temas específicos [grifos do autor]”477. As


interações em sede de esfera pública ocorrem a partir da ação comunicativa,
requerendo apenas o domínio da linguagem e pragmática naturais, as quais se
apresentam como não-especializadas e por isso disponíveis ao entendimento
geral. Assim, existe esfera pública em qualquer encontro societal regido por uma
comunicação além da auto-observação recíproca onde se tematizem assuntos a
partir de sua liberdade pública. Isso caminha na conceituação de esfera pública
como abstração e generalização dos foros concretos de atuação política. Nessa
esfera pública se luta por influência, a qual vai se formando a partir do
convencimento acerca das razões.

O público dos sujeitos privados tem que ser convencido através de


contribuições compreensíveis e interessantes sobre temas que eles
sentem como relevantes. O público possui esta autoridade, na qual
478
atores podem aparecer .

A esfera pública não pode ser produzida ao bel-prazer de um ator social


qualquer, porque é a conjunção complexa de vontades negociadas e às vezes
contraditórias. Nesse sentido, a esfera pública pode ser manipulada por um
tempo, mas nunca comprada, porque essa “compra” teria que ser pública.

Por que é uma teia capaz de captar discursos que irão confluir na
transformação em Direito, a esfera pública não pode deixar de se formar a partir
dos contextos das pessoas virtualmente atingidas. Na medida em que os
atingidos confluem em opinião em interações cotidianas em uma esfera privada e
espontânea, determinadas opiniões emergem à esfera pública, tornando-se
disponíveis ao debate479.

477
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.II. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.92.
478
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.II. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.96.
479
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.II. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.97-98: “No início, tais experiências são elaboradas de modo “privado”,
isto é, interpretadas no horizonte de uma biografia particular, a qual se entrelaça com outras
biografias, em contextos de mundos da vida comuns. Os canais de comunicação da esfera pública
engatam-se nas esferas da vida privada – as densas redes de interação da família e do círculo de
amigos e os contatos mais superficiais com vizinhos, colegas de trabalho, conhecidos, etc. – de tal
modo que a orientação pelo entendimento, que prevalece na prática cotidiana, continua valendo
também para uma comunicação entre estranhos, que se desenvolve em esferas públicas
complexas e ramificadas, envolvendo amplas distâncias [grifos do autor]”.
193

A “fronteira” entre esfera pública e esfera privada é cambiável a partir de


condições de comunicação modificadas. De um lado, a intimidade; de outro, a
publicidade – ambas com uma membrana porosa, que puxa uma à outra.

O conceito de sociedade civil, para Habermas, não coincide exatamente


com o de esfera pública ou privada. É, por assim dizer, a própria “membrana” pela
qual os fluxos comunicativos trafegam de um lado a outro, estando ainda
pressionada pelos sistemas de ação específicos do poder e do dinheiro:

A sociedade civil compõe-se de movimentos, organizações e


associações, os quais captam os ecos dos problemas sociais que
ressoam nas esferas privadas, condensam-nos e os transmitem, a
seguir, para a esfera pública política. O núcleo da sociedade civil forma
uma espécie de associação que institucionaliza os discursos capazes de
solucionar problemas, transformando-os em questões de interesse geral
480
no quadro de esferas públicas .

A existência da sociedade civil está ancorada na garantia de direitos


fundamentais, alguns facilmente perceptíveis, como a liberdade de expressão, o
direito de reunião, outros direitos fundamentais, além de, principalmente, o
pluralismo. Obviamente as Organizações da Sociedade Civil sem dúvida
nenhuma protagonizam os debates de hoje em dia, o que, por outro lado, não
autoriza a assunção desses sujeitos como motores da emancipação social, uma
vez que, para Habermas, isso é problema de racionalidade, e não de sujeito481.

A esfera pública, em sociedade complexas, relaciona-se com um número


incontável de arenas de comunicação que se superpõem e que adquirem
identidade a partir de critérios vários como funções, temas, círculos, etc. Em
termos de densidade, Habermas diferencia a esfera pública em três níveis:
episódica (pequenos encontros espontâneos), organizada (encontros de maior
envergadura organizados) e abstrata (produzida pelos meios de comunicação,

480
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.II. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.99.
481
HABERMAS, Jürgen. La necesidad de Revisión de la Izquierda. Madrid: Tecnos, 1996. p.30:
“Incluso los movimientos sociales se convierten hoy en motor de la pluralización e
individualización. Pero la alabanza de la pluralidad, la apología de lo contingente y lo privado, el
elogia de la ruptura y la discontinuidad, de la diferencia y del instante, la rebelión de los márgenes
contra los centros, la apelación a lo extracotidiano frente a la trivialidad, nada de ello puede
convertirse en huida frente a problemas que, si tienen solución, sólo pueden tenerla a la luz del
día, cooperativamente, recurriendo a los últimos arrestos de una solidaridad casi exhausta. Pero
¿qué poden las nuevas mitologías en lugar de autodeterminación y la solidaridad?”
194

difusamente estruturada). Importa dizer que as esferas públicas dificilmente se


especializam de tal maneira a fugir do entendimento cotidiano, de modo que se
torna possível uma ligação conceitual entre todas as esferas públicas e todas elas
parecem compreensíveis umas às outras482.

Dentre os modelos comunicação, Habermas apresenta o modelo de


acesso interno (geração de demandas e julgamento dentro dos poderes
instituídos), acesso externo (geração de demandas internas, mas com
mobilização da esfera pública) e o modelo de iniciativa externa. Habermas prefere
este último. Neste modelo, a iniciativa e a pressão partem de fora do sistema,
confluindo para a seleção de demandas483.

Esse sistema vai ajudar a compreender a solução dada à sobrecarga que


os programas do Estado Democrático de Direito, o qual contraria a
autocompreensão liberal da divisão de funções dentro do Estado Democrático de
Direito. Aliás, conforme Habermas, “a Administração deveria tomar apenas
decisões pragmáticas; no entanto, ela jamais se restringiu a este modelo”484. Essa
sobrecarga da Administração Pública faz com que, se quiser se legitimar, tenha
de abrir-se a discursos de justificação e aplicação. Assim,

Nos casos em que a administração decide, guiada apenas por pontos de


vista da eficiência, convém buscar filtros de legitimação, os quais podem
ser cedidos pelo direito procedimental [...] Uma vez que a administração,
ao implementar programas de leis abertos, não pode abster-se de lançar
mão de argumentos normativos, ela tem que se desenvolver através de
formas de comunicação e procedimentos que satisfaçam às condições
485
de legitimação do Estado de direito [grifos do autor] .

482
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.II. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.107.
483
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.II. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.114: “Em caso normal, os temas e sugestões seguem um caminho que
corresponde mais ao primeiro e ao segundo modelos, menos ao terceiro. Enquanto o sistema
político for dominado pelo fluxo informal do poder, a iniciativa e o poder de introduzir temas na
ordem do dia e de torná-los maduros para uma decisão, pertence mais ao governo e à
administração que ao complexo parlamentar; e enquanto os meios de comunicação de massa,
contrariando sua própria autocompreensão normativa, conseguirem seu material dos produtores
de informações – poderosos e bem organizados – e enquanto eles preferirem estratégias
publicitárias que diminuem o nível discursivo da circulação pública da comunicação, os temas em
geral serão dirigidos numa direção centrífuga, que vai do centro para fora, contrariando a direção
que se origina na periferia social”.
484
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.II. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.184.
485
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.II. Rio de Janeiro:
195

Essas condições do Estado democrático são justamente a abertura


cognitiva em termos de princípio do discurso! Esses mecanismos de participação
não são meramente acessórios à legitimidade da Administração Pública, mas sim
“processos destinados à legitimação de decisões, eficazes ex ante, os quais,
julgados de acordo com seu conteúdo normativo, substituem atos da legislação
ou da jurisdição”486. Isso parece ser um argumento que pode gerar uma
fundamentação suficiente para a necessidade de participação na Administração
Pública.

É nesse sentido que este trabalho vai confluir nas próximas temáticas
abordadas, ao explorar o arcabouço teórico escolhido para enfrentar o tema da
lógica da argumentação. Esta lógica da argumentação é de extrema importância
para a questão da Gestão Pública Compartida, não só por se referir às estruturas
utilizadas para os fins de convencimento em qualquer assunto (por exemplo,
Política ou Direito), mas também porque estará no âmago da argumentação que
se refere à oportunidade de Gestão Pública Compartida, como será visto no
último capítulo.

3.7 A lógica da argumentação e suas aplicações na teoria


jurídica e na Gestão Pública Compartida

Quando da explicitação da matriz habermasiana, fora abordado, no que


toca à aproximação que se faz para o conhecimento, uma idéia de engajamento
performativo, isto é, o abandono de uma posição objetivante para uma
participante da comunicação487. É através dessa posição performativa que vai ser

Tempo Brasileiro, 1997. p.184.


486
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. v.II. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997. p.184-185.
487
HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.
p.6:.Esse sentido performativo de uma ação de fala só é captado por um ouvinte potencial que
assume o enfoque de uma segunda pessoa, abandonando a perspectiva do observador e
adotando a do participante. É preciso falar a mesma linguagem e como que entrar no mundo da
vida, compartilhado intersubjetivamente por uma comunidade lingüística, a fim de poder tirar
vantagens da peculiar reflexividade da linguagem natural e poder apoiar a descrição de uma ação
executada por palavras sobre a compreensão do auto-comentário implícito nessa ação verbal
196

possível a diferenciação entre ação instrumental e comunicativa. Como visto, os


dois tipos de ação têm em vista algum fim. Todavia, a orientação de uma é o
sucesso pessoal através da escolha ótima dos meios para o alcance dos fins,
enquanto que na outra, a comunicativa, se estabelecem planos conjuntos a partir
do entendimento. Uma ação que vise o entendimento tem de levar em conta a
intelegibilidade dos proferimentos, significando que eles tem de ser gerados de
forma passível de entendimento: assim, não basta falar algo, é preciso fazer-se
entender. De outro lado, o entendimento não é causal,

Uma vez que depende do assentimento racionalmente motivado do


ouvinte. Para que possa haver acordo na coisa é preciso que um ouvinte
sele, de certo modo, voluntariamente, através do reconhecimento de
uma pretensão de validez criticável, fins ilocucionarios. Fins
ilocucionarios não podem ser atingidos por outro caminho que não seja o
da cooperação, pois eles não se encontram à disposição do participante
individual da comunicação, do mesmo modo que os efeitos produzidos
488
de modo causal .

Uma ação racional não busca apenas produzir um câmbio na realidade


“objetiva”. O engate intersubjetivo é também subjetivo e social. O engajar-se a
partir de uma comunicação é um efeito ilocucionário. Foi visto também que cada
ato de fala tem uma parte ilocucionária, que é o engate da ação, e uma parte
proposicional, ou de conteúdo. A sentença de conteúdo proposicional, ou seja, a
parte não-ilocucionária dos atos de fala, pode ser assertórica, ou seja, referir-se a
fatos objetivos do mundo ("a rua está esburacada"), e, portanto, ser comprovável
a partir dos métodos das ciências duras489, bem como não-assertórica, ou seja,

488
HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.
p.68.
489
A verdade para Habermas apresenta cunho processual-consensual: "Como alternativa à teoria
ontológica da verdade (teoria da correspondência), Habermas apresenta a "teoria consensual da
verdade". De acordo com ela, só posso atribuir um predicado a um objeto quando qualquer outro,
que pudesse dialogar, também o pudesse aplicar. Portanto, para distinguir sentenças verdadeiras
e falsas é necessária a referência ao "julgamento de outros", a saber, ao “julgamentos de todos os
outros com os quais eu poderia dialogar. A condição de verdade das sentenças é o acordo
potencial de todos os outros. Faticamente, contudo, só posso controlar minhas afirmações por
meio do acordo de muitas pessoas, que devem ser competentes para fazer o julgamento".
HABERMAS, Jürgen. Teoría de La Acción Comunicativa: Complementos y Estudios Previos.
Madrid: Catedra, 1994. p.310. O acordo só é possível em uma situação onde a fala é livre e os
participantes são informados. Tal situação, praticamente impossível na prática, é antecipada
contrafacticamente, para possibilitar o uso de proposições como se fossem verdade (uma vez que
sem o dado "verdade" grande parte das interações não seriam possíveis). A estrutura das
afirmações "objetivas" são muito parecidas, nessa visão, com as estruturas de enunciação de
proposições não-assertóricas, como a fundamentação e aplicação de normas (morais, éticas e
jurídicas), motivo pelo qual a pretensa vantagem de "objetividade" das ciências "duras" sobre as
"moles" se esvai. Enunciados expressivos, contudo, continuam no domínio da subjetividade (muito
197

todas as outras classes de referências ("a norma x é inconstitucional" ou "a


comunidade demanda melhores escolas"). Dadas as condições pós-metafísicas
do conhecimento, não é mais possível postular um acesso monológico à verdade,
daí a necessidade, apontada por Habermas, de as proposições assertóricas
adquirirem estabilidade após seu exame e aceitação discursivas na comunidade.
A questão aqui não é fundamentar o porquê da afirmação anterior, mas apontar o
caminho seguinte: se o acesso à proposição assertórica se dá discursivamente e
de maneira racional, porque então não se considerar racional também outras
proposições construídas discursivamente, como as advindas da racionalidade
prática? É precisamente isso que Habermas faz: ele nivela, em nível de estrutura
epistemológica de argumentação, as proposições assertóricas de verdade e não-
assertóricas de retidão. A construção das proposições assertóricas, i.e., questões
de verdade, será, nesta seção, uma passagem para uma argumentação posterior,
que traça as linhas da argumentação normativa.

Como já fora observado, um proferimento, em geral, além de inteligível,


tem de carregar consigo uma pretensão criticável (porque resgatável, i.e.,
passível de fundamentação) de verdade com relação a seus conteúdos, de
sinceridade com relação à intenção do falante e de correção em relação aos
contextos normativos de fala do aqui e agora. Uma ação comunicativa deixa de
ser ordinária para se tornar discurso quando há uma justificação racional das
pretensões de validade e dos panos-de-fundo escolhidos. O discurso, é, por isso,
crítico. A ideologia representa aquele fragmento do mundo da vida que impede a
tematização racional dos argumentos490, sendo tomada como justificada, quando

embora também se alimentem de representações sociais). "A teoria, segundo Habermas, jamais
pode justificar diretamente a ação política. A preocupação principal é perseguir o "melhor
argumento", e, por essa razão, o problema central da Democracia não é a descoberta de alguma
solução favorável ou de um padrão para classificar valores incomensuráveis; é a formação de um
consenso "pós-convencional" [...] por meio do qual todos os atingidos por uma decisão devem ter
dela participado. Logo, as normas podem ser validadas apenas na medida em que todos os
participantes, em potencial, de um discurso prático concordem com elas". BRONNER, Stephen
Eric. Da Teoria Crítica e seus Teóricos. São Paulo: Papirus, 1997. p.357.
490
HABERMAS, Jürgen. Dialética e Hermenêutica. Porto Alegre: LPM, 1987. p.68-69: "Ora, nós
temos motivo para supor que o consenso de fundo das tradições enraizadas e dos jogos de
linguagem habituais pode ser uma consciência integrada por coação, um resultado de
pseudocomunicação, não só no caso particular dos sistemas familiares perturbados, mas também
em sistemas de sociedade global. A liberdade de movimento de uma compreensão hermenêutica
alargada para a crítica (zur Kritik erweiterten) não pode por isso ficar presa ao espaço de jogo
tradicional das convicções vigentes [...] O esclarecimento (Aufklärung), que produz uma
compreensão radical, é sempre político. Está claro que também a crítica permanece vinculada ao
198

na verdade está pseudo justificada.

Em que sentido se pode falar propriamente na pretensão de validade de


normas? Habermas parte da análise de um fenômeno presente
intuitivamente a qualquer sujeito capaz de ação: quando temos diante de
nós não um objeto, que podemos manipular, mas um sujeito, então,
inevitavelmente, pressupomos sua responsabilidade pessoal, isto é, só
podemos realmente entrar em interação com ele quando supomos que
seja capaz, quando solicitado, de justificar sua ação, ou seja, de que ele
poderia dizer por que, em determinada situação, se comporta assim e
não de outro modo. Efetuamos aqui uma "idealização", que também nos
diz respeito, porque olhamos o outro sujeito com os olhos com os quais
491
olhamos a nós mesmos .

Um sucesso comunicativo vai se estribar em um reconhecimento


intersubjetivo que o falante oferece ao ouvinte, sendo que este último tem de
tomar uma posição, aceitando ou não pragmaticamente a oferta de comunicação.
Nessa aceitação o ator pressupõe validade no proferimento, ou seja, pressupõe
que, se instado, o falante poderá sustentar as pretensões pragmáticas. O
reconhecimento da validez do ato é fala é racional, porque cognoscível. Há,
portanto, duas idealizações contrafáticas: de racionalidade do intérprete e
justificação de sua ação492.

Todavia, tanto os juízos constatativos (afirmativos) quanto os normativos


diferenciam-se dos emotivos e estéticos por estarem vinculados à
intersubjetividade de uma comunidade. Isto é, juízos verdadeiros ou corretos
normativamente independem do sujeito e estão vinculados à práxis comunitária.
Um ato de fala com o conteúdo “sinto-me bem nesta cidade”, vige desde que se

contexto de tradição (Überlieferungszusamenhang) que ela reflete. Frente a uma certeza de si


monológica que arroga só para si a crítica, a objeção hermenêutica de Gadamer tem razão (behält
recht). Para a interpretação (deutung) de hermenêutica profunda não há nenhuma confirmação
fora da auto-reflexão que sucede no diálogo, realizada por todos os participantes interessados. A
partir do status hipotético das interpretações gerais resultam de fato a priori graves restrições na
escolha do modus, segundo o qual cada vez a pretensão imanente de esclarecimento da
compreensão crítica deve ser atendida (eingelöst)".
491
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta Lingüístico-pragmática na Filosofia
Contemporânea. São Paulo: Loyola, 2001. p.305.
492
HABERMAS, Jürgen. Teoría de La Acción Comunicativa: Complementos y Estudios Previos.
Madrid: Catedra, 1994. p.363: “Los participantes entablan com sus actos ilocucionarios
pretensiones de validez y exigem su reconocimiento. Pero tal reconocimiento no necesita ser
irracional porque las pretensiones de validez tienen un carácter cognoscitivo y son suceptibles de
someterse a examen. Por tanto, voy a defender la siguiente tesis: En última instancia, el hablante
puede actuar ilocucionariamente sobre el oyente y éste a su vez actuar ilocucionariamente sobre
el hablante porque las obligaciones típicas de los actos de habla van asociadas con pretensiones
de validez susceptibles de examen cognitivo, es decir, porque la vinculación recíproca tiene un
carácter racional [grifos do autor]”.
199

reconheça a sinceridade do falante, e uma tal questão não seria uma questão de
verdade propriamente, mas sim uma questão de sinceridade. Mas um ato de fala
tal como “o ensino fundamental é um direito público-subjetivo” (ação regulativa)
ou “ainda existem crianças analfabetas” (ação constatativa) necessita de
validação intersubjetiva, isto é, a aceitação de uma comunidade crítica. Não existe
um acesso à verdade e nem um acesso à correção que não seja mediado
lingüisticamente.

Os contextos dos mundos da vida e as práticas lingüísticas nas quais os


sujeitos socializados "desde sempre" se encontram, revelam o mundo da
perspectiva das tradições e costumes instituidores de significados. Os
pertencentes a uma comunidade de linguagem local experimentam tudo
o que ocorre no mundo à luz de uma pré-compreensão "gramatical"
habitual, não com os objetos neutros. A relação retrospectiva da
objetividade do mundo com a intersubjetividade do entendimento entre
participantes da comunicação, suposta no agir e no falar, esclarece as
mediações lingüísticas dos referentes mundanos. Os fatos, que afirmo
sobre um objeto, frente a outros que os podem contradizer, são
defendidos e, em casos aplicáveis, justificados. A necessidade de
interpretação particular resulta em que também não podemos nos
abstrair do seu caráter revelador do mundo, por meio de um emprego
493
descritivo da linguagem .

Mediatamente, então, nas palavras de Habermas, uma proposição


verdadeira funda-se na experiência, mas apenas como enunciação de uma
experiência interior que, para adquirir estabilidade, tem de passar pelo teste
intersubjetivo. O quadro a seguir demonstra o que fora dito:

Condição da Pretensões de validez Intenções Vivências de Base na


Comunicação correspondentes certeza experiência
Não- Discursivas
discursivas
Inteligibilidade Entender algo Certeza não Percepção de
sensível signos
Veracidade Crer em alguém Certeza de fé Experiências
interativas
com pessoas
e suas
emissões ou
manifestações
Retidão Estar X Nenhuma
convencido de (somente direta
algo argumentação)
Verdade Saber Algo X Nenhuma
(dos (somente direta
enunciados) argumentação)

493
HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada. São Paulo:
Tempo Brasileiro, 2002. p.46.
200

Ver, perceber Certeza Percepção de


algo sensível coisas e
X sucessos

Tabela 13 – Condições da comunicação e conteúdos correspondentes 494.

Um argumento que tenha a capacidade de motivar racionalmente um


falante acerca da verdade não pode estar “encostado” em um raciocínio dedutivo
ou lógico, uma vez que estes fecham em si mesmos em circularidade. O
argumento racional gera uma “coação” apenas argumentativa no sujeito. Uma
teoria da argumentação consensual tem de explicar o uso desses argumentos em
discursos que tem a pretensão de serem “universais”, i.e., capazes de uma
adesão universal495, mas que são gestados e testados em contextos factuais bem
específicos496. As dúvidas existentes só poderão ser decididas em um discurso
crítico, mas o resultado da solução dessas dúvidas só poderá estabilizar-se se
estiver bem incrustado em um consenso sólido.

[...] o conceito de discurso racional conserva o status de uma forma de


comunicação privilegiada, que exorta os participantes a uma contínua
descentração de suas perspectivas cognitivas. Os pressupostos de
comunicação normativamente exigentes e incontornáveis da práxis
argumentativa têm sempre o sentido de uma obrigação estrutural que
nos leva a formar um juízo imparcial. Pois a argumentação permanece
como o único meio disponível para se certificar da verdade, porque não
há outra maneira de examinar as pretensões de verdade tornadas
problemáticas. Não existe um acesso direto, não filtrado pelo discurso,
às condições de verdade de convicções empíricas. Com efeito, só se
tematiza a verdade de opiniões abaladas – de opiniões desentocadas da
497
inquestionabilidade das certezas de ações que funcionam .

A verdade de enunciados não está desconectada com a competência dos


críticos, sua atuação e seu procedimento de geração. Esse procedimento há de

494
HABERMAS, Jürgen. Teoría de La Acción Comunicativa: Complementos y Estudios Previos.
Madrid: Catedra, 1994. p.124.
495
HABERMAS, Jürgen. Verdade e Justificação: ensaios filosóficos. São Paulo: Loyola, 2004. p
.255: “Visto que todos os discursos reais, que se desenrolam no tempo, são provincianos em
relação ao futuro, não podemos saber se os enunciados que hoje, mesmo em condições
aproximativamente ideais, são racionalmente aceitáveis se afirmarão também no futuro contra
tentativas de refutação. Por outro lado, esse mesmo provincianismo condena nosso espírito finito
a se contentar com a aceitabilidade racional como uma prova suficiente da verdade [...]”.
496
HABERMAS, Jürgen. Teoría de La Acción Comunicativa: Complementos y Estudios Previos.
Madrid: Catedra, 1994. p.103: ”El asentimiento fáctico de unas cuantas personas a las que me es
posible acceder, podrá contar tanto más con el asentimiento de otros críticos cuanto menos sean
las razones que yo y otros tengamos para dudar de su competencia de juicio”.
497
HABERMAS, Jürgen. Verdade e Justificação: ensaios filosóficos. São Paulo: Loyola, 2004.
p.49.
201

ser o mais hígido, mais racional498 e mais honesto possível a fim de que gere uma
certeza na criticidade dos falantes499.

Un consenso alcanzado argumentativamente es condición suficiente de


resolución o desempeño de pretensiones de validez discursivas si y sólo
si en virtud de las propiedades formales del discurso está asegurado el
paso libre entre los distintos niveles de discurso. Y, ?cuáles son las
cualidades formales que cumplen esa condición? Mi tesis es: las
500
propriedades de una situación ideal de habla .

Isto é, para Habermas, um consenso racional é possível quando há a


possibilidade de uma crítica radical do conhecimento gerado.

Aqui, no nível do discurso racional, o modo performativo caracterizado


por uma suposição incondicional de verdade é posto em suspenso e
transformado na peculiar ambivalência dos participantes de um discurso.
Eles assumem uma atitude hipotética e falibilista em relação a alegações
que, na medida em que são problemáticas, precisam ser justificadas,
mas que, por outro lado, na medida em que pretendem uma validade
incondicional, apontam para além do contexto dado de justificação. Essa
referência transcendente a algo situado no mundo objetivo lembra os
participantes que o conhecimento em pauta surgiu em primeiro lugar do
conhecimento das pessoas enquanto agentes; assim, eles não se
esquecem do papel transitório desempenhado pela argumentação no
contexto mais amplo do mundo vital. A relação intrínseca entre verdade
e justificação é revelada pela função pragmática de conhecimento oscila
entre as práticas cotidianas e os discursos. Os discursos são como
máquinas de lavar: filtram aquilo que é racionalmente aceitável para
todos. Separam as crenças questionáveis e desqualificadas daquelas
que, por um certo tempo, recebem licença para voltar ao status de
501
conhecimento não-problemático .

Mas que tipo de procedimento é este? É apenas neste contexto que é


inserido o famoso conceito habermasiano:

498
HABERMAS, Jürgen. Verdade e Justificação: ensaios filosóficos. São Paulo: Loyola, 2004.
p.104: “Isso não significa que opiniões ou convicções racionais sempre se constituem de juízos
verdadeiros. Quem compartilha concepções que se revelam falsas não é eo ipso irracional;
irracional é quem defende suas opiniões dogmaticamente, se prende a elas mesmo vendo que
não pode fundamentá-las”.
499
APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: o a priori da comunidade de comunicação.
São Paulo: Loyola, 2000. p.480: “Quem argumenta reconhece implicitamente todas as
reivindicações possíveis de todos os membros da comunidade de comunicação que se podem
justificar por meio de argumentos racionais (pois do contrário o anseio da argumentação iria
restringir tematicamente a si mesmo), e ainda se compromete, ao mesmo tempo, a utilizar-se de
argumentos para justificar todos os próprios anseios que dirige aos outros. Além disso, ao meu
ver, os membros da comunidade comunicacional (e isso quer dizer implicitamente: todos os seres
pensantes) também estão obrigados a levar em consideração todas as virtuais reivindicações de
todos os virtuais membros da comunidade – ou seja: todas as “carências” humanas, desde que
seja possível para elas apresentar quaisquer reivindicações para os demais seres humanos”.
500
HABERMAS, Jürgen. Teoría de La Acción Comunicativa: Complementos y Estudios Previos.
Madrid: Catedra, 1994. p.153
501
HABERMAS, Jürgen. A Ética da Discussão e a Questão da Verdade. São Paulo: Martins
Fontes, 2004. p.62-63.
202

Mi tesis es pues: la anticipación de una situación ideal de habla es lo que


garantiza que podamos asociar a un consenso alcanzado tácticamente la
pretensión de ser un consenso racional. Al propio tiempo, esa
anticipación es una instancia crítica que nos permite poner en cuestión
todo consenso tácticamente alcanzado y proceder a comprobar si puede
considerarse indicador suficiente de un entendimiento real [grifos do
502
autor] .

Trata-se de uma idealização contrafática (tais como as de que existe


tempo, espaço, continuidade, causalidade e auto-causação, etc.) que permite
uma visão crítica do contexto. Situação ideal de fala é uma comunicação que está
livre tanto das contingências restritivas da liberdade temática externas à situação
como às internas (ideologias, crenças, etc.)503. Os postulados que regulam a idéia
de situação ideal de fala giram em torno da idéia de universalização. O primeiro
postulado é: todo o participante deveria ter a mesma oportunidade de empreender
atos de fala, como discurso, réplicas e respostas. O segundo é a universalização
para todos os tipos de temáticas. Os falantes devem ter a mesma liberdade não
só de crítica, mas também de emitir atos expressivos, a fim de realizar a
confiança entre os atores. Do mesmo modo, os atores têm de ter a mesma
liberdade de realizarem atos regulativos, a fim de praticarem a liberdade de ação
que leva à verdade. Em Habermas, todavia, existem analogias entre
proferimentos assertóricos e não-assertóricos. Assemelham-se em sua estrutura
argumentativa. Ambos são racionais e advêm de convencimentos recíprocos
entre os participantes, cujos resultados são estabilizados a partir da
intersubjetividade. Habermas supera, assim, tanto a posição positivista-metafísica
de um acesso não comunicativo ou monológico à verdade, bem como a visão

502
HABERMAS, Jürgen. Teoría de La Acción Comunicativa: Complementos y Estudios Previos.
Madrid: Catedra, 1994.p.105.
503
THOMPSON, John B. Critical Hermeneutics: a study in the thought of Paul Ricoeur and
Jürgen Habermas. Cambridge University Press: New York, 1990. p.201: “Habermas maintains that
the ideal speech situation is a necessary presupposition of linguistic communication. The argument
in support of this thesis may be reconstructed in seven steps:
(1) The process of communication implies that it is possible for at least two subjects to come to
an agreement about a state of affairs.
(2) To come to an agreement implies that it is possible to distinguish between a genuine and a
deceptive agreement.
(3) A genuine agreement is an agreement induced by the force of argument alone.
(4) The force of better argument prevails if and only if communication is not hindered through
external and internal constraints.
(5) Communication is not hindered through internal constraints if and only if for all potential
participants there is a symmetrical distribution of chances to select and employ speech-acts.
(6) A situation in which there is a symmetrical distribution of chances to select and employ
communicative, constative, representative and regulative speech-acts is an ideal speech situation.
Therefore, the process of communication implies the possibility of an ideal speech situation”.
203

decisionista de racionalidade prática. Não é qualquer decisão que vale, mas sim
uma decisão racional, e a decisão racional implica várias coisas. Note-se que aqui
o círculo argumentativo que vem desde o primeiro capítulo vai se fechando, pois
agora já é possível dizer com certeza que um discurso prático é racional, como
analisá-lo, bem como quais são as condições institucionais mínimos para que os
procedimentos de tomada de decisões em sede de Gestão Pública Compartida
ocorra de maneira a gerar legitimidade. Já foram observados rapidamente quais
são as condições epistemológicas para que se gere uma decisão racional no que
toca a questões de verdade. Falta examinar a estrutura argumentativa e
epistemológica das questões de retidão, as quais serão imprescindíveis para a
fundamentação de um regime jurídico da Gestão Pública Compartida. Note-se, no
quadro abaixo, diferenças entre os dois tipos de discursos:

Etapas de Discurso teórico Discurso prático


radicalização
Ações Afirmações Mandados/proibições
Fundamentações Explicações teoréticas Justificações teóricas
Crítica da linguagem Modificações do Modificações no sistema
sistema de linguagem ético/político
conceitual
Autoreflexão Crítica do Tomada de decisões
conhecimento coletivas

Tabela 14 – Radicalização dos discursos504

Na tabela acima é possível perceber outras diferenças entre um discurso


teórico-constatativo e um discurso prático. Em termos de o que se faz a partir de
um discurso, o discurso teórico-constatativo é afirmativo, enquanto que um
prático, por óbvio, é regulativo. Em termos de fundamentação de um discurso
teórico, a problemática está na adequada interpretação e criação de hipóteses
teóricas que funcionem na maior parte possível de casos de uma mesma família,
enquanto que um discurso prático tem por problemática a universalização de
soluções de coordenação da ação. A crítica, no primeiro caso, se faz a partir de
novos esquemas lingüísticos, enquanto que no segundo caso, a modificação dá-
se a nível cultural/institucional. A autoreflexão discursiva, por fim, reside em uma

504
HABERMAS, Jürgen. Teoría de La Acción Comunicativa: Complementos y Estudios Previos.
Madrid: Catedra, 1994. p.152.
204

radicalização da crítica do conhecimento acerca de algo no caso de um discurso


teórico, enquanto que no discurso prático a crítica social dar-se-ia pela
modificação das estruturas em conjunto (democraticamente).

