Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
REN
Suplemento Especial 2020
Revista
Econômica
do Nordeste
Agricultura Familiar
no Nordeste
Olhares a partir do Censo Agropecuário 2017
BANCO DO NORDESTE DO BRASIL Conselho Editorial
Prof. Alexandre Alves Porsse
Presidente: Universidade Federal do Paraná - UFPR, Brasil
Romildo Carneiro Rolim
Profa. Ana Paula Macedo de Avellar
Diretores: Universidade Federal de Uberlândia - UFU, Brasil
Hailton José Fortes | Anderson Aorivan da Cunha Possa | Haroldo Maia Prof. Augusto Mussi Alvim
Júnior | Cornélio Farias Pimentel | Bruno Ricardo Pena de Sousa | Thiago Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS, Brasil
Alves Nogueira Prof. Carlos Roberto Azzoni
Universidade de São Paulo - FEA/USP, Brasil
ESCRITÓRIO TÉCNICO DE ESTUDOS Profa. Carmem Aparecida do Valle Costa Feijó
ECONÔMICOS DO NORDESTE – ETENE Universidade Federal Fluminense - UFF, Brasil
Profa. Cassia Kely Favoretto Costa
Revista Econômica do Nordeste – REN
Universidade Estadual de Maringá - UEM, Brasil
Editor-Chefe: Dr. Guilherme Mendes Resende
Luiz Alberto Esteves Conselho Administrativo de Defesa Econômica - CADE, Brasil
Prof. Leonardo Bornacki de Mattos
Editores Científicos: Universidade Federal de Viçosa - UFV, Brasil
Dr. Alcido Elenor Wander, Embrapa Arroz e Feijão Prof. Livio Andrade Wanderley
Prof. Alexandre Florindo Alves, Universidade Estadual de Maringá Universidade Federal da Bahia - UFBA, Brasil
Dra Ana Flávia Machado, Universidade Federal de Minas Gerais
Prof. Jaylson Jair da Silveira
Dr Cícero Péricles de Oliveira Carvalho, Universidade Federal de Alagoas
Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, Brasil
Profa. Francesca Bettio, Università di Siena
Dr Gil Célio de Castro Cardoso, Universidade de Brasília Prof. Joaquim Bento de Sousa Ferreira Filho
Prof. Joacir Aquino, Universidade Estadual do Rio Grande do Norte Universidade de São Paulo - Esalq/USP, Brasil
Prof. José Angelo Costa do Amor Divino
Editor Executivo: Universidade Católica de Brasília - UCB, Brasil
Luciano Feijão Ximenes Prof. Luciano Dias Losekann
Universidade Federal Fluminense - UFF, Brasil
Jornalista Responsável:
Prof. Ricardo Antonio de Castro Pereira
Evangelina Leonilda Aragão Matos Universidade Federal do Ceará - UFC, Brasil
Comitê Editorial: Prof. Ricardo Dathein
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, Brasil
Dr. Airton Saboya Valente Junior, Banco do Nordeste do Brasil S/A, Brasil
Dr. Fernando Luiz Emerenciano Viana, Banco do Nordeste do Brasil S/A, Brasil Profa. Tatiane Almeida de Menezes
Dr. Francisco Diniz Bezerra, Banco do Nordeste do Brasil S/A, Brasil Universidade Federal de Pernambuco - UFPE, Brasil
Dr. Leonardo Dias Lima, Banco do Nordeste do Brasil S/A, Brasil Prof. Tomaz Ponce Dentinho
Dr. Luciano Feijão Ximenes, Banco do Nordeste do Brasil S/A, Brasil Universidade dos Açores/GDRS-APDR, Portugal
Dr. Luiz Fernando Gonçalves Viana, Banco do Nordeste do Brasil, Brasil
Dr. Tibério Rômulo Romão Bernardo, Banco do Nordeste do Brasil S/A, Brasil Responsabilidade e reprodução:
Os artigos publicados na Revista Econômica do Nordeste – REN são
Secretária Executiva: de inteira responsabilidade de seus autores. Os conceitos neles emiti-
dos não representam, necessariamente, pontos de vista do Banco do
Márcia Melo de Matos
Nordeste do Brasil S.A. Permite-se a reprodução parcial ou total dos
Revisão Vernacular: artigos da REN, desde que seja mencionada a fonte.
CDD 330
SUMÁRIO
AGRICULTURA FAMILIAR NO RIO GRANDE DO NORTE SEGUNDO O CENSO AGROPECUÁRIO 2017: PERFIL
E DESAFIOS PARA O DESENVOLVIMENTO RURAL
Family farming in Rio Grande do Norte according to the 2017 agricultural census: profile and challenges
for rural development.................................................................................................................. 113
AGRICULTURA FAMILIAR NO ESTADO DE SERGIPE: UMA LEITURA A PARTIR DOS DADOS DO CENSO
AGROPECUÁRIO 2017
Family agriculture in the state de Sergipe: a reading form the data of the 2017 agricultural census. ..... 193
AGRICULTURA FAMILIAR NA BAHIA: UMA ANÁLISE DOS DADOS DO CENSO AGROPECUÁRIO 2017
Family Farming in Bahia: a data analysis of Agricultural Census 2017............................................... 209
EDITORIAL
Agricultura familiar no Nordeste: olhares a partir do Censo Agro- Family farming in the Northeast: looks from the 2017 Agricultural
pecuário 2017 Census
A agricultura familiar é uma forma de produção e trabalho bastante pre- The family farming is a form of production and work that is very present
sente no campo brasileiro, embora tenha sido historicamente marginalizada. in the Brazilian countryside, although it has historically been marginalized.
Mesmo assim, desde o final do século XX aconteceram muitos avanços em Even so, since the end of the twentieth century, there have been many ad-
termos do reconhecimento institucional da importância econômica e social vances in terms of institutional recognition of economic and social impor-
dessa categoria de produtores, tendo como marco a criação do Programa tance of this category of producers, having as a landmark the creation of
Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), em 1996. the National Program for Strengthening Family Farming (Pronaf), in 1996.
É pertinente assinalar que a agricultura familiar se distribui em todas as regiões It is pertinent to point out that family farming is distributed in all regions
do Brasil. Mas é no Nordeste que ocorre a sua maior concentração, uma vez of Brazil. But it is in the Northeast that its greatest concentration occurs
que praticamente metade dos 3,9 milhões de estabelecimentos familiares do since almost half of the 3.9 million family establishments in the country
País estão localizados nesse território. Isto tem proporcionado a implemen- are located in this territory. This has enabled the implementation of public
tação de políticas públicas em favor desse tipo de produtor, bem como estimu- policies in favor of this kind of producer, as well as stimulated, over the
lado, no decorrer dos últimos 25 anos, pesquisas multidisciplinares sobre suas past 25 years, multidisciplinary research on their production conditions
condições produtivas e de reprodução social. and social reproduction.
Do ponto de vista da ação governamental, o reconhecimento da agricul- From the point of view of government action, the recognition of northeast-
tura familiar nordestina pode ser explicitado nos números da carteira de ern family farming can be explained in numbers of BNB (Banco do Nord-
financiamento do BNB que realizou 7,7 milhões de operações de crédito este do Brasil – Brazilian Northeast Bank) financing portfolio that carried
do Pronaf de 2003 a 2019, representando um montante acumulado de R$ out 7.7 million Pronaf credit operations from 2003 to 2019, representing
29,2 bilhões. No tocante à pesquisa acadêmica, contudo, nota-se carência an accumulated amount of R$ 29.2 billions. Regarding academic research,
de estudos mais abrangentes e atualizados que demonstrem a real situação however, there is a lack of more comprehensive and updated studies that
socioeconômica da categoria. demonstrate the real socioeconomic situation of the category.
Neste contexto, considerando a publicação pelo IBGE dos resultados In this context, considering the publication by the Brazilian Institute of Ge-
definitivos do Censo Agropecuário 2017 em outubro de 2019, a equipe ography and Statistics (IBGE) of the final results of 2017 Census of Agricul-
do Comitê Editorial da REN entendeu ser relevante a organização deste ture in October 2019, the Economic Journal of Northeast (REN)’s Editorial
Suplemento Especial, na perspectiva de disponibilizar, aos leitores, ele- Committee team considered relevant the organization of this Special Sup-
mentos que ampliem o conhecimento sobre o tema e sirvam de subsídio plement, in the expectation of making available to readers issues that expand
ao planejamento regional. knowledge on the subject and serve as a subsidy to regional planning.
Sendo assim, a partir dos dados do Censo Agropecuário 2017, este Suplemen- Thus, based on data from the 2017 Census of Agriculture, this Supplement
to analisou a situação socioeconômica da agricultura familiar e o seu papel no aimed to analyze the socioeconomic situation of family farming and its
desenvolvimento regional do Nordeste de forma agregada e em cada unidade role in the regional rural development of the Northeast in an aggregate
federativa da Região de maneira individualizada. manner and of each state in the Region individually.
Para viabilizar o projeto, foram convidados pesquisadores com larga ex- To make the project feasible, researchers with extensive experience in the
periência na temática em cada estado da Região. O resultado foi uma série subject in each state of the Region were invited. The result was a series
de artigos com informações extremamente interessantes sobre a importân- of articles with extremely interesting information about the importance,
cia, os problemas e os desafios da agricultura familiar nordestina no final problems and challenges of family farming in the Northeast at the end of
da segunda década do século XXI. the second decade of the 21st century.
A disposição dos manuscritos segue a ordem geográfica regional, sendo an- The disposition of the articles follows the regional geographic order, being
tecedidos por dois textos com enfoque mais amplo. O primeiro, elaborado preceded by two works with a broader focus. The first, prepared by two of
por dois dos maiores especialistas brasileiros em desenvolvimento territori- the greatest Brazilian specialists in territorial development, Tânia Bacelar
al, Tânia Bacelar e Arilson Favareto, faz um balanço da trajetória da econo- and Arilson Favareto, takes stock of the trajectory of the Northeastern econ-
mia nordestina até a crise recente da COVID-19, enfocando o papel da agri- omy until the recent crisis of COVID-19, focusing on the role of family
cultura familiar em uma nova estratégia de desenvolvimento para a Região. farming in a new development strategy for the region. The second, by our
Já o segundo, de nossa autoria, faz uma análise da agricultura familiar no authorship, makes an analysis of family farming in the Northeast as a whole,
Nordeste como um todo, a fim de possibilitar uma visão geral da temática. in order to provide an overview of the theme.
Cabe ressaltar que os trabalhos de revisão e edição técnica contaram com It is worth mentioning that the technical review and editing work count-
a participação de consultor externo especializado na área, seguindo todo ed on the participation of an external consultant specialized in the area,
o ritual técnico-científico que tem caracterizado a REN ao longo dos seus following all the technical-scientific ritual that has characterized REN
mais de 50 anos de história. throughout its more than 50 years of history.
Não é demais lembrar, como de praxe, que os conteúdos de todos os arti- It is not too much to remember, as usual, that the contents of all works
gos apresentados são de inteira responsabilidade dos autores e não refle- presented are the sole responsibility of the authors and do not necessarily
tem, necessariamente, a posição do BNB. reflect the position of BNB.
Finalmente, registramos a enorme satisfação de coordenar este Suple- Finally, we note the enormous satisfaction of coordinating this Special
mento Especial da REN e reforçamos nossos agradecimentos a todos os Supplement from REN and we extend our thanks to all the authors who
autores que participaram deste Projeto. No mais, a exemplo da equipe edi- participated in this Project. Furthermore, like the editorial team of REN,
torial da REN, alimentamos a expectativa de que o material contribua para we hope that the material will contribute to foster academic discussion
fomentar a discussão acadêmica e, principalmente, sirva de subsídio para and, above all, serve as a guide for the action of the different sectors of
a ação dos diferentes setores da sociedade interessados na promoção do society interested in promoting regional development.
desenvolvimento regional.
Good reading!
Boa leitura!
Joacir Rufino de Aquino (UERN/DE/CAWSL)
Maria Odete Alves (BNB/ETENE)
Maria de Fátima Vidal (BNB/ETENE)
(Editores Técnicos)
O papel da agricultura familiar para um novo desenvolvimento regional no Nordeste – Uma homenagem a Celso Furtado
The role of Family Agriculture for a new regional development in the Northeast - a
homage to Celso Furtado
Tania Bacelar
Doutora em Economia Pública e Organização do Território pela Universidade de Paris I (Pantheon Sorbonne),
professora Emérita da Universidade Federal de Pernambuco e integrante do Programa de Pós-Graduação
em Geografia (PPGEO/UFPE), sócia da Ceplan Consultoria, especialista em desenvolvimento regional, ex-
secretária nacional de Políticas Regionais do Ministério da Integração Nacional. taniabacelar@gmail.com
Arilson Favareto
Doutor em Ciência Ambiental pela Universidade de São Paulo (USP). Professor do Programa de Pós-
Graduação em Planejamento e Gestão do Território da Universidade Federal do ABC (UFABC).
Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP). arilson@uol.com.br
Resumo: Com foco na agricultura familiar do Nordeste Abstract: Focusing on family farming in Brazilian
brasileiro, o artigo situa este tipo de estrutura produti- Northeast, the article analyses this type of productive
va no contexto atual do País, onde a pandemia por Co- structure in the current context of the country, where
vid-19 aparece combinada com grave crise econômica. the Covid-19 pandemic is combined with a serious
Para tentar identificar desafios futuros, a análise co- economic crisis. In order to identify future challenges,
meça por um mergulho na trajetória recente do desen- the analysis begins with a dip in the recent trajectory
volvimento socioeconômico do Nordeste, destacando of the socio-economic development of the Northeast
mudanças relevantes, dentre as quais os resultados de region highlighting relevant changes, among which
políticas públicas, com destaque para as territoriais, em the results of public policies with an emphasis on ter-
particular aquelas direcionadas à agricultura familiar. ritorial policies, particularly those oriented towards fa-
Discute os avanços e limites destas políticas e destaca mily farming. It discusses the advances and limits of
o momento atual de crise econômica e fiscal e os retro- policies, its setbacks, and the difficulties concerning
cessos observados. Identifica mudanças relevantes no the current moment of economic and fiscal crisis. It
ambiente mundial nas décadas iniciais do século XXI identifies relevant changes in the world context in the
para afirmar que novas propostas precisam ser formu- early decades of the 21st century in order to state that
ladas, pondo fim às políticas territorialmente cegas e new proposals need to be considered, putting an end to
priorizando a aposta na inovação. Sem desconhecer a territorially blind policies and prioritizing innovation.
relevância das desigualdades regionais como problema Without ignoring the relevance of regional inequalities
que permanece, defende a valorização de uma poten- as a remaining problem, is argued for an appreciation of
cialidade estratégica do Nordeste: a magnífica diversi- a strategic potential present in the Northeast Region: its
dade ambiental, socioeconômica e cultural da Região, magnificent environmental, socioeconomic and cultural
um dos lastros para a reinvenção de políticas de nova diversity, one of the foundations for a new generation of
geração para o apoio à agricultura familiar e ao desen- policies for family farming and territorial development.
volvimento territorial. Keywords: Family farming; Territorial development;
Palavras-chave: Agricultura familiar; desenvolvimen- Northeast; Regional issue.
to territorial; Nordeste; questão regional.
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 9-29, agosto, 2020
9
Tania Bacelar e Arilson Favareto
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 9-29, agosto, 2020
10
O papel da agricultura familiar para um novo desenvolvimento regional no Nordeste – Uma homenagem a Celso Furtado
em debate e grandes somas de dinheiro já estão ca. Nenhuma das transições anteriores se fez
sendo postas em circulação. A prioridade, claro, sem uma recomposição destes três elementos.
é proteger vidas e meios de vida. Mas as inicia- E eles são claramente interdependentes;
tivas em processo de implementação são mo- - Segundo pressuposto: o mundo do século
destas quando comparadas a de outros países, e XXI se parecerá cada vez menos com o sécu-
há o risco de repetir velhos erros. Em situações lo passado, no qual foram gestados os grandes
assim, com frequência, os investimentos são modelos produtivos que experimentamos até
capturados pelos de sempre. E o resultado pode aqui. É o caso da aposta na via agrícola, de
ser apenas uma volta ao estado anterior das coi- severos impactos ambientais, poupadora de
sas, o que seria pouco, e seria ruim. trabalho, e que nos põe em posição vulnerá-
Já a oportunidade consiste em ir além de vel pela excessiva dependência da exportação
uma tentativa de simplesmente retomar a “nor- de commodities. Do industrialismo tradicio-
malidade”. É certamente difícil pensar em lon- nal impulsionado pelo Estado, que se bem foi
go prazo em meio à emergência. Mas foi justa- importante para modernizar o País, não repre-
mente em momentos muito delicados que, nos senta, nos seus moldes atuais, horizonte pro-
últimos cem anos, o Brasil produziu grandes missor, tanto pelos custos como pela poupança
mudanças. Isso aconteceu nos anos 1930, quan- de trabalho decorrente da intensividade tecno-
do a crise dos mercados internacionais obrigou lógica. E mesmo a tentativa de buscar algum
parte das elites brasileiras a tentar deixar para equilíbrio sobre pilares dos dois modelos an-
trás o passado agrário e investir na criação das teriores, como a dependência do agronegócio
instituições que nos tornariam um país urbano e associada à tentativa de reanimar a indústria
industrializado, mesmo que de forma incomple- nacional, agora com a questão social no centro
ta. Se repetiu logo após 1964, quando a resposta da agenda do Estado revelou-se uma solução
autoritária à efervescência social dos anos an- instável, que se desfez com a crise fiscal. Dos
teriores transformou o Brasil, de importador de escombros destes três modelos e das mudan-
alimentos, em uma das maiores potências mun- ças em curso precisa nascer algo novo;
diais na produção agropecuária, o que se fez no - Terceiro pressuposto: é preciso, portan-
breve intervalo de uma geração. E quando, no to, atualizar nossa base produtiva e recriar a
contexto da redemocratização, a Constituição agenda do desenvolvimento. Em pleno mun-
de 1988 resgatou a dívida social deixada com do pós-industrial, é razoável imaginar que o
a modernização conservadora e consagrou um aprofundamento de nossa trajetória de cres-
pacto social que permitiu a estabilização eco- cente dependência da exportação de bens pri-
nômica e a expansão de direitos, aspectos que mários pode garantir uma expectativa promis-
orientariam a ação do Estado nas duas décadas sora de inserção na ordem internacional? Até
seguintes, até recentemente. quando apostaremos em um modelo econômi-
Daí a pergunta: e o que será do Brasil e do co que concentra renda, por um lado, e tenta
Nordeste nos próximos anos? Não há receitas, diminuir os impactos disto com políticas so-
pois a resposta não será obra de fórmulas pron- ciais, de outro? Dá para crescer distribuindo
tas e sim de um novo contrato social. Por agora, oportunidades, em vez de pensar meramente
já seria bem útil admitir alguns pressupostos e na mitigação posterior da exclusão? O resgate
fazer as perguntas certas (FAVARETO, 2020a): da dívida social pode deixar de ser visto como
- Primeiro pressuposto: é preciso reconhecer gasto e tornar-se mola propulsora de novas
que o pacto que vigorou desde a Constitui- formas de inclusão, pela via da expansão do
ção de 1988 parece ter se esgotado no meio bem-estar? Uma nova economia, menos con-
do último decênio, quando entramos na crise centrada, baseada no conhecimento e em ino-
inseparavelmente econômica e política em que vadoras formas de uso dos recursos naturais
estamos metidos desde então. E que para inau- é, não só possível, como necessária em um
gurar um novo ciclo, teremos que recriar o Es- contexto de mudanças climáticas globais e de
tado, as bases econômicas do País e a coalizão explosão da desigualdade.
de forças sociais que sustenta a agenda públi-
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 9-29, agosto, 2020
11
Tania Bacelar e Arilson Favareto
O certo é que só teremos uma saída duradou- familiar, se o que vinha sendo feito antes
ra da crise se os desafios forem postos nestes deu inegáveis resultados, também mos-
termos: reinventar o País, pensando que tipo de trou seus limites. Não se deve esperar re-
sociedade queremos ser, e que forma de inser- sultados diferentes repetindo as mesmas
ção internacional poderemos ter daqui a duas ou fórmulas. Trata-se de reinventar o plane-
três décadas. Trata-se de retomar a ousadia de jamento territorial.
outros tempos, imaginando o futuro, rompendo Para apresentar estas ideias, o texto está or-
a ditadura do curto prazo e as visões conser- ganizado em duas partes, seções dois e três a
vadoras que bloqueiam a ousadia de sintonizar seguir, cada uma delas correspondendo às duas
com novos tempos. É aqui que as articulações afirmações acima. Como corolário, na conclu-
entre agricultura familiar e desenvolvimento são ao final são indicados caminhos possíveis
regional podem vir a ocupar um lugar de desta- para materializar este novo olhar e as corres-
que. E isso será muito importante para o desen- pondentes novas práticas para o desenvolvi-
volvimento futuro no Nordeste, o que só reforça mento regional e, nele, um novo lugar destinado
a importância da iniciativa da Revista Econô- à agricultura familiar.
mica do Nordeste (REN), de lançar um número
especial para tratar das especificidades do vasto
segmento de agricultores familiares na Região a 2 DOS NORDESTES DO SÉCULO XX AO
partir dos novos dados do Censo Agropecuário NORDESTE DO SÉCULO XXI?
2017, do IBGE.
O argumento central das próximas páginas 2.1 Os efeitos positivos da primeira década do
pode ser traduzido em uma dupla afirmação: Século e a segunda onda de transformação
a) O Nordeste passou por pelo menos duas das estruturas regionais
ondas de transformação nas décadas re- Os anos iniciais do século XXI foram vivi-
centes que alteraram as bases para se pen- dos em um contexto em que a economia mun-
sar as possibilidades do desenvolvimento dial ia razoavelmente bem e no qual a China,
regional, mas no futuro que se descortina que acelerara seu crescimento, tornara-se im-
não basta repetir o passado ou simples- portante compradora das commodities brasilei-
mente apostar no aprofundamento dos ve- ras. Isso, associado com a relativa estabilidade
tores responsáveis por aquelas mudanças, inflacionária, ajudou a melhorar o desempenho
pois o contexto é totalmente outro, sob da economia nacional. Mas nem tudo pode ser
vários aspectos – nele, uma promissora atribuído ao contexto favorável. Foi fundamen-
saída é dialogar mais substantivamen- tal para o desempenho do País, na primeira dé-
te com a diversidade interna da Região, cada, a nova orientação geral da agenda do Es-
aproveitando as condições criadas com tado, que permitiu, àquele momento, toda uma
as transformações já vividas, por meio de expansão e inovação de políticas públicas (BA-
novas conexões entre setores e territórios; CELAR, 2014). Dentre elas, destacaram-se as
b) A agricultura familiar pode ser uma base políticas sociais que estimularam o crescimento
importante para este novo ciclo, desde da renda das famílias junto com a significativa
que, também neste caso, se aproveite os elevação do valor do salário mínimo. Esta ele-
avanços obtidos nos momentos anterio- vação da renda e a retomada do crescimento da
res, e não apenas se repita o que foi feito economia, associados a uma política de crédito
no período em que houve maior disponi- vigorosa e de um importante bloco de investi-
bilidade de recursos e um amplo leque mentos, inclusive em saúde e educação, se fez
de programas – neste caso, é necessário acompanhar do aumento dos empregos, estimu-
coordenar melhor as ações sociais e de lando o consumo interno.
apoio produtivo com os demais vetores O Programa de Aceleração do Crescimento
de desenvolvimento do Nordeste. Em am- (PAC), com um ambicioso portfólio de inves-
bos os casos, no desenvolvimento regio- timentos em infraestrutura, também parecia
nal e no desenvolvimento da agricultura promissor para a interiorização de vetores de
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 9-29, agosto, 2020
12
O papel da agricultura familiar para um novo desenvolvimento regional no Nordeste – Uma homenagem a Celso Furtado
crescimento econômico, por meio de obras bas- na crise social grave e aguda que prevalecia an-
tante intensivas em trabalho e importantes para tes (AQUINO; NASCIMENTO, 2020).
a competitividade de setores estratégicos da O dinamismo do consumo, impulsionado
produção nacional. E a expansão das estruturas pela melhoria da renda das famílias, estimu-
universitárias criou um novo ativo nas cidades lou, em um segundo momento, o investimen-
médias de áreas rurais e interioranas. to. Indústrias de alimentos e bebidas, de bens
Ao final da primeira década, todos os indi- duráveis, por exemplo, buscaram se instalar ou
cadores mostravam uma situação muito melhor se ampliar para produzir na Região, em espe-
do que aquela prevalecente no fim do século cial em suas cidades médias. As grandes redes
XX. Após duas décadas de quase estagnação, o de supermercados e os shopping centers tam-
País cresceu em média 3,5% ao ano, a pobreza bém se multiplicaram nesses locais, a fim de
havia sido reduzida em um terço, a desigual- disputar os novos consumidores. E no campo
dade também recuava, e vivia-se uma situação do investimento público, dois tipos contribuí-
de virtual pleno emprego (FAVARETO et al., ram também para alterar o panorama regional.
2014). Restavam, também, problemas relevan- O já mencionado Programa de Aceleração do
tes, dentre os quais a relação entre dívida públi- Crescimento (PAC) envelopou um conjunto de
ca e Produto Interno Bruto (PIB) ainda elevada, projetos concentrados na ampliação da infraes-
a diminuição da participação industrial na eco- trutura econômica e social do País – portos, ro-
nomia, a forte dependência do gasto público em dovias e ferrovias melhoraram as condições de
várias regiões e setores (BCG, 2013) e o avanço transporte de pessoas e de cargas; e o Programa
da financeirização que estimula a geração cada Minha Casa Minha Vida, além de enfrentar um
vez mais concentrada de riqueza abstrata (ati- problema histórico como o déficit de moradias,
vos não materiais). contribuiu decisivamente com a expansão de
Para o Nordeste, em especial, a melhoria foi empregos no setor da construção civil (BACE-
expressiva. O valor do rendimento médio das LAR, 2014).
famílias cresceu 5,6% a.a., quando a média na- A expansão do crédito também beneficiou o
cional foi de 4,5%, e no Sudeste essa taxa foi Nordeste que, ao lado da região Norte, teve o
de 3,9%. Em momentos anteriores, o Sudeste é maior crescimento proporcional das contrata-
quem liderou o crescimento da renda no País. ções na primeira década do Século (GUIMA-
Contribuiu decisivamente para isso a forte ex- RÃES NETO, 2010). Isto contribuiu decisiva-
pansão dos programas sociais, em especial, o mente para a expansão da presença industrial
Bolsa Família. O Nordeste, por concentrar mais em setores avançados como a indústria automo-
de metade da população muito pobre do País, tiva e petroquímica (Pernambuco), de energia
captava 55% dos recursos desse Programa. Nes- (hidrelétrica, no Maranhão, eólica na Bahia,
sa região, concentra-se a pobreza rural, e ela Piauí, Ceará e Rio Grande do Norte), siderurgia
tem como endereço principal os pequenos mu- e celulose (Maranhão e Ceará), entre outros; e
nicípios, em especial os do grande espaço semi- para a expansão dos investimentos em moder-
árido. A extensão da previdência ao meio rural nas lavouras de grãos no oeste da Bahia e no sul
em ambiente de crescimento real do salário mí- do Piauí e do Maranhão.
nimo e de outros programas assistenciais como Noutra frente, por fim, e com efeitos mais
o benefício de prestação continuada – BPC, limitados à faixa litorânea, os investimentos de
impactou fortemente a renda nordestina, em empresas como a Petrobras beneficiaram dire-
particular, no ambiente rural. Nos milhares de tamente a Região por meio tanto da sua política
pequenos municípios, como as bases produtivas de compras quanto pela expansão de refinarias,
locais são muito modestas, o novo e sistemático com efeitos multiplicadores sobre a indústria
fluxo de renda não só dava cobertura social aos naval, de insumos e de transformação: nova re-
beneficiados diretos, como também dinamizava finaria foi instalada em Pernambuco e estaleiros
as lojas, as farmácias, as padarias, as feiras se- foram criados em Pernambuco, Alagoas, Bahia
manais (BACELAR, 2014). A vida no Nordeste e Maranhão.
rural mudou significativamente. Tanto que os
longos e recentes anos de seca não resultaram
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 9-29, agosto, 2020
13
Tania Bacelar e Arilson Favareto
Como resultado agregado, além do cresci- O que aconteceu no início do século XXI traz
mento da renda, a economia do Nordeste cres- duas novidades. Houve clara interiorização dos
ceu acima da média do Sudeste e do Brasil e investimentos públicos e privados, e a diversi-
o ritmo de expansão dos empregos também foi ficação dos setores produtivos beneficiados. E,
superior. especialmente relevante, houve uma transfor-
Completa o panorama de mudanças dois fa- mação inédita no sertão semiárido, que agora
tores estruturais muito importantes: a expansão conta com universidades, com pelo menos vinte
da rede de cidades de porte médio, e das redes cidades médias, e que teve sua população mais
de saúde e, sobretudo, de educação superior, ci- pobre definitivamente incorporada aos circuitos
ência e tecnologia. econômicos, ainda que pela via das transferên-
cias condicionadas de renda e outras políticas
No caso das cidades médias, elas são funda-
sociais, rompendo as condições de dominação
mentais porque funcionam como centros de ofer-
a um só tempo econômicas e políticas daquilo
ta de equipamentos e serviços públicos e priva-
que outrora Caio Prado Jr. havia chamado de se-
dos, agora mais perto das áreas interioranas, que
tor inorgânico da economia, como bem lembrou
sempre haviam sido preteridas comparativamen-
André Singer (2012). Isso sem falar do crescen-
te ao litoral. Também representam potenciais
te protagonismo das mulheres na vida produtiva
mercados de produtos e serviços para a agricul-
e nas organizações da sociedade civil no meio
tura familiar, e mercado de trabalho para a popu-
rural nordestino, favorecido pelas mudanças
lação que não pode ser incorporada na atividade
nas estruturas tradicionais de dominação.
agrícola ou dos pequenos municípios. Isso alivia
a pressão sobre os grandes centros e cria uma es- Dito de outra forma, se antes já fazia senti-
trutura mais descentralizada de distribuição de- do falar em Nordestes (BACELAR, 1995), hoje
mográfica, gerando oportunidades para os jovens a heterogeneidade intrarregional é ainda mais
do meio rural, onde a pluriatividade aumentou marcante. E ela se expressa não somente sob a
(AQUINO; NASCIMENTO, 2020). forma da desigualdade entre litoral e sertão, en-
tre polos dinâmicos e interior, mas como uma
No caso das redes de educação, ciência e
impressionante diversidade territorial, justa-
tecnologia, sua relevância consiste tanto na am-
mente porque comporta uma variedade de for-
pliação de oportunidades de acesso ao ensino
mas de relação entre o rural e o urbano, entre
superior como, para além disso, em instalação
economia e natureza, entre sociedade, Estado e
de capacidades nestes novos centros, algo fun-
setor privado. Isto coloca a questão regional em
damental para o futuro destes territórios. E não
outro patamar, muito distinto daquele em que
se trata somente dos novos campus universitá-
se formularam as abordagens clássicas e os pa-
rios, mas também das centenas de institutos de
drões conhecidos de organização das políticas
tecnologia, presentes igualmente em cidades de
públicas para o planejamento no Nordeste.
menor porte. Uma verdadeira rede, que antes
era privilégio concentrado nas capitais e gran-
des cidades. 2.2 Os desafios para o planejamento regional
Este conjunto de transformações tem um sig- As várias tentativas de promover programas
nificado maior: não é apenas o aprofundamento de desenvolvimento territorial ficaram a meio
de uma desconcentração produtiva que havia se caminho de operar substantivamente com esta
iniciado décadas antes; trata-se de uma segunda diversidade. Foram criados fóruns territoriais e
onda de mudanças qualitativas crucial na traje- planos de desenvolvimento que tiveram papel
tória do Nordeste. importante em mobilizar atores locais e apontar
A primeira havia sido motivada pelo esforço demandas aos governos – é o caso do Programa
empreendido desde a icônica experiência da Su- Territórios da Cidadania, no plano federal, ou de
dene, que levou à criação dos polos dinâmicos programas estaduais muito inovadores como na
mais conhecidos, como o da indústria petroquí- Bahia e no Piauí (FAVARETO; LOTTA, 2017).
mica em Camaçari, o de agroindústria e fruticul- Estes programas de desenvolvimento terri-
tura irrigada em Petrolina e Juazeiro, entre outros. torial trouxeram novidades importantes como
a abertura para esta diversidade territorial, ten-
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 9-29, agosto, 2020
14
O papel da agricultura familiar para um novo desenvolvimento regional no Nordeste – Uma homenagem a Celso Furtado
tando moldar intervenções apoiadas justamen- europeia, na qual a coesão territorial é um ob-
te na identidade local. Também contribuíram jetivo estratégico assumido e com alto grau de
para maior transparência dos investimentos prioridade. Uma interessante tipificação de
públicos, com a gestão vinculada aos espaços territórios, investimentos e instrumentos foi
participativos. E permitiram que a ideia de desenhada e a opção por uma abordagem mul-
“territórios” fosse incorporada massivamente tiescalar foi muito ousada e inovadora. Se im-
no repertório e no léxico dos planejadores de plementada, esta política seria muito comple-
políticas públicas. Hoje tornou-se comum falar mentar às políticas territoriais, porque visava
em territorialização de políticas, algo raro até a melhorar as condições de competitividade dos
década anterior. territórios em uma perspectiva de longo prazo
Os limites enfrentados também são conhe- e com aportes capazes de alterar estruturas que
cidos (VALENCIA et al., 2020; BERDEGUÉ; se traduzem em bloqueios para a alavancagem
FAVARETO, 2020; FERNANDEZ; FERNAN- de novas atividades e de novas formas de inser-
DEZ; SOLOAGA, 2019). Embora tenha havi- ção econômica e social das áreas e dos grupos
do inovação no sentido de organizar planos e periféricos. Nada disso, entretanto, foi adiante,
investimentos em uma escala supramunicipal, pois os instrumentos de seu financiamento fo-
não se rompeu com o viés setorial das políticas; ram bloqueados e não houve força política para
algo relevante pois, como se verá adiante, uma mudar a forma de implementar a política regio-
parte importante da abordagem territorial diz nal brasileira (GALVANESE, 2018).
respeito justamente ao caráter intersetorial do Deste conjunto de transformações em cur-
desenvolvimento territorial. Outro limite foi o so, e do aprendizado que as políticas públicas
caráter pouco estratégico dos planos e investi- geraram, se esperava que a segunda década do
mentos, que no mais das vezes permaneceu sen- século poderia trazer uma nova onda de inova-
do feito de maneira fragmentada e orientado a ções nos programas existentes, ou originando
demandas pulverizadas e de curto prazo postas outros. Isso, contudo, foi interrompido com a
pelos atores locais. tremenda crise que se instalou no plano nacio-
O caso do programa Territórios da Cidada- nal, atingindo em cheio a orientação central da
nia é exemplar: de maneira inédita foram mo- agenda pública e inaugurando um novo momen-
bilizados quase duas dezenas de ministérios, to, marcado por inversões de prioridades e por
mas com forte ênfase nas áreas de agricultura descontinuidades.
e políticas sociais. E é impossível transformar
as estruturas sociais e econômicas de regiões 2.3 A crise e suas implicações
periféricas sem novas infraestruturas, sem ci-
ência, tecnologia e inovação, sem turismo, sem A crise financeira de 2007/2008, instalada à
as ações do Ministério da Indústria e Comércio, esteira do estouro da chamada bolha imobiliá-
entre outras. Reproduziu-se uma dicotomia no ria, foi bem enfrentada pelo País, em um pri-
planejamento entre áreas dinâmicas e áreas de meiro momento. Mas a partir de 2012, quase
concentração da pobreza que a própria realida- todos os indicadores começaram a se deteriorar,
de vinha tratando de superar. Em resumo, houve culminando em uma crise inseparavelmente po-
pouca coordenação entre as políticas e as trans- lítica e econômica no meio do último decênio,
formações concretas pelas quais os territórios que pôs fim ao ciclo experimentado no decorrer
vinham passando. Talvez porque se conhecia da primeira década. Ou, mais ainda, segundo al-
pouco destas novas dinâmicas territoriais nor- guns autores como Bresser Pereira (2015), o que
destinas. E também devido a resistências vindas se teve foi mesmo o fim do pacto que vigorou
das estruturas setoriais dos diversos entes go- desde a Constituição de 1988, que tinha como
vernamentais. um de seus pilares o compromisso em torno da
expansão de direitos políticos associados à de-
A nova Política Nacional de Desenvolvi-
mocratização, e de direitos sociais, relativos à
mento Regional poderia ter suprido essa lacu-
expansão do bem-estar da população brasilei-
na. Ela foi elaborada sob um desenho bastante
ra, buscando enfrentar a dívida social herdada
inovador, com forte inspiração da experiência
do período da modernização conservadora e do
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 9-29, agosto, 2020
15
Tania Bacelar e Arilson Favareto
pacto autoritário modernizante que prevalecera - Segundo, ressalta-se aqui que já havia uma
no período dos governos militares. desaceleração da produção global, associada à
O fato é que chegamos ao final da segunda redução do crescimento da China. Em grande
década em situação totalmente distinta da ante- medida isto se explica pelo novo posiciona-
rior: em vez da expansão de programas, políti- mento do crescimento chinês, que na década
cas e investimentos, a prioridade à austeridade anterior se dava na casa dos dois dígitos e em
fiscal, inclusive com congelamento dos gastos 2019 ficou próximo dos 7%, quase a metade
públicos; em lugar do virtual pleno emprego, dos anos mais exuberantes. E não se trata de
um desemprego alto e a precarização crescen- algo conjuntural, e sim, de uma nova orienta-
te do mercado de trabalho com ocupações sem ção estratégica do governo do país asiático:
proteção social e baixa remuneração – os nú- crescer menos, mas mudando sua matriz pro-
meros atuais apontam um desemprego de 12% dutiva com bens de maior valor agregado, e
e a informalidade na casa dos 40% (BARBO- também enfrentando a desigualdade criada no
SA; PRATES, 2020); a pobreza volta a crescer a ciclo anterior. Isto representa menor demanda
passos largos – somente entre 2015 e 2019 mais pela importação de gêneros como minérios e
de 7 milhões de pessoas voltaram à condição soja, com claro reflexo para o posicionamen-
de pobreza; a desigualdade também aumenta de to do Brasil na ordem internacional, desta-
forma intensa (IBGE, 2019a); e apesar dos cor- cadamente com a necessidade de depender
tes em despesas e investimentos, a dívida públi- menos das exportações destas commodities,
ca aumenta, erodindo ainda mais a capacidade que dificilmente alcançarão o mesmo volu-
fiscal do Estado. Na segunda metade do último me e a mesma valorização do período ante-
decênio, a economia nordestina primeiro recua, rior. Não por acaso, os preços internacionais
e depois volta a crescer, mas em patamar muito das commodities estão abaixo do patamar de
baixo, incapaz de recompor a situação anterior 2011, tendo como efeito certa vulnerabilidade
à crise (BNB, 2019). comercial. Quase todos os países da América
Latina que dependem dos produtos primários
O cenário futuro, tampouco é favorável,
para o equilíbrio da sua balança comercial
mesmo sem levar em conta os efeitos ainda des-
vinham enfrentando dificuldades e no Brasil
conhecidos da brutal retração econômica que
não é diferente. Como esta tendência é histó-
se anuncia, causada pela pandemia do corona-
rica – a primeira década do século represen-
vírus. No contexto internacional, destacam-se
tou uma exceção, e não a regra na valorização
três aspectos, que podem se agravar no horizon-
das commodities no mercado internacional –,
te imediato, justamente por conta dos efeitos
agravada pela nova estratégia de crescimen-
associados aos eventos de 2020:
to do governo chinês, já mencionada, há uma
- Primeiro, as mudanças nos padrões técnicos
grande interrogação sobre como o Brasil se
que vêm revolucionando estruturas produti-
comportará em termos de suas perspectivas de
vas mundo afora, na transição da antiga or-
competitividade e de financiamento do desen-
dem industrial para a emergente economia do
volvimento. Já a agricultura familiar brasilei-
conhecimento onde predominam as atividades
ra é essencialmente voltada para o mercado
terciárias, ao mesmo tempo em que a passa-
interno e a demanda por alimentos tende a
gem para a era digital se impõe. Na agricul-
crescer, sobretudo se a cultura da alimentação
tura, a química vem perdendo espaço como
saudável predominar nas novas gerações;
ciência promotora da elevação da produti-
- Terceiro, a instabilidade econômica interna-
vidade e a biologia avança no patrocínio de
cional, que já era afetada pelo menor ritmo de
uma outra matriz produtiva – a dos orgânicos
crescimento, agora deve dificultar ainda mais
– esta dialogando muito bem com as unidades
uma retomada maciça de investimentos exter-
de pequena escala e grande diversidade como
nos no Brasil. Se forem confirmadas as ex-
é a agricultura de base familiar. Mas o Brasil,
pectativas de que possam ser adotados vigo-
mergulhado em suas crises, não vinha acom-
rosos programas de retomada do crescimento
panhando com vitalidade tais transformações;
nos países mais ricos, isso pode exercer uma
força centrípeta sobre os investimentos, con-
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 9-29, agosto, 2020
16
O papel da agricultura familiar para um novo desenvolvimento regional no Nordeste – Uma homenagem a Celso Furtado
centrando ali as melhores oportunidades para acima –, ainda não há outro motor forte para o
o capital. Isso, somado aos problemas inter- crescimento econômico.
nos, agrava os problemas de desvalorização Por outro lado, há dúvidas e controvérsias
cambial, o que no futuro pode gerar pressão quanto ao teor da agenda que vinha sendo prati-
inflacionária e dificuldades para importações cada, que significava justamente menor investi-
relevantes à modernização tecnológica de se- mento e menor valorização do poder de compra,
tores produtivos de ponta. com repercussão para a demanda agregada. O ar-
Um desafio, portanto, é como atrair capitais gumento de que um cenário de maior equilíbrio
orientados à promoção do crescimento econô- fiscal resultaria em retomada do investimento já
mico nacional. Havia uma aposta na agenda de vinha se mostrando duvidoso diante da baixa de-
reformas liberais do atual governo, em especial, manda e do cenário externo desfavorável.
aquela que trata do sistema público de previ- Finalmente, a ausência de uma política in-
dência, e uma possível onda de privatizações. A dustrial e a retração na oferta de crédito já vi-
pandemia da Covid-19 traz uma sombra de dú- nham influenciando a insuficiente retomada do
vida sobre esta agenda, agora tendo como pauta crescimento, sem falar do necessário engate em
as reformas tributária e administrativa, diante da novos padrões produtivos, de consumo e orga-
pressão por elevação do gasto público para fazer nizacionais. Coerente com este contexto, a taxa
frente à crise. E ainda que ocorram ambos os de desocupação se manteve alta, mesmo após a
processos, seus impactos não tendem a ser ime- flexibilização na legislação trabalhista. E par-
diatos segundo a quase totalidade dos analistas. te expressiva das famílias encontra-se em alto
Este quadro internacional, como foi dito, grau de endividamento, restringindo seu poten-
condiciona e agrava problemas internos vividos cial de consumo e afetando o mercado interno,
na trajetória recente da economia brasileira. En- cujo crescimento foi importante para o desem-
tre eles podem se destacar os seguintes. penho econômico do País na década passada.
A combinação de fatores mencionados para o E como fica o Nordeste neste preocupante
cenário internacional indica um ambiente exter- contexto do fim da segunda década do século?
no marcado por mudanças e pela desaceleração Apesar de todo o quadro desfavorável, a traje-
do crescimento internacional, estagnação dos tória recente do Nordeste vinha revelando, até a
investimentos e queda nos preços internacionais eclosão da pandemia da Covid-19, um desem-
das commodities. Tudo isso se traduz em deses- penho que, ao menos em alguns aspectos, des-
tímulos à retomada do crescimento do PIB, so- toa do que se passou no conjunto do País. Mas
bretudo nos marcos de uma economia, como a é preciso cuidado nessa leitura, pois estavam se
brasileira, cada vez mais dependente da exporta- esvaindo alguns dos vetores responsáveis pelo
ção daqueles bens primários. Mais que isso, o re- desempenho positivo recente da Região, como
sultado sobre o equilíbrio da balança comercial e se observa a seguir.
das contas externas pode resultar em pressão so- A realização de investimentos públicos e
bre o câmbio e sobre a inflação. A alta na cotação privados neste início de século ensejou mudan-
do dólar dos últimos meses bem o demonstra. ças qualitativas na estrutura produtiva regional,
O fraco crescimento dos últimos anos, asso- como já foi destacado. Não só houve comple-
ciado à revisão para baixo das expectativas de xificação da economia regional, como alguns
crescimento para 2020, mesmo antes da pande- estados ampliaram sua participação regional.
mia da Covid-19, são sinais da dificuldade em Apesar disso, segue existindo forte concentra-
reverter os elementos que levaram à crise do ção nos três estados líderes: Bahia, Pernambuco
meio desta década. Diante das restrições fiscais e Ceará. Como um dos resultados, o Nordeste
em manter elevado o gasto público, expandir o aumentou sua participação no comércio interna-
emprego e o investimento e valorizar salários – cional, como comprador de insumos industriais
como se viu até a crise –, somado ao contexto e fornecedor de produtos primários; e, em al-
de estabilidade ou declínio nos preços das com- guns casos, manufaturados (BACELAR, 2014).
modities – que deve se manter como indicado Apesar disso, ainda há uma persistência de
fragilidades na estrutura produtiva, com proble-
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 9-29, agosto, 2020
17
Tania Bacelar e Arilson Favareto
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 9-29, agosto, 2020
18
O papel da agricultura familiar para um novo desenvolvimento regional no Nordeste – Uma homenagem a Celso Furtado
dito antes para a questão regional – isto é, os de produção, e não em grandes empresas agro-
progressos foram inegáveis, mas os fatores que pecuárias apoiadas em trabalho assalariado. Na-
levaram àquele desempenho positivo parecem quele caso, isso foi peça fundamental do pró-
não ter mais a mesma força de outrora; e, como prio processo de desenvolvimento industrial e
decorrência desta constatação, pretende-se ar- da urbanização ocorrida no período pós grandes
gumentar como e porque uma atualização da Guerras Mundiais. Estruturar a modernização
agenda de políticas neste tema pode representar agrícola sobre uma ampla base de agricultores
uma boa oportunidade para inaugurar um ciclo familiares permitiu, a um só tempo: a forma-
novo de iniciativas pautadas justamente na va- ção de uma classe média nos campos; evitar um
lorização substantiva da diversidade territorial êxodo para os grandes centros em busca de em-
nordestina, com o olhar em novos tempos. pregos urbanos; com isso, evitar o crescimento
desordenado e desmesurado das grandes metró-
3.1 Os 25 anos de políticas para a agricultura poles; e consequentemente, evitou-se também a
explosão dos preços do solo urbano e do custo
familiar
de vida nas grandes cidades.
