A Síndrome da Perna Inquieta (por Brashei Gordanaph)
Era só um café na calçada e logo pretendia pagar a conta e seguir
pelos becos e ruelas daquela pequena vila mediterrânea onde acabara de chegar: um convite tentador para um andarilho convicto de pernas inquietas como eu. Espere, eu disse pernas inquietas?!... Nunca deveria ter olhado para a loura do outro lado da alameda. Seus membros inferiores, longilíneos, bem torneados e precariamente sustentados por scarpins, foram conduzindo meu olhar até que avistei, sentado na mesma calçada que eu em outra mesa mais à frente, aquele movimento hipnótico que quase pois fim ao pouco de lucidez que ainda me restara. O pé que calçava o chinelo se apoiava no solo apenas com os dedos e a parte da sola mais próxima dos mesmos que, poeticamente, os chineses praticantes do Tai-Chi chamam de “a fonte borbulhante”. O restante da sola e o calcanhar obedeciam, em seu sobe e desce ritmado, a um “ostinato” impresso pela parte apoiada no chão. O homem de meia-idade usava bermudas e conversava com uma mulher, enquanto sua perna se mantinha naquele ritmo constante, como um metrônomo em andamento “presto” que tentava metrificar um diálogo em “andante’. As panturrilhas e coxas flácidas balouçavam indiferentes à agonia que o exercício inconsciente provocava nesse espectador mesmerizado. Cheguei a pensar em contar cada sobe e desce, como forma de criar um envolvimento de natureza numérica que me ajudasse a escapar do transe. Aquele corpanzil imóvel só mexia duas partes: a boca, que parecia arremessar, num jorro de fúria incontrolável, uma torrente de vocábulos em direção a interlocutora, e a perna, naquele movimento hidráulico que se assemelhava a um motor substituindo o coração na função vital de manter o organismo em funcionamento. A performance não acabava e eu não conseguia desviar o olhar, mantendo a respiração suspensa, como se a qualquer momento fosse espirrar petróleo da terra ou explodir um grito lancinante provocado por terrível câimbra. Qualquer coisa seria bem- vinda, contanto que me trouxesse de volta ao mundo dos vivos. E foi um carro passando sobre uma poça próxima ao casal que fez com que aquelas pernas cabeludas, agora também encharcadas, pusessem seu dono de pé e o apoiassem numa sucessão de impropérios lançados em direção ao veículo, já distante e indiferente. Agradeci em silêncio àquele motorista e me evadi rapidamente, com medo que o homem logo se sentasse e voltasse a usar suas pernas como um relógio de bolso, paralisando minha vontade.