Sob o aspecto do mundo da vida as questões também são diferentes.


Enquanto que em um discurso teórico-verdadeiro existe uma “ancoragem” nas
sensações geradas por um mundo que se supõe existente independentemente
dos sujeitos, no que toca ao discurso regulativo isto não existe: o mundo social é
construído tal qual as preferências dos participantes; é completamente
contingente, ao contrário do mundo objetivo, onde a contingência é encontrada na
interpretação das sensações, mas não no mundo em si. Isso vai se refletir na
consciência da fabilidade das referências que se colocam diante do sujeito:

Given its relation to action, Moral knowledge of how things should go in


the social world is influenced differently by history from empirical
knowledge of how things do go in the objective world. The fallibilism that
characterizes all knowledge, and hence also the fruits of Moral
discourses of justification and application, amounts to the
acknowledgment of the critical potential of superior future knowledge, that
is, of history in the shape of our own unforesseable learning processes.
The specific reservation that expresses itself in the fact that we take well-
grounded norms of action to be prima facie valid only in a provisional
sense can indeed be explained in terms of limitedness of our knowledge
505
but nor in terms of its fallibility [grifos do autor] .

Sob o aspecto da orientação à cognição, estados de coisas “existem”,


enquanto que normas são convicções acerca do que tem de ser feito506. Daí
porque Habermas falar que a assertibilidade idealmente justificada basta à
correção, ao contrário da verdade, que precisa ter algum nexo, lingüístico, por
óbvio, ao mundo objetivo. A decepção que o ator sofre com seu saber mal-
formulado também é diferente: ao passo que uma ação referenciada por um saber
teórico provocará um fracasso em termos de sucesso, i.e., um cálculo errôneo em
uma dada estrutura provocará o desmoronamento do mesmo, o fracasso em
termos regulativos será objeto de uma crítica advinda da comunidade em forma
de uma regulação que não serve mais por um dado motivo, e que, por isso, tem
de ser modificada. Constata-se, a partir de uma construção intersubjetiva, algo em

505
HABERMAS, Jürgen. Justification and Application: Remarks on Discourse Ethics. Cambridge:
Mit press, 2001. p.39.
506
HABERMAS, Jürgen. Verdade e Justificação: ensaios filosóficos. São Paulo: Loyola, 2004.
p.269
205

um mundo objetivo tomado como ontológico; o mundo social, ao contrário, se


constrói e se recicla a partir de sua retidão/inadequação a partir dos próprios
participantes507, e não uma natureza objetiva que se recusa a agir conforme o
prognóstico tomado em termos de discurso veritativo508. Um discurso normativo
permite a sensibilização para as razões do outro, provoca solidariedade; tal não é
possível em discurso teórico no que toca ao referencial objetivo, pois é impossível
convencer a natureza a portar-se de um outro modo para que os sucessos sejam
alcançados. Note-se que, prima facie, é impossível uma codificação binária para
os argumentos morais, pois eles terão de ser decididos em algum momento/lugar,
mas, os que forem considerados inadequados, não serão, por isso, excluídos
como mero erro, ao contrário de uma proposição que diga que a Terra não é
redonda, por exemplo. O correto só vai existir depois do procedimento
argumentativo, sob a égide uma decisão legítima.

A argumentação racional orientada à correção, conforme visto


anteriormente, pode ser enfocada a partir da Moral, da Ética e do Direito, sendo
que os dois primeiros enfoques acabam por influenciar o último, o qual conta
também com acordos pragmáticos. As normas que retrocedem a um
procedimento racional de formação possuem uma força obrigatória que advém da
convicção. Depois, dependendo do caso, pode esta convicção ser reforçada em
forma de sanção Moral ou jurídica:

The internal connection between norms and justifying grounds constitutes


the rational foundation of normative validity. This can be confirmed at the
phenomenological level by the corresponding sense of obligation. Duties
bind (binden) the will but do no bend (beugen) it. They point the will in a
certain direction and give it orientation but do not compel it as impulses
do; they motivate trough reasons and lack the impulsive force of purely
empirical motives. Hence the empirist notion that norms obligate only to
the extent that they are baked up by well-founded expectations of

507
GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e Diferença: Estado Democrático de Direito a partir
do Pensamento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p.121: “A correção normativa,
por sua vez, não pode ser verificada no mesmo sentido que a verdade. Não se trata, aqui, de
verificar as proposições normativas, comparando-as com a “realidade” ou de verificá-las por meio
de “experimentos”. O que podemos averiguar é apenas as razões que as sustentam, o que nunca
pode ser feito de forma definitiva e absoluta. Por isso, qualquer tentativa de identificar as duas
pretensões representa uma forma contemporânea de Positivismo, assim como representa uma
forma contemporânea de Positivismo utilizar elementos do mundo objetivo (e, portanto, de
proposições com pretensão de verdade) para decidir sobre questões normativa (que se referem ao
mundo intersubjetivo e, em outros termos, à Moral e ao Direito)”.
508
HABERMAS, Jürgen. Verdade e Justificação: ensaios filosóficos. São Paulo: Loyola, 2004.
p.303.
206

sanctions neglects the fundamental intuition that the noncoercive binding


force is transferred from the validity of a valid norm to the duty and the
act of feeling obligated. Only the affective reactions to the violation and
the perpetrator – resentment, outrage, and contempt – are expressed in
509
the sanctions that result from transgressions of norms .

É possível analisar a estrutura dos argumentos quanto à sua aceitabilidade


racional. Já foi observado que os discursos normativos prático-morais regem-se
por um princípio de universalização e do discurso. Este princípio do discurso,
quando se trata de normativas jurídicas, transmuda-se em princípio democrático,
o qual se engata com a linguagem jurídica. A materialização do princípio do
discurso submete-se a exigências diferentes conforme as pretensões de validade
defendidas.

Em um enfoque performativo, o mundo social existe para aqueles que o


defrontam. As regulações, quando legitimamente formatadas, adquirem um status
de existência510 enquanto repositório acessível performativamente. Neste sentido,
as sanções são o indício de uma normatividade vigente, e não a própria
constituição dessa normatividade511.

Uma situação discursiva permite o contato com o outro. O contato com o


outro tem a função de, ao mesmo tempo, criar solidariedade, possibilitar a
aprendizagem, gerar legitimidade e solucionar a melhor resposta através da livre
flutuação dos argumentos512. Só o contato com o outro permite a assunção da

509
HABERMAS, Jürgen. Justification and Application: Remarks on Discourse Ethics.
Cambridge: Mit press, 2001. p.41.
510
HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada. São Paulo:
Tempo Brasileiro, 2002. p.61-62: "Em tais jogos de linguagem normativos, os atores se
relacionam, sobre o conteúdo afirmativo de suas asserções, também naturalmente com algo no
mundo objetivo, mas apenas de um modo acidental. Mencionam as circunstâncias e as condições
de sucesso das ações que exigem, solicitam, aconselham, censuram, desculpam, prometem, etc.
Mas se relacionam diretamente às ações e normas como "algo no mundo social". Entendem as
ações reguladas por normas, sem dúvidas, não como fatos sociais, que criam por assim dizer um
recorte no mundo objetivo. Da perspectiva objetiva de um observador sociológico, "há" também
certamente "no mundo", ao lado das coisas físicas e estados mentais, expectativas normativas,
práticas, costumes, instituições e regulamentos de todos os tipos. Mas os atores engajados
assumem in actu uma outra posição em relação à rede de suas interações reguladas
normativamente, a saber, a posição performativa de um destinatário que podem apenas "se
defrontar" com as normas, porque as reconhece como obrigatórias".
511
HABERMAS, Jürgen. Justification and Application: Remarks on Discourse Ethics.
Cambridge: Mit press, 2001. p.41-42: “But the violation of legitimate expectations, to which these
feelings are reactions, already presupposes the validity of the underlying norms. Sanctions
(however much they internalizes) are not constitutive of normative validity; they are symptoms of
an already felt, and thus antecedent, violation of a normatively regulated context of life”.
512
HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada. São Paulo:
207

orientação comunicativa e o abandono da racionalidade instrumental513.

A situação perante a qual os participantes asseguram-se de uma decisão


legítima é análoga à situação de ideal de fala, e tem de ser tão mais rigorosa
quanto mais universais forem as pretensões da norma a ser criada. Esses
espaços de geração de normas têm de materializar o princípio do discurso como
liberdade de participação, atribuição de sinceridade aos participantes, ausência
de coerções, liberdade temática, seriedade das contribuições, seriedade na
execução das decisões, possibilidade de reunião, livre fluxo de informações,
etc514. – enfim, liberdades de comunicação. Habermas aponta a contradição de
condições ideais de comunicação que nunca serão completamente atingidas515,
mas que, por outro lado, não podem deixar de serem pressupostas, uma vez que
contraria o saber intuitivo dos participantes que uma decisão que tenha de
vincular a todos não tenha sido regida por uma situação ótima de fala. Os
participantes sabem que, diante da impossibilidade de um cidadão participar, de
ter havido coação, ou o quer que seja, não será possível atribuir a legitimidade
necessária à norma em questão. É assim também com as decisões advindas da
Gestão Pública Compartida. Sem a abertura de tais espaços, mesmo que a
Administração fosse extremamente eficaz, dificilmente serão atingidos os níveis
aspirados de legitimidade.

Tempo Brasileiro, 2002. p.66: "Quando o processo de argumentação não deve perder o seu
sentido, a forma de comunicação dos discursos deve ser constituída de tal modo, que todos os
esclarecimentos e informações os mais relevantes possíveis sejam verbalizados e de tal forma
ponderados, que a tomada de posição do participante possa ser motivada intrinsecamente apenas
através da capacidade revisora dos fundamentos flutuando livremente".
513
HABERMAS, Jürgen. Justification and Application: Remarks on Discourse Ethics.
Cambridge: Mit press, 2001.p.15-16: “Moral-practical discourse detaches itself from the orientation
to personal success and one’s life to which both pragmatic and ethical reflection remain tied. But
norm-testing reason still encounters the other as an opponent in an imaginay – because
counterfactually extended and virtually enacted – process of argumentation. Once the other
appears as a real individual with his own unsubstitutable will, new problems arise. This reality of
the alien will belongs to the primary conditions of collective will formation”.
514
HABERMAS, Jürgen. Justification and Application: Remarks on Discourse Ethics.
Cambridge: Mit press, 2001.p.31: “Anyone who seriously engages in argumentation must
presuppose that the context of discussion guarantees in principle freedom of access, equal rights
to participate, truthfulness on the part of participants, absence of coercion in adopting positions,
and so on. If the participants genuinely want to convince one another, they must make the
pragmatic assumption that they allow their “yes” and “no” responses to be influenced solely by the
force of the better argument”.
515
HABERMAS, Jürgen. Justification and Application: Remarks on Discourse Ethics.
Cambridge: Mit press, 2001. p.55-56: “We know at least intuitively that certain of these
presuppositions cannot be fulfilled under normal empirical restrictions, yet we must nevertheless
assume that these idealizing presuppositions are sufficiently fulfilled”.
208

Every speaker knows intuitively that an alleged argument is not a serious


one if the appropriate conditions are violated – for example, if certain
individuals are not allowed to participate, issues or contributions are
suppressed, agreement or disagreement is manipulated by insinuations
516
or by the threat of sanctions, and the like .

Assim, uma situação de geração de atos vinculados tem de pressupor


determinados conteúdos pertinentes ao princípio “D” para que seja possível a
formação de um conteúdo racional e uma adesão à norma em termos de
legitimidade.

As quatro pressuposições [nota do autor: pressuposições da


comunicação regida pelo melhor argumento]: (a) publicidade e inclusão:
ninguém que, à vista de uma exigência de validez controversa, possa
trazer uma contribuição relevante, deve ser excluído; (b) direitos
comunicativos iguais: a todos são dadas as mesmas chances de se
expressar sobre as coisas; (c) exclusão de enganos e ilusões: os
participantes devem pretender o que dizem; e (d) não-coação: a
comunicação deve estar livre de restrições, que impedem que o melhor
argumento venha à tona e determine a saída da discussão. Os
pressupostos (a), (b) e (d) estabelecem as regras do processo de
argumentação de um universalismo igualitário, que tem por
conseqüências, considerando as perguntas morais-práticas, que os
interesses e orientações de valores de cada envolvido sejam
considerados igualmente. E porque nos discursos práticos os
participantes são simultaneamente os envolvidos, assume o pressuposto
(c) que, considerando as perguntas teórico-empíricas, exige
exclusivamente uma ponderação correta e imparcial dos argumentos, o
significado adicional de estar aberto hermeneuticamente e de ser
sensível contra o auto-engano criticamente, tanto em relação à
autocompreensão como referentemente à compreensão dos mundo dos
517
outros .

Somente quando as condições de assertibilidade mínima são atingidas


torna-se possível a verificação do erro e a aprendizagem posterior518. O processo
de argumentação permite o progressivo alargamento de temas e participantes519:

516
HABERMAS, Jürgen. Justification and Application: Remarks on Discourse Ethics.
Cambridge: Mit press, 2001.p.56.
517
HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada. São Paulo:
Tempo Brasileiro, 2002. p.67
518
HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada. São Paulo:
Tempo Brasileiro, 2002. p.68:"O processo de argumentação é um procedimento autocorretivo no
sentido de que, por exemplo, fundamentos para a liberalização "atrasada" do regulamento e da
condução da discussão, para a alternação de um círculo de participantes não suficientemente
representantivo, para uma ampliação da agenda ou um aperfeiçoamento da base da informação
resultam dele mesmo, do decorrer de uma discussão pouco satisfatória".
519
HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada. São Paulo:
Tempo Brasileiro, 2002. p.70: "A validade de tais normas "consiste" no reconhecimento universal
que as normas ganham. Porque as exigências de validez morais falham em relação às conotações
ontológicas que são características para as exigências de verdade, a orientação para o
alargamento do mundo social, portanto a inclusão sempre mais ampla de exigências e pessoas
209

Como sempre também a imagem de uma comunidade de comunicação


idealmente alargada (Apel) que, sob condições de conhecimento ideais
(Putnam), diante de um auditório ideal (Perelman) ou em uma situação
de fala ideal (Habermas), consegue um acordo fundamentado, induz ao
erro, não permanecemos de modo algum poupados de idealizações
semelhantes. Então, a ferida que uma exigência de verdade tornada
problemática na prática cotidiana escancara, deve ser curada nos
discursos que, ou através de evidências "concludentes" ou através de
argumentos "convincentes", podem ser finalizados de uma vez por todas.
[...]. Convincente é o que pode ser aceito como racional. A aceitabilidade
racional depende de um procedimento que não protege "nossos"
argumentos contra ninguém nem contra nada. O processo de
argumentação como tal deve permanecer aberto para todas as objeções
relevantes e para todos os aperfeiçoamentos das circunstâncias
520
epistêmicas .

Habermas apropria-se das construções de Toulmin para os fins de


reconstruir a estrutura argumentativa do argumento. Isto é um passo a mais na
resolução do mistério da comunicação e do convencimento, vez que Habermas já
elucidara a tanto a estrutura do ato de fala quanto da ação. Um argumento, teria,
assim, a seguinte estrutura básica, comum tanto a discursos normativos quanto
veritativos.

Discurso teórico- Discurso prático


empírico
(c) Conclusão Afirmações Mandados/valorações
Pretensão de validez Verdade Retidão
O oponente exige Explicações Justificações
(D) Dados Causas (em caso de Razões
sucessos)
Motivos (em caso de
ações)
(W – warrant) Regularidades Normas ou princípios de
Garantias empíricas, hipóteses ação, valoração
legaliformes, etc.

estranhas, se coloca no lugar dos referentes do mundo objetivo. A validez de uma afirmação Moral
tem o sentido epistêmico de que seria aceita, sob condições ideais de justificação. Entretanto,
quando a "correção Moral" esgota seu sentido como aceitabilidade racional, diferentemente de
como "verdade", nossas convicções morais devem permitir finalmente, a partir do potencial crítico
do auto-ultrapassamento e da descentralização que é construído com a "perturbação", uma
antecipação idealizadora na prática da argumentação - e na autocompreensão de seus
participantes".
520
HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada. São Paulo:
Tempo Brasileiro, 2002. p. 59.
210

(B - backing) Relação Observações, Necessidades


com o mundo da vida constatações interpretadas,
conseqüências da ação,
etc.

Tabela 15 – Componentes básicos de um argumento521

Os “Dados” aparecem em ligação com a “Conclusão”. Em um argumento


invariavelmente eles irão aparecer. Assim, “a comunidade busca, através de seus
canais autorizados, um serviço médico mais amplo” tem-se dados e conclusões,
que, no exemplo, aparecem fundidos. A conclusão é a busca por serviços
médicos mais amplos; os dados, em uma posição objetivante pode ser a
constatação de que houve uma demanda, mas aqui o que interessa é a
performativa, o que vai se ligar às razões levantadas pela demanda. No caso,
estão implícitas.

Já temos, portanto, uma distinção a partir da qual podemos começar:


entre a alegação ou a conclusão cujos méritos estamos procurando
estabelecer (C) e os fatos aos quais recorremos como fundamentos para
522
a alegação – que chamarei de nossos dados (D) .

É necessário, de outra banda, estabelecer a ligação entre C e D. Isto é feito


pelas garantias, ou W:

“[...] dados do tipo D nos dão o direito de tirar as conclusões C (ou de


fazer as alegações C)”, ou, noutra formulação optativa, “dados (os
dados) D, pode-se assumir que C” [...] Chamarei as proposições desse
tipo de garantias (W) [...] a garantia é, num certo sentido, incidental e
explanatória, com a única tarefa de registrar, explicitamente, a
legitimidade do passo envolvido e de referi-lo, outra vez, na classe maior
523
de passos cuja legitimidade está sendo pressuposta .

No exemplo, uma das garantias possíveis seria “temos direito a isso pela
Constituição”. Um argumento seria razoável se D passasse por B e W. B tem de
ser um motivo para considerar plausível W524. Note-se que, em linguagem

521
HABERMAS, Jürgen. Teoría de La Acción Comunicativa: Complementos y Estudios Previos.
Madrid: Catedra, 1994. p.142.
522
TOULMIN, Stephen Edelston. Os Usos do Argumento. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
p.140.
523
TOULMIN, Stephen Edelston. Os Usos do Argumento. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
p.141-143.
524
HABERMAS, Jürgen. Teoría de La Acción Comunicativa: Complementos y Estudios Previos.
Madrid: Catedra, 1994. p.143: “Afirmación necesitada de explicación (C): el agua de este puchero
se dilata. Explicación (D): está recibiendo calor. Fundamentación mediante una hipótesis
211

científica das ciências duras, há um processo de universalização quando se


passa de B a W. Todavia, a garantia, por si só, não gera a coação não-violenta
necessária ao convencimento se ela mesma não estiver estribada em algo.
Toulmin passa a falar, então, do Backing, ou seja, a relação com o mundo da
vida.

Mas no momento em que perguntamos sobre o apoio em que uma


garantia se baseia, em cada campo, começam a aparecer grandes
diferenças; o tipo de apoio que precisamos apontar se tivermos de
estabelecer a autoridade de uma garantia mudará muitíssimo, cada vez
525
que mudarmos de um campo de argumento para outro [...] .

No caso, uma das hipóteses possíveis poderia ser a decisão gerada na


Constituição a partir da histórica deficiência em atendimento à saúde no Brasil.
Especificamente, o discurso normativo ainda tem mais uma complexidade a ser
notada, a sua estrutura binária.

Para Klaus Günther e Habermas, o dogmatismo tão específico dos juristas


reside não só na crença a priori da validade de determinadas normas, mas
também, e é aqui que interessa ao caso, em uma sensibilidade deficiente para as
nuanças que se apresentam:

Chamamos uma ação de correta porque é o resultado da aplicação


correta (adequada) de uma norma correta (válida). Esta não é
manifestação em favor de um “dogma do pressuposto”, já que, ao ser
aplicada nos sinais característicos da situação, a validade fáctica da
norma é relativizada, ao ser fundamentada nos interesses de todos os
implicados. O dogmatismo não consiste na existência de normas que
sejam aplicadas, mas em uma determinada postura autoritária diante do
pleito de validade de normas e uma sensibilidade deficiente diante de
sinais característicos de um contexto de aplicação. Diferentemente da
proposta de Wellmer, a Ética do discurso não mantém normas
implicitamente no horizonte de compreensão em dada situação, mas faz
do seu pleito de validade novamente o tema da fundamentação, para
526
além da aplicação adequada em uma situação [grifos do autor] .

A teoria do discurso descobriu estas falhas527. É possível postular, para a

legaliforme (W): (una serie de constataciones sobre la covarianza reiteradamente observada entre
magnitudes como el volumen, la temperatura y el peso de los cuerpos)!”.
525
TOULMIN, Stephen Edelston. Os Usos do Argumento. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
p.149.
526
GÜNTHER, Klaus. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral: justificação e aplicação.
São Paulo: Landy, 2004. p.93.
527
HABERMAS, Jürgen. Justification and Application: Remarks on Discourse Ethics.
Cambridge: Mit press, 2001.p 36: “Discourse ethics has learned from this and makes a careful
distinction between the validity – or justice – of norms and the correctness of singular judgments
212

sensibilidade à diferença, uma fenomenologia da racionalidade prática em dois


estágios. Uma coisa é a imparcialidade que se expressa em um procedimento de
justificação que se projeta para o futuro e para todos a partir de situações
imagináveis. Esta operação pragmática, contudo, não dá conta da variedade de
situações que surgem diante de uma norma já justificada528. Em realidade, a
impossibilidade da previsão de todos os casos futuros é constitutiva para a própria
norma, a qual indica o que é bom ou justo para a comunidade que a adota para
todas as situações do futuro, mesmo as não previstas. Daí porque o sistema de
Günther e Habermas ser estruturado duplamente, vez que é necessário mais um
processo de generalização, agora voltado a todas situações relevantes possíveis
da situação, regidas por um juízo de “aplicabilidade”529. Esse juízo de
aplicabilidade “takes on the role played by the principle of universalization in
justificatory discourses. Only the two principles taken together exhaust the idea of
impartiality”530.

É possível, então, distinguir discursos de justificação de normas e


discursos de aplicação. Os discursos de justificação são regrados pelo princípio
do melhor interesse de todos, enquanto que a aplicação é o discurso que,
percebendo a complexidade da base de fato, escolhe a melhor a norma e a
melhor interpretação, tornando coerente o ordenamento. Isso ocorre porque a

that prescribe some particular action on the basis of a valid norm. Analytically, “the right thing to do
in the given circumstances” cannot be decide by a single act of justification – or within the
boundaries of a single kind of argumention – but calls for a two-stage process of argument
consisting of justification followed by application of norms”.
528
HABERMAS, Jürgen. Justification and Application: Remarks on Discourse Ethics.
Cambridge: Mit press, 2001. p.13: “Valid norms owe their abstract universality to the fact they
withstand the universalization test only in a decontextualized form. But in this abstract formulation,
they can be applied without qualification only to standart situations whose salient fesatures have
been integrated from de outset into the conditional components of the rule as conditions of
application. Moreover, every justification of a norm is necessarily subject to the normal limitations
of a finite, historically situated outlook that is provincial in regard to the future. Hence a forteriori it
cannot already explicitly allow for all of the salient features that at the same time in the future will
characterize the constellations of unforeseen individual cases”.
529
HABERMAS, Jürgen. Justification and Application: Remarks on Discourse Ethics.
Cambridge: Mit press, 2001. p.13-14: “For this reason, the application of norms calls for
argumentative clarification in its own right. In this case, the impartiality of judgment cannot again be
secured through a principle of universalization; rather, in addressing questions of context-sensitive
application, practical reason must be informed by a principle of appropriateness (Angemessenheit).
What must be determined here in which of the norms already accepted as valid is appropriate in a
given case in the light of all relevant features of the situation conceived as exhaustively as
possible”.
530
HABERMAS, Jürgen. Justification and Application: Remarks on Discourse Ethics.
Cambridge: Mit press, 2001. p.37.
213

própria pretensão de validade normativa pode se desdobrar nestas duas


orientações: “in terms of the rationally motivated assent of all potentially affected
that a valid norm earns and in terms of the totality of possible situations to which
the norm capable of commanding assent in this manner can be applied”531.

Para a fundamentação é relevante exclusivamente a própria norma,


independentemente de sua aplicação em cada uma das situações.
Importa se é do interesse de todos que cada um observe a regra, visto
que uma norma representa o interesse comum de todos e não depende
de sua aplicação, mas dos motivos que conseguimos apresentar para
que ela tenha de ser observada por todos como uma regra. Em
contraposição, para a sua aplicação cada uma das situações é relevante,
não importando se a observância geral também contempla o interesse
de todos. Em vista de todas as circunstâncias especiais, o fundamental e
se e como a regra teria de ser observada em determinada situação. Na
aplicação devemos adotar, “como se estivéssemos naquela situação”, a
pretensão da norma de ser observada por todos em toda situação (isto é,
como uma regra), e confrontá-la com cada uma de suas características.
O tema não é a validade da norma para cada um, individualmente,
tampouco para os seus interesses, mas a adequação em relação a todas
532
as características de uma única situação .

Uma aplicação competente da lei tem de perceber, para os fins de


coerência com o ordenamento e para uma aplicação imparcial não uma operação
prévia de purificação de fatos e normas, mas, pelo contrário, há de se ter no
horizonte todas as situações de fato relevantes, pena de cair-se em uma outra
espécie de dogmatismo ou em uma insuficiente prestação jurisdicional pela falta
de consideração de uma questão relevante533.

A prática da consideração dos vários aspectos que têm relevância para a

531
HABERMAS, Jürgen. Justification and Application: Remarks on Discourse Ethics.
Cambridge: Mit press, 2001. p.36.
532
GÜNTHER, Klaus. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral: justificação e aplicação.
São Paulo: Landy, 2004. p. 70. E continua: “A decisão a respeito da validade de uma norma não
implica qualquer decisão a respeito de sua adequação em uma situação, e vice-versa. Contudo,
ambas representam respectivamente um determinado aspecto da idéia de imparcialidade: a
exigência das conseqüências e dos efeitos colaterais, previsivelmente resultantes da observância
geral de uma norma, para que os interesses de cada um individualmente possam ser aceitos por
todos em conjunto, operacionaliza o sentido universal-recíproco da imparcialidade, enquanto que,
complementarmente a isto, a necessidade de que, em cada uma das situações de aplicação,
considerarem-se todas as características, operacionaliza o sentido aplicativo. Ao combinar ambos
os aspectos entre si, aproximamo-nos do sentido completo de imparcialidade, como se fosse por
caminhos bifurcados”. GÜNTHER, Klaus. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral:
justificação e aplicação. São Paulo: Landy, 2004. p.71.
533
GÜNTHER, Klaus. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral: justificação e aplicação.
São Paulo: Landy, 2004. p.23: “Ao deixarmos ao acaso o ato de escolha das características
relevantes em uma dada situação, tanto a ação como a reação correm o risco de serem avaliadas
inadequadamente. Nesse caso, sempre dependerá de disposições individuais fortuitas e de
circunstâncias especiais para avaliarmos corretamente uma situação”.
214

questão tem o condão de lançar novas luzes para a problemática da


interpretação, percebendo a individualidade do caso em direção à satisfação do
direito à boa aplicação legal:

[os contextos concretos] “recontextualizam” a norma, extraída do seu


contexto, quanto à sua validade, à luz de um interesse comum, ligando a
sua aplicação à consideração adequada de todos os sinais
característicos especiais de qualquer situação nova que surja no espaço
e no tempo. Desse modo, emerge uma dinâmica que a cada
circunstância acrescenta uma surpreendente quantidade de aspectos,
nuanças ou mudanças imprevistas ao conteúdo semântico de diversas
normas aplicáveis, obrigando a modificações, restrições ou
deslocamento de pesos, a fim de, por aproximação, fazer jus à pretensão
534
de uma consideração adequada de todos os sinais característicos .

Esse juízo de consideração dos sinais característicos faz com que se


revise os juízos anteriores, possibilitando a aprendizagem.

Por intermédio da confrontação com novas experiências em situações de


aplicação, aprendemos a reconhecer normas até então consideradas
adequadas na inadequação relativa, e a mudá-las em vista de sinais
característicos recém-descobertos ou interpretados de modo diferente.
Como, certamente, nunca conseguiremos descobrir todos os sinais
característicos, uma “lacuna” permanecerá, mesmo quanto
reconhecermos, na situação, uma norma como adequada e
representante de um interesse comum. Porém, a dramaticidade dessa
indefinição estrutural, a qual acabamos de apontar acima, reduz-se se
diminuirmos a sua extensão e incorporarmos a possibilidade de tal
lacuna nas nossas reflexões práticas, mediante uma combinação de
535
fundamentações racionais e de aplicações feitas com sensibilidade .

Mas que sinais característicos são relevantes para o caso? O que, afinal,
tem de ser examinado? A resposta é: todos os sinais característicos para a
situação536. A seleção dos fatos é que justamente servirá para a concretização da
norma, daí a importância deste momento que geralmente passa desapercebido
pelos juristas. Mas o que são sinais característicos para a aplicação? São todos

534
GÜNTHER, Klaus. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral: justificação e aplicação.
São Paulo: Landy, 2004. p.79.
535
GÜNTHER, Klaus. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral: justificação e aplicação.
São Paulo: Landy, 2004. p.73.
536
GÜNTHER, Klaus. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral: justificação e aplicação.
São Paulo: Landy, 2004. p.114: “A relação de uma norma com todos os demais aspectos de uma
circunstância precisa ser definida, de novo, em cada situação de aplicação, porque não é possível
prever a alteração de constelações de sinais característicos. Evidentemente, a opção por uma
determinada norma sujeita à aplicação passa novamente a ser seletiva, e essa seletividade é
reforçada ainda mais pelo fato de que a norma, a ser aplicada, precisa ser não apenas adequada
à situação, mas, para ser fundamentada, requer também representar um interesse geral.
Entretanto, a seleção pode ser considerada adequada, se tiver sido precedida da consideração de
todos os sinais característicos da situação de aplicação [grifos do autor]”.
215

os fatos relevantes para o deslinde do caso. Esses sinais relevantes serão objeto
de fundamentação acerca do porquê de sua escolha como sinal relevante, bem
como serão objeto de relacionamentos entre si537 e, finalmente, de sua coerência
com a norma e da relação dos fatos com a norma a partir do resto do
ordenamento.

A referência a um determinado sinal peculiar situacional é, portanto,


nesse caso, também uma linha singular de argumentação carecedora de
justificação. Com a afirmação de relevância especifica-se um sinal
característico situacional (ou uma quantidade de sinais peculiares) com
significância normativa, ou seja, ele é introduzido na quantidade de
razões que justificam uma ação. Como será que essa decisão
selecionadora poderá ser justificada? Apontar para uma norma aplicável,
neste estágio de argumentação, somente será suficiente para repetir a
afirmada relevância da quantidade de sinais característicos
selecionados. Se o oponente quiser contestá-la, deverá indicar outros
sinais característicos da situação. Se o proponente pretender perseverar
na sua afirmação, deverá oferecer razões para refutar outros sinais
peculiares. Com a afirmação de relevância, portanto, sempre se estará
pleiteando também a própria capacidade de se fundamentar por que
todos os demais sinais característicos da descrição situacional não
538
entram em questão .