A expressão agricultura familiar surgiu no Em resumo, na experiência europeia, em
vocabulário de gestores de políticas públicas, grande parte, isso favoreceu um padrão demo-
pesquisadores e movimentos sociais no Brasil gráfico de crescimento mais desconcentrado e
no início dos anos 1990. É importante enten- com uma transição mais moderada para o perí-
der o porquê desta novidade para pensar em sua odo urbano industrial. Mas não só. O fato de se
atualidade um quarto de século depois. tratar de empresas familiares tornava o custo de
A ideia de agricultura familiar substituía, produção mais baixo, devido ao autoemprego.
com maior acuidade, conceitos correlatos ante- O custo de reprodução social destes agriculto-
riores como campesinato e pequena produção, res familiares era menor, pois parte dos gastos
como mostraram Abramovay (1992) e Veiga típicos de um trabalhador urbano, em seu caso,
(1991) em livros muito influentes à época. Não não existiam: o custo da moradia, do transporte.
se tratava mais, na virada do século, de unida- Nem tampouco estava presente a taxa de acu-
des autônomas, marcadas pelo autoconsumo e mulação de capital reproduzida como aquilo
pela subordinação direta aos latifúndios, como que Marx outrora havia denominado como a
no caso do campesinato clássico. Nem de uma mais-valia. Esta exploração do trabalho pelos
forma de produção marcada pelo volume redu- trabalhadores, eles mesmos, permitia um cus-
zido, como no caso da pequena produção em to final menor dos produtos agrícolas. E isso,
bases mercantis. O agro brasileiro passava por associado aos pesados investimentos governa-
uma transformação profunda com total integra- mentais do Estado de bem-estar social da época,
ção aos mercados internacionais e uma raciona- fazia com que o custo de reprodução do traba-
lidade capitalista atingia agora todos os cantos lhador urbano, com alimentação, mas também
do Brasil rural. Agricultura familiar se firmou com outros bens, fosse menor, liberando massa
como uma categoria mais abrangente, que em salarial que podia então ser destinada ao consu-
certo sentido compreendia as formas anterior- mo de outros bens e serviços, que favoreceram
mente mencionadas, mas também um segmento a industrialização (ABRAMOVAY, 1992).
que produzia em montante considerável, plena- No Brasil, nada disso ocorreu, ao menos
mente inserida em mercados de diferentes tipos, dessa forma. Nossa urbanização e industriali-
e que tinha como traço distintivo o fato de que a zação se deram de forma parcial, e incomple-
gestão da unidade produtiva e o trabalho empre- ta, porém intensa. Parcial, porque mesmo no
gado vinha predominantemente dos membros auge da industrialização, a participação desse
da própria família (LAMARCHE, 1993). setor no PIB nacional ficou na casa do um terço
O debate sobre a importância da agricultura do total; pior: desde os anos 1980 vem recu-
familiar é, em certo sentido, importado da expe- ando gradativamente e hoje voltamos aos 14%,
riência estadunidense e europeia, locais que ti- mesmo patamar dos anos 1940, antes de todo
veram seu modelo agrícola baseado nesta forma o esforço empreendido no período desenvolvi-
mentista. Incompleta, porque ela ficou durante
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 9-29, agosto, 2020
19
Tania Bacelar e Arilson Favareto
décadas muito concentrada no Sudeste do País. quase metade da agricultura familiar brasileira,
É verdade que há uma desconcentração da ati- estava na terceira categoria.
vidade industrial, como já foi mencionado, mas O Estado brasileiro do começo dos anos
bastante lenta, e em certo sentido reconcentrada 1990 enfrentava sérios problemas fiscais. A
em polos dinâmicos. Intensa, porque ocorreu criação do que viria a ser o Programa Nacio-
de forma rápida, no intervalo de uma geração. nal de Fortalecimento da Agricultura Familiar
No caso da urbanização, basta lembrar que até (Pronaf) resultou de uma aliança entre reivin-
a década de 1960, 80% da população brasileira dicações dos movimentos sociais – que com as
vivia nos campos, e apenas um quarto de século mobilizações conhecidas como Grito da Terra
depois esse número havia simplesmente se in- demandavam uma política com este teor –, da
vertido, com oito em cada dez brasileiros viven- intelectualidade – que ao introduzir a relevân-
do em cidades de diversos portes, mas com uma cia da ideia de agricultura familiar como algo
explosão das metrópoles no período. moderno e experimentado em países capitalis-
Quando a expressão agricultura familiar pas- tas centrais conferia legitimidade a este discur-
sou a ser adotada nas políticas públicas no Bra- so –, e da burocracia governamental – que via
sil, já havíamos, portanto, perdido uma primeira no apoio a este segmento uma oportunidade de
grande oportunidade. Ainda que de outra forma, alcançar bons resultados, com custos mais bai-
não é de outra coisa que falava Celso Furtado, xos do que aquele envolvido no financiamento à
quando defendia a necessidade de levar a indus- grande produção agropecuária do País.
trialização ao Nordeste, mas ao mesmo tempo Estavam dadas as condições para que se fir-
chamava a atenção para a importância de se massem dois traços que marcariam a história
fazer, simultaneamente, uma significativa dis- do Pronaf: seu caráter complementar, adjacen-
tribuição de ativos – terra e educação, sobretu- te, comparativamente à prioridade dada para os
do, além de alterar a organização produtiva do grandes produtores agropecuários; e sua priori-
Nordeste rural, onde o produtor familiar estava dade a um segmento da agricultura familiar que
“embutido” no latifúndio, era expulso por ele se concentrava sobretudo no Sul e Sudeste do
ou corria para áreas “livres” menos adensadas Brasil.
– isso abrangia nada menos do que três das qua-
A isso os estudos realizados na virada para os
tro diretrizes do GTDN. Assim se preconizava a
anos 2000 apontavam um outro limite (ABRA-
geração de uma nova dinâmica no que era, en-
MOVAY; VEIGA, 1999): nem tudo se podia fa-
tão, a periferia do capitalismo brasileiro. Algo
zer, para usar um jargão conhecido, “da porteira
que se expressava nas chamadas reformas de
pra dentro”. Isto é, o Pronaf era um programa de
base, que nunca foram feitas.
crédito, e sem modificar o entorno dessa agri-
Nos anos 1990, o que levou o Estado brasi- cultura familiar, suas perspectivas seriam muito
leiro a adotar um programa para a agricultura limitadas. Desde o começo, ao lado das linhas
familiar foi o reconhecimento de que havia um de crédito de custeio e investimento, havia sido
segmento que produzia tanto ou mais do que desenhada uma linha chamada Pronaf Infraes-
as grandes fazendas, ainda que praticamente trutura, dedicada à construção de obras como
sem nenhum apoio governamental. Esta era a agroindústrias, estradas e outras, destinadas a
constatação do que ficou conhecido como es- melhorar os fatores de competitividade da pro-
tudo FAO/Incra (1994). Nele se propunha uma dução agrícola familiar.
tipificação da agricultura familiar brasileira.
Ao lado destas avaliações do Pronaf e sobre
Foi muito discutida a classificação dos esta-
os assentamentos da reforma agrária, três linhas
belecimentos familiares em consolidados, em
de pesquisa marcaram profundamente o am-
transição, e periféricos. O estudo FAO/Incra se
biente intelectual dedicado aos estudos rurais
prestou a várias interpretações. Em uma delas,
no Brasil em fins dos anos 1990. É fundamental
as políticas de crédito deveriam se direcionar
destacá-los, pois mudaram a forma de conceber
aos dois primeiros segmentos; e ao terceiro, ca-
as condições de reprodução da agricultura fa-
beriam políticas predominantemente sociais, e
miliar e dos espaços rurais, embora tenham sido
não produtivas. Claro que a maioria da agricul-
absorvidos apenas parcialmente nas inovações
tura familiar nordestina, mesmo representando
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 9-29, agosto, 2020
20
O papel da agricultura familiar para um novo desenvolvimento regional no Nordeste – Uma homenagem a Celso Furtado
que viriam a ser introduzidas nas políticas pú- levou para a esfera governamental a nova retó-
blicas dos anos 2000. rica (VEIGA et al., 2001). Inicialmente isso se
Estas linhas de pesquisa eram: o Projeto traduziu em uma experiência embrionária e ex-
Rurbano, conduzido por José Graziano da Sil- perimental, ainda no final do governo Fernando
va, na Unicamp; os estudos sobre desenvolvi- Henrique Cardoso, transformando parte dos re-
mento territorial, tendo como maiores expoen- cursos da antiga linha Pronaf Infraestrutura em
tes José Eli da Veiga e Ricardo Abramovay, na um Pronaf Infraestrutura intermunicipal. Isso
USP; e um amplo e diversificado leque de es- viria ser fortemente ampliado posteriormente,
tudos organizados em torno da expressão Nova com a criação da Secretaria de Desenvolvimen-
ruralidade, que tinha como um dos principais to Territorial no âmbito do Ministério do De-
nomes Maria Nazareth Baudel Wanderley, en- senvolvimento Agrário (MDA), então já sob o
tão também na Unicamp, e posteriormente na governo de Luiz Inácio Lula da Silva.
Universidade Federal de Pernambuco. Porém, essa incorporação da retórica territo-
A principal contribuição do Projeto Rurba- rial foi parcial. Os mais importantes recados da
no (GRAZIANO DA SILVA, 1999), que con- literatura eram os seguintes. As transformações
gregou uma extensa lista de colaboradores em demográficas e nos mercados haviam implodi-
todo o Brasil, foi a constatação de que, na vi- do a unidade espacial básica de planejamento
rada do século, boa parte das famílias rurais que até então eram os estabelecimentos agrope-
não obtinha mais seu sustento exclusivamente, cuários ou, no máximo, a zona rural dos municí-
e em muitos casos sequer predominantemente, pios – a dinâmica de reprodução das famílias se
de rendas agrícolas. Isto envolve atividades não estruturava agora em outra escala, mais abran-
agrícolas realizadas no âmbito dos próprios es- gente, os territórios e suas articulações rural-ur-
tabelecimentos familiares – como algumas rela- bano e, muitas vezes, intermunicipal. Também
cionadas ao turismo rural, muito presentes em havia implodido o caráter setorial das políticas
áreas adjacentes a grandes cidades –, ou outras de desenvolvimento rural, elas precisariam ser
como o emprego total ou parcial de membros da cada vez mais intersetoriais – porque as rendas
família em atividades nos núcleos urbanos pró- das famílias vinham agora de diferentes setores,
ximos – caso de um filho ou filha que trabalham como mostrara o Projeto Rurbano, mas também
no comércio, ou como professor, por exemplo, porque o dinamismo que permite gerar empre-
algo frequente nos pequenos municípios do in- gos e oferta de bens e serviços necessários ao
terior. Em resumo, as famílias eram cada vez bem-estar rural depende do que acontece na
mais pluriativas. combinação do tecido econômico envolvendo
os vários setores de um território; isso é o que
Duas constatações derivavam disso para as
vinha sendo destacado por toda uma literatura
políticas públicas: planejar o desenvolvimento
produzida principalmente na França e na Itália
rural não implicava mais, somente, em estimu-
sobre os chamados distritos neomarshallianos
lar a produção agropecuária; e era importante,
e os sistemas produtivos locais. E, finalmen-
consequentemente, tomar como base empírica
te, chamavam a atenção para o fato de que um
de análise e planejamento de investimentos pú-
território é uma unidade concreta, estruturada a
blicos uma unidade territorial mais ampla, para
partir de certos laços de cooperação, mas tam-
além das zonas rurais, envolvendo agora tam-
bém com base em conflitos e em formas de do-
bém a esfera do mercado de trabalho urbano,
minação e de disputa pelo controle dos recursos
que se mesclava com o rural. Quase nada disso
deste território, e no caso dos territórios rurais,
se traduziu, no entanto, em políticas e progra-
a natureza e os recursos naturais são um bem
mas à época.
público essencial.
Já no caso dos estudos sobre desenvolvimen-
De tudo isso, as políticas públicas absorve-
to territorial (ABRAMOVAY, 2000; VEIGA,
ram a ampliação da escala geográfica, mas a
2002, entre outros), houve incidência direta so-
política territorial continuou apoiando-se pre-
bre a moldagem de políticas públicas. Ao assu-
dominantemente em um viés setorial, agrope-
mir o comando do Conselho Nacional de Desen-
cuário e limitado à agricultura familiar (VA-
volvimento Rural Sustentável, José Eli da Veiga
LENCIA et al., 2020; FAVARETO et al., 2020).
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 9-29, agosto, 2020
21
Tania Bacelar e Arilson Favareto
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 9-29, agosto, 2020
22
O papel da agricultura familiar para um novo desenvolvimento regional no Nordeste – Uma homenagem a Celso Furtado
Sob o ângulo das inovações e do montante coisa mudou nas estruturas produtivas das áreas
aplicado por meio deste expressivo conjunto de rurais mais pobres. Em Favareto (2017), já se
programas, a história se divide em dois momen- chamava a atenção para o fato de que parte dos
tos: de 2003 a 2015, quando há significativa ganhos poderiam ser revertidos se houvesse in-
ampliação de recursos (GRISA; SCHNEIDER, terrupção dos fluxos de investimentos governa-
2015); e depois de 2015, quando a crise fiscal se mentais. Os recursos das políticas sociais eram
instala por completo, quando muda a coalizão da ordem de dez vezes aquilo que era investido
de forças sociais à frente do Estado, o que leva nas políticas produtivas para a agricultura fa-
à diminuição dos valores investidos, desconti- miliar. E boa parte do dinamismo dos pequenos
nuidade de alguns destes programas, reorgani- municípios vinha se assentando em atividades
zação e reestruturação de outros (FAVARETO, de comércio e serviços, justamente ativadas
2017). Ato simbólico deste segundo momento, pelo gasto social. Não por acaso, portanto, com
o próprio Ministério do Desenvolvimento Agrá- a crise e as políticas de austeridade fiscal ado-
rio que representava o lugar institucional das tadas na segunda metade da década, a pobreza
políticas para a agricultura familiar é extinto, e voltou a crescer a passos acelerados.
parte dos programas sob sua responsabilidade é Quarto, isso acontecia porque muitos dos
alocada no Ministério do Desenvolvimento So- programas experimentados na primeira década
cial, e outra parte no Ministério da Agricultura. precisavam ser atualizados, à luz dos aprendiza-
Esta ruptura tem levado muitas análises a dos gerados. É inegável que eles alcançaram re-
uma leitura excessivamente simplista dos dois sultados expressivos, mas já desde 2012 muitos
períodos, atribuindo somente à ruptura pós deixavam de apresentar o mesmo desempenho.
2015 os problemas atuais. Diferente disso, é Para ficar em alguns exemplos: a pobreza, que
fundamental compreender que vários progra- caiu fortemente na primeira década, desde então
mas vinham apresentando também limites. Sob já começava a se mostrar mais resiliente; o Pro-
o ângulo dos resultados obtidos, quatro aspec- naf, que em determinado momento se expandiu
tos precisam ser destacados. para os agricultores pobres do Nordeste, voltava
Primeiro, a inegável melhoria das condições a passar por forte concentração no Sul e no Su-
de vida das populações rurais – praticamente deste e entre os segmentos mais capitalizados; o
todos os indicadores melhoraram significati- Programa de Aquisição de Alimentos enfrentava
vamente na primeira década deste século (NO- problemas de escala e de burocracia na sua im-
VAIS; ACCA; FAVARETO, 2020). É verdade plementação; e, principalmente, ficava claro que
que os últimos cinco anos têm sido palco de faltava coordenação entre os programas (LOT-
reversões em alguns domínios, como a renda, TA et al., 2020). MELLO (2018) mostra, por
mas em outros os ganhos não podem ser desfei- exemplo, como apenas dois em cada dez agri-
tos, como no caso da elevação da escolaridade cultores familiares tiveram acesso a mais de um
(KOSLISNSKY et al., 2020). programa público de apoio à produção – quem
recebeu crédito não recebeu assistência técnica,
Segundo, houve uma expressiva mudança no
quem recebia luz e água não recebia políticas
perfil econômico das regiões interioranas (BA-
produtivas, e assim sucessivamente.
CELAR, 2014). A maior circulação monetária
nestas áreas ativou circuitos locais, sobretudo no Em resumo, tudo apontava para a necessida-
comércio e serviços. E, no caso das cidades mé- de de uma nova geração de políticas públicas,
dias, levou a interiorização de investimentos pri- em uma trajetória que, no entanto, foi interrom-
vados com novas atividades econômicas, criando pida pela crise. Mas deve ter ficado claro tam-
novas centralidades que poderiam ter sido me- bém que ao imaginar o futuro, não se trata so-
lhor aproveitadas na geração de tramas territo- mente de reeditar o que vinha sendo feito. Seja
riais e de fortalecimento de mercados locais com porque os resultados já não vinham se expres-
os pequenos municípios de seu entorno. sando com a mesma força no início do último
decênio. Ou, principalmente, porque o contexto
Terceiro, apesar de tudo isso, houve pouca
de agora e dos próximos anos tende a ser muito
alteração produtiva, resultando em grande de-
diferente, tanto em função de mudanças profun-
pendência dos repasses governamentais. Pouca
das em curso aqui já assinaladas, como também
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 9-29, agosto, 2020
23
pelos impactos da crise atual. Será necessário, senvolvimento regional, e são mercados
portanto, inaugurar uma nova etapa, apoiada potenciais para a população de seu entor-
na valorização da experiência passada, é claro, no. No entanto, pouco ou nada há de polí-
mas também mobilizando conteúdos totalmente ticas para favorecer a conectividade física
novos, de forma a avançar na transição sugeri- e virtual entre estes novos centros e o mar
da com a emergência do enfoque territorial do de pequenos municípios que poderia ter,
desenvolvimento e com a narrativa da nova ru- com eles, vínculos muito mais dinâmicos.
ralidade. Algo que só pode ser feito nos marcos Isto se expressa em articulações territo-
de uma nova política regional, expressa em uma riais na economia, mas também nas áreas
renovada estratégia de desenvolvimento territo- de educação, promoção da inovação, saú-
rial para o Nordeste. de e outras;
II) A segunda vantagem sobre a qual deve
3.2 Porque a agricultura familiar e o se estruturar uma nova política regional,
desenvolvimento das regiões interioranas portanto, é a interiorização das redes de
educação superior, ciência, tecnologia e
do Nordeste podem ser um vetor de um
inovação. São dezenas de universidades e
novo ciclo de desenvolvimento centenas de institutos tecnológicos (IFs)
Os próximos anos ainda serão marcados por com uma invejável capilaridade. Apesar
restrição fiscal, necessidade de retomar o cresci- disso, pode-se perguntar: quais são os
mento, e dificuldades em obter os mesmos ganhos projetos que hoje aproximam estas redes
com a exportação de commodities comparativa- entre si, e com a rede de educação pú-
mente ao que se teve no início do século XX. E blica destinada às crianças e aos jovens
muitos elementos estruturantes do mundo antes da das áreas rurais e dos pequenos municí-
pandemia estarão em questão, como o alto grau de pios do Nordeste? Exceto experiências
concentração da riqueza e de desigualdade social, isoladas, pouco há de efetivo sobre isso.
o padrão de relação sociedade-natureza, o avanço Muito pode ser feito para aproximar estas
da globalização nos termos de outrora, o padrão de estruturas, e para fazer desta rede a base
construção de cadeias globais de valor, entre ou- para uma inovação rápida e revolucioná-
tros. Ao mesmo tempo, será um período difícil, e ria de atividades produtivas e de progra-
não de abundância de investimentos públicos ou mas públicos no interior do Nordeste. Um
privados, internos ou externos. Mais ainda, será exemplo é o Centro de Desenvolvimento
um período de incertezas, pois o mundo estará se Regional (CDR), implementado com o
readaptando diante do risco representado por no- apoio do Centro de Gestão e Estudos Es-
vas situações similares a esta provocada pela pan- tratégicos – CGEE, em articulação com
demia da Covid-19. a Câmara dos Deputados, e apoio do Mi-
As áreas interioranas do Nordeste têm vanta- nistério da Educação através do sistema
gens constituídas graças às transformações sociais, universitário, em Campina Grande;
econômicas e demográficas mencionadas e que III) A terceira vantagem é a natureza. No
precisam ser aproveitadas, de forma a promover mundo do século XXI não é mais conce-
uma transição para o século XXI, diante de con- bível associar o rural nordestino às restri-
texto tão adverso. Que vantagens são essas? ções ambientais relativas a solos pobres
I) A primeira e, talvez mais importante, ou à restrição hídrica. Claro que estes
é a rede de cidades de médio porte que problemas existem. E é certo também que
criou novas centralidades no vasto semi- novos problemas avançam como o risco
árido nordestino e ajudou a redefinir as de desertificação. Mas o tratamento da
relações campo-cidade no meio rural da questão ambiental hoje vai muito além
Região. Como já foi dito, elas são impor- da aptidão de solos e áreas à produção
tantes pelo lado da oferta e pelo lado da agrícola. Há mercados para produtos tí-
demanda: representam bases de infraes- picos e representativos da biodiversidade
trutura e serviços fundamentais para o de- local, dos pequenos animais à fruticultu-
ra. Nos marcos das negociações climáti-
24
O papel da agricultura familiar para um novo desenvolvimento regional no Nordeste – Uma homenagem a Celso Furtado
cas haverá cada vez mais financiamento uma força de trabalho capaz de gerar rique-
para práticas de conservação e para a zas, a partir de investimentos e incentivos
chamada agricultura regenerativa. O re- que, justamente por se tratar de uma região
servatório genômico do amplo espaço mais pobre, são menos custosos compara-
nordestino tem enorme potencial e pode- tivamente aos grandes centros urbanos. É
rá ser de utilidade incomum se aplicada o que Amartya Sen (2000), economista in-
à saúde – produção de fármacos – ao de- diano e ganhador do Nobel de Economia
senvolvimento de novos materiais, e em chamou de Economia dos custos relativos.
particular, à segurança alimentar. A Re- Um arranjo inteligente de investimentos pú-
gião oferece ainda condições climáticas blicos e privados pode ativar estes circuitos
extremamente favoráveis para a geração locais a partir de pequenos aportes, e com
sistemática de energias limpas e renová- efeitos encadeadores muito significativos
veis, enquanto no campo fitoterápico, en- para as famílias e para o território.
tre as diversas espécies do bioma, várias
plantas são notoriamente consideradas Vale lembrar que o Censo Agropecuário 2017
como medicamentosas pelo uso das suas (IBGE, 2019b) mostra que agricultura familiar
folhas, cascas e raízes, ou podem ser usa- brasileira se concentra no Nordeste, onde estão
das como bioinseticidas e fitocosméticos, nada menos do que 1,8 milhão de estabelecimen-
revelando o enorme potencial em novos tos agropecuários, dos quais quase 90,0% estão no
usos da biodiversidade. Muitas dessas grupo dos mais pobres (Tabela 1).
atividades podem ser praticadas por pro-
dutores familiares. E com isso, a imagem Tabela 1 – Distribuição da agricultura familiar nas
do Nordeste de solo rachado e lócus da regiões brasileiras – 2017
extrema pobreza tem uma boa possibili-
dade de ser revertida. Regiões Nº Estabelecimentos %
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 9-29, agosto, 2020
25
dições que não mais existem. Ou, o que seria bem nordestina, e do mundo que se descortina nesta ter-
melhor, o Nordeste pode resgatar sua tradição de ceira década. Um mundo no qual o papel estratégi-
inovação em políticas regionais e ousar reimaginar co do conhecimento será mais que nunca eviden-
o futuro. E, nele, há espaço destacado para a pro- ciado. Donde as políticas promotoras de inovação
dução familiar, em um Brasil carente de resiliên- tendem a nuclear as políticas territoriais, como já
cia e criatividade, o que não falta aos nordestinos. ocorre em vários locais, mundo a fora.
Basta ver a solidez de sua cultura, outro potencial De forma complementar, é fundamental reco-
a se aproveitar em tempos de ascensão da chamada nhecer que toda política setorial tem efeitos ter-
economia criativa. É disso que se trata. ritoriais, desejados ou não: a política industrial se
expressa nos territórios; a política agrícola se con-
cretiza nos territórios; as políticas sociais se mate-
4 A TÍTULO DE CONCLUSÃO: rializam nos territórios; as políticas de educação
POR UM FIM DAS POLÍTICAS e as de ciência, tecnologia e inovação dialogam
TERRITORIALMENTE CEGAS E PELA fortemente com as realidades territoriais.
VALORIZAÇÃO DA INOVAÇÃO É sabido que o Nordeste não é algo homogêneo
e, a rigor, nunca o foi (BACELAR, 1995). Mas as
As mensagens principais e que condensam o décadas recentes tornaram esta heterogeneidade
que se tentou explicitar no decorrer deste texto po- ainda mais flagrante. O já mencionado estudo pro-
dem ser resumidas em duas ideias. Os anos recen- duzido pelo IICA (BACELAR; BEZERRA, 2017;
tes trouxeram uma nova onda de transformações BITOUN et al., 2017; IICA, 2017) identificou
estruturais para o desenvolvimento do Nordeste, vinte e seis diferentes tipos de territórios rurais no
mas parte dos motores destas mudanças perdeu po- Brasil, todos eles em novo modo de relação com
tência na crise atual e, como decorrência, os efeitos o urbano, onze dos quais estão no Nordeste. E os
positivos que vinham sendo gerados não tendem demais artigos reunidos neste dossiê da REN apre-
a se repetir de igual maneira no futuro imediato; sentam dez retratos atualizados, elaborados com
logo, não basta repetir o passado. E o mesmo pode base nos resultados definitivos do Censo Agro-
ser dito a respeito da agricultura familiar: nunca pecuários 2017, que espelham a diversidade da
este segmento foi tão beneficiado como neste iní- agricultura familiar em cada um dos estados e no
cio de século XXI na Região, mas o novo contexto conjunto da Região.
traz consigo a ameaça de reversão de parte signifi-
No que se refere ao mundo rural, a pergunta que
cativa dos avanços experimentados; também nesse
precisa ser feita é: quais são os instrumentos de po-
terreno, é preciso reinventar o futuro.
lítica pública, sobretudo para o amplo semiárido,
Para além desta constatação, nas páginas an- especificamente desenhadas para o entorno das di-
teriores se mostrou também que as mudanças re- nâmicas das cidades médias, e que outras são mol-
centes, no desenvolvimento regional e no desen- dadas para o semiárido mais afastado destes cen-
volvimento rural do Nordeste, criaram uma nova tros dinâmicos? Noutra direção se pode perguntar,
condição interna e de inserção externa, novas van- em que medida a política ambiental é adaptada em
tagens que podem ser a base para um novo ciclo, suas prioridades e instrumentos para as áreas de
desde que a política regional seja igualmente rein- expansão agrícola nos Cerrados do Nordeste ou
ventada. para áreas como o agreste, próximo da faixa litorâ-
Uma política deve expressar uma estratégia. E nea e de sua importante rede de cidades?
no caso do Nordeste do século XXI será preciso Em cada um dos territórios rurais nordesti-
fazer aposta firme na inovação e melhor coordenar nos, novas vantagens comparativas precisam ser
as políticas em torno de um projeto de transforma- mobilizadas de formas diferentes, porque elas se
ção cujo principal elemento deve ser o tratamento expressam de maneira diversa. Sem dialogar com
afirmativo da sua diversidade territorial. esta realidade concreta, a Região é pura abstração.
Não se trata de inventar um grande número de A desigualdade continua sendo o problema central
instrumentos, mas de melhor coordená-los e dar- do Brasil e em especial do Nordeste, mas a diver-
-lhes um sentido renovado, coerente e consistente sidade é um ativo estratégico central. Operando
com a nova tessitura da economia e da sociedade afirmativamente com esta diversidade, o Nordeste
26
O papel da agricultura familiar para um novo desenvolvimento regional no Nordeste – Uma homenagem a Celso Furtado
estará resgatando sua melhor tradição de planeja- BANCO MUNDIAL. Effects of the business
mento regional, e dando continuidade, hoje, àqui- cycle on social indicators in Latin America
lo que sonharam seus grandes nomes do passado, and the Caribbean: when dreams meet
como Celso Furtado, que neste ano completaria reality. Semiannual Report – Office of the
seu centésimo aniversário. Regional Chefi Economist. 2019. Disponível
em: http://documents.worldbank.org/curated/
en/182351554446580574/pdf/Effects-of-the-
REFERÊNCIAS Business-Cycle-on-Social-Indicators-in-Latin-
ABRAMOVAY, R. Paradigmas do capitalismo America-and-the-Caribbean-When-Dreams-Meet-
agrário em questão. São Paulo/Campinas: Ed. Reality.pdf.
Hucitec/Anpocs/Ed.Unicamp. 1992.
BANCO MUNDIAL. A economia nos tempos
ABRAMOVAY, R. O capital social dos de Covid-19. Relatório semestral sobre a região
territórios. Economia Aplicada, v. IV, n. 2, p. da América Latina e Caribe. 2020. Disponível
379-397, abr./jun. 2000. em: https://openknowledge. worldbank. org/
handle/10986/33555. 2020.
ABRAMOVAY, R.; VEIGA, J. E. Novas
instituições para o desenvolvimento rural: o BCG. From wealth to wellbeing. Boston: BCG.
caso do Programa Nacional de Fortalecimento 2013.
da Agricultura Familiar (Pronaf). Brasília: Ipea.
BERDEGUÉ, J.; FAVARETO, A. Balance de
1999. (Texto p/ Discussão n. 641).
la experiencia latinoamericana de desarrollo
AQUINO, J. R.; NASCIMENTO, C. A. territorial rural y propuestas para mejorarla. In:
Heterogeneidade e dinâmicas das fontes de BERDEGUÉ, J.; CHRISTIAN, C.; FAVARETO,
ocupação e renda das famílias rurais nos A. (Orgs.). Quince años de desarrollo
estados do Nordeste brasileiro. Revista Grifos territorial rural en América Latina: ¿qué nos
– Unochapecó, v. 29, n. 50, set./dez. 2020. (No muestra la experiencia? Buenos Aires: Ed. Teseo,
prelo). 2020. p. 11-57.
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 9-29, agosto, 2020
27
FAO. Seguridad alimentaria bajo la Pandemia FMI. World Economic Outlook, April 2020:
de COVID-19. 2020. Disponível em: http://www. the great lockdown. 2020. Disponível em:
fao.org/fileadmin/user_upload/rlc/docs/covid19/ https://www.imf.org/en/Publications/WEO/
Boletin-FAO-CELAC.pdf. Issues/2020/04/14/weo-april-2020.
FAVARETO, A. (Org.). Agenda 2030 no Brasil IBGE. Censo Agropecuário 2017: resultados
rural e interiorano: reflexões e ideias para uma definitivos. Rio de Janeiro: IBGE, 2019b.
nova geração de políticas. Rio de Janeiro: IdeiaD Disponível em: http://ibge.gov.br.
Ed., 2020b. (No prelo).
IICA. Tipologia regionalizada dos espaços
FAVARETO, A.; LOTTA, G. Inovações rurais brasileiros. Brasília; IICA. 2017.
institucionais nas políticas para o
desenvolvimento territorial em três KAYSER, B. La reinaissance rurale: sociologie
estados brasileiros. REDES – Revista do des campagnes du monde occidental. Paris:
Desenvolvimento Regional. Unisc, v. 22, n. 3, p. Armand Colin Ed. 1989.
11-38, 2017. Disponível em: https://online.unisc.
LAMARCHE, H. A agricultura familiar –
br/seer/index.php/redes/article/view/10409.
comparação internacional: uma realidade
FAVARETO, A. et al. A dimensão territorial do multiforme. Campinas: Ed. Unicamp. 1993.
desenvolvimento brasileiro recente Brasil (2000-
LOTTA, G. et al. Integração e coordenação
2010). Documentos de Trabajo. Santiago de
de políticas para o desenvolvimento rural no
Chile: Rimisp. 2014.
Brasil: análise de arranjos institucionais de
FERNANDEZ, J; FERNANDEZ, I.; SOLOAGA, implementação. In: FAVARETO, A. (Org.).
I. Enfoque territorial y análisis dinámico de Agenda 2030 no Brasil rural e interiorano:
la ruralidad: alcances y límites para el diseño reflexões e ideias para uma nova geração de
de políticas de desarrollo rural innovadoras en políticas. Rio de Janeiro: IdeiaD Ed., 2020. (No
América Latina y el Caribe. Documentos de prelo).
Proyectos. Cepal: Cuidad de Mexico. 2019.
28
O papel da agricultura familiar para um novo desenvolvimento regional no Nordeste – Uma homenagem a Celso Furtado
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 9-29, agosto, 2020
29
Agricultura familiar no Nordeste do Brasil: um retrato atualizado a partir dos dados do censo agropecuário 2017
Family farming in Northeast of Brazil: an updated portrait from the data of the 2017
agricultural census
Joacir Rufino de Aquino
Economista. Mestre em Economia Rural e Regional pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Professor Adjunto IV
do Curso de Economia da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (Campus de Assú/UERN). joaciraquino@yahoo.com.br
Resumo: O objetivo do presente artigo é analisar a im- Abstract: The aim of this article is to analyze the im-
portância e as características socioeconômicas da agri- portance and socioeconomic characteristics of family
cultura familiar da Região Nordeste do Brasil no final farming in the Northeast region of Brazil at the end of
da segunda década do Século XXI. Para tanto, utilizam- the second decade of the 21st century. To this end, it
-se dados recentes do Censo Agropecuário 2017, ado- uses recent data from the 2017 Agricultural Census con-
tando como critério metodológico o recorte da Lei da ducted by IBGE. Despite the severe drought that hit the
Agricultura Familiar. A despeito da grave seca que atin- region between 2012-2017, the text shows that family
giu a área estudada entre 2012-2017, o texto mostra que farming represents the majority of rural establishments
a agricultura familiar representa a maioria dos estabe- in the Northeast, generating employment for more than
lecimentos rurais nordestinos, gera ocupação para mais 4.7 million people, accounting for an important portion
de 4,7 milhões de pessoas, responde por parcela impor- of the local food supply and directly contributes to the
tante da oferta local de alimentos e contribui diretamen- dynamism of the economy of the municipalities in the
te para o dinamismo da economia dos municípios da Region, moving more than R$ 32 billion in 2017. Ho-
Região, movimentando mais de R$ 32 bilhões em 2017. wever, a significant portion of the segment is still very
Contudo, uma parcela expressiva do segmento ainda é poor and its productive potential is blocked by “mul-
muito pobre e tem o seu potencial produtivo bloqueado tiple asset shortages” (precarious access land, formal
por “múltiplas carências de ativos” (acesso precário a education, technical assistance, productive technolo-
terra, a educação formal, a assistência técnica, a tecno- gies, etc.). In this context, the articulation of public po-
logias produtivas etc.). Nesse contexto, a articulação de licies aimed at strengthening the asset base of family
políticas públicas voltadas ao fortalecimento da base de farmers, with a focus on generating employment and
ativos dos agricultores familiares, com foco na geração income, constitutes a strategic action to combat poverty
de ocupação e renda, se constitui em uma ação estraté- and promote regional development.
gica para o combate à pobreza e a promoção do desen- Keywords: Family farming; Regional development;
volvimento regional. Northeast.
Palavras-chave: Agricultura Familiar; Desenvolvi-
mento Regional; Nordeste.
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 31-54, agosto, 2020
31
Joacir Rufino de Aquino, Maria Odete Alves e Maria de Fátima Vidal
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 31-54, agosto, 2020
32
Agricultura familiar no Nordeste do Brasil: um retrato atualizado a partir dos dados do censo agropecuário 2017
vista político-administrativo, é composta por Em termos físicos, Andrade (2005) destaca que
nove estados: Alagoas (AL), Bahia (BA), Ceará o território nordestino se divide em quatro sub-re-
(CE), Maranhão (MA), Paraíba (PB), Piauí (PI), giões naturais: meio-norte, sertão, agreste e zona
Pernambuco (PE), Rio Grande do Norte (RN) e da mata, sendo que a maior parcela do espaço re-
Sergipe (SE). gional (64,8%) encontra-se no Semiárido Brasilei-
ro, conforme pode ser visualizado na Figura 1.
RM AP
AM
PA MA CE
RN
PI PB
AC PE
AL
RO TO SE
BA
MT
DF
GO
MG
Região Nordeste MS ES
Semiárido SP RJ
Unidades Federativas
PR
SC
RS
Abrigando uma população de 26,2 milhões com altas taxas de evapotranspiração; os solos
de habitantes (IBGE, 2019), o Semiárido nor- pouco permeáveis e sujeitos à erosão; e a predo-
destino abrange dois municípios maranhenses e minância da vegetação de caatinga.
os demais estados da Região, dos quais ao me- As mudanças socioeconômicas ocorridas nas
nos quatro possuem mais de 80% dos seus ter- últimas décadas repercutiram positivamente na
ritórios localizados nesse ambiente natural es- qualidade de vida da população rural nordestina.
pecífico – Ceará (98,7%), Rio Grande do Norte Porém, os efeitos nocivos das secas continuam
(93%), Paraíba (90,9%) e Pernambuco (87,8%) atingindo as atividades produtivas, principal-
– de acordo com a delimitação institucional atu- mente aquelas desenvolvidas pelos agricultores
almente vigente (BRASIL, 2018). familiares mais pobres. Observe-se no Quadro 1
Dentre as caraterísticas que singularizam o que a Região foi atingida por uma das maiores
quadro edafoclimático predominante na maior estiagens de sua história recente, quer seja por
parte do meio rural nordestino, destacam-se sua duração (2012-2017), quer seja pelos seus
(ANDRADE, 2005; MAIA GOMES, 2001): a efeitos na ampliação da escassez hídrica regio-
pluviosidade baixa e irregular, com ocorrência nal, sendo, por conta disso, denominada dora-
periódica de secas; as temperaturas elevadas vante de a “Grande Seca”.
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 31-54, agosto, 2020
33
Joacir Rufino de Aquino, Maria Odete Alves e Maria de Fátima Vidal
Quadro 1 – Anos de secas registrados no Nordeste Brasil nos séculos XVI a XXI
Século XVI Século XVII Século XVIII Século XIX Século XX Século XXI
1790-1794 1962-1964
1966
1970
1976
1979-1983
1986-1987
1992-1993
1997-1999
Cabe salientar que a gravidade da Grande gional foi fortemente atingida, principalmente
Seca (2012-2017) não implicou no esvaziamento na área do Semiárido. Uma prova disso é que,
das áreas rurais como ocorria durante boa par- comparando os resultados dos censos agrope-
te do século XX. A melhoria na infraestrutura cuários do IBGE de 2006 e 2017 em termos de
hídrica e a rede de proteção social (com a ex- Brasil, apenas a Região Nordeste teve queda
pansão das aposentadorias rurais e do programa tanto no número (menos 131.341) quanto na
Bolsa Família), juntamente com outras políticas área (menos 5.180.546 ha) dos estabelecimen-
de incentivo à economia em geral, foram fatores tos agropecuários. Outro aspecto, demonstrado
decisivos para a melhoria da capacidade de resi- na Tabela 1, é a redução no total de pessoas ocu-
liência das populações do campo. Também con- padas na agropecuária nordestina, de 7,7 mi-
tribuiu para isso o crescimento da pluriatividade lhões para 6,4 milhões no intervalo de 11 anos
e das rendas não agrícolas graças à maior inte- entre os dois últimos recenseamentos.
gração rural-urbano (AQUINO; NASCIMEN- Ainda na Tabela 1, percebe-se que o ano de
TO, 2020; ARAÚJO, 2014; CARVALHO, 2014). 2017 é emblemático para agropecuária nordestina.
Mas nem todos os setores atravessaram ile- Isso porque ele registra o menor número de área
sos o longo período de seca. A agropecuária re- ocupada pelos estabelecimentos agrários desde os
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 31-54, agosto, 2020
34
Agricultura familiar no Nordeste do Brasil: um retrato atualizado a partir dos dados do censo agropecuário 2017
anos 1970. Na mesma direção, nota-se o menor e Estatística (IBGE) em 2017/2018, mas cuja
contingente de pessoas ocupadas no setor. Prova- data de referência é 30 de setembro de 2017.
velmente, esses resultados não foram piores gra- Nas tabulações do referido Censo, que incor-
ças à atuação de organizações do setor público, a pora os princípios legais da Lei n. 11.326/2006
exemplo do Banco do Nordeste do Brasil (BNB), (regulamentada pelo Decreto n. 9.064/2017), são
que contribuíram decisivamente para apoiar os in- considerados agricultores familiares aqueles pro-
vestimentos do setor no momento de dificuldades dutores que (DEL GROSSI, 2019; IBGE, 2019):
provocadas pela estiagem prolongada.
I) Possuem, a qualquer título, área de até 4
Tabela 1 – Evolução do número de estabelecimen-
(quatro) módulos fiscais;
tos, área agrícola e pessoal ocupado na
agropecuária do Nordeste brasileiro – II) Utilizam, no mínimo, metade da força de
1970 a 2017 trabalho familiar no processo produtivo e
de geração de renda;
Anos Estabelecimentos Área (ha)
Pessoal III) Obtêm, no mínimo, metade da renda fa-
miliar de atividades econômicas do seu
Ocupado
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 31-54, agosto, 2020
35
Joacir Rufino de Aquino, Maria Odete Alves e Maria de Fátima Vidal
destina, bem como demonstrar sua importância nos e tocados predominantemente pela família.
para o desenvolvimento rural regional. A distribuição geográfica do segmento no mapa
É pertinente registrar que há grande hetero- brasileiro é bastante diversa, mas a maioria
geneidade interna entre os tipos de produtores localiza-se na Região Nordeste, que abriga em
que formam o universo da agricultura familiar, seu território 1.838.846 explorações familiares
conforme tem sido destacado pela literatura es- (47,2% do total nacional).
pecializada (AQUINO; GAZOLLA; SCHNEI- No território nordestino, no final da segunda
DER, 2018; GUANZIROLI; DI SABBATO; década do século XXI, a agricultura familiar se
VIDAL, 2011; SCHNEIDER; CASSOL, 2014). constitui na principal forma de produção e tra-
Contudo, por conta do limite de espaço e do en- balho no campo. De fato, na Tabela 2 verifica-se
foque geral adotado aqui, esse aspecto importan- que a categoria abrange 79,2% do total de esta-
te será abordado apenas de forma complementar belecimentos da Região. A mesma relevância é
ao longo da análise realizada na sequência. observada em termos de pessoal ocupado, tendo
em vista que as unidades familiares absorvem a
mão de obra de mais de 4,7 milhões de pessoas
4 RESULTADOS E DISCUSSÃO: RETRATO (73,8% do total regional).
ATUAL DA AGRICULTURA FAMILIAR Em relação à participação dos produtores na
NORDESTINA área ocupada pelos estabelecimentos, os dados
apontam uma inversão da representatividade.
4.1 Dimensões da agricultura familiar na Isso porque o numeroso contingente de agricul-
Região Nordeste tores familiares nordestinos detém tão somente
36,6% da área de mais de 70 milhões de hectares
As informações do último Censo Agropecuá- ocupada pelos estabelecimentos agropecuários.
rio realizado pelo IBGE revelaram que existiam Enquanto isso, o setor patronal, representado
5.073.324 estabelecimentos rurais no Brasil, por apenas 20,8% dos produtores recenseados
em 2017. Desse total, 3.897.408 (76,8%) eram em 2017, detém 63,4% da área total, indicando
agricultores familiares. Em outras palavras, a persistência de uma acentuada desigualdade
de cada 100 estabelecimentos recenseados no na distribuição dos recursos naturais associados
meio rural do País ao menos 77 eram peque- à posse da terra.
Tabela 2 – Número de estabelecimentos, área total e pessoal ocupado nos diferentes tipos de agricultura da
Região Nordeste – 2017
Deve-se lembrar que a desigualdade na dis- al. (2011, p. 409), por exemplo, “[...] se os produ-
tribuição dos ativos fundiários prevalecente no tores do NE [Nordeste] tivessem a distribuição da
Nordeste é um fator importante para explicar a si- terra dos produtores de qualquer outra região, a
tuação de precariedade de expressiva parcela dos pobreza cairia entre 31 pp e 51 pp. Este resultado
agricultores familiares locais comparativamente está de acordo com a visão de que os produtores
aos produtores de outras áreas do País. Segundo pobres muitas vezes possuem áreas de tamanho
os testes econométricos realizados por Helfand et insuficiente para saírem da pobreza”.
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 31-54, agosto, 2020
36
Agricultura familiar no Nordeste do Brasil: um retrato atualizado a partir dos dados do censo agropecuário 2017
Note-se, ainda, que os aspectos menciona- Relativamente ao pessoal ocupado nas uni-
dos se manifestam ao nível dos estados, embora dades de produção, a análise estadual também
seja possível identificar algumas variações re- evidencia que a agricultura familiar detém per-
lativamente ao contexto geral. Conforme apon- centuais elevados, variando de 67,8% (no Rio
tado no Gráfico 1, a participação da categoria Grande do Norte) a 79% (no Maranhão). Por
familiar no total de estabelecimentos rurais su- outro lado, como se verifica nos dados agre-
pera a média regional no Maranhão (85,1%), gados para o Nordeste como um todo, a área
Alagoas (83,6%), Pernambuco (82,6%), Piauí territorial apropriada por esses estabelecimen-
(80,3%) e no Rio Grande do Norte (79,9%). Já tos nos estados é reduzida, comparativamente
nas demais unidades federativas, os percentuais aos não familiares. A exceção fica por conta de
são menores em relação à média. Mesmo as- Pernambuco, cuja participação das explorações
sim, as explorações familiares são maioria ab- familiares ultrapassa 50%, e dos estados do Ce-
soluta dos estabelecimentos na Bahia (77,8%), ará, Sergipe e Paraíba, onde eles detêm 48,4%,
em Sergipe (77,3%), na Paraíba (76,9%) e no 46,6% e 42,1%, respectivamente, das terras
Ceará (75,5%). ocupadas por estabelecimentos agropecuários.