Essa argumentação aproxima-se da idéia de coerência e integridade de


Ronald Dworkin, o qual postula ser necessário examinar não só todas as normas
pertinentes à questão, mas também todos os fatos relevantes, gerando uma
decisão que coerente com o resto do ordenamento539. Assim, toda a gama de

537
GÜNTHER, Klaus. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral: justificação e aplicação.
São Paulo: Landy, 2004. p.344. “Justamente porque uma seleção desse sinal característico da
realidade factual, e não daquele outro sinal, sempre se vincula à determinação de um significado,
esta decisão selecionadora deverá ser justificada considerando-se todos os outros sinais
característicos situacionais”.
538
GÜNTHER, Klaus. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral: justificação e aplicação.
São Paulo: Landy, 2004. p.346.
539
A coerência com o sistema jurídico seria atingida a partir de uma interpretação construtiva das
referências legais. O intérprete, ao mesmo passo que deve tentar seguir, ao máximo, o que o
Direito preceitua, por outro lado, tem um papel fundamental, “criativo”, na atualização do
ordenamento. Compara Dworkin a prática da interpretação com a redação de um livro coletivo:
várias são as pessoas que escrevem o livro coletivo. O autor do presente capítulo deve tentar
seguir coerentemente todo o resto do livro, atualizando-o de maneira criativa, em uma corrente do
Direito, ou chain of law: “Decidir casos controversos no Direito é mais ou menos como esse
estranho exercício literário. A similaridade é mais evidente quando os juízes examinam e decidem
casos do Common Law, isto é, quando nenhuma lei ocupa posição central da questão jurídica e o
argumento gira em torno de quais regras ou princípios de Direito “subjazem” a decisões de outros
juízes, no passado, sobre matéria semelhante. Cada juiz, então, é como um romancista na
corrente. Ele deve ler tudo o que outros juízes escreveram no passado, não apenas para descobrir
o que disseram, ou seu estado de espírito quando o disseram, mas para chegar a uma opinião
sobre o que esses juízes fizeram coletivamente, da maneira como cada um de nossos
romancistas formou uma opinião sobre o romance coletivo escrito até então. Qualquer juiz
obrigado a decidir uma demanda descobrirá, se olhar nos livros adequados, registros de muitos
casos plausivelmente similares, decididos há décadas ou mesmo séculos por muitos outros juízes,
216

normas presentes em um sistema de normas que se faz coerente em discursos


de justificação não perdem sua validade, mas sim são “inaplicáveis” conforme o
caso; não concorrem entre si, pelo contrário, mantém sua validade neste nível, a
não ser que tais normas não sejam justificáveis540.

Essa dupla estrutura da argumentação normativa vai de encontro às


noções principiológicas de algumas vertentes contemporâneas, notadamente
àquelas mais ligadas ao constitucionalismo contemporâneo. De fato, em
Habermas, as normas não são sopesadas e otimizadas por que isto implicaria em
dois problemas: a) sopesar princípios significa confundir discursos de justificação
e aplicação, e b), significa atribuir aos princípios um juízo meramente axiológico, e
não deôntico. Quanto a a): o Direito é justificado enquanto sistema coerente de
normas que são fundamentadas a partir de uma base de fatos disponível no
momento mas que, em seu dado ilocucionário, projetam-se para o futuro para os
casos não previstos. Essa coerência é construída tanto na justificação mesma das
normas quanto em processos posteriores, como a interpretação através de uma
ciência jurídica ou pelos tribunais, mormente o controle constitucional. Esta
coerência dá-se também em nível de regras e princípios, não-hierarquizados a
priori, e cuja distinção é altamente controversa541. Pois bem, o processo de

de estilos e Filosofias judiciais e políticas diferentes, em períodos nos quais o processo e as


convenções judiciais eram diferentes. Ao decidir o novo caso, cada juiz deve considerar-se como
parceiro de um complexo empreendimento em cadeia, do qual essas inúmeras decisões,
estruturas e convenções e práticas são a histórica; é seu trabalho continuar essa história no futuro
por meio do que ele faz agora. Ele deve interpretar o que aconteceu antes porque tem a
responsabilidade de levar adiante a incumbência que tem em mãos e não partir em alguma nova
direção. Portanto, deve determinar, segundo seu próprio julgamento, o motivo das decisões
anteriores, qual realmente é, tomado como um todo, o propósito ou o tema da prática até então".
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio.São Paulo: Martins Fontes, 2000. p.237-238.
540
HABERMAS, Jürgen. La necesidad de Revisión de la Izquierda. Madrid: Tecnos, 1996. p.85:
“La interpretación de una norma aplicable a estas o aquellas situaciones tiene por fin justificar de
tal suerte la primacía de esa norma como la única pertinente o adecuada, que no se viole el ideal
de un sistema coherente de normas válidas. Aquella norma, que a la luz de una descripción lo más
completa posible de todos los rasgos relevantes de una situación de aplicación aparece como la
“adecuada”, no priva de validez a otras normas que inicialmente competieron con ella para ser
aplicadas a ese caso, pero que después quedaron en segundo plano como inadecuadas; antes
bien, la elección de la norma adecuada se presente como resultado de la mejor teoría de todas las
normas vigentes, que en cada caso quepa articular. La interpretación de un caso a la luz de la
norma a la que se ha dado la primacía aparece entonces, no como la realización óptima de un
bien jurídico que compite con otros bienes jurídicos, sino que más bien significa la utilización
óptima de un sistema de normas vigentes habida cuenta de todas las circunstancias del caso”.
541
GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e Diferença: Estado Democrático de Direito a partir
do Pensamento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p.171: “Como Esser já
observara, não é a maior ou a menor generalidade que distingue o princípio da regra. Na verdade,
a generalidade não é um critério adequado para a distinção, porque, apesar de muitas vezes os
217

aplicação, como visto, implica a seleção dos fatos relevantes e a adequação da


norma mais apropriada ao caso. As normas podem concorrer na medida em que,
selecionados os fatos relevantes, ambas parecem incidir. Ocorre que dizer que as
duas normas incidem, umas com mais intensidade que outras, é fazer pouco caso
do sistema jurídico e das decisões anteriores, além de um erro categorial. Isso
porque não se leva a sério o fato de que aquelas normas ali já foram justificadas
e, por isso, não cabe refazer este juízo a um nível argumentativo completamente
diferente, já que se estará a julgar a norma a partir do caso concreto – cuja lógica
é a da adequação. Estar-se-ia invertendo o procedimento chave da compreensão
do Estado do Direito, i.e., primeiramente se procederia à adequação do fato à
norma, para depois justificá-la, e não o procedimento natural, de primeiramente
justificar-se a norma perante a comunidade com pretensões universais para
depois buscar uma aplicação imparcial e complexa:

Por exemplo, na análise de um contrato, a cláusula pacta sunt servanda


pode levar, obviamente, a soluções distintas do princípio rebus sic
stantibus. Portanto, os dois princípios representados nesse exemplo não
podem ser ambos aplicados, de modo compatível, em algumas
situações. Há toda uma construção da doutrina para tentar estabelecer
tal compatibilidade onde ela é, de fato, impossível. Na verdade, ao
contrário dos livros, a prática dos operadores jurídicos lhes ensina que
essa que essa aplicação universal dos princípios é irrealizável. É fácil
observar isso em um processo judicial. Quando uma das partes alega
um princípio para defender sua pretensão, a outra contra-argumenta
mostrando que aquele princípio, por qualquer razão, não pode ser
aplicado àquele caso. Portanto, ao contrário do que pressupõe esta
teoria, um princípio não é uma norma que se aplica em qualquer
542
circunstância .

Obviamente que isto não refuta interpretações criativas. O que Habermas e


Günther parecem querer advertir é a generalização da atividade interpretativa a
partir de um ceticismo com relação à comunicação das normas bem como um

princípios serem normas com elevado grau de abstração, eles não se formam por um processo de
generalização (ou de abstração) crescente. Por exemplo: o princípio federativo, adotado pela
Constituição Brasileira, seria uma generalização de quê? O princípio da legalidade generaliza
quais normas? De outro lado, existem regras excessivamente genéricas, se entendermos
generalidade como abstração, ou seja, como ”conduta tipo”, quer dizer, a qualidade de prescrever
uma conduta cujo conteúdo é genérico, como o tipo constante do art. 12 da Lei Antitóxicos (Lei
6.368/76), que não corresponde a uma situação concreta particularizada. Esse não pode ser,
portanto, o critério adotado. Não se nega com isso que, na maioria das vezes, os princípios
possuam maior grau de generalização. O que se quer dizer é que a generalidade não é uma
causa, mas, quando muito, uma conseqüência do conceito de princípio, e não diferencia
essencialmente, mas só geralmente as duas categorias”.
542
GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e Diferença: Estado Democrático de Direito a partir
do Pensamento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p.172.
218

ceticismo com relação ao valor deontológico daquelas. Isso leva ao argumento b).
Ocorre que, pela visão de Alexy, a otimização e o sopesamento levam a um juízo
de preferência na adequação. Isto, já foi visto, é um erro categorial, pois confunde
justificação e aplicação. Mas, talvez pior, levam à axiologização das normas.
Veja-se bem: Habermas e Günther aceitam plenamente que o Direito seja
motivado por valores. Todavia, uma vez estatuído, ele não pode sofrer uma
equivalência aos valores, uma vez que estes expressam um bem que pode ser
preferido entre os demais543. É constitutivo para uma sociedade que busque, a
partir do princípio “D” supracitado, que estes discursos sejam efetivos
deontologicamente, ou seja, se aliem à tradição que acompanha a linguagem
jurídica, ou seja, uma linguagem deontológica, onde as normas valem prima facie
para a sociedade, e não são preferíveis umas às outras dependendo do juízo do
julgador. Normas, uma vez reconhecidas como tais, mesmo que advenham de
valores, adquirem, a partir de sua inserção na linguagem jurídica, uma coloração
de fundamentação definitiva até que outra a derrogue, daí porque não serem
valores a serem sopesados e mixados ao bel-prazer do intérprete. Como se não
bastasse isso, os princípios estão ligados aos pilares do ordenamento, consta na
tradição constitucional, reconhecida e aceita na Constituição de 1988, um valor de
justiça nos princípios, a qual, como visto, assume tons de rigorosa fundamentação
universal544.

Ao contrário, uma fundamentação deontológica (com base em normas,


e, em nosso caso, em princípios) da ação pressupõe, de modo direto,
não uma fundamentação histórica (que tenha em vista aquilo que é bom
para aquela comunidade), mas uma fundamentação que leve em conta a
correção normativa, que pressupõe exatamente a possibilidade de se
fundamentar em termos racionais definitivos (que para Habermas quer
dizer tão-somente universais), ainda que de forma responsável, uma

543
GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e Diferença: Estado Democrático de Direito a partir
do Pensamento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p.179: “Habermas entende
que a maneira pela qual Alexy concebe as leis de colisão e de ponderação implica uma concepção
axiologizante do Direito, pois a ponderação, nos moldes pensados pela teoria dos princípios
jurídicos como mandados de otimização, só é possível porque podemos preferir um princípio a
outro, o que só faz sentido se os concebemos como valores, pois é apenas porque são
concebidos como valores é que os seres podem ser objeto de mensuração pela preferibilidade,
constitutiva do próprio conceito de valor [...]”.
544
HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada. São Paulo:
Tempo Brasileiro, 2002. p.63: "Diferentemente da validez de verdade das afirmações descritivas, o
domínio de validez de uma exigência de correção varia com o pano de fundo legitimador, assim
como, em geral, com os limites de um mundo social. Unicamente mandamentos morais (e normas
do Direito que, como por exemplo, os direitos do homem, são por si só justificados moralmente)
exigem validez absoluta como asserções, isto é, reconhecimento universal".
219

determinada ação. Isso quer dizer, em outras palavras, que quem


procura fundamentar uma ação com base em valores, procura aquilo
“que é bom para nós”, enquanto aquele que procura fundamentar uma
ação com base em normas (e em especial em princípios), procura aquilo
545
que é “universalmente correto [grifos do autor]” .

A integridade do Direito vai demandar que discursos de justificação de


normas construam o sistema jurídico de forma coerente e legítima. Não é
possível, por outro lado, a formação de hierarquias a priori de princípios, a não ser
que tal seja possível a partir de uma fundamentação ainda em nível de
justificação546. Já que o Direito vai ser um dos veículos de planejamento das
políticas públicas, a questão acerca da operacionalização dos discursos é
fundamental. Na Gestão Pública Compartida pode-se vislumbrar tanto discursos
de justificação quanto de aplicação, de modo que a temática não é fortuita. O
tema voltará à baila mais adiante.

No próximo capítulo, construir-se-á uma tentativa de operacionalização


desses discursos dentro da Administração Pública. Para tanto, será abordado um
conceito preliminar de Gestão Pública Compartida, as condições para que se
torne possível a Gestão Compartida, as tipologias (ou seja, os tipos que a Gestão
Compartida pode ser dividida), bem como fenômenos afins (isto é, fenômenos
semelhantes, mas que não se confundem com a Gestão) e, finalmente, o regime
jurídico da Gestão Pública Compartida.

545
GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e Diferença: Estado Democrático de Direito a partir
do Pensamento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p.181-182.
546
GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e Diferença: Estado Democrático de Direito a partir
do Pensamento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p.189. “Portanto, se tivermos
em mente a exigência de Integridade do direito (que se cumpre, antes de mais nada, de forma
interpretativa), os princípios devem ser concebidos como direitos decorrentes do pluralismo
constitutivo das sociedades contemporâneas, que não podem ser nem enumerados previamente a
uma situação especifica, nem hierarquizados em qualquer circunstância, e que podem
excepcionar a aplicação de outros direitos, vez que, não podendo permanecer em concorrência
uns com os outros no caso concreto, se desejamos respeitar a Integridade do Direito, às vezes
não podem ser contemporaneamente aplicados. Portanto, antes que uma questão de avaliação
(valores), a questão é hermenêutica, acerca do que é relevante para atingir uma decisão justa
(vale dizer, que respeite a Integridade) no caso concreto”.
220

4 A CONSTRUÇÃO DA IDÉIA DE GESTÃO PÚBLICA


COMPARTIDA EM UMA PERSPECTIVA
HABERMASIANA

4.1 Gestão Pública Compartida: aproximações


preliminares

O intento desta seção é apontar as reflexões preliminares acerca da


Gestão Pública Compartida. Aqui o texto dá uma guinada criativa, vez que não
estará mais preso à reconstrução das idéias dos autores trabalhados, daí por
que as citações e notas de rodapé não serão mais recorrentes. Note-se,
todavia, que todo e qualquer conceito aqui presente será tomado já na acepção
que fora descrita nos capítulos anteriores.

No primeiro capítulo foram estabelecidos os conceitos fundamentais. No


segundo, fora realizada a descrição da Administração Pública sob vários
enfoques, notadamente o de Max Weber, da dogmática administrativista e de
Habermas. Pode-se concluir pelo predomínio, na compreensão
administrativista, de um lado, de simplismos metafísicos, mas, de outro, e é o
que importa (e aí reside o perigo), um predomínio da racionalidade
instrumental. Este predomínio é causa e resultado de uma concepção
decisionística de Administração Pública, i.e., não faz parte das reflexões
racionais o estabelecimento dos fins (atos de império). A razão está resumida à
busca científica dos melhores meios administrativos para atingir aqueles fins
(atos de gestão), pois o acordo com relação a fins não seria racional. No
primeiro capítulo, todavia, fora defendida a idéia de que a defesa de pretensões
221

de validade é condição suficiente para o estabelecimento de uma racionalidade


comunicativa. De fato, tomar decisões em meio ao pluralismo de valores não é
algo irracional. Todavia, é necessária a assunção de algumas condições
prévias. Em sede de Direito, essas condições prévias implicam um
entrelaçamento entre o princípio do discurso e o princípio da linguagem
jurídica, este último fruto de uma evolução histórica. Habermas demonstra –
pelo menos é a opinião do autor deste trabalho – que só é possível uma
normatização quando os destinatários das normas possam se sentir como seus
autores. Nas condições pós-tradicionais, isto é ainda mais delicado, vez que
não é possível apoiar-se em consensos de valores de fundo, daí a ênfase na
democratização dos procedimentos de geração de decisões. Dada as
peculiares condições de complexidade na contemporaneidade, já não é mais
tão simples organizar os poderes como os iluministas o imaginaram. Como as
diretrizes gerais presentes na Constituição e nas leis esparsas demandam
concretização através de atos administrativos, tanto a quantidade quanto a
profundidade destes só se tem feito crescer, diante da limitação da lei como
elemento organizador. I.e., a lei, enquanto norma geral emanada por um
parlamento, não tem, dada seus caracteres de generalidade e emanação
formal e lenta, capacidade de dar conta da materialização das políticas
públicas. Daí por que Habermas postula a reprodução dos processos de
seleção de demandas e tomadas de decisão dentro da Administração mesma.
É neste contexto sócio-político que se insere a problemática da Gestão Pública
Compartida. A Gestão Pública Compartida terá de prover instrumentos teóricos
capazes de reproduzir a nível administrativo toda a complexidade que envolve
a produção da legislação. Esta é uma proposição que, a partir de agora, dá-se
como definitivamente fundamentada.

A idéia é plantar aqui algumas discussões preliminares, para depois


retomá-las mais adiante. A questão principal é a definição preliminar. Trata-se,
aqui, do oferecimento de uma determinada hermenêutica da regulação que se
tem diante de si. A primeira é questão é: está-se a descrever um determinado
espectro de fenômenos ocorrentes do mundo da vida a partir de uma dada
matriz teórica ou se trata da defesa de um determinado ideário também a partir
de uma dada matriz teórica? O diagnóstico de fatos, sem dúvida nenhuma,
resume-se a uma compreensão de algo a partir da matriz habermasiana. Note-
222

se que, ao falar-se em descrição e compreensão, por óbvio, não se está a


pretender um acesso não-lingüístico aos fatos, bem pelo contrário. Todavia, o
que se falar em termos de Gestão Pública Compartida sem dúvida nenhuma
terá forte cunho normativo. Isso porque é possível perceber indícios em dadas
instituições jurídicas, como convênios entre Estado e organizações não-
governamentais, dentre outros fenômenos, que somente serão um exemplo de
Gestão Pública Compartida no momento em que, em primeiro lugar, exista uma
teoria da Gestão Pública Compartida e, em segundo lugar, se perceba estes
indícios como um exemplo de Gestão Pública Compartida. Assim, para fechar
o argumento, quando se falar em Gestão Pública Compartida, estar-se-á
falando em um ideário político-jurídico-social-filosófico fortemente normativo,
mas que se baseia em uma reconstrução de comunicações sociais já vigentes.

Com relação à perspectiva disciplinar diante da qual se observa o


fenômeno, a Gestão Pública Compartida é aqui reconstruída pelos parâmetros
transdisciplinares, i.e., não existe um ponto de vista específico ou privilegiado
diante do qual se possa descrever o fenômeno, vez que se tenta examinar a
questão de um só fôlego pelo aspecto sociológico, jurídico e filosófico. Outras
observações, por exemplo, uma observação estética, esotérica e econômica,
seriam possíveis, mas não são relevantes para os fins deste trabalho, e
tampouco haveria espaço e tempo para tanto. Isto significa em termos práticos
a não diferenciação de perspectivas quando da defesa das pretensões aqui
levantadas. Todavia, faz-se necessário estipular quais são as perspectivas
observacionais.

Como os fenômenos sociais em geral, existe a interferência da dupla


hermenêutica, ou seja, a hermenêutica da hermenêutica. Aqui podemos
traduzir – com reservas – para linguagem e metalinguagem. Ocorre que por
Gestão Pública Compartida, à semelhança do Direito, tanto poderemos
designar uma linguagem objeto quanto uma metalinguagem. De fato, não é
possível, nos termos deste trabalho, superar esta dicotomia, mas antes atenuar
suas falhas. Como linguagem-objeto teremos o fenômeno da participação
comunitária na Gestão Pública Compartida e, como metalinguagem, a
descrição dos parâmetros desta participação. Falar-se em Gestão Pública
Compartida é, ao mesmo tempo, trabalhar com a participação comunitária na
223

Gestão Pública Compartida e da teoria que estuda esta peculiar participação.


Esta diferenciação é de fácil de entendimento e restará implícita, conforme o
contexto. Importa dizer, contudo, que as interações entre as duas observações
são profundas. Isso porque, em sendo um conceito ainda em suas construções
iniciais, as construções efetuadas em sede de ciência ainda tem muito a
informar a prática cotidiana. Sob outra perspectiva, e este é argumento mais
trivial, o esquema teórico que a teoria proporciona ao participante condiciona,
como se sabe, a observação sobre a coisa, pois é sob o saber que o mundo da
vida disponibiliza ao participante que este tem acesso ao mundo. Note-se que
se reservou a aplicação do esquema linguagem-objeto/metalinguagem. É que
não se guardou as descobertas clássicas deste esquema, pelo contrário:
ambas dão-se a partir da linguagem ordinária, o acesso a ambas tem de ter um
mínimo de performatividade e, na passagem para a metalinguagem, não se
tenta abstrair ou purificar nada (o que não exclui a realidade que um enfoque
em certos dados omite outros). Na verdade, pode-se também retomar a idéia
de dupla hermenêutica de Habermas e Guiddens, sendo a linguagem-objeto o
nível hermenêutico 1 e a metalinguagem o nível hermenêutico 2. Não há
retrocesso ao infinito por que esta descrição está ligada à práxis social, onde
existem apenas atores que participam e atores que observam, muito embora
estes últimos tenham de assumir a perspectiva dos primeiros para entender
algo. De outra banda, existe uma terceira possibilidade, esta sim parecendo dar
alguma luz ao problema, que é a do esquema pragmática empírica – situação
de fala. Habermas falara em termos de pragmática universal, ou seja, as
condições universais para a formação de entendimentos comunicativos a partir
de atos de fala. Em um instituto social e jurídico específico, esses atos de fala
adquirem caracteres peculiares seja pelo seu contexto, seja pela sua estrutura,
daí porque se falar em uma pragmática empírica que se debruça sobre os atos
de fala de uma situação específica, reconstruindo o saber performativo e, no
caso, dado a forte conexão com uma teoria do Estado Democrático de Direito,
adquire um cunho normativo de emancipação, o qual se revela na preocupação
com o livre fluxo de temas.

Podemos elaborar o seguinte quadro teórico acerca dos significados


preliminares da Gestão Pública Compartida:
224

Perspectiva Linguagem-objeto ou nível Metalinguagem ou nível


disciplinar/enfoque hermenêutico 1 ou situação hermenêutico 2 ou
metodológico pragmática de fala pragmática empírica

Sociológica Seleção e materialização de Análise da eficácia e


demandas sociais legitimidade das demandas

Política Decisões vinculantes a partir Liberdades políticas,


da pluralidade de opções engajamentos e
procedimentos para a
seleção e materialização das
demandas sociais

Filosófica Realização de uma Descrição das condições


orientação pragmática, Ética fundamentais para a
e Moral de uma comunidade comunicação

Jurídica Processos de formação de Análise das condições


atos administrativos jurídicas para a formação de
um ato administrativo válido
conforme o ordenamento
jurídico

Tabela 16 – Significados preliminares

Poder-se-ia adicionar aqui outras perspectivas disciplinares quaisquer,


como, por exemplo, uma perspectiva estética, ecológica, esotérica ou
econômica. Que estas perspectivas e muitas outras estão ligadas à questão,
isto não há a menor dúvida. Mas aqui fora efetuado um juízo de relevância para
o deslinde do trabalho, que conta também com limites de cognoscibilidade do
autor, tempo e espaço.

O porquê de uma proposição estar relacionada a um ou outro enfoque


ficará sem resposta, devido à forte necessidade de fundamentação que uma tal
pergunta poderia requerer. Todavia, as proposições estão alicerçadas nas
225

perguntas características das respectivas tradições. Uma boa descrição da


Gestão Pública Compartida terá cruzar todas estas informações. Por ora, isto
ficará para mais adiante, uma vez que é necessário reconstruir outras
categorias antes de atingir este ponto principal. Antes, todavia, é necessário
dizer porque aquelas proposições são proposições relevantes.

Em vista da proposição, a qual já se deu por comprovada, de que a


Administração assume cada vez mais tarefas, as quais transcendem a mera
materialização de comandos normativos e, por isso, é inerente à auto-
compreensão de comunidades que adotam o Estado Democrático de Direito a
reprodução da seleção de demandas em nível administrativo, tem-se, sob a
perspectiva disciplinar sociológica, necessidade de se examinar a eficácia e
legitimidade de demandas sociais. Isto é uma pragmática empírica de uma
situação onde se selecionam e se materializam demandas sociais, i.e, para
existir Gestão Pública Compartida, é necessário deparar-se com uma situação
onde se selecionem e se materializem demandas sociais; se ali isto não existir,
está-se diante de um outro fenômeno qualquer. É preciso dizer como se
selecionam estas demandas para verificar se é possível a geração de
legitimidade. Fora observado, durante a fundamentação do Direito, que a
legitimidade de uma norma advém da possibilidade de retroceder-se à criação
racional e discursiva por seus destinatários. Uma questão preliminar é se, ao
falar-se em Gestão Pública Compartida, está-se falando em Direito. Esta é uma
questão respondida logo abaixo, mas, agora, a hipótese é que sim. Então a
perspectiva sociológica, ao examinar o processo de seleção e materialização
de demandas, tem de verificar se essas normas são legítimas, e verificar se
essas normas são legítimas significa, principalmente, compreender seu
processo de criação. Falou-se também em eficácia da materialização das
demandas. Esta proposição pode ser dividida em duas: a) eficácia
instrumental; b) eficácia comunicativa. A eficácia instrumental da materialização
de demandas sociais – provisoriamente esta proposição vai ser tomada por
políticas públicas – pode ser legitimamente observada pelo prisma da
racionalidade instrumental e estratégica, não no seu aspecto de não-
publicidade, mas no aspecto cognitivo, de geração de meios eficazes para
atingir determinados fins. Estes critérios são específicos e não podem ser
abordados nos termos gerais deste trabalho, aparecendo ligados a disciplinas
226

específicas da Administração, Sociologia, Pedagogia, etc. O outro aspecto da


eficácia a ser analisado sociologicamente é o da eficácia da comunicação nos
atos de fala, mormente em seus dois aspectos, locucionário e ilocucionário.
Cabe à perspectiva sociológica prover instrumentos capazes de verificar se os
atores estão se entendendo sob o prisma da intelegibilidade, mas se também
estão conseguindo coordenar a sua ação, isto é, se está havendo um engate
ilocucionário desde a esfera pública até o último ato que materializa uma
política pública. Esta última questão é muito interessante: pode-se imaginar a
complexa cadeia de comunicações que vai desde a esfera pública, a
formatação de demandas sociais, a procedimentalização, a juridificação, a
política pública e a sua concretização. Essa complexidade é propícia à
formação de ruídos que impedem a comunicação, e que tem de serem
identificados. No mais, pode até haver uma obrigação jurídica de se levar em
conta a ilocução alheia, mas isto é para mais adiante.

Se a Gestão Pública Compartida vai estar ligada ao Direito, não se sabe


como ainda, bem como está referida a demandas sociais e políticas públicas
dentro de organizações políticas, trata-se da tomada de decisões importantes e
significativas para a sociedade, bem como a concretização de medidas já
justificadas de igual quilate. Uma perspectiva política tem de dar-se conta que
se está diante, então, de decisões vinculantes para uma dada comunidade. Em
princípio, não se deve interpretar comunidade ou sociedade em algum termo
mais específico, é necessário deixar isto para mais adiante. Mas a pragmática
empírica tem de dar-se conta que estas seleções dar-se-ão em uma situação
tanto de pluralidade de opções e também de uma pluralidade de concepções.
Ou seja, partindo da proposição já citada, se se quer reproduzir a seleção de
demandas e materializá-las, isto vai ocorrer a partir da tomada de decisões
vinculantes para uma dada comunidade a partir de uma pluralidade de opções.
Trata-se de perceber os processos de encadeamentos comunicativos que vão
desde uma esfera pública até a materialização das diretrizes administrativas. A
pragmática empírica que assume cores normativas tem de descrever este
processo de geração de decisões vinculantes a partir de uma pluralidade de
opções a partir das possibilidades, do conteúdo e do uso que os participantes
fazem de suas liberdades políticas. É necessário que existam possibilidades
como também liberdades. Assim, falta definir duas coisas: que se diga quais
227

são estas liberdades políticas, e esta é uma questão filosófica, bem como se
protejam estas liberdades, as quais assumem a faceta de direitos, o que é uma
questão jurídica. Todavia, repetindo, o aspecto propriamente político da
pragmática empírica da Gestão Pública Compartida é o exame das condições
em que se dão os engajamentos políticos na esfera pública, preservando o
acesso desta ao poder administrativo, e fundamentando a maneira pela qual
isto irá ocorrer.

A Gestão Pública Compartida engendra-se, pelo visto, discursivamente.


Pelo discurso serão tomadas e materializadas as demandas sociais de uma
dada comunidade a partir demandas pragmáticas, éticas e morais. Isto é,
através das demandas, pode-se simplesmente resolver questões pragmáticas
– interações orientadas ao auto-interesse dos participantes ou questões de
resolução de problemas cognivo-instrumentais; questões éticas, relacionadas
com o cruzamento de perspectivas individuais de bem-viver daquela
comunidade ou coletivas, após procedimentalizadas, relacionadas com uma
perspectiva da terceira pessoa no plural para um bem viver e um auto-
entendimento cultural; e, finalmente, questões morais, ou seja, questões
advindas de questionamentos carregados de pretensões universalistas
(princípio ‘U’), e que se confundem com questões de justiça. Retomando o
encadeamento comunicativo: é necessário tomar decisões, ou seja, selecionar
e materializar demandas sociais. Esta seleção vincula uma comunidade
específica, cujo pensamento é plural. Esta pluralidade, se preservada, leva à
necessidade de que estes discursos não sejam circunscritos tematicamente, de
modo que eles são abertos à questões pragmáticas, éticas e morais. Como
decisões serão tomadas, é preciso uma instância crítica da tomada de
decisões e das liberdades políticas. Esta instância crítica é, justamente, uma
teoria do procedimento discursivo. A questão de como é possível um
entendimento e a tomada de uma decisão vinculante já fora resolvida em outro
contexto, com a menção do princípio ‘D’. Este princípio tem de ser, deste
modo, incorporado às reflexões preliminares sobre o que vem a ser Gestão
Pública Compartida. Isto significa que as interações ocorridas em sede de
gestão de compartida, porque implicam decisões coletivas em meio à
pluralidade, tenham que ser geradas de forma racional e sejam legítimas; e isto
implica na assunção de condições argumentativas ótimas, quais sejam,
228

aquelas decorrentes do princípio do discurso.

A perspectiva jurídica também assume colorações muito interessantes


na descrição deste fenômeno. Pelo lado da situação de fala, este processo
gerará atos administrativos, e esta é uma proposição que precisa ser
fundamentada. Pelo lado da pragmática empírica, é necessário indagar-se
preliminarmente o topos de fala de uma teoria da Gestão Pública Compartida:
trata-se de uma doutrina jurídica? A argumentação inicia-se pela primeira
pergunta.

Em uma situação de fala que se caracterize como Gestão Pública


Compartida compartida, estar-se-ão procedimentalizando decisões. Uma
decisão, por óbvio, será Direito apenas se o procedimento de criação for
reconhecido como um procedimento idôneo à formação de algo jurídico. Este
reconhecimento é social, mas se traveste de um poder jurídico para gerar a
ilusão de que o Direito cria o Direito. Um juiz – diz Kelsen – pode criar uma
norma individual porque o ordenamento assim o autorizara. Em sede mais
comum, todos os atos da Administração Pública, para a perspectiva jurídica,
são atos administrativos, e isto os vincula a um regime jurídico formatado
principalmente por princípios. Muito embora esta conexão na doutrina apareça
mormente como a priori, esta vinculação ocorre por uma série de argumentos
de fundo, como por exemplo, a idéia de República e de Estado Democrático de
Direito. Como a Gestão Pública Compartida está trabalhando com áreas
tradicionalmente reservadas à Administração Pública tomada em seu sentido
mais tradicional, a hipótese, que precisa ser provada, é que os atos gerados
em procedimentos de Gestão Pública Compartida são atos administrativos.
Então a pergunta pode ser reformulada da seguinte maneira: o que autoriza a
dizer que o se decidir e fizer em sede de Gestão Pública Compartida será um
ato administrativo? A resposta é mais simples do mais parece. Os atos do
Parlamento e da Administração existem, em primeiro lugar, por que existe
necessidade de se tomar decisões. Estas decisões têm de ser vinculantes e
legítimas. A diferenciação social lega à civilização um meio lingüístico propício
à materialização daquelas necessidades, logo, a existência do Direito é,
lembrando a lição de Habermas, a união da inafastabilidade do princípio do
discurso com a oportunidade histórica que a linguagem jurídica proporciona.
229

Esta fundamentação pode ser transposta à Gestão Pública Compartida sem


maiores problemas, porque se está justamente diante das mesmas
indagações! Outra questão é a da interrogação de porquê se trata de um ato
administrativo, e não de um ato legislativo, ou de um algum ato especial.
Existem três razões para isso: a) o discurso produzido na Gestão Pública
Compartida é um discurso que, de alguma maneira, concretiza o discurso
legislativo, mesmo que, para isto, precise reproduzir as arenas políticas, diante
da vagueza que aquelas normas mais gerais precisam ser postas, de modo
que discurso legislativo com certeza não é; b) a tradição lega a categoria do ato
administrativo como ato específico da Administração e, de algum modo, e isto
precisará ser fundamentado mais adiante, a Gestão Pública Compartida é
Administração Pública, daí porque ser fácil e mais digerível na difusão da teoria
dizer que os atos gerados serão atos administrativos com alguma
peculiaridade, isto é, são atos administrativos ‘compartidos’, do que inventar
uma categoria totalmente nova; e c), efetivamente, os atos administrativos
compartidos possuem caracteres que os aproximam dos atos administrativos
comuns, como, por exemplo, subordinação à legalidade, à publicidade, a um
interesse público cognoscível, ao controle financeiro interno e externo, ao
controle judiciário, à auto-tutela, etc.

Note-se, então, que, ao mesmo tempo em que na situação de fala


‘Gestão Pública Compartida’ se geram atos jurídicos, esta situação tem de ser
juridicamente regulamentada, i.e., o processo de geração de atos tem de trazer
as condições que façam com que este ato seja válido. Daí falar-se em um
regime jurídico da Gestão Pública Compartida. Este regime jurídico vai ter de
se preocupar com os momentos pré-decisão, o procedimento de decisão e o
pós-decisão ou materialização. Esta é uma das conexões com a pragmática
empírica. O porquê de dever existir uma regulamentação jurídica para a Gestão
Pública Compartida retrocede aos argumentos anteriores, mais alguns
adicionais: como existe uma situação de produção de direitos, esta produção
mesma é protegida juridicamente através de liberdades e princípios. Estes
princípios existem a partir da necessidade, e aqui se retomam os argumentos
anteriores, de produzir decisões vinculantes em meio à pluralidade de
concepções e argumentos que produzam os engajamentos comunicativos
necessários para a ação e modifiquem o mundo da vida, são a face jurídica das
230

condições necessárias vislumbradas a partir das perspectivas política,


sociológica e filosófica. A fundamentação deste regime jurídico retrocede
justamente ao princípio democrático, união do princípio do discurso com o
princípio da linguagem jurídica. Todavia, a argumentação está truncada porque
a Gestão Pública Compartida insere-se em contextos normativos já vigentes.
Isto significa que as construções teóricas aqui produzidas não podem estar
desgarradas de decisões já tomadas juridicamente, sob pena de toda a teoria
ruir como mera imaginação teórica ou mesmo uma metafísica. É necessário
que a pragmática empírica, sob a forma de uma doutrina jurídica, encontre links
entre os princípios reconhecidos e aceitos pelo ordenamento e justifique a
Gestão Pública Compartida como decorrência destes princípios mesmos. Uma
pequena tentativa será levada a cabo mais adiante.

Note-se, finalmente, que não é fácil a tarefa da doutrina da Gestão


Pública Compartida neste nível. Ela tem de ser sensível às compreensões das
outras disciplinas, explicar as condições de validade dos atos administrativos, o
fundamento e o conteúdo das liberdades, garantias e princípios regentes da
Gestão Pública Compartida, bem como gerar a coerência de tudo isto com o
resto do ordenamento.

A última consideração de ordem epistemológica antes de realizar


aproximações diferentes, as quais levarão uma melhor descrição da Gestão
Pública Compartida no final do trabalho: falou-se em doutrina da Gestão Púbica
Compartida; afinal, o que é isso? De fato, dada a natureza deste trabalho e a
sua vinculação temática ao Direito, as disciplinas serão cruzadas, mas, todavia,
existe um topos privilegiado que é o jurídico. Dizer que existe um discurso que
tem que dar conta de estas tarefas, e chamar este discurso de algo que está
enredado na tradição jurídica – a doutrina – sem reconstruir o que vem a ser
doutrina a partir da teoria da ação comunicativa, é a mesma coisa que nada
dizer. Daí porque ser necessário oferecer, no mínimo, um conceito provisório,
de modo a se verificar se tal paralelo é possível.

Já foram reconstruídas as idéias de Habermas e Klaus Günther acerca


dos níveis discursivos normativos. Não é a doutrina epistemologia, porque não
se preocupa com as condições de conhecimento do próprio Direito. Um
discurso doutrinário também, e isto é claro, não justifica qualquer norma, e,
231

tampouco, aplica-as. Pode, sob outro espectro de observação, reconstruir os


passos de justificação de normas e, de outro, antecipar aplicações. De alguma
maneira, isto já foi feito em parte acima. Uma das saídas tradicionais para a
caracterização da doutrina jurídica tem sido um câmbio modal por sobre o
discurso normativo, i.e., a doutrina caracterizar-se-ia pela transformação de
atos de fala regulativos em descritivos, como, por exemplo, “é verdade que a
regulação acerca do tema y implica as conseqüências x”. Esta descrição, em
princípio, não exclui uma abordagem hermenêutica, pois o intérprete poderia
primeiro dialogar com as normas já justificadas em uma perspectiva
performativa para, depois, descrevê-la em termos objetivantes. Pela mesma
operação teórica, é possível também descrever os engates comunicativos e as
pretensões de validade levantadas e criticadas, muito embora seja impossível
estabelecer um diálogo franco com elas, de modo que existe perda de
possibilidades analíticas. O mais comum, todavia, é uma assunção pura e
simples de uma perspectiva objetivante. Por outro lado, mais do que nunca em
perspectivas normativas, especialmente nas jurídicas, a reconstrução que se
faz desses discursos normativos possui uma elevada interação em termos de
práticas sociais presentes na situação de fala. Por exemplo, toda uma tradição
teórica formada em torno da idéia de Estado Democrático de Direito possui
uma principiologia que altera diretamente a prática cotidiana neste mesmo
Estado Democrático. Isto é muito diferente de uma descrição – mutável -, que
se faz de um mundo objetivo – quase imutável. Daí porque a teoria ter de
assumir pretensões críticas, vez que seus atos de fala estarão completando e
dando coerência a discursos normativos já justificados. Diante desta conclusão,
o único topos possível para a doutrina jurídica é o de um discurso de mediação
entre discursos de justificação e aplicação. Ao mesmo passo em que a doutrina
possibilita a aplicação, ao esclarecer as cadeias de ação, gera coerência para
o resto do ordenamento, ao integrar criticamente entre si as normas justificadas
e esclarecer as razões pelas quais aquelas existem. Assim é a doutrina da
Gestão Pública Compartida, um discurso crítico, cujas tarefas são identificar e
descrever as pretensões de validade de um regime jurídico já latente no
ordenamento que se dispõe a regular peculiares situações de fala onde se
selecionam e se materializam demandas públicas.

Assentados estes significados preliminares, torna-se possível a


232

reconstrução de algumas noções essenciais para o debate aqui travado, as


quais tem de ser traduzidas para a linguagem da ação comunicativa para bem
da coerência da argumentação.

4.2 Categorias fundamentais da Gestão Pública


Compartida à luz da teoria da ação comunicativa

Uma aproximação da Gestão Pública Compartida e seus pressupostos


epistemológicos exige uma reconstrução de determinadas categorias
tradicionais, as quais são lançadas sob a luz da teoria da ação comunicativa
para adquirirem cores diferenciadas. Nesta seção, os significados serão
extraídos do senso comum, sem vinculação a autores específicos, e sofreram
uma reconstrução ao senso do autor, a não ser que esteja especificado em
forma de citação.

Uma das perguntas a serem respondidas por uma teoria da Democracia


é a clássica divisão entre Direito Público e Privado. Será que toda a tradição de
divisão entre estes dois grandes ramos do Direito é uma farsa? De fato, a
crítica de Kelsen é mordaz: o Direito é uno porque é produto de um
procedimento que não faz a mínima diferença qualitativa no que toca ao seu
produto final em termos de público/privado. E, de fato, nenhum critério até hoje
gerou adesão consensual na doutrina. Habermas, contudo, parece ter lançado
uma luz à questão. É possível dizer que, sob uma perspectiva apenas, parece
ser possível tal divisão. Note-se que, quando Habermas reconstruíra o sistema
de direitos, ele os descreve como o exercício recíproco da autonomia privada e
pública. Obviamente, autonomia privada não é igual à racionalidade
instrumental, mas, através do Direito, são criados espaços a partir dos quais é
possível o agir orientado ao sucesso ou à preservação da intimidade.
Retomando: a partir de espaços públicos, mas às vezes informado por
orientações ao sucesso, os participantes criam o Direito. Esta criação, por
vezes, mantém espaços de ação orientados ao sucesso ou à intimidade: eis aí
o Direito Privado. Não é possível estabelecer outro critério sob qualquer outra
perspectiva. Quanto ao destinatário, por exemplo, o poder público submete-se
233

a normas do Direito Civil e do Direito Comercial, como os particulares. Deste


modo, a autonomia pública decide, pelo Direito, o que vai ser o privado. A
orientação da ação dá uma pista acerca do que vem a ser Direito Privado e
Público. Sob as outras perspectivas, o Direito nunca deixa de ser uno, mas sob
a perspectiva da orientação da ação, é possível a divisão. Note-se que
restrições à ação instrumental são fruto do mesmo procedimento e veículo que
criou o espaço para a ação instrumental, de modo que falar em publicização do
privado é um erro categorial, muito embora seja um diagnóstico correto sob o
prisma histórico. O Direito Público seria todo o resto, muito embora este todo
não seja lá tão extenso, dada as condições pós-tradicionais das sociedades
contemporâneas, que privilegiam a ação instrumental.

Este debate acima lança luz para um problema fundamental: afinal de


contas, é possível diferenciar Direito e Estado? Antes, todavia, é necessária
uma devida equalização da palavra Estado. Se for tomado como povo,
soberania e território, ele sempre fora, desde a sua constituição, um mito,
simplesmente porque o território é artificial, a soberania sempre se limitou pelo
contraste com outros Estados e com a necessidade de legitimar-se perante os
cidadãos e o povo sempre fora um agregado heterogêneo de interesses.
Todavia, a falta de precisão dos conceitos tradicionais não autoriza o intérprete
a fazer tabula rasa tanto desta tradição teórica quanto da compreensão vigente
de Estado. É claro que não é possível revisitar temas clássicos da Teoria do
Estado aqui. O máximo que se pode fazer é adaptar alguns conceitos para as
categorias habermasianas. As duas questões principais nesta seara: A) de quê
tipo de organização se fala quando se fala em Estado? B) Que autoriza a dizer
que o Estado é um lócus legítimo de produção do Direito? É com relação à
pergunta A) que a ressalva anteriormente mencionada tem de fazer efeito.
Ocorre que, diante da constelação pós-nacional vigente, inicia-se um processo
em que é possível vislumbrar políticas públicas gestadas em nível internacional
por organizações que destoam das tradicionais conjunções de confederações e
organizações estatais. O melhor exemplo é o da União Européia. À medida que
se aprofunda o debate sobre sua Constituição, mais vem à tona tanto o
problema do conceito de Estado quanto de sua centralidade. Ninguém em sã
consciência pode negar que a UE leva a cabo políticas públicas. E tampouco
se pode refutar, a priori, que não seria interessante que o Mercosul assim o
234

fizesse. De outra banda, e este é um argumento que se agrega, o elemento


“povo”, como visto – muito embora se reconheça a contratendência em forma
de nacionalismo – cada vez mais é visto em sua acepção abstrata, como mero
ajuntamento de pessoas sem necessidade de uma história comum. Isto vai
levar a que a argumentação acerca da gestão de políticas públicas tenha de
trabalhar com um conceito que dê conta que essas organizações possuem
uma forma estataliforme, isto é, realmente possuem um feixe de competências
que incidem sobre destinatários em algum lugar. Mas daí ser interessante,
diante dessas mutações, chamar-se estas instituições estataliformes de
“Organizações Governamentais”, que simplesmente se opõem conceitualmente
às Não-Governamentais. Mas isto não respondeu nenhuma das perguntas
acima. Ocorre que a resposta para as duas perguntas é a mesma.

Tem-se a necessidade de gerar entendimento – e isto implica tomar


decisões comunitárias, reproduzir/criticar a cultura e socializar sujeitos. Existem
loci históricos onde isto aconteceu. Um deles, em termos conceituais, por
óbvio, é o Estado na acepção que se tem hoje. Mas não se pode negar que,
também, persistem realidades culturais regionais, que se traduziram
historicamente, no Brasil, sob a forma de Estados-membros e Municípios. Tem-
se, então, um primeiro dado: uma herança da tradição. Esta herança da
tradição tem de se cruzar com um segundo dado: a necessidade prática de se
tomar decisões a partir de algum espaço. Colaciona-se mais um terceiro dado:
para se tomar estas decisões é preciso toda uma estrutura simbólica, mas
principalmente material: funcionários e propriedades.

Também é assim com o Direito. O Direito é meio de entendimento, mas


é preciso que exista uma instância onde se organize o procedimento de criação
do próprio Direito. Para uma sociedade agir sobre ela mesma, é necessário,
portanto, que ela decida qual é o início disto tudo, ou seja, quais são os
procedimentos que criarão o Direito. Esta é uma questão interessante ainda
hoje, onde o pluralismo de idéias às vezes remete a uma visão feudal de tribos
que não querem se entender. É um imperativo para quem escolhe a não-
violência entender-se, e para se entender é necessário chegar a um acordo
acerca de como, quando e onde vão proceder a este entendimento. E este
entendimento em forma de Direito tem de ser legítimo, ou seja, regido pelo
235

princípio democrático.

A intuição, aqui, que parece razoável para responder as perguntas A) e


B) é a de que é necessário cruzar os argumentos contidos nos dois parágrafos
acima. Se o Direito serve para promover o entendimento mediante a tomada de
decisões, e se estas decisões – racionais e democráticas – têm de partir de
algum procedimento de geração destas, bem como precisam de uma base
material de sua execução – e aí vem o link com as organizações
governamentais – porquê não se utilizar as organizações governamentais já
existentes? Elas trazem consigo tudo aquilo que o Direito precisa:
procedimentos de geração e condições de materialização. Esta é,
precisamente, a base normativa da existência do Estado e de sua ligação com
Direito. Habermas não responde a questão, mas a resposta aparece implícita
assim em seu livro, vez que Habermas diz ser o Direito a linguagem do poder.

Note-se que a resposta às questões é uma resposta normativa que


busca inspirações históricas, pois uma visão cética e exclusivamente histórica
perceberá que não existe um ponto no tempo onde a necessidade de um
Direito democrático se impõe perante a faticidade das antigas ordens. Isto foi, é
claro, um processo longo, árduo e demorado que vem desde a Revolução
Francesa até a consolidação do Estado Democrático de Direito na
contemporaneidade. Isso não melindra, contudo, a leitura normativa da
questão.

Tem-se, então, organizações governamentais e Direito como ligados


conceitualmente. O Direito organiza as organizações governamentais em forma
de competências, procedimentos, direitos, deveres, princípios, etc.,
caracterizando-as como instrumentos a seu dispor (e, por via de conseqüência,
à comunidade). Neste sentido, o Direito é mais que as Organizações
Governamentais. O Direito, porém, como é linguagem, não pode postular uma
pertença sistêmica às Organizações Governamentais, como o podem os meios
materiais. O Direito, neste prisma, é menos que as Organizações
Governamentais.

Organizações Governamentais e Direito são, assim, normatividade e


historicidade, são faticidade e validade!
236

As Organizações Governamentais são resultado de um complexo


cruzamento entre Direito, legitimidade, procedimento e dados históricos como
cultura e território. Tradicionalmente, e esta palavra não está aí fortuitamente,
convencionou-se dividir a auto-inflexão da sociedade em três grandes feixes de
competências que se dividem.

Esses três grandes feixes foram assumidos por organizações que se


especializaram funcionalmente justamente nestes feixes de competências.
Critérios tentando explicar de maneira coerente esta divisão foram surgiram e
foram superados justamente devido ao problema de explicar algo que surgiu de
maneira histórica. Não é necessário reconstruir esta história aqui. Todavia, é
necessário ainda refletir mais sobre o tema, uma vez que se tem que definir
Administração Pública, para então se definir a Gestão Pública Compartida.

Habermas, como visto, tenta fazê-lo a partir das lógicas argumentativas


subjacentes. O Poder Legislativo teria liberdade argumentativa dentro das
diretrizes constitucionais. O Poder Judiciário poderia reconstruir de maneira
criativa os argumentos já postos, e o “Poder Administrativo” deveria trabalhar
pragmaticamente a argumentação do Poder Legislativo, muito embora, como
visto, hoje isto não possa ser colocada de maneira tão simples assim, e este é
justamente um dos fundamentos da Gestão Pública Compartida, como visto.

Habermas parece utilizar os termos “Poder Administrativo” de três


maneiras: uma, para designar os engajamentos comunicativos pós-
deliberação; outra, para designar “Administração Pública” e, finalmente, “Poder
Executivo”. Esta é uma falha de Habermas, ou pelo menos, é uma
interpretação que é induzida tanto pela tradução em português quanto em
inglês547. Habermas diz claramente que o Poder Legislativo e o Poder
Judiciário fazem uso do poder administrativo, o que sem dúvida nenhuma é
uma proposição razoável. Parece, todavia, confundir Poder Executivo com
Administração Pública548. Este é um erro que o senso comum não incorre mais,

547
Ver HABERMAS, Jürgen. Between Facts and Norms: contributions to a Discourse Theory
of Law and Democracy. Massachusetts: Mit press, 1998. p. 168-193.
548
HABERMAS, Jürgen. Between Facts and Norms: contributions to a Discourse Theory of
Law and Democracy. Massachusetts: Mit press, 1998. p.188: “The logic of separated powers
demands instead that the administration be empowered to carry out its tasks as professionally
as possible, yet only under normative premises not at its disposal: the executive branch is to be
limited to employing administrative power according to the law”.
237

devido à constatação de que Poder Legislativo e Judiciário também realizam


atividades típicas de Administração Pública, como controle de contas,
admissão de funcionários, elaboração de orçamentos próprios etc. O
argumento de Habermas parece funcionar bem em termos teóricos, mas falha
quando desce à prática.

De outro lado, seria fácil resolver o problema se se adotasse uma


postura cética: os Poderes e a Administração Pública são aquilo que a
população pensa que são, ou aquilo que os integrantes das organizações
dizem que são. Logo, toda esta reflexão se converteria em uma non issue. Mas
isto não corresponde com a postura crítica que se assumiu neste trabalho. É
preciso achar uma saída que, ao mesmo tempo, tenha um mínimo de conteúdo
locucionário e ilocucionário enquanto conceito, mas que, de outra banda, não
seja metafísica, estabelecimento diferenças a priori, mas mantenha um caráter
abstrato, capaz de dar conta das especificidades.

Habermas, em realidade, dá todas as pistas: ocorre que apenas elas


têm de ser remanejadas.

Tanto o Poder Legislativo quanto o Judiciário se valem do poder


administrativo em seus dois conceitos: enquanto engajamento comunicativo
pós-seleção; e enquanto estrutura implementadora de decisões. Imperativos
funcionais e tradicionais históricos demandaram a criação simultânea de
também um terceiro Poder, que, ao mesmo tempo que não mantém a
exclusividade do Poder Administrativo, e, tampouco isola-se, influindo por
sobre os demais, mas que mantém a primazia do discurso pragmático de
aplicação: é o Poder Executivo. Até agora, neste conjunto de proposições, o
Poder Administrativo enquanto aqueles dois conceitos permanecera separado
do conceito de poderes, e é esta diferença que se quer preservar. Ora, a
realidade demonstra que os Poderes Legislativo e Judiciário mantém para si,
de maneira constante549, apenas aqueles poderes administrativos pré-supostos
de seus próprios procedimentos de geração de decisões. Por exemplo, é

549
Isto não elide a existência de anomalias não-constantes, como políticas públicas levadas a
cabo pelo Judiciário, vez que a construção destas políticas públicas dá-se a partir da aplicação
de normas legais, e não a partir dos melhores meios pragmáticos para o atingimento dos fins.
Isto corrobora a constante crítica de tais situações como anomalias e invasões entre os
poderes.
238

pressuposto da manutenção de suas estruturas de decisão a contratação de


funcionários, o controle de despesas, determinados poderes de investigação,
etc. Quem diz o que é poder administrativo de cada esfera geralmente é o
Poder Legislativo. De posse destas considerações, finalmente pode-se
conceituar o Poder Executivo: este é o poder que vai lidar com a materialização
do poder administrativo que segue às decisões do Poder Legislativo e do
Judiciário, salvo àquelas comunicações referentes à constituição mesma dos
procedimentos de geração de decisão naqueles poderes.

Este argumento lembra o argumento por exclusão que os


administrativistas criaram, ou seja, é Administração Pública tudo aquilo que não
é ato legislativo ou judiciário. Mas é muito diferente o argumento apresentado
acima porque é bem mais complexo, define positivamente o que é poder
administrativo, quais são as características dos poderes, levando em conta as
peculiaridades, bem como é abstrato suficiente para dar conta das
complexidades.

A bem da continuação da argumentação, retoma-se o argumento: os


discursos de justificação e aplicação necessitam ser materializados através de
engajamentos comunicativos posteriores consubstanciados em discursos
pragmáticos de aplicação – poder administrativo. Poder Legislativo é
especializado em justificação e o Judiciário em aplicação. Ambos são atos de
fala regulativos. Como o poder administrativo é de complexa materialização,
existe ainda um outro poder, o Poder Executivo. É necessário conceituar o que
este poder faz sem confundi-lo com poder administrativo e sem desconhecer a
realidade de que também os outros poderes utilizam o poder administrativo.
Para tanto, verifica-se a realidade histórica de que os poderes utilizam-se do
poder administrativo apenas para a preservação de seus procedimentos,
imputando como de competência para o resto o Poder Executivo.

Resta examinar melhor esta idéia de “poder administrativo” como


“Administração Pública”. De fato, dada as condições pós-metafísicas, não é
possível aqui a definição a priori ou substancial do que vem a ser
Administração Pública como os administrativistas fizeram no segundo capítulo,
invocando os atos de gestão, pessoas jurídicas da Administração Pública,
serviços ou interesse público. Os problemas que o conceito tem de resolver
239

são semelhantes aos que já foram enfrentados pelos outros conceitos.

Em um Estado Democrático de Direito tem de existir uma linha contínua


de locução e ilocução desde a esfera pública, passando pela formação de um
poder comunicativo, pelo procedimento e finalmente pelo poder administrativo.
Todas as intuições, de todas as matrizes, confluem, com razão, para uma idéia
de aplicação do já decidido, muito embora estas questões sejam configuradas
de maneira confusa ou vaga. É preciso, enfim, dizer o quê de especial existe
nesta última linha argumentativa na cadeia, além do próprio fato de ela ser o
último elo550.

Habermas vai dizer, como visto, que é o predomínio de argumentos


pragmáticos que faz o poder administrativo ser poder administrativo. A palavra
predomínio aqui não é fortuita. Mesmo em condições liberais, a vagueza das
normas demandam decisões que abrangem uma mistura de discursos de
justificação e aplicação com pragmáticos. O termo “pragmático” também
assume em Habermas dois significados neste contexto. Antes da deliberação,
são aqueles argumentos relacionados aos acordos de auto-interesse levados a
cabo pelos participantes. Depois, significam a escolha das melhores maneiras
de se alcançar os fins postos. Tudo isto é palavrório inútil se não for possível
provar porque o discurso pragmático é dominante nesta seara.

Lembre-se que o poder administrativo tanto pode ser tomado como


estrutura quanto como discurso. Provisoriamente, esta idéia de poder
administrativo enquanto estrutura será descartada, pois pode gerar confusões.
O trabalho será feito em cima do poder administrativo enquanto comunicação.
Uma segunda construção remete ao que foi dito no parágrafo anterior parece
ser correta. Será poder administrativo tudo aquilo que suceder ao discurso de
uma instância autorizada. De fato, na prática cotidiana dos Estados
Democráticos de Direito, sempre que se requer um ato posterior para o
cumprimento da lei, estar-se-á falando em Administração Pública. Já existe
disponível, portanto, dois dados: o poder administrativo é uma comunicação
que assume um tom predominantemente pragmático (muito embora, como dito,
não exclua outros tons), isto é, de melhores técnicas para o alcance dos fins

550
As medidas provisórias são um caso, dentre outros, de aplicação da doutrina dos checks
and balances. Não elide as conclusões aqui presentes.
240

postos, cuja localização na linha do tempo dos engajamentos comunicativos


encontra-se depois dos procedimentos de tomada de decisão em termos de
justificação e aplicação. A resposta para o que é Administração Pública é muito
simples: será Administração Pública tudo o que lidar com tais comunicações.
Isto responderia o problema dos poderes que não o Executivo que gerem
políticas públicas, bem como o de outras entidades associadas que prestam
serviços públicos, como, por exemplo, as concessionárias de serviços públicos
e demais serviços delegados. Esta é uma boa resposta, e parece ser a melhor,
desde que se responda a pergunta de porquê o discurso pragmático é
predominante, mesmo diante dos problemas de materialização dos discursos
de justificação e aplicação – algo que Habermas não respondeu.

É possível levantar várias razões para responder por Habermas, as


quais, em confluindo, podem formar a convicção necessária do afirmado:

1) o poder administrativo tem obstruído os canais de crítica das


pretensões de validade das decisões anteriores, vez que são essas próprias
decisões a razão de sua existência (a não ser quando contraste com uma
decisão mais importante, v.g., uma lei inconstitucional);

2) um teste empírico poderá comprovar que, no mais das vezes, os atos


de fala são cognitivo-instrumentais, i.e., raramente indagações de interesse
universal ou comunitário são refletivas, pois se pressupõe que isto já fora feito.
Mas mais importante que isto, uma execução de políticas públicas dá-se pela
indagação de melhores técnicas para o alcance dos fins;

3) o mundo da vida, neste tipo de argumentação, é objetivado, i.e.,


questões normativas são tratadas a partir de um cambio modal para técnico-
cognitivas;

4) o poder administrativo goza de uma presunção de veracidade cuja


fonte é um outro discurso, e não a própria decisão advinda do processo. Por
exemplo, presume-se racional a lei porque advinda de um procedimento
legislativo. Ao contrário, presume-se legítimo um ato administrativo porque a lei
conferiu àquele ato e à Administração como um todo credibilidade. Neste
sentido, existe uma satisfação artificial dos pressupostos dos atos de fala, coisa
241

que só existe neste tipo de discurso;

5) pelo motivo anterior, o poder administrativo é uma comunicação que


vincula a ilocução de maneira obrigatória, propriedade que só as decisões
tomadas em procedimentos reconhecidos e aceitos possuem;

6) a intuição, comum nos manuais de Direito Administrativo, de


indisponibilidade do interesse público e supremacia do interesse traduzem-se,
nesta linguagem, de maneira mais precisa como a impossibilidade de um auto-
interesse nas decisões tomadas em sede de poder administrativo. Esta
constatação, todavia, é comum aos outros discursos;

7) tradicionalmente, como se trata de um contínuo comunicativo, não se


exige aplicação do princípio do discurso em sua inteireza à situação, à exceção
da publicidade, da motivação, etc.

A confluência destas razões permite o convencimento do caráter


predominantemente pragmático do poder administrativo, mesmo que exista
necessidade de justificações e aplicações. O discurso do poder administrativo e
o discurso do “poder compartido” serão analisados com mais detalhe adiante.

Finalmente, tem-se, então, completo, o conceito de Administração


Pública. Administração Pública será toda a atividade que tiver de lidar com
engajamentos comunicativos que venham após outras decisões em instâncias
autorizadas de Organizações Governamentais, e que tenham predominância
de uma argumentação pragmática.

Estes engajamentos comunicativos podem versar sobre quaisquer


coisas, de modo que não é possível a teoria dizer o que é ou não próprio da
Administração Pública. Em um dado momento, por exemplo, pode ser
importante que a Administração Pública se preocupe em fabricar motores, em
outro, isto pode não fazer o menor sentido. Mas isto vai depender da vontade
dos participantes, e não de uma teoria que diga paternalisticamente o que cabe
ou não à Administração.

Vencidos os piores conceitos, quais sejam, os de Organização


Governamental, divisão de poderes e Administração Pública. O resto não
242

oferece maiores dificuldades, até porque o peso da tradição não é tão forte.

A sociedade e a comunidade podem ser sinônimos a partir da


perspectiva da Gestão Pública. A questão não é a conceituação de sociedade
– tarefa complicadíssima, presente na tradição sociológica – mas sim que
adaptação precisa ser feita a partir da perspectiva da Gestão Pública
Compartida551. Algumas questões, ligadas às questões evolutivas, são vistas
mais adiante. Trazendo Habermas, sociedade é a aquela situação em que as
pessoas agem e interagem de maneira consciente e com sentido, formando
ordenações legítimas. Mas isto potencialmente refere-se a toda a humanidade.
Uma maneira de delimitar uma dada sociedade seria referir-se à sua cultura, e
aí se entraria no tormentoso problema de definir o que é uma cultura própria e
como se faz para identificá-la. Não que se duvide que isto seja possível, mas é
viável uma resposta mais simples a partir da perspectiva da Gestão Pública
Compartida. A sociedade, para a Gestão Pública Compartida, vai ser
simplesmente os autores e destinatários da própria Gestão Pública
Compartida. Assim, se se está diante de uma deliberação sobre a política de
incentivos para uma dada região, a sociedade será aqueles Municípios onde se
convencionou pertencerem a dita região; se o Mercosul realizasse políticas
públicas, e estas fossem realizadas em um regime de Gestão Pública
Compartida, a sociedade seria todos aqueles daqueles países. Note-se, então,
que o critério aqui é normativo. Observe-se que, se o Direito for legítimo, é
possível dizer que estas instâncias de participação foram instaladas a partir da
vontade mesma desta população, de modo que é possível imputar à vontade
delas a criação de uma “sociedade”, uma vez que, mesmo que seja uma
pequena política pública, estas pessoas estão buscando uma convivência
legítima e racional para si. Por outro lado, uma última reflexão sobre este
tópico. Nesta matéria, é conveniência distinguir “destinatário” de “atingido”. O
“destinatário” é destinatário da norma, e sempre é, de algum modo “atingido”
pela política pública. Ocorre que todo o resto do mundo é de algum modo

551
LEAL, Rogério Gesta. Estado, Administração Pública e Sociedade: novos paradigmas.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p.52: “Tomar a sociedade como base epistemológica
aqui, significa um modo determinado de problematizar o tema proposto, a saber, a Gestão
Pública Compartida dos interesses públicos. Esta forma de gestão, a partir do referido, é
concebida de forma procedimental, i.é, como práticas, discursos e valores que afetam o modo
como desigualdades e diferenças, direitos e deveres, são tratados e administrados no cenário
público”.
243

atingido pelas políticas públicas locais. Deste modo, é preciso distinguir


“atingido” como não pertencente àquela sociedade, senão novamente se
estaria diante do problema de tudo ser uma só sociedade (o que é desejável
sob alguns ângulos, mas sob outros se perde em alteridade), e, com isso, além
da perda de dados analíticos, existe também um desrespeito com as
comunidades que buscam uma identidade de si. Isto é defensável em todas as
matérias menos uma: meio ambiente. Como as repercussões são imediatas
sobre a vida na terra, o único caso em que é impossível distinguir destinatário e
atingido é este, de modo que, sempre que houver questão de meio ambiente,
todo o mundo tem de ser tomado como sociedade (não se está querendo dizer
com isso que não seja possível outras questões onde o mundo todo seja a
sociedade relevante, mas o meio ambiente é o único caso em que
necessariamente todos estão interessados). Muito embora se saiba que por um
imperativo prático as questões tenham de ser recortadas em termos de
participantes e áreas de competência, como no caso das bacias hidrográficas
ou dos conselhos do meio ambiente.