Gráfico 1 – Participação da agricultura familiar dos estados nordestinos no total de estabelecimentos, área
total e pessoal ocupado – 2017 (Em %)
100
85,1
83,6
82,6
80,3
79,9
79,0
77,8
77,4
77,3
76,9
75,5
74,2
73,9
73,4
73,1
72,3
80
69,5
67,8
51,9
60
48,4
46,6
42,1
(%)
38,5
34,8
33,7
32,2
30,9
40
20
0
MA PI CE RN PB PE AL SE BA
Pelo exposto, percebe-se que a agricultura entre outras. A tais ações se somam a Previdên-
familiar nordestina sobreviveu à queda dos es- cia Social Rural e o Programa Bolsa Família
tabelecimentos rurais destacada anteriormen- (PBF), criado em 2004. Juntas, essas políticas
te. O setor gera ocupações produtivas para atendem a milhares de famílias e injetam bi-
mais de 4,7 milhões de pessoas e sua partici- lhões de reais na economia regional anualmente
pação na paisagem rural da Região é algo in- (CARVALHO, 2014; GRISA; SCHENEIDER,
contestável. Esse resultado é fruto da resistên- 2015; NUNES et al., 2014; MELLO, 2015; MI-
cia e da luta cotidiana dos produtores e suas RANDA; TORRENS; MATTEI, 2017; SILVEI-
famílias, do esforço coletivo de suas organi- RA et al., 2016).
zações de classe, bem como das instituições e Os recursos financeiros advindos das polí-
políticas públicas criadas nos últimos 25 anos ticas de apoio à produção e de proteção social
para apoiar o segmento. têm um papel fundamental para a reprodução da
Nesse intervalo de tempo, foi constituído um agricultura familiar do Nordeste, gerando esta-
leque de políticas públicas bastante diversifica- bilidade social em um espaço geográfico histo-
do. Entre essas políticas, destacam-se os pro- ricamente marcado pela pobreza e pela ocorrên-
gramas de criação de assentamentos rurais, o cia de estiagens prolongadas, como foi o caso
Pronaf, os programas de compras governamen- da Grande Seca de 2012-2017. Mesmo assim,
tais (PAA e PNAE), o Programa Garantia Safra, como será visto a seguir, a categoria ainda en-
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 31-54, agosto, 2020
37
Joacir Rufino de Aquino, Maria Odete Alves e Maria de Fátima Vidal
frenta muitas limitações sociais que bloqueiam Tabela 3 – Perfil das pessoas que dirigem os estabe-
o seu potencial produtivo que já é expressivo e lecimentos familiares nordestinos – 2017
poderia ser muito maior.
Categorias de
Variável Número %
Estratificação
4.2 Perfil dos produtores
Homem 1.392.421 75,7
Um aspecto relevante a observar entre agri- Sexo
Mulher 446.425 24,3
cultores familiares nordestinos é o perfil dos
indivíduos que dirigem os estabelecimentos Branca 480.940 26,2
agropecuários. Nesse sentido, na Tabela 3 apre-
sentam-se variáveis referentes a gênero, cor/ Preta 221.344 12,0
Cor ou raça
raça, faixa etária, local de residência e escola-
Parda 1.114.482 60,6
ridade dos produtores identificados pelo Censo
Agropecuário 2017. Outra 22.080 1,2
Os dados mostram que os homens são pre-
Menor de 25 anos 38.368 2,1
dominantes na direção dos estabelecimentos
familiares nordestinos, comandando 75,7% De 25 a menos de 35 anos 173.448 9,4
deles. Na verdade, esse resultado é observa-
do historicamente, não somente no Nordeste, De 35 a menos de 45 anos 318.691 17,3
mas em todas as regiões do País, apesar de se Classe de idade De 45 a menos de 55 anos 402.963 21,9
constatar que não houve mudança no percen-
tual de mulheres no campo entre 2001 e 2006 De 55 a menos de 65 anos 415.438 22,6
(47,98% e 47,84%, respectivamente), confor-
De 65 a menos de 75 anos 320.123 17,4
me Butto (2011). Deve-se atentar para o fato
de que a persistência de homens na direção dos De 75 anos e mais 169.815 9,2
estabelecimentos rurais está ligada, principal-
mente, ao fenômeno da organização da famí- No estabelecimento 1.374.180 74,7
Local de
lia patriarcal, à migração e ao caráter invisível residência
Outro local 464.666 25,3
do trabalho feminino no campo, pelo seu não
reconhecimento enquanto atividade produtiva Sim 1.455.172 79,1
Acesso à
(HERRERA, 2017). energia elétrica
Não 383.674 20,9
Na verdade, a hegemonia masculina não se
restringe à direção dos estabelecimentos, mas Sabe ler e escrever 1.062.000 57,8
abrange toda a força de trabalho no rural brasi- Escolaridade
Não sabe ler e escrever 776.846 42,2
leiro, independente da tipologia do estabeleci-
mento. Os dados do Censo Agropecuário 2017 Fonte: Censo Agropecuário 2017 (IBGE/SIDRA, 2019).
(IBGE/SIDRA, 2019) evidenciam que 81% da
força de trabalho no meio rural do País é com- Os dados da tabela em foco sinalizam, tam-
posta de homens. Analisando-se os dados re- bém, que para os agricultores familiares nor-
gionais da agricultura familiar, percebe-se que destinos o estabelecimento agropecuário não é
a disparidade é levemente menor nas regiões apenas um local de produção, mas de moradia.
Nordeste (75,7%) e Norte (79,8%), respecti- Isso porque do universo de 1.838.846 produ-
vamente, se comparada às demais regiões bra- tores entrevistados, 74,7% informaram que re-
sileiras (Sudeste, 85%; Centro-Oeste, 81,6%; sidiam na própria unidade de produção, sendo
e Sul, 87,7%). Essas informações fortalecem que 79,1% do total já contavam com energia
a hipótese de Durston (1996), de que regiões elétrica. Tal fato indica que o rural é também
pouco desenvolvidas tendem a ocupar mais o espaço de vida da agricultura familiar, como
mulheres em seu meio rural. destaca Wanderley (2009), cuja vitalidade so-
cial está associada ao dinamismo das relações
comunitárias e ao compartilhamento dos bens
públicos existentes.
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 31-54, agosto, 2020
38
Agricultura familiar no Nordeste do Brasil: um retrato atualizado a partir dos dados do censo agropecuário 2017
Gráfico 2 – Acesso à assistência técnica pelos estabelecimentos familiares nordestinos – 2017 (Em %)
97,1
97,2
94,9
94,0
93,3
92,7
92,0
100
89,2
86,0
83,2
80
60
(%)
40
16,8
14,0
10,8
20
8,0
7,3
6,7
6,0
5,1
2,9
2,8
0
MA PI CE RN PB PE AL SE BA Nordeste
É possível inferir, então, que os baixos níveis A pouca participação de agricultores familiares
de escolaridade e de cobertura dos serviços de as- jovens à frente dos estabelecimentos mapeados
sistência técnica fragilizam o estoque de capital pelo IBGE, de modo particular, é um fato preo-
humano existente nos estabelecimentos familiares cupante para o futuro e reflete um dos principais
nordestinos. Também contribui para isso a idade desafios que a categoria enfrenta para permanecer
avançada da maioria dos produtores responsáveis viva no campo. Como será discutido no próximo
pela condução dos empreendimentos e o pequeno item, esse desafio se torna ainda mais inquietante
número de propriedades geridas por jovens agri- quando se consideram a concentração de terras e a
cultores até 25 anos (2,1% do total). minifundização prevalecentes no meio rural.
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 31-54, agosto, 2020
39
Joacir Rufino de Aquino, Maria Odete Alves e Maria de Fátima Vidal
4.3 Aspectos fundiários dos estabelecimentos Observe-se, contudo, que a situação fundi-
familiares nordestinos ária da agricultura familiar nordestina é muito
mais grave do que sinaliza o gráfico anterior.
O perfil da distribuição de terras no Nordeste é Isso porque do universo de estabelecimentos
marcado por uma forte desigualdade proveniente das desse tipo de produtor, 19,1% têm menos de um
especificidades do processo histórico de ocupação da (1) hectare de extensão e a maioria está abai-
Região. A preocupação de se proteger contra outros xo da média regional de 14 hectares. Juntas, as
invasores europeus levou os portugueses a implanta- unidades de produção familiar com área de até
rem no Brasil as sesmarias, um instrumento de ocupa- 10 hectares correspondem a 66% do total, mas
ção de terras em larga escala que deu origem à grande detêm somente 12,3% das terras ocupadas pela
propriedade açucareira nordestina nas áreas próximas categoria. Em contrapartida, aqueles estabele-
ao litoral e, também, às extensas fazendas criatórias cimentos com área entre 50 e 500 hectares so-
no sertão (ANDRADE, 2005; FURTADO, 1998). mam apenas 7,4% do total e concentram quase
Formada por grandes empreendimentos que ti- metade das terras, demonstrando que dentro do
nham na propriedade fundiária sua principal fonte de segmento familiar também persiste uma desi-
poder, a estrutura social herdada dos colonizadores gualdade marcante (Tabela 4).
serviu de base para a entrada e o avanço do capital
no campo no século XX, bem como foi responsável Tabela 4 – Número e área dos estabelecimentos da
pelo fenômeno da concentração de terras que persis- agricultura familiar nordestina por gru-
te nos dias atuais. Os dados do Censo Agropecuário pos de área total – 2017
2017 são reveladores desta situação, visto que as uni-
dades produtivas com área superior a 1.000 hectares Estabelecimentos Área
Grupos de
representam menos de 1% dos 2,3 milhões de esta- área (Em ha)
Número % Número %
belecimentos rurais existentes no campo nordestino
e ocupam 33% de toda a área (IBGE/SIDRA, 2019).
Menos que 1 350.412 19,1 172.873 0,7
O quadro descrito no parágrafo anterior ganha
contornos mais nítidos quando se analisa a desi- De 1 a 5 629.160 34,2 1.423.356 5,5
gualdade na distribuição da terra entre os segmen-
tos familiar e patronal, conforme já foi discutido De 5 a 10 233.507 12,7 1.575.964 6,1
no Nordeste – 2017
Produtor sem área 41.824 2,3 -- --
100 93
90
80 Total 1.838.846 100,0 25.925.743 100,0
70
60 Fonte: Censo Agropecuário 2017 (IBGE/SIDRA, 2019).
(%) 50
40
30 De qualquer modo, não se pode negar que a
20 14 pesquisa do IBGE também revelou alguns as-
10
0 pectos positivos quanto ao tema tratado aqui.
Familiar Não Familiar Entre eles, talvez o mais importante tenha sido
Fonte: Censo Agropecuário 2017 (IBGE/SIDRA, 2019). a melhoria da condição dos produtores em re-
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 31-54, agosto, 2020
40
Agricultura familiar no Nordeste do Brasil: um retrato atualizado a partir dos dados do censo agropecuário 2017
lação à posse da terra, uma vez que 77,8% se É bem verdade que o avanço registrado na
declararam proprietários dos sítios em que criação de assentamentos rurais a partir dos anos
vivem e trabalham. Embora seja de conheci- 1990 e o crescimento do contingente de “pro-
mento geral que a maioria dos pequenos agri- prietários” contribuíram para amenizar a situa-
cultores familiares não tem a documentação ção retratada. Entretanto, a “fome de terra” de
jurídica da posse da terra, o número apresenta- milhares de famílias de agricultores ainda está
do sinaliza que eles estão mais “livres” de an- longe de ser saciada, haja vista a existência de
tigas relações de dependência patronal, como contramovimentos concentradores nos espaços
a condição de “morador” no interior das gran- onde se localizam os melhores solos da Região
des fazendas da Região relatada por Andrade (ANDRADE, 2005; DUQUE, 2002; PEREIRA,
(2005). Mesmo assim, o Gráfico 4 indica que 2019; REIS, 2019; SILVEIRA et al., 2016).
ainda há uma parcela significativa do segmen- As dificuldades ensejadas pela “fome de
to que acessa a terra de forma extremamente terra” aumentam ao se adicionar o fato de que
precária, por meio de arrendamento, parceria 84,3% das áreas dos estabelecimentos familiares
ou da simples ocupação 2. nordestinos estão localizadas no raio de abran-
As informações analisadas deixam claro, gência do semiárido brasileiro (Figura 1), onde
portanto, que a população albergada na agri- as condições climáticas não favorecem o desen-
cultura familiar do Nordeste enfrenta flagrante volvimento de atividades agropecuárias sem o
carência de ativos fundiários, desenvolvendo-se emprego de práticas produtivas adequadas. As
em minifúndios originados da fragmentação por estatísticas censitárias mostradas adiante con-
herança das pequenas propriedades. Ademais, firmam que esse aspecto geográfico particular é
não se deve esquecer que historicamente os importante, especialmente devido às limitadas
produtores familiares foram relegados às áreas caraterísticas tecnológicas dos produtores locais.
mais distantes dos centros urbanos e, geralmen-
te, as de menor fertilidade. 4.4 Caraterísticas tecnológicas
Gráfico 4 – Condição dos agricultores familiares O acesso dos agricultores familiares nordes-
nordestinos em relação à propriedade tinos às técnicas agropecuárias e conservacio-
da terra – 2017 (Em %) nistas pode ser observado nos dados apresenta-
90 dos no Gráfico 5. Em princípio, verifica-se que
80 77,8
o controle de doenças e/ou parasitas, o preparo
70 do solo e o uso de suplementação alimentar des-
60
tacam-se entre as práticas agropecuárias mais
50
(%) utilizadas.
40
30 No tocante à prevenção de doenças em ani-
20 mais, constata-se que a vacinação é a técnica
10
2,3 2,6
6,5 2,8 2,3
5,7 mais utilizada, em função de representar uma
0 redução do risco de perda de animais, mas tam-
Outros*
Proprietário (a)
Arrendatário (a)
Parceiro (a)
Comandatário (a)
Ocupante
Sem área
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 31-54, agosto, 2020
41
Joacir Rufino de Aquino, Maria Odete Alves e Maria de Fátima Vidal
pode servir de argumento para desmistificar Sobre a manutenção dos rebanhos, percebe-
a ideia de que o agricultor familiar, principal- -se, no Gráfico 5, que um percentual relativamente
mente o de menor porte, não usa defensivos elevado de agricultores fornece suplementação ali-
químicos. Por outro lado, é importante aten- mentar (55,8%), podendo ser reflexo da baixa capa-
tar para o fato de que a adoção de defensivos cidade de produção de forragem. Vale observar que
químicos requer algo escasso para a categoria, a Região Nordeste enfrentou um longo período de
que é orientação técnica sobre as dosagens estiagem de 2012 a 2017, dificultando a manuten-
adequadas a aplicar e a necessidade do uso ção de pastagens nativas e impondo aos agriculto-
de equipamentos de proteção individual. Tais res a necessidade de adquirir ração concentrada, sob
cuidados são fundamentais para evitar o uso pena de perder os animais. A estratégia adotada pelo
indiscriminado de produtos altamente tóxicos agricultor, em geral, inclui a venda de alguns ani-
e, consequentemente, eliminar riscos à saúde mais para, com o recurso obtido da transação, ad-
humana e de contaminação do meio ambiente. quirir a ração que alimentará o restante do rebanho.
50
40
(%) 30 29,4
23,6 23,6
20 16,3 15,5
13,0
9,5 9,4
10
5,0 3,1 2,6 2,3 0,7 0,5 0,4 0,4 0,3 0,2
0
Proteção e/ou conservação
de encostas
Reflorestamento p/ proteção
de nascentes
Controle de doenças e/ou
parasitas-Pecuária
Adoção de agricultura ou
pecuária orgânica
Sistema de preparo do solo
Rotação de culturas
Uso de agrotóxicos
Cultivo mínimo
Uso de irrigação
Plantio em nível
Estabilização de voçorocas
Uso corretivos do pH do solo
Manejo florestal
A irrigação, por sua vez, é uma prática pou- disponibilidade hídrica em grande parte do territó-
co comum entre agricultores familiares nordesti- rio nordestino e ao reduzido valor de mercado das
nos. Os dados do IBGE/Sidra (2019) revelam que culturas exploradas pela maioria dos agricultores
apenas 9,4% dos estabelecimentos a adotam, dos familiares, contribuindo para a baixa adoção dessa
quais 71% concentram-se no Ceará, em Pernam- prática na Região. Uma alternativa que já vem sen-
buco e na Bahia, estados com boa infraestrutura do trabalhada, principalmente por organizações não
hídrica (adutoras, canais e grandes reservatórios) governamentais, é a adoção de tecnologias de con-
que viabiliza o emprego dessa técnica agrícola. vivência com o semiárido (cisternas de placas, reu-
Ressalte-se que alguns estudos, a exemplo da sé- tilização de água de uso doméstico na produção de
rie de trabalhos sobre sistemas de produção publica- hortaliças e fruteiras, quintais produtivos, mandalas
da pela Embrapa (ALBUQUERQUE; ALMEIDA, etc.), cujas práticas são de baixo custo e resultam no
2014; ARAUJO et al., 2015; LOPES, 2016), mos- aumento da produção familiar.
tram o elevado custo de implantação e manutenção Ainda quanto às práticas agrícolas, cabe regis-
de sistemas de irrigação. Esse aspecto se alia à baixa trar que o preparo do solo é adotado em 57% dos
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 31-54, agosto, 2020
42
Agricultura familiar no Nordeste do Brasil: um retrato atualizado a partir dos dados do censo agropecuário 2017
estabelecimentos familiares e 23,6% deles empre- técnica são condicionantes importantes para os
gam o cultivo mínimo (redução de uma ou mais resultados apresentados. Isso porque a intensifi-
operações de preparo do solo). Importante destacar cação do uso da terra, em função de ser um ativo
que essa prática entre agricultores familiares nor- produtivo escasso entre agricultores familiares
destinos não apresenta correlação direta com algu- nordestinos, favorece a adoção de práticas me-
ma preocupação em relação à conservação do solo. nos preservacionistas. Ademais, a dificuldade de
A prática do cultivo mínimo tradicional (uti- obter informações por conta do baixo nível edu-
lização da enxada manual para a semeadura em cacional e da falta de assistência técnica (Ater),
covas) se dá em função da falta de recursos para como foi discutido nas subseções anteriores, con-
adoção de técnicas e equipamentos poupadores de tribui para que tais práticas não mereçam a aten-
esforço físico. Segundo Dos Anjos e Melo (2019), ção adequada por parte desses agricultores.
o cultivo mínimo com a utilização de tração ani- Com efeito, a infraestrutura produtiva e
mal para sulcar apenas a linha de plantio é adota- o estoque de capital nos pequenos sítios da
do, em muitos casos, devido à urgência de preparo agricultura familiar nordestina também são
do solo quando ocorrem as primeiras chuvas. extremamente precários. Conforme pode ser
De fato, os percentuais apresentados no Gráfico visualizado no Gráfico 6, o destaque em ter-
5 deixam claro a quase inexistência de práticas con- mos de percentuais recai apenas sobre a posse
servacionistas entre esses agricultores, a exemplo de motocicletas e as estruturas individuais de
do sistema de pousio, adubação orgânica, rotação armazenamento e de acesso à água. No caso
de culturas, plantio direto na palha, plantio em nível, da introdução das motocicletas, o fato é reve-
proteção de encostas, recuperação de mata ciliar, lador de um fenômeno que vem acontecendo
manejo florestal, estabilização de voçorocas, reflo- nos últimos anos, ou seja, a troca de animais de
restamento e proteção de nascentes. Alguns fatores montaria por esse tipo de veículo (AQUINO;
são relevantes na configuração dessa realidade. NASCIMENTO, 2020). Esse processo foi in-
tensificado na segunda metade dos anos 2000,
Duarte (2009) explica que aspectos como a
em função das facilidades de financiamento en-
pequena dimensão dos estabelecimentos e o aces-
cabeçadas pelos bancos públicos.
so limitado do agricultor a serviços de assistência
Gráfico 6 – Posse de capital físico e acesso a tecnologias produtivas pelos agricultores familiares nordesti-
nos – 2017 (Em %)
50
43,2
40
30
(%)
19,5
20
14,7
12,9
10
Colheitadeiras
Caminhões
Utilitários
Automóveis
Motos
Poços convencionais
Poços profundos
Cisternas
Armazéns
Silo
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 31-54, agosto, 2020
43
Joacir Rufino de Aquino, Maria Odete Alves e Maria de Fátima Vidal
Já a presença de máquinas agrícolas (trator, co- blema é que a capacidade de geração de riqueza
lheitadeira, sementeira/plantadeira, máquinas para agropecuária da esmagadora maioria dos seus
distribuição de adubos e calcário) nos estabeleci- membros prevalece extremamente limitada.
mentos da categoria é praticamente inexistente. Tal
situação é decorrente do baixo padrão de renda da 4.5 Participação na produção agropecuária
maioria dos produtores locais e das contradições
da política agrícola brasileira que tem concentra- Os estabelecimentos da agricultura familiar
do seus esforços modernizantes nas regiões Sul e no Nordeste, como ocorre nas demais regiões
Sudeste do País (DELGADO, 2012; GRAZIANO do Brasil, também funcionam como locais de
DA SILVA, 1998). Para tentar amenizar os proble- moradia para expressiva parcela do segmento
mas, algumas prefeituras da Região disponibili- (Tabela 3). Mas eles são, acima de tudo, espa-
zam trator e grade antes do período chuvoso para ços onde se desenvolve uma ampla gama de ati-
preparo das áreas de produção, o que nem de longe vidades agrícolas e pecuárias.
é suficiente para aliviar a penosidade do trabalho Com efeito, mesmo diante das dificuldades
manual executado pelos agricultores (a maior par- enfrentadas durante a Grande Seca, os recen-
te com idade avançada) durante todo o ano. seadores encontraram algum tipo de produção
Outro aspecto relevante a observar nos esta- em 95,5% (1.755.995/1.838.846) das peque-
belecimentos familiares nordestinos refere-se às nas propriedades familiares visitadas em 2017
condições de armazenamento de água, principal- (IBGE/SIDRA, 2019). Juntas, conforme apre-
mente levando-se em conta as condições de escas- sentado no Gráfico 7, elas responderam por
sez hídrica a que são sistematicamente submetidos uma fatia expressiva da produção de alimentos
e que, em última instância, permite a produção e a básicos na Região, destacando-se no cultivo
reprodução familiar. Nesse caso, os dados do Cen- de arroz (61,6%), feijão (59,7%) e mandioca
so Agropecuário 2017 mostram que a cisterna é (80,4%). Além disso, foram colhidos em suas
o principal meio de armazenamento utilizado por roças 12,7% da produção local de milho, cultu-
43,2% dos agricultores, seguida dos poços con- ra cujas plantações em 2017 estavam fortemen-
vencionais (19,5%) e profundos (12,9%). te concentradas nas grandes propriedades pa-
Embora muitos agricultores tenham constru- tronais localizadas no território do MATOPIBA
ído suas cisternas com recursos próprios, algu- (sul do Maranhão, sul do Piauí e oeste da Bahia)
mas políticas públicas, a exemplo do Programa e, também, em áreas do Estado de Sergipe.
Um Milhão de Cisternas (P1MC) e Uma Terra e Destaque-se, porém, que a participação da
Duas Águas (P1+2), exerceram papel decisivo no categoria em algumas lavouras comerciais de
acesso de mais famílias a estruturas de captação e alto valor agregado, como as de cana-de-açúcar
armazenamento de água em seus estabelecimen- e de soja, é extremamente reduzida. A maior par-
tos, melhorando a qualidade de vida e o potencial te do setor também se encontra completamente
produtivo das unidades familiares (GRISA; SCH- à margem das atividades da fruticultura irrigada
NEIDER, 2015; MELLO, 2015). Porém, ainda de exportação, restringindo-se à agropecuária de
existem aproximadamente 579 mil estabelecimen- sequeiro dependente da chuva. Mesmo assim,
tos (1/3 do total) sem recursos hídricos, apontando em 2017, uma parcela dos agricultores familia-
para a necessidade de ampliação dos esforços para res respondeu por 12,4% da produção regional
levar água a esse grande contingente de famílias. de melão e por 25,4% da produção de manga,
Assim sendo, apesar da importância das culturas irrigadas desenvolvidas principalmente
ações governamentais realizadas ao longo das no Polo Açu-Mossoró (Rio Grande do Norte) e
últimas décadas, percebe-se, por diferentes ân- em Petrolina-Juazeiro (Pernambuco e Bahia).
gulos, que o patamar tecnológico da agricultura No tocante à pecuária, o Gráfico 7 indica
familiar nordestina continua bastante precário. que a participação das unidades familiares é
Obviamente, isso vai repercutir nos resultados bastante elevada, embora em condições de alta
produtivos. Mas, como será constatado adiante, vulnerabilidade tendo em vista o baixo padrão
o segmento, em conjunto, desempenha um papel tecnológico vigente. Tomando-se como referên-
relevante na oferta local de alimentos. O pro- cia o rebanho total nordestino, esse segmento
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 31-54, agosto, 2020
44
Agricultura familiar no Nordeste do Brasil: um retrato atualizado a partir dos dados do censo agropecuário 2017
detém mais de 70% dos caprinos, ovinos e su- de galinhas no total regional, tanto em relação
ínos e 47,8% dos bovinos. Eles são responsá- ao número de cabeças de aves (35,7%) quanto
veis também pela produção de 60,7% do leite de na produção de ovos (16,8%). Tal fato se deve à
vaca, 74,6% do leite de cabra e 79,4% do mel produção em larga escala oriunda de estabeleci-
de abelha vendido em 2017. Por outro lado, se mentos avícolas industriais, também presentes
observa baixa participação dos seus criatórios no Nordeste.
Gráfico 7 – Participação da agricultura familiar nos principais produtos da agropecuária nordestina – 2017
(Em %)
80,4
90
79,4
75,5
74,6
71,8
70,0
80
61,6
60,7
59,7
70
60
47,8
50
35,7
(%)
40
25,4
30
16,8
12,4
12,7
20
5,1
10
Soja em grão 0,1
0
Arros em casca
Feijão
Mandioca
Milho em grão
Cana-de-açúcar
Melão
Manga
Bovinos (*)
Leite de vaca
Leite Caprino
Aves (*)
Ovos de galinha
Suínos (*)
Ovinos (*)
Fonte: Censo Agropecuário 2017 (IBGE/SIDRA, 2019).
Notas: (*) Participação percentual (%) da agricultura familiar no número de cabeças em 2017;
(**) Quantidade vendida de mel.
Tabela 5 – Participação da agricultura familiar e não familiar no valor total da produção (VTP) da agrope-
cuária nordestina – 2017
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 31-54, agosto, 2020
45
Joacir Rufino de Aquino, Maria Odete Alves e Maria de Fátima Vidal
Note-se que a desigualdade referente ao VTP não 62,3% da riqueza produzida pelo segmento, com
se manifesta apenas entre os agricultores familiares destaque para o impressionante valor médio ob-
e o setor patronal. Isso porque há flagrante desigual- tido pelos não pronafianos (R$ 811.744,00). Ao
dade no âmbito da própria agricultura familiar do lado dessa fração mais capitalizada, por sua vez,
Nordeste, predominando um amplo contingente de predomina uma grande massa de agricultores fa-
produtores pobres e vulneráveis agregados no cha- miliares pobres (88,7% do total). Esses produ-
mado Grupo B do Pronaf (AQUINO; GAZOLLA; tores, de forma agregada, geraram um montante
SCHNEIDER, 2018; WANDERLEY, 2017). de riqueza para a economia regional de mais de
Corroborando a afirmação acima, chama R$ 5,9 bilhões em 2017. No entanto, tendo em
atenção, na Tabela 6, o fato de que a parcela in- vista o seu numeroso contingente, tal montante
termediária e consolidada do segmento é mui- lhes garantiu apenas um valor médio ao ano ex-
to reduzida (11,3% do total), mas gera sozinha tremamente baixo (R$ 3.839,00).
Tabela 6 – Distribuição do Valor Total da Produção (VTP) da agricultura familiar do Nordeste pela classi-
ficação dos grupos do Pronaf – 2017
Estabelecimentos com
Categorias (*) % VTP (R$ 1,00) % VTP Médio (R$ 1,00)
produção
O limitado VTP dos agricultores do Grupo B, Mas isso não ocorreu na prática, haja vista que uma
que representam o grosso do segmento familiar parcela dos produtores (Grupo V e não pronafianos)
na Região, é fruto em parte da estiagem prolon- conseguiu se adaptar e se estruturar economicamente
gada que afetou durante cinco anos consecutivos contribuindo mais ativamente para a produção de ali-
(2012-2017) as suas lavouras de sequeiro e os seus mentos e a geração de riqueza agropecuária.
pequenos rebanhos. Apesar dessa constatação, não Ademais, no século XXI ocorreram várias mu-
se pode atribuir à seca a culpa pela totalidade dos danças na economia regional e foi criada uma ampla
resultados apresentados. Isso porque, como de- rede de políticas compensatórias e de inclusão produ-
monstraram outros estudos sobre o tema (AQUI- tiva que vão reforçar a capacidade de resiliência dos
NO et al., 2014; AQUINO; LACERDA, 2014) e agricultores familiares pobres (Grupo B) a partir da
os novos dados do Censo Agropecuária 2017 apre- diversificação de suas fontes de receitas monetárias,
sentados no decorrer das seções anteriores deste tornando a permanência deles no campo possível,
trabalho confirmam, a maioria dos agricultores fa- mesmo que individualmente produzam pouco em seus
miliares nordestinos tem o seu potencial produtivo roçados. É o que será demonstrado a seguir.
ainda bloqueado por “múltiplas carências de ati-
vos” (acesso precário à terra, à educação formal, à
4.6 Movimentação financeira da agricultura
assistência técnica, às tecnologias produtivas etc.),
que se somam aos limites colocados pela natureza. familiar e sua importância econômica
Por conseguinte, diante das limitações ocasiona- Os dados do Censo Agropecuário 2017 ofere-
das pelas “múltiplas carências de ativos” vigentes, é cem informações que permitem observar aspectos
provável que a Grande Seca fosse convertida em um relevantes sobre as principais fontes de entrada de
fator de calamidade social de largas proporções caso dinheiro nos estabelecimentos pesquisados, sejam
ela tivesse acontecido até meados dos anos 1990.
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 31-54, agosto, 2020
46
Agricultura familiar no Nordeste do Brasil: um retrato atualizado a partir dos dados do censo agropecuário 2017
Tabela 7 – Valor monetário das receitas e outras rendas da agricultura familiar nordestina – 2017
Recebimento de prêmio de Programa Garantia da Atividade Agropecuária da Agricultura Familiar - PROAGRO Mais 13.217 0,0
Recebimento do Programa Nacional de Habitação Rural Minha Casa Minha Vida 26.996 0,1
Recebimento de pagamento por serviços ambientais (Bolsa Verde e Programas Estaduais) 9.086 -
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 31-54, agosto, 2020
47
Joacir Rufino de Aquino, Maria Odete Alves e Maria de Fátima Vidal
Entre as “outras rendas” elencadas na Tabela que se constitui em uma das principais políticas
7, sem dúvida, a mais significativa proveio do de combate à pobreza no Nordeste (DELGADO,
recebimento dos benefícios das aposentadorias e 2015; GALINDO; FERREIRA IRMÃO, 2000),
pensões rurais, que injetaram nos estabelecimen- também merecem destaque, em menor escala, as
tos familiares um volume de recursos financeiros entradas de recursos provenientes de programas
de mais de R$ 13,6 bilhões, superando em ter- sociais, como o Bolsa Família, seguros contra a
mos absolutos e percentuais o valor que eles ob- estiagem, construção de moradias, prestação de
tiveram com a venda de produtos agropecuários. serviços ambientais e atividades desenvolvidas
Ao lado dos pagamentos da Previdência Social, fora dos estabelecimentos.
Gráfico 8 – Evolução do valor dos financiamentos do Pronaf-BNB no Nordeste brasileiro – 2007 a 2018
(R$ Bilhões)
3,5
3,03 2,95
3,0 2,86
2,70
2,49 2,60 2,49
2,5
(Bilhões de R$)
2,16
2,0 1,90
1,69
1,44
1,5
1,22
1,0
0,5
0
2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018
Fonte: Elaborado própria a partir de BNB (2019).
(*) Valor contratado corrigido pelo IGP-DI (Dez. 2017).
Outra fonte de recursos importante para os Vários estudos demonstram que o Pronaf
agricultores familiares, não contabilizada pelo gera resultados produtivos relevantes e contribui
Censo Agropecuário 2017, são as aplicações na luta contra a pobreza no campo. Entretanto, o
anuais da política de crédito do Pronaf. No Nor- Programa ainda apresenta muitos gargalos asso-
deste, o BNB é o principal agente financiador ciados aos seus aspectos distributivos e ao perfil
da categoria, via esse programa. O Gráfico 8 das atividades financiadas. Além disso, em mui-
mostra que, em 2007, foram aplicados quase R$ tos casos, ele atua de forma desarticulada com
2,16 bilhões em operações de custeio e inves- outras ações de desenvolvimento rural,4 o que
timento com taxas de juros reduzidas. Porém, limita sua capacidade transformadora (AQUI-
problemas associados à inadimplência promo- NO; BASTOS, 2015; AQUINO; SCHNEIDER,
veram uma queda nas aplicações em 2008. Nos
anos seguintes, os montantes do crédito volta- 4 A desarticulação da política de crédito com as outras políticas de
desenvolvimento rural pode se manifestar de diferentes formas.
ram a crescer, apresentando uma ligeira queda Apenas para ilustrar, ela geralmente acontece quando o agricultor
durante a Grande Seca. Mesmo assim, em 2017, familiar contrata um empréstimo do Pronaf e não recebe,
as aplicações do Pronaf pelo BNB somaram R$ simultaneamente, o apoio de uma política de assistência técnica
para melhorar a gestão do seu empreendimento. Da mesma forma,
2,86 bilhões, dos quais aproximadamente 80%
o problema se manifesta quando o produtor financia com o crédito
com o uso da metodologia do Agroamigo3. do programa a aquisição de um pequeno rebanho leiteiro, mas não
3 O Agroamigo é uma metodologia criada em 2005 no BNB para consegue escoar sua produção via mercados institucionais, como
atendimento diferenciado aos clientes do Pronaf B, com o objetivo o PAA e o PNAE. Em ambos os casos, reduzem-se os efeitos
de ampliar o número de beneficiários e garantir o atendimento de sinérgicos que poderiam existir mediante a ação coordenada das
qualidade, com redução da inadimplência (BNB, 2019). políticas públicas.
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 31-54, agosto, 2020
48
Agricultura familiar no Nordeste do Brasil: um retrato atualizado a partir dos dados do censo agropecuário 2017
2015; GARCIA; HELFAND; SOUZA, 2016). ativos” dos agricultores familiares pobres para
Independente disso, o que interessa reter aqui é que eles possam liberar o seu potencial produti-
que os R$ 2,86 bilhões aplicados por essa polí- vo e participar mais ativamente do processo de
tica pública específica no ano do Censo, embora desenvolvimento regional.
tenham que ser reembolsados, também fizeram
parte da expressiva movimentação financeira
da agricultura familiar regional, a qual envolve 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
uma cifra maior ainda do que aquele valor regis-
Este artigo traçou um retrato atualizado da
trado na última linha da tabela anterior.
situação da agricultura familiar do Nordeste no
Logo, a agricultura familiar do Nordeste é final da segunda década do século XXI, a partir
importante porque gera ocupação e mantém as dos dados do Censo Agropecuário 2017, reali-
pessoas no campo. Ela também garante alimen- zado pelo IBGE. Como critério metodológico,
tos para as famílias e produz boa parte dos pro- usou-se o recorte da Lei da Agricultura Fami-
dutos vegetais e animais comercializados nas liar, que possibilita classificar os produtores por
feiras-livres semanais e mercados das cidades. suas relações sociais de produção, se familiares
Além disso, em 2017, os produtores da catego- ou do tipo patrão/empregado.
ria e suas famílias movimentaram com vendas,
Em linhas gerais, o trabalho evidencia que a
recebimentos e operações de crédito rural mais
agricultura familiar persiste como um segmento
de R$ 32 bilhões. A circulação desse dinheiro,
social de expressiva importância socioeconô-
gasto em bens de consumo e em investimentos
mica no contexto regional nordestino. Apesar
durante todo o ano, vai ativar o multiplicador da
da Grande Seca que atingiu a Região de 2012
renda e contribuir para aquecer a economia dos
a 2017, e da queda na quantidade de estabeleci-
pequenos e médios municípios sertanejos afas-
mentos, o segmento familiar predomina nume-
tados das capitais dos estados da Região.
ricamente em todos os estados e ocupa 74% da
Este cenário, sem dúvida, é muito mais fa- população local envolvida em atividades agro-
vorável do que aquele que Celso Furtado en- pecuárias, albergando um contingente de 4,7
controu antes da criação da Sudene, em 1959, milhões de pessoas. Por outro lado, os dados
quando a manutenção da população do campo analisados revelam muitos problemas e desa-
dependia exclusivamente da agropecuária e as fios. Nesse sentido, vale destacar que a maioria
secas se transformavam em verdadeiras crises dos agricultores familiares tem idade avançada,
sociais para os pequenos produtores (GTDN, não sabe ler e escrever e desenvolve suas ativi-
1967). Mas é forçoso admitir que a situação ain- dades produtivas sem o apoio dos serviços de
da está distante do ideal. A questão principal é assistência técnica e extensão rural. Ademais, é
que a estabilidade do segmento familiar nordes- preocupante a reduzida participação de agricul-
tino se mostra bastante dependente das rendas tores jovens, indicando uma questão desafiado-
do não trabalho advindas das aposentadorias e ra para a continuidade da categoria no futuro.
das políticas sociais.
Do ponto de vista da sustentabilidade das ati-
Tais rendas, como pôde ser observado, são vidades agrícolas, chama a atenção o baixo uso
fundamentais para compensar as vulnerabilida- de práticas conservacionistas. Já sobre os meios
des vivenciadas por grande parte da categoria materiais de produção, ressalve-se a precarie-
que individualmente produz muito pouco, clas- dade de acesso, em particular, à terra, à água
sificada no Grupo B do Pronaf, e ajudam a man- e aos bens de capital físico como tecnologias
ter as economias locais. Contudo, elas precisam mecânicas. A persistência histórica da concen-
ser articuladas com investimentos produtivos tração de terras é confirmada nos dados do últi-
que permitam às pessoas assegurarem sua so- mo Censo, ao mostrar que uma pequena quan-
brevivência pelo seu próprio trabalho (AQUI- tidade de grandes estabelecimentos concentra a
NO et al., 2017; MELLO, 2018). Assim sendo, maior parcela das terras agricultáveis mapeadas
é fundamental a manutenção, ampliação e inte- pelo IBGE. Apesar de boa parte dos agriculto-
gração das políticas sociais e de inclusão produ- res familiares deter a posse da propriedade, há
tiva, visando superar as “múltiplas carências de predominância de minifúndios que, em associa-
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 31-54, agosto, 2020
49
Joacir Rufino de Aquino, Maria Odete Alves e Maria de Fátima Vidal
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 31-54, agosto, 2020
50
Agricultura familiar no Nordeste do Brasil: um retrato atualizado a partir dos dados do censo agropecuário 2017
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 31-54, agosto, 2020
51
Joacir Rufino de Aquino, Maria Odete Alves e Maria de Fátima Vidal
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 31-54, agosto, 2020
52
Agricultura familiar no Nordeste do Brasil: um retrato atualizado a partir dos dados do censo agropecuário 2017
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 31-54, agosto, 2020
53
Joacir Rufino de Aquino, Maria Odete Alves e Maria de Fátima Vidal
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 31-54, agosto, 2020
54
Agricultura familiar no Maranhão: Uma breve análise do Censo Agropecuário 2017
Resumo: O presente artigo visa traçar um perfil da agri- Abstract: This article aims to outline a profile of family
cultura familiar no Maranhão, destacando sua estrutura farming in Maranhão, highlighting its structure, the fa-
e potencialidades, em 2017. A metodologia utilizada mily farming model the potentials, analyzing the main
consistiu na análise dos dados publicados pelo Institu- information provided by the 2017 Census of Agricul-
to Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) acerca ture. The methodology used consisted of analyzing the
do Censo Agropecuário de 2017, bem como recorreu à data published by the Brazilian Institute of Geography
revisão de literatura sobre a dinâmica recente da agri- and Statistics (IBGE) about the 2017 Agricultural Cen-
cultura maranhense. Os resultados obtidos procuram sus, as well as in the literature review about the recent
delinear o perfil da agricultura familiar maranhense, dynamics of agriculture in Maranhão. The results ob-
destacando alguns aspectos que ficaram mais eviden- tained seek to outline the profile of family farming in
ciados, como a importância na geração de ocupações e Maranhão, highlighting some aspects that became more
o peso crescente da produção de origem animal. Den- evident, such as the importance in the generation of oc-
tre os pontos mais preocupantes, foi possível verificar o cupations and the growing weight that of the production
baixo nível de escolaridade dos produtores e um acesso of animal origin. Among the most worrying reports, it
muito limitado aos serviços de assistência técnica. was possible to verify the low level of education of pro-
Palavras-chave: Agricultura Familiar; Censo agrope- ducers and very limited access to technical assistance
cuário 2017; Maranhão. services.
Keywords: Family Farmer; Agricultural Census 2017;
Maranhão.
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 55-70, agosto, 2020
55
Itaan Pastor Santos, Marcelo Sampaio Carneiro, José Sampaio de Mattos e Carlos Augusto de Oliveira Furtado
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 55-70, agosto, 2020
56
Agricultura familiar no Maranhão: Uma breve análise do Censo Agropecuário 2017
trou renda e terras, de forma que, com a crise DEL GROSSI; MARQUES, 2009). Apesar des-
do chamado ciclo do algodão no final do sécu- sa ressalva, o elemento que mais se destaca no
lo XIX, as atividades empresariais enfrentaram conjunto dos dados apresentados na Tabela 1,
uma situação de regressão econômica. quando se considera o período 1985-2017, é a
A partir dos anos 1930, com o desenvolvi- forte redução do número de estabelecimentos
mento da indústria do óleo de babaçu, a econo- agropecuários e o crescimento da área média
mia estadual passou a ter nessa atividade o seu dos estabelecimentos, que passou de 29,25 hec-
epicentro (MAY, 1990). O fortalecimento dessa tares (1985) para 55,68 hectares (2017).
atividade teve forte impacto no agrário estadu-
al, impulsionando o extrativismo do coco baba- Tabela 1 – Evolução da área total e do número ge-
çu, praticado por famílias de trabalhadores(as) ral dos estabelecimentos agropecuários
rurais no interior de fazendas tradicionais ou – Maranhão (1985 a 2017)
em áreas ocupadas, na condição de posseiros.
Área dos estabelecimentos Número de
Contudo, como mostrou Mesquita (1988), a Ano
(hectares) estabelecimentos
partir dos anos 1970 a produção de óleo babaçu
entrará em declínio, por força da concorrência 1985 15.548.267 531.413
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 55-70, agosto, 2020
57
Itaan Pastor Santos, Marcelo Sampaio Carneiro, José Sampaio de Mattos e Carlos Augusto de Oliveira Furtado
Tabela 3 – Evolução da área dos estabelecimentos agropecuários segundo Grupos de Área Total (em%) -
Maranhão (1985 a 2017)
Tabela 4 – Número e área dos estabelecimentos agropecuários da agricultura familiar, segundo os grupos
de área total – Maranhão – 2017
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 55-70, agosto, 2020
58
Agricultura familiar no Maranhão: Uma breve análise do Censo Agropecuário 2017
Tabela 5 – Área e número dos estabelecimentos da agricultura familiar segundo a condição legal das terras
- Maranhão – 2017
Concedidas por órgão fundiário sem titulação 22.230 11,88 248.612 6,57
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 55-70, agosto, 2020
59
Itaan Pastor Santos, Marcelo Sampaio Carneiro, José Sampaio de Mattos e Carlos Augusto de Oliveira Furtado
Em termos de área, dos 3,7 milhões de hecta- mos o perfil dos chefes dos estabelecimentos
res da agricultura familiar mostrados na Tabela agropecuários, utilizando as informações rela-
5, cerca de 87% são terras próprias, vindo em tivas à condição do produtor, destacando aspec-
seguida (6,57%) de terras “sem titulação defi- tos como o nível de escolaridade e da assistên-
nitiva”, terras ocupadas (2,24%), em regime de cia técnica recebida.
comodato (2,09%) e em parceria (1,40%). Esse
pequeno percentual de terras classificadas como
ocupadas mostra que o movimento da frente de
3 PERFIL DOS CHEFES DOS
expansão camponesa para as chamadas “terras ESTABELECIMENTOS FAMILIARES
livres”, nos vales dos rios Mearim, Pindaré e
Quanto às características do produtor, o pri-
Grajaú, que se desenvolveu com maior intensi-
meiro dado que analisamos diz respeito à dire-
dade nos anos 1960/1970 (MUSUMECI, 1988)
ção do estabelecimento (Tabela 6). De acordo
se esgotou, com a consolidação jurídica (Terras
com o Censo Agropecuário de 2017, a principal
Próprias) da maior parte das áreas exploradas
forma de direção dos estabelecimentos é a rea-
pela agricultura familiar.
lizada diretamente pelo titular (81,33%), vindo
Um aspecto, contudo, a respeito dos dados em seguida os estabelecimentos dirigidos pelo
censitários referentes a questão da condição legal casal (16,2%) e, em menor medida, os dirigi-
das terras deve ser destacado. Diz respeito a uma dos por um encarregado ou pessoa com laço de
subestimação da área ocupada pelos estabeleci- parentesco com o titular (0,26%), outra pessoa
mentos da agricultura familiar classificada como (0,16%) e explorações comunitárias (0,12%).
“concedidas por órgão fundiário ainda sem titu- Ou seja, essa informação mostra que a respon-
lação” que, no Maranhão, correspondem princi- sabilidade pela administração e gestão do esta-
palmente aos assentamentos de reforma agrária. belecimento é feita quase que exclusivamente
Os dados do censo de 2017 apontaram, na rubrica pelas famílias – enquanto produtor(a) indivi-
da condição legal das terras, um total de 22.230 dual ou pelo casal – e que a utilização de um
estabelecimentos nessa condição, com uma área terceiro (encarregado) é pouco usual, da mesma
de cerca de 250 mil hectares. Ora, de acordo com forma que explorações de natureza coletiva.1
dados mais recentes do Incra e do Iterma haveria,
nessa condição, cerca de 1.028 assentamentos de Tabela 6 – Direção dos estabelecimentos da agri-
reforma agrária, com cerca de 132.301 famílias cultura familiar segundo o sexo e o tipo
assentadas e uma área total de 4.741.258,65 hec- de direção - Maranhão – 2017
tares.