Observe-se que este tipo de consideração da sociedade, ou seja, a partir


da Gestão Pública Compartida, faz pouco caso da diferença cultural por um
lado. Isto é intencional para justamente valorizar a cultura: os participantes
podem escolher suas culturas de maneira livre, podem até se isolar e
postularem autonomia política se quiserem, e, assim, sob outra observação,
ter-se-á sociedades diferentes. Mas, sob o prisma que aqui importa, os
participantes que se deparam com problemas práticos – se não escolherem a
violência – tem de se entenderem mesmo que sejam completamente diferentes
entre si. Trata-se de um imperativo prático que se encontra na raiz da
sociabilidade humana. Se este entendimento se der a partir do princípio do
discurso, este pluralismo será reconhecido e inclusive comemorado. Se não, o
autoritarismo está próximo.

Na mesma linha, a esfera pública não se confunde com a sociedade


delimitada, mas dá-se nela. A partir da necessidade de tomada de decisões,
surgem as mais diversas opiniões, que trafegam de forma espontânea por
entre a sociedade a partir dos mais diversos canais, que vão desde uma forte
institucionalização nas mídias instrumentais até a simples opinião emitida
244

enquanto se espera o ônibus na rua. Esta rede difusa e espontânea é a esfera


pública, que cada sociedade tem a sua, mas que ainda – devido à incompleta
tecnificação – mantém vários pontos de contato com outras esferas públicas.

Cruzando esta problemática com a tratada pelos administrativistas, esta


sociedade demandaria um interesse público. Que não pode as organizações
que trabalham com o poder administrativo visarem o auto-interesse, esta é uma
proposição com sentido; mas falar-se em interesse público é vago a tal ponto
que se chega a um nível de incognoscibilidade. Mas mesmo que fosse possível
buscar na sociedade – agora já devidamente delimitada – um interesse público
através, por exemplo, de pesquisas de opinião, mesmo assim, estar-se-ia
cometendo um erro categorial e um erro prático, pois haveria a supressão do
procedimento. Ora, é muito bem possível pensar que as pessoas tenham,
antes do procedimento, uma determinada opinião e, diante do contraste com
outras, mudem de idéia. Assim, só é possível falar em interesse público após
um procedimento de seleção, e isto não implica decisionismo, pois não é
qualquer procedimento, mas sim um procedimento legítimo e racional.

Com um conceito de sociedade como este, que busca a ordenação


legítima, não é necessário um conceito adicional de sociedade civil. Todavia, é
necessário conceituar as tão-faladas Organizações da Sociedade Civil. O
conceito precisa ser genérico e não-metafísico, mas tem de trazer um mínimo
de locução e ilocução. O conceito precisa ser genérico porque é absurdamente
grande o número de formas que estas Organizações da Sociedade Civil podem
assumir, como ONGs, associações, institutos, fundações, etc (isso lançando
um olhar jurídico), bem como inúmeros seus interesses e modos de proceder.
Muito embora este seja um assunto conexo que mereça ser tratado com
seriedade a partir das categorias da teoria da ação comunicativa, não é
possível traçar aqui senão umas poucas linhas.

Dentro da doutrina da Gestão Pública Compartida, as Organizações da


Sociedade Civil aparecem em oposição conceitual às organizações
governamentais. Fala-se em oposição conceitual porque as organizações
governamentais servem à sociedade e, neste sentido, não podem, porque não
estão autorizadas a buscar o auto-interesse, opor-se à sociedade. Mas falar em
oposição conceitual nada conceitua. Este é um caso onde as funções que as
245

Organizações da Sociedade Civil assumem dentro do esquema teórico da


doutrina da Gestão Pública Compartida podem ajudar na conceituação da
categoria.

As Organizações da Sociedade Civil, dentro do quadro da Gestão


Pública Compartida, têm como funções, e nisso adquirem identidade:

- organizar as comunicações fluídas e caóticas da esfera pública em


proposições articuláveis e defensáveis. I.e., Organizações da Sociedade Civil
são aquelas organizações que transformam as comunicações difusas da esfera
pública em poder comunicativo, e este é o dado caracterizador que se
procurava;

- as Organizações da Sociedade Civil podem, fazendo uso deste poder


comunicativo, buscar o convencimento tanto do resto da sociedade quanto
buscar influir nos procedimentos de tomada de decisão. Este é um aspecto
importante, pois, vez que na Gestão Pública Compartida é necessário
reproduzir as arenas políticas, as Organizações da Sociedade Civil têm de
acompanhar a materialização, pelo poder administrativo, das soluções já
postas por outras arenas de decisão;

- reduzir a complexidade dos procedimentos, representando, através de


pessoal, a esfera pública. É o típico caso das organizações convidadas a tomar
assento nos conselhos, por exemplo;

- organizar redes informais entre organizações, confluindo em vista do


conteúdo do poder comunicativo. Por exemplo, as coligações de igrejas ou de
entidades de defesa do meio ambiente;

- organizar o próprio procedimento de tomada de decisão. É o caso das


associações de bairro, que organizam a Gestão Participativa do Orçamento;

- podem também se vincular às Organizações Governamentais,


sujeitando-se ao seu regime jurídico; não podem, todavia, sob pena de perda
de identidade, sujeitar-se ao poder hierárquico;

- podem as associações da sociedade civil, finalmente, materializar


246

esses reclames sociais, materializando-os sob a forma de serviços que


atendem à população. Como exemplos, hospitais, universidades e entidades
de assistência552.

Esta idéia de poder comunicativo também é a ponte para a explicação


do conceito de demandas sociais. Ora, na esfera pública é possível perceber
desejos e aspirações. Este caráter difuso e espontâneo que a esfera pública
tem é uma vantagem porque permite o livre fluxo de temas; mas, porém,
prejudica sua cognoscibilidade. É preciso transformar esse livre fluxo de temas
em proposições justificáveis, que tenham um conteúdo locucionário e
ilocucionário claro. Por exemplo, todos os usuários de uma dada via pública
terrestre percebem a falta de manutenção, e conversam entre si acerca
daquela necessidade. Até aí, está-se no nível da comunicação difusa. É
preciso materializar estas opiniões em proposições defensáveis. Precisamente
aí reside o poder comunicativo e, neste caso, poder comunicativo é sinonímia
de demandas sociais. Apenas depois que os participantes entendem-se acerca
de seus desejos é que se forma uma demanda social: “reivindicamos
manutenção na via, em vista que ela está esburacada, provoca estragos nos
veículos e gera riscos de acidente, a produção da região é escoada por ela, e
existe dinheiro no orçamento”. Falta ainda algo. Uma demanda social só se
forma quando estão presentes as condições para uma comunicação. Neste
sentido, além de intelegibilidade, correção, verdade e sinceridade, é necessário
que esta demanda social aponte para um destinatário: a comunicação vai se
aperfeiçoar apenas quando houver quem a ouça! Daí porque a Gestão Pública
Compartida ser um lócus especial de seleção de demandas sociais, afinal, ali
existirá um procedimento regido pelo princípio do discurso que leva a sério a
necessidade de as demandas sociais serem ouvidas. E, também nesta
perspectiva, as Organizações da Sociedade Civil são espaços privilegiados de
formação de demandas sociais. Afinal, dentro destas organizações vigem
espaços de comunicação abertos, mas que estão direcionados à própria

552
LEAL, Rogério Gesta. Estado, Administração Pública e Sociedade: novos paradigmas.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 196: “Esta nova articulação consiste, exatamente,
na redefinição de espaço público e atores sociais deliberativos e executivos, fazendo ressurgir
e fortalecer, por exemplo, o âmbito local do poder político, agora visualizado como a integração
– tensa e conflitual – entre poderes instituídos tradicionais e novos movimentos sociais da
cidadania ativa organizada, única maneira de efetivação das promessas constitucionais e da
Sociedade Democrática de Direito”.
247

especialização temática da organização, de modo que a comunicação difusa


da esfera pública vai ser transformada em uma demanda social, a qual será
carregada, em nome de um sem-número de participantes, por uma
organização que aparece como una diante da Administração.

Uma outra pergunta que uma teoria da Gestão Pública Compartida tem
responder é a que envolve políticas públicas. Uma primeira hipótese é a de que
políticas públicas é todo e qualquer engajamento comunicativo que segue às
demandas sociais. Esta hipótese enfrenta o problema de ter que resolver
problemas de como uma mera modificação no Código Civil, por exemplo, ser
chamada de política pública. Isto vai contra a noção socialmente partilhada de
política pública. Deste modo, toda a política pública vai passar pelo Direito, mas
nem todo Direito é política pública. Para a perspectiva jurídica, portanto, política
pública é um conjunto de leis e atos administrativos. Não é por esta via que a
resposta será achada.

A política pública, por estar ligada ao Direito, também, nas condições


contemporâneas, vai estar ligadas aos procedimentos autorizados e, assim, às
Organizações Governamentais. Isto, sem dúvida, está correto. Uma solução
seria, então, dizer que tudo o que as Organizações Governamentais fazem é
política pública. De novo, esbarra-se em problemas categoriais. Uma sentença
judicial é emanada de uma Organização Governamental e nem por isso é
política pública.

Poder-se-ia invocar um critério político, ou seja, política pública é um


modo de a sociedade agir sobre ela mesma. Mas isto é vago demais porque,
além do Direito como um todo servir para isto, existem outras maneiras não
especializadas de a sociedade influir sobre ela mesma, como a arte, a
educação, etc.

Parece que novamente a resposta terá de ser buscada na pragmática do


discurso. Dizer que uma política pública é um discurso organizado e coerente
também é dizer nada, pois, além da dificuldade de ser necessário dizer porque
é organizado e coerente, outros discursos também o são. Isto, todavia, pode
ser traduzido de maneira não-metafísica, e é o que será feito mais adiante. Que
uma política pública sucede uma demanda social, não há dúvidas, e este é um
248

dado a ser levado em conta. Que uma política pública necessita de


engajamentos na ação para materializar-se também é verdade; mas todo o
Direito precisa. A diferença é que as políticas públicas necessitam de
engajamentos em nível de poder administrativo, e esta é uma pista a ser
seguida. Dizer que as políticas públicas estabelecem programas que se
protraem no tempo é correto, mas também uma série de outros fenômenos
também fazem isso, como os princípios.

Que exista tentativa de mudança consciente da sociedade, também todo


os resto do ordenamento busca fazê-lo. Que nas políticas públicas predomina
argumentos pragmáticos, isto ocorre em toda a Administração Pública.

O que vai realmente diferenciar a política pública de todo os outros


fenômenos é, além da confluência dos dados acima, a possibilidade de
identificação de um discurso que se auto-referencia enquanto fim e enquanto
meio. Isto é, as políticas públicas formam um todo orgânico especializado em
algo, cujo discurso traz dentro de si uma coerência narrativa entre fins e os
atos de fala necessários em sede de poder administrativo, isto é, faz uma
ligação causaliforme e comunicativa entre as medidas e os valores a serem
alcançados.

Estar-se-á, portanto, diante de uma política pública quando existe:

- um discurso que segue às demandas sociais;

- Direito como meio de organização dos engajamentos para ação;

- ligação com as Organizações Governamentais;

- influência da sociedade por ela mesma ou parte dela;

- tentativa de modificação consciente da sociedade;

- programas que se protraem no tempo;

- uso do poder administrativo;

- predominância e discursos pragmáticos, motivados por outras espécies


249

de discursos;

- coerência narrativa interna que possibilita a formação de uma


identidade a partir do cotejo meios-fins em sede de poder administrativo.

Observe-se um “teste” deste conceito. Este “teste” será realizado a partir


da Política Nacional do Meio Ambiente, e será utilizada apenas Lei nº 6.938, de
1981, a fim de abreviar a argumentação, muito embora se saiba que as
políticas públicas para o meio ambiente levadas a cabo pela União abrangem
muitas outras leis e a própria Constituição Federal. Ninguém duvida que, por
pior que seja, exista uma política pública para o meio ambiente. Já tendo a
resposta, se as perguntas se mostrarem coerentes, é sinal de que o conceito
foi achado. Existiu uma demanda social anterior? Sim, é a reclamação para
preservação do meio ambiente. O Direito é o meio para o engajamento na
ação? Sim, o Direito fixa os programas, estabelece os institutos, traça as
competências e cria os órgãos necessários para a política pública. Existe
ligação com Organizações Governamentais? Sim, em todas as esferas de
governo. Existe influência da sociedade por ela mesma e tentativa consciente
de mudá-la? Sim, buscando o estímulo e a não-ocorrência de certas condutas
através de conseqüências jurídicas. É o discurso que se protrai no tempo? Sim,
e vige até hoje. Existe uso do poder administrativo e predominância de
discursos pragmáticos? Sim, após a decisão de proteção do meio ambiente, foi
necessário o estabelecimento de meios pragmáticos para que estes fins sejam
alcançados. Finalmente, existe coerência narrativa interna que possibilita a
formação de uma identidade a partir do cotejo meios-fins em sede de poder
administrativo? Sim. A política pública tem uma identidade própria a partir do
estabelecimento de um ato de fundação (art. 1º da Lei nº 6.938, de 1981),
princípios próprios (art. 2º da Lei nº 6.938, de 1981), linguagem própria (art. 3º
da Lei nº 6.938, de 1981), objetivos (art; 4º da Lei nº 6.938, de 1981),
comunicações coordenadoras entre órgãos e definição destes (art. 6º da Lei nº
6.938, de 1981) bem como instrumentos pragmáticos (art. 9º da Lei nº 6.938,
de 1981). Todos estes dados que lei traz demonstram uma linha contínua,
dentro da própria política pública, entre a justificação e aplicação em direção à
concretização pragmática através de hipóteses e instrumentos de gestão, as
quais formam um todo narrativo coerente. Eis a política pública.
250

Uma última questão tem de ser resolvida no contexto desta seção.


Trata-se de um regime jurídico administrativo mínimo. O regime jurídico
administrativo é aquele conjunto de normas que se aplicam ao que se chama
de atividade administrativa. Na terminologia adotada neste trabalho, seria
aquele conjunto de normas (ou atos de fala normativos imperativos) que
regeriam o exercício do poder administrativo. Na tradição do Direito
Administrativo, este regime jurídico materializa-se em princípios, no que está
correto (desde que os princípios sejam entendidos nos termos da
argumentação de Günther). Não existe porque repeti-los aqui. Importa dizer
que a maior parte deles não são metafísicos, i.e., efetivamente é possível
reportar-se a decisões anteriores como atos de sua criação.

Ocorre que existem situações em que estes princípios não são aplicados
em sua plenitude. Por exemplo, no caso das concessionárias de serviços
públicos. Elas não estão obrigadas, por exemplo, a realizar licitações. Nos
termos deste trabalho – focado que está na Gestão Pública Compartida – a
preocupação procede, porque as Organizações da Sociedade Civil – entidades
de Direito privado – em princípio não estão sujeitas às regras de Direito
público. Seria necessário, então, com base na própria situação de uma Gestão
Pública Compartida, buscar fundamentos normativos para a formatação de um
regime jurídico mínimo para estas situações de Gestão Pública Compartida.
Este regime jurídico mínimo será, ao mesmo tempo, parâmetro de crítica do
instituído, mas também reconstrução de alguns institutos embrionários. Isto
será realizado algumas seções adiante.

Antes, todavia, a bem da continuidade de uma linha coerente de


argumentação, é necessário fundamentar outras proposições, quais sejam, a
de como é possível a Gestão Pública em uma dada sociedade.

4.3 Definindo categorias concretizantes de uma Gestão


Pública Compartida

O direito à auto-organização social em forma de Gestão Pública


251

Compartida é obstruído a partir de, basicamente, duas linhas argumentativas.


Não merecem sequer menção aquelas linhas argumentativas onde o
argumento subjacente remete a uma noção de população que não estaria
pronta a priori para tomar as rédeas de sua vida. Os argumentos que aparecem
com o mínimo de razoabilidade são aqueles que, 1) afirmam que questões de
Administração Pública no mundo contemporâneo são deveras complexas e,
portanto, apreensíveis somente na perspectiva cognitiva-instrumental, exigindo
saber especializado a tanto e, 2) é necessária a existência de um núcleo
mínimo de direitos, intocáveis a priori, a partir de justificações também a priori.
Os dois argumentos são bem frágeis e não demandam maiores considerações.

Quanto ao argumento 1), claramente ligado ao fenômeno da colonização


do mundo da vida, pode ser refutado através dos seguintes argumentos: a) no
mais das vezes, não é população que foge ao conhecimento técnico, e sim que
os operadores destes não procuram traduzi-los para o mundo da vida; b) a
extensão que o saber técnico ocupa não é tão grande assim, sendo, no mais
das vezes, as decisões motivadas por um mix de saberes técnicos com
saberes de outra ordem que, no final das contas, acabam mascarados de
técnicos; c) as propostas de maior participação na Administração Pública não
excluem, em geral, o saber técnico, pelo contrário, às vezes se dá uma
credibilidade maior de antemão ao argumento técnico. O que não cabe,
todavia, em uma situação democrática, é a atribuição de um maior valor a
priori, sem reflexão, ao saber técnico.

Quanto ao argumento 2), claramente ligado à posições substancialistas,


note-se que a atividade administrativa vai concretizar direitos fundamentais já
justificados, sinal que no mais das vezes a questão nem se põe, a não ser que
se argumente que exista, já em nível de justificação das normas, uma maneira
excelente de concretização das normas, ou uma antecipação concreta da
aplicação já em nível de justificação – argumento vazio que se coloca
perigosamente perto tanto de uma metafísica quanto de um saber
tecnoburocrático, porque elimina justamente parte da reflexão do discurso
normativo, realizando uma passagem direta da norma à ação. Já quanto a
situações não previstas em outros discursos, até mesmo porque se estará
tomando decisões a partir de procedimentos argumentativamente abertos, não
252

há que se falar em proteção de um núcleo mínimo, porque os próprios


destinatários deste núcleo mínimo estarão o definindo seu próprio conteúdo.

Estas linhas de argumentação, todavia, apontam para advertências que


se fazem presentes, resumidas na seguinte pergunta: quais são as condições
sociais para que seja possível uma Gestão Pública Compartida? Para
perguntas parecidas, tanto a Política quanto a Sociologia têm apontado para
eixos comuns, quais sejam, indagações acerca da cultura social, as condições
materiais e as ideologias individuais que seriam propícias. Uma teoria da
Gestão Pública Compartida que se coloca em termos de ação comunicativa
tem de saber responder a questão a partir de suas próprias categorias. Mas
isto gera um problema porque, necessariamente, haverá necessidade de
pesquisas empíricas e, portanto, necessidade de se responder quais são as
variáveis empíricas relevantes. Um trabalho teórico como o presente só tem
como apontar as diretrizes gerais de um empreendimento como este.

A partir das categorias expostas anteriormente ao longo deste trabalho é


possível montar tal quadro geral:

Aspecto do Moral Moral Direito/co- Paradi- Direito/ Socieda- Solidarie-


nível de social gnição gma estrutura des dade
desenvolvi- Individual Lingüísti-
mento co predom-
/variável inante

3 Pós- Pós- Pós- Filosofia Direito Moder- Pós-


convencio- convencio- convencio- da língua- formal nas nacional
nal nal nal gem ou pa-
triotismo
constitu-
cional

2 Conven- Conven- Conven- Fil. do Direito Tradicio- Nacional


cional cional cional sujeito tradicio- nais
nal

1 Pré- Pré- Pré- Fil. Direito Primiti- Tribal/re-


convencio- convencio- convencio- clássica Revela- vas ligiosa
nal nal nal do

Tabela 17 – Quadro de desenvolvimento geral

Como já avisado, as categorias trabalhadas aqui estão esparsas no


trabalho, de modo que não é necessário retomá-las. Salvo no que toca à
evolução da perspectiva moral individual.
253

A Ética do discurso poderia reconhecer traços fundamentais segundo


um modelo de estágios invariantes, presentes no desenvolvimento Moral
humano. Esses estádios, se provados que ocorrem universalmente, seriam um
argumento contra o relativismo contextualista553. A relação entre psicologia e
filosofia é de intercâmbio recíproco, pois a filosofia antecipa criativamente os
estádios que posteriormente serão validados com os métodos das ciências
“duras”, ou seja, experimentação e estatística.

Dentro do contexto de justificação da Gestão Pública Compartida


presente neste trabalho, o exame destes estágios é fundamental, uma vez que,
materialmente, está conectado com as condições de possibilidade de
interlocução entre os cidadãos, e, conceitualmente, com a evolução da
sociedade.

Kohlberg demonstra que o desenvolvimento Moral gradativamente


chega a um nível de respeito ao procedimento e de busca por princípios
universalistas:

Para Kohlberg, tanto quanto para Piaget, a seqüência de estágios por


que passa a pessoa é invariante, universal, isto é, todas as pessoas,
de todas as culturas, passam pela mesma seqüência de estágios, na
mesma ordem, embora nem todas atinjam os estágios mais
554
elevados .

O primeiro nível de interação é o nível Pré-Convencional. São visíveis


dois estágios neste nível. O estágio do Castigo e da Obediência (1) tem por
conteúdo a obediência estreita às regras e à autoridade familiar, evitando o mal
físico. Observa-se tais deveres a fim de evitar sanções do poder superior. A
perspectiva do sujeito em relação ao social é egocêntrica. Não há preocupação
psicológica com o outro, mas sim apenas física. O estágio seguinte é o da
Troca Instrumental (2), cujo conteúdo versa ser o correto a troca eqüitativa de

553
HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1989. p.144: “[...] a consonância entre a teoria normativa e a teoria psicológica,
considerada na perspectiva da Ética, consiste no seguinte. Para se opor às éticas
universalistas, em geral se mobiliza o fato de que as outras culturas dispõem de outras
concepções morais. Contra essa espécie de dúvidas relativistas, a teoria do desenvolvimento
Moral de Kohlberg oferece a possibilidade de: a) reduzir a multiplicidade empírica das
concepções morais encontradas a uma variação de conteúdos em face das formas universais
do juízo Moral e b) explicar as diferenças estruturais que ainda subsistam como diferenças dos
estádios de desenvolvimento da capacidade do julgar Moral [grifos do autor]”.
554
BIAGGIO, Ângela Maria Brasil. Lawrence Kohlberg: Ética e educação Moral. São Paulo:
Moderna, 2002. p.23.
254

atitudes, ou seja, faz-se exatamente aquilo que o outro lhe fez, vantagens e
desvantagens são simétricas. Age-se desta maneira porque inicia o
reconhecimento de que as outras pessoas também existem e têm interesses
distintos555. Há, portanto, em relação à perspectiva social, um incremento de
reflexividade, onde o sujeito já percebe a diferença entre o interesse próprio e o
alheio.

O nível de interação seguinte, o Convencional, incorpora os estágios 3 e


4. No estágio das Expectativas Interpessoais (3) o certo é a orientação do “bom
menino”, ou preocupar-se com os outros e passar a seguir regras mais gerais.
O motivo da ação já está na reciprocidade descompromissada, pois os atos
“bons” residem no fato de não querer que os outros realizem atos “maus”. Aos
poucos, o sujeito torna-se “bom” porque percebe a complexidade da vida do
outro. Coloca-se, então, na perspectiva concreta do outro, mas sem uma visão
mais geral de sistema Moral. O estágio da Preservação Social (4) apresenta
como novidade a consciência crescente da interação social e necessidade de
preservação de determinadas condutas. O certo é manter o estar do grupo e
apoiar a ordem social. As razões para tal preocupação radicam em um
imperativo social de reflexão acerca da maximização da conduta, ou seja, “e se
todos fizessem o mesmo”, daí a preocupação em se manter funcionando as
ordens sociais556.

Por fim, o nível Pós-Convencional concentra os dois níveis de


consciência Moral mais avançados. O estágio dos Direitos Originários e do
Contrato Social (5) versa ser o correto as leis, regras e contratos consertados
através de leis fundamentais, como contratos sociais em forma de constituição.
As razões para se fazer tal encontram-se em uma motivação reflexiva pelos
compromissos e respeito pelos outros, além de uma avançada visão de
imparcialidade. Os acordos sociais acabam sendo mais importantes que os
interesses individuais ou de mera preservação do grupo. Há uma visão
complexa de sistema Moral e do reconhecimento de diferentes moralidades, se
bem que ainda seja difícil integrá-las. O estágio final (6), dos Princípios Éticos

555
HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1989. p.152.
556
HABERMAS, Jürgen. HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Rio
de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. p.153.
255

Universais557, compreende a visão da ação Moral em sentido universalista,


transcendendo o contexto. Age-se de tal maneira porque ocorrera uma
percepção da excelência de tais princípios e um comprometimento para com
aqueles. O sujeito percebe as outras pessoas como fins, e não como meios558.

Através da aprendizagem, o indivíduo aprende a melhor resolver


problemas morais, ou seja, a resolver consensualmente as contendas do que é
bom para todos. Esse desenvolvimento vai alterando as estruturas cognitivas
morais a ponto de, em um estágio superior, o indivíduo saber explicar o porquê
da sua visão errada anterior. Se bem que as mudanças realizam-se através de
processos internos, sem dúvida um ambiente que possibilite as trocas
discursivas e morais possibilitará um melhor aprendizado, daí por que refutar-
se a idéia de que as pessoas, em determinados contextos, não estão
preparadas para a Gestão Pública Compartida, vez que é justamente pelo erro
que se torna possível a aprendizagem capaz de levar a níveis cognitivos e
morais mais altos.

A teoria de Kohlberg tem algumas implicações práticas: a seqüência de


estágios é universal, ficando excluída a possibilidade de sujeitos evoluírem
através de diferentes vias ao mesmo patamar, bem como a regressão de um
estágio superior ao anterior559 e que saltem de estágio a outro; existe
efetivamente uma hierarquia de estágios, onde o superior é mais excelente do
que o anterior; os estágios geralmente apresentam estruturas bem definidas,
dificilmente, mas não raramente (nos momentos de transição principalmente),
os estágios confundem-se560. É possível de observar, também, que a evolução
dos estágios acompanha uma visão crescentemente descentrada do mundo,

557
HABERMAS, Jürgen. La necesidad de Revisión de la Izquierda. Madrid: Tecnos, 1996:
“Pero ¿qué significa universalismo? Que se relativiza la propia forma de existencia atendiendo
a las pretensiones legítimas de las demás formas de vida, que se reconocen iguales derechos
a los otros, a los extraños con todas sus idiosincrasias y todo lo que en ellos nos resulta difícil
de entender, que uno no se empecina en la universalización de la propia identidad, que uno no
excluye ni condena todo cuanto se desvía de ella, que los ámbitos de tolerancia tienen que
hacerse infinitamente mayores que lo que son hoy; todo esto es lo que quiere decir
universalismo Moral”. p.218.
558
HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1989. p.154.
559
Habermas aponta, contudo, algumas recalcitrâncias, como casos de regressão. Esses,
contudo, são raros. HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. p.210.
560
HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1989. p.156.
256

indo do egocentrismo ao universalismo, passando pelo contexto familiar, social


mais próximo, social “nacional”, até atingir o patamar de toda a comunidade
mundial. Essa evolução refere-se também às habilidades comunicativas, tais
como a aprendizagem de papéis, a defesa de argumentos e o manejo e
diferenciação do mundo social, objetivo e subjetivo561.

No tocante às representações de justiça, é possível traçar os seguintes


paralelos entre as perspectivas sociais (e seu descentramento) em direção às
perspectivas universalistas. Assim, no estágio 1, uma perspectiva egocêntrica
liga-se a uma noção de justiça como ordem e obediência. No estágio 2, já há
um critério mais avançado de justiça, onde o correto é a simetria de bens e
ofensas. A descentralização da perspectiva acompanha o grupo primário no
estágio 3, onde a justiça é representada como a conformidade de papéis. No
estágio 4, o grupo primário alarga-se para o todo coletivo. O respeito às
normas sociais é o critério de justiça. O estágio 5 transfere o peso da justiça à
obediência a princípios fundamentais, como os direitos humanos, muito embora
ainda apresente dificuldades em explicações acerca do peso de tais
perspectivas. No último estágio, o 6, o indivíduo assume uma perspectiva
procedimental, com as respectivas conseqüências normativas que advêm da
Ética discursiva. A orientação de justiça vai no sentido da fundamentação das
normas e princípios universalizáveis562.

Habermas observa, com Kohlberg, a necessidade da existência de um


estágio final, para fins de comparação. A fundamentação "natural", encontrada
nos estágios anteriores aos pós-convencionais, encontra dificuldades, razão
pela qual deve ser "complementada" por uma teoria Moral, como fora a teoria
Moral pela teoria "natural".

O quadro presente na tabela 17, em realidade, é mais complexo do que


parece ser. Cada uma dessas colunas permite uma série de desdobramentos
analíticos e ligações com dados empíricos. Quando se fala em sociedade
moderna, por exemplo, fala-se em sociedades que percebem os três mundos
como diferenciados, que também está diferenciada a partir de critérios
561
HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1989. p.175.
562
HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1989. p.202.
257

quaisquer, que alcançou determinados níveis de avanço técnico-material, etc.


Tudo isto tem de estar conectado com dados empíricos, senão estar-se-á
tratando de mero palavrório sem sentido algum. Neste trabalho, é possível
apenas mostrar a funcionalidade da tabela como elemento orientador da
organização dos espaços de Gestão Pública Compartida.

Arbitrariamente, serão escolhido três níveis quantitativos:

O preto significa “predominante”, o meio-tom de cinza “regular” e o


cinza-claro “minoritário”. Também arbitrariamente, se escolhe valores para as
cores: preto= 3, meio-tom de cinza= 2 e cinza-claro 1. Pode-se, então, a fim de
verificar as melhores condições, multiplicar esses valores acima pelas valores
contidos na primeira coluna da esquerda para a direita e somá-los entre si. O
valor máximo da tabela é 111. Assim, quanto mais alto o valor, mais propícia,
pelo menos para Habermas (e no que o autor deste trabalho concorda) uma
dada sociedade será para a Gestão Pública Compartida. Note-se que este
critério matemático é meramente um auxiliar das questões qualitativas
presentes na tabela, e que são mais importante e cujos pesos podem variar
caso a caso.

É importante ressalvar que a tabela é aplicada para uma situação de fala


específica onde vai existir Gestão Pública Compartida. Por exemplo, não faz
sentido elaborar uma destas para o Brasil e aplicá-la, ceteres paribus, aos
Municípios em geral.

Mas, poder-se-ia intuir – no que apenas se elabora uma hipótese, vez


que um eventual preenchimento sério da tabela implicaria complexas
pesquisas empíricas – que no Brasil a tabela seria preenchida da seguinte
maneira:

Aspecto do Moral Moral Direito/co- Paradi- Direito/ Socieda- Solidarie-


nível de social gnição gma estrutu-ra des dade
desenvolvi- Individual epistemoló
mento gico
/variável predom-
258

/variável inante

3 – Mais Pós- Pós- Pós- Filosofia Direito Moder- Pós-


convencio- convencio- convencio- da língua- formal nas nacional
favorável
nal nal nal gem ou patri-
otismo
constitu-
cional

2 - Médio Conven- Conven- Conven- Fil. do Direito Tradicio- Nacional


cional cional cional sujeito tradicio- nais
nal

1 – Pouco Pré- Pré- Pré- Fil. Direito Primiti- Tribal/re-


convencio- convencio- convencio- clássica Revela- vas ligiosa
favorável
nal nal nal do

Tabela 18 – Especulação do nível evolutivo brasileiro geral

A intuição vai no sentido de que a maior parte dos cidadãos encontram-


se nos níveis intermediários de consciência Moral, acatando uma postura Moral
que valoriza o círculo familiar ou comunitário mais próximo mas despreza os
outros. Isto é combinado com um hedonismo seguido por grande parte da
população, de modo que a Moral individual do brasileiro trafega ainda entre um
hedonismo, um utilitarismo generalizado quando se trata de negócios e raros
indivíduos nos estágios mais altos de desenvolvimento Moral, onde seria
possível engajamentos comunicativos a partir de orientações mais
universalistas, seja em favor da comunidade nacional como um todo, seja em
favor da humanidade.

No que toca às construções sociais, as representações também seguem


a racionalidade individual, predominando – muito embora o hedonismo e o
utilitarismo não sejam aceitos como valores sociais consagrados – as
constelações convencionais, onde o que importa é valorizar o próximo, em
detrimento de concepções universalistas, misturada com uma certa tolerância
ao hedonismo e ao utilitarismo. Isto se reflete em valores sociais que postulam
um relacionamento utilitarista para com os estrangeiros, e ético para somente
os mais próximos. Predomina, assim, representações mais infantis do
cristianismo (que, na sua gênese, visa à universalidade). Essa influência não
só do cristianismo, como das religiões em geral, faz com que também grande
parte das pessoas adotem uma estrutura de pensar ainda pré-convencional –
equivalente ao animismo – onde as ordens sociais não são vistas como
construídas, mas como dadas pela natureza ou pela autoridade divina. São
259

poucos os círculos sociais onde se vislumbra uma generalização da Moral pós-


convencional. Se a maior parte da população é hedonista, utilitarista, ou não
consegue sair de uma relação Ética com a comunidade mais próxima, parece
claro que será mais difícil travar relações francas a partir da ação comunicativa,
onde teria de haver, por vezes, uma renúncia do interesse pessoal ou
comunitário mais próximo diante do melhor argumento.

O Direito aparece duas vezes na tabela. Uma vez a partir de sua


cognição e orientação, outra a partir de sua estrutura. No que toca à primeira
questão, a predominância parece de sua abordagem jurídica ainda já
secularizada, mas não livre da tradição. Parece existir uma espécie de
comunitarismo tupiniquim, onde o Direito é de algum modo um reflexo da
sociedade. O Direito parece não ser percebido como pós-tradicional, a não ser
por uma pequena parcela da população, i.e., poucas pessoas percebem que o
Direito pode, ao ser processualizado, atingir instâncias reflexivas que o façam
desbordar da mera tradição em direção a princípios mais universalistas. Uma
outra parcela da população brasileira parece perceber ainda o Direito como
atado a concepções absolutas de justo ou de bem a partir de justificações
naturais ou religiosas, além da vinculação à tradição. Note-se, apesar de existir
uma representação social do Direito como ligado aos valores comunitários, não
é por isso que o Direito necessariamente assim estará, até porque assumiria,
neste caso, uma estrutura tradicional, ao invés de formal; noves fora que
também existe uma série de normas que transbordam a mera tradição
brasileira, entre elas a própria Constituição. Uma cultura que perceba o Direito
como vinculado à tradição e não como veículo de inovação não parece ser
propícia à Gestão Pública Compartida.

Com relação ao paradigma epistemológico, por óbvio que se está


falando de uma exceção ao fato de que é necessário um exame social em
termos mais amplos, por que só quem está preocupado com epistemologia são
os doutos. Trata-se de notar se a epistemologia dominante está inserida em
algum paradigma filosófico. Isto tem relevância porque este conhecimento
reverte à esfera pública, e este processo é mais do nunca notado no Direito,
vez que os manuais de doutrina não informam apenas a formação de juristas
como efetivamente são fonte cotidiana para a confecção de pareceres e peças
260

processuais. O paradigma esmagadoramente dominante ainda é o da filosofia


do sujeito. Isto é melhor do que parece estar em segundo lugar, um acesso
ingênuo ao conhecimento. O predomínio da filosofia do sujeito não é igual a
colonização do mundo da vida, mas, pelas contingências descritas por
Habermas, o positivismo identificou-se muito com aquele paradigma filosófico e
com a racionalidade instrumental. O fato é que, se no Brasil predomina uma
prática nas ciências informada por uma racionalidade assujeitadora da
alteridade, incapaz de perceber a historicidade e a intersubjetividade, tais
problemas irão refletir em uma prática cotidiana regida pela racionalidade
instrumental, o que desborda no diagnóstico visto no segundo capítulo.

Já a estrutura jurídica do Direito brasileiro é moderna. O Direito é posto


por decisão e por um procedimento, não estando presente nos costumes
sociais, muito embora exista, como visto, uma representação social de cópia
dos costumes pelo Direito. A sociedade brasileira também é moderna, ou seja,
existe diferenciação social, mobilidade, trabalho material, etc. Algumas
relações pré-capitalistas, de inspiração feudal, ainda regem não só os rincões
mais interioranos como também as relações sociais em lugares ditos
avançados, operando-se a partir de privilégios e hierarquias.

Aspecto relevante é relacionado com a solidariedade social. No


esquema, predomina a solidariedade nacional, seguida pela solidariedade
religiosa e, por fim, uma solidariedade pós-nacional. A solidariedade, aqui, é
uma solidariedade política, diferente daquela gerada nas estruturas cognitivas
morais descritas anteriormente. Parece que, no nível de profundidade exigido
pela fundamentação aqui neste contexto, também é fácil provar que a
solidariedade política é, conforme o contexto, restrita àqueles mais diretamente
envolvidos, onde subjaz uma mitologia de proximidade histórica. Assim, o
cidadão brasileiro pode muito bem se engajar com outro brasileiro. Quando, se
trata, porém, de deliberações a nível pós-nacional, todavia, é comum observar-
se prevenções contra o estranho. Do mesmo modo, quando se decide a partir
de um lócus mais determinado, como um Município, dificilmente se pensa nas
conseqüências disto para o Município vizinho, por exemplo. Isto é, a reflexão
sempre parece estar – novamente ligando às estruturas de consciência Moral –
voltada aos mais próximos. Parece vir com grande força também
261

solidariedades de outra ordem, mais primitivas, como as de cunho religioso.


Daí apontar mais um dado desfavorável, porque se a solidariedade política é
motivada por causas concretas, mais difícil será a aceitação da demanda do
outro.

Mas voltando ao exame da tabela, as cores com valores máximos


predominam na faixa média, as cores médias na faixa mais baixa e as cores
fracas na faixa mais alta, totalizando as condições mais favoráveis da tabela
apenas 2 predominante, o que 3 (valor “mais favorável”) x 3 (valor
“predominante”) x 2 células, o que dá igual a 18. As outras 5 células da linha
“mais favorável acusam valor “minoritário”, o que 3 x 1 x 5= 15. Já a linha
média acusa 5 condições “predominante”, o que dá 2 (valor “médio”) x 3 (valor
“predominante”) x 5 células, o que daria 30. As duas outras da linha média
contém conteúdo regular, que vale 2, o que daria 2 x 2 x 2 =8. Finalmente, na
última linha, “pouco favorável” (valor 1), encontramos 5 células com conteúdo
“regular”, o que daria 1 x 2 x 5 = 10 e duas células com valor “minoritário”, o
que se materializa 1 x 1 x 2 = 2. Somando-se todos os resultados encontra-se
o número 83, que é pouco acima da média aritmética. Esta é uma opinião que
a maioria dos estudiosos parece ter: o Brasil possui algumas instituições
avançadas convivendo com realidades pré-liberais, em uma cultura
contraditória onde, se o autoritarismo não é mais desejado, também não se
atingiu uma Democracia plena e onde o fanatismo de qualquer matiz, muito
embora ainda não sejam latentes, tampouco foram abandonados.

Mas, afinal, qual é a razão 1) de se fazer diagnóstico e 2) quais as


posturas diante de um diagnóstico ruim? Estas são questões que, por si só,
demandam trabalhos a parte, de modo que as palavras seguintes são meras
especulações teóricas.

Acerca de 1). O principal problema aqui é: por mais primitiva que seja a
civilização, ela não pode ser tutelada, a não ser que assim queira – e isto é
imperativo consagrado na legislação internacional. Não ser tutelada significa
também não ser paternalisticamente preservada. Uma cultura tem de
sobreviver por si só, de modo que “proteger” uma comunidade da crítica é o
equivalente a infantilizá-la e condená-la à imobilidade. A exposição à crítica
pode levar à maior descentralização, mas não a garante. Olhando-se a questão
262

sob outro viés, pode-se dizer que uma dada sociedade tem de ter o direito de
errar também, pois não é possível que suas decisões sejam imunes ao erro,
até por que aí deixariam de ser decisões. É o erro que, precisamente,
possibilitará o aprendizado. Todos estes argumentos aqui se aplicam também
às comunidades em geral, i.e., o Município não pode ser protegido, por
exemplo, pela União. Se efetivamente esses argumentos, que convencem,
levam à conclusão de que a Gestão Pública Compartida será a mesma em
todos os lugares, então não há porque medir de antemão a possibilidade de
sua implantação. A questão deve ser abordada de uma outra maneira.
Suponha-se que tenha alguma utilidade pesquisar de antemão de a Gestão
Pública Compartida alcançará sucesso. Se esta for a hipótese, tem-se de
responder a pergunta 2). Espera que, respondendo a questão 2), responda-se
a questão 1).

Acerca de 2). Não conceder espaço ao erro e à crítica significa condenar


uma comunidade ao imobilismo. De outra banda, sociedades extremamente
primitivas (no que toca à sua racionalização em direção à descentralização)
encontrarão dificuldades em sua auto-gestão em termos de Gestão Pública
Compartida563, salvo, provavelmente, algumas exceções. Em países
signatários dos tratados da ONU, e em países que consagraram os direitos
fundamentais (ou seja, onde é possível retroceder-se a uma decisão
comunitária, e não à uma imposição metafísica), pelo menos um núcleo mínimo
de direitos fundamentais está imune, muito embora sua materialização, não. No
Brasil, como é possível vislumbrar as duas situações, não procede que o
abandono do paternalismo, em suas variadas matizes (uma das modernas é
certas tendências substancialistas), irá provocar um desprezo pelos direitos
fundamentais, pelo menos em nível de justificação, pelo argumento exposto
acima. Mas isto não resolve o problema: qual, afinal, a diferença de Gestão
Pública Compartida entre uma situação mais favorável para outra. Antes de
tentar estabelecer parâmetros mínimos, ainda existe uma outra ordem
considerações.

Se existe aprendizagem, esta aprendizagem não pode se dar pulando

563
Reconhece-se que algumas tribos primitivas têm uma auto-organização comunitária muito
forte. Porém, isto não significa que sejam capazes de fazê-lo em termos modernos.
263

degraus. Por exemplo, onde a maior parte da população ainda tem um


pensamento centrado em si e em seu círculo comunitário mais próximo não é
possível exigir-se deles que “pulem” direto ao nível cognitivo mais elevado, qual
seja, o pensamento universalista. É preciso antes passar, mesmo que
rapidamente, pelo pensamento do contrato social. Idem com as outras
categorias.

Por outro lado, existe uma série de serviços atualmente não compartidos
com a sociedade. Estes serviços terão de, algum momento, sofrer alguma
espécie de controle social.

De posse de ambas conclusões é possível tirar algumas conclusões


normativas. Liberdade é algo que precisa, também, ser conquistada, e não
apenas concedida. Uma solidariedade mais abstrata, livre de laços concretos,
será possível se os participantes observarem sua gestão democrática como
uma conquista. Daí porque se estabelecer uma graduação mínima de
implantação da Gestão Pública Compartida. Se, de um lado, é insuportável a
não-participação, de outro, nem tudo pode ser jogado à Gestão Pública
Compartida de um só fôlego. Daí por que ser estabelecida uma “regra de ouro”
que é muito vaga, e que deve ser materializada caso a caso: “a velocidade da
implantação dos espaços de Gestão Pública Compartida depende uma
negociação/equalização, a partir de discurso otimizados, entre a liberdade
necessária para a existência de erros sem uma sobrecarga cognitiva e
operacional para com estes espaços, os quais não suportam ainda, em
comunidades ainda pouco descentradas, uma pesada carga de necessidade
de decisões, sendo que os atores desta negociação são a comunidade
interessada, agentes do poder administrativo e agentes do poder legislativo
convencional”. Uma tal regra do ouro resolve vários problemas (criando outros):
a) é abstrata e, portanto, pode ser aplicada uma generalidade de casos, mas
demanda concretização, de outro lado; b) não é metafísica ou paternalista, pois
está baseada no princípio do discurso; c) não faz pouco caso da diferença
política entre as comunidades; d) permite a aprendizagem pelo erro; e) estes
erros, todavia, são “minizados” por uma implantação progressiva da Gestão
Pública Compartida; e, finalmente, f) as regras de transição são elaboradas
pelos próprios sujeitos participantes, e não desde fora. De posse desta regra, é
264

adequado dizer que faz sentido avaliar as condições para a Gestão Pública
Compartida.

Na legislação já existem fenômenos semelhantes. Dois são bem


conhecidos: um é Sistema Único de Saúde, onde o Município vai adquirindo
maior autonomia a medida que vai demonstrando maturidade; e outro é o
sistema de concessão de licenças ambientais, que também deveria funcionar
no mesmo esquema.

Isto tudo remete para uma última abordagem nesta seção. Trata-se das
funções sociais da Gestão Pública Compartida. Nas condições pós-tradicionais,
o Direito e a Administração assumem posições de destaque no que toca tanto
à auto-compreensão da população quanto às funções de seu entendimento.
Antigas aproximações baseadas na religião, na cultura ou na arte restam
desvalorizadas e, dependendo do modo como são vivenciadas, estas
diferentes espécies de solidariedade podem até mesmo obstruir a construção
de uma cultura democrática.

Assim como o Direito, a Gestão Pública Compartida apresenta-se como


um meio através do qual é possibilitado o entendimento. I.e., é necessário
tomar decisões, e estas decisões tem de ser legítimas, ou seja, regidas pelo
princípio do discurso, e depois materializadas. Dada a complexidade das atuais
demandas, a materialização das decisões exige órgãos, poderes,
competências e recursos materiais. Diante dos escassos recursos de
solidariedade na sociedade contemporânea, fazer algo comunitariamente é
muito difícil, de modo que não é a toa que a Administração Pública é uma das
instituições mais importantes da sociedade. Mas este fazer algo significa o quê
em sede de Gestão Pública Compartida, e como isto se retroliga com a
perspectiva de evolução social descrita mais acima?

A Gestão Pública Compartida, em primeiro lugar, auxilia instituições


clássicas (como a família e a escola) na socialização, através de duas vias: a)
como a sociedade é destinatária da Gestão Pública Compartida, todas as
políticas públicas levadas a cabo, como a manutenção do ensino, da educação,
etc, irão se transformar em implementadores das demandas. Isto é um
argumento trivial: quanto mais e melhores as políticas públicas, mais facilmente
265

as pessoas serão socializadas. Todavia, interessa o argumento b): na medida


em que devem ser tomadas decisões comunitariamente, o indivíduo socializa-
se a partir do contraste com a alteridade alheia. Se o processo não descambar
em mera violência, na passividade ou na ação instrumental, isto vai ter de
implicar na necessidade de ouvir-se o outro, e, neste sentido, o participante vai
ter de entrar na perspectiva alheia, maximizando suas próprias capacidades de
crítica e auto-crítica, e, com isso, descentralizando-se de seu próprio ego e
avançando moralmente. Mais que isso, como os argumentos são públicos, a
ação instrumental é revelada mais facilmente, de modo que existe uma
saudável coação à ação comunicativa, se não as demandas levadas pelo
participante em crítica não serão levadas a sério. Assim, os engajamentos
comunicativos produzidos em interações públicas não só possibilitam maior
crescimento político do cidadão, mas também possibilitam uma maior
socialização também em outras áreas, em vista das boas vantagens que a
ação comunicativa oferece.

Por outro lado, a Gestão Pública Compartida é exercida em lócus


específicos onde vige uma determinada cultura que, mesmo tendo que ser
aberta, não significa que não tenha identidade. Ora, se estão abertas as portas
para que a comunidade exerça influxos sobre si mesma, ela pode escolher
tanto quais serão estes influxos e bem como sua configuração. Isto é, a
comunidade pode levar à Gestão Pública Compartida argumentos éticos, de
bem-viver comunitário. Desta maneira, aquela comunidade exerce sua
alteridade ou direito de ser como deseja ser. Assim, a Gestão Pública
Compartida é também um espaço de criação, manutenção e crítica de
identidades culturais. Serve, portanto, à alteridade e a criação de uma
identidade única a partir da própria participação sobre si mesma. Possibilita-se,
nos termo habermasianos, a criação de uma instância de crítica de um
fragmento do mundo da vida social daqueles participantes.

No que toca à integração social, deve-se ter em vista uma confluência


da socialização e da reprodução cultural descritas mais acima. Como é
possível tomar decisões comunitariamente, torna-se viável a implantação do
patriotismo constitucional descrito por Habermas. Este patriotismo não deve ser
tomado como vinculado à Constituição Nacional, pois pode comunicar-se à
266

outros momentos organizativos em outras esferas de decisão, como as esferas


regional e municipal. Trata-se de um vínculo abstrato, que toma o outro como
passível de direitos e deveres pelo tão só simples fato de ser uma pessoa, o
qual vai participar também na resolução dos problemas.

Enfim, a Gestão Pública Compartida serve à formação consciente e


crítica de biografias individuais e comunitárias. É um lócus de formação de
respostas do que se quer em termos de primeira pessoa do plural e do
singular.

Essas interações demonstram também as relações que os participantes


estabelecem com o seu mundo da vida. A Gestão Pública Compartida permite
uma visão crítica com relação a este, que também é o repertório a partir do
qual se trazem argumentos.

A partir das considerações elaboradas acima, seria possível reconstruir,


voltado à Gestão Pública Compartida, as tabelas 5, 6 e 7 deste trabalho:

Processos de Cultura Sociedade Personalidade


reprodução/
componentes
estruturais
Reprodução cultural Proposições válidas Legitimação e Padrões de
pela Gestão Pública para a construção materialização das comportamento
Compartida de uma alteridade demandas sociais eficazes no
comunitária implemento de um
“patriotismo
constitucional”
Integração social pela Obrigações Regulações Pertença a grupos
Gestão Pública ilocucionárias na pré- legítimas a partir do destinatários da
Compartida seleção, princípio do Gestão Pública
procedimento e discurso Compartida
execução de
demandas
Socialização pela Interpretações crítica Motivações para a Capacidades de
Gestão Pública da face política da atuação conforme o interação política
Compartida cultura em termos de procedimento de
sua manutenção ou criação e
transformaçaõ materialização de
267

demandas públicas

Tabela 19 – Conteúdos dos processos de reprodução sob o prisma da


Gestão Pública Compartida

A tabela acima mostra a atuação dos processos de reprodução cultural


devidamente adaptadas à Gestão Pública Compartida. Abaixo, a tabela
originalmente numerada no trabalho como “7” praticamente não é modificada, e
demonstra a função do agir comunicativo dentro destes processos:

Processos de Cultura Sociedade Personalidade


reprodução/
componentes
estruturais
Reprodução cultural Tradição, crítica, Renovação e Reprodução do saber
aquisição do saber produção do saber eficaz nos processos
cultural que flui para legitimatório dos de formação do
os procedimentos procedimentos de indivíduo em
na Gestão Pública seleção e procedimentos
Compartida materialização
Integração social Imunização de um Coordenação de Reprodução dos
núcleo mínimo de ações através do padrões de pertença
garantias para o reconhecimento de a grupos
procedimento pretensões de destinatários da
validez através da Gestão Pública
deliberação e Compartida
materialização de
demandas sociais
Socialização Aculturação pela Internalização de Formação da
participação em valores relacionados identidade
procedimentos à alteridade produzida individual através
conscientemente em do contraste com o
nível administrativo outro em uma
situação de Gestão
Pública Compartida

Tabela 20 - Funções dos processos de reprodução sob o prisma da


Gestão Pública Compartida

Finalmente, a tabela, originalmente “6”, as quais demonstram as


268

patologias da modernidade também podem ser traduzidas a partir da


perspectiva da Gestão Pública Compartida.

Processos de Cultura Sociedade Personalidade Dimensão de


reprodução/ avaliação
componentes
estruturais
Reprodução Perda de sentido Perda da Crise de Racionalidade
cultural (desnecessidade legitimação orientação do saber
de uma (impossibilidade (utilitarismo, ou
alteridade de acordos em ação em benefício
específica a ser sede de Gestão próprio nas
criada em Pública situações de fala
Gestão Pública Compartida) em Gestão Pública
Compartida) Compartida)
Integração Insegurança e Apatia (não Alienação (crença Solidariedade
social perturbações da participação generalizada na dos membros
identidade nos inutilidade dos
coletiva procedimentos procedimentos)
(identidade de Gestão
coletiva acrítica) Pública
Compartida)
Socialização Ruptura das Falta de Psicopatologias Autonomia da
tradições (ruptura motivações para pessoa
acrítica ou não- a atuação
racional, conforme as
rompimento das normas
tradições desde (decisionismo,
fora, sem ou crença
procedimento) generalizada de
que não é
possível uma
decisão legítima)

Tabela 21 – Patologias específicas em sede de Gestão Pública


Compartida

Esta tabela “traduz” os problemas para as questões de Gestão Pública


Compartida. Os conceitos são fáceis e não demandam maiores explicações.

O desafio de investigar a Gestão Pública Compartida parte agora para a


269

definição de fenômenos análogos à Gestão Pública Compartida, bem como a


de sua tipologia.

4.4 Tipologias e fenômenos afins à Gestão Pública


Compartida

Existe uma série de fenômenos análogos à Gestão Pública Compartida


que merecem atenção, mas que não podem ser confundidos com aquela.

A primeira questão refere-se a um eventual predomínio da ação


comunicativa nas estruturas estatais. A auto-compreensão da Revolução
Francesa implicava em uma abertura deliberativa do Estado à sociedade. Só
posteriormente a legitimação cambiou para outras referências. Para se
constatar isso, basta notar a idéia de Democracia radical em Rousseau.

Então, não é só porque existe uma sensibilidade à esfera pública e um


abandono do predomínio da razão tecnicista que se estará diante de uma
Gestão Pública Compartida, até porque o caminho descrito é o caminho natural
das coisas conforme a auto-compreensão da modernidade. A Gestão Pública
Compartida é mais específica.

Outro fenômeno análogo é da subsidiariedade. Não é só porque se


observa e se defende uma transferência de competências e poderes para
esferas governamentais mais próximas do cidadão que isto implicará em uma
Gestão Pública Compartida, porque esta mantém pressupostos processuais
mais específicos.

Completamente irracional seria confundir Gestão Pública Compartida


com privatização. Obviamente que o discurso da reforma do Estado é um
engodo: “devolver” serviços à sociedade significou a transferência de serviços
de uma burocracia que pelo menos teria de legitimar-se, nem que fosse em
termos populistas, para uma burocracia organizada em termos capitalistas que
não tem necessidade de legitimar-se, o que implica, como todos sabem, altas
270

tarifas, altos lucros e baixos salários. É possível, todavia, uma Gestão Pública
Compartida da normatização de serviços delegados.

Mais complicada é a relação com a maior “participação” na


Administração Pública. Este realmente é um fenômeno assemelhado. Ocorre
que o fenômeno “mais participação” é mais abrangente que o fenômeno
Gestão Pública Compartida. Este ocorre quando em uma atividade
administrativa é necessário reproduzir os processos de seleção de demandas e
materializá-las nos padrões da Gestão Pública Compartida. “Maior
participação” é possível fora deste contexto e inclusive permite o uso
generalização da ação instrumental. Por exemplo, à reclamação do cliente
insatisfeito por um serviço público mal-prestado ao ombudsman pode ser
vislumbrada como um exemplo de maior participação, muito embora não seja,
de jeito algum, Gestão Pública Compartida. O próximo quadro ajuda a
esclarecer essa questão.

Gestão Pública compartida Outras formas de


participação

Executivo: Legislativo: eleição, Judiciário: direito de


eleição iniciativa de lei, petição, fiscalização,
direito de petição, plebiscito, referendo, reclamação, direito
fiscalização, direito de petição, de ação e
reclamação, direito de fiscalização, consectários,
ação e consectários, reclamação, direito de concurso público
concurso público ação e consectários,
concurso público

Participação em atividade de Especificidade: necessidade


administração de novas justificações e
discursos de aplicação mais
amplos

Figura 4

Esta figura, como já abordado, demonstra uma série de possibilidades


271

de interações entre população e poderes público. Sob o quadro “Outras formas


de participação”, é possível ver, por exemplo, o direito de votar, de peticionar,
etc., que são formas importantes de exercício da cidadania. Não se configuram,
todavia, em Gestão Pública Compartida, pois este fenômeno é mais específico.

Diante destas possibilidades, é possível lançar uma plêiade variada de


perspectivas por sobre a questão, e, neste caso, já se está diante das
tipologias. As tipologias aqui presentes utilizam-se de uma série de critérios,
explicitados nos esquemas, que demonstram mais as possibilidades da Gestão
Pública Compartida do que propriamente utilidade normativa. De fato, poucas
classificações aqui presentes possuem alguma utilidade normativa.
Possibilitam, porém, uma visão mais abrangente das questões aqui tratadas.

Utilizar-se-á, para a apresentação das tipologias, esquemas


geométricos, os quais possibilitam uma visualização mais rápida e economizam
maiores explicações.

Gestão Pública Compartida


Institucionalizada

Gestão Pública Compartida


Associada
Com relação à vinculação
ao poder público Gestão Pública Compartida
Vinculada

Gestão Pública Compartida


Independente

Figura 5

Esta figura representa uma classificação com relação à vinculação com


o poder público. Assim, a Gestão Pública Compartida Institucionalizada é
aquela que ocorre quando os espaços são organizados e mantidos pelo poder
público, às vezes assumindo a forma de órgãos públicos. Exemplo deste tipo
são os conselhos e os fóruns de debates. A gestão participativa do orçamento
em parte insere-se nesta categoria.

A Gestão Pública Compartida Associada é mais independente do poder


público, organizando-se, geralmente, de forma auto-gestionária, mas mantendo
272

vínculos legais e administrativos com o poder público, sob a forma de


transferência de poderes, competências, recursos e funcionários ou um regime
jurídico diferenciado. Os Comitês de Ética nas Universidades, as Organizações
Sociais, as Universidades Comunitárias e as Organizações da Sociedade Civil
de Interesse Público são um exemplo desta tipologia.

A Gestão Pública Compartida Vinculada liga-se ao Estado por um liame


frágil, com o reconhecimento ou a atribuição de alguma competência à
organização da sociedade civil que, geralmente, não necessita de nenhum
reconhecimento especial. Assim é, por exemplo, a atribuição de status jurídico
a cursos ministrados por movimentos sociais ou a interposição destes, dentro
do contexto de uma política pública, entre as instituições estataliformes e o
cidadão.

Finalmente, a Gestão Pública Compartida independente não se liga às


Organizações Governamentais de nenhum modo. Por exemplo, creches,
entidades de assistência e saúde não ligadas ao Estado. Todavia, a elas se
aplica - além das normas peculiares ao estabelecimento (ex. Lei do SUS às
entidades de saúde não vinculadas a políticas públicas) – o “mínimo” de um
“regime jurídico mínimo”, como a impossibilidade de apropriação privada dos
recursos, a possibilidade de aplicação de remédios jurídicos peculiares à
Administração, como o mandado de segurança, e, finalmente, o princípio da
publicidade, bem como um mínimo de abertura à participação interna (e isto
diferença as entidades pertencentes à Gestão Pública Compartida de
entidades meramente paternalistas).

Uma outra possibilidade é a seguinte:

Gestão Pública Compartida Episódica

Quanto ao momento de
realização Gestão Pública Compartida Intermitente

Gestão Pública Compartida Constante


273

Figura 6

Este critério é do momento da realização. Uma Gestão Pública


Compartida pode ser episódica, i.e., instala-se a partir de uma necessidade
ocasional. Por exemplo, para a deliberação e acompanhamento de uma grande
obra. Um exemplo é o das Consultas Públicas em matéria de meio ambiente
diante da instalação eminente de um grande empreendimento poluidor.

A Gestão Pública Compartida Intermitente é aquela que se instala e se


esvai em períodos intercalados, geralmente previsíveis de antemão. É o caso,
por exemplo, das reuniões para a criação de Planos Diretores, os quais
obrigatoriamente têm de ser revisados depois de um número X de anos.

A Gestão Pública Compartida Constante é a mais comum. Trata-se de


uma atividade que – mesmo que não tenha pretensão de perenidade, e os
participantes não estejam engajados nela todo o tempo – possui uma
regularidade. Os conselhos e as atividades de Gestão Pública Compartida de
execução de políticas públicas são um exemplo.

Gestão Pública Compartida


de Participação Difusa

Gestão Pública Compartida


Quanto à definição dos de Participação Delimitada
participantes

Gestão Pública Compartida


de Participação Mista

Figura 7

A figura acima demonstra as possibilidades com relação à delimitação


dos participantes. Na Gestão Pública Compartida de Participação Difusa os
participantes não estão delimitados de antemão. Por exemplo, na Gestão
Participativa do Orçamento, qualquer um que aparecer no dia previsto, e
preencha as condições do regulamento, pode participar. Por outro lado,
274

vislumbra-se também uma Gestão Pública Compartida de Participação


Delimitada, onde os participantes já estão delimitados de antemão. É o caso
dos conselhos, onde as próprias normas constitutivas prevêem quais serão os
membros. Pode existir também uma conjugação dos dois critérios. Um exemplo
ocorreria quando os próprios conselhos realizam audiências públicas.

Gestão Pública Compartida


temática

Gestão Pública Compartida:

Gestão Pública Compartida


não-temática

Figura 8

Os espaços de Gestão Pública Compartida podem ser temáticos ou não


temáticos. Os espaços não temáticos não têm nenhuma espécie de vinculação
a uma matéria específica. Têm, no seu âmbito de competência específica,
liberdade para tematizar os mais diversos problemas e buscar as devidas
soluções. Um exemplo é a gestão participativa do orçamento, onde, no que
toca a sua função de elaboração da proposta orçamentária, pode decidir
acerca das mais diversas possibilidades em diferentes âmbitos. Ao contrário, a
Gestão Pública Compartida Temática é especializada em uma ou mais
matérias (dentro das quais, evidentemente, existe liberdade com relação às
matérias). Um exemplo seria o Conselho Nacional do Meio Ambiente –
especializado em questões de meio ambiente, ou uma organização social cujo
objeto seria a prestação de serviços de saúde ou e de ensino superior –
especializada, nas respectivas áreas, mas dentro das quais possuem liberdade
de discussão e execução. Não é possível dizer a priori qual é o melhor tipo de
gestão, pois isso é uma questão que depende das contingências da
comunidade destinatária dessas políticas.

Gestão Pública Compartida


Espontânea

Quanto à motivação para a Gestão Pública Compartida


instalação Induzida
275

Figura 9

O mais comum é que a Gestão Pública Compartida seja programada,


i.e., os participantes adotem uma posição reflexiva que vira rotina, ganhando,
assim, previsibilidade. Por exemplo, é seguro dizer que o poder público pode,
por exemplo, programar uma audiência pública em busca de legitimidade para
alguma política pública. Antes que se torne uma atividade rotineira, ela pode
advir da espontaneidade ou ser induzida. No primeiro caso, os participantes
espontaneamente se reúnem e resolver gerir a coisa pública de maneira
compartida. No mesmo exemplo das audiências em políticas públicas, pode
ocorrer de a necessidade brotar no seio da comunidade, i.e., ela mesma gerar
a necessidade de ser ouvida. No segundo caso, os participantes podem estar
acometidos da apatia. Assim, Gestão Pública Compartida pode ser fomentada
e este próprio fomento ser uma política pública. Neste sentido, será uma
Gestão Pública Induzida. Por exemplo, quando o poder público federal induz a
formação de conselhos municipais por meio da liberação/não-liberação de
verbas, conforme esteja instalado ou não o conselho.

Gestão Pública Compartida


de pessoal cedido

Gestão Pública Compartida


de pessoal voluntário
276

Figura 10

A Gestão Pública Compartida de pessoal cedido é aquela onde as


atividades de organização e materialização de políticas públicas levadas a
cabo por funcionários cedidos pelo poder público. Um exemplo são as
Organizações Sociais. Esses funcionários, que têm vinculação estatutária ou
contratual com o poder público, são cedidos em vista das relevantes atividades
desenvolvidas pela organização da sociedade civil gestora ou em vista de que
o espaço de Gestão Pública Compartida é um espaço institucionalizado.

A Gestão Pública Compartida de pessoal voluntário é realizada por


pessoas que não têm um vínculo profissional com o órgão gestor. Ressalte-se
que esta falta de vínculo profissional não ilide a possibilidade de existência de
um estatuto jurídico que vincule o voluntário tanto ao poder público quanto à
entidade privada (sendo que este estatuto pode ter o mínimo de direitos, como
por exemplo diárias, isenções etc, e deveres, como probidade na
Administração do numerário, presteza do serviço, etc). Nesta categoria são
inseridas todas as políticas públicas que são realizadas a partir de pessoal
voluntário. É muito comum, por exemplo, escolas organizarem os próprios
espaços de Gestão Pública Compartida (comumente em sede de gestão
participativa no orçamento), ou mesmo no caso de entidades assistenciais.