Vale destacar, porém, que essa forte diferen- Direção Número Em %
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 55-70, agosto, 2020
60
Agricultura familiar no Maranhão: Uma breve análise do Censo Agropecuário 2017
Fonte: Censo Agropecuário 2017 (IBGE/SIDRA, 2019). Antigo científico, clássico, etc. (médio 2º
404 0,002
ciclo)
Esses dados sobre a idade do(a) chefe do Regular de ensino médio ou 2º grau 15.553 8,31
estabelecimento, que mostram o predomínio
de pessoas mais velhas, coincidem com o argu- Técnico de ensino médio ou do 2º grau 1.205 0,64
mento apresentado por Del Grossi (2016) acerca
EJA e supletivo do ensino médio ou do
do aumento da idade das pessoas ocupadas nas 317 0,16
2º grau
atividades da agricultura familiar e, de forma
mais direta, com os problemas de reprodução Superior - graduação 1.995 1,06
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 55-70, agosto, 2020
61
Itaan Pastor Santos, Marcelo Sampaio Carneiro, José Sampaio de Mattos e Carlos Augusto de Oliveira Furtado
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 55-70, agosto, 2020
62
Agricultura familiar no Maranhão: Uma breve análise do Censo Agropecuário 2017
Tabela 10 – Pessoal ocupado segundo a tipologia familiar e não familiar e o sexo - Maranhão – 2017
Florestas nativas 43.810 6,28 São Luís 221.239 61,30 69.610 26,50
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 55-70, agosto, 2020
63
Itaan Pastor Santos, Marcelo Sampaio Carneiro, José Sampaio de Mattos e Carlos Augusto de Oliveira Furtado
Número Em % Número Em %
Tabela 13 – Participação no valor total da produ-
Imperatriz 29.629 8,20 82.014 31,25 ção, segundo a tipologia e o tipo de
produção – Maranhão – 2017
Total 361.001 100,00 262.575 100,00
Total
Fonte: Censo Agropecuário 2017 (IBGE/SIDRA, 2019). Tipologia/Tipo Total
Animal Vegetal (em mil
de Produção (em %)
reais)
Vale destacar, ainda, que ao gerarmos os da-
dos de pessoal ocupado para as classes de ati- Familiar 1.033.113 826.829 1.859.942 25,69
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 55-70, agosto, 2020
64
Agricultura familiar no Maranhão: Uma breve análise do Censo Agropecuário 2017
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 55-70, agosto, 2020
65
Itaan Pastor Santos, Marcelo Sampaio Carneiro, José Sampaio de Mattos e Carlos Augusto de Oliveira Furtado
Tabela 17 – Número de estabelecimentos agropecuários que obtiveram financiamento por agente responsá-
vel por financiamento segundo a tipologia – Maranhão – 2017
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 55-70, agosto, 2020
66
Agricultura familiar no Maranhão: Uma breve análise do Censo Agropecuário 2017
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 55-70, agosto, 2020
67
Itaan Pastor Santos, Marcelo Sampaio Carneiro, José Sampaio de Mattos e Carlos Augusto de Oliveira Furtado
técnica, privada ou pública, aos agricultores fa- lia”, ou seja, entre os jovens que auxiliam o(a)
miliares no Maranhão. chefe do estabelecimento agropecuário.
Ou seja, os dados analisados apontam para Outro aspecto importante diz respeito à redu-
a necessidade de fortalecimento da assistência ção da área dos estabelecimentos da agricultura
técnica e do desenvolvimento de ações por par- familiar, o que é uma expressão do processo de
te dos agentes responsáveis para que o crédito expansão de atividades do chamado agronegó-
rural chegue a um maior número de produtores cio no Maranhão, principalmente da atividade
familiares. Por outro lado, verificou-se que no sojícola e das plantações florestais para pro-
restrito número de estabelecimentos que tive- dução de celulose. Contudo, uma análise mais
ram acesso ao crédito, este se concentrou em acurada desse processo exigiria uma abordagem
dois grupos de atividade econômica (pecuária e intertemporal dos dados censitários, procurando
produtos das lavouras temporárias), mostrando observar as modificações que ocorreram nas di-
a existência de um amplo leque de outras ativi- ferentes regiões do Estado, tomando como base
dades que podem ser incentivadas, como o caso o observado no Censo Agropecuário de 2006.
de produtos hortícolas, da atividade da aquicul- Do ponto de vista das atividades agrossil-
tura e de produtos do extrativismo vegetal. vopastoris realizadas nos estabelecimentos da
agricultura familiar, duas tendências se desta-
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS cam: a manutenção da importância de produ-
tos tradicionais da lavoura temporária (arroz e
Os dados do Censo Agropecuário de 2017 mandioca) e o crescimento da importância da
confirmam algumas tendências que se observa- atividade pecuária.
vam na agricultura maranhense a partir da aná- No primeiro caso, apesar da redução da
lise de outras fontes de dados (PNAD, Censo quantidade produzida, foi possível verificar que
Demográfico, Produção Agrícola Municipal, as atividades da lavoura temporária, especial-
Pesquisa Pecuária Municipal), caso da expan- mente a mandiocultura, são predominantes na
são da lavoura da soja, do crescimento da pecu- região intermediárias de São Luís, enquanto a
ária leiteira e da retração de produtos da lavou- atividade pecuária encontra-se mais distribuída
ra temporária, tradicionalmente praticada pela pelo conjunto das regiões do Estado, mas com
agricultura familiar (arroz e mandioca). uma concentração do rebanho leiteiro e da ca-
Do ponto de vista específico da agricultura deia produtiva de leite e queijo na região de Im-
familiar, destacam-se alguns aspectos impor- peratriz (CARNEIRO et al., 2020).
tantes: a continuação de sua centralidade na Outros aspectos importantes identificados
agricultura maranhense, a diminuição do núme- dizem respeito à fragilidade dos serviços de
ro de pessoas ocupadas, uma mudança no perfil assistência técnica no Estado (pois somente
produtivo e a redução no número de estabeleci- 2,89% dos agricultores familiares entrevistados
mentos. informaram ter acesso a algum tipo de apoio
Como destacamos ao longo do artigo, a agri- técnico) e o ainda elevado nível de analfabetis-
cultura familiar maranhense é, de longe, a prin- mo observado entre as pessoas que dirigem os
cipal forma de organização das atividades agro- estabelecimentos da agricultura familiar. Toma-
pecuárias no Estado. Ela representa 85,14% dos dos em conjunto, esses dois indicadores apon-
estabelecimentos agropecuários, absorve cerca tam para a importância do desenvolvimento de
de 77,64% do pessoal ocupado, apesar de uti- políticas públicas nessas duas áreas (Educação
lizar somente 30,88% da área total dos estabe- e Assistência Técnica), de forma a preparar es-
lecimentos agropecuários. Entretanto, apesar ses agricultores para os desafios que vêm sendo
dessa importância, os dados do Censo Agrope- colocados para a atividade em todo o mundo,
cuário apontam para uma redução do número que estão relacionados com a questão da quali-
de pessoas ocupadas, diminuição que segundo dade dos produtos e a sustentabilidade ambien-
dados coligidos em outro estudo (CARNEIRO, tal das explorações agropecuárias.
2017), vêm ocorrendo principalmente entre os Por último, mas não menos importante, vale
chamados “membros não remunerados da famí- registrar que os dados aqui apresentados dizem
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 55-70, agosto, 2020
68
Agricultura familiar no Maranhão: Uma breve análise do Censo Agropecuário 2017
respeito à dinâmica geral da agricultura familiar CARNEIRO, J. F.; CARNEIRO, M. S.; LIMA
que, por certo, obscurecem diferenças importan- NETO, E. J. O desenvolvimento da agricultura
tes que marcam a agricultura familiar maranhen- familiar e sua inserção na cadeia produtiva
se, caracterizada por grande diversidade de ato- do leite na região de Imperatriz: principais
res sociais e de manejo de ecossistemas, além de características e desafíos socioeconómicos.
diferentes trajetórias históricas. Nesse sentido, Agricultura Familiar: Pesquisa, Formação e
eles abrem o caminho para a necessidade de re- Desenvolvimento, v. 14, n.1, p.75-100, jun. 2020.
alização de outros estudos, de caráter mais seto- Disponível em: https://periodicos.ufpa.br/index.
rial (análise de cadeias produtivas, por exemplo) php/agriculturafamiliar/article/view/7853. Acesso
e com diferentes escalas territoriais de análise. em: 10 mar. 2020
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 55-70, agosto, 2020
69
Itaan Pastor Santos, Marcelo Sampaio Carneiro, José Sampaio de Mattos e Carlos Augusto de Oliveira Furtado
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 55-70, agosto, 2020
70
Agricultura familiar no Ceará: Evidências a partir do Censo Agropecuário de 2017
Resumo: A pesquisa objetiva avaliar os perfis das pro- Abstract: The objective of the research was to evaluate
duções agropecuárias nas unidades agrícolas familiares the profiles of agricultural production in family (UAF)
(UAF) e patronais (UAP) do Ceará, a partir do Censo and non-family (UAP) agricultural units in Ceará, ba-
Agropecuário de 2017, bem como das regiões criadas sed on the 2017 Agricultural Census. The survey also
pela Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos evaluates the created regions by Cearense Foundation
Hídricos (Funceme) para o Estado. Supõe-se que as of Meteorology and Water Resources (Funceme) for the
heterogeneidades detectadas nas produções das regiões State. The hypothesis is: the heterogeneities detected in
decorram das diferenças climáticas. Para testar essa hi- the production of the regions should be due to climatic
pótese, criaram-se os índices de produtividade para as differences. In order to test this hypothesis, productivity
UAF e UAP, para aferir as sinergias entre pluviometria indexes for UAF and UAP were created to gauge the
e produtividades. Desse modo, os resultados reforçaram synergies between rainfall and productivity. Overall, the
a importância das atividades agrícolas nas UAP e nas results reinforced the importance of agricultural activi-
UAF como empregadoras de trabalhadores nas áreas ties in both UAP and UAF as employers of the work-
rurais do Estado, o que contribui para reduzir proble- force in rural areas of the State, which contributes to
mas decorrentes de emigração desordenada. Neste as- reducing problems arising from disorderly emigration.
pecto, as UAF evidenciaram dispor de maior capacida- In this regard, the UAF showed to have a greater capaci-
de de absorção dessa força de trabalho, sobretudo, na ty for absorbing this workforce, especially in the region
região com maior dificuldade climática do Estado, tal with the greatest climatic difficulties in the State: Central
como a do Sertão Central e Inhamuns. Das evidências and Inhamuns region. It can also be seen from the rese-
também se depreende que, em regra, o desempenho das arch evidence that, as a general rule, the performance
UAF é melhor na produção vegetal e o das UAP na pro- of UAFs is better in vegetable production and UAPs in
dução pecuária. O índice de Produtividade (IPR) criado livestock production. The productivity index created in
no estudo reúne, de forma ponderada, as pluviometrias the study, which brings together rainfall and plant and
e as produtividades vegetal e pecuária. Em decorrência livestock productivity, confirmed the work’s hypothesis
dos resultados, confirmou-se a hipótese do trabalho de that climate is an inducing factor for agricultural produc-
que clima é fator indutor para o diferencial da produção tion in the semi-arid region. In this way, public policies
agrícola no Semiárido. that promote rural development have to take into acount
Palavras-chave: Semiárido; Diferenças Climáticas; these differences that prevail in the State.
Tecnologias Agrícolas; Agricultura de sequeiro; Políti- Keywords: Semiarid; Climate Differences; Agricultu-
cas Públicas. ral technologies; Rainfed agriculture; Public policy.
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 93-112, agosto, 2020
71
José de Jesus Sousa Lemos, Filomena Nádia Rodrigues Bezerra, João da Costa Filho e Natália de Oliveira Gurjão
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 93-112, agosto, 2020
72
Agricultura familiar no Ceará: Evidências a partir do Censo Agropecuário de 2017
do ambiente fluvial da Amazônia, até aqueles Gerais. O Ceará, que é caracterizado pela hete-
situados no agreste nordestino, historicamente rogeneidade em termos paisagísticos, potencia-
localizados na proximidade da monocultura da lidades e disponibilidade de recursos naturais,
cana-de-açúcar (IBGE, 2011). A diversidade do bem como a estrutura básica para manutenção
perfil agrícola é uma realidade brasileira, bem das atividades agrícolas, é o estado brasileiro
como acontece na Região Nordeste que, apesar que detém o maior percentual de municípios re-
de ser marcada pela elevada instabilidade plu- conhecidos oficialmente pelo Governo Federal
viométrica, tanto no tempo como no espaço; como parte desse regime climático. Com efeito,
pelo baixo nível tecnológico; pela assistência 175 dos 184 municípios são reconhecidos ofi-
técnica ineficiente; pelo reduzido acesso ao cialmente como inseridos no Semiárido brasi-
crédito rural; entre outros fatores, apresenta po- leiro (BRASIL, 2017).
tencialidades para o desenvolvimento da agri- Sobre o Estado do Ceará, é relevante obser-
cultura nessas unidades agrícolas. var que não é homogêneo, pela ótica de reves-
De acordo com o último Censo Agropecuá- timento florístico, paisagens, condições de solo
rio 2017, 77% dos estabelecimentos brasileiros e, sobretudo de clima. Há diferenças, principal-
são classificados como unidades agrícolas fa- mente, nas precipitações pluviométricas, em di-
miliares (UAF), o que representa aproximada- ferentes áreas do Estado. Tanto que a Fundação
mente 3,9 milhões de estabelecimentos. Essas Cearense de Meteorologia e Recursos Hídri-
unidades empregam 67% de todo o pessoal ocu- cos (Funceme) promoveu uma regionalização,
pado em agropecuária no País. Isso equivale a classificando-o em oito (8) regiões climáticas.
aproximadamente 10,1 milhões de pessoas. Na Como discutido até então, a pluviometria e a
região Nordeste, observa-se o maior percentual temperatura são fatores exógenos (fora do al-
de pessoas ocupadas (46,6%), seguida das regi- cance das decisões dos agricultores, ou de qual-
ões Sudeste (16,5%), Sul (16%), Norte (15%) quer agente), que afetam as atividades agríco-
e Centro-Oeste (5,9%). A área ocupada pelas las, sobretudo, as de sequeiro, que dependem
UAF é de 80,9 milhões de hectares e correspon- exclusivamente da pluviometria para se desen-
de a 23% da área de todos os estabelecimentos volverem.
agropecuários do País. Os estados de Pernam- Decorridos onze (11) anos desde a última
buco, Ceará e Acre têm as maiores proporções publicação dos dados do Censo Agropecuário
de áreas ocupadas pela agricultura familiar. Por 2006, o Instituto Brasileiro de Geografia e Esta-
outro lado, os estados do Centro-Oeste e São tística (IBGE) lançou, no final de 2019, o Censo
Paulo têm os menores níveis (IBGE, 2019). Agropecuário 2017. Com base nas informações
No Nordeste brasileiro está situada uma contidas nesse documento, se faz necessário
das três grandes áreas Semiáridas da América analisar o setor agrícola brasileiro e, especifica-
do Sul, em que predominam combinações de mente, neste estudo, o Estado do Ceará.
temperaturas médias anuais muito elevadas, en- Com base nas ponderações discutidas até
tre 23º e 27º centígrados, evaporação de 2.000 aqui e no Censo Agropecuário 2017, a presen-
milímetros ao ano, insolação média anual de te pesquisa procurou responder aos seguintes
2.800 horas, com irregular regime pluviométri- questionamentos: 1) Qual os perfil socioeconô-
co, prevalecendo níveis mal distribuídos, com mico das Unidades Agrícolas Familiares (UAF)
médias anuais, em geral, abaixo de 800 milíme- e das Unidades Agrícolas Não Familiares ou
tros, umidade relativa do ar em torno de 50%, o Patronais (UAP) do Ceará?; 2) Qual o compor-
que faz essa região sempre apresentar balanço tamento médio da temperatura e da precipitação
hídrico negativo em boa parte dos anos. Nes- pluviométrica nas oito regiões climáticas cea-
sa região, incorporando parte do Sudeste, está renses?; e 3) Como se comportaram as produti-
a região semiárida mais populosa do planeta vidades vegetal e pecuária nas regiões climáti-
(AB’SABER, 1999; SILVA, 2006; MOURA et cas, referentes às UAF e UAP?
al. 2007; LEMOS, 2015).
Em razão do exposto, o objetivo geral da
O Semiárido do Brasil alcança todos os nove pesquisa é averiguar o diferencial da produ-
estados do Nordeste e parte do Estado de Minas ção, realizando um comparativo entre as UAF
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 93-112, agosto, 2020
73
José de Jesus Sousa Lemos, Filomena Nádia Rodrigues Bezerra, João da Costa Filho e Natália de Oliveira Gurjão
e UAP, acerca das regiões climáticas cearen- renda das famílias rurais como na geração de
ses com base no Censo Agropecuário 2017. De segurança alimentar, no caso das UAF. Nesse
forma específica, a pesquisa buscou: a) fazer Estado, não é comum o uso de tecnologias que
diagnósticos comparativos entre as UAF e UAP fomentam maiores produtividades como irriga-
referente às variáveis associadas à produção ção, mecanização, sementes melhoradas gene-
agrícola para o Estado do Ceará, em 2017; b) ticamente na produção de lavouras em regime
avaliar as diferenças/similaridades entre tempe- de sequeiro. Estes fatos fazem com que a agri-
ratura e pluviometria das oito regiões climáticas cultura cearense, sobretudo a familiar, tenha
cearenses; c) analisar as variáveis condicionan- dificuldades na sua condução e de ser ativida-
tes à produção agrícola nas UAF e UAP com de sustentável: econômica, social e ambiental-
base nas diferentes regiões climáticas do Ceará mente.
em 2017; d) mensurar as sinergias existentes Volumes de chuvas abaixo ou acima das ne-
entre o clima (temperatura e/ou pluviometria) e cessidades hídricas dos cultivos causam proble-
as produtividades agrícola e pecuária nas UAF mas relacionados à queda das áreas colhidas e
e UAP. das produtividades das lavouras em geral que
Este trabalho está dividido em cinco (5) se- são cultivadas em regime de sequeiro. Essas la-
ções, sendo a primeira, composta pela Introdu- vouras desempenham papéis importantes, tanto
ção. Na segunda são mostradas as caracterís- para fomentar a segurança alimentar como para
ticas das UAF comparativamente às das UAP. prover renda monetária para os agricultores fa-
Na terceira é discutida a metodologia adotada miliares do semiárido do Nordeste (FISCHER
para avaliar as heterogeneidades na produção et al, 2002; ROSENZWEIG; HILLEL, 2005;
das UAF e UAP. Na quarta estão apresenta- THORNTON et al., 2008; PEREIRA, 2018;
dos e discutidos os resultados encontrados que COSTA FILHO, 2019).
exibem os diferenciais nas produções dessas Essas dificuldades climáticas que perduram
unidades produtivas por região. Finalmente, a no Semiárido, aconteceram de forma intensa
quinta seção apresenta as considerações finais a partir do ano de 2010, sendo 2017 o último
do trabalho. ano desse ciclo de dificuldades (CORTEZ et al,
2017; LEMOS, BEZERRA, 2019). Nesse ano
foi realizado o Censo Agropecuário e de lá fo-
2 DIMENSÕES E CARACTERISTICAS DA
ram extraídas algumas das características das
AGRICULTURA FAMILIAR NO ESTADO atividades agrícolas no Ceará.
DO CEARÁ EM 2017 De acordo com o Censo Agropecuário do
O Ceará é o estado brasileiro que detém a IBGE, em 2017 havia 394.330 estabelecimen-
maior área relativa inserida no Semiárido. Dos tos praticando atividades agrícolas no Ceará.
184 municípios cearenses, 175 (95%) são re- Deste total, 297.862 (75,5%) eram unidades
conhecidos oficialmente como detentores das agrícolas familiares (UAF); os demais 96.468
condições que os enquadram nessa caracteriza- (24,5%) eram ocupados por atividades agríco-
ção climática (BRASIL, 2017). Nesse Estado, las não familiares ou unidades agrícolas patro-
constatam-se as vulnerabilidades impostas pela nais (UAP). As áreas ocupadas pelas UAF e
irregularidade pluviométrica e pelas elevadas UAP, respectivamente, representavam 48,4% e
taxas de evapotranspiração do semiárido, que 51,6%. A importância das atividades agrícolas
prevalecem em praticamente todo o seu terri- praticadas nas UAF, já demonstradas nessas es-
tório (LEMOS; BEZERRA, 2019; FUNCEME, tatísticas de totais de estabelecimentos e áreas
2020). ocupadas pelos estabelecimentos, se consolida
quando se observa que nelas estava ocupada
No Semiárido brasileiro, de um modo geral
73,9% da força de trabalho da agricultura em
e no do Ceará, especificamente, prevalecem
2017 (Tabela 1).
atividades agrícolas que dependem exclusiva-
mente das precipitações de chuvas. São as la-
vouras de sequeiro que têm bastante relevância
para a agricultura local, tanto na formatação da
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 93-112, agosto, 2020
74
Agricultura familiar no Ceará: Evidências a partir do Censo Agropecuário de 2017
Tabela 1 – Número, área e pessoal ocupado nos estabelecimentos rurais do Ceará – 2017
Em relação ao número dos estabelecimen- lecimentos cujas áreas superavam os 100 hecta-
tos das UAF, mostrados na Tabela 2, observa- res e atingiam no máximo 500 hectares.
-se a sua concentração em áreas pequenas. Com No que concerne às áreas ocupadas por esses
efeito, a moda do número de estabelecimentos estabelecimentos, observa-se que a moda ficou
está entre um (1) e cinco (5) hectares (43,35%). compreendida no estrato de 20 a 50 hectares
Constata-se, ainda, que 80,4% dos estabeleci- (26,6%). Constata-se ainda que, pouco mais da
mentos das UAF no Ceará, em 2017, estavam metade dos estabelecimentos (74,3%) das UAF
situados em áreas que não ultrapassavam 20 possuíam áreas que variavam entre um (1) e cem
hectares, e que apenas 6,6% dos estabelecimen- (100) hectares e que apenas 25,7% dos estabele-
tos estavam em áreas maiores ou iguais a 50 cimentos possuíam áreas superiores a 100 hec-
hectares. Além disso, somente 2,12% das UAF tares, mas menores que 500 hectares (Tabela 2).
praticaram atividades agropecuárias em estabe-
Das evidências mostradas na Tabela 2, tam- (64,3%), ocupavam apenas 9,1% das áreas. Por
bém se depreende que os estabelecimentos outro lado, os estabelecimentos com áreas su-
que detinham áreas de até cinco (5) hectares periores a cem (100) hectares, que representa-
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 93-112, agosto, 2020
75
José de Jesus Sousa Lemos, Filomena Nádia Rodrigues Bezerra, João da Costa Filho e Natália de Oliveira Gurjão
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 93-112, agosto, 2020
76
Agricultura familiar no Ceará: Evidências a partir do Censo Agropecuário de 2017
evidência de que no cultivo dessas lavouras municípios nas regiões climáticas apresentadas
temporárias, os agricultores familiares tiveram na Figura 1 e no Quadro 1.
participação decisiva no Ceará em 2017. Em re-
lação às lavouras permanentes, as UAF tiveram Figura 1 – Regiões climáticas do Ceará
53,02% das áreas colhidas com essas lavouras
no Ceará em 2017 (Tabela 4). Litoral Norte
bastante heterogêneo tanto em paisagens quan- Fonte: Elaborado a partir dos dados da Funceme (2020).
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 93-112, agosto, 2020
77
José de Jesus Sousa Lemos, Filomena Nádia Rodrigues Bezerra, João da Costa Filho e Natália de Oliveira Gurjão
Utilizaram-se oito (8) variáveis associadas anual associada à r-ésima região (r = 1, 2, ..., 8)
às oito (8) regiões. Assim, empregaram-se as em que está dividido o Ceará de acordo com a
variáveis Yij, sendo i = 1, 2,..., 184; j = 1, 2, ..., Funceme. Dr (r = 1, 2, ..., 7) são variáveis biná-
8, conforme definições mostradas no Quadro 2. rias definidas da seguinte forma: D1 = 1 = Ma-
Os resultados são dispostos de forma compara- ciço de Baturité ou D1 = 0 nas demais regiões;
tiva para as UAF e para as UAP. D2 = 1 = Cariri ou D2 = 0 nas demais regiões; D3
= 1 = Sertão Central e Inhamuns ou D3 = 0 nas
Quadro 2 – Identificação e definição das variáveis demais regiões; D4 = 1 = Litoral de Fortaleza ou
utilizadas na pesquisa D4 = 0 = nas demais regiões; D5 = 1 = Ibiapaba
ou D5 = nas demais regiões; D6 = 1 = Jaguariba-
Variável Definição na ou D6 = 0 nas demais regiões; D7 = 1 = região
Yi1 Temperatura do município em ºC;
Norte ou D7 = 0 nas demais regiões; D1 = D2 =
D3 = D4 = D5 = D6 = D7 = 0 = Litoral de Pecém.
Precipitação de chuvas/ano no município em O termo aleatório ξr, por hipótese, tem dis-
Yi2
milímetros (mm);
tribuição normal com média zero, variância
Yi3
Área colhida total (lavouras temporárias + lavouras constante e não é autorregressivo. Isso permi-
permanentes) em hectares (ha); te que se realizem as estimativas do parâmetro
Yi4 Área com pastagem (ha);
linear β0 e dos parâmetros angulares β1, ..., β7,
usando o método de mínimos quadrados ordiná-
Yi5 Valor da produção vegetal em R$1.000,00 de 2017; rios (WOOLDRIDGE, 2011).
Yi6 Valor da produção pecuária em R$1.000,00 de 2017;
O coeficiente linear β0 afere a pluviometria
média da região do Litoral do Pecém. Sendo es-
Valor da produção total (vegetal + pecuária) em tatisticamente diferente de zero, implica que a
Yi7
R$1.000,00 de 2017;
temperatura média ou a pluviometria média da
Yi8 Mão de obra ocupada (total de pessoas). região são diferentes das demais. Caso se acei-
te as hipóteses de que os coeficientes angulares
Fonte: Elaborado pelos autores (2020).
sejam diferentes de zero, implicará que as tem-
peraturas médias e/ou as pluviometrias médias,
Como o estudo parte da suposição de que o
conforme seja a variável do lado esquerdo da
clima influenciou o comportamento das variá-
equação (1), são estatisticamente diferentes.
veis associadas às produções agrícolas das suas
Usando-se essas informações é possível fazer a
regiões climáticas em 2017, faz-se necessário
hierarquia, em ordem crescente (ou decrescen-
testar se, em 2017, as regiões experimentaram
te), das regiões climáticas do Ceará em relação
temperaturas e pluviometrias diferentes. Enten-
às temperaturas ou às pluviometrias.
de-se que a análise por regiões em 2017 apenas
faz sentido se as diferenças climáticas existiram Havendo diferenças estatísticas nas variá-
naquele ano, tendo em vista que a classificação veis climáticas entre as regiões, espera-se que
feita pela Funceme é fundada em séries históri- as diferenças entre elas, devam ter exercido in-
cas de temperaturas e pluviometrias. fluência nas eventuais diferenças de comporta-
mento das variáveis associadas à produção agrí-
Para testar se há diferença estatística entre
cola nas UAF e nas UAP em 2017.
as pluviometrias e as temperaturas médias de
cada região, a pesquisa lançou mão do modelo Além disso, adotaram-se estatísticas descriti-
de análise de regressão, representado pela equa- vas para cada uma das variáveis, confrontando os
ção 1, definido da seguinte forma: resultados das UAF com os observados nas UAP.
Para aferir homogeneidade ou heteroge-
Yir = β0 + β1D1 + β2D2 + β3D3 + β4D4 + neidade, utilizou-se o coeficiente de variação
(CV). Por definição, o CV afere a relação per-
(1)
β5D5 + β6D6 + β7D7 + ξir. centual entre o desvio padrão (δ) e a média (μ)
de uma variável aleatória. Quanto mais elevado
Na equação (1), a variável Yir tanto pode ser o CV, mais heterogênea ou instável será a dis-
a pluviometria total como a temperatura média tribuição da variável aleatória, em torno do seu
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 93-112, agosto, 2020
78
Agricultura familiar no Ceará: Evidências a partir do Censo Agropecuário de 2017
valor esperado. Gomes (1985) estabelece qua- 3.2 Índice de produtividade (IPR) que afere
tro amplitudes para classificação do CV: Baixo resultados da produção agrícola no Ceará
(CV < 10%); Médio (10% ≤ CV < 20%); Alto
(20% ≤ CV < 30%); e Muito alto (CV ≥ 30%). Para aferir as relações que provavelmente
devem existir entre variáveis climáticas (plu-
viometria e/ou temperatura), produtividades
3.1 Sinergia entre variáveis climáticas e
vegetal e pecuária, desenvolveu-se o índice de
produtividade nas UAF e UAP produtividade (IPR). Uma medida adimensio-
Sabe-se que as variáveis climáticas, sobretu- nal que é construída através de média ponde-
do a pluviometria do Semiárido, interferem na rada de quatro indicadores, também adimensio-
produção agrícola (vegetal ou animal) em todas nais: indicador de temperatura (IT); indicador
as etapas. Desde o planejamento das atividades de pluviometria (IP); indicador de produtivida-
até a sua consumação na colheita. Contudo, uma de vegetal (IPV); e indicador de produtividade
definição crucial na produção agrícola é a com- pecuária (IPC). Esses indicadores são estima-
binação de tecnologias utilizadas no processo dos para as UAF e UAP, nos 184 municípios
produtivo. Essas tecnologias influenciarão nos cearenses.
resultados físicos que, em combinação com os O indicador de pluviometria (IP) é constru-
preços de mercado, afetarão os resultados eco- ído hierarquizando-se, em ordem decrescente,
nômicos. O valor da produção associado a cada as produtividades vegetais e animais dos 184
produto será definido pelo produto entre preço municípios do Ceará. Observa-se em quais
unitário e quantidade produzida. A quantidade municípios essas produtividades são máximas.
produzida, por sua vez, é medida pelo produto Tendo identificado esses municípios nas UAF
entre a produtividade da terra e a área colhi- e UAP, verificam-se as pluviometrias que acon-
da. Somando-se os valores da produção obtidos teceram naqueles municípios que apresentaram
para cada produto, tem-se a sua agregação que valores máximos em cada uma dessas variáveis
é conhecida por valor bruto da produção (VBP). em 2017. Calcula-se a média dessas pluviome-
Caso se divida o VBP pela área que foi dedi- trias associadas às produtividades máximas.
cada ao cultivo de lavouras, ou dedicada às ati- Essa média será o valor de referência e assumi-
vidades pecuárias, no caso do valor da produção rá índice 100 na escala que se utiliza para o IP.
animal, serão obtidas “aproximações” moneti- As demais pluviometrias são ajustadas propor-
zadas das produtividades das lavouras e da pe- cionalmente. Portanto, quanto mais próximo de
cuária. Essa é a forma adotada nesta pesquisa. 100 for o IP associado a um determinado muni-
Divide-se o valor da produção vegetal pela área cípio, melhor será a sua posição nessa variável.
colhida com lavouras (temporárias e permanen- Por outro lado, as pluviometrias que estiverem
tes) e se obtém a “produtividade monetizada da acima da média apresentam valores maiores do
terra” na produção vegetal. Divide-se o valor que 100. Como se sabe, chuva em excesso atra-
da produção agregada da pecuária pela área palha a produção agrícola. E as pluviometrias
destinada às atividades pecuárias e se obtém a de referência são as que estiverem associadas
“produtividade monetizada da pecuária”. Daqui às maiores produtividades nas UAF e UAP. Por
pra frente, essas “produtividades monetizadas” essa razão, estabeleceu-se a seguinte estratégia
serão referidas no texto apenas como “produti- na construção do IP. Define-se: Pi = precipitação
vidade vegetal”, quando se referir à produção de chuvas no município i; e Pmx= média das pre-
vegetal, e “produtividade pecuária”, se a refe- cipitações associadas às maiores produtividades
rência for a produção animal. vegetal e pecuária nas UAF e UAP, avaliadas
conjuntamente. Estabeleceram-se as seguintes
Tanto as variáveis climáticas (pluviometria
condições: IPi = (Pi/ Pmx)*100, se Pi≤ Pmx; e IPi =
e/ou temperatura) como as produtividades es-
(Pmx/Pi)*100 se Pi≥ Pmx. Procedimento idêntico
timadas por município serão transformadas em
foi utilizado para a construção do indicador de
índices parciais para torná-las adimensionais e
temperatura (IT): ITi = (Ti / Tmx)*100, se Ti≤
colocá-las numa escala de variação entre zero
Tmx; e ITi = (Tmx/Ti)*100 se Ti ≥ Tmx. O valor
(0) e cem (100).
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 93-112, agosto, 2020
79
José de Jesus Sousa Lemos, Filomena Nádia Rodrigues Bezerra, João da Costa Filho e Natália de Oliveira Gurjão
Tmx é obtido usando o mesmo critério para cal- um (1). Como as variáveis que entram na for-
cular o Pmx. matação do IPR variam entre zero e 100%, e
Para construir os indicadores de produtivida- os pesos variam entre zero e um, segue-se que
des a serem usados no IPR, hierarquizaram-se, o IPR variará entre zero e 100% (0 < IPRi <
em ordem decrescente, as produtividades vege- 100%). Quanto mais próximo de 100% for o
tal e pecuária nas UAF e UAP. Em cada uma valor estimado para IPR, maior a produtividade
delas identificou-se o município que apresenta ponderada associada ao i-ésimo município, ten-
os maiores valores e procedeu-se a identifica- do como referência os municípios que tiveram
ção das variáveis, de acordo com as definições os maiores valores em cada uma das variáveis:
que se seguem: pluviometria, temperatura, produtividade vege-
tal e produtividade pecuária em cada município.
PRVUAFi = produtividade vegetal no i-ésimo mu-
Vale ressaltar, que esse índice tem uma ou duas
nicípio das UAF; i = 1, 2, ..., 184;
variáveis climáticas na sua composição, depen-
PRVUAPi = produtividade vegetal no i-ésimo mu-
dendo de haver diferenças significativas entre
nicípio das UAP;i = 1, 2, ..., 184;
as temperaturas e/ou pluviometrias das regiões.
PRPUAFi = produtividade pecuária no i-ésimo São construídos o IPRUAFri e o IPRUAPri, respecti-
município das UAF; i = 1, 2, ..., 184; vamente, para as UAF e UAP dos municípios. O
PRPUAPi = produtividade pecuária no i-ésimo IPR da r-ésima região é a média aritmética dos
município das UAP; i = 1, 2, ..., 184; IPR dos municípios que a compõem.
PRVUAFmx= produtividade vegetal máxima, ob-
servada nos municípios das UAF; 3.3 Estimação dos pesos associados ao IPR
PRVUAPmx = produtividade vegetal máxima, ob-
Para estimar os pesos (wi) associados à
servada nos municípios das UAP;
equação (2) utilizou-se análise fatorial (AF).
PRPUAFmx = produtividade pecuária máxima, ob- Os fundamentos técnicos da análise fatorial
servada nos municípios das UAF; estão na correlação entre as variáveis que são
PRPUAPmx = produtividade pecuária máxima, ob- utilizadas. Para que a técnica seja viável, é ne-
servada nos municípios das UAP. cessário que a matriz de correlação entre as
Com base nessas variáveis definem-se: indi- variáveis não seja uma identidade, vale frisar,
cador de produtividade vegetal (Xi2) na UAFi; que as suas correlações entre as variáveis não
indicador de produtividade pecuária (Xi3) na sejam nulas (BROOKS, 2003; THORNTON et
UAFi; indicador de produtividade vegetal (Xi4) al., 2008; HAHN, 2009; FÁVERO et al. 2009;
na UAPi; e indicador de produtividade pecuária GUILLAUMONT; SIMONET, 2011; LIRA et
(Xi5) na UAPi através das relações: al, 2016; BEZERRA, 2016).
Xi2 = (PRVUAFi/ PRVUAFmx)*100; Para que o procedimento de AF se proceda
Xi3= (PRPUAFi/ PRPUAFmx)*100; de maneira adequada, é preciso seguir os se-
guintes passos: analisar a matriz de correlações,
Xi4 = (PRVUAPi/ PRVUAPmx) *100; e
confirmando que não se trata de matriz identi-
Xi5 = (PRPUAPi/ PRPUAPmx)*100 dade; verificar a estatística Kaiser-Meyer-Olkin
Para manter a consistência da notação, iden- (KMO). Os valores dessa estatística precisam
tificou-se o indicador de clima (Pi ou Ti) por Xi1. ser superiores a 0,5 para que o método possa
Em seguida construiu-se o IPR, que é definido ser aplicado; realizar o teste de esfericidade de
pela equação (2): Bartlett, para verificar se a matriz de correla-
ção não é uma identidade; aferir o percentual
IPRij = Σwj.Xij.(i = 1,2, ...., 184; j = 1, 2, 3, 4). de explicação da variância acumulada dos com-
(2) ponentes estimados. O método utilizado para
Os Xij são os indicadores definidos anterior- extração dos fatores foi a decomposição em
mente. Os wi são pesos associados às variáveis componentes principais, que tem como caracte-
do lado direito da equação, que assumirão va- rística a busca por uma combinação linear das
lores estritamente maiores que zero e menores variáveis observadas, de forma a maximizar a
que um (1) (0 <wi< 1). A soma de wi é igual a variância total explicada. Maiores detalhes so-
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 93-112, agosto, 2020
80
Agricultura familiar no Ceará: Evidências a partir do Censo Agropecuário de 2017
bre o método podem ser encontrados na referên- 25,9ºC a 26,4ºC, ao passo que as temperaturas
cia citada neste tópico. máximas estiveram num intervalo de 27,0ºC a
28,9ºC. Os CV associados às temperaturas mé-
dias das regiões foram baixos, o que sinaliza
4 RESULTADOS E DISCUSSÃO para uma homogeneidade das temperaturas em
todas as regiões. Com efeito, os CV variaram
A sequência de apresentação e discussão dos entre 1,4% e 3,4%.
resultados seguirá a ordem em que estão colo-
Este conjunto de informações associado às
cados os objetivos específicos da pesquisa, no
temperaturas mínimas, médias e máximas, CV
que se refere às regiões, tendo em vista o Ceará
sugerem que em todas as regiões as médias das
como um todo, o qual será exposto na subseção
temperaturas são elevadas, mas sem variações
seguinte.
expressivas entre as regiões. Usando o modelo
de variáveis dummies como aferidoras das dife-
4.1 Estatísticas descritivas e teste das renças entre as temperaturas médias, observou-
diferenças entre temperaturas e -se que não há diferenças estatísticas entre as
pluviometria temperaturas médias das oito regiões (Tabela 5).
No que se refere às precipitações pluvio-
Inicia-se a apresentação dos resultados mos-
métricas, observa-se que há divergências ex-
trando, através de estatísticas descritivas, os va-
pressivas entre as precipitações observadas em
lores extremos, as médias e os coeficientes de
cada uma das regiões, como se depreende dos
variação associados às temperaturas e pluvio-
resultados mostrados na Tabela 5. Com efeito,
metria observadas em cada uma das oito regiões
a precipitação mínima observada no Estado do
em que a Funceme caracterizou o Ceará no ano
Ceará ocorreu no município de Saboeiro, situa-
de 2017 (Tabela 5).
do na região do Sertão Central e Inhamuns, com
Observa-se que as temperaturas médias anu- 150 milímetros em 2017. A precipitação máxi-
ais oscilaram entre 26,7ºC nas regiões do Cari- ma observada em 2017 ocorreu no município de
ri e do Sertão Central e Inhamuns, a 28,1ºC na Granja, onde choveu 1.847 milímetros.
Ibiapaba. As temperaturas mínimas variaram de
Tabela 5 – Temperaturas e pluviometrias por regiões do Ceará em 2017 – Coeficientes de Variação (CV)
Litoral de Fortaleza 14 26,4 27,4a 27,7 1,4 929,0 1.614,9 1.362,8a 15,8
Maciço de Baturité 14 26,4 27,0a 27,7 1,6 806,0 1.394,7 1.145,6b 18,7
Litoral Norte 22 26,0 27,7a 28,8 1,7 702,7 1.847,0 1.092,6c 24,9
Litoral do Pecém 16 26,4 27,0a 27,2 1,4 416,6 1.692,4 950,2d 42,2
Sertão Central e Inhamuns 40 25,9 26,7a 27,7 1,5 150,0 836,6 590,3g 25,9
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 93-112, agosto, 2020
81
José de Jesus Sousa Lemos, Filomena Nádia Rodrigues Bezerra, João da Costa Filho e Natália de Oliveira Gurjão
Realizando-se os testes para avaliar as possíveis diferenças entre as pluviometrias regionais, utili-
zando variáveis dummies, como mostrado na equação (1), chegou-se ao seguinte resultado:
Os valores entre parênteses, dispostos abaixo com exceção das médias de Ibiapaba e Pecém
dos coeficientes estimados, são os seus níveis de que, embora sejam numericamente diferentes,
significância. O coeficiente de determinação ajus- não divergiram estatisticamente na pluviometria
tado (R²) para esta equação é de 0,465. Portanto, que receberam em 2017. Na Tabela 5, os super-
de um ponto de vista estatístico, o ajustamento -índices indicam a hierarquia em termos de plu-
sugere que há diferenças entre as médias das chu- viometria média em que se classificam as regiões
vas observadas nas regiões climáticas cearenses, do Ceará em 2017, podendo ser assim sintetizada:
Assim, a região de Fortaleza exibiu a maior de lavouras e as áreas destinadas à pecuária por
média de pluviometria (1.362,8 milímetros) e a região em 2017. Esses resultados visam atender
menor heterogeneidade, medida pelo CV esti- ao que foi proposto no terceiro objetivo desta
mado de 15,8%. Na região do Sertão Central e pesquisa.
Inhamuns observou-se a menor média de chu- As evidências apresentadas na Tabela 6 sina-
vas naquele ano (590,3 mm). A maior hetero- lizam para duas situações diferentes em relação
geneidade na pluviometria, aferida pelo CV, foi ao tema anunciado na seção anterior. No que
observada na região do Litoral do Pecém (CV = concerne às áreas totais e médias com lavou-
42,2%). Com base nesses resultados, a pesquisa ras, as UAF não superam as das UAP apenas
utiliza apenas o índice e as médias de pluviome- no Litoral de Fortaleza. Quando se trata das
tria das regiões como relevantes no cômputo de áreas destinadas à pecuária, as que superam
diferenciais associados às produções agrícolas os estimados para as UAF, em temos totais e
nas UAF e UAP no Ceará em 2017. médios, são as áreas das regiões Sertão Central
e Inhamuns e de Baturité. Desses resultados,
4.2 Resultados para as áreas colhidas e por depreende-se que as UAP tiveram maiores ap-
regiões do Ceará em 2017 tidões, mais áreas disponíveis, ou ambos, para
as atividades de criação em praticamente todas
Inicia-se a apresentação e a discussão dos as regiões. Significa que, possivelmente, houve
resultados associados às produções agrícolas uma dedicação de áreas para as atividades des-
por regiões, avaliando as áreas totais e médias tinadas a esse tipo de produção.
Tabela 6 – Áreas destinadas à lavoura e à pecuária nas UAF e UAP por região climática do Ceará em 2017
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 93-112, agosto, 2020
82
Agricultura familiar no Ceará: Evidências a partir do Censo Agropecuário de 2017
S. Central e
215.547 5.388,68 1.217.256 3.043,14 67.033 1.675,83 1.305.711 32.642,77
Inhamuns
Fonte: Valores estimados a partir dos dados do Censo Agropecuário 2017 (IBGE/SIDRA, 2019).
Tabela 7 – Valores brutos das produções totais e médios / hectare nas UAF e UAP por região climática do
Ceará em 2017
UAF: Média por setor (R$/Hectare) UAP: Média por setor (R$/Hectare)
Regiões
Vegetal Pecuário Vegetal Pecuário
Fonte: Valores estimados a partir dos dados do Censo Agropecuário 2017 (IBGE, 2019).
Na produtividade vegetal, os valores estima- região de Fortaleza é bem maior do que o valor
dos para a região Litoral de Fortaleza nas UAF observado nas demais regiões. Essa média é prin-
superam as médias de todas as demais regiões. cipalmente influenciada pelo que acontece em
Para aquela região, a média estimada foi de R$ três municípios: Horizonte, Euzébio e Pacajus,
2.433,17/hectare. Por outro lado, o pior resulta- que apresentaram valores bastante expressivos.
do nas UAF foi observado no Sertão Central e Observa-se ainda que a região Sertão Central
Inhamuns (R$1.203,81/ hectare), conforme está e Inhamuns também apresentou a menor média
exposto na Tabela 7. de produtividade pecuária. Essa região, como
No que concerne às produtividades pecuárias demonstrado, apresentou a menor média de plu-
nas UAP, observa-se que o valor estimado para a viometria entre as oito regiões estudadas. Forta-
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 93-112, agosto, 2020
83
José de Jesus Sousa Lemos, Filomena Nádia Rodrigues Bezerra, João da Costa Filho e Natália de Oliveira Gurjão
leza, que teve a melhor média de pluviometria, do Estado do Ceará, quando comparadas às
apresentou também as maiores médias em todas UAP. Com efeito, mostra-se na Tabela 8 que
as produtividades, numa sinalização da sinergia a força de trabalho total ocupada em todas as
existente entre essas variáveis, como foi a supo- regiões climáticas do Ceará, assim como as
sição da pesquisa. médias por região, tem magnitude superior nas
As UAF se mostraram mais promissoras no UAF, relativamente às das unidades agrícolas
emprego da força de trabalho nas áreas rurais não familiares (UAP).
Tabela 8– Mão de obra ocupada por região climática do Ceará nas UAF e UAP em 2017
UAF UAP
Total Relação
Regiões
(1) = (2)+(4) Total Média por Total Média por (3)/(5)
ocupada (2) município (3) ocupada (4) município (5)
Fonte: Valores estimados a partir dos dados do Censo Agropecuário 2017 (IBGE, 2019).
O Sertão Central e Inhamuns é a região que Central e Inhamuns. Relações que consolidam a
possui mais municípios, apresentando quarenta relevância nas UAF também na geração de ocu-
(40). Isso pode contribuir para que nela a quan- pação nas áreas rurais do Ceará (Tabela 8).
tidade de mão de obra ocupada, tanto nas UAF
como nas UAP, seja bem maior que nas demais 4.3 Estimação do Índice de Produtividade (IPR)
(287.994 pessoas). Mas esse fato se observou
também em termos médios, o que a consolida Para atender ao quarto objetivo proposto
como a grande empregadora de trabalhadores neste estudo, construiu-se o Índice de Produti-
rurais no Ceará em 2017. Nas unidades familia- vidade (IPR) que agrega, de forma ponderada,
res, a do Cariri, com 125.200 pessoas ocupadas os índices de precipitação de chuvas, de pro-
e a da Ibiapaba com 114.275, também se des- dutividade vegetal e de produtividade pecuária.
tacaram. As médias regionais nas UAF varia- Para isso, utilizou-se a técnica de decomposição
ram de 2.472, no Litoral de Fortaleza, a 5.635 em componentes principais (DCP) do método
pessoas ocupadas na região do Sertão Central e de análise fatorial (AF). Foram criados dois
Inhamuns (Tabela 8). índices, um IPR para as UAF (IPRUAF) e outro
Nas UAP, a menor média de pessoal ocupa- para as UAP (IPRUAP).
do foi observada no Maciço do Baturité (1.023 Na Tabela 9 apresentam-se as sínteses dos re-
pessoas). A maior média se observou no Sertão sultados obtidos para a estimação dos pesos utili-
Central e Inhamuns, com 1.565 trabalhadores. zados para construir os dois índices utilizados no
A relação entre as médias de força de trabalho estudo. Observa-se que, tanto para as UAF como
ocupada nas UAF em relação às UAP varia de para as UAP, os testes de KMO superaram os va-
1,7, no Litoral de Fortaleza, a 3,6 no Sertão lores críticos, tendo em vistas que assumiram o
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 93-112, agosto, 2020
84
Agricultura familiar no Ceará: Evidências a partir do Censo Agropecuário de 2017
valor 0,598 para o IPRUAF; e 0,595 para o IPRUAP. como se supôs quando se estava estabelecendo o
O fato do Teste de Bartlet ter confirmado que a ma- desenho deste trabalho. Os demais resultados obti-
triz das correlações dos indicadores utilizados para dos nas estimações sinalizam que os ajustamentos
estimar os IPR não é singular, confirma a sinergia permitem estimar as duas equações buscadas para
entre esses indicadores. Ou seja, os três indicado- aferir as produtividades ponderadas em sinergia
res variaram juntos na mesma direção e sentido, com a pluviometria dos municípios.
Tabela 9 – Resultados obtidos com a decomposição em componentes principais usados nos índices IPRU-
AF e IPRUAP aferidos para o Ceará – 2017
Fonte: Valores estimados a partir dos dados do Censo Agropecuário 2017 (IBGE/SIDRA, 2019) e Funceme (2020).
Os valores dos IPR para as regiões são as mé- Ibiapaba 30,60 35,71
dias aritméticas calculadas a partir dos municípios
Jaguaribana 23,45 30,49
que dela fazem parte. Esses resultados estão mos-
trados na Tabela 10. Lembrando que quanto mais Litoral de Fortaleza 45,98 59,86
próximo de 100% for o IPR, melhor é a situação da
região na combinação das produtividades vegetal, Litoral de Pecém 27,24 33,31
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 93-112, agosto, 2020
85
José de Jesus Sousa Lemos, Filomena Nádia Rodrigues Bezerra, João da Costa Filho e Natália de Oliveira Gurjão
Fortaleza > Baturité > Norte > Ibiapaba >Pecém >Cariri>Jaguaribana> Inhamuns
Fortaleza > Baturité > Norte> Ibiapaba >Cariri > Pecém >Jaguaribana>Inhamuns.
Estes resultados sugerem comportamentos se- Essas evidências que, além de confirmarem
melhantes das UAF e UAP no que concerne às as suposições desta pesquisa de que o clima
interações entre as pluviometrias regionais e as (neste caso, a pluviometria), é fator definidor
respectivas produtividades vegetais e pecuárias. da produção agropecuária no Semiárido, suge-
Como as condições de solo, de temperaturas e dos rem que as respostas das regiões cearenses, tan-
demais recursos naturais são convergentes para as to nas UAF como nas UAP, são bastante seme-
UAF e UAP, depreende-se que os fatores diferen- lhantes de um ponto de vista relativo, embora os
ciadores para esses resultados devem estar bastan- resultados físicos e monetários, em termos ab-
te ancorados nos diferenciais de pluviometria. solutos, se manifestem de formas diferenciadas.
No Gráfico 1 ilustra-se a sinergia que existiu Ao menos em 2017 foi esse o comportamento
entre pluviometria e os IPR estimados para as oito detectado.
regiões cearenses em que se elaborou o estudo.
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 93-112, agosto, 2020
86
Agricultura familiar no Ceará: Evidências a partir do Censo Agropecuário de 2017
tos familiares eram conduzidas majoritariamen- ências nas UAF e UAP, ao passo que as regiões
te por chefes com idade entre 25 e 65 anos e, com piores médias pluviométricas são as que
um percentual elevado de idosos (acima de 65 apresentaram os menores IPR. Isso remete à
anos) continuava envolvido na condução das conclusão de que os efeitos da pluviometria das
atividades agrícolas familiares. regiões são assimilados de formas muito pareci-
Um resultado preocupante detectado pelo es- das nos dois tipos de agricultura. Conclui-se as-
tudo, diz respeito à baixa inserção dos agricul- sim que, os diferenciais nos resultados físicos e
tores familiares no serviço de assistência técni- monetários entre as sub-regiões decorreram das
ca, extensão rural e, em decorrência disso, uma diferenças pluviométricas existentes entre elas.
reduzida captação de recursos de crédito rural A conclusão geral da pesquisa é que as UAF
nesses estabelecimentos. desempenharam papel importante para evitar o
Com relação às temperaturas das regiões cli- êxodo rural em 2017, que fechou um ciclo de
máticas estabelecidas pela Funceme para o Cea- estiagens iniciado em 2010 no Ceará. Nesse
rá, conclui-se que se mantiveram elevadas, mas contexto, observou-se que mesmo sendo a re-
não foram estatisticamente diferentes. Apresen- gião que apresentou as maiores dificuldades de
taram valores observados muito próximos em precipitação de chuvas, Sertão Central e Inha-
magnitudes, mesmo nas temperaturas mínimas muns, foi a que mais reteve força de trabalho
e máximas, das oito regiões em 2017. ocupada, tanto em unidades familiares como
nas não familiares. Mas observou-se que todas
No que se refere às pluviometrias, houve
as regiões conseguiram segurar uma grande
diferenças significativas nas médias estimadas
quantidade de trabalhadores rurais, sobretudo
para as oito regiões, com exceção de duas, que
nas UAF. Isso reforça o papel dessas ativida-
tiveram médias não estatisticamente diferentes:
des como amortecedoras de tensões nas áreas
Litoral do Pecém e Ibiapaba. No Litoral de For-
rurais e, em decorrência, nas urbanas, na medi-
taleza observou-se a maior média e no Sertão
da em que retêm trabalhadores ocupados, eles
Central e Inhamuns, a menor. Além de diferen-
não emigrarão para as grandes cidades. Talvez
tes, inclusive de um ponto de vista estatístico,
esta seja a mais relevante das conclusões desta
as pluviometrias foram bastante heterogêneas,
pesquisa.
segundo aferições feitas pelos respectivos CV,
entre os municípios e regiões em 2017. Outra evidência que se considera de gran-
de relevância é a constatação empírica de que
Os resultados encontrados confirmaram a
o Estado do Ceará tem diferenças que preci-
suposição deste trabalho de que há sinergias
sam ser levadas em consideração quando se
entre as produtividades da terra destinadas à
elaboram programas e políticas públicas. Os
produção vegetal e à produção pecuária aferi-
tratamentos não devem ser uníssonos. Há es-
das de um ponto de vista monetário (relação
pecificidades em pelo menos oito regiões que
entre valores da produção vegetal e pecuária
apresentam características de pluviometrias
pelas respectivas áreas) e as precipitações de
diferenciadas. Esta, talvez seja a outra grande
chuvas, nas oito regiões climáticas estudadas.
contribuição deste estudo para os debates acer-
Essas combinações foram aferidas através do
ca de como devem ser feitos os planejamentos
Índice de Produtividade (IPR), que é a média
que visem à promoção de ações nas atividades
ponderada entre indicador de pluviometria de
agrícolas, tanto nas unidades familiares como
produtividade vegetal e de produtividade pe-
nas não familiares.
cuária. Com efeito, quando se hierarquizam as
sequências (em ordem crescente ou decrescen- O presente trabalho propõe que os formula-
te) dos IPR das UAF e UAP, observa-se que dores de políticas públicas voltadas para o meio
praticamente há superposição nesses rankings, rural devem considerar, antes de qualquer toma-
inclusive com o que se fez para as pluviome- da de decisão, que as especificidades regionais
trias regionais. no Estado do Ceará devem ser inseridas e es-
tudadas com maior profundidade, para que não
As hierarquias, em ordem decrescente dos
ocorram medidas equivocadas no planejamento
IPR, mostram que as regiões com melhores mé-
e implantação de políticas públicas, evitando
dias pluviométricas estão conduzindo as sequ-
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 93-112, agosto, 2020
87
José de Jesus Sousa Lemos, Filomena Nádia Rodrigues Bezerra, João da Costa Filho e Natália de Oliveira Gurjão
assim que os municípios, bem como as micror- ______. Decreto nº 9.064, de 31 de maio de
regiões sejam tratados como homogêneos, atri- 2017. Dispõe sobre a Unidade Familiar de
buto este que as evidências mostradas neste tra- Produção Agrária, institui o Cadastro Nacional
balho refutaram. Ou seja, é fulcral identificar as da Agricultura Familiar e regulamenta a Lei nº
diferenças regionais no meio rural cearense e, a 11.326, de 24 de julho de 2006, que estabelece as
partir delas, buscar soluções mais adequadas às diretrizes para a formulação da Política Nacional
especificidades regionais. da Agricultura Familiar e empreendimentos
familiares rurais. Brasília, 31 de maio de 2017.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
AGRADECIMENTOS ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Decreto/D9064.
htm. Acesso em: 04 jan. 2020.
Os autores agradecem a gentileza dos cole-
gas Maria Odete Alves, Joacir Aquino e Maria ______. Ministério da Integração Nacional.
de Fátima Vidal pelo honroso convite para ela- Resolução nº 115, de 23 de novembro de 2017.
borar esse documento para edição especial da Diário Oficial da União. Conselho Deliberativo
REN. Agradecem também os valiosos comentá- da Superintendência do Desenvolvimento do
rios e sugestões que apresentaram à versão an- Nordeste – SUDENE, 2017. Disponível em:
terior deste estudo. http://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/
Kujrw0TZC2Mb/content/id/739568/do1-2017-
12-05-resolucao-n-115-de-23-de-novembro-
REFERÊNCIAS de-2017-739564. Acesso em: jan. 2020.
AB’SABER, A. Nordeste sertanejo: a região
______. Presidência da República. Secretaria
semiárida mais povoada do mundo. Estudos
Geral, Subchefia para Assuntos Jurídicos.
Avançados, São Paulo, v.13, n.36, maio/
Decreto Nº 9.064, de 31 de maio de 2017.
ago.1999.
Brasília, DF. 2017. Disponível em: http://www.
BEZERRA, F. N. R. Sustentabilidade da matriz planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/
energética brasileira. 2016. 124 f. Dissertação Decreto/D9064.htm. Acesso em abril de 2020.
(Mestrado) - Universidade Federal do Ceará,
BROOKS, N. Vulnerability, risk and
Centro de Ciências Agrárias, Departamento de
adaptation: a conceptual framework.
Economia Agrícola, Programa de Pós-Graduação
Disponível em: https://www.researchgate.net/
em Economia Rural. Fortaleza, Ceará, 2016.
publication/200032746_Vulnerability_Risk_and_
BRASIL. Decreto nº 1.946, de 28 de junho Adaptation_A_Conceptual_Framework. Acesso
de 1996. Cria o Programa Nacional de em: 25 mar. 2020.
Fortalecimento da Agricultura Familiar -
CHAYANOV, A. V. On the theory of non-
PRONAF, e dá outras providências. Diário Oficial
capitalist economic systems. In: THONNER,
da União. Disponível em: <https://www2.camara.
D.; KENBLAY, B.; SMITH, R. E. F. The theory
leg.br/legin/fed/decret/1996/decreto-1946-28-
of peasant economy. Honewood, Illinois. The
junho-1996-435815-publicacaooriginal-1-pe.
American Economic Association, 1966. p. 1-28.
html>. Acesso em: 28 dez. 2019.
CORTEZ, H. S.; LIMA, G. P.; SAKAMOTO,
______. Lei nº 11.326, de 24 de julho de 2006.
M. S. A seca 2010-2016 e as medidas do Estado
Estabelece as diretrizes para a formulação da
do Ceará para mitigar seus efeitos. Brasília,
Política Nacional da Agricultura Familiar e
DF. Parc. Estrat. v. 22. n. 44. P. 83-118. jan-
Empreendimentos Familiares Rurais. Brasília,
jun, 2017. Disponível em: http://seer.cgee.org.
24 de julho de 2006. Diário Oficial da União.
br/index.php/parcerias_estrategicas/article/
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
viewFile/858/786. Acesso em: abril de 2020.
ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11326.
htm#art3. Acesso em: 05 jan. 2020.
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 93-112, agosto, 2020
88
Agricultura familiar no Ceará: Evidências a partir do Censo Agropecuário de 2017
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 93-112, agosto, 2020
89
José de Jesus Sousa Lemos, Filomena Nádia Rodrigues Bezerra, João da Costa Filho e Natália de Oliveira Gurjão
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 93-112, agosto, 2020
90
Agricultura familiar no Piauí: Uma leitura do Censo Agropecuário 2017
Resumo: Estatísticas oficiais do Censo Agropecuá- Abstract: Official statistics of the 2017 Agricultural
rio 2017, da Agricultura Familiar, no Estado do Piauí, Census of Familiar Agriculture in the State of Piaui
constituem a base deste artigo, juntamente com elemen- form the basis of this article, together with conceptual
tos conceituais e da trajetória política desta agricultu- elements and the political trajectory of this social and
ra, como ator social e político, no Brasil, a partir dos political actor, in Brazil, from the 1990s. The objective
anos de 1990. O objetivo é apresentar um diagnóstico is to present a diagnosis of this agriculture, in the state,
da Agricultura Familiar, no Estado, em uma abordagem in an interpretative approach, of bibliographic and do-
interpretativa, de base bibliográfica e documental, em cumentary basis, in particular, of statistical indicators of
especial, de indicadores estatísticos do Censo Agro- the Agricultural Census. As a result, we expose signifi-
pecuário 2017. Como resultados, expomos aspectos cant aspects, above all, of the agricultural production
significativos, sobretudo, da produção agropecuária de of family farmers in Piaui, so that they can be put into
agricultoras e agricultores familiares, no Piauí, de modo perspective with other states in the Northeast region,
que possam ser postos em perspectiva com demais esta- and in Brazil. In the final considerations, we point to
dos da região Nordeste, e do Brasil. Nas considerações the relevance of Family Agriculture in the state, in its
finais, apontamos para a relevância desta agricultura no ontological diversity, to some limits of census data in
Estado, em sua diversidade ontológica, para alguns li- expressing it, as well as for challenges to the research
mites dos dados censitários em expressá-la, assim como and to the policies aimed at strengthening it.
para desafios à pesquisa e às políticas voltadas ao seu Keywords: Family Farming; Agricultural Census
fortalecimento. 2017; Piaui.
Palavras-chave: Agricultura Familiar; Censo Agrope-
cuário 2017; Piauí.
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 71-91, agosto, 2020
91
Maria Dione Carvalho de Morais, Alyne Maria Barbosa de Sousa e Clarissa Flávia Santos Araújo
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 71-91, agosto, 2020
92
Agricultura familiar no Piauí: Uma leitura do Censo Agropecuário 2017
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 71-91, agosto, 2020
93
Maria Dione Carvalho de Morais, Alyne Maria Barbosa de Sousa e Clarissa Flávia Santos Araújo
5 Para Neves (2006), houve um empenho coletivo de reflexão sobre 7 Ver Schneider e Nierdele (2008) acerca do debate sobre a
a construção de aparatos institucionais, visando ao enquadramento persistência das formas familiares de trabalho e de produção no
do que se denominava pequenos produtores agrícolas, sitiantes ou interior do capitalismo e sobre a dinâmica socioeconômica dessas
camponeses, como produtores mercantis. Para Moraes (1998), formas sociais no meio rural como projeção particular do conjunto
emergia uma nova identidade política – agricultura familiar – das relações de produção e trabalho, nos marcos sociais de caráter
acionada estrategicamente, no campo das políticas públicas. capitalista, em suas variações.
6 Alguns exemplos de políticas e/ou programas: em 2003, o Plano 8 Ver, por exemplo, Abramovay (1992), Bergamasco (1995),
Safra da Agricultura Familiar, e o Programa de Aquisição de Carneiro (1997), Silva (1996), Moreira (1997), Schneider (1999),
Alimentos da Agricultura Familiar (PAA) por meio da Lei n. Carmo (1995), Veiga (1995), Wanderley (1995). O interesse pelo
10.696; o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), tema resultou em pesquisas (dissertações, teses, livros, artigos em
com a Lei n. 11.947/2009, determinando que ao menos 30% dos periódicos) e debates entre pesquisadores(as) acadêmicos(as) e não
recursos repassados pelo Governo Federal por meio do Fundo acadêmicos(as). Nos anos 2000, a literatura (fontes não citadas
Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) fossem aqui devido a limitações de espaço) seria ampliada com temas
utilizados para compras da agricultura familiar. Acrescentem-se como políticas públicas, sustentabilidade, multifuncionalidade,
outras políticas e programas como Seguro Rural da Agricultura pluriatividade; agroecologia, relações de gênero, povos e
Familiar, Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR); comunidades tradicionais, gerações, problematização de agricultura
Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica; políticas familiar como conceito, relação com o agronegócio, resiliência
de bases territoriais, como o Programa Territórios da Cidadania, dessa agricultura em contexto de concentração da terra e da
dentre outros. produção e de esvaziamento demográfico do campo, dentre outros.
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 71-91, agosto, 2020
94
Agricultura familiar no Piauí: Uma leitura do Censo Agropecuário 2017
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 71-91, agosto, 2020
95
Maria Dione Carvalho de Morais, Alyne Maria Barbosa de Sousa e Clarissa Flávia Santos Araújo
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 71-91, agosto, 2020
96
Agricultura familiar no Piauí: Uma leitura do Censo Agropecuário 2017
Esse total de 1.067.401 habitantes rurais cor- Vale lembrar que a população do Piauí habi-
responde a 34,2% da população do Estado (IBGE, ta uma diversidade de biomas (manguezais, ca-
2010). No entanto, o emprego das noções de mu- atinga, cerrado e mata de cocais), tendo a agro-
nicípios essencialmente e relativamente rurais16 pecuária, o extrativismo vegetal e a pesca como
mudaria este percentual, significativamente. O importantes atividades econômicas, indo da
Censo Demográfico de 2010 registrou que 129 agricultura empresarial, voltada à produção de
municípios piauienses (cerca de 89% do total) commodities, à agricultura familiar.
contavam com um total de 1.340.359 habitantes, Segundo o Censo Agropecuário de 2017, o
o que os definiria como essencialmente rurais, e Estado do Piauí conta com 245.601 estabele-
que cerca de 98% dos municípios contavam com cimentos agropecuários. A agricultura familiar
menos de 50.000 habitantes, ou seja, seriam tidos representa 80,3% desse total, ou seja, estabele-
como relativamente rurais. Assim, a população cimentos desta agricultura totalizaram 197.246
rural representaria mais de 63% da população to- unidades produtivas. Em termos de área total
tal do estado, a qual somava, à época, 1.965.487 dos estabelecimentos, dos 10.009.857 hectares,
habitantes. Nesta perspectiva, o Piauí apresenta- a área específica da agricultura familiar abran-
ria quase o dobro dos números que constituíam geu o equivalente a 3.852.846 hectares, isto é,
indicadores de população rural pelo IBGE. 38,5% como se pode ver na Tabela 1.
Tabela 1 – Estabelecimentos, área e pessoal ocupado, segundo o tipo de agricultura, no estado do Piauí
(2017)
Os dados de 2017 apresentam a extrema re- Tabela 2 – Pessoal ocupado, por sexo e faixa etá-
levância da participação da agricultura familiar ria, nos estabelecimentos de Agricultura
em relação ao número total de estabelecimentos Familiar, no estado do Piauí – 2017(*)
agropecuários (80,3%) e em menor proporção,
de sua fração na composição da área ocupada Homens Mulheres
Pessoal Ocupado
(38,5%) pela agropecuária no Piauí. N % N %
Quanto ao pessoal ocupado nos estabeleci-
165.337
mentos agropecuários familiares no Piauí no ano 14 anos ou mais 326.468 95,8 93,1
de 2017, havia um contingente de 518.540 indi- Menos de 14 anos 14.472 4,2 12.263 6,9
víduos, ou seja, pouco mais de meio milhão de
pessoas, dos quais 65,7% são homens e 34,3% Total 340.940 100,0 177.600 100,0
são mulheres, como detalhado na Tabela 2. Fonte: Elaborada pelas autoras, com base em IBGE (2019a).
Nota: (*) foi utilizada a variável “pessoas”.
portaltransparencia.gov.br/programas-de-governo/22-territorios-
da-cidadania?ano=2019), o que aponta para limites das políticas de
fortalecimento da agricultura familiar, em especial, no Piauí.
Pode-se depreender que predominam homens
16 Ver, sobre o tema, Veiga et al. (2001) e Miranda (2013). Fórum com mais de 14 anos ocupados nos estabeleci-
(2019) identifica cinco tipos de espaços rurais no Piauí, com mentos de agricultura familiar, mas a participa-
base nos resultados de pesquisa do Instituto Interamericano
ção de mulheres é também significativa. Dentre
de Cooperação para a Agricultura (IICA), apontando para a
heterogeneidade do rural piauiense e de formas de organização estas, 165.337 possuem mais de 14 anos de idade,
econômica e social. o que corresponde a 31,9% do pessoal ocupado.
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 71-91, agosto, 2020
97
Maria Dione Carvalho de Morais, Alyne Maria Barbosa de Sousa e Clarissa Flávia Santos Araújo
Tabela 3 – Condição legal do(a) produtor(a), segundo o número de estabelecimentos de Agricultura Fami-
liar e respectiva área, no estado do Piauí (2017)
Estabelecimentos Área
Condição legal do(a) produtor(a)
N % Hectares %
Segundo IBGE (2019a), a categorização des- Com respeito à condição do(a) produtor(a)
ta condição foi derivada da indagação sobre área em relação à terra, 71,1% dos estabelecimentos
e composição das terras do estabelecimento na agropecuários familiares eram explorados por
data de referência, ou seja: se constituído por seus(suas) proprietários(as). As outras moda-
terras próprias, por terras cedidas por órgão fun- lidades registraram menor número: 8,4% eram
diário, mas ainda sem título definitivo, por terras explorados por comodatários(as); cerca de 7%
arrendadas, por terras em parceria, por terras em por concessionários(as) ou assentados(as)
comodato, ou por terras ocupadas. aguardando titulação definitiva da terra; 4,5%,
por ocupantes; 3,4% por parceiros(as); e 2,6%
por arrendatários(as), conforme dados contidos
17 Segundo IBGE (2019a, p.16), produtor é: “[...] a pessoa física, na Tabela 4.
independentemente do sexo, ou a pessoa jurídica responsável
pelas decisões na utilização dos recursos, e que exerce o controle
administrativo das operações que envolvem a exploração do
estabelecimento agropecuário. O produtor tem a responsabilidade 18 Sobre definições operacionais das categorias produtor individual,
econômica ou técnica da exploração e pode exercer todas as condomínio, consórcio ou sociedade de pessoas, ver IBGE (2019a).
funções direta ou indiretamente, por meio de um administrador Especificamente sobre a categoria condomínio, consórcio ou
(no caso do produtor ser uma pessoa jurídica). Não se deve sociedade de pessoas, esta refere-se à condição de uma união de
confundir o produtor com o proprietário das terras”. (Grifo nosso). pessoas, como: casal, pais e filhos(as), amigos(as) etc. (IBGE, 2019a).
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 71-91, agosto, 2020
98
Agricultura familiar no Piauí: Uma leitura do Censo Agropecuário 2017
Tabela 4 – Condição do(a) produtor(a) em relação à terra, segundo o número de estabelecimentos de Agri-
cultura Familiar e respectiva área, no estado do Piauí (2017)
Estabelecimentos Área
Condição legal do(a) produtor(a)
N % Hectares %
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 71-91, agosto, 2020
99
Maria Dione Carvalho de Morais, Alyne Maria Barbosa de Sousa e Clarissa Flávia Santos Araújo
pecto, os dados indicam que as principais formas formas: por meio de posse (9.205 estabeleci-
são herança ou doação (49,3% destes estabeleci- mentos), por titulação ou licença de ocupação
mentos de agricultura familiar) e compra de par- por reforma agrária (8.806 estabelecimentos),
ticular (37,9% dos estabelecimentos). Essas duas por compra via crédito fundiário (6.768 estabe-
formas de acesso à terra correspondem a 134.360 lecimentos), por concessão de direito real de uso
estabelecimentos (87,2%), conforme a Tabela 5. (4.318 estabelecimentos), por usucapião (2.238
estabelecimentos), por titulação de comunidade
Tabela 5 – Forma de obtenção das terras do(a) quilombola (542 estabelecimentos) e por con-
produtor(a) (nas condições de cessão de terra indígena (33 estabelecimentos).
proprietário(a), concessionário(a) ou Essa caracterização quanto às formas priori-
assentado(a) aguardando titulação de- tárias de obtenção da terra indica a herança pa-
finitiva), segundo o número de estabe- trimonialista que permeia a estrutura agrária bra-
lecimentos de Agricultura Familiar, no sileira e, em particular, a piauiense, desde a Lei
estado do Piauí (2017) de Terras de 1850, bem como as limitações da
política de reforma agrária implementada no Es-
Estabelecimentos (*)
Forma de obtenção das terras
tado, o que implica no menor acesso ao título de
N % propriedade da terra por parte de quem a ocupa
(OLIVEIRA, 2014). Ademais, a reduzidíssima
Herança ou doação 75.966 49,3 participação de territórios indígenas e quilom-
Compra de particular 58.394 37,9
bolas aponta para os desafios do reconhecimento
desses povos e seus territórios sociais no Piauí.
Posse não titulada 9.205 6,0 No tocante à utilização das terras pela agri-
Titulação ou licença de ocupação por
cultura familiar no Piauí, a partir da análise da
5,7
reforma agrária
8.806
Tabela 6, vê-se que é expressiva a ocupação
da área com lavouras e pastagens. As lavouras
Compra via crédito fundiário 6.768 4,4
ocupam 11% da área, sendo que 83,4% desta
Concessão de direito real de uso 4.318 2,8 parcela correspondem a lavouras temporárias e
16,3% a lavouras permanentes. Entre as pasta-
Usucapião 2.238 1,5 gens, predominam as naturais e, dentre as ma-
tas, prevalecem aquelas destinadas à preserva-
Titulação de comunidade quilombola 542 0,4
ção permanente ou a área de reserva legal.
Concessão de terra indígena 33 0,1 Vale destacar que os dados indicam que um
total de 179.788 estabelecimentos de agricultu-
Não sabe informar 1.201 0,8
ra familiar (91,1%) dispõem de área não ocupa-
Fonte: Elaborada pelas autoras, com base em IBGE (2019a). da por lavoura, pastagens, matas e/ou florestas,
Nota: (*) foi registrada mais de uma forma de obtenção das terras
por estabelecimento.
que corresponde à área ocupada por lâminas
d’água, tanques, lagos, açudes, área de águas
Em menor proporção, proprietários(as) de- públicas para aquicultura, de construções, ben-
clararam que obtiveram suas terras por outras feitorias ou caminhos, de terras degradadas e de
terras inaproveitáveis.
Tabela 6 – Utilização das terras, segundo número de estabelecimentos de Agricultura Familiar e respectiva
área, no estado do Piauí (2017)
Estabelecimentos Área
Utilização de terras
N % Hectares %
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 71-91, agosto, 2020
100
Agricultura familiar no Piauí: Uma leitura do Censo Agropecuário 2017
Área não ocupada com lavouras, pastagens, matas e/ou florestas 179.788 91,1 232.142 6,0
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 71-91, agosto, 2020
101
Maria Dione Carvalho de Morais, Alyne Maria Barbosa de Sousa e Clarissa Flávia Santos Araújo
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 71-91, agosto, 2020
102
Agricultura familiar no Piauí: Uma leitura do Censo Agropecuário 2017
Tabela 8 – Tipo de lavoura temporária, área colhida, produção e venda, segundo o número de estabeleci-
mentos de Agricultura Familiar, no estado do Piauí (2017)
Produção Venda
Estabelecimentos* Área colhida
Tipo de lavoura
(N) (Hectares)
Toneladas R$ 1.000 Toneladas R$ 1.000
Vale lembrar que o cultivo de soja, juntamen- O milho em grão configura-se como a segun-
te com cana-de-açúcar e algodão são encontra- da lavoura mais cultivada, estando presente em
dos em menor proporção nas áreas de agricul- 109.996 estabelecimentos de agricultura familiar
tura familiar, pois tais lavouras são destinadas e correspondendo ao item de maior volume de
particularmente ao mercado de commodities.24 produção do ano de 2017, equivalente a 74.079
Sem dúvida, os maiores cultivos destes produtos toneladas. Destas, 7.795 toneladas foram vendi-
concentram-se nas áreas ocupadas pelo agrone- das, o que corresponde, em termos monetários, a
gócio. Por outro lado, cumpre destacar os dados R$ 4,3 milhões. No entanto, a maior parte da área
do feijão, cuja produção no Estado ocorre em colhida de milho, por conseguinte, os maiores
82,2% dos estabelecimentos de agricultura fa- volumes de produção, encontram-se nas áreas do
miliar, com 77,3% da área plantada desse produ- agronegócio no Estado do Piauí (IBGE, 2019c).
to e 64,3% do total da produção (IBGE, 2019c). No ano de 2017, a área colhida de milho em grão
Dentre estas lavouras, o feijão fradinho é a nas áreas desta agricultura correspondeu a 70,6%
mais cultivada, ou seja, em 147.276 unidades do total da área colhida dos estabelecimentos
(74,7% do total de estabelecimentos de agri- agropecuários e a quantidade produzida desse
cultura familiar). Em 2017, a área colhida deste mesmo tipo de agricultura representou 94,7% de
produto correspondeu a um total de 114.725 ha todo o volume produzido dessa cultura no Estado.
e resultou em 25.215 toneladas, porém, somente A produção de arroz também se mostra ex-
11,3% dessa quantidade produzida foram vendi- pressiva nos estabelecimentos de agricultura fa-
dos. Outros tipos de feijão, como o verde e de miliar, uma vez que em 2017 foram produzidas
cor, complementam a significância desse produto mais de 25.012 toneladas, em 31.504 estabele-
na agricultura familiar e na economia piauiense. cimentos; isto é, em 16% do total de estabele-
cimentos. Em contrapartida, somente 3,9% da
24 A propósito, o Piauí possui significativa área de cerrados quantidade produzida direcionaram-se à comer-
incorporada pela produção agropecuária do complexo carnes/ cialização, uma vez que essa cultura se destina
grãos e que compõe o Programa Matopiba, juntamente com os prioritariamente ao consumo das famílias.
estados da Bahia, do Maranhão e do Tocantins.
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 71-91, agosto, 2020
103
Maria Dione Carvalho de Morais, Alyne Maria Barbosa de Sousa e Clarissa Flávia Santos Araújo
A mandioca,25 umas das culturas mais tradicio- utilizaram agrotóxicos na produção, durante o
nais da agricultura familiar piauiense, destaca-se ano de 2017, o que corresponde a 24,1% dos
tanto em termos de quantidade produzida, quanto estabelecimentos. Por outro lado, apenas 2.458
vendida. Do total produzido no conjunto de esta- desses estabelecimentos (5,2%) receberam as-
belecimentos agropecuários no Estado (incluindo sistência técnica para fazer uso desses produtos
familiares e não familiares), a agricultura familiar (IBGE, 2019a). Além do mais, quando olhamos
foi responsável por 86,4% do volume total produ- para o percentual de estabelecimentos que fazem
zido dessa cultura. Em 2017, foram colhidas mais uso de agricultura orgânica ou pecuária orgânica,
de 48.093 toneladas dessa raiz, sendo que desse esse número ainda é muito baixo, apenas 24,1%.
total, 45% destinaram-se para os mercados, o que
gerou um valor de R$ 11,7 milhões, correspon- 4.4.2 Produção animal
dendo a mais de 41,3% do valor total gerado pela
comercialização dos produtos agrícolas. De acordo com o IBGE (2019a), a produção
Dos 197.246 estabelecimentos agrope- animal compreende a produção de animais de
cuários que praticam a agricultura familiar grande porte, animais de médio porte, pequenos
no Estado do Piauí, 47.481 declararam que animais,26 bem como aves e pescado.
Tabela 9 – Tipo de rebanho e total de cabeças, segundo o número de estabelecimentos de Agricultura Fami-
liar, no estado do Piauí (2017)
Na agricultura familiar piauiense, destacam- ção de aves é a mais expressiva (IBGE, 2019a).
-se a produção de aves galináceas domésticas Vale mencionar que a maior produção de aves
(galinhas, galos, frangos, frangas e pintos), capri- do Piauí é realizada pela agricultura familiar, ou
nos e ovinos (Tabela 9). Neste conjunto, a cria- seja, 81,7% do percentual total de estabelecimen-
tos agropecuários e, embora esta produção seja a
25 Vale lembrar que no Nordeste, incluindo o Piauí, sob este rótulo, há maior em termos de número de cabeças, sua maior
duas variedades consideradas na agricultura familiar: a mandioca, parte é destinada primordialmente para abasteci-
propriamente dita, e a macaxeira. A primeira é também conhecida mento das famílias, pois somente 8,3% do total
por “mandioca brava” ou “amarga”, Brasil afora, decorrente da
maior presença de ácido cianídrico que, na mandioca mansa, é
de cabeças foram comercializados, o que gerou
menor. Ambas se destinam, prioritariamente, ao consumo humano. 14,8% do valor da atividade (IBGE, 2019c).
A brava precisa passar por um processo agroindustrial de cozimento
e torrefação, para o fabrico de farinha, goma (ou tapioca) e puba,
quando então perde a toxidade; a mansa requer somente o cozimento
ou fritura comuns para perder a toxidade. O ciclo de produção de 26 Consideram-se animais de grande porte: bovinos, bubalinos, equinos,
ambas é o mesmo, embora, em geral, cultivadas em terrenos distintos: asininos e muares; animais de médio porte compreendem suínos,
a mandioca, em maior quantidade, na roça, enquanto a macaxeira, em caprinos e ovinos e os de pequeno porte abrangem coelhos, da apicultura,
menor quantidade, geralmente, no quintal (MORAES, 2000). da sericicultura, da ranicultura e da aquicultura (IBGE, 2019a).
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 71-91, agosto, 2020
104
Agricultura familiar no Piauí: Uma leitura do Censo Agropecuário 2017
A produção de caprinos ocupa o segundo lu- Assim, são encontrados na maioria dos estabe-
gar na produção animal da agricultura familiar lecimentos e representam valor significativo na
no Piauí, em termos de representatividade nos produção27 destes estabelecimentos, como pode
estabelecimentos dos quais 44,8% praticam a ser observado na Tabela 10.
atividade, de acordo com a Tabela 9. Importante Animais de médio porte como caprinos,
destacar que a agricultura familiar é responsável ovinos e suínos, são direcionados tanto para
por 82,1% da produção de caprinos do estado do o autoconsumo como para a comercialização,
Piauí (incluindo produtores(as) familiares e não contribuindo para a composição da renda mo-
familiares), tendo comercializado 75,9% do total netária familiar. Por seu turno, bovinos são en-
de animais, por conseguinte, gerando 74% de toda contrados em menor quantidade, mas represen-
a receita, na atividade, no Estado (IBGE, 2019c). tam o maior valor e constituem um patrimônio
Aves e animais de médio porte assumem familiar, um fundo de poupança para situações
papel importante na segurança alimentar das difíceis ou comemorativas e cerimoniais, como
famílias, além de serem considerados de fácil retrata, dentre outros, Wolf (1976), na literatura
manejo, exigindo menores custos e cuidados. socioantropológica sobre campesinato.
Tabela 10 – Produção animal e valor, segundo o número de estabelecimentos de Agricultura Familiar, no estado
do Piauí (2017)
Os dados do IBGE (2019a) indicam que, em ram ovos de galinha, somente 20.326 comercia-
relação aos produtos de origem animal, na agri- lizaram o produto, ou seja, 15,1%, totalizando
cultura familiar, o Piauí registrou uma produ- 1,6 milhão de dúzias de ovos para venda, o que
ção anual, em 2017, de 70,3 milhões de litros representou R$ 9,4 milhões em termos mone-
de leite de vaca, 756 mil litros de leite de ca- tários. Com relação à produção de leite, predo-
bra, 9,7 milhões de dúzias de ovos de galinha mina a criação de vacas nos estabelecimentos
e 2 toneladas de lã de ovelha. Nesse sentido, de agricultura familiar (encontraram-se 70.233
considerando a totalidade dos estabelecimentos vacas ordenhadas em 21.441 estabelecimen-
agropecuários no Piauí, destacamos que 72,2% tos) e em menor proporção, a criação de cabras
da produção total do leite de vaca e 88,8% da (1.166 unidades agropecuárias possuem um to-
quantidade produzida de leite de cabra foram tal de 7.198 cabras ordenhas). Do total produzi-
produzidos pela agricultura familiar no Estado. do, 28% do leite de vaca foram comercializados
Prioritariamente, segundo o Censo Agrope- (19,6 milhões de litros) e apenas 2,2% do leite
cuário de 2017 sobre agricultura familiar, esses de cabra (16 mil litros). Em termos monetários,
produtos são destinados para o consumo das fa-
mílias, sendo que apenas a produção de lã de 27 Segundo o IBGE (2019), o valor total da produção animal,
entre 01/10/2016 e 30/09/2017, foi obtido da soma dos valores
ovelha, em sua totalidade, foi destinada à ven-
da produção de animais de grande porte, animais de médio porte,
da. Dos 134.309 estabelecimentos que produzi- pequenos animais, bem como aves e pescado no período.
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 71-91, agosto, 2020
105
Maria Dione Carvalho de Morais, Alyne Maria Barbosa de Sousa e Clarissa Flávia Santos Araújo
a venda de leite de vaca gerou R$ 37,2 milhões e de ter contribuído para incentivo e estímulo
e do leite de cabra, R$ 46 mil. ao desenvolvimento da produção familiar do
A prática da aquicultura foi identificada em País, o acesso ao Programa, no Estado, ainda
1.682 estabelecimentos de agricultura familiar, apresenta limites. Assim informa o relatório
no Piauí, com criação de peixes em 1.024 es- do Fórum dos Gestores e Gestoras da Agricul-
tabelecimentos e de camarão em apenas 12 es- tura Familiar no Nordeste, segundo o qual, em
tabelecimentos. Em termos de comercialização, 2018, por exemplo, foram realizadas, no Esta-
a quantidade vendida de peixes totalizou apro- do do Piauí, 74.112 operações de Pronaf, com
ximadamente 1.194 toneladas, representando um total de R$ 342.743.531,62, sendo a qua-
mais de R$ 10 milhões; sendo a tilápia, o curi- se totalidade (99,97%) dos recursos contratada
matã e o piau, as três espécies mais produzidas, através de bancos públicos. Deste total, mais de
respectivamente. A criação de camarões ocor- 79% foram operados pelo Banco do Nordeste,
reu em menor proporção: os 12 estabelecimen- apontando a grande dependência deste agente
tos produtores venderam 2,5 toneladas, o que financeiro, de modo que quase 72% dos recur-
correspondeu a R$ 25 mil. sos operados têm origem no microcrédito, en-
quanto nos quase 21% dos recursos operados
pelo Banco do Brasil, apenas 0,25% originam-
4.5 Acesso a crédito e financiamento
-se deste subprograma. Com ticket médio de R$
Com relação ao número de estabelecimentos 4.787,51 (menor que o da região Nordeste, de
agropecuários familiares que obtiveram finan- R$ 5.188,14), o número total de Declarações
ciamento, chamamos atenção para o reduzido de Aptidão ao Pronaf (DAP), em dezembro de
número de unidades familiares que tiveram 2018, era de 245.678, ou seja, menos de 26%
acesso a esse tipo de recurso, somente 27.955 das famílias, público potencial do Programa,
unidades, ou seja, 14,2% do total de estabele- conseguiram acessar as linhas de crédito dispo-
cimentos de agricultura familiar. Vale destacar níveis (FÓRUM, 2019).
que, desse total, 15.159 unidades não acessaram
nenhum tipo de programa de crédito, obtendo
financiamento de outras fontes. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Especificamente, no que se refere aos pro-
Apresentamos um diagnóstico da agricultu-
gramas governamentais, apenas 12.118 estabe-
ra familiar, no Estado do Piauí, a partir de uma
lecimentos (6,1% do total de estabelecimentos
leitura possível, circunstanciada e não exaus-
de agricultura familiar) acessaram linhas de cré-
tiva, dos dados do Censo Agropecuário 2017.
dito, descriminados, a seguir: Programa Nacio-
Constatamos tanto as inegáveis importância e
nal de Fortalecimento da Agricultura Familiar
necessidade desses dados sobre esta agricultu-
(Pronaf), atendendo a 8.897 unidades (73,4%);
ra, quanto suas possibilidades e limites.
Programa Nacional de Apoio ao Médio Produ-
tor Rural (Pronamp), alcançando 139 unidades No que tange às possibilidades, temos a pró-
(1,1%); Programa Fomento, atingindo 69 uni- pria tradução de aspectos da agricultura fami-
dades (0,6%); Crédito Instalação do Programa liar, através de indicadores estatísticos, dando
Nacional de Reforma Agrária (PNRA), contan- continuidade ao registro censitário iniciado em
do 65 unidades (0,5%), Programa de Apoio a 2006 – embora com algumas mudanças na abor-
Projetos de Infraestrutura e Serviços nos Ter- dagem, o que dificulta certas comparações. Tais
ritórios Rurais (Proinf), abarcando 48 unida- dados, sobretudo no tocante à produção agro-
des (0,4%); Programa Terra Forte e Terra Sol, pecuária, à área ocupada, à relação com a terra,
abrangendo seis unidades e a categoria Outro ao pessoal envolvido, por gênero e faixa etária,
Programa (Federal, Estadual e Municipal) en- a produtos e receita, dentre outros elementos
volvendo 3.083 unidades (25,4%). correlatos, contribuem para o reconhecimento
desta agricultura e do seu papel no Piauí, lan-
Entretanto, apesar de o Pronaf configurar-
çando luzes sobre realidades não só desse Esta-
-se como o principal programa de crédito
do, como também da região Nordeste e do País.
acessado pelos(as) agricultores(as) no Piauí,
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 71-91, agosto, 2020
106
Agricultura familiar no Piauí: Uma leitura do Censo Agropecuário 2017
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 71-91, agosto, 2020
107
Maria Dione Carvalho de Morais, Alyne Maria Barbosa de Sousa e Clarissa Flávia Santos Araújo
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 71-91, agosto, 2020
108
Agricultura familiar no Piauí: Uma leitura do Censo Agropecuário 2017
FURLAN, V. I. O estudo dos textos teóricos. In: ______. Censo Agropecuário 2017: release dos
CARVALHO, M. C. C. Construindo o saber: resultados definitivos do Censo Agropecuário
metodologia científica, fundamentos e técnicas. 2017 - Piauí. 2019c. Documento disponibilizado
Campinas: Papiros, 1987. p. 119-128. para as autoras por meio digital pelo IBGE Piauí.
Teresina: IBGE, 2019.
GARCIA, E. Pesquisa bibliográfica versus
revisão bibliográfica: uma discussão necessária. ______. Censo Agropecuário 2017: resultados
Revista Línguas e Letras, Cascavel, v. 17, n. 35, definitivos. Rio de Janeiro, v. 8, p. 1-105, 2019d.
p. 291-294, 2016. Disponível em: http://e-revista. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.
unioeste.br/index.php/linguaseletras/article/ br/visualizacao/periodicos/3096/agro_2017_
view/13193. Acesso em: 06 abr. 2020. resultados_definitivos.pdf. Acesso em: 06 abr.
2020.
GODÓI, E. P. de. O trabalho da memória:
cotidiano e história no sertão do Piauí. Campinas: ______. Censo Demográfico 2010. Disponível
Editora da Unicamp, 1999. em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/
populacao/9662-censo-demografico-2010.
GUANZIROLI, C. E.; SABBATO, A. di; VIDAL, html?edicao=9754&t=resultados. Acesso: 01 fev.
M. de F. Evolução da agricultura familiar 2020.
nordestina: uma análise comparativa entre os
dois censos agropecuários. Revista Econômica KAGEYAMA, A. A.; BERGAMASCO, S. M.
do Nordeste, Fortaleza, v. 45, p. 80-91, 2014. P. P.; OLIVEIRA, J. T. A. de. Uma tipologia
Suplemento Especial. dos estabelecimentos agropecuários do Brasil a
partir do Censo de 2006. Revista de Economia e
HOFFMANN, R. A agricultura familiar Sociologia Rural, Brasília, v. 1, n. 51, p. 105-
produz 70% dos alimentos consumidos no 122, 2013.
Brasil? Segurança Alimentar e Nutricional,
Campinas, v. 21, n. 1, p. 417-421, 2014. LAMARCHE, H. Introdução geral. In: A
Disponível em: https://www.researchgate.net/ agricultura familiar. Campinas: Editora da
publication/322704930_ A_agricultura_ familiar_ Unicamp, 1993. p. 13-33.
produz_70_dos_alimentos_consumidos_no_
Brasil. Acesso em: 06 abr. 2020.
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 71-91, agosto, 2020
109
Maria Dione Carvalho de Morais, Alyne Maria Barbosa de Sousa e Clarissa Flávia Santos Araújo
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 71-91, agosto, 2020
110
Agricultura familiar no Piauí: Uma leitura do Censo Agropecuário 2017
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 71-91, agosto, 2020
111
112
Agricultura familiar no Rio Grande do Norte segundo o Censo Agropecuário 2017: Perfil e desafios para o desenvolvimento rural
Family farming in Rio Grande do Norte according to the 2017 agricultural census:
profile and challenges for rural development
Joacir Rufino de Aquino
Economista. Mestre em Economia Rural e Regional pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Professor Adjunto
IV do Curso de Economia da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN/Campus de Assú). Campus Avançado
Prefeito Walter de Sá Leitão. Rua Sinhazinha Wanderley, 871, Centro. CEP: 59650-000 - Assú, RN. joaciraquino@yahoo.com.br
Resumo: O objetivo deste artigo é traçar um perfil so- Abstract: The aim of this article is to outline an upda-
cioeconômico atualizado da agricultura familiar no Rio ted socioeconomic profile of family farming and dis-
Grande do Norte (RN) e discutir seus desafios futuros. cuss their future challenges. For this purpose, it uses
Para tanto, utilizam-se dados do Censo Agropecuário data from the 2017 Agricultural Census conducted by
2017 realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Brazilian Institute of Geography and Statistics - IBGE.
Estatística (IBGE). Em linhas gerais, o trabalho mostra In general, the paper show that family farming stands
que a agricultura familiar se destaca no campo potiguar out in the countryside of Rio Grande do Norte in the
na produção de alimentos e na geração de ocupações production of food and in the generation of producti-
produtivas para centenas de pessoas. No entanto, o seg- ve occupations for hundreds of people. However, the
mento é entravado pela escassez de ativos produtivos segment is stucked by the scarcity of productive assets
que atinge a maioria dos estabelecimentos, passando a that affect most establishments, which now depend on
depender de rendas externas para garantir sua manuten- external income to guarantee their maintenance. Over-
ção. A superação desses e outros problemas exige uma coming these and other problems requires a broad rural
estratégia ampla de desenvolvimento rural focada no development strategy focused on addressing the vulne-
enfrentamento das vulnerabilidades da agricultura fa- rabilities of state family farming and encouraging its
miliar estadual e no incentivo das suas potencialidades. potential.
Palavras-chave: Agricultura Familiar; Desenvolvi- Keywords: Family Farming; Rural Development; Rio
mento Rural; Rio Grande do Norte. Grande do Norte.
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 113-131, agosto, 2020
113
Joacir Rufino de Aquino, Roberto Marinho Alves da Silva, Emanoel Márcio Nunes, Fernando Bastos Costa e Willy Farias Albuquerque
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 113-131, agosto, 2020
114
Agricultura familiar no Rio Grande do Norte segundo o Censo Agropecuário 2017: Perfil e desafios para o desenvolvimento rural
Figura 1 – Localização geográfica e área de abrangência do Semiárido no Rio Grande do Norte - 2017
Leste
Potiguar
Oeste
Potiguar
Natal
Central
Potiguar
Agreste
Potiguar
Neste espaço particular, onde vivem 1,7 milhão piora das condições de vida da população sertaneja.
de pessoas, sendo 549 mil em áreas rurais (IBGE, Soma-se a isto a degradação ambiental decorrente
2010), as estiagens prolongadas influenciam di- do manejo inadequado do solo e da vegetação de
retamente no desenvolvimento socioeconômico, caatinga, além da exploração excessiva dos recur-
com a desestruturação dos sistemas produtivos de sos naturais e da poluição de mananciais hídricos.5
sequeiro, repercutindo em perdas financeiras e na 5 A Pesquisa de Informações Básicas Municipais de 2017 (IBGE,
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 113-131, agosto, 2020
115
Joacir Rufino de Aquino, Roberto Marinho Alves da Silva, Emanoel Márcio Nunes, Fernando Bastos Costa e Willy Farias Albuquerque
Tabela 1 – Número, área e pessoal ocupado nos estabelecimentos rurais do Rio Grande do Norte (2017)
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 113-131, agosto, 2020
116
Agricultura familiar no Rio Grande do Norte segundo o Censo Agropecuário 2017: Perfil e desafios para o desenvolvimento rural
Tabela 2 – Número e área dos estabelecimentos Gráfico 1 – Condição dos agricultores familiares
familiares do Rio Grande do Norte por do Rio Grande do Norte em relação à
grupos de área total (2017) propriedade da terra, 2017 (Em %)
80
72,5
Estabelecimentos Área 70
Grupos de área
60
(Em ha)
Número % Número % 50
40
Menos que 1 3.087 6,1 1.784 0,2 30
20 14,9
De 1 a 5 14.569 28,7 35.496 3,8 10
2,0 3,5 4,7
1,4 0,8
0
Proprietário(a)
Arrendatário(a)
Parceiro(a)
Comandatário(a)
Ocupante
Outros (*)
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 113-131, agosto, 2020
117
Joacir Rufino de Aquino, Roberto Marinho Alves da Silva, Emanoel Márcio Nunes, Fernando Bastos Costa e Willy Farias Albuquerque
suas atividades produtivas de forma extrema- Tais dados sinalizam os limites de suces-
mente precária. Desse modo, se for levado em são rural na agricultura familiar, cada vez mais
conta que uma parcela dos “proprietários” re- envelhecida com a migração da juventude ru-
censeados não tem o título formal da proprieda- ral para os centros urbanos por falta de opor-
de, tudo indica que há um amplo campo para a tunidades de trabalho e obtenção de renda no
atuação de políticas governamentais de reforma campo, das dificuldades de acesso aos serviços
agrária e regularização fundiária. Ao lado desse públicos essenciais e de infraestrutura. Além
desafio, outros vêm à tona quando se analisa o dos riscos de redução da produção de alimen-
perfil dos responsáveis pela condução das ex- tos básicos no Estado, conforme será demons-
plorações familiares norte-rio-grandenses. trado neste artigo, trata-se de um processo de
perda cultural, de desperdício de conhecimen-
tos e habilidades que foram experimentadas e
3 PERFIL DOS RESPONSÁVEIS PELOS desenvolvidas historicamente por gerações de
ESTABELECIMENTOS FAMILIARES produtores rurais.
Ainda na tabela em foco, chama atenção a
Em sintonia com o argumento esboçado no
precariedade do quadro educacional dos agri-
final da seção anterior, a Tabela 3 evidencia
cultores familiares potiguares. Isso porque
que 83,4% das pequenas propriedades familia-
55,6% dos chefes dos estabelecimentos decla-
res do RN são chefiadas por homens e 16,6%
rou aos recenseadores do IBGE que eram alfa-
por mulheres. A maioria dos responsáveis pelos
betizados e 44,4% declararam que não sabiam
estabelecimentos (51,1%), tanto homens quan-
ler ou escrever ao menos um bilhete.
to mulheres, tem idade avançada acima de 55
anos de vida. Enquanto isso, as faixas de agri- Com efeito, a precariedade do quadro edu-
cultores jovens, até 25 anos e de 25 até 35 anos, cacional dos agricultores familiares pesquisa-
é inferior a 10% do total. dos torna-se mais evidente quando se analisam
os seus níveis de escolarização formal. Nesse
Tabela 3 – Perfil dos chefes dos estabelecimen- sentido, a Tabela 4, a seguir, revela que 22%
tos familiares do Rio Grande do Norte dos chefes dos estabelecimentos nunca frequen-
(2017) taram a escola ou cursaram apenas até o “an-
tigo primário” (42,4%), podendo ser incluídos
Variável
Categorias de
Número % na categoria de analfabetos funcionais. Outra
estratificação
parcela conseguiu pelo menos concluir o ensino
Homem 42.285 83,4 fundamental, mas o número de produtores com
Sexo formação igual ou acima do ensino médio é ex-
Mulher 8.395 16,6 tremamente reduzido.
Menor de 25 anos 680 1,3 A situação revelada pelo Censo Agropecu-
ário 2017 é especialmente preocupante e si-
De 25 a menos de 35 anos 3.989 7,9 naliza uma herança de exploração e exclusão
da população do campo que, em pleno século
De 35 a menos de 45 anos 8.265 16,3
XXI, não conseguiu ainda ter acesso a direi-
Classe de idade De 45 a menos de 55 anos 11.839 23,4 tos básicos de cidadania, como a educação,
com reflexos negativos múltiplos e comple-
De 55 a menos de 65 anos 11.866 23,4
xos: além de limitar o exercício da cidadania,
De 65 a menos de 75 anos 9.244 18,2
impacta diretamente na produção, pois am-
plia a dificuldade dos agricultores de identi-
De 75 anos e mais 4.797 9,5 ficar e absorver novas técnicas para melho-
rar seus sistemas produtivos e a convivência
Sabe ler e escrever 28.193 55,6
Escolaridade
com o ambiente natural onde vivem.
Não sabe ler e escrever 22.487 44,4
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 113-131, agosto, 2020
118
Agricultura familiar no Rio Grande do Norte segundo o Censo Agropecuário 2017: Perfil e desafios para o desenvolvimento rural
Tabela 4 – Nível de escolaridade formal dos che- (2013), uma estrutura cooperativa insuficiente
fes dos estabelecimentos familiares do acaba por afastar e reduzir a ação da assistência
Rio Grande do Norte (2017) técnica e extensão rural (ATER) e as possibili-
dades de inovação tecnológica e de acesso aos
Escolaridade Número %
mercados. Daí resulta um “círculo vicioso” que
Nunca frequentou escola 11.161 22,0
necessita ser superado, haja vista que sem uma
organização coletiva forte e de caráter econô-
Classe de alfabetização - CA 12.915 25,5 mico, a tendência é a agricultura familiar local
se manter pobre, com sua estrutura de produção
Alfabetização de jovens e adultos - AJA 1.491 2,9
precária e com baixa produtividade.
Antigo primário (elementar) 7.092 14,0
Gráfico 2 – Participação dos chefes dos estabe-
Antigo ginasial (médio 1º ciclo) 2.434 4,8 lecimentos familiares do Rio Grande
Regular do ensino fundamental ou 1º grau 9.015 17,8
do Norte em entidades de classe, 2017
(Em %)
EJA e supletivo do ensino fundamental ou do 50
170 0,3 45,9
1º grau 45
40
Antigo científico, clássico, etc. (médio 2º 35
29,4
138 0,3 30
ciclo)
25
20
Regular de ensino médio ou 2º grau 5.056 10,0 14,0
15
10 8,9
Técnico de ensino médio ou do 2º grau 309 0,6 5 1,8
0
Cooperativa Entidade Associação/ Associação Não é
EJA e supletivo do ensino médio ou do 2º grau 76 0,1 de classe mov. de de associado
/sindicato produtores moradores
Superior - graduação 801 1,6 Fonte: Censo Agropecuário 2017 (IBGE/SIDRA, 2019).
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 113-131, agosto, 2020
119
Joacir Rufino de Aquino, Roberto Marinho Alves da Silva, Emanoel Márcio Nunes, Fernando Bastos Costa e Willy Farias Albuquerque
Utiliza agrotóxico
Tem cisternas
Tem poços
Utiliza irrigação
Tem tratores
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 113-131, agosto, 2020
120
Agricultura familiar no Rio Grande do Norte segundo o Censo Agropecuário 2017: Perfil e desafios para o desenvolvimento rural
quisa, ignorando alternativas para as limitações No entanto, a categoria sofre com a escassez
estruturais da agricultura familiar, principal- de recursos fundiários, o que obriga os produtores
mente onde os parcos ativos fundiários e recur- a usarem intensivamente seus recursos naturais e,
sos naturais exigem soluções mais criativas. em alguns casos, utilizarem produtos químicos
para proteger suas lavouras. Mesmo assim, tra-
Tabela 5 – Recebimento de assistência técnica e balhando de forma predominantemente manual,
acesso a crédito rural pelos chefes dos sem receber assistência técnica, com pouco aces-
estabelecimentos familiares do Rio so a crédito e tendo que enfrentar uma grave seca,
Grande do Norte, 2017 (Em %) os agricultores familiares potiguares mantêm o
seu papel na produção de alimentos, embora exis-
Variáveis %
ta uma marcante desigualdade interna entre eles.
Recebe assistência técnica 14,0
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 113-131, agosto, 2020
121
Joacir Rufino de Aquino, Roberto Marinho Alves da Silva, Emanoel Márcio Nunes, Fernando Bastos Costa e Willy Farias Albuquerque
mente vai perder força com a volta das chuvas Note-se que o segmento familiar potiguar
“normais” em 2018-2019. No caso da agricultu- também desenvolve lavouras comerciais de
ra familiar, 98,4% dos entrevistados declararam maior valor agregado. No entanto, a sua pre-
que estavam cultivando lavouras e criando ani- sença é pouco expressiva, com exceção do
mais em suas pequenas propriedades, embora caju (castanha) em que a categoria responde
em quantidades limitadas devido aos sucessivos por 68,1% do total produzido. Afora essa ati-
anos de seca. vidade, que tem como principal centro produ-
tor o município de Serra do Mel, a produção
Tabela 6 – Estabelecimentos familiares e não fa- de cana-de-açúcar e de frutas irrigadas (ba-
miliares do Rio Grande do Norte com e nana, manga, melancia e melão) é fortemente
sem produção agropecuária (2017) concentrada nas médias e grandes fazendas do
segmento patronal, com pouca participação da
Estabeleci- Sem
Tipo de
Com
% % agricultura familiar (Gráfico 4).
mentos produção produção
agricultor (B/A) (C/A)
(A) (B) (C) É válido registrar que os cálculos dos per-
centuais apresentados, referentes às “participa-
Familiar 50.680 49.893 98,4 787 1,6
ções relativas” de cada tipo de agricultor, fo-
Não ram realizados considerando-se as quantidades
12.772 12.427 97,3 345 2,7
familiar produzidas. Dessa forma, a predominância do
segmento familiar na produção de alimentos
Total 63.452 62.320 98,2 1.132 1,8
básicos não significa que o setor seja o prin-
Fonte: Censo Agropecuário 2017 (IBGE/SIDRA, 2019). cipal responsável pelo abastecimento da popu-
lação do RN. Por exemplo, não é correto afir-
Quanto à participação relativa da agricultura mar que mais de 70% do arroz, do feijão ou do
familiar nas principais lavouras desenvolvidas milho consumidos pelos potiguares vieram da
no campo norte-rio-grandense, observa-se que sua agricultura familiar em 2017. Até porque,
o segmento se destaca principalmente na pro- como evidencia o Gráfico 5, a produção des-
dução de alimentos básicos. Em 2017, confor- ses alimentos caiu significativamente durante
me o Gráfico 4, os agricultores familiares lo- a grande seca, sendo a oferta local, mesmo nos
cais foram responsáveis pela maior porção do anos “bons” de inverno, completada pela im-
arroz (82,4%), do feijão (78,9%), da mandioca portação de outros estados do País.
(75,5%) e do milho (69,6%) produzidos no ter-
ritório estadual. Gráfico 5 – Evolução da quantidade produzida de
arroz, feijão e milho no Rio Grande do
Gráfico 4 – Participação da agricultura familiar e Norte de 2007 a 2017 (Em toneladas)
não familiar na quantidade de toneladas 60.000
produzidas pelas principais lavouras do
50.000
Rio Grande do Norte, 2017 (Em %)
40.000
100%
17,6
21,1
24,5
90% 30.000
30,4
31,9
80%
20.000
70%
68,8
60% 10.000
98,3
97,7
67,7
86,8
50%
0
40% 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017
30%
20% Arroz (em casca) Feijão (em grão) Milho (em grão)
10%
0% Fonte: PAM/IBGE/SIDRA (2019).
Cana-de-açúcar
Feijão
Banana
Manga
Arroz em casca
Mandioca
Milho em grão
Caju (castanha)
Melancia
Melão
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 113-131, agosto, 2020
122
Agricultura familiar no Rio Grande do Norte segundo o Censo Agropecuário 2017: Perfil e desafios para o desenvolvimento rural
6 que a maioria dos suínos (74,2%) e dos reba- leite de vaca e de cabra produzido nos estabe-
nhos de caprinos (61,8%) e ovinos (60,0%) cria- lecimentos rurais do RN vem da agricultura fa-
dos nos estabelecimentos agropecuários potigua- miliar. Na mesma linha, é digno de nota o fato
res está localizada nos pequenos sítios familiares. de que 77,6% do mel de abelha comercializado
Além do efetivo de pequenos animais, a categoria pelos estabelecimentos potiguares em 2017 teve
ainda detém quase metade (49,4%) do rebanho de origem nas colmeias de apiários pertencentes às
bovinos contabilizado pela pesquisa do IBGE. unidades familiares de produção.
Deslocando o foco da análise para os mon-
Gráfico 6 – Participação da agricultura familiar e tantes de riqueza produzida, contudo, descor-
não familiar nos rebanhos e principais tina-se um cenário de desigualdade bastante
produtos da pecuária do Rio Grande preocupante no campo norte-rio-grandense.
do Norte, 2017 (Em %) Para confirmar essa afirmação, as Tabelas 7 e 8
100% detalham a distribuição entre os diferentes seg-
22,4
90%
mentos de agricultores do Valor Total da Pro-
50,6
38,2
25,8
46,9
46,8
40,0
80%
70% dução (VTP), calculado por meio da conversão
68,6
Tabela 7 – Participação dos agricultores familiares e não familiares no Valor Total da Produção (VTP) da
agropecuária do Rio Grande do Norte (2017)
Tipo de agricultura Estabelecimentos com produção % VTP (R$ 1,00) % VTP Médio (R$ 1,00)
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 113-131, agosto, 2020
123
Joacir Rufino de Aquino, Roberto Marinho Alves da Silva, Emanoel Márcio Nunes, Fernando Bastos Costa e Willy Farias Albuquerque
montante médio anual muito baixo por estabe- Mesmo assim, no cômputo geral, a agrope-
lecimento, inferior a R$ 6 mil. cuária continua sendo uma fonte de receitas ex-
A faixa intermediária da agricultura familiar tremamente relevante, o que revela o potencial e
potiguar agregada no Grupo V do Pronaf (20,8% o importante papel desempenhado pela agricul-
do total), por sua vez, gerou 61,1% do valor de tura familiar do RN na produção de alimentos e
toda a produção da categoria, alcançando a mé- na geração de riquezas para as economias locais.
dia de R$ 43.654,00, em 2017. Já o seleto grupo Deve-se considerar, portanto, a importância das
de produtores familiares não pronafianos (0,1%), políticas públicas voltadas ao fortalecimento da
muito provavelmente originário das cadeias pro- agricultura familiar, desde as iniciativas descen-
dutivas da fruticultura irrigada, produziu 8% do tralizadas de armazenamento e distribuição de
VTP do público analisado e apresentou uma sur- água, além de algumas inovações na gestão de
preendente capacidade média de geração de ri- programas que possibilitaram o acesso ao cré-
queza de mais de R$ 800 mil ao ano. dito, a reestruturação de serviços de assessoria
técnica, o apoio à comercialização, o que, jun-
Tabela 8 – Distribuição do Valor Total da Produ- tamente com a ampliação do acesso ao sistema
ção (VTP) da agricultura familiar do de proteção social, podem ter fortalecido as ca-
Rio Grande do Norte pela classificação pacidades da agricultura familiar de enfrentar a
dos grupos do Pronaf (2017) estiagem prolongada de 2012 a 2017.
Estabele-
VTP
Categorias cimentos VTP
(*) com pro-
%
(R$ 1,00)
% Médio
(R$ 1,00)
6 RECEITAS DOS ESTABELECIMENTOS E
dução
OUTRAS RENDAS DOS AGRICULTORES
Grupo B 39.439 79,0 229.622.000 31,0 5.822 FAMILIARES
Grupo V 10.381 20,8 453.170.000 61,1 43.654 Um dos grandes desafios para os estudiosos
do meio rural, em especial do segmento da agri-
Não
73 0,1 58.987.000 8,0 808.041 cultura familiar, é estabelecer uma metodologia
Pronafiano
capaz de mensurar, com a maior aproximação
Total
Familiar
49.893 100,0 741.779.000 100,0 14.867 possível, a renda gerada nos estabelecimentos
agropecuários. Cabe considerar a existência
Fonte: Censo Agropecuário 2017 (IBGE/SIDRA, 2019). de dois tipos de receitas da propriedade rural:
Nota: (*) Grupo B (pobre) = com renda bruta até R$ 20 mil; Grupo
V (intermediário) = com renda bruta de R$ 20 mil até R$ 360 a gerada pela produção do estabelecimento e a
mil; Não Pronafiano (consolidado) = com renda bruta acima oriunda de fontes externas à propriedade.
de R$ 360 mil.
Da produção, uma parte é contabilizada,
Segundo Aquino e Lacerda (2014) e Aquino aquela destinada à venda que acontece além da
et al. (2017), é possível depreender que o qua- porteira e entra no circuito da comercialização.
dro de desigualdades vigente no rural potiguar A outra parte é muitas vezes vista como “in-
é fruto da persistência de “múltiplas carências visível”, pois não é contabilizada e se mantém
produtivas” (escassez de terra, água, tecnologias, da porteira para dentro, se transformando em
assistência técnica, crédito, entre outros ativos), autoconsumo das famílias e meio importante
que bloqueiam historicamente a capacidade dos para a manutenção das propriedades. As outras
agricultores familiares pobres de gerar renda via receitas são, em sua maioria, oriundas de ativi-
atividades agropecuárias mesmo nos anos de chu- dades não agrícolas e de transferências sociais
vas regulares e, principalmente, nos períodos de do governo, e suas fontes são de fora da unidade
estiagens prolongadas. O Censo Agropecuário familiar de produção (AQUINO; NASCIMEN-
2017 também revela que a maioria dos estabele- TO, 2020; ELLIS, 2000; ESCHER et al., 2014;
cimentos de agricultura familiar no RN, em razão GRISA; SCHNEIDER; CONTERATO, 2014;
de suas “múltiplas carências de ativos”, passa a NUNES et al., 2006; NUNES; SCHNEIDER,
depender de outras fontes de renda para sobrevi- 2012; SILVA, 2010).
ver e garantir a continuidade na atividade.
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 113-131, agosto, 2020
124
Agricultura familiar no Rio Grande do Norte segundo o Censo Agropecuário 2017: Perfil e desafios para o desenvolvimento rural
Feita essa consideração teórica geral e le- sim, mesmo com a baixa participação da venda de
vando-se em conta apenas os produtos e servi- produtos agroindustrializados na composição da
ços comercializados, a Tabela 9 mostra que a receita dos estabelecimentos familiares, convém
receita dos estabelecimentos familiares do RN destacar que este segmento concentra 79% do to-
é gerada, principalmente, pela venda de animais tal das agroindústrias rurais existentes no Estado,
e seus derivados, R$ 381,4 milhões (59,4%), se- embora seja responsável por apenas 36% do va-
guida pela venda de produtos vegetais, R$ 175,5 lor total das vendas dos produtos (IBGE/SIDRA,
milhões (27,3%). Juntas, essas duas fontes de 2019). A Tabela 10 elenca os principais produtos
entradas monetárias representaram 86,7% de de agroindústrias rurais com participação relati-
toda receita no ano de 2017. va da agricultura familiar no RN, considerando a
Tal concentração indica uma baixa diversifi- quantidade produzida, a quantidade vendida e o
cação da agricultura familiar potiguar, uma vez valor obtido com as vendas.8
que os dados censitários revelam, ainda, uma
participação na receita por parte da agroindús- Tabela 10 – Participação percentual (%) da agri-
tria de apenas 8,3% e pouca representatividade cultura familiar na produção agroin-
das entradas monetárias advindas de outras ati- dustrial no Rio Grande do Norte –
vidades não agrícolas no interior dos pequenos 2017
sítios, a exemplo da prestação de serviços de tu-
Produtos selecionados
rismo rural e da confecção e venda de múltiplos das agroindústrias* Produção Venda
Valor de
venda
tipos de artesanato. (em toneladas)
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 113-131, agosto, 2020
125
Joacir Rufino de Aquino, Roberto Marinho Alves da Silva, Emanoel Márcio Nunes, Fernando Bastos Costa e Willy Farias Albuquerque
aos seus produtos com a diversificação de ativi- produtivas e os valores das receitas geradas
dades e aporte tecnológico nas unidades produ- pelos estabelecimentos norte-rio-grandenses,
tivas, embora o atual esforço ainda seja insufi- sugerem uma agricultura familiar em situação
ciente para uma participação mais expressiva na ainda precária. Por um lado, contribui para o
formação da receita desse segmento. Assim, vi- cenário apresentado a concentração nas receitas
sando o fortalecimento deste potencial, é neces- da produção geradas particularmente pela venda
sário ampliar o acesso aos serviços de assessoria de produtos vegetais e animais com baixo valor
técnica, aos investimentos em infraestrutura, em agregado via agroindustrialização. Por outro, a
melhoria dos sistemas de produção e da organi- precariedade é demonstrada por conta da depen-
zação do processo de comercialização. dência expressiva dos recursos de aposentado-
Com relação às outras rendas obtidas fora rias ou pensões e de outras rendas não advindas
dos estabelecimentos, ou seja, aquelas obtidas do trabalho, embora os fatores anteriormente
de atividades não agrícolas e de transferências comentados de perdas na produção agropecuá-
sociais, o Censo Agropecuário do IBGE de ria decorrentes da Grande Seca (2012-2017) e
2017 corrobora o resultado de pesquisas an- o envelhecimento de parcela significativa dos
teriores que destacam o seu papel fundamen- produtores, exerçam influência direta sobre o
tal para a agricultura familiar, especialmente elevado percentual de outras fontes externas na
nos anos de seca (AQUINO; NASCIMENTO, composição da renda dos estabelecimentos da
2015; 2020; GOMES DA SILVA, 2000; OLI- agricultura familiar no RN.
VEIRA, 2017). De fato, a seca de 2012 a 2017
evidenciou sinais de redução da situação de Tabela 11 – Outras fontes de renda dos agricultores
vulnerabilidade social da população sertane- familiares do Rio Grande do Norte (2017)
ja9 decorrente da expansão da rede de proteção
Valor
social com a ampliação do acesso a benefícios Tipo de Renda %
(Mil Reais)
previdenciários rurais, benefícios de prestação
continuada e a transferência de renda no Pro- Recursos de aposentadorias ou pensões 420.051 83,4
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 113-131, agosto, 2020
126
Agricultura familiar no Rio Grande do Norte segundo o Censo Agropecuário 2017: Perfil e desafios para o desenvolvimento rural
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 113-131, agosto, 2020
127
Joacir Rufino de Aquino, Roberto Marinho Alves da Silva, Emanoel Márcio Nunes, Fernando Bastos Costa e Willy Farias Albuquerque
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 113-131, agosto, 2020
128
Agricultura familiar no Rio Grande do Norte segundo o Censo Agropecuário 2017: Perfil e desafios para o desenvolvimento rural
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 113-131, agosto, 2020
129
Joacir Rufino de Aquino, Roberto Marinho Alves da Silva, Emanoel Márcio Nunes, Fernando Bastos Costa e Willy Farias Albuquerque
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 113-131, agosto, 2020
130
Agricultura familiar na Paraíba: Perfil com base no Censo Agropecuário de 2017
Emilia Moreira
Geógrafa. Doutorado em Estudos da América Latina - Área Geografia, pela Universidade de Paris III (Sorbonne-
Nouvelle) e Pós-Doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). Professora do Programa de Pós-
Graduação em Geografia da UFPB. Centro de Ciências Exatas e da Natureza - Campus I, Departamento de Geociências.
Campus I - Cidade Universitária, Castelo Branco. CEP: 58059-900, João Pessoa, PB – Brasil. erodat@hotmail.com
Resumo: O artigo tem como objetivo principal traçar Abstract: This paper has a main objective to outline the
o perfil atual da agricultura familiar na Paraíba. Para current profile of family farming in Paraíba. To elabora-
elaborar o perfil, foram utilizados os dados do Censo te the profile, were used data from the 2017 agricultural
Agropecuário de 2017 com base nas seguintes variá- census based on the following variables: characteristics
veis: características do produtor e dos estabelecimentos, of the producer and establishments, organization of
organização da produção vegetal e animal, contingente vegetable and animal production, contingent and com-
e composição da força de trabalho, movimentação fi- position of the workforce, financial movement of esta-
nanceira dos estabelecimentos e padrão tecnológico. blishments, technological standards. Are specific objec-
São objetivos específicos do artigo uma discussão su- tives of the paper a summary discussion on the process
mária sobre o processo de formação e consolidação da of formation and consolidation of family agriculture
agricultura familiar ao longo do tempo, bem como tra- over time, as well as to outline the current perspecti-
çar as perspectivas atuais desse segmento produtivo. O ves of this productive segment. The study shows that
estudo mostra que apesar do monopólio da terra ter sido although the land monopoly was one of the founding
um dos traços fundantes do espaço agrário estadual, a features of the state agrarian space, the family produc-
produção familiar se fez presente na sua constituição tion was present since the beginning of colonization in
desde o início da colonização, como elemento de supor- its constitution, as a support and complementary ele-
te e complementar ao projeto de colonização. Os dados ment to the colonization project. The current data show
atuais mostram que a agricultura familiar ainda perma- that family production still remains important, mainly
nece importante, particularmente na produção de ali- in food production and in the absorption of employed
mentos e na absorção da mão de obra ocupada no setor labor in the agricultural sector in Paraíba. As for public
agropecuário paraibano. Quanto às políticas públicas, policies, the analysis carried out signals the cooling, if
a análise efetuada sinaliza para o arrefecimento, senão not extinction, of a set of policies aimed at strengthe-
extinção, de um conjunto de políticas que visavam o ning family farming.
fortalecimento da agricultura familiar. Keywords: Family Farming; Regional Economy; Pa-
Palavras-chave: Agricultura Familiar; Economia Re- raíba.
gional; Paraíba.
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 133-154, agosto, 2020
131
Ivan Targino e Emilia Moreira
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 133-154, agosto, 2020
132
Agricultura familiar na Paraíba: Perfil com base no Censo Agropecuário de 2017
rantir a alimentação da população nos perío- trabalho tem como objetivo geral traçar o per-
dos de estiagem. Mas é, sobretudo nos brejos fil atual da agricultura familiar4 paraibana com
do Agreste, que a pequena produção rural vai base nos dados do Censo Agropecuário de 2017.
se expandir, explorando fundamentalmente a Adicionalmente, o artigo busca levantar e dis-
combinação agricultura alimentar-pecuária, cutir algumas perspectivas desse segmento pro-
principalmente nas áreas de exceção a exem- dutivo no contexto da economia paraibana e do
plo dos brejos de altitude (MOREIRA; TAR- atual panorama da política econômica nacional.
GINO, 1997; SEIXAS, 1985); O artigo está organizado em três seções, além
– A transformação de escravos em posseiros desta introdução. Na segunda, apresentam-se as-
ou moradores: com a abolição da escrava- pectos metodológicos e teóricos do trabalho. Na
tura, houve novo impulso para a pequena terceira, estão discutidos panoramas da agricultura
produção rural, agora independente da rela- familiar paraibana de acordo com os dados for-
ção de propriedade. As relações campone- necidos pelo Censo Agropecuário de 2017, tendo
sas penetraram na grande propriedade sob como pano de fundo o quadro nacional, bem como
a forma de moradia, de parceria e de arren- são analisadas as principais limitações enfrentadas
damento (MOREIRA, 1982). Essas relações pela produção familiar e as ações governamentais
de trabalho dominaram o espaço agrário pa- e não governamentais presentes no Estado para seu
raibano, imprimindo um intenso processo de fortalecimento. Na quarta, à busca de conclusão,
exploração da força de trabalho nos diversos são sumariadas as principais características desse
sistemas de uso dos recursos conforme pre- segmento produtivo, bem como são elencados os
vira Joaquim Nabuco (2001). O processo de principais avanços e as dificuldades encontradas
transformação de escravos em moradores foi pela agricultura familiar paraibana, assim como
amplamente registrado e analisado por An- são expostas algumas considerações sobre as pers-
drade (1973) e Melo (1958 e 1975). Assim, pectivas desse segmento produtivo, tendo em vista
a produção camponesa penetrou no interior o quadro político institucional resultante do impe-
da grande propriedade e se tornou elemento achment da Presidente Dilma Roussef.
fundamental para lucratividade do latifún-
dio, seja ele canavieiro ou pecuarista;
– Criação de unidades produtivas familiares
2 ASPECTOS TEÓRICOS E
pela política agrária: a luta pelo acesso à terra METODOLÓGICOS
não é nova (TARGINO, 2002), tendo alcança-
Para analisar a evolução da agricultura familiar na
do nas Ligas Camponesas sua maior expressão
Paraíba, foi feito um levantamento de informações
(LEMOS, 2008; AZEVEDO, 1982). No en-
junto a fontes históricas como relatos de viajantes, e
tanto, a efetivação de uma política agrária só
contribuições já consideradas clássicas de geógrafos
ocorreu recentemente e ainda de forma muito
nordestinos que estudaram a temática como Manuel
tímida para solucionar conflitos. Tanto é que na
Correia de Andrade e Mário Lacerda de Melo. Para
Paraíba, entre 1984 e 2016, foram implantados
traçar o perfil atual foram utilizadas, fundamental-
313 Projetos de Assentamento, correspondendo
mente, as informações do Censo Agropecuário de
a uma área de 294.099,08 hectares, que repre-
2017, realizado pelo IBGE. Os dados estatísticos fo-
sentam tão somente 9,4% dos estabelecimentos
ram trabalhados de acordo com as seguintes variáveis:
existentes em 2017 (INCRA/SIPRA, 2017).
estrutura fundiária, características dos produtores
Esse breve relato, mostra que além do proces- (idade, raça, sexo, escolaridade), formas de utilização
so de fragmentação da propriedade por herança, a do solo, composição da produção agropecuária (la-
produção familiar rural na Paraíba seguiu um longo vouras permanentes, lavouras temporárias, principais
processo de constituição e formação, assumindo ao rebanhos), valor da produção agropecuária, composi-
longo do tempo diferentes formas e dinâmicas. ção da força de trabalho e base técnica da produção.
Levando em consideração a importância da Os dados colhidos receberam tratamento da
agricultura familiar no processo de formação estatística descritiva e são apresentados sob a for-
do espaço agrário paraibano e sua relevância ma de tabelas, gráficos e mapas. Para a discussão
na produção agropecuária estadual, o presente das perspectivas da agricultura familiar paraiba-
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 133-154, agosto, 2020
133
Ivan Targino e Emilia Moreira
Tabela 1 – Brasil, Nordeste e Paraíba: Número dos estabelecimentos totais, não familiares e familiares – 2017
Área (hectares)
Em termos de número e de área dos estabe- é aproximadamente 5 vezes menor do que a dos
lecimentos familiares, considerando os estados estabelecimentos não familiares (52,6 ha).
nordestinos, a Paraíba se situa à frente apenas do Ao se comparar os estabelecimentos familia-
Rio Grande do Norte, de Alagoas e de Sergipe. res registrados em 2017 na Paraíba (125.489)
Em relação à área média, os estabelecimentos com os recenseados em 2006 (148.069), tem-se
familiares maranhenses detêm a maior (20 ha) uma retração da ordem de 15,2% no período.
e os alagoanos, a menor (6,7 ha); a dos parai- Isso ocorreu apesar da implantação de Proje-
banos é superior à de Pernambuco (10,0 ha), de tos de Assentamento, da adoção de políticas de
Sergipe (9,4 ha) e de Alagoas (6,7 ha). A área apoio à agricultura familiar e do processo de
média dos estabelecimentos familiares (11,5 ha) divisão hereditária. Este último fator é consi-
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 133-154, agosto, 2020
134
Agricultura familiar na Paraíba: Perfil com base no Censo Agropecuário de 2017
Tabela 2 – Paraíba: distribuição percentual dos produtores segundo grupos de idade por tipo de agricultura
e sexo (2017)
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 133-154, agosto, 2020
135
Ivan Targino e Emilia Moreira
os produtores familiares (53%) do que entre os Gráfico 1 – Paraíba: Composição (%) do valor da
não familiares (26%), ou seja, é praticamente o produção dos estabelecimentos não
dobro do percentual dos não familiares. Esses familiares e familiares, segundo a
dados parecem indicar que os ganhos da apo- condição dos produtores (2017)
sentadoria não são suficientes para os produto-
Sem área 0,26
res familiares cobrirem as necessidades das fa- 0,10
cas, particularmente, ao Pronaf Mulher.6 Fonte: Censo Agropecuário de 2017 (IBGE/SIDRA, 2019).
Os dados do IBGE/SIDRA (2019) apon-
tam que os responsáveis pelos estabelecimen- Ao se comparar os dois tipos de agricultura,
tos são, predominantemente, os proprietários, observa-se que os estabelecimentos familiares
sejam familiares ou não familiares (72,6% e têm maior diversificação quanto à condição dos
69,6%, respectivamente). A segunda categoria produtores, particularmente ao maior peso dos
mais numerosa é a de comandatário7 nos dois assentados e dos comandatários de um lado, e ao
tipos de agricultura (12% na familiar e 15,3% menor peso do valor da produção dos proprietá-
na não familiar). Essa informação confirma a rios, de outro lado. Isto ressalta a importância da
afirmativa anterior da importância do processo política agrária e do processo de partilha here-
de partilha hereditária para o aumento do núme- ditária para esse tipo de estabelecimento. Já os
ro dos pequenos estabelecimentos familiares ou produtores não familiares são majoritariamente
não.8 Em terceiro lugar, tem-se a categoria de proprietários (88,8%). Entre eles, destacam-se
assentados, responsável por 7,2% dos produto- também os arrendatários (7,3%). A maior repre-
res familiares, evidenciando uma participação sentatividade dessa categoria entre os produtores
ainda modesta da política agrária no processo familiares pode ser associada à expansão da prá-
de consolidação da agricultura familiar. tica de arrendamento para o plantio da cana-de-
Em relação ao valor da produção, há uma -açúcar (MOREIRA; FREIRE; TARGINO, 2008;
diferenciação significativa entre os produtores FREIRE, 2018) e do abacaxi (TORRES, 2019).
familiares e os não familiares, como pode ser
visto no Gráfico 1. 3.3 Contingente de pessoas ocupadas
Em 2017, conforme o IBGE/SIDRA (2019),
o setor agropecuário paraibano ocupava 424.116
6. Apesar da reduzida participação do Pronaf Mulher no total dos
recursos e dos contratos do Pronaf, ele tem sido importante para pessoas. Destas, 97,4% tinham 14 anos ou mais.
dar sustentação a algumas iniciativas, tais como: Cooperativa dos Vale dizer que apenas 2,6% eram trabalhado-
Floricultores do Estado da Paraíba (Cofep) no município de Pilões, res infantis, evidenciando o acerto da adoção de
Cooperativa de Produtoras de Renascença no município de São
políticas de combate ao trabalho infantil e a sua
João do Tigre, produção de artesanato na comunidade dos Rufinos
no município de Pombal etc. fiscalização pelo Ministério do Trabalho.
7. O Censo de 2017 define o comodato como a situação em que A maior parte do pessoal ocupado é absorvida
“[...] cada um dos herdeiros estiver ocupando parte do terreno,
até por falta de recursos para o inventário, cada uma destas partes
pela agricultura familiar, isto é, 311.236 pesso-
será considerada como um estabelecimento, sendo a condição do as, equivalente a 73,4% do total das ocupações
produtor classificada como comodatário, e a área será registrada do setor primário estadual. Ao se considerar o
em terras em regime de comodato” (IBGE, 2017, p. 42). indicador mão de obra/100 hectares, os estabe-
8. Dos estabelecimentos não familiares classificados como
comodatários, 95,1% têm menos de 50 hectares.
lecimentos familiares ocupam 21,6 pessoas, en-
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 133-154, agosto, 2020
136
Agricultura familiar na Paraíba: Perfil com base no Censo Agropecuário de 2017
quanto os não familiares ocupam 5,7 pessoas. Não se observam diferenças significativas entre
Isto denota a importância que a agricultura fa- os estabelecimentos familiares e os não familiares
miliar deve ocupar em uma estratégia de criação em relação à distribuição segundo os tipos de ativi-
de emprego, particularmente no momento atual dade declarados como principais (Gráfico 2).
de crise e debilitação do mercado de trabalho
(KREIN; VÉRAS; FILGUEIRAS, 2019). Gráfico 2 – Paraíba: Distribuição dos estabeleci-
O trabalho infantil também é de pouca monta, mentos por tipo e grupo de atividade
repetindo o mesmo percentual do pessoal ocu- em 2017
pado no setor agropecuário paraibano. Quanto à Aquicultura 0,1
distribuição por sexo, tem-se que 69,2% são do 0,40
Pesca 0,1
sexo masculino. Percentual menor do que o re- 0
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 133-154, agosto, 2020
137
Ivan Targino e Emilia Moreira
Além das lavouras temporárias, os estabeleci- A seguir, é feita a discussão do valor da pro-
mentos não familiares despontam na produção de dução em cada uma das atividades acima apre-
lavouras permanentes e na horticultura que respon- sentadas, buscando realçar a diferenciação da
dem por 11,7% e 5,4%, respectivamente, do valor produção familiar tanto produtiva (por grupos
da produção vegetal desses estabelecimentos. Em de área) quanto espacialmente, fazendo o con-
segundo lugar, o valor da produção vegetal nos traponto da diferenciação em relação aos esta-
estabelecimentos familiares é melhor distribuído belecimentos não familiares no tocante ao grau
em relação ao conjunto das atividades. Isto é, não de concentração em algumas atividades.
é encontrado o elevado grau de concentração em
atividades, como ocorre nos latifúndios canaviei- 3.4.1 A produção de lavouras temporárias
ros. A horticultura e o extrativismo vegetal têm um
peso bem superior nos estabelecimentos familiares O valor da produção de lavouras temporárias
(16,1% e 8,6%), em relação ao registrado nos não na Paraíba somava R$ 751,2 milhões, sendo que
familiares (5,9% e 0,9%) (Gráfico 3). 67,2% desse valor eram gerados nos estabeleci-
mentos não familiares e 32,8% nos familiares.
Gráfico 3 – Paraíba: Composição (%) do valor da Como esperado, o Censo mostra uma diferença
produção por tipo de agricultura se- importante na geração desse valor segundo os
gundo as atividades – 2017 grupos de área (Tabela 3).
81,5 Como mostrado na Tabela 3, nos estabeleci-
mentos familiares o grupo modal do valor da pro-
59,4
dução é o de até 5 hectares, enquanto nos estabe-
lecimentos não familiares essa classe situa-se no
grupo de 2.500 hectares e mais. Interessante desta-
car que nos estabelecimentos familiares o valor da
produção declina à medida que aumenta o tamanho
15,7 16,1
11,6
8,6
da área, enquanto nos não familiares ocorre exata-
5,4
0,9 0,6 0,2 mente o inverso. Possível explicação para essa ten-
dência pode estar, de um lado, na maior intensidade
Lav. Temp.
Lav. Perm.
Horticult.
Ext. Veget.
Floricultura
Tabela 3 – Paraíba: Valor da produção de lavouras temporárias (em mil reais) segundo grupos de área e por
tipo de agricultura (2017)
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 133-154, agosto, 2020
138
Agricultura familiar na Paraíba: Perfil com base no Censo Agropecuário de 2017
De acordo com o Censo Agropecuário de lavouras (Tabela 4). Nível de concentração ainda
2017, eram cultivados 16 tipos de lavouras tem- maior foi observado nos estabelecimentos não
porárias nos estabelecimentos familiares. No familiares, pois as lavouras temporárias repre-
entanto, apenas seis apresentavam um valor da sentavam 94,6%, sendo que só a cana contribuía
produção mais significativo (abacaxi, mandioca, com 59,4%. Esse é apontado com um dos graves
feijão, milho, palma forrageira e cana-de-açú- problemas do setor agropecuário estadual (TAR-
car), que respondiam por 89,6% do valor dessas GINO; CARVALHO; MARTINS, 2019).
Tabela 4 – Paraíba: Valor (em mil reais) da produção das lavouras temporárias, segundo as principais la-
vouras por tipo de agricultura – 2017
Outro problema observado no cultivo das la- cana, na Mata Paraibana (Figura 1); a palma
vouras temporárias é a concentração espacial: a forrageira, na mesorregião da Borborema. Ape-
mandioca e o abacaxi são cultivados em alguns nas o feijão e o milho estão difundidos em todo
municípios da Mata Paraibana e do Agreste; a o Estado (IBGE/SIDRA, 2019).
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 133-154, agosto, 2020
139
Ivan Targino e Emilia Moreira
Figura 1 - Paraíba: Valor da produção municipal do abacaxi por estabelecimentos familiares - 2017
Figura 2 - Paraíba: Valor da produção municipal da mandioca por estabelecimentos familiares - 2017
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 133-154, agosto, 2020
140
Agricultura familiar na Paraíba: Perfil com base no Censo Agropecuário de 2017
Figura 3 - Paraíba: Valor da produção municipal da cana-de-açúcar por estabelecimentos familiares - 2017
Fonte: Censo Agropecuário de 2017 (IBGE/SIDRA, 2019). Elaborado por Isadora Queiroga.
Um dado importante a ressaltar é que nas áreas efeito, o valor da produção dessas lavouras
mais secas do Estado (Sertão e Borborema) os pro- monta a R$ 137,8 milhões, distribuídos em
dutores familiares restringem a sua produção prati- 52,7% nas unidades não familiares e em 47,2%
camente ao feijão e ao milho, cultivados em nível nas familiares. O valor das lavouras permanen-
de autoconsumo, o que evidencia a fragilidade desse tes constitui apenas 12,5% e 20,9% da produção
tipo de agricultura nas áreas onde a semiaridez incide dos estabelecimentos não familiares e familia-
com maior intensidade. Já o GTDN (1967) alertava res, respectivamente. Importa destacar que nas
para as consequências da disseminação das lavouras unidades de produção familiares esse valor é
alimentares no Semiárido, tornando a seca periódica subnotificado, uma vez que o Censo só consi-
muito mais um problema social do que econômico. dera os estabelecimentos com mais de 50 pés
plantados. Além de pequena, essa produção está
3.4.2 A produção de lavouras permanentes concentrada em poucos produtos, nos dois tipos
de atividade, como pode ser visto na Tabela 5.
As lavouras permanentes têm um pequeno
peso no setor agropecuário paraibano. Com
Tabela 5 – Paraíba: Valor (em mil reais) da produção das lavouras permanentes, segundo as principais la-
vouras por tipo de agricultura (2017)
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 133-154, agosto, 2020
141
Ivan Targino e Emilia Moreira
Os cinco principais produtos da lavoura per- lado, o efetivo desse rebanho, desde a década de
manente constituem 93% dessas lavouras nas 1970, não tem ultrapassado o teto de 1,4 milhão
unidades não familiares, sendo o principal o de cabeças. Isto é, o efetivo do rebanho tem os-
coco-da-baía (48,9%), cuja produção está con- cilado para baixo do teto ao longo dos últimos
centrada na microrregião de Sousa, no Projeto 50 anos. Quando ocorre uma seca, há uma re-
de Irrigação das Várzeas de Sousa (Pivas). No dução do rebanho, que se recupera nos anos de
caso das unidades familiares, o destaque é para bom inverno, mas sem conseguir ultrapassar o
a banana, que contribui com 58,4% do segmen- teto acima referido (TARGINO; CARVALHO;
to. Aqui também se observa uma forte concen- MARTINS, 2019). De outro lado, ainda preva-
tração espacial nas microrregiões do Brejo Pa- lece um nível tecnológico baixo na pecuária pa-
raibano e de Sousa. raibana (CLEMENTINO et al., 2015). De acor-
Um aspecto importante é a recente expan- do com o Censo Agropecuário de 2017, apenas
são da fruticultura irrigada, ainda que com uma 15,9% dos estabelecimentos recebem orienta-
dimensão bem menor daquela verificada em ção técnica, 21% fazem controle de doenças e
Pernambuco (Vale do São Francisco) e no Rio 20,3% fazem uso de suplementação alimentar.