A Gestão Publica Compartida de pessoal profissional é aquela onde o


pessoal não é nem voluntário e nem cedido pelo poder público. O seu vínculo
de trabalho é remunerado pelo próprio órgão responsável pela Gestão Pública
277

Compartida. Um exemplo é o dos funcionários de uma universidade


comunitária, que são remunerados pelos próprios recursos arrecadados pela
organização ou também os funcionários de um pedágio, ou de uma estação de
geração de energia mantidos pela comunidade (muito embora esses dois
últimos exemplos sejam raros).

Por fim, é comum que os espaços de Gestão Pública Compartida


apresentem tipos mistos, englobando mais de uma espécie.

Gestão Pública Compartida na Seleção de


Demandas Sociais

Quanto às funções Gestão Pública Compartida na Deliberação


primárias de Programas de iniciativa governamental

Gestão Pública Compartida na Execução


dos melhores meios para o alcance de fins já
postos

Figura 11

A figura acima mostra as funções mais importantes da Gestão Pública


Compartida dentro do espectro da coordenação de ação pela ação
comunicativa. Ela tanto pode selecionar demandas sociais através de um
procedimento qualquer (como no caso da Gestão Participativa no Orçamento),
como pode também criticar, modificar, aprovar ou reprovar alguma iniciativa
governamental (como nos conselhos setoriais de políticas públicas). Pode
também ter a função de selecionar os melhores meios para a execução de fins
que já foram postos como necessários em algum outro foro de decisão (Um
exemplo seriam os conselhos com competências executivas, como o Conselho
Nacional de Assistência Social) bem como, finalmente, pode o próprio órgão
gestor levar a cabo os atos materiais para a realização da política pública
(Comitês de Ética das universidades materializam parte das políticas públicas
de saúde, evitando pesquisas inúteis ou imorais).
278

Gestão Pública
Compartida:
numerário do Estado

Gestão Pública Compartida


Gestão Pública
Financiada por tributos
Compartida:
instituídos pelo
Estado e arrecadados
pelo órgão gestor
Gestão Pública Compartida:
Quanto ao Financiada por Doações
Financiamento

Gestão Pública Compartida


em Autofinanciamento

Figura 12

O financiamento da Gestão Pública Compartida pode ser, por vezes, um


assunto delicado. Este trabalho não irá além da tipologia, a qual, por sua vez,
apresenta as possibilidades. Isso não elimina a necessidade de um exame
posterior mais sério e abrangente acerca deste tópico. A Gestão Pública
Compartida pode ser financiada pelo Estado, e talvez esta seja uma das mais
maneiras mais eficientes de se gestionar as políticas públicas. Em sociedades
capitalistas, a única maneira de financiar o setor público é com tributos, e estes
só entidades legitimadas a tanto, como as Organizações Governamentais, são
capazes de impô-los. O numerário necessário para tocar a gestão pode tanto
vir de entradas não-vinculadas à política pública específica, mas também
podem advir da própria situação de Gestão Pública Compartida. O mais
comum é as políticas públicas serem financiadas por tributos em geral, sendo
que algumas, como a da saúde, saem geralmente de tributos não-vinculados a
finalidades (com algumas exceções), enquanto que outras, como as de
cobertura de riscos previdenciários, saírem de tributos vinculados
(contribuições sociais).

Muito embora seja inviável vislumbrar uma organização em Gestão


Pública Compartida arrecadando impostos e contribuições, é muito fácil, sob
outra visão, imaginá-la cobrando taxas pelo exercício de poder de polícia ou
279

pela disponibilidade de um serviço público. Poder-se-ia conjecturar um corpo


de bombeiros voluntário que, em virtude de convênio com o poder público, é
autorizado a realizar as vistorias de segurança em prédios, podendo cobrar
taxas, para tanto. Uma Gestão Pública Compartida pode simplesmente ser
sustentada por doações, ou meramente pelo serviço voluntário. É o caso, por
exemplo, de pequenas creches e entidades de assistência social. A Gestão
Pública Compartida pode ser também autofinanciada pela prestação de seus
serviços (onde não se configure uma taxa). Como exemplos, as mensalidades
cobradas pelas universidades comunitárias, o preço cobrado pelo atendimento
de saúde em uma Organização Social especializada em saúde, ou o valor de
um pedágio mantido pela comunidade. Nada impede, por fim, que se sustente
a atividade mediante uma conjugação de duas ou mais fontes de recursos.

A próxima figura mostra a questão da administração dos bens relevantes


para gestão de uma política pública. Políticas públicas podem ser levadas a
cabo a partir da utilização tanto de bens públicos quanto privados. Esta divisão
não é fortuita, pois tem valor próprio. Não é porque uma organização não-
governamental é competente para determinada política que automaticamente a
titularidade dos bens será necessariamente privada. Tampouco a recíproca
pode ser verdadeira.

Gestão Pública Compartida a partir de bens


públicos

Quanto à titularidade
dos bens afetados Gestão Pública Compartida a partir de bens
públicos compartidos

Gestão Pública Compartida a partir de bens


privados

Figura 13

Em sede de Gestão Pública Compartida, os bens relevantes para


determinada política podem ser totalmente públicos. Ocorre primariamente
naqueles casos onde a Gestão Pública Compartida ocorre sob a forma de
órgãos públicos. Tome-se por bens relevantes aqueles afetados à política
280

pública, i.e., imóveis (onde o órgão se encontra), móveis (tais como


computadores, automóveis, etc.). Por óbvio que, em uma perspectiva
expansiva, uma série infinita de bens estariam envolvidos em uma política
pública, os quais poderiam ser enumerados desde o automóvel que o agente
utiliza para ir até o trabalho aos fins de luz que levam energia aos locais de
produção de políticas públicas. Uma teoria que dissesse quando um
determinado bem é relevante ou não para o caso seria deveras complexo para
a problemática em questão. Os bens podem ser públicos e administrados pela
Administração Pública em regime de Gestão Pública Deliberativa. Neste
sentido, não haverá discrepâncias com relação ao regime administrativo de
bens públicos ordinário. Os bens podem ser também particulares, sendo
administrados por particulares. Até aí também não reside maiores problemas,
vez que o regime jurídico será eminentemente privado, muito embora sua
importante destinação possa revelar alguma peculiaridade aqui ou acolá. A
questão central reside no regime jurídico dos bens diretamente administrados
por um “parceiro” ou “associado”, na terminologia do Direito Administrativo,
mas que, em sua titularidade, pertencem ao poder público. Aqui não é possível
mais do que meramente conjecturar que o regime desses bens compartidos
obedecerá a uma lógica própria. Não resta dúvida, porém, que a
predominância de gestão, em regra, será do tipo pública (muito embora seja
muito difícil dizer o que é isso), pois não é possível imaginar a organização
compartida vendendo bens, ou alugando-os, sem as formalidades necessárias,
ao modo das empresas privadas.

O quadro na página seguinte mostra importantes possibilidades


estruturais a Gestão Pública Compartida no que se refere à execução das
Políticas Públicas. Um espaço de Gestão Pública Compartida pode resumir-se
a deliberar sobre certos assuntos, pode executar as políticas públicas ou pode
fazer ambos. A Gestão Pública Compartida Deliberativa pode ter suas
resoluções executadas pela própria organização constitutiva da Gestão
Pública, como uma universidade e seu conselho administrativo; pode ter suas
resoluções executadas pelo poder público, como na gestão participativa do
orçamento e na maior parte dos conselhos.
281

Figura 14

Gestão Pública Compartida:


Execução pela
Administração Pública

Gestão Pública Compartida:


Gestão Pública Compartida Execução pelo próprio órgão
de Deliberação deliberativo

Gestão Pública Compartida:


Execução por outro órgão
Quanto à entidade que de Gestão Pública
Executa Compartida

Gestão Pública Compartida:


Execução por entidades de
racionalidade instrumental

Gestão Pública Compartida:


Comunidade
Gestão Pública Compartida
de Execução

Gestão Pública Compartida:


Comunidade organizada
juridicamente
282

A deliberação tomada pelo órgão de Gestão Pública Compartida pode


remeter também a outro órgão de Gestão Pública Compartida, como o Conselho
de Saúde Município estabelecendo diretrizes para as Organizações Sociais. Pode
também ser executada por organizações burocráticas de racionalidade
instrumental, ou seja, as empresas. Um exemplo seria o de eventualmente uma
agência reguladora organizar-se conforme os parâmetros do princípio do discurso
para o estabelecimento de políticas a serem seguidas pelas empresas
concessionárias. No que toca à execução de serviços por uma situação de
Gestão Pública Compartida é possível vislumbrar-se uma execução sem maiores
formalidades, sem a necessidade de constituição de uma pessoa jurídica a tanto,
como em associações para recuperação de jovens através da arte, ou rádio
comunitárias, como também pode existir a necessidade de cumprimento de
maiores formalidades jurídicas para a implantação dos serviços, como nas
universidades.

Estabelecidos estes parâmetros teóricos mínimos, toca vislumbrar um dos


pontos centrais desde trabalho, quais sejam, a dos fluxos comunicativos em sede
de Gestão Compartida, os quais ajudarão a melhor definir a temática.

4.5 Questões discursivas relativas à Gestão Pública


Compartida

A Gestão Pública Compartida, já foi possível notar, caracteriza-se pela


associação do poder administrativo à exigência de novas justificações e
aplicações. O caráter eminentemente pragmático da Administração Pública, como
instrumento de materialização de demandas pós-seleção primária é, na Gestão
Pública Compartida, relativizado para o levantamento de novas justificações. Na
Gestão Pública Compartida podem ser reexaminados novamente os argumentos
pragmáticos no sentido do auto-interesse dos membros, éticos de bem-viver na
comunidade e morais regidos pelo princípio “U”. É possível, também, trabalhar
com discursos constatativos (uma dada comissão de biosegurança que verifica o
283

não-oferecimento de perigo ao meio ambiente por uma nova espécie vegetal, ou o


Conselho Nacional de Educação verificando as condições materiais para a
instalação de um novo curso universitário), discursos normativos (estabelecimento
do destino do orçamento público, criação de diretrizes para a exploração da água)
e expressivos (mais raros).

Gestão Pública
A próxima figura relembra estas possibilidades. Compartida de
Discursos
predominantemente
de Justificação

Gestão Pública
Compartida de
Discursos
Quanto ao nível predominantemente
argumentativo de Aplicação
normativo

Gestão Pública
Compartida de
Discursos Discursos
Quanto a predominantemente
predominância de Pragmáticos
argumentos
Gestão Pública
Compartida de
Discursos
predominantemente
Éticos

Gestão Pública
Compartida de
Discursos
predominantemente
Morais

Gestão Pública
Compartida de
Discursos
Quanto a predominantemente
predominância de Constatativos
tipos de atos de fala
Gestão Pública
Compartida de
Discursos
predominantemente
Normativos

Gestão Pública
Compartida de
Discursos
predominantemente
Expressivos
284

Figura 15

Uma possibilidade tipológica argumentativa é o da predominância de


engajamentos comunicativos em relação ao nível argumentativo em sede de
discursos normativos. Conselhos de Políticas públicas que elaboram diretrizes
mais gerais, ou mesmo o Gestão Participativa do Orçamento, em geral procedem
a discursos de justificação, onde a tematização é muito livre, estando geralmente
livres para trabalhar argumentos ou vinculados à comunicações vagas, como a
Constituição e leis gerais. Mas também pode existir gestão compartida onde os
discursos são predominantemente de justificação, como no caso dos Comitês de
Ética, os quais procedem a uma aplicatio das normas gerais estatuídas pelo
Conselho Nacional de Saúde.

De outra banda, os discursos presentes na Gestão Pública Compartida


podem ser predominantemente pragmáticos (como no caso dos conselhos de
merenda escolar, onde o questionamento é o que é melhor e mais barato),
predominantemente morais (como nos Comitês de Ética, pois se busca o
universalmente correto) ou predominantemente éticos (Gestão Participativa no
Orçamento, pois a decisão estará referida ao que é melhor para aquela
comunidade).Lembre-se que estes termos aqui foram tomados nos significados
atribuídos por Habermas.

Por outro lado, os atos de fala presentes dos discursos podem ser
predominantemente constatativos, onde, por exemplo, são verificadas a
ocorrência de certos dados fáticos (como, por exemplo, no Conselho Nacional de
Educação com relação ao preenchimento dos pressupostos para constituição de
cursos universitários), bem como regulativos (a maior parte dos conselhos), bem
como, finalmente, expressivos, onde os discursos predominantemente seriam de
auto-apresentação. Não existem exemplos deste último caso. Por óbvio, a maior
parte destes espaços compreende um agregado dos vários tipos de discursos.

Na próxima figura, também é possível vislumbrar parte do que já fora


explorado:
285

Gestão Pública compartida Gestão Pública não-


compartida
Figura 15

Estado característico: Estado característico:


Estado Democrático de Liberal, Social, Democrático
Direito de Direito, Neoliberal

Interesse público: concreto, Interesse público: abstrato,


delimitado pelo previsto em lei
procedimento

Racionalidade: Racionalidade:
predominantemente predominantemente
comunicativa instrumental

Necessidade de novas Desnecessidade de novas


justificações e aplicações justificações e aplicações

Organizações da sociedade Organizações da sociedade


civil: pressão, seleção e civil: pressão
parceria

Cidadão: gestor e Cidadão: legitimação


destinatário de políticas indireta das políticas
públicas públicas, cliente

Sociedade: Democracia Sociedade: necessidade de


basta para que seja possível algum laço concreto para
uma vida comunitária. que seja suportável a vida
comunitária

Argumentação: argumentos Argumentação: argumentos


técnico-instrumentais técnico-instrumentais
valorizados definitivos

Execução: poder público, Execução: poder público e


empresas capitalistas e empresas capitalistas
Organizações da Sociedade
Civil

Figura 16
286

Na Gestão Pública não-compartida, a racionalidade instrumental é o


paradigma dominante, o interesse público é abstrato e a priori, a sociedade civil
apenas serve para pressão por sobre a administração, o cidadão é tomado como
cliente das políticas públicas, a execução ocorre pela burocracia e por empresas
capitalistas e, finalmente, um tal modelo é compatível com os outros Estados
além de um Democrático de Direito. Já a gestão Compartida supõe apenas o
Estado Democrático (i.e., não seria possível em ditadura ou um Estado
puramente liberal), percebendo o cidadão como sujeito ativo, fomentando a ação
comunicativa bem como percebendo outros tipos de relações com a sociedade
civil que não meramente as de pressão.

Existem também duas diferenças a partir das quais vale pena gastar mais
algumas palavras, e que não se explicam por si só. Uma delas é a questão
relacionada com o nível de evolução moral de uma dada sociedade. Ora, a
Gestão Pública Compartida, apesar de não ser incompatível com níveis morais
convencionais políticos, parece, contudo, dar-se melhor com solidariedades pós-
convencionais. O abandono da mitologia da decisão técnica implica em tomada
de consciência das responsabilidades que a sociedade e seus membros
assumem para si. A assunção destas responsabilidades estão conectadas com
um exercício de uma autônoma da vontade com os outros, a partir da formação
de normas e decisões intersubjetivas. Tudo isto conforme a tabela apresentada
anteriormente. Ora, solidariedades muito concretas podem impedir a
trafegabilidade entre um ou outro âmbito de gestão compartida. Por exemplo, ora
o cidadão de um município pode estar decidindo como será gasta a renda do
próprio município, mas pode, no dia seguinte, estar decidindo uma política pública
ambiental que se relacione com toda a bacia hidrográfica, e que poderá, por
exemplo, gerar custos para o município. Solidariedades muito concretas impedem
a transcendência do contexto para a percepção de que tais políticas podem ser
benéficas a todos. Neste sentido, uma solidariedade pós-convencional, estilo
patriotismo constitucional, como Habermas abordada, pode tornar estas decisões
mais rápidas e mais legítimas.

Um outro quadro que merece mais algumas palavras está relacionado com
as questões técnicas, ou pragmáticas. Note-se que, comumente, os problemas
287

são extremamente complexos e exigem constelações de argumentos


pragmáticos, éticos e morais. Em um modelo burocrático (e também no
“gerencial”), o argumento pragmático advindo do saber especializado é tomado
como o mais “adequado”, sendo todos os demais ideológicos. Esta mitologia,
como se sabe, é fomentada não só pela burocracia, mas também pela esfera
pública empresarial materializada em mídia. No modelo da Gestão Pública
Compartida, é possível, por exemplo, privilegiar argumentos pragmáticos, dando-
se oportunidade, por exemplo, de confecção de pareceres por órgãos técnicos, os
quais só serão superados diante de deliberação nos espaços de participação.
Este privilégio, contudo, não pode ofender a busca da simetria de fala.
Esfera Pública – debates
informais

Pré-
procedimento
Organizações
da Sociedade
Civil

Debates temáticos – poder


comunicativo - demandas

Procedimento de seleção pelos órgãos Procedimento


legislativo e judiciário

Poder Administrativo Pós-


procedimento

Políticas Públicas

Figura 17

A figura acima mostra como os fluxos comunicativos ocorrem sem Gestão


Pública Compartida. Ela serve de contraste para a figura que demonstra os fluxos
288

comunicativos que ocorrem em sede de Gestão Pública Compartida, qual seja, a


figura 18, disposta logo abaixo. No caso da Gestão Pública não-compartida,
releva notar a existência de três fases simples e bem nítidas. O mesmo não
ocorre abaixo.

Esfera Pública – debates


informais

Pré-
Organizações procedimento
da Sociedade
Civil

Debates temáticos – poder


comunicativo - demandas

Procedimento
Procedimento de seleção pelos órgãos
legislativo e judiciário

Pós-procedimento
Esfera Pública legislativo/Judiciário
– debates Poder Administrativo – pré-procedimento
informais Gestão Pública
Compartida

Gestão Pública
Organizações Compartida =
da Sociedade Procedimento
procedimento +
Civil > poder –Gestão P.
poder administrativo
comunicativo Compartida

Esfera Pública Poder Administrativo Pós-procedimento


– debates Gestão Pública
informais Compartida – pré-
procedimento
Gestão Pública
Gestão Pública
Organizações Compartida Procedimento
da Sociedade =Organizações da – Gestão P.
Civil > poder sociedade + poder Compartida
comunicativo administrativo

Pós-
Poder Administrativo procedimento
>Políticas Públicas
289

Figura 18

Esta figura demonstra a estrutura de fluxos argumentativos. Pode-se notar


que os fluxos são bem mais complexos do que na gestão tradicional. A figura
mostra um processo completo, onde o momento de tomada de decisões pós-
procedimento é ele mesmo um momento prévio a uma nova tomada de decisão
regida pelo princípio do discurso. A seguir, vem a repetição do procedimento, com
a influência da esfera pública e das Organizações da Sociedade Civil. Este
procedimento pode ser sucedido de mais outros, quais sejam, aqueles relativos à
execução das demandas selecionadas. Neste caso, o procedimento é
diferenciado, pois não há mais deliberação regida pelo princípio do discurso (o
que não impede que isto possa acontecer a qualquer instante), mas sim uma
parceria com as Organizações da Sociedade Civil, as quais assumem, elas
mesmas, um poder administrativo.

As questões a serem respondidas por uma lógica do discurso em sede de


Gestão Pública Compartida são as seguintes: o que é uma questão meramente
pragmática? Esta questão é importantíssima por que marca dois momentos, quais
sejam, o de quando é necessário que exista uma Gestão Pública Compartida –
i.e, quando não é mais suficiente um argumento meramente pragmático; e
quando acaba a tarefa de uma Gestão Pública Deliberativa e inicia-se uma
Gestão Pública Executiva. Antes de responder a pergunta, é necessário
esclarecer que o estatuto discursivo da Gestão Pública Executiva é assemelhado
ao da Administração Pública. Ela tem de resolver as questões pragmáticas que se
colocam cotidianamente. Exemplos claramente pragmáticos, úteis porque não
geram polêmica: contratação de profissionais, compra de materiais didáticos,
cobrança de tarifas, etc. Tudo isto pode ser feito por um quadro de funcionários
profissionais nos moldes weberianos, vez que não é cabível que uma
universidade, por exemplo, consulte o Conselho Universitário toda vez que
necessitar cobrar a mensalidade de um aluno. Isto não é possível. Note-se,
todavia, que estes discursos pragmáticos vinculam-se comunicativamente às
deliberações anteriores, de modo que existe um contínuo entre o argumento
pragmático e a Gestão Pública Compartida. No exemplo, quem, como, e que valor
será cobrado. Claro que o exemplo é radical por fácil demais, mas este exemplo é
290

necessário a bem da argumentação.

O desafio é dizer, então, em moldes teóricos da teoria da ação


comunicativa, quando um argumento é meramente pragmático no sentido do
exemplo, isto é, quando o ato de fala está direcionado à consecução de ação de
tal maneira que não é mais necessária uma deliberação. A intuição orientadora da
resposta é simples: quando os atos de fala são tão precisos a ponto de não
precisarem de maiores locuções e ilocuções. Esta é a ligação que leva à
resposta, mas ela exige que se diga como se identifica quando isto acontece em
termos teóricos.

A partir da perspectiva de um observador compreensivo, exemplos –


novamente extremos, para facilitar a argumentação – são fáceis de se elaborar.
Por exemplo, um superior hierárquico emite ao estagiário um ato normativo:
“traga-me o processo nº 2.3.5.7.11.13.17”. Supondo que a orientação seja ao
entendimento, e esta tenha sido uma ação comunicativa, este ato de fala, que
parece preencher as condições de intelegibilidade, correção, verdade e
sinceridade, tem de contar com adesão do estagiário. Supondo que este adira
criticamente à oferta de fala, vez que faz parte de suas atribuições tais tarefas, ele
simplesmente escolherá a melhor hora, se isto não lhe for determinado, e o
melhor caminho. Simplesmente, neste caso, da comunicação decorreu a ação
que provocou o resultado ilocucionário esperado, isto é, o estagiário trouxe o
processo. Isto não significa que se esteja defendendo a idéia de que se está
diante de um argumento pragmático quando existe apenas um (1) engajamento
comunicativo entre o ato de fala normativo e a ação. Apenas para refutar esta
idéia, no mesmo exemplo, a autoridade hierárquica superior pode ter pedido o dito
processo ao agente administrativo sindicante, que por sua vez pediu ao estagiário
e este pediu a outro estagiário que estava dirigindo aquele local. Em toda esta
cadeia de 4 atos de fala não houve, porém, necessidade de se deliberar acerca
da maneira pela qual os fins seriam atingidos. De modo que não é possível dizer
que uma aplicação pragmática de uma ação normativa existe quando há apenas
um (1) ato comunicativo entre ela e a ação. A atividade pragmática de realização
das normas pode implicar um sem-número (que pode chegar a centenas de
milhares, se fossem quantificáveis) de outros atos de fala normativos,
291

constatativos e expressivos. E todos eles implicam também decisões entre


alternativas várias.

Para os fins de comparação, um exemplo que exige uma deliberação. Por


exemplo, os constituintes estabeleceram um ato de fala normativo – para utilizar
um exemplo que já foi estudado –: “Art. 225: Todos têm direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia
qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de
defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações [...]”. Para a
realização dos fins ilocucionários presentes nesta comunicação são possíveis
talvez milhões de alternativas e centenas de milhões de atos de fala
complementares. No caso em questão, exige, por exemplo, a edição de leis nos
três entes federativos regidos pelo princípio do discurso, as quais têm de se
conformarem a estes fins ilocucionários, mas também de criar engates na ação
mais delimitados a partir de uma situação de fala regida pelo princípio do
discurso, os quais, por sua vez, demandam novos procedimentos regidos pelo
princípio do discurso, como os conselhos, que estabelecem normativas, por
exemplo, para a abertura de novos empreendimentos de grande porte, que, por
sua vez, serão executadas por um complexo de comunicações, os quais podem
envolver o exemplo do estagiário acima. Dentro deste mesmo exemplo, é
possível, todavia, obedecer-se à norma constitucional com o simples ato de não
agredir a natureza. Neste sentido, bastou apenas uma comunicação para que a
norma gerasse o efeito ilocucionário pretendido. Prova-se novamente que um
critério quantitativo não vai resolver o problema.

Estes exemplos demonstram mais claramente quando se está diante das


duas situações.

Nos dois casos, os atos de fala que geram a ação estão conectados com
decisões anteriores, são, desde modo, também ilocuções destes. Quando a
ilocução do ato anterior exige um novo procedimento para sua completa
materialização (e não parcial, vez que é possível cumprir-se ela em outras
perspectivas, como visto), estar-se-á diante da necessidade de uma nova
situação de fala regida pelo princípio do discurso e, portanto, aí é necessária a
292

Gestão Pública Compartida. Quando não é necessário um novo procedimento,


está-se diante dos atos de fala materializadores das decisões advindas dos
procedimentos, e aí já não mais necessária uma deliberação, muito embora esta
mesma materialização possa ser procedida em uma situação de Gestão Pública
Compartida, mas aí já se está falando da Gestão Pública Compartida Executiva.
Mas isto, de novo, não responde a questão.

E se a resposta fosse procurada em uma peculiar constelação de


encadeamento de argumentos? É a hipótese a seguir, e que parece ter alcançado
sucesso.

A estagiária que foi buscar o processo realizou uma típica ação


instrumental combinada com uma ação comunicativa. Isto é, a comunicação fora
ação comunicativa, e a ação que se seguiu, uma ação instrumental. Nas
comunicações que envolvem uma atividade dentro do poder administrativo, é
possível reconstruir de maneira perfeita o argumento que gerou o ato de fala.
Veja-se, com os mesmos exemplos, a tabela explicativa:

Discurso teórico-empírico: Discurso prático:


Estagiária - ação Superior - estagiária
(c) Conclusão Afirmações: “A melhor Mandados/valorações: “você
maneira de buscar o deve ir buscar o processo”
processo é ir pelo elevador”
Pretensão de validez Verdade Retidão
O oponente exige Explicações: Justificações

(D) Dados Causas (em caso de Razões: “Estou autorizado a


sucessos): pedir-lhe isto em vista de minha
Motivos (em caso de ações): competência e de seu dever”
“É mais rápido e não me
cansarei”
(W – warrant) Garantias Regularidades empíricas, Normas ou princípios de ação,
hipóteses legaliformes, etc.: valoração:
“Porque os elevadores não “O estatuto dos servidores e os
demandam minha energia, e decretos, portarias e demais
são mais rápidos do que subir atos administrativos assim o
as escadas à pé” prevêem”.
293

(B - backing) Relação com o Observações, constatações: Necessidades interpretadas,


mundo da vida “As experiências anteriores conseqüências da ação, etc.:
demonstraram isto” “As leis e atos administrativos
deste ente federativo regulam as
relações profissionais dentro
dos órgãos administrativos
devido a imperativos
pragmáticos”

Tabela 22 – Aplicação da estrutura argumentativa de Toulmin I

Neste exemplo, “B” é razão para se passar a “W”, o qual garante a


razoabilidade de se passar de “D” a “C”.

Agora se imagine um exemplo da seguinte forma: abstraindo-se a realidade


do ordenamento jurídico brasileiro, e supondo-se que não exista regramento para
o licenciamento ambiental, salvo uma regra que diga: “Lei Z, art. 1º: São
instrumentos da política nacional para do meio ambiente: [...] o licenciamento e a
revisão de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras”, um chefe da
Secretaria do Meio Ambiente de um determinado Município determine que estão
sujeitas a licenciamento a instalação de fábricas de calçados. Agora será
necessário proceder ao mesmo exame da estrutura argumentativa

Discurso prático:
Secretário do Meio Ambiente - população e funcionários
públicos
(c) Conclusão Mandados/valorações: “Portaria x, art. 1º: Estão sujeitas a
licenciamento ambiental, perante a Secretaria do Meio
Ambiente [...] fábricas de calçados”
Pretensão de validez Retidão
O oponente exige Justificações
(D) Dados Razões: “Estou autorizado a emitir tal normativa, vez que
presento o órgão protetor do meio ambiente no Município,
bem como a secretaria é o órgão competente para tanto, e as
fábricas de sapato poluem”
(W – warrant) Garantias Normas ou princípios de ação, valoração:
“Lei Z, art. 1º: São instrumentos da política nacional para do
meio ambiente: [...] o licenciamento e a revisão de atividades
efetiva ou potencialmente poluidoras”.
(B - backing) Relação com o Necessidades interpretadas, conseqüências da ação, etc.: “A
mundo da vida esfera pública nacional e municipal demandaram maior
proteção ao meio ambiente”
294

Tabela 22 – Aplicação da estrutura argumentativa de Toulmin II

Neste argumento, as passagens estão truncadas, não há possibilidade de


formação de um convencimento racional. De “B” não se passa a “W”, por que da
necessidade de proteger o meio ambiente não decorre necessariamente estes
instrumentos. A estrutura é pior ainda no que toca à garantia de “W” à “D” e “C”,
pois da norma da Lei “Z” não é possível decorrer um vínculo ilocucionário que
diga que é Secretaria do Meio Ambiente o órgão correto, que fábricas de sapato
geralmente poluem, que o licenciamento terá dado procedimento, etc. Enfim,
estas passagens estão truncadas porque o argumento não é meramente
pragmático de materialização de outros discursos, mas sim tem uma
complexidade que demandam processos de entendimento, e, com isso, a
regência de um princípio do discurso e, assim, a Gestão Pública Compartida.
Deste modo, finalmente, é seguro dizer o seguinte: estar-se-á diante de uma
situação onde a Gestão Pública Compartida é requerida quando, em sede de
poder administrativo, faz-se necessário um processo de entendimento, uma vez
que se verifiquem, diante da incoerência interna do argumento pragmático,
passagens truncadas de “B” a “W” ou de “W” garantindo “D” a “C”, e, contrario
sensu, não haverá necessidade de maior participação quando a estrutura interna
do argumento for coerente, pois aí haverá apenas uma liberdade pragmática de
materialização das demandas.

Note-se que será necessário tanto mais processos de seleção quanto


forem necessários a um encadeamento argumentativo desde a seleção a nível
legislativo até a materialização da política pública. E isto não elide que, no
processo pragmático de aplicação, pequenas questões de justificações e de
aplicação sejam resolvidas pelo órgão administrativo, desde que não exista a
referida dificuldade argumentativa.

Já a Gestão Pública Compartida de Execução será necessária quando


houver Organizações da Sociedade Civil interessadas na gestão destes
interesses, bem como negociações levadas a cabo para a transferência destes
serviços. Em princípio, as Organizações da Sociedade Civil, como comunidade
organizada que são, podem assumir tanto tarefas simples, como uma creche,
295

como tarefas de médio porte, como a manutenção de uma estrada, até altamente
complexas, como uma universidade. Um exame mais detalhado desta questão
faz-se necessária em outro momento e implicará necessariamente um
desenvolvimento do princípio da subsidiariedade.

De posse deste último dado conceitual, torna-se possível o momento de


tentar fundamentar o regime jurídico da Gestão Pública Compartida.

4.6 Regime Jurídico da Gestão Pública Compartida e sua


principiologia

Como já apontado anteriormente, uma das facetas da doutrina da Gestão


Pública Compartida é a descrição das condições jurídicas de sua possibilidade. É
necessário um regramento jurídico que contemple o princípio do discurso, vez que
se estará aqui a tomar decisões – decisões estas que tem de ser racionais e
legítimas. Proclamou-se a necessidade de um regime jurídico que transforme
para a linguagem do Direito as descobertas da Sociologia, da Política e
principalmente da Filosofia, ao descrever as condições ótimas de fala. Esta é,
portanto, a tarefa do regime jurídico administrativo da Gestão Pública Compartida.
Só que, como já abordado, simplesmente dizer que um regime jurídico deve
existir por que ser sua tarefa é relevante não significa nada: o Direito só existe na
medida em que for criado como tal. Neste sentido, até é possível fundamentar
este regime da maneira que Habermas fizera, a partir de uma gênese lógica de
direitos em vista de condições irrefutáveis que a própria situação reclama. Só que
o doutrinador do Direito não pode criar direitos a partir daí. Uma tal gênese, como
Habermas apontara, só pode ser uma sugestão ao legislador soberano, ou no
caso aqui presente, uma linha-guia de interpretação construtiva de uma decisão já
tomada. É preciso encontrar, pois, no contexto normativo vigente, decisões que
impliquem o regime jurídico a ser descrito. Mas, de outra banda, como este
trabalho tem uma tarefa propositiva e crítica, descrever um regime jurídico de
Gestão Pública Compartida pode ser útil, mesmo que não encontre fundamento
296

no contexto vigente. O que se escrever a partir de agora assumirá esta dupla


pretensão. Explica-se.