Grande do Norte (Vale do Açu). Dentre elas, as Quadro similar é registrado nos estabelecimen-
principais são o mamão, o maracujá e a acerola. tos familiares: 16,8% recebem orientação técni-
Nas médias e grandes propriedades, são empre- ca, 21% realizam controle de doenças e 19,8%
gados os métodos convencionais de irrigação, realizam suplementação alimentar (IBGE/SI-
enquanto nas pequenas propriedades é comum DRA, 2019).
o uso das tecnologias sociais (TARGINO; MO- Em 2017, o efetivo bovino da Paraíba era de
REIRA; ARAÚJO, 2014). Importa lembrar que 1.050.612 cabeças. Comparando com os dados
a expansão da fruticultura na Paraíba é prejudi- da Pesquisa Pecuária Municipal, observa-se que
cada pela escassez de água. Na última grande já havia uma recuperação do nível do rebanho,
seca que atingiu o Estado (2012-2017), foi sus- pois durante o longo período de estiagem que
penso o uso de água para irrigação, prejudican- afetou o Estado o efetivo do rebanho atingiu
do a atividade. 967 mil cabeças em 2012. Do efetivo total do
Estado, as unidades familiares respondem por
3.5 Produção animal: os principais rebanhos 57%. Entre essas unidades, as situadas nos gru-
pos de área com até 50 hectares congregam
O principal rebanho paraibano de grande 74,7% do seu efetivo bovino (Figura 4).
porte é o bovino. A dinâmica desse rebanho
apresenta dois aspectos preocupantes. De um
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 133-154, agosto, 2020
142
Agricultura familiar na Paraíba: Perfil com base no Censo Agropecuário de 2017
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 133-154, agosto, 2020
143
Ivan Targino e Emilia Moreira
Figura 6 – Paraíba: Distribuição espacial do rebanho ovino explorado em estabelecimentos familiares se-
gundo os municípios e o valor da produção (2017)
Fonte: Censo Agropecuário de 2017 (IBGE/SIDRA, 2019). Elaborado por Isadora Queiroga.
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 133-154, agosto, 2020
144
Agricultura familiar na Paraíba: Perfil com base no Censo Agropecuário de 2017
A ovinocultura também é explorada prin- A produção animal tem sido uma fonte de
cipalmente pelos produtores familiares. O re- insumos para a agroindústria rural paraibana.
banho atinge 506 mil cabeças, sendo que 307 Com efeito, segundo os dados do IBGE/SIDRA
mil pertencem às unidades familiares, o equi- (2019), a agroindústria de queijo e requeijão e
valente a 60,7% do rebanho estadual. Estudos de carnes é responsável por R$ 71,8 milhões,
realizados na Paraíba mostram que a criação de correspondentes a 78,7% do valor total da
ovinos no Estado apresenta uma série de pro- agroindústria rural existente nas unidades fami-
blemas que redundam em baixa produtividade liares (R$ 91,3 milhões).
da atividade. Entre esses problemas são apon-
tados: manejo inadequado, falta de cuidados 3.6 Base técnica da produção
com a saúde do rebanho, baixa capacidade ge-
rencial dos produtores e ausência de políticas Uma das faces da modernização do setor
públicas de sustentação desse criatório (LINS agropecuário brasileiro é o nível de sua meca-
et al., 2018). A ovinocultura apresenta menor nização. Na Paraíba, esse processo se deu de
concentração espacial que a caprinocultura, forma retardada e limitada em relação ao Brasil
estando bem difundida nas mesorregiões da e foi influenciado pelos impactos do Proálco-
Borborema, do Sertão Paraibano e do Agreste ol e pelos incentivos fiscais concedidos. Além
Paraibano (Figura 6). de retardado e limitado, ele incidiu, diferencia-
Outro segmento da produção animal expressivo damente, em termos de atividades, de tamanho
na Paraíba é a criação de galináceos. As unidades dos estabelecimentos e de espaço, isto é, ele foi
não familiares têm peso maior nesse segmento pro- mais concentrado na atividade canavieira, nas
dutivo, responsável por 59,9% das 24,6 milhões de grandes e médias propriedades e na mesorre-
cabeças produzidas no Estado. As unidades familia- gião da Mata Paraibana (MOREIRA; TARGI-
res respondem por 40,1% da produção. A sua parti- NO, 1997). Os dados do Censo Agropecuário
cipação nas vendas é um pouco superior (43,2%) a de 2017 mostram que essas características ainda
do total produzido (IBGE/SIDRA, 2019). permanecem. Por outro lado, tem-se que as prá-
ticas técnicas adotadas também são limitadas,
O maior peso dos estabelecimentos não fa-
como será visto a seguir.
miliares na criação de galináceos na Paraíba é
devido, fundamentalmente, à atuação da empresa
Guaraves que controla tanto a produção quanto a 3.6.1 Utilização de máquinas e implementos
comercialização (CORREIA, 2018). A produção agrícolas
de galináceos, historicamente, faz parte da com-
binação produtiva das unidades familiares, ob- De acordo com os dados apresentados na Ta-
jetivando tanto o autoconsumo de carne e ovos bela 6, observa-se que o nível de mecanização
como uma fonte suplementar de renda pela ven- da agropecuária paraibana é bastante baixo, o
da do excedente. Na atualidade, o Governo do que representa uma continuidade do quadro ob-
Estado, Sebrae e algumas ONGs têm atuado no servado desde os anos de 1980. Isto tanto em
sentido de explorar o nicho da produção de ga- termos dos estabelecimentos não familiares
linhas caipiras e de capoeira (CORREIA, 2018). quanto dos familiares.
Tabela 6 – Paraíba: Número de máquinas, implementos agrícolas e veículos existentes nos estabelecimen-
tos agropecuários (Unidades) – 2017
Nº de estabelecimentos
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 133-154, agosto, 2020
145
Ivan Targino e Emilia Moreira
Nº de estabelecimentos
Nº de equipamentos
O uso de trator ainda é muito reduzido por Quanto aos itens semeadeiras, colheitadeiras
parte dos estabelecimentos agropecuários do Es- e adubadeiras, embora o número seja também
tado. Apenas 1,6% deles declararam possuir esse muito pequeno nos dois tipos de estabelecimen-
equipamento, sendo 4,2% dos não familiares e tos, ainda são nos não familiares onde eles estão
0,8% dos familiares. Em relação à quantidade dominantemente concentrados.
de tratores utilizados, o quantitativo também é O único item com maior expressividade é
pequeno (3.562), a maior parte pertencente aos o de veículos, mais influenciado pelo uso de
estabelecimentos não familiares (2.531 ou 71% motos, o que não está efetivamente relaciona-
do total). Vale lembrar que a evolução do número do com o nível de produtividade das atividades
desse equipamento é lenta no período mais re- desenvolvidas.
cente. Após quase que quadruplicar entre 1970 e
1980 (822 e 3.190, nesses respectivos anos, o que
3.6.2 Práticas técnicas utilizadas
equivale a um crescimento médio no período de
288%) sob o impacto do Proálcool, desde então o Assistência técnica é reconhecidamente um
crescimento é baixo. Em praticamente 40 anos, o elemento importante para elevar a produtividade
incremento foi de apenas 372 unidades. nos estabelecimentos familiares, sobretudo con-
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 133-154, agosto, 2020
146
Agricultura familiar na Paraíba: Perfil com base no Censo Agropecuário de 2017
Estabelecimentos com orientação técnica 28.286 17,3 7.163 19,0 21.123 16,8
Estabelecimentos com uso de adubação 59.273 36,3 13.987 37,1 45.286 36,1
Estabelecimentos com uso de agrotóxico 52.232 32,0 10.623 28,2 41.609 33,2
Estabelecimentos com uso de irrigação 19.228 11,8 4.834 12,8 14.394 11,5
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 133-154, agosto, 2020
147
Ivan Targino e Emilia Moreira
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 133-154, agosto, 2020
148
Agricultura familiar na Paraíba: Perfil com base no Censo Agropecuário de 2017
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 133-154, agosto, 2020
149
Ivan Targino e Emilia Moreira
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 133-154, agosto, 2020
150
Agricultura familiar na Paraíba: Perfil com base no Censo Agropecuário de 2017
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 133-154, agosto, 2020
151
Ivan Targino e Emilia Moreira
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 133-154, agosto, 2020
152
Agricultura familiar em Pernambuco: O que diz o Censo Agropecuário de 2017
Tales Vital
Engenheiro Agrônomo. Pós-Doutor em Economia pela Université Paris 1- Panthéon-Sorbonne (1997) e
pela Université Pierre Mendés France - Grenoble (2008). Prof. Titular do Departamento de Economia
da Univesidade Federal Rural de Pernambuco (DECON-UFRPE), Av. Dom Manoel de Medeiros s/n.
Campus Dois Irmãos. CEP: 52171-900. Recife, PE - Brasil. talesvital@hotmail.com.
Resumo: A agricultura familiar tem peso substancial no Abstract: Family farming present expressive participa-
número de estabelecimentos, na produção e na ocupa- tion in the number of farms, in production and labor
ção da mão de obra. Nos últimos 25 anos, o segmento use. Along the last 25 years it has been the objective of
vem sendo objeto de inúmeras políticas de apoio. A aná- several policies. An analysis of characteristics of family
lise das características da agricultura familiar, no Esta- farming in Pernambuco in 2017 is the purpose of this
do de Pernambuco em 2017, é o objetivo deste trabalho. paper. Notable is a convergence in productivity among
Notável é a convergência em produtividade, apontando agribusiness and family farming. Probably this is due as
aproximações entre o agronegócio e a agricultura fa- indicated by other data to technological improvements
miliar. Provavelmente deve-se, como indicado em ou- and a higher integration to the market. In Pernambu-
tros dados, à melhoria do nível tecnológico e à maior co, family farming presents high participation in milk
integração ao mercado. Em Pernambuco, a agricultura production and is increasing egg production and is also
familiar tem elevada participação na produção de leite important in goat production. In relation to cultures are
e crescente na de ovos, assim como boa expressão na important in banana and cashew nuts production. A high
produção caprina. Nas culturas, mantém-se expressi- participation in several temporary cultures is more an
va a produção de banana e castanha de caju. A elevada expression of resilience than of strength. These results
participação em diversas culturas temporárias é, antes, show the action of adopted policies and a necessity of
expressão de resiliência que de pujança. Estes resulta- its continuity both to strength family farming and also
dos refletem o acerto das políticas públicas adotadas e a to ease necessary adjustments.
necessidade de ter continuidade, tanto para o fortaleci- Keywords: Family Farming; Agricultural Census; Per-
mento como para a facilitação dos ajustes necessários. nambuco.
Palavras-chave: Agricultura Familiar; Censo Agrope-
cuário; Pernambuco.
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 155-171, agosto, 2020
153
Yony Sampaio e Tales Vital
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 155-171, agosto, 2020
154
Agricultura familiar em Pernambuco: O que diz o Censo Agropecuário de 2017
vio, de ser uma unidade de produção agrícola: público vêm tendo papel fundamental em re-
(1) a mão de obra é predominantemente fami- ter essa população no campo (MAGALHÃES,
liar; e (2) a gestão do negócio é familiar (GAS- 2016; AQUINO; NASCIMENTO, 2019). Vá-
SON et al., 1988). Atrelada à política de apoio, rios aspectos positivos decorrem dessa política.
com oferecimento de vantagens econômicas, Por exemplo, a manutenção de uma renda míni-
cabe limitar o universo acima àquelas unidades ma atenua os problemas decorrentes das secas,
que apresentem deficiências que resultem em cuja antiga dramaticidade estava relacionada às
uma renda mais baixa e precisem de condições drásticas quedas de renda (SEN, 1981; SAM-
como crédito a juro mais baixo, acesso privile- PAIO, 2007; AQUINO; NASCIMENTO, 2019).
giado e em condições mais favoráveis a insu- Também, diminui a migração rural-urbana e
mos e tecnologias mais produtivas, dificuldade atenua a pressão pela ampliação de serviços
de comercialização da produção em condições urbanos, muito deficientes, principalmente nas
competitivas, entre outras. O que se argumen- regiões Nordeste e Norte. Mas implica na ma-
ta é que o propósito da definição pode requerer nutenção de unidades rurais que se caracterizam
restrições, mas a caracterização deve partir do mais como residência que como unidades pro-
conceito amplo, sob pena de mascarar uma re- dutivas. A renda pode advir predominantemente
alidade e até prejudicar o apoio pensado para a de outras fontes e não da agropecuária. A agro-
agricultura familiar. pecuária praticada por parcela desses produto-
Caso seja adotada uma restrição de área, in- res é subsidiária, mais uma forma de ocupação e
dependente dessa unidade atender todos os de- geração de produtos para consumo próprio, que
mais requisitos, ficará excluída uma agricultura com grande imprecisão, agricultura de subsis-
familiar que talvez tenha melhor desempenho tência, um termo enganoso para unidades nas
produtivo e monetário. No exterior, destaque- quais esta produção apenas complementa a ren-
-se, não existe tal condição. Já no Brasil, a da e o consumo, este último em boa parte pro-
agricultura familiar que se modernize, adote cedente de compras.
insumos e tecnologias modernas, integre-se ao Assim, boa parte da chamada agricultura fa-
mercado e, consequentemente, possa gerir áreas miliar engrossa apenas a quantidade de unida-
maiores e elevar o valor da produção, é excluí- des de baixa produção, geralmente identificadas
da. Além de ocultar parcela importante da agri- como sem sustentabilidade. No entanto, o ob-
cultura familiar, introduz viés para baixo no de- jetivo das mesmas parece ser mais residencial,
sempenho da agricultura familiar ao restringir que produtivo e, como tal, faz pouco sentido fa-
apenas àquelas com áreas menores que o limite lar em sustentabilidade. Qual a sustentabilidade
e, possivelmente, com valor de produção médio dinâmica de unidades desse tipo lideradas por
e baixo. O retrato apresentado claramente é en- pessoas idosas, quando os jovens já se desloca-
viesado para pior. ram para outras atividades?
Do outro lado do espectro, caso não sejam Há várias implicações decorrentes da inclu-
observadas outras rendas (transferências, apo- são dessas unidades residenciais não produ-
sentadorias etc.), inclui como agricultura fami- tivas. Primeiro, magnifica um problema real,
liar unidades que não têm como objetivo princi- iludindo os planejadores. Segundo, tira o foco
pal a produção agropecuária. Daí a definição no das unidades efetivamente produtivas, nas quais
exterior especificar que deve ser “um negócio agricultores familiares dedicados à produção
agrícola”. Ou seja, a renda principal da família não conseguem se modernizar, se integrar ao
pode vir de outras atividades (excluído, claro, mercado e obter uma renda mínima aceitável.
rendas da indústria e do comércio). Neste último caso, deve-se investigar se a insu-
No Nordeste, de um modo geral, tem sido ficiência decorre da dimensão da área, ser infe-
destacado que o campo vem progressivamente rior à desejável ou de falta de acesso a crédito,
sendo esvaziado, permanecendo pessoas idosas ao mercado de insumos ou, ainda, de deficiên-
e do sexo feminino (GOMES, 2001). A litera- cias de formação técnica que permitam realizar
tura tem apontado, igualmente, que a aposenta- inovações nas suas unidades.
doria rural e as transferências de renda do setor
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 155-171, agosto, 2020
155
Yony Sampaio e Tales Vital
Para focar na agricultura familiar de fato, comparativos, não há maiores problemas, já que
explorando suas características, pontos fortes os últimos censos adotaram critérios idênticos.
e fracos, carências e necessidades, é necessário Estas constatações correspondem precisa-
avançar ainda um pouco mais no conceito de mente ao que foi destacado no marco conceitu-
agricultura familiar. Tem sido um longo cami- al, decorrente da definição que exige que pelo
nho desde o marco referencial de 2000 (FAO/ menos metade da renda deva provir da atividade
INCRA), mas é preciso distinguir o conceito de agrícola. Ficam excluídos estabelecimentos que
agricultura familiar, mais universal, de concei- melhor se caracterizam como residenciais. Em
tuações mais restritivas e voltadas exclusiva- reforço, e ainda em acordo com o discutido no
mente à definição da política pública. marco conceitual, mesmo entre os estabeleci-
Em 2017, o conceito foi novamente altera- mentos que atendem os critérios, há envelheci-
do, com finalidades de política econômica, para mento dos chefes e saída dos jovens para outras
incluir famílias no extrativismo, pescadores, in- atividades. Isto enseja prever que a tendência
dígenas e quilombolas. Não cabe maior discus- futura é de continuidade da redução do número
são, uma vez que as famílias que se dedicam à de estabelecimentos e ainda maior do pessoal
agricultura já estariam devidamente incluídas. ocupado na agricultura familiar, mesmo que
A ampliação pretende apenas beneficiar grupos com pequena redução da área.
sociais, de certa forma, distintos, com ativida- Por outro, o critério de pequeno porte (até
des precárias e muitas vezes com renda baixa e quatro módulos fiscais) deve estar excluindo a
irregular. agricultura familiar mais produtiva, principal-
mente a voltada para atividades em que se cons-
tata ganho de escala e, possivelmente, a que
3 METODOLOGIA mais adota tecnologias modernas. O critério,
A metodologia adotada é analítico-compa- como apontado no marco conceitual, empobre-
rativa, ou seja, são analisados dados do último ce o quadro da agricultura familiar, excluindo
Censo 2017, buscando-se obter um quadro da talvez as unidades mais dinâmicas. No entanto,
agricultura familiar em Pernambuco. Os dados, para comprovação, seriam necessárias tabula-
em si, permitem uma caracterização da agricul- ções especiais, o que está além do escopo deste
tura familiar em diversos aspectos ligados aos trabalho, que se limitará a apresentar o perfil da
produtores e aos estabelecimentos. A análise agricultura familiar a partir da definição oficial
crítica pressupõe conhecimento das regiões e da adotada no último censo.
produção econômica nas quais esta agricultura Neste trabalho será utilizado, exclusiva-
se insere. A comparação permite contrastar a si- mente, o Censo Agropecuário de 2017, não se
tuação em Pernambuco com a do Nordeste como adiantando qualquer comparação com o Censo
um todo e com o Brasil. Embora, com ressalvas, anterior, principalmente no que se refere à va-
dada a mudança na definição da agricultura fa- riação no número de estabelecimentos, na área
miliar de 2017, a qual possivelmente introduz e no pessoal ocupado, objeto de informe do
pequenas alterações, compara-se também com IBGE, abaixo citado (IBGE, 2019), no que se
a situação apresentada no Censo 2006, que ado- refere ao País como um todo.
tou conceitos e metodologia quase idênticos.
O Censo Agropecuário de 2017 apresenta da-
dos detalhados sobre a agricultura familiar. Um 4 RESULTADOS E DISCUSSÃO
grande ganho em relação aos censos do milênio
Informe do IBGE (2019), analisando o Cen-
passado em que se precisava construir conceitos
so Agropecuário de 2017, constata diminuição
a partir dos dados primários e com tabulações
do número de estabelecimentos (-9,5%), queda
especiais. No entanto, tem-se a limitação do
da área (-0,5%) e redução ainda maior do pesso-
conceito adotado pelo IBGE (2019) que seguiu
al ocupado (-17,6%). Neste mesmo informe do
a lei n. 11.326, de 2006, especificando que a
IBGE é dito que tem aumentado “[...] o núme-
“renda da atividade agrícola deve compor, no
ro de estabelecimentos em que o produtor está
mínimo, metade da renda familiar”. Para efeitos
buscando trabalho fora, diminui a mão de obra
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 155-171, agosto, 2020
156
Agricultura familiar em Pernambuco: O que diz o Censo Agropecuário de 2017
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 155-171, agosto, 2020
157
Yony Sampaio e Tales Vital
Esses dados, em conjunto, mostram que a Outro resultado notável, exposto na tabela
agricultura familiar ganha robustez. E há que em foco, mostra já essa convergência. No Bra-
lembrar que devido ao viés dos dados, a agricul- sil, em 2017, quase não há distinção de produti-
tura familiar total é responsável por um percentu- vidade entre a agricultura familiar e a não fami-
al ainda maior do valor da produção agrícola. Ou liar. Em Pernambuco há divergência, inclusive
seja, a queda do percentual de valor nos estabe- com elevado aumento da produtividade da agri-
lecimentos familiares, que poderia ser interpreta- cultura não familiar.
da como avanço da agricultura não familiar, não Podem ser aventadas várias explicações,
é estritamente verdadeira, porque a agricultura desde a expansão da agricultura irrigada no Ser-
familiar de maior dimensão de área e possivel- tão até a melhoria de produtividade pelo mesmo
mente com valor de produção mais elevada, pelo motivo, em áreas da Mata e do Agreste. Os da-
conceito adotado, passa a ser contabilizada junto dos, no entanto, não permitem avançar explica-
com o agronegócio. Resultado este interessante, ções mais profundas.
pois, como ocorre em vários países desenvolvi-
Em síntese, o fato da agricultura familiar
dos, a agricultura familiar passa a não se diferen-
apresentar maior produtividade por área foi far-
ciar pelo nível de mecanização, de tecnificação,
tamente analisado no passado, não sendo obje-
de produtividade e de integração ao mercado.
to de análise neste trabalho (ver, por exemplo,
Como apontado acima, Pernambuco apre- GRIFFIN, 1979). Notável é a convergência, in-
senta uma situação reversa, ou seja, os estabe- dicativa de uma maior homogeneidade no cam-
lecimentos familiares remanescentes têm sua po, onde o tipo de estabelecimento é mais fun-
produtividade, medida em R$/ha, elevada quase ção da atividade desenvolvida, todas com boa
ao nível da do Brasil e bem acima da do Nor- base tecnológica e integradas ao mercado.
deste (Tabela 2). Nesse Estado, possivelmente a
elevação da produtividade é decorrente da me-
4.2 Contingente de pessoas ocupadas
lhoria do acesso da agricultura familiar a novas
tecnologias geradas pela pesquisa aplicada e de Os aspectos já observados, especialmente a
expansão nos últimos anos, do financiamento elevação da produtividade, têm sua continuida-
oficial dessa agricultura. de na drástica redução do pessoal ocupado na
agricultura familiar (IBGE, 2019).
Tabela 2 – Produtividade da agricultura familiar e Há várias leituras, todas coerentemente con-
não familiar no Brasil, Nordeste e Per- cordantes:
nambuco – 2017
– Primeiro, a própria definição de agricul-
Tipo de Produtividade por tura familiar utilizada pelo IBGE, que ex-
Local
Agricultura hectare em R$ clui unidades residenciais rurais nas quais
a renda é predominantemente obtida em
Total 1.323,99
outras atividades. A pluriatividade é fenô-
Brasil Não familiar 1.326,25 meno já bastante analisado e caracterizado
(AQUINO; NASCIMENTO, 2019). Aliada
Agricultura familiar 1.316,45
às transferências, faz com que o número de
Total 755,40 estabelecimentos diminua e, consequente-
mente, caia a mão de obra ocupada;
837,79
Nordeste Não familiar
– Segundo, a elevação da produtividade
Agricultura familiar 612,48
em geral se dá com redução do pessoal
ocupado. Esta é uma tendência geral, um
Total 1.262,66 dos fatos estilizados do desenvolvimento
econômico, como já destacado. Terceiro,
Pernambuco Não familiar 1.647,09
a não consideração dos estabelecimentos
Agricultura familiar 906,69 familiares de maior dimensão é outro fa-
tor para redução do pessoal ocupado. Tudo
Fonte: Censo Agropecuário 2017 (IBGE/SIDRA, 2019).
somado, a tendência é de redução progres-
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 155-171, agosto, 2020
158
Agricultura familiar em Pernambuco: O que diz o Censo Agropecuário de 2017
segmento familiar ainda ocupa mais de 10 mi- Parceiros (%) 2,09 2,45 2,31
lhões de pessoas no Brasil. A situação em Per-
nambuco, neste aspecto, é semelhante à do Nor- Comandatários (%) 4,31 6,06 5,86
deste como um todo, apresentando percentuais,
Ocupantes (%) 2,27 2,78
no entanto, um pouco mais elevados que no
2,42
Brasil, o que está em acordo com o seu menor Produtor sem área (%) 0,49 0,69 0,34
nível tecnológico e de produtividade. Em 2017,
mais de 578 mil pessoas estavam ocupadas nos Total relativo (%) 100,00 100,00 100,00
Tabela 3 – Pessoal ocupado nos estabelecimentos Fonte: Censo Agropecuário 2017 (IBGE/SIDRA, 2019).
da agricultura familiar no Brasil, Nor-
deste e Pernambuco – 2017 Era comum, no Nordeste, na agricultura fa-
miliar, a divisão das terras por herança, embora
Pessoal ocupado na agricultura familiar a utilização dessas terras ficasse restrita a pou-
Local cos herdeiros, os demais deslocando-se para
(%)
Número
outras áreas ou atividades urbanas. A regulari-
Brasil 10.115.559 66,97 zação dá maior transparência a esta situação e
facilita acertos familiares.
Nordeste 4.708.670 73,84
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 155-171, agosto, 2020
159
Yony Sampaio e Tales Vital
veu-se adotar as mesmas culturas – permanen- tros indicadores. Mas há que destacar a elevada
tes e temporárias – escolhidas por Guanziroli participação da agricultura familiar na produção
et al. (2011). Algumas têm pouca expressão total no Nordeste e em Pernambuco.
em Pernambuco, como, por exemplo, laranja A produção de laranjas, no País, é domina-
(entre as permanentes) e fumo e soja (entre da pelo agronegócio, produtor e exportador de
as temporárias). Mas, para efeito de análi- suco. A participação da agricultura familiar é
se comparativa, com a Região, é importante pequena e vem caindo. No Nordeste, a maior
manter o mesmo conjunto de culturas. parte da laranja produzida é para consumo di-
reto e nesta produção a agricultura familiar tem
Considerando as lavouras permanentes de for- mais expressão, embora se observe em termos
ma agregada, a partir da área ocupada com essas la- relativos, acentuada queda motivada pela ex-
vouras na agricultura familiar em relação ao total da pansão do agronegócio. Em Pernambuco, a cul-
área dessas lavouras nos estabelecimentos (Tabela tura da laranja tem pouca expressão, contudo, a
5), registra-se em termos relativos, maior expressão agricultura familiar mantém-se responsável por
em Pernambuco e no Nordeste e menor no País. cerca de 74% da produção total no Estado.
Na produção de uvas, a situação é inversa. A
Tabela 5 – Percentagem da área de lavoura per- produção do Nordeste e de Pernambuco deve-se,
manente nos estabelecimentos da agri- predominantemente, a empresas estabelecidas em
cultura familiar no Brasil, Nordeste e áreas irrigadas. A participação da agricultura fa-
Pernambuco – 2017 miliar é pequena, embora com ligeiro crescimen-
Lavouras Permanentes
to, devido às técnicas de produção percolarem
Área para as unidades familiares em perímetros irriga-
BR NE PE dos. No Brasil, a participação da agricultura fa-
miliar é bem mais expressiva por força da produ-
Área total nos
estabelecimentos (ha)
7.755.817 2.022.953 142.437 ção das áreas de colônias no Sul do País. A uva é
a única cultura permanente que tem sua produção
Área nos aumentada no Nordeste e em Pernambuco, devi-
estabelecimentos da 3.069.573 945.518 79.334
agricultura familiar (ha) do ao polo de irrigação do Vale do São Francisco.
mais de 48% em ordem crescente país, região e Café 34,84 18,98 91,30
estado. No entanto, essa participação é menor
tanto no Brasil quanto no Nordeste, em relação Castanha de Caju 62,59 62,49 77,36
a Pernambuco. A participação da produção, sem
Fonte: Censo Agropecuário 2017 (IBGE/SIDRA, 2019).
que se eleve a participação no número de estabe-
lecimentos produtores, é outra demonstração da O cultivo do café ganha impulso em Pernam-
elevação de produtividade já destacada em ou- buco na agricultura familiar voltada para a produ-
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 155-171, agosto, 2020
160
Agricultura familiar em Pernambuco: O que diz o Censo Agropecuário de 2017
ção de cafés finos, de elevado valor. Em consequ- Para um conjunto significativo de lavouras
ência, a situação em Pernambuco é contrastante temporárias, registra-se pouca participação da
com a do Nordeste e do Brasil. No Nordeste, a agricultura familiar nas culturas de cana-de-
participação da agricultura familiar é a menor e -açúcar e soja, para o Brasil, Nordeste e Per-
vem caindo. No Brasil, mantém-se, com pouca nambuco; das culturas de algodão herbáceo e
alteração. Mas no Nordeste a participação da agri- milho no Brasil e Nordeste, e das culturas de
cultura familiar mais que dobra, embora o volume feijão e arroz no Brasil (Tabela 8). O fumo, em-
total produzido tenha se reduzido muito em 2017. bora expressivo na agricultura familiar do País
A produção de castanha de caju sempre teve e da Região, não tem registro no Estado. Em
expressiva participação da agricultura familiar. Pernambuco, a participação da agricultura fa-
Mas, como nas outras culturas – exceto uva – vem miliar é, de modo geral, muito mais expressiva
ocorrendo acentuada queda da produção devido à que no Nordeste e no Brasil. Isto se deve, no
ocorrência de secas na Região (MAGALHÃES, entanto, em parte, à pequena expressão da pro-
2016). Tem-se de considerar que também 2017 foi dução pernambucana no País, com exceção da
ano atípico no Nordeste pelas secas. A irregulari- cana-de-açúcar, na qual a agricultura familiar
dade das chuvas teria afetado negativamente a pro- tem pouca expressão. Ou seja, no País, nas cul-
dução de sequeiro, reduzindo bastante a produção. turas em que predomina o agronegócio, a parti-
cipação da agricultura familiar decresce e, em
Observa-se esta redução na produção de ba-
algumas, é pouco expressiva.
nana, laranja, café e castanha de caju. A única
cultura que não teve sua produção reduzida, ao
contrário, houve expansão, foi a uva, produzida Tabela 8 – Produção de lavouras temporárias da
com irrigação. Esta alteração serve para relati- agricultura familiar em relação a pro-
vizar um pouco os resultados observados, mas dução total de lavouras temporárias da
destaca certa particularidade em Pernambuco, agropecuária do Brasil, Nordeste e Per-
no mínimo uma maior resiliência às secas. nambuco – 2017
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 155-171, agosto, 2020
161
Yony Sampaio e Tales Vital
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 155-171, agosto, 2020
162
Agricultura familiar em Pernambuco: O que diz o Censo Agropecuário de 2017
Tabela 9 – Percentagem do número de cabeças por tipo de rebanho da agricultura familiar no Brasil, Nor-
deste e Pernambuco – 2017
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 155-171, agosto, 2020
163
Yony Sampaio e Tales Vital
Estabelecimentos
% 81,20 82,85 86,71 - produtores da 1.792.523 864.757 88.271
Agricultura familiar (nº)
Total produzido em
estabelecimentos 30.156.279 3.253.116 520.990 % 80,11 81,00 84,00
(toneladas)
Total produzido em
Produzido pela 4.672.363 686.945 213.355
estabelecimentos (ton)
Agricultura familiar 19.350.75 1.975.527 325.603
(toneladas)
Produzido pela
Agricultura familiar 578.850 115.216 31.047
% 64,17 60,73 62,50 (ton)
A pecuária leiteira sempre foi atividade da pe- Fonte: Censo Agropecuário 2017 (IBGE/SIDRA, 2019).
quena agricultura, predominantemente familiar,
devido a requerer trabalho diário ao longo de todo Note-se que, em Pernambuco, está situado
o ano e se prestar à produção em pequenas áreas e um grande polo de produção de ovos, localizan-
com reduzido rebanho. Constata-se que a maioria do-se no Agreste o quarto município em volu-
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 155-171, agosto, 2020
164
Agricultura familiar em Pernambuco: O que diz o Censo Agropecuário de 2017
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 155-171, agosto, 2020
165
Yony Sampaio e Tales Vital
riedade da assistência técnica ou pela dificulda- Brasil, Nordeste e Pernambuco. Significa não
de de avaliar seus reais impactos para elevação apenas que o campo ainda é pouco mecaniza-
da produtividade. Não se confunda, no entanto, do, mas que Nordeste e Pernambuco o são ainda
assistência técnica com geração de tecnologia. mais.
A disponibilidade de novas tecnologias tem
sido fundamental para o avanço da agropecuá- Tabela 15 – Percentagem de estabelecimentos da
ria brasileira, mas a diversidade de mídias torna agricultura familiar e não familiar
o acesso bem mais fácil e talvez não tão depen- com tratores e percentagem de trato-
dente dos serviços oficiais de assistência téc- res nessas agriculturas em relação ao
nica quanto no passado. A revolução mundial total nos estabelecimentos no Brasil,
no acesso à informação, a penetração da TV em Nordeste e Pernambuco – 2017
todo o interior do País, há décadas, e da tele-
Tratores
fonia celular, nos últimos 20 anos, facilitou o Local
acesso digital direto a conteúdos os mais diver- BR NE PE
sos.
Estabelecimentos da agricultura familiar
com tratores/Total de estabelecimentos da 7,67 1,06 0,73
Tabela 14 – Percentagem de estabelecimentos da agricultura familiar (%)
agricultura familiar com assistência
Estabelecimentos da agricultura
técnica no Brasil, Nordeste e Pernam- não familiar com tratores/Total de
buco – 2017 20,53 4,70 4,61
estabelecimentos da agricultura não
familiar (%)
Estabelecimentos da agricultura familiar
com assistência técnica (*)/ Estabelecimentos da agricultura familiar
Local
Total estabelecimentos da agricultura fami- com tratores/Total de estabelecimentos 60,78 44,80 49,43
liar (%) com tratores (%)
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 155-171, agosto, 2020
166
Agricultura familiar em Pernambuco: O que diz o Censo Agropecuário de 2017
traçar um quadro mais nítido das condições da cada por número bem menor de estabelecimen-
agricultura familiar pernambucana. tos, no total e na agricultura familiar.
A irrigação é uma técnica de cultivo que vem
se expandindo na agricultura brasileira. Atinge 4.5 Acesso a recursos financeiros
no País 20,35% dos estabelecimentos agrope-
cuários, no Nordeste, 21,24% e em Pernambuco No passado, a agricultura familiar pouco ti-
30,01 %, possivelmente devido à fruticultura nha acesso ao crédito oficial. Com a criação do
irrigada (Tabela 16) Programa Nacional de Fortalecimento da Agri-
cultura Familiar (Pronaf) e a diversificação de
Tabela 16 – Percentagem de estabelecimentos da linhas de crédito voltadas para a agricultura fa-
agricultura familiar e não familiar miliar, esse financiamento melhorou bastante,
com irrigação em relação ao total de embora ainda tenha abrangência restrita (Tabela
estabelecimentos agropecuários irri- 17). Chega a pouco mais de 15%, 12% e 11%
gados no Brasil, Nordeste e Pernam- desses estabelecimentos de agricultura familiar
buco – 2017 no Brasil, Nordeste e Pernambuco, respectiva-
mente. Contudo, em termos do número total de
Irrigação estabelecimentos que foram atendidos com cré-
Local dito, esse número é mais expressivo na agricul-
BR NE PE
tura familiar do que da não familiar, e crescente
Estab. da Agr. familiar com irrigação/ entre País, Região e Estado (Tabela 17), embora
9,66 9,81 13.46
Total de estab. da agr. familiar (%) o valor do financiamento, em geral, seja bem
menor.
Estab. da agr. não familiar irrigados/Total
10,69 11,43 16,55
de estab. da agr. não familiar (%)
Tabela 17 – Percentagem de estabelecimentos
Estab. da agr. familiar com irrigação/Total agropecuários familiares e não fami-
74,96 75,72 79,39
de estab. da agropecuária irrigados (%)
liares que receberam financiamento
Fonte: Censo Agropecuário 2017 (IBGE/SIDRA, 2019). no Brasil, Nordeste e Pernambuco –
2017
Na agricultura familiar, a irrigação está um
pouco abaixo de 10% para estabelecimentos Financiamento
no Brasil e no Nordeste, e um pouco acima em Local
BR NE PE
Pernambuco. Na agricultura não familiar esse
percentual está um pouco acima de 10%, para Estabelecimentos da agricultura
o País e a Região e no Estado, fica próximo de familiar com financiamento/Total de
15,43 12,63 11,54
17%. Em termos numéricos, do total de estabe-
estabelecimentos da agricultura familiar
(%)
lecimentos com irrigação, tem mais da agricul-
tura familiar do que da não familiar. Os dados Estabelecimentos da agricultura não
familiar com financiamento/Total de
mostram em torno de 75% no Brasil e Nordeste estabelecimentos da agricultura não
15,59 10,86 9,73
e próximo de 80% em Pernambuco, possivel- familiar (%)
mente esse ser outro fator explicativo de me-
Estabelecimentos da agricultura
lhoria da produtividade da agricultura familiar. familiar com financiamento/Total de
76,63 81,54 84,89
Contudo, esses dados dos estabelecimentos estabelecimentos da agropecuária com
financiamento (%)
com irrigação são pouco claros. Como são agre-
gados todos os tipos de irrigação e não é desta- Fonte: Censo Agropecuário 2017 (IBGE/SIDRA, 2019).
cada a área irrigada, esses dados pouco dizem.
Considerados todos os tipos, alguma irrigação Provavelmente, esses recursos destinados
complementar, com métodos tradicionais, pode a investimento, custeio da produção e comer-
ser praticada em pequenas áreas em épocas do cialização dos produtos, têm ajudado o cres-
ano com disponibilidade de água. A produção cimento para mercado dessa agricultura. Esse
de culturas irrigadas, no entanto, deve ser prati- financiamento da agricultura familiar é quase
exclusivamente do Pronaf e em ordem crescen-
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 155-171, agosto, 2020
167
Yony Sampaio e Tales Vital
te Brasil, Nordeste e Pernambuco (Tabelas 17 e Assim, cresce a agricultura familiar mais ca-
18). Em número de estabelecimentos financia- pitalizada, melhor aparelhada tecnologicamente
dos, a agricultura familiar com o PRONAF do- e com maior inserção no mercado. Na medida
minou os financiamentos da agropecuária nos em que a agricultura familiar amplia a dimen-
três planos. Contudo, em termos de abrangência são da área explorada e eleva a produção e a
esse financiamento atinge ainda muito poucos produtividade, a mesma passa a ser excluída da
estabelecimentos da agricultura familiar e em definição “legal”, no Brasil, de agricultura fa-
ordem decrescente, entre País, Região e Estado. miliar, mas permanece obviamente como agri-
cultura familiar no sentido lato.
Tabela 18 – Percentual de estabelecimentos da Essa passagem requer, de um lado, a manu-
agricultura familiar que recebeu fi- tenção da política atual de apoio à agricultura
nanciamento via PRONAF no Brasil, familiar e de capacitação de jovens para ingres-
Nordeste e Pernambuco –2017 sarem no mercado de trabalho não agrícola. Os
resultados do Censo 2017 mostram o acerto da
Financiamento
Pronaf política adotada desde a década 1990.
Local
Por outro lado, do ponto de vista do meio
NE PE
ambiente, principalmente no semiárido, a redu-
BR
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 155-171, agosto, 2020
168
Agricultura familiar em Pernambuco: O que diz o Censo Agropecuário de 2017
ro de aves. A agricultura familiar tem elevada GUANZIROLI, C. E.; SABBATO, A.; VIDAL,
participação na produção de leite e crescente na M. F. Agricultura familiar no Nordeste:
de ovos, assim como boa expressão na produção uma análise comparativa entre dois censos
caprina. Nas culturas, mantém-se expressiva na agropecuários. Fortaleza: Banco do Nordeste do
produção de bananas e castanha de caju. A ele- Brasil, 2011.
vada participação em diversas culturas tempo-
rárias é, antes, expressão de resiliência que de IBGE. Censo Agropecuário 2017: resultados
pujança. definitivos. Rio de Janeiro: IBGE, 2019.
O acesso ao crédito institucional, principal-
IBGE/SIDRA. Censo Agropecuário 2017:
mente com o Pronaf, mesmo que ainda com
resultados definitivos. Rio de Janeiro: IBGE,
pouca abrangência, deixou de ser fator de es-
2019. Disponível em: https://sidra.ibge.gov.br.
trangulamento como no passado, quando esse
Acesso em: 03 jan. 2020.
acesso praticamente inexistia. A análise da efe-
tividade desse crédito em transformar a agrope- KUZNETZ, S. Modern economic growth:
cuária e elevar a produtividade, tem sido objeti- Rate, Structure and Spread. New Haven: Yale
vo de vários estudos. Não obstante, acredita-se University Press, 1966.
que mereça mais análises.
Estes resultados refletem o acerto das polí- MAGALHÃES, A. R. Vida e seca no Brasil.
ticas adotadas e a necessidade de sua continui- In: NYS, E.; ENGLE, N.L.; MAGALHÃES,
dade, tanto para o fortalecimento como para a A.R. (Orgs.) Secas no Brasil: política e gestão
facilitação dos ajustes necessários. proativas. Brasília, CGEE/Banco Mundial, 2016,
p. 19-35.
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 155-171, agosto, 2020
169
170
Agricultura familiar e desenvolvimento rural em Alagoas: Um olhar a partir do Censo Agropecuário de 2017
Rural development and alagoan family agriculture: a view from the information of the
2017 Agricultural Census
Luciano Celso Brandão Guerreiro Barbosa
Economista. Pós-Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor Adjunto IV da Universidade
Federal de Alagoas (UFAL). Campus Sertão. Universidade Federal de Alagoas, Campus Sertão. Rua Prefeito Adeildo Nepomuceno
Marques, 472, Monumento. CEP: 57500-000, Santana do Ipanema, AL – Brasil. luciano.barbosa@santana.ufal.br
Resumo: O presente artigo apresenta o perfil socioe- Abstract: This article aims to analyze the socioecono-
conômico da agricultura familiar alagoana, a partir mic profile of family farming in Alagoas, based on in-
das informações constantes do Censo Agropecuário de formation from the 2017 Census of Agriculture, of the
2017, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística Brazilian Institute of Geography and Statistics (IBGE),
(IBGE), observando algumas questões que envolvem observing some issues that involve the current develop-
a atual dinâmica de desenvolvimento pensada para o ment dynamics thought for the brazilian rural. The work
rural brasileiro. O trabalho foi construído a partir de was built from quantitative information and seeks to
informações quantitativas e fez uma análise explorató- make an exploratory analysis about the family farming
ria acerca do cenário da agricultura familiar no Estado scenario in the state of Alagoas, correlating with the-
de Alagoas, correlacionando com referenciais teóricos oretical references on rural development. Quantitative
sobre desenvolvimento rural. As informações quantita- information was obtained through the IBGE Automa-
tivas foram obtidas do Sistema IBGE de Recuperação tic Recovery System (SIDRA), based on data from the
Automática (Sidra). Chegou-se à conclusão de que a 2017 Census of Agriculture. It was concluded that fa-
agricultura familiar alagoana passa por um processo de mily farming in Alagoas is undergoing a process of pro-
reorganização produtiva e que dialoga com problemá- ductive reorganization and that it dialogues with proble-
ticas que envolvem as discussões e ações inerentes ao ms that involve the discussions and actions inherent to
processo de desenvolvimento rural que vem ocorrendo the rural development process that has been taking pla-
no Brasil pós-anos 2000. Grande parte disso, advém do ce in Brazil after the 2000s. A large part of this, comes
enfraquecimento do setor produtivo canavieiro alagoa- from the weakening of the sugar cane production sector
no, que tem demandado dos atores produtivos novos ru- in Alagoas, which has been demanding new directions
mos para o desenvolvimento rural e para a reprodução for rural development and socioeconomic reproduction
socioeconômica da agricultura familiar. of family farming.
Palavras-chave: Agricultura Familiar; Diversificação Keywords: Family farming; Productive Diversifica-
Produtiva; Desenvolvimento Rural; Alagoas. tion; Rural Development; Alagoas.
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 173-194, agosto, 2020
171
Luciano Celso Brandão Guerreiro Barbosa e Tatiana Frey Biehl Brandão
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 173-194, agosto, 2020
172
Agricultura familiar e desenvolvimento rural em Alagoas: Um olhar a partir do Censo Agropecuário de 2017
I - Possuir, a qualquer título, área de até quatro cunho agrícola ou não agrícola, estando estas
módulos fiscais; atreladas a diversos setores da economia.
Esta nova realidade, na qual emergiu um novo
II - Utilizar, no mínimo, metade da força de
rural brasileiro, propicia a criação de condições
trabalho familiar no processo produtivo e de
geração de renda;
favoráveis para que os agricultores familiares
possam permanecer no campo, desenvolvendo
ou não atividades voltadas à produção agrope-
III - Auferir, no mínimo, metade da renda fami-
liar de atividades econômicas do seu estabele- cuária, mas de forma a contemplar os modos e
cimento ou empreendimento; e projetos de vida adotados e vislumbrados pelas
famílias rurais. Além disso, esta nova realidade
IV - Ser a gestão do estabelecimento ou do empre- se expressa por meio dos modos de vida e da
endimento estritamente familiar (BRASIL, 2017). organização dos sistemas socioprodutivos que
são fruto da diversidade de identidades cultu-
Para a execução do objetivo proposto, este rais e das dinâmicas ecossistêmicas existentes
artigo foi dividido em oito seções, contando no território e que podem potencializar ou limi-
esta Introdução. Sendo assim, as seções que se- tar o trasbordamento de modelos exógenos de
rão desenvolvidas no transcorrer deste trabalho desenvolvimento rural na dinâmica territorial.
são: (2) Desenvolvimento rural e a agricultura
Neste contexto, Feijó (2011, p. 6) explica que
familiar brasileira; (3) Caracterizando a agri-
atualmente o desenvolvimento rural é um con-
cultura familiar em Alagoas; (4) Cenário produ-
ceito que abrange “[...] mais do que o apoio à
tivo da agricultura familiar; (5) Meio ambiente
produção agropecuária, hoje se pensa em como
e agricultura familiar; (6) Pessoal ocupado na
valorizar um dado território viabilizando nele um
agricultura familiar; (7) Movimentação finan-
conjunto variado de atividades econômicas e não
ceira e renda dos estabelecimentos agrícolas fa-
apenas as produções agrícola e pecuária”. Já Car-
miliares; e (8) Considerações finais.
neiro (2009) considera a agricultura como apenas
mais uma das ocupações existentes no ambiente
rural, uma vez que está havendo nesse ambiente
2 DESENVOLVIMENTO RURAL E A uma expansão de práticas econômicas que com-
AGRICULTURA FAMILIAR BRASILEIRA binam atividades agrícolas com outras atividades
socioeconômicas (atividades não-agrícolas).
Discutir e pensar o desenvolvimento para o
Porém, o sistema produtivo no ambiente ru-
ambiente rural, na atualidade, consiste em vis-
ral está estruturado de uma forma bastante de-
lumbrar a elaboração e execução de agendas
sigual. Os produtores de maiores porte e aporte
e estratégias que vão muito além do que o fo-
financeiro são os que controlam o capital dis-
mento às práticas produtivas de cunho agrícola,
ponível para o fomento do setor agropecuário
mesmo sendo a agricultura a principal atividade
e a obtenção das terras férteis, além de seus
produtiva desse ambiente.
estabelecimentos rurais estarem próximos a lo-
O rural demanda um processo de desenvol- cais que detêm a melhor infraestrutura. Desta
vimento que, não só busque, mas efetive a ge- forma, estão sendo privilegiados em detrimento
ração de melhores condições de vida e que pre- dos agricultores mais pobres e com menos re-
serve/conserve os ecossistemas aí existentes. cursos (ALTIERI, 2004); diga-se de passagem,
Contudo, esta demanda passa pela construção que esta é a situação da maioria dos agricultores
de um processo de desenvolvimento rural que brasileiros, principalmente, na região Nordeste.
contemple a diversidade de identidades cultu-
Neste sentido, os agricultores familiares com
rais, sistemas socioprodutivos e de coevolução
menor aporte econômico possuem, em geral, uma
com os ecossistemas existentes nos territórios
dependência de recursos financeiros para desen-
rurais. Por outro lado, tal demanda fundamenta-
volver suas atividades produtivas que, por sua
-se em um processo de desenvolvimento rural
vez, demandam muito dinheiro. Além disso, a
que incentive e fomente a diversidade de ati-
forma desigual de inserção comercial e desenvol-
vidades produtivas socioeconômicas, seja de
vimento do sistema produtivo acabam por excluir
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 173-194, agosto, 2020
173
Luciano Celso Brandão Guerreiro Barbosa e Tatiana Frey Biehl Brandão
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 173-194, agosto, 2020
174
Agricultura familiar e desenvolvimento rural em Alagoas: Um olhar a partir do Censo Agropecuário de 2017
pois o Censo se apresenta como um quadro-ce- Por outro lado, está havendo um processo de
nário do que vem ocorrendo no rural brasileiro, reorganização produtiva agropecuária em Ala-
incluindo aí, o que ocorre em Alagoas. goas, na qual áreas utilizadas na produção de
cana-de-açúcar pertencentes à agricultura não
familiar, estão sendo destinadas a outras cul-
3 CARACTERIZANDO A AGRICULTURA turas agrícolas (predominantemente as não ali-
FAMILIAR EM ALAGOAS mentícias) ou ficando em estado de ociosidade.
Esta área poderia ser redistribuída para os agri-
Para entender a dinâmica da agricultura fa- cultores familiares, associada a uma agenda de
miliar alagoana e como ela reflete no processo incentivo produtivo, atrelado a um processo de
de desenvolvimento rural do Estado é necessá- desenvolvimento rural, que vislumbrasse as po-
rio compreender, primeiro, o perfil tanto dos tencialidades deste segmento produtivo e das no-
agricultores como dos estabelecimentos agro- vas oportunidades socioeconômicas propiciadas
pecuários ali existentes. por este novo ambiente sociocultural e econômi-
Neste sentido, o ambiente rural de Alagoas co no qual está inserido o rural do século XXI.
passa por um processo de transformação que se Este contexto de má distribuição da terra vem
intensificou a partir dos anos 2000. Inicialmente, sendo debatido por diversos pesquisadores que es-
sobre a reorganização produtiva do rural, passan- tudam o rural alagoano, a exemplo de Lira (2007)
do recentemente pela reorganização econômica do e Veras (2011). O último autor apontou, inclusive,
Estado. Contudo, nesse processo, a agropecuária que a concentração de terra se elevou de um índi-
e, principalmente, a agricultura familiar, ainda se ce de 0,858 para 0,871 no período de1985 a 2006.
apresentam como elementos essenciais ao proces- Infelizmente, ainda se verifica uma concentração
so de desenvolvimento socioeconômico estadual. substancial de terra em poucos estabelecimentos,
Assim, de uma área de 2.776.766 hectares, uma vez que, em 2017, 83,59% dos estabeleci-
Alagoas possui 66,80% do território coberto por mentos agropecuários alagoanos detinham apenas
áreas componentes de ambientes rurais, sendo 33,67% das terras agrícolas do Estado (Tabela 1).
que os estabelecimentos agropecuários ocupam Desta forma, com as possibilidades que vêm
1.636.712 hectares (58,94% da extensão terri- sendo proporcionadas para a agricultura fami-
torial do Estado); as terras indígenas ocupam liar brasileira nos últimos anos, Alagoas poderia
25.218 hectares (0,91% da extensão territorial ter realizado uma correção na forma como estão
do Estado); e as unidades de conservação ocu- distribuídas as terras agropecuárias, gerando
pam 193.030 hectares (6,95% da extensão terri- um ambiente favorável a um maior desenvolvi-
torial do Estado) (IBGE, 2019). Ou seja, numa mento no ambiente rural. Até porque a agricul-
perspectiva de gestão espacial, o ambiente rural tura familiar se constitui em um grupo impor-
deve ser visto e incluído nos debates e propos- tante para o rural alagoano, haja vista que dos
tas de desenvolvimento, seja no âmbito do de- 98.542 estabelecimentos agropecuários, 82.369
senvolvimento de sistemas produtivos (agrícola são caracterizados como familiares (83,59% do
ou não) ou da reorganização das formas como total), frente aos 16.173 caracterizados como
são ocupadas as terras, por exemplo, ao se dis- não familiares (16,41% do total).
cutir projetos de expansão da área urbana.
Variáveis
Número Número Não
% % %
absoluto absoluto familiar
Área dos Estabelecimentos Agropecuários (Hectares) 1.636.712 100,00 551.034 33,67 1.085.678 66,33
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 173-194, agosto, 2020
175
Luciano Celso Brandão Guerreiro Barbosa e Tatiana Frey Biehl Brandão
Percentual de estabelecimentos
classificados como agricultura familiar,
por município
Até 40,0%
De 40,1% a 60,0%
De 60,1% a 80,0%
Acima de 80,0%
Fonte: IBGE (2019, p. 101), adaptado pelos autores.
Em relação às áreas dos estabelecimentos agrárias do rural em Alagoas. Além do que, com
agropecuários, este se constitui em um problema este quantitativo de área ocupado por unidades
ao desenvolvimento da agricultura familiar ala- familiares, fica difícil pensar em um desenvol-
goana, pois 30,13% deles detêm área de até um vimento agrícola atrelado a modelos produti-
hectare. Se for elevado o ponto de corte até cinco vos demandantes de escala de produção para
hectares, o contingente se amplia para 67,54%, o segmento. Assim, a diversificação produtiva
e, se ampliado até 10 hectares, alcançará 83,56% agropecuária, bem como, o desenvolvimento
das explorações familiares (Tabela 2). de atividades não-agrícolas, inclusive de forma
Tais números sinalizam um cenário que pode associada, poderia proporcionar uma melhoria
inviabilizar agendas que busquem o desenvolvi- das condições socioeconômicas deste grupo de
mento, mas não contemplem as particularidades agricultores.
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 173-194, agosto, 2020
176
Agricultura familiar e desenvolvimento rural em Alagoas: Um olhar a partir do Censo Agropecuário de 2017
Tabela 2 – Distribuição dos estabelecimentos agropecuários de Alagoas por grupos de área total (2017)
No que se refere ao sexo do produtor, 76,53% vo, apesar de pequeno é muito importante para
(75.416) dos estabelecimentos agropecuários um Estado fortemente patriarcalista no meio ru-
alagoanos são chefiados por homens. Entre os ral, principalmente, no contexto das Regiões do
estabelecimentos familiares, 24,59% (22.946) Agreste e do Semiárido Alagoano.
são chefiados por mulheres, enquanto nos não Outra informação extraída do Censo Agro-
familiares as mulheres chefiam 16,65% (2.693) pecuário 2017 é que 74,98% das pessoas que
dos estabelecimentos agropecuários. Cabe sa- dirigem os estabelecimentos agropecuários em
lientar, que analisando apenas o universo de Alagoas residem no estabelecimento. No que se
estabelecimentos agropecuários com produtor refere à agricultura familiar, 77,25% dos pro-
do sexo feminino, observa-se que 88,26% dos dutores residem em suas unidades de produ-
estabelecimentos são caracterizados como fa- ção. Vale salientar aqui, que houve melhora na
miliares (IBGE/SIDRA, 2019). Este quantitati- infraestrutura dos municípios interioranos de
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 173-194, agosto, 2020
177
Luciano Celso Brandão Guerreiro Barbosa e Tatiana Frey Biehl Brandão
Proprietário(a) 77.182 78,32 1.510.635 92,30 64.761 78,62 88,32 12.421 76,80 1.023.940 94,31
Concessio-
nário(a) ou
assentado(a) 4.790 4,86 29.605 1,81 4.306 5,23 25.632 4,65 484 2,99 3.972 0,37
aguardando titu-
lação definitiva
Arrendatário(a) 2.591 2,63 38.496 2,35 2.149 2,61 5.467 0,99 442 2,73 33.029 3,04
Parceiro(a) 3.241 3,29 19.372 1,18 2.603 3,16 9.855 1,79 638 3,94 9.517 0,88
Comandatá-
7.048 7,15 27.338 1,67 5.643 6,85 18.073 3,28 1.405 8,69 9.265 0,85
rio(a)
Ocupante 2.934 2,98 11.267 0,69 2.342 2,84 5.311 0,96 592 3,66 5.956 0,55
Produtor
756 0,77 - - 565 0,69 - - 191 1,18 - -
sem área
Neste sentido, os agricultores familiares cionais junto ao sistema financeiro para aces-
que já possuem estabelecimentos agropecuá- sar crédito agrícola ou obter assistência da rede
rios com pequena extensão de terras, se veem institucional de orientação técnica e extensão
em uma situação de relação precária, no que rural” (ALAGOAS, 2016, p. 19). Logo, dificul-
concerne à propriedade da terra (assentado tando o desenvolvimento produtivo (agrícola e
sem titulação definitiva, arrendatário, parcei- não-agrícola) e socioeconômico dos estabele-
ro, ocupante e produtor sem área). Por sua vez cimentos familiares e gerando um entrave ao
“Esse fenômeno se traduz em dificuldades adi- processo de desenvolvimento rural.
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 173-194, agosto, 2020
178
Agricultura familiar e desenvolvimento rural em Alagoas: Um olhar a partir do Censo Agropecuário de 2017
Apesar das questões levantadas, a partir do ção, como mercado orgânico e de procedência
quadro apresentado para a agricultura familiar, de origem (BARBOSA, 2007, 2013). Mas não
apenas 9,22% dos estabelecimentos caracteri- apenas no sentido restrito da produção agríco-
zados como familiares são associados a alguma la, pois formas associativas de gestão de sis-
cooperativa e/ou entidade de classe. Observa- temas produtivos poderiam ser utilizadas para
-se que a principal forma de associação dos o desenvolvimento de atividades não agrícolas,
agricultores familiares é a participação em en- como o turismo rural ou a agroindustrialização,
tidade de classe/sindicatos, 22,85% dos estabe- podendo aproveitar o know how adotado na po-
lecimentos (IBGE/SIDRA, 2019). lítica para o turismo já praticado no Estado.
Essa forma de associação é extremamente Outro ponto negativo consiste na presta-
importante, pois fortalece o grupo, porém não ção de orientação técnica aos agricultores fa-
exclui a necessidade de desenvolver o capital miliares (Tabela 4). Um quadro alarmante foi
social a ponto das formas associativas, tam- observado, uma vez que dos 82.369 estabele-
bém, contemplarem os processos de produção cimentos familiares, apenas 5,07% recebem
e escoamento da produção via Associação e/ orientação técnica. Mas esse não é um panora-
ou Cooperativa, pois as áreas produtivas, em ma notado unicamente na agricultura familiar.
sua maioria, são consideradas pequenas para a No cômputo geral, dos 98.542 estabelecimen-
produção agropecuária. Neste caso, essas insti- tos agropecuários alagoanos, apenas 6,18%
tuições poderiam alavancar a inserção comer- recebem orientação técnica. Já em relação aos
cial via associação para escoamento da produ- estabelecimentos agropecuários não familiares,
ção em quantidade, ou via acesso a mercados 11,80% recebem orientação técnica.
diferenciados com elevados custos de transa-
Tabela 4 – Número de produtores atendidos e origem da orientação técnica recebida pelos estabelecimentos
agropecuários de Alagoas – 2017
Governo (federal, estadual ou municipal) 2.619 2,66 2.105 2,56 514 3,18
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 173-194, agosto, 2020
179
Luciano Celso Brandão Guerreiro Barbosa e Tatiana Frey Biehl Brandão
produtivas agrícolas ou não-agrícolas. Nesse Neste contexto, na próxima seção será apre-
ambiente precário de prestação de orientação sentado e debatido o cenário produtivo emer-
técnica à agricultura familiar, verificou-se que gente do perfil, aqui exposto, acerca da agricul-
6,78% que fazem uso de adubação recebem tura familiar alagoana.
orientação técnica. Não é diferente do quantita-
tivo de estabelecimento familiares que informa-
ram fazer uso de adubação orgânica e que rece- 4 CENÁRIO PRODUTIVO DA
bem orientação técnica (7,90%). Preocupante, AGRICULTURA FAMILIAR
ainda, é observar que em um contexto de dis-
cussão sobre alimentação saudável e segura, e Tendo em consideração tanto as limitantes
de contaminação de alimentos por insumos quí- como o perfil heterogêneo dos estabelecimentos
micos acima do permitido, apenas 6,23% dos agropecuários familiares, assim como, as espe-
estabelecimentos familiares que fazem uso de cificidades edafoclimática de cada Mesorregião
agrotóxico tenham afirmado receber orientação do Estado de Alagoas, é possível vislumbrar
técnica (IBGE/SIDRA, 2019). o cenário e o potencial produtivo bem diverso
que existe em Alagoas. Assim, não é de se es-
Já no caso dos estabelecimentos familiares
tranhar a diversidade de atividades produtivas
que possuem acesso a sistema de irrigação, ape-
agrícolas e não-agrícolas sendo desenvolvidas
nas 12,34% recebem orientação técnica para a
nos estabelecimentos agropecuários familiares
sua utilização. Este é outro caso que preocupa,
alagoanos. Todavia, o cenário encontrado não é
pois o mau uso dos sistemas de irrigação (usar
o ideal, pois o estágio de desenvolvimento não
água em excesso na produção agrícola) pode
é satisfatório.
gerar problemas no solo, desde a erosão à sa-
linização, com consequências mais graves em Por outro lado, há um cenário produtivo im-
estabelecimentos situados no semiárido, onde portante para a reprodução socioeconômica dos
há severa restrição desse recurso natural. agricultores familiares, frente à possibilidade
de inserção produtiva e comercial em diversos
Porém, o quadro citado não é verificado ape-
mercados, seja de cunho agropecuário e/ou não-
nas em estabelecimentos familiares. Na agricul-
-agrícola (que, geralmente, remunera melhor os
tura não familiar, o contingente de estabeleci-
agricultores). Neste cenário, há espaço para que
mentos que recebem orientações técnicas para
a família organize estratégias que permitam a
o uso dos insumos mencionados não chega a
participação dos membros da família (alocação
20%, em todos os casos de uso, exceto no caso
da mão de obra familiar) em diversas fases do
da irrigação, em que 30,60% afirmam receber
sistema produtivo (da produção à comerciali-
orientação técnica.
zação) ou no desenvolvimento de outras ativi-
Portanto, a agricultura familiar alagoana dades produtivas não-agrícola, como turismo
é submetida a diversos fatores limitantes, ao rural.
tempo que devido ao seu perfil heterogêneo,
Neste sentido, observando o Gráfico 1 a se-
pode-se vislumbrar possibilidades, caminhos
guir, verifica-se a importância da participação
para a superação dos problemas aqui apresen-
da agricultura familiar na produção das lavou-
tados. Entretanto, cabe às instituições gover-
ras permanentes. Isto é notório ao se analisar
namentais disponibilizarem instrumentos, por
que dos 18 itens apresentados no Gráfico, 15
meio de políticas públicas, para que os agri-
têm acima de 50% de sua produção oriunda da
cultores familiares potencializem seus sistemas
agricultura familiar, destacando-se o abacate e a
de produção agrícola e não-agrícola a partir de
graviola (100% da produção), além do maracujá
suas singularidades e de seus modos e projetos
(88,8% da produção).
de vida.
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 173-194, agosto, 2020
180
Agricultura familiar e desenvolvimento rural em Alagoas: Um olhar a partir do Censo Agropecuário de 2017
Gráfico 1 – Participação da agricultura familiar e não familiar na quantidade de toneladas produzidas pelas
principais lavouras permanentes de Alagoas, 2017 (Em %)
0,0% 0,0% 3,0%
100%
15,3% 17,8% 13,6% 11,2%
90% 22,1%
23,4% 18,8% 18,7% 26,6%
80% 39,6%
35,0% 40,6% 55,6%
70%
67,9%
60%
81,3% 100,0% 88,5%
50%
100,0% 76,6% 84,7% 82,2% 86,4% 88,8% 97,0%
40%
77,9% 81,3% 73,4%
30% 60,0%
65,0% 59,4% 50,0%
20%
32,1%
10%
11,5%
0%
Abacate
Acerola
Banana
Caju (castanha)
Caju (fruto)
Coco-da-baía*
Fruta-de-conde
Goiaba
Graviola*
Jabuticaba
Jaca*
Laranja
Limão
Manga
Mamão
Maracujá
Pimenta-do-reino
Outros produtos
Agricultura Familiar Agricultura Não Familiar
Nas lavouras temporárias, bem como nas dução), batata-inglesa (90,9% da produção),
permanentes, a agricultura familiar se sobressai sementes de milho para plantio (89,8% da pro-
com importante participação na produção. Veja- dução), abacaxi e arroz em casca (89,4% da pro-
-se que, dos 29 itens apresentados no Gráfico 2, dução). Nota-se ainda, que a agricultura familiar
20 têm na agricultura familiar o seu principal produz cana-de-açúcar que utiliza na sua produ-
produtor. Ênfase deve ser dada às produções ção artesanal de cachaça e rapadura, bem como
de algodão herbáceo e mamona (100% da pro- fornece às usinas sucroenergéticas.
Gráfico 2 – Participação da agricultura familiar e não familiar na quantidade de toneladas produzidas pelas
principais lavouras temporárias de Alagoas, 2017 (Em %)
120%
0,0% 0,0%
100% 10,6% 9,1% 10,8% 10,7%
10,6% 14,0% 22,0%
13,5% 12,9% 11,2%
20,5% 16,4% 20,7% 37,0% 31,0% 33,8%
31,6%
80%
45,4% 55,3% 50,3%
54,3% 100,0%
68,3% 64,3%
60%
95,0% 100,0% 89,8%
89,4% 100,0% 89,4% 99,6% 99,3%
87,1% 79,5% 83,6% 79,3% 88,4%
40%
86,5% 90,9% 89,2% 86,0% 78,0% 69,0% 66,2%
68,4% 54,6% 63,0% 49,7%
44,7% 45,7%
20%
31,7% 35,7%
0% 5,0% 0,2% 0,7% 0,0%
Abacaxi*
Algodão herbáceo
Amendoim em casca
Arroz em casca
Melancia
Melão
Cana-de-açúcar
Fava em grão
Milho em grão
Sorgo em grão
Cana forrageira
Milho forrageiro
Palma forrageira
Feijão verde
Sorgo forrageiro
Outros produtos
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 173-194, agosto, 2020
181
Luciano Celso Brandão Guerreiro Barbosa e Tatiana Frey Biehl Brandão
Gráfico 3 – Participação da agricultura familiar e não familiar nos rebanhos e principais produtos da pecu-
ária de Alagoas – 2017 (Em %)
100% 0,0%
14,5% 11,7%
90% 26,2% 21,2% 19,7%
31,3% 27,8% 36,7%
80% 39,4%
46,3% 51,0% 40,8%
56,3% 50,9% 46,0% 53,9%
70% 63,6%
60%
93,8% 92,4%
50% 100,0%
85,5% 88,3%
40% 78,8% 80,3%
68,7% 72,2% 73,8% 63,3%
30% 60,6%
54,0% 53,7% 49,0% 59,2%
49,1% 46,1%
20% 43,7% 36,4%
10%
6,2% 7,6%
0%
Galinhas, galos, frangas,
frangos e pintos*
Bovinos
Bubalinos
Equinos
Asininos
Muares
Caprinos
Ovinos
Suínos
Codornas
Produtos da aquicultura*****
Perus
Coelhos
Ovos de galinha****
Leite de Vaca**
Ovos de coordona****
Leite de Cabra***
Mel de abelha*****
Cera de abelha*****
Agricultura Familiar Agricultura Não Familiar
A agricultura familiar desenvolve, também, tando 88,4% dos estabelecimentos deste seg-
produtos da agroindústria rural (Tabela 5). mento (4.855 estabelecimentos familiares); e
Destacam-se, em termos de número de estabe- farinha de mandioca, representando 88,3% dos
lecimentos agropecuários (em percentual) as estabelecimentos deste segmento (3.575 esta-
produções agroindustriais de: carne tratada (de belecimentos familiares). Ressalte-se que, dos
sol, salgas), representando 100% dos estabele- 14 principais produtos agroindustriais rurais
cimentos deste segmento (4 estabelecimentos alagoanos, 11 têm na agricultura familiar o seu
familiares); fumo em rolo ou corda, represen- principal produtor.
Tabela 5 – Principais produtos da agroindústria rural da agricultura familiar e não familiar em Alagoas (2017)
Estabelecimentos agropecuários familiares (N), produção (toneladas) e valor produção (R$ mil)
Aguardente de cana* 4 57,1 25 27,5 249 16,7 3 42,9 66 72,5 1.245 83,3
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 173-194, agosto, 2020
182
Agricultura familiar e desenvolvimento rural em Alagoas: Um olhar a partir do Censo Agropecuário de 2017
Estabelecimentos agropecuários familiares (N), produção (toneladas) e valor produção (R$ mil)
Farinha de mandioca 3.575 88,3 4.353 83,7 10.640 83,5 472 11,7 850 16,3 2.100 16,5
Fumo em rolo ou corda 4.855 88,4 4.912 82,8 28.327 82,5 639 11,6 1.021 17,2 5.995 17,5
Polpa de frutas 26 68,4 23 4,8 139 7,2 12 31,6 457 95,2 1.786 92,8
Queijo e requeijão 198 82,5 1.029 87,1 12.064 84,7 42 17,5 153 12,9 2.180 15,3
Carne de suínos (verde) 52 86,7 42 89,4 485 88,2 8 13,3 5 10,6 65 11,8
Carne de outros animais (verde) 30 83,3 29 93,5 401 92,4 6 16,7 2 6,5 33 7,6
Outros produtos 73 71,6 178 1,4 2.663 16,3 29 28,4 12.264 98,6 13.668 83,7
Goma ou tapioca 119 72,1 350 89,7 1.194 87,7 46 27,9 40 10,3 168 12,3
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 173-194, agosto, 2020
183
Luciano Celso Brandão Guerreiro Barbosa e Tatiana Frey Biehl Brandão
Associado a este contexto, Veras (2011) expli- florestamento para proteção de nascentes; (iv)
ca que a agricultura praticamente dizimou as ma- 2.459 hectares são utilizados para manejo flo-
tas naturais em Alagoas, desde o Bioma Caatinga restal (IBGE/SIDRA, 2019).
à Mata Atlântica. Para este autor, os agricultores Assim, em Alagoas falta mais incentivo,
familiares tiveram uma boa parcela de responsa- seja decorrente de cobrança dos consumidores
bilidade nesse processo, pois devastaram a cober- ou, principalmente, de políticas de fomento
tura vegetal natural com o objetivo de expandir por parte dos gestores públicos para que a agri-
sua área de cultivo ou para vender e consumir a cultura familiar preserve os recursos naturais
madeira, buscando sua sobrevivência. (BARBOSA, 2007). Este incentivo e fomento
As informações do Censo Agropecuá- poderiam possibilitar um reposicionamento de
rio 2017, de alguma forma, corroboram essas alguns agricultores em mercados mais lucrati-
afirmações. Apesar de 77,01% dos estabeleci- vos, como o orgânico, ou recebendo novas ren-
mentos familiares (63.433 estabelecimentos) das ligadas a serviços ambientais, como pode-
contarem com algum tipo de recursos hídricos, ria melhorar a qualidade de vida da população
ainda há um viés tendendo a não proteção das local por meio da manutenção da paisagem e
matas, importantes para a manutenção desses dos recursos naturais locais (rios, lagos, matas
recursos hídricos. Assim, dos estabelecimentos e florestas) e conservação da fauna. Isto poderia
familiares que possuem algum tipo de recursos representar uma redução de demanda por insu-
hídricos, apenas 4.649 (7,33%) têm nascentes mos produtivos devido a possíveis melhorias
protegidas por matas, enquanto 7.091 (11,18%) no equilíbrio ecossistêmico (ALTIERI, 2004,
possuem nascentes sem a proteção de matas. Já BARBOSA, 2013).
8.005 estabelecimentos (12,62%) detêm rios ou Neste contexto, verificou-se que 3.137 esta-
riachos que são protegidos por matas. Por outro belecimentos familiares (3,83%) desenvolvem
lado, 13.414 estabelecimentos (21,15%) detêm sistemas agroflorestais (área cultivada com es-
rios e riachos que não são protegidos por matas pécies florestais também usada para lavouras e
(IBGE/SIDRA, 2019). pastoreio por animais), totalizando 19.365 hec-
Ressalta-se que atualmente as atividades de tares. Observou-se, também, o desenvolvimento
proteção/conservação dos recursos hídricos no da agricultura e/ou pecuária orgânica pelos esta-
rural podem (na verdade devem) ser remune- belecimentos familiares, contudo, ainda em um
radas, pois representam um serviço ambiental percentual muito baixo. Neste sentido, foram
prestado pelo agricultor. Inclusive, no Brasil, observados que 3,35% dos estabelecimentos fa-
existem diversas experiências de remuneração miliares manejam seus sistemas produtivos se-
desses serviços ambientais, sejam pagos por guindo a premissa da agricultura e/ou pecuária
instituições públicas, privadas e do terceiro se- orgânica. São apenas 2.762 estabelecimentos,
tor. um contingente muito baixo frente ao potencial
Além disso, dos 82.369 estabelecimentos que detém o Estado (IBGE/SIDRA, 2019).
agropecuários familiares, 5.717 (6,94%) pos- Este manejo ocorre da seguinte forma nos
suem matas ou florestas naturais destinadas à estabelecimentos familiares alagoanos: produ-
preservação permanente ou reserva legal, cor- ção vegetal – desenvolvido em 74,51% dos es-
respondendo a 23.618 hectares. Outros 1.222 tabelecimentos (ou em 2.058 estabelecimentos);
estabelecimentos familiares (1,48%) possuem produção animal – manejado em 10,57% dos es-
matas e/ou florestas naturais, totalizando 5.161 tabelecimentos (ou em 292 estabelecimentos); e
hectares. Observou-se, ainda, que 351 estabe- produção vegetal e animal – desenvolvido em
lecimentos familiares (0,43%) detêm florestas 14,92% dos estabelecimentos (ou em 412 esta-
plantadas, cuja área corresponde a 607 hectares. belecimentos) (IBGE/SIDRA, 2019).
Ainda, foi observado que a agricultura familiar, Quanto à faixa etária do agricultor que pra-
disponibiliza: (i) 5.220 hectares para a proteção tica a agricultura e/ou pecuária orgânica na
e/ou conservação de encostas; (ii) 4.049 hecta- unidade familiar, observou-se que na maioria
res são utilizados para a recuperação de mata dos estabelecimentos familiares (1.870 estabe-
ciliar; (iii) 6.004 hectares são utilizados para re- lecimentos, ou 67,71%) o agricultor tem acima
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 173-194, agosto, 2020
184
Agricultura familiar e desenvolvimento rural em Alagoas: Um olhar a partir do Censo Agropecuário de 2017
de 45 anos de idade. Por outro lado, em ape- a ocupação da mão de obra constitui-se em um
nas 75 estabelecimentos familiares (2,72%), o fator importante para a análise e desenvolvimen-
agricultor está na faixa idade inferior a 25 anos. to dos estabelecimentos agropecuários alagoa-
Deste modo, foi verificado que: (i) 300 estabe- nos. Assim, a próxima seção apresenta e debate
lecimentos familiares (10,86%) o agricultor tem aspectos ligados à ocupação da mão de obra.
idade entre 25 a menos de 35 anos; (ii) 517 es-
tabelecimentos familiares (18,72%) o agricultor
tem idade entre 35 a menos de 45 anos; (iii) 662
6 PESSOAL OCUPADO NA AGRICULTURA
estabelecimentos familiares (23,97%) o agri- FAMILIAR
cultor tem idade entre 45 a menos de 55 anos;
A ocupação da mão de obra nos estabele-
(iv) 608 estabelecimentos familiares (22,01%)
cimentos agropecuários alagoanos é um fator
o agricultor possui idade entre 55 a menos de
importante de análise, principalmente, no que
65 anos; (v) 420 estabelecimentos familiares
se refere à agricultura familiar. Isto se deve ao
(15,21%) o agricultor possui idade entre 65 a
fato de que a forma de ocupação da mão de obra
menos de 75 anos; e (vi) 180 estabelecimentos
nesse segmento poderá interferir diretamente na
familiares (6,52%) o agricultor possui idade
continuidade do estabelecimento rural, seja de-
acima de 75 anos (IBGE/SIDRA, 2019).
vido à transição hereditária ou à forma de gestão
Pode ser notado que a prática da organocul- que será adotado pelo sucessor do negócio rural.
tura é desenvolvida, em sua maioria, por agri-
Neste sentido, a observação das caracterís-
cultores mais velhos. Isso, por sua vez, pode
ticas de gênero nos estabelecimentos é impor-
dificultar o desenvolvimento desse sistema pro-
tante. Veja-se que os dados do último Censo
dutivo a longo prazo, caso não haja sucessão
(Tabela 6) mostram que das 326.913 pessoas
familiar nos estabelecimentos agropecuários.
ocupadas em estabelecimentos agropecuários,
Nota-se, portanto, que ainda há um longo ca- 243.434 pessoas são do sexo masculino (74,5%
minho a ser percorrido pela agricultura familiar da mão de obra ocupada) e 83.479 pessoas
em Alagoas para tornar-se sustentável, tanto são do sexo feminino (25,5% da mão de obra
ecologicamente quanto economicamente, uma ocupada). Em relação ao Censo Agropecuário
vez que as degradações ambientais incidem di- 2006, houve pequena redução da participação
retamente sobre a viabilidade produtiva e eco- das mulheres (2,4%) no contingente de pessoas
nômica dos estabelecimentos agropecuários. ocupadas nesses estabelecimentos.
Contudo, o quadro observado não está restrito
Essa redução pode ser derivada de uma
apenas à agricultura familiar; a não familiar, da
maior participação das mulheres em ocupação
mesma forma, não apresenta níveis de proteção
fora do estabelecimento agropecuário, desde
e conservação ambiental que a elevem à condi-
sua alocação no mercado de trabalho urbano
ção de sustentável. Desta forma, é necessário
formal e informal ao desenvolvimento de ou-
que as instituições, seja pública, privada ou do
tras atividades produtivas interligadas à produ-
terceiro setor, atuem com mais ênfase, incenti-
ção agropecuária, como a agroindustrialização
vem e fomentem uma mudança paradigmática
ou comercialização dos produtos, assim como,
da agricultura alagoana, rumo a uma situação
desenvolvendo atividades não-agrícolas. Tam-
de sustentabilidade. Principalmente porque,
bém pode ser uma consequência de importantes
conforme Barbosa (2013), a sustentabilidade
programas sociais como o Bolsa Família, que
pode significar novas oportunidades econô-
gera incremento na renda familiar, permitindo
micas para os agricultores familiares e para a
um reposicionamento da mão de obra feminina
economia local, como tem sido observado em
para outras alocações, produtivas ou não. As-
outras localidades no Brasil, uma vez que novos
sim, torna-se importante a realização de estudos
mercados são abertos, tais como: ecoturismo,
para detectar, quais foram os motivos que leva-
turismo rural, serviços ambientais, agroenergia
ram a esta pequena redução da participação das
e energias renováveis, dentre outras.
mulheres no contingente de pessoal ocupado em
Em conjunto com a discussão sobre a produ- atividades agropecuária nos estabelecimentos.
ção agropecuária e sobre as questões ambientais,
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 173-194, agosto, 2020
185
Luciano Celso Brandão Guerreiro Barbosa e Tatiana Frey Biehl Brandão
Tabela 6 – Pessoal ocupado em estabelecimentos agropecuários com menos de 14 anos e com mais de 14
anos, por sexo, em Alagoas (2017)
Tipo de pessoal ocupado Agricultura (total) Agricultura familiar Agricultura não familiar
Pessoal ocupado em
estabelecimentos agrope- 326.913 243.434 83.479 227.115 156.423 70.692 99.798 87.011 12.787
cuários
Pessoal ocupado em
estabelecimentos agrope-
318.191 238.238 79.953 219.832 152.196 67.636 98.359 86.042 12.317
cuários
(com 14 anos e mais)
Pessoal ocupado em
estabelecimentos agrope-
8.722 5.196 3.526 7.283 4.227 3.056 1.439 969 470
cuários (com menos de 14
anos)
Outro fato observado, foi que do pessoal ocu- de obra ocupada) e 70.692 do sexo feminino
pado em atividades agropecuárias nos estabele- (31,1% da mão de obra ocupada).
cimentos, 8.722 pessoas detinham menos de 14 Foi observado, também, que a maior parte
anos de idade (2,7% da mão de obra ocupada). do pessoal ocupado em estabelecimentos agro-
Veras (2011) explica que a inserção de mão de pecuários possui laço de parentesco com o pro-
obra infantojuvenil não é recente nas atividades dutor. São 225.604 pessoas com esta caracte-
laborais na agropecuária alagoana. Para o autor, rística, ou seja, 69% das pessoas ocupadas em
esta ocupação é realizada desde tempos remotos atividades agropecuárias nos estabelecimentos
na produção da vida material, apresentando-se alagoanos. Além disso, verifica-se que a maior
como uma forma de ‘contribuição’ ao núcleo quantidade de pessoal ocupado em estabeleci-
familiar. Todavia, comparando a situação atual mentos agropecuários que possui laço de paren-
com a apresentada por Veras, nota-se expres- tesco com o produtor encontra-se na agricultura
siva redução da utilização da mão de obra de familiar. São 193.739 pessoas com esta caracte-
pessoas com idade abaixo dos 14 anos nas ativi- rística, ou seja, 85,9% das pessoas ocupadas em
dades agropecuárias. Veras (2011) expõe que no atividades agropecuárias nos estabelecimentos
Censo Agropecuário 2006, 21.992 pessoas com (Tabela 7).
menos de 14 anos exerciam atividades agrope-
No âmbito da agricultura familiar, o maior
cuárias nos estabelecimentos rurais alagoanos,
contingente de pessoas ocupadas em estabeleci-
sendo que 91,8% destas pessoas exerciam suas
mentos agropecuários possui laço de parentesco
atividades em estabelecimentos familiares, uma
com o produtor, são 193.739 pessoas ocupadas
redução de 152,1% em 11 anos.
com esta característica (ou 85,3% da mão de
No caso da agricultura familiar, verifica-se obra ocupada). Nada de novo no contexto da
na Tabela 7, que 227.115 pessoas estão ocupa- agricultura familiar. Por outro lado, no que se
das em atividades agropecuária nos estabeleci- refere ao pessoal ocupado em estabelecimentos
mentos (69,5% da mão de obra ocupada). As- agropecuários sem laço de parentesco com o
sim, nota-se que a agricultura familiar continua produtor, predomina na agricultura familiar ala-
ocupando a maior parcela da mão de obra que goana a utilização de mão de obra temporária.
desenvolve atividades agropecuárias em estabe- Foram 28.586 pessoas ocupadas em atividades
lecimentos rurais. Deste contingente, 156.423 agropecuárias nos estabelecimentos com esta
pessoas são do sexo masculino (68,9% da mão característica, ou seja, 85,6% das pessoas ocu-
padas (Tabela 7).
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 173-194, agosto, 2020
186
Agricultura familiar e desenvolvimento rural em Alagoas: Um olhar a partir do Censo Agropecuário de 2017
Tabela 7 – Pessoal ocupado em atividades agropecuárias, por tipo de pessoal ocupado e sexo, em Alagoas
(2017)
Tipo de pessoal ocupado Agricultura (total) Agricultura familiar Agricultura não familiar
Total Masculino Feminino Total Masculino Feminino Total Masculino Feminino
Pessoal ocupado em
estabelecimentos 326.913 243.434 83.479 227.115 156.423 70.692 99.798 87.011 12.787
agropecuários
Pessoal ocupado em
estabelecimentos
225.604 147.186 78.418 193.739 125.161 68.578 31.865 22.025 9.840
agropecuários com laço de
parentesco com o produtor
Pessoal ocupado em
estabelecimentos
101.309 96.248 5.061 33.376 31.262 2.114 67.933 64.986 2.947
agropecuários sem laço de
parentesco com o produtor
Permanentes 34.992 32.297 2.695 4.285 3.277 1.008 30.707 29.020 1.687
Temporários 61.815 59.761 2.054 28.586 27.524 1.062 33.229 32.237 992
Tabela 8 – Participação dos agricultores familiares e não familiares no Valor Total da Produção (VTP) da
agropecuária em Alagoas (2017)
Estabelecimentos agropecuários Valor Total da Produção VTP Médio
Tipo de agricultura % %
com produção (VTP) (Mil Reais) (Mil Reais)
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 173-194, agosto, 2020
187
Luciano Celso Brandão Guerreiro Barbosa e Tatiana Frey Biehl Brandão
Ocorre que, como observado acima, é pre- em mercados de proximidade e nos mercados
ciso incentivar e fomentar mais a agricultura institucionais que contribuem bastante para me-
familiar, não na perspectiva de um incremen- lhorar os níveis de segurança alimentar.
to extraordinário do seu VTP, que seria muito Relativamente ao financiamento, a distribui-
bom, mas para que mais agricultores familiares ção quanto à finalidade é apresentada na Tabela
possam contribuir para o incremento do VTP, 9. Nota-se que os investimentos são a principal
sem esquecer de fortalecer os que já vêm con- finalidade do crédito obtido pela agricultura fa-
tribuindo. Para isto, se fazem necessários mais miliar alagoana (73,32% dos estabelecimentos);
investimentos em orientação técnica, em incen- outros 27,59% contraem financiamento para
tivo à inserção mercadológica, principalmente, custeio.
Tabela 9 – Número de estabelecimentos agropecuários que obtiveram financiamento por finalidade do fi-
nanciamento em Alagoas (2017)
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 173-194, agosto, 2020
188
Agricultura familiar e desenvolvimento rural em Alagoas: Um olhar a partir do Censo Agropecuário de 2017
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 173-194, agosto, 2020
189
Luciano Celso Brandão Guerreiro Barbosa e Tatiana Frey Biehl Brandão
agropecuária nos estabelecimentos a comercializa- renda não monetária. Contudo, devem ser fomen-
ção da produção (inclusive troca ou escambo). tadas iniciativas de inserção dos agricultores fa-
Interessante observar que 50,12% dos estabe- miliares no sistema comercial, seja nos mercados
lecimentos agropecuários familiares detêm como de proximidade ou nos mercados institucionais,
destino principal a produção agropecuária para o ou em formas alternativas de comercialização,
autoconsumo do núcleo familiar dos agricultores pois isto tende a gerar incremento financeiro e
e de seus parentes. Esse fato é importante quando pode proporcionar maior autonomia para os agri-
se pensa em segurança alimentar. Além disso, re- cultores, principalmente, quando associado à prá-
presenta entrada financeira via contabilização de tica do autoconsumo.
Tabela 10 – Relação Renda obtida com as atividades desenvolvidas e Finalidade principal da produção
agropecuária nos estabelecimentos agropecuários familiares em Alagoas (2017)
Agricultura (total)
Agricultura familiar
Renda obtida com as atividades
desenvolvidas no estabelecimento Consumo
agropecuário Consumo próprio
próprio e Comercialização Comercialização
e de pessoas
de pessoas da produção da produção
Total Total com laços de
com laços de (inclusive troca (inclusive troca
parentescos com o
parentescos com ou escambo) ou escambo)
produtor
o produtor
Total de Estabelecimentos
98.542 47.991 50.551 82.369 41.284 41.085
Agropecuários
Por fim, uma análise interessante sobre a renda Censo Agropecuário 2017 sobre o Estado de
obtida pelos estabelecimentos familiares refere- Alagoas, é possível vislumbrar que há no rural
-se à relação entre renda obtida com as atividades alagoano elementos que podem conduzir a agri-
desenvolvidas com a finalidade principal da pro- cultura familiar a novos horizontes socioprodu-
dução agropecuária no estabelecimento familiar. tivos e socioeconômicos.
Ao analisar a Tabela 10 percebe-se que a renda Como visto, a agricultura familiar apresenta
das atividades agropecuárias desenvolvidas em uma importância significativa na produção agrí-
40,99% dos estabelecimentos familiares é menor cola, na pecuária e na produção agroindustrial
que as outras rendas obtidas, porém com destino rural, bem como, no desenvolvimento de outras
principal voltado ao consumo próprio e de pesso- atividades produtivas. Também, gera um signi-
as com laços de parentesco com o produtor. As- ficativo Valor Total da Produção, bem como, é
sim, é possível notar que esses estabelecimentos responsável por gerar ocupação e renda.
familiares organizam suas estratégias reproduti-
Entretanto, observou-se que a agricultura fa-
vas associando o recebimento de renda via obten-
miliar está aquém de seu potencial produtivo em
ção de receitas monetárias e não monetárias.
Alagoas, muito disso, podendo ser derivado do
pouco acesso a assistência técnica e financia-
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS mentos. Talvez, isto seja decorrente da lógica
reprodutiva, hoje vigorante no ambiente rural e
Diante do contexto exposto, a partir da abor- para a agricultura familiar alagoana, a qual vis-
dagem teórica e das informações obtidas do lumbra apenas recursos necessários para atuar
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 173-194, agosto, 2020
190
Agricultura familiar e desenvolvimento rural em Alagoas: Um olhar a partir do Censo Agropecuário de 2017
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 173-194, agosto, 2020
191
Luciano Celso Brandão Guerreiro Barbosa e Tatiana Frey Biehl Brandão
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 173-194, agosto, 2020
192
Agricultura familiar no estado de Sergipe: Uma leitura a partir dos dados do Censo Agropecuário 2017
Family agriculture in the state de Sergipe: a reading form the data of the 2017
agricultural census
José Eloízio da Costa
Geógrafo. Doutor em Geografia Agrária (UNESP-Rio Claro/SP). Professor Titular do Departamento e do Programa
de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Av. Marechal Rondon, s/n Bloco
Departamental II, Jardim Rosa Elze. CEP: 49100-000, São Cristóvão, SE – Brasil. eloizio.npgeo@gmail.com
Resumo: O objetivo do presente artigo é realizar uma Abstract: The purpose of this article is to perform a ge-
leitura geográfica da importância e das características ographic reading of the importance and socioeconomic
socioeconômicas da agricultura familiar no Estado de characteristics of family farming in the State of Sergipe
Sergipe segundo os dados do Censo Agropecuário 2017, according to data from the 2017 IBGE Agricultural Cen-
do IBGE. Para tanto, recorreu-se à pesquisa bibliográfi- sus. For that, bibliographic research and the analysis of
ca e à análise de indicadores e variáveis da mencionada indicators and variables of the mentioned research were
pesquisa. Em linhas gerais, o trabalho destaca: 1) o do- used. In general, the work highlights: 1- the domain in
mínio da agricultura familiar no número de estabele- the number of agricultural establishments sergipanos;
cimentos agropecuários sergipanos; 2) o perfil desses 2-the profile of these actors, as of brown majority, ow-
atores, como sendo de maioria parda, proprietários de ners of small plots, aged and managers of their units;
pequenos lotes, idosos e gestores de suas unidades; 3) a 3-low schooling; 4- the fragility of ATER’s support;
baixa escolaridade; 4) a fragilidade do apoio da ATER; 5-the insignificant level of the organization; and 6- the
5) o insignificante nível da organização; e 6) o baixo low percentage of hiring labor. Despite the limits pre-
percentual de contratação de crédito. Apesar dos limites sented, the family segment stands out in the production
apresentados, o segmento familiar destaca-se na produ- of some temporary crops and in livestock, especially in
ção de algumas lavouras temporárias e na pecuária, es- milk production. There is also a greater dynamism due
pecialmente na produção de leite. Também se nota um to the proliferation of vehicles in the countryside, such
maior dinamismo fruto da proliferação de veículos no as the use of motorcycles as the dominant means of
campo, a exemplo do uso da motocicleta como meio de transport. In summary, Sergipe family farming presents
transporte dominante. Em síntese, a agricultura familiar structural problems, lacking public policies to support
sergipana apresenta problemas estruturais, carecendo its productive base and well spatialized, in order to con-
de políticas públicas de apoio à sua base produtiva e template the segment throughout the state.
bem espacializadas, no sentido de contemplar o seg- Keywords: Family Farming; Agricultural Census
mento em todo o território estadual. 2017; Public Policy; Sergipe.
Palavras-chave: Agricultura Familiar; Censo Agrope-
cuário 2017; Políticas Públicas; Sergipe.
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 195-209, agosto, 2020
193
José Eloízio da Costa e Diana Mendonça de Carvalho
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 195-209, agosto, 2020
194
Agricultura familiar no estado de Sergipe: Uma leitura a partir dos dados do Censo Agropecuário 2017
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 195-209, agosto, 2020
195
José Eloízio da Costa e Diana Mendonça de Carvalho
municípios localizados no semiárido, território cimentos dos AFs também se somam aos limi-
com forte atuação do Movimento dos Trabalha- tes anteriores. Por exemplo, o uso de adubação
dores Sem Terra (CARVALHO; COSTA, 2019). poderia ser melhor apresentado, na medida em
Ainda em relação à questão da terra, obser- que 38,2% dos estabelecimentos de AFs sequer
va-se maior concentração em estabelecimentos utilizam essa técnica, o que evidencia fragilida-
de menor tamanho de área, situados