Ocorre que tal regime jurídico não se encontra explícito no ordenamento


jurídico, só podendo ser derivado da escolha da sociedade brasileira por um
Estado Democrático de Direito, de uma República e de uma Democracia. Estas
escolhas foram feitas não só na Constituição como em uma série de tratados nos
quais o Brasil é signatário. Como se escolheu uma Democracia, e o conceito de
Democracia é o cruzamento do princípio do discurso com o princípio do meio
Direito, sinal de que existe uma escolha em direção a condições mínimas de
discurso. Esta escolha pela Democracia reflete-se diretamente na seara
administrativa, em vista das condições contemporâneas, onde é necessária a
reprodução do princípio do discurso. Ou seja: é possível encontrar um regime
jurídico retrocedendo-se a uma decisão – mesmo que não precisa – de modo que
o que se falar aqui será Direito e Direito legítimo. Por outro lado, um protótipo de
regime jurídico, mesmo que não fundamentado em um contexto normativo
específico – o que não é o caso, pode servir, ao mesmo tempo, como sugestão
aos participantes e parâmetro de crítica. É nestes dois sentidos que se busca
fundamentar as palavras que seguem.

O mesmo se aplica à Gestão Pública Compartida de Execução. Muito


embora neste caso não exista a incidência do princípio do discurso (a não ser
que, em seu próprio processo, exista a necessidade de deliberação, mas neste
caso o que era execução vira deliberação), e, portanto, não seja necessário
protegê-lo, o regime jurídico fundamenta-se em duas bases: 1) a materialização
das deliberações precisa ser garantida, e, neste caso, é relevante que existam
normas para tanto; 2) as organizações da sociedade, quando assumem funções
executivas em sede de Gestão Pública Compartida, praticam poder administrativo
e, com isso, atos administrativos compartidos atraem um regime jurídico mínimo.

O regime jurídico mínimo tem de abranger os três momentos de fala, quais


sejam, o pré-procedimento, o procedimento e a execução. O conteúdo destes
pode ser buscado, como já exposto, na filosofia em forma de descrição das
condições ótimas para a comunicação. Não se trata de buscar uma condição ideal
297

de fala, mas sim condições ótimas de fala, uma vez que se tratam de instâncias
deliberativas, e não científicas.

Este regime jurídico da Gestão Pública Compartida coloca-se em paralelo


ao regime jurídico da Administração Pública. Isto significa que ele é, por um lado,
uma especificação daquele regime, mas, por outro lado, também é inovação,
porque tem de resolver problemas diferentes.

Em nível mais genérico, estes problemas são: a) na fase pré-procedimento,


a manutenção de liberdades comunicativas espontâneas livres da ingerência
burocrático-governamental; b) na fase do procedimento as garantias de uma
formação da vontade em bases argumentativas ótimas; c) na fase pós-
procedimento, garantias para materialização positiva das decisões com o mínimo
possível de conflito com os direitos fundamentais, enfim, instrumentos legais que
permitam uma efetiva realização das decisões. Estas necessidades não ilidem,
pelo contrário, atraem o regime jurídico administrativo convencional. Por exemplo,
ainda é necessária a observação do princípio da legalidade, da igualdade, da
vinculação ao instrumento licitatório, a auto-executoriedade dos atos
administrativos (“compartidos”), a autotutela da Administração Pública, etc., bem
como de direitos fundamentais, tais como a liberdade de expressão, reunião,
contraditório, acesso ao judiciário, etc.

Estas normas clássicas, quando se lança sobre elas o olhar da Gestão


Pública Compartida, adquirem novas cores em vista da finalidade própria deste
regime jurídico.

Por outra via, este regime jurídico, expressado em princípios, é, como


Direito, uma linguagem ordinária que gera vinculações ilocucionárias para ação.
São comunicações que tem de ser completadas, i.e., da ilocução do ato de fala
tem de se seguir sua ação.

Por fim, antes da apresentação do conteúdo deste regime jurídico, é


possível afirmar-se que ele também assume abrangência diferenciada conforme o
caso, muito embora não seja possível formular regras específicas para tanto,
dada a pluralidade de fenômenos jurídicos presente na legislação. Ocorre que,
298

quanto mais institucionalizada for a Gestão Pública Compartida, mais regras de


Direito Administrativo ela irá atrair. Disto também não decorre a excelência de
uma maior ou menor institucionalização, pois depende da vontade comunitária,
consubstanciada em procedimentos, e da prática cotidiana, bem como a
imperativos da legislação. Alguns exemplos ajudam a compreender a questão.

No caso de uma Gestão Pública Compartida Deliberativa, pode-se, nos


exemplos clássicos, citar a Gestão Participativa no Orçamento e os conselhos de
políticas públicas, como, por exemplo, o Conselho Nacional do Meio Ambiente. O
regramento incidente por sobre a Gestão Participativa no Orçamento é muito
menos extenso que o incidente por sobre o Conselho. Na Gestão Participativa, as
próprias pessoas da comunidade organizam o local, o material para deliberação,
os funcionários trabalham apenas naquele momento, os ritos são informais e mais
flexíveis. Não deixam estes atos, todavia, de serem atos administrativos
compartidos. Por outro lado, a maior institucionalização dos Conselhos do Meio
Ambiente demandam um regime jurídico mais extenso, i.e., ele “atrai” mais regras
de Direito Administrativo. Por exemplo, o vínculo entre os conselheiros e o
conselho é permanente, existe necessidade de uma secretaria formada por
funcionários públicos, os bens são públicos, existe necessidade de licitação, etc.

O mesmo ocorre quando se fala em Gestão Pública Compartida Executiva.


Uma universidade comunitária possui um vínculo administrativo muito mais forte
com um regime jurídico administrativo do que, por exemplo, uma creche
comunitária. Esta última terá apenas, no que toca ao vínculo administrativo (terá
ela obrigações trabalhistas, civis, fiscais, etc.), de respeitar as regras de aplicação
de numerário alheio, sujeitar-se a determinadas fiscalizações, como as advindas
do Ministério Público, respeitar as normas de segurança e higiene, os direitos
fundamentais da criança, além de outros institutos de menor monta. De outra via,
uma universidade tem muito mais e maiores vínculos ilocucionários com um
regime jurídico administrativo. Há necessidade de publicidade, por exemplo, é
bem mais extensa, existe um controle mínimo de conteúdos pedagógicos, os
contratos de ensino obrigatoriamente conterão determinadas cláusulas e
obrigatoriamente não poderão ter outras, existe fiscalização e atribuição de
conceitos pelo poder público, maior rigidez no controle dos recursos repassados,
299

etc. Assim, a questão é o estabelecimento do regime jurídico mínimo para a


Gestão Pública Compartida.

A fórmula de apresentação será a da enunciação do princípio seguida de


uma breve explanação do seu conteúdo e das razões de sua existência.

- Princípio do Respeito aos Direitos Fundamentais: não é possível que


exista liberdade na esfera pública e razão no procedimento sem garantias aos
direitos fundamentais;

- Princípio da Proibição da Homogeneização das Formas: como a


Democracia é uma questão de invenção, não é razoável o estabelecimento de
fórmulas a priori e tampouco homogêneas a toda uma população. É necessário
deixar espaço para a criatividade também na criação dos procedimentos;

- Princípio da Subsidiariedade: consagrado noutras searas, pode ser


incorporado a este regime jurídico porque é na prática deliberativa que são
definidos os melhores locais de participação, mesmo assim, a relação de
proximidade e de agilidade de entes funcionais menores pode ser construída
como uma regra geral de organização e, do mesmo, essencial à Democracia. O
princípio da subsidiariedade determina não só uma atuação do ente mais próximo
do cidadão, mas também uma atuação subsidiária dos entes maiores, no
momento em que a ação local não for possível e/ou eficiente.

- Princípio do Discurso: dada a impossibilidade de um estabelecimento a


priori do interesse público, mas reconhecendo-se também os malefícios de um
decisionismo relativista ou mantenedor de expectativas generalizadas, o
procedimento de geração do interesse público não tem como não ser
intersubjetivo e dialético;

- Princípio da Liberdade de Tematização: dentro do âmbito de competência


daquela Gestão Pública Compartida, não pode haver temas proibidos;

- Princípio da Não-coação: coações outras que não as argumentativas tem


de ser evitadas;
300

- Princípio da Liberdade de Participação: o que abrange não só a


deliberação mas também a execução de políticas públicas.

- Princípio da Narratividade Criativa: onde o que é efetuado em sede de


Gestão Pública Compartida segue as forças ilocucionárias dos discursos oficiais
da Constituição e da Lei, mas mantendo as possibilidades criativas que aqueles
próprios discursos permitem;

- Princípio da Efetividade: uma vez estabelecido, entre falante e ouvinte,


uma relação ilocucionária, de coordenação de ações, não faz sentido que uma
das partes, justamente aquela funcionalmente especializada na busca do fim a
ser estabelecido, escape à execução desse fim mesmo. Propõe-se a vinculação
jurídica obrigatória entre o que foi deliberado e a ação da Administração. O que
fora decidido democraticamente deve realmente ser executado.

- Princípio da Publicidade: neste caso entendida como ampla publicação da


existência destes espaços de participação, bem como de seus procedimentos;

- Princípio do Controle Financeiro: o numerário gerido, mesmo que não


advenha dos tributos (doações, remuneração pelo serviço), está empregado em
uma atividade comunitária. Neste sentido, não só malversações, mas também
segredo para com a arrecadação e destinação deste numerário é uma violação da
abertura comunicativa que é necessária nesta comunicação;

- Princípio do Controle Judicial: comunicações em um contexto de poder


administrativo, porque repercutem na vida do cidadão, tem de poder ser
controladas. Neste sentido, os participantes têm à disposição uma série de
remédios processuais, como mandado de segurança, ação popular, etc., os quais
não podem deixar de ser eficazes como meio de controle da Gestão Pública
Compartida;

Específicos da Gestão Pública Compartida Deliberativa:

- Princípio do Procedimento: uma vez reconhecendo-se a assimetria da


comunicação livre em sociedade, percebe-se como autoritária a inserção direta de
301

demandas na Administração Pública, daí a necessidade de procedimentos para


mediar a transformação de poder comunicativo dos cidadãos em Direito;

- Princípio da Igualdade de Fala: os procedimentos, para não serem


viciados, devem manter uma distribuição simétrica de oportunidades. Isto não
fecha, por exemplo, a existência de regras especiais que autorizem especialistas
a terem uma voz destacada;

- Princípio de Status Especial aos Atos Administrativos compartidos: os


atos administrativos compartidos em sede de deliberação não são atos
administrativos comuns, mas sim atos em que houve a interferência de
procedimentos em sua constituição. Este status especial tem de se materializar
em uma atribuição de credibilidade maior do que os atos administrativos comuns,
o que implica, dentre outras coisas, a consideração de que estes atos são
equivalentes em legitimidade a leis, e, portanto, não podem ser simplesmente
desconsiderados por uma autoridade externa, como o Judiciário, sem uma
fundamentação fortíssima, ou talvez um procedimento especial;

Específicos da Gestão Pública Compartida Executiva:

- Princípio da Autonomia: por mais vínculos e obrigações que a


organização da sociedade civil assuma para com o poder público para formar
uma Gestão Pública Compartida compartida, ela não pode perder a sua
capacidade de auto-gestão, vez que é precisamente isto uma das características
essenciais das Organizações da Sociedade Civil;

- Princípio da Democracia interna: um regime da Gestão Pública


Compartida não pode endossar o autoritarismo interno nas Organizações. Isto
não elide, todavia, a existência de regras e estatutos internos. O que não pode
haver é fechamento para o exterior e arbítrio.

Após este esboço de regime jurídico, e diante de todas as considerações


acima, uma revisão do conceito de Gestão Pública Compartida faz-se necessário.
302

4.7 Interlúdio: retomando o conceito de Gestão Pública


Compartida

Esta seção tem o intento de retomar e conceituar de maneira final a Gestão


Pública Compartida, após tantas idas e vindas, reconstruções e conceituações. O
termo final, utilizado mais acima, tem de ser colocado em seu devido contexto de
saber provisório que necessita estabilizar-se a partir da intersubjetividade. A
definição aqui traçada é um conceito que, apesar de uso constante da palavra
“descoberta”, em realidade é criado a partir das percepções de seu autor em sua
interação com os mundos social e objetivo. Neste sentido, é um ato de fala
teorético que se oferece para aceitação ou crítica, e que tem de ser respondido a
partir de razões, e que não oferece eficácia alguma enquanto compreensão de
um fenômeno social na falta de adesão crítica dos possíveis ouvintes.

Já foram vistos os conceitos preliminares. Em todas as perspectivas, a


Gestão Pública Compartida é uma peculiar situação de fala sobre a qual recai
uma observação diferenciada. Gestão Pública Compartida é uma situação onde
os atores se entendem, reproduzem sociedade e se socializam em busca de
decisões legítimas, as quais justamente irão incidir sobre aqueles que a
produziram, mas é também um lócus de exercício de determinadas liberdades
políticas, tais como as de opinião e de reunião, onde serão decididas demandas
que serão transformadas em poder administrativo, bem como onde a cidadania
pode atuar de maneira espontânea. Gestão Pública Compartida pode ser uma
descrição filosófica dos procedimentos de geração de decisões, descrevendo as
condições necessárias para que uma decisão legítima seja gerada, bem como,
finalmente, pode ser um regime jurídico que se preocupe em regulamentar tudo
isso e apontar a decisão gerada por estes procedimentos como uma decisão
geradora de um ato administrativo característico, isto é, um ato administrativo
compartido.

Assim, utilizando-se a perspectiva transdisciplinar prometida, mas


concedendo privilégios tanto a uma visão jurídica quanto discursiva, é possível
dizer que a Gestão Pública Compartida é aquela atividade comunicativa e
303

racional, regida por direitos juridicamente protegidos inspirados em condições de


assertibilidade de fala, de auto-inflexão social de seleção e materialização de
demandas sociais, atividade esta que ocorre em paralelo ao poder administrativo,
em vista das condições argumentativas peculiares deste, as quais demandam
tomadas de decisão (materializadas em um compartilhamento de bens, políticas
públicas e demais atos administrativos) em termos de justificação e aplicação em
procedimentos regidos pelo princípio do discurso para completar as ilocuções
presentes nos discursos de justificação e aplicação anteriormente postos.

Note-se que este conceito tem a pretensão de dar conta tanto da Gestão
Pública Compartida Deliberativa quanto da Executiva (pois são necessárias novas
justificações e aplicações tanto para trespasse de serviços às Organizações da
Sociedade Civil quanto para a tomada de decisões internamente). Este conceito,
também, não faz diferença entre os referenciais, misturando-os e, tampouco,
parece estático –muito embora, por óbvio, seja provisório até posterior contraste
com a opinião alheia – pois a ênfase discursiva permite a dinamicidade de
conteúdos.
CONCLUSÃO

A conclusão de um trabalho de pesquisa jurídica é sempre uma fração de


texto um tanto quanto desvalorizada, uma vez que não apresenta dados
conclusivos. Ela apenas remonta às hipóteses verificadas ou não no transcorrer
da pesquisa, retomando um pouco do caminho que foi enfrentado no decorrer de
sua elaboração. Ela pode se tornar mais interessante, todavia, se o atual trabalho
for contrastado com o intento inicial, presente no projeto de pesquisa. Assim, a
metodologia de apresentação desta conclusão far-se-á a partir deste contraste.

A primeira questão refere-se à satisfação de uma temática relacionada


tanto com a área de concentração – Demandas Sociais e Políticas Públicas –,
bem como a linha de pesquisa – Políticas Públicas de Inclusão Social -, as quais
são o contexto em que este trabalho se insere. O trabalho apresentou
preocupações com as duas temáticas. Esta preocupação materializou-se nos
termos de uma teoria geral que foi elaborada sobre Gestão Pública Compartida.
Isto significa que nem se examinou uma demanda específica, e tampouco uma
política pública e sua capacidade de inclusão social. Examinaram-se questões
marginais, mas nem por isso menos importantes. Por exemplo, muito embora se
utilize muito estes conceitos, poucas vezes é possível ver algum trabalho
debruçar-se especificamente sobre o que significa demanda social ou política
pública. A esta observação pode-se acrescer que a visão de Habermas e sua
pragmática empírica foram instrumentos fundamentais para estabelecer aqueles
marcos conceituais. Outro objetivo atingido, ainda relacionado com estas
questões, está referido à descrição das condições de possibilidade tanto da
geração de demandas e políticas públicas, bem como de sua
305

procedimentalização. Foi possível extrair de Habermas, assim, esta descrição


mais geral destes procedimentos e situações de fala, as quais permitem tanto
uma compreensão diferenciada quanto uma normatização tanto de demandas
sociais quanto de políticas públicas.

A idéia inicial era a da aplicação das teorias de Habermas à construção de


um ideário ainda provisório, a Gestão Pública Compartida. Assim, Habermas
permitiu ainda:

a) A descrição dos paradigmas lingüísticos teóricos e sua inserção na


Filosofia hoje e como isto se relaciona com a problemática deste trabalho. Isto é,
somente a partir do giro lingüístico que parece ser possível a formação de
matrizes teóricas que superem tanto a metafísica quanto certos determinismos
historicistas, geralmente assumindo a forma de positivismo. Uma dessas matrizes
fora construída por Habermas sob o nome de Teoria da Ação Comunicativa, a
qual, procedendo a uma síntese de várias influências, notadamente as da teoria
da ação, da pragmática, e da teoria dos sistemas, estabeleceu as bases tanto de
uma teoria social quanto de uma teoria jurídica.

b) Esta teoria faz uso de uma concepção de racionalidade mais ampla. Ao


mesmo tempo em que se afasta de uma idéia de irracionalidade, não aceita,
todavia, um conceito de racionalidade instrumental, materializada sob a forma de
um saber objetivante. Este saber objetivante é relevante em vários sentidos, mas,
todavia, não escapa à necessidade de intersubjetividade para obter validação e,
tampouco, é a única forma de saber e agir racional: Habermas demonstra que a
condição de possibilidade da razão é a defesa de pretensões de validade,
permitindo tomar como racionais, por exemplo, um agir orientado esteticamente
ou normativamente. Esta última questão é fundamental, vez que, em sendo
possível um acordo racional sobre normas, escapa-se do decisionismo.

c) A Teoria da Ação Comunicativa também incorpora um viés


hermenêutico, de modo que Habermas postula um acesso ao fenômeno através
do exame crítico das pretensões de validade. Para tanto, monta um esquema
teórico de tipologias da ação e dos discursos, transformando um saber implícito
em explícito, e delimitando como área de estudo de uma pragmática universal as
306

condições universais de um ato de fala, enquanto que a pragmática empírica seria


a verificação da utilização destes atos de fala em contextos localizados. Este
trabalho é uma confluência de todos estes dados, vez que, como visto, tem forte
cunho normativo, mas dialoga em forma de pragmática com a situação de fala,
nem que seja como simulação. Além do mais, os conceitos tentam ser
transdisciplinares, muito embora seu fio condutor seja discursivo.

d) Ao demonstrar a condições de comunicação, Habermas também


descreve as condições de possibilidade do entendimento. Este entendimento,
escasso nos dias de hoje, é condição e ao mesmo tempo produto do Direito, i.e, é
importante saber como se formam comunicações e, conseqüentemente,
sociedade, a partir de atos de fala, os quais, além de um saber propositivo,
vinculam a ação em forma de ilocuções.

e) Como teoria da sociedade que é, a Teoria da Ação Comunicativa


oferece um esquema teórico que tem a pretensão de dar conta dos problemas no
entendimento e na sociedade em geral. Para tanto, utiliza-se de dois conceitos:
sistema e mundo da vida. O primeiro é tomado enquanto sistema de ação
específica, diferenciado a partir do meio que utiliza. O segundo é indiferenciado
enquanto às costas dos participantes, mas diferenciado conforme a perspectiva
que se coloca e a partir dos atos de fala que nele encontram sentido. Existe uma
contínua progressão dos meios sistêmicos, regidos pela ação instrumental, ao
mundo da vida, regido pela ação comunicativa. O mundo da vida não oferece
resistência, vez que a contemporaneidade caracteriza-se por hiperespecialização
que não se remonta ao todo, configurando uma perda de sentido. De outra banda,
percebe-se a realidade social como contingente, mas de impossível mudança
consciente, uma vez que parece estar acima da cabeça dos participantes que
justamente a constituem. Esta sociedade é uma pluralidade de crenças, sem uma
normatividade vinculante de fundo. O humano perde, assim, sua liberdade. Este
diagnóstico, posto em termos gerais, é de explícita conveniência quando se
observa a Administração Pública. Mais uma vez, portanto, demonstrada a
utilidade da matriz habermasiana para o intento deste trabalho e, assim,
confirmada a hipótese principal.
307

f) Esta colonização do mundo da vida insere-se em um contexto mundial de


predomínio de um sistema capitalista que ainda é regido por observações
marxistas, ou seja, as crises são periódicas e voltam-se ao próprio capitalismo.
Inserem-se, nesta seara, entidades estataliformes que manejam estas crises,
evitando rupturas no sistema. Mas, ao mesmo tempo em que fazem isso,
administram cada vez mais âmbitos da vida, diluindo sua legitimidade e, com isso,
enfraquecendo-se. Os ciclos parecem ser cada vez rápidos.

g) A Sociologia moderna oferece diversas maneiras de observar a


sociedade e a Administração Pública. Existe, todavia, uma linha ambivalente,
onde, de um lado, postula-se a necessidade de um maior controle social da coisa
pública, mas, de outro lado, descreve-se a Administração como um processo
contínuo e de fôlego infinito direcionado à burocratização da sociedade, ou seja,
cada vez mais outros tipos de racionalidade serão postos de lado em favor da
racionalidade instrumental, sendo que a Administração Pública e o sistema
capitalista em geral capitanearão o processo de tal modo que uma intervenção
social parece impossível. Este potencial ambivalente materializa-se, sobretudo,
em concepções decisionísticas de mundo que acabam sendo respaldadas como
científicas, e, portanto, adquirindo status social de benefício à sociedade.

h) O Brasil acompanha este modelo de Administração que compensa as


crises do capitalismo, organizando-se burocraticamente. Nos dias de hoje, as
reformas neoliberais somente fizeram radicalizar a idéia de uma Administração
técnica que não precisa legitimar-se politicamente, mas sim pela eficiência da
prestação de seus serviços ao mercado consumidor-contribuinte.

i) As descrições da dogmática jurídica sobre a Administração Pública e seu


regime jurídico são tal qual um espelho do diagnóstico de Habermas e dos
sociólogos: ou transitam em uma metafísica ingênua, ou abraçam um
decisionismo na forma de um interesse público abstrato e incognoscível que
assume contornos de sinonímia ao que diz a lei.

j) É possível criticar este modelo como predomínio de uma seletividade em


termos de ação, isto é, apenas a razão instrumental é a razão digna na
Administração Pública. Decisões de justificação e aplicação são travestidas de
308

decisões meramente pragmáticas de meios-fins, estabelecendo um nível tal de


arbitrariedade administrativa que efetivamente confirma a profecia de um poder
por cima das cabeças da população. Tudo isto respaldado pelas concepções dos
juristas.

k) Uma concepção de Direito que ultrapasse esses marcos conceituais


positivistas, bem como jusnaturalistas (os quais hoje assumem um ar mais
sofisticado como substancialismo) pode ser formatada a partir dos parâmetros da
ação comunicativa. Para tanto, são utilizadas as descobertas da teoria do
discurso no que toca à Moral e à Ética, as quais adquirem cores procedimentais
diante da impossibilidade de um retorno à metafísica. O agir comunicativo, como
propício ao entendimento, é o fio condutor de normas que, a despeito de serem
criadas a partir de uma decisão, precisam ser corretas e racionais e, para serem
corretas e racionais, é necessário que sejam intersubjetivas. Essa
intersubjetividade materializa-se em procedimentos de formação que fazem uso
desta intersubjetividade para a formação de normas que sejam capazes de serem
aceitas pelos destinatários que ajam performativamente.

l) Esse procedimento é regido por direitos fundamentais os quais, em uma


perspectiva teórica, derivariam de uma situação ótima de fala, mas que, em
realidade, são fruto de uma conjunção entre a autonomia privada com a
autonomia pública dos cidadãos. Eles decidem quais serão seus espaços de
mobilidade e seus direitos fundamentais, os quais são diretivas para todo o
restante do ordenamento. Essa autonomia dos cidadãos ocorre a partir do
entrelaçamento em princípio do discurso – todos os destinatários das normas tem
de participar da sua formação –, com o princípio do Direito (forma da norma,
estatuição por decisão, coação, poder administrativo, etc), os quais juntos formam
o princípio da Democracia.

m) A autonomia dos cidadãos não pode fazer eco diretamente na


legislação, vez que a formação da vontade, como é idealizada a partir da
compreensão de Estado de Direito, não prescinde do contraste de opiniões e do
reconhecimento da maior influência que certos autores tem diante de outros. Esse
poder comunicativo tem de passar por testes argumentativos para materializar-se
309

em poder administrativo (atuação das Organizações Governamentais). Daí


porque existirem procedimentos legislativos para a realização destes testes e
posterior transformação em leis legítimas (ou não).

n) O Direito guarda analogias com a moral, mas também diferenças.


Apesar de operarem deontologicamente, serem cognoscíveis e fruto de processos
reflexivos de formação, o Direito é mais determinável que a Moral e possui apoio
do poder administrativo. Deste modo, o Direito tanto é obedecido
performativamente, através de uma autovinculação da vontade livre, quanto
através de coações impostas pelo poder administrativo.

o) A argumentação que vai desembocar no Direito segue uma lógica de


justificação. Desde a esfera pública, passando pela formação de um poder
comunicativo, até a consagração em lei e posterior materialização administrativa,
os procedimentos de formação do Direito seguem uma lógica de comportas que
tem de deixar abertas potenciais de normas justificáveis, isto é, capazes de
satisfazer o interesse dos participantes em jogos de linguagem regulativos. Daí
porque ser necessária existência de canais abertos e direitos que protejam a
esfera pública. Dada as complexas tarefas atribuídas pela lei ao poder
administrativo hoje, a formação de novos jogos normativos faz-se necessária.

p) Esta necessidade é um dos fios condutores da justificação da Gestão


Pública Compartida. Percebeu-se como necessária uma concepção
transdisciplinar para caracterizá-la. Vários são os enfoques possíveis. No
trabalho, privilegiou-se um enfoque sociológico, filosófico, político e jurídico.

q) A partir da teoria discurso foi possível conceituar, na tentativa de cruzar


as perspectivas acima, várias temáticas consagradas como de preocupação
epistemológica – e tema da linha de pesquisa orienta este trabalho –, tais como
demandas sociais, Organizações Governamentais, Organizações da Sociedade
Civil, políticas públicas e sociedade.

r) As construções habermasianas possibilitaram também a formação de


uma perspectiva evolucionária da Gestão Pública Compartida, isto é, quais as
condições societais necessárias para a instalação de uma Gestão Pública
310

Compartida e qual seu ritmo de implantação.

s) Uma pergunta fundamental é quando é necessária a existência de uma


Gestão Pública Compartida. Afinal, é contra-intuitivo pensar a existência de
serviços públicos sem uma Administração hierarquizada e profissional nos moldes
weberianos. Para tanto, procedeu-se a um exame da lógica da argumentação,
onde se concluiu pela necessidade de deliberação, ou seja, Gestão Pública
Compartida, quando a cadeia de obrigações ilocucionárias que vem desde a
esfera pública estivesse truncada. Já no que toca à Gestão Pública Compartida
de Execução, o critério é o da negociação e o da subsidiariedade.

t) Diante dessas constatações, foi possível, através da conjunção das


condições comunicativas para a formação de normas com decisões já tomadas
no sentido da assunção de um Estado Democrático e de uma República, elaborar
um regime jurídico principiológico mínimo para organização e garantia da
instituição da Gestão Pública Compartida.

u) Finalmente, foi possível conceituar Gestão Pública Compartida como


aquela situação de fala onde, em sede de poder administrativo, torna-se
imperiosa ou a inserção de procedimentos de justificação e aplicação quando da
materialização das normas jurídicas, ou quando organizações
predominantemente regidas pela ação comunicativa – as Organizações da
Sociedade Civil, assumem funções de poder administrativo.

A pretensão de aplicação das categorias habermasianas à fundamentação


da Gestão Pública Compartida parece ter sido atingida. Praticamente todas as
categorias, desde a tipologia dos atos até a evolução cognitiva acharam um uso
conveniente para dizer o que é e como deve ser a Gestão Pública Compartida.

Nem todas as pretensões presentes no projeto original foram satisfeitas,


todavia.

No projeto constava a busca de representações do senso comum acerca


da Administração Pública. Em realidade, só foi possível estudar as
representações de Administração Pública pelo senso comum teórico da doutrina
311

administrativista. Observar o senso comum da população em geral demandaria


uma pesquisa empírica muito complexa, de impossível realização dentro das
pretensões deste trabalho.

O projeto original buscava apontar as insuficiências dos modelos de Estado


e políticas públicas vigentes. Isto foi feito em parte. Não foi possível, por questões
de tempo e espaço, além da alta complexidade, examinar temas clássicos afeitos
à Teoria do Estado.

A apresentação do trabalho está mais analiticamente detalhada do que na


estrutura provisória do projeto. O primeiro capítulo está nos moldes do projeto. Já
os outros sofreram mutações. Previa-se, para o segundo capítulo, além das
temáticas já trabalhadas aqui, também as matrizes das representações de
cidadania pela população. Esta temática está inserida dentro da perspectiva de
Habermas em termos mais gerais. Trabalhar noções de cidadania no Brasil de
maneira mais detalhada seria muito complexo para o intento deste trabalho.

A idéia de uma dogmática crítica foi abandonada e é tema marginal neste


trabalho. O terceiro capítulo, portanto, foi materializado em uma reconstrução das
idéias de Habermas sobre Direito.

Foi abandonado também o exame casuístico de alguns institutos do


ordenamento jurídico. Tais exames modificariam a linha que o trabalho acabou se
orientando em direção a uma problemática mais casuística. As referências aos
institutos embriões de Gestão Pública Compartida foram referenciadas de
maneira esparsa no trabalho, sem maiores repercussões.

Por outro lado, pretendia-se simular a aplicação do regime jurídico


compartido pelos órgãos judiciários. Isto também foi abandonado, pois se estaria
fugindo da linha mais teórica e geral que este trabalho assumiu. Além disso, no
transcorrer do trabalho o abandono, por parte do autor, de alguma posição tutelar
por parte do Poder Judiciário aos espaços de Gestão Pública Compartida foi
deixada de lado com mais vigor ainda, de modo que tais considerações não mais
seduzem em termos de realização pessoal, muito embora ainda tenham
relevância epistemológica e prática.
312

Deu-se, também, muita ênfase à Gestão Pública Compartida Deliberativa.


É necessário tratar com mais vagar também a Gestão Pública Compartida
Executiva. De outra banda, esta insuficiência é superada pelo fato de que os
espaços de Gestão Pública Compartida Executiva terão de ser negociados, e esta
negociação – por envolver relevantes questões comunitárias – não pode furtar-se
ao princípio do discurso, de modo que, se o Estado de Direito for levado a sério,
antes da atribuição de responsabilidade a uma Organização da Sociedade Civil, é
necessária uma situação de Gestão Pública Compartida Deliberativa, salvo
naqueles casos onde o impacto da atuação da Organização da Sociedade Civil é
de pequena monta (ex.: creches comunitárias, etc.).

Em termos de posteriores engajamentos comunicativos, o trabalho indicou


várias possibilidades de posteriores desenvolvimentos, tais como os de descrição
de alguma política pública, das condições de evolução das sociedades e da
aplicação do regime jurídico da Gestão Pública Compartida.

Finalmente, pode-se dizer que o trabalho confirmou a justificativa de ordem


pessoal, ao gerar grande satisfação na realização, bem como a de ordem
epistemológica e social, possibilitando uma maior compreensão dos fenômenos
apontados e possibilidade de aplicação prática do regime jurídico da Gestão
Pública Compartida.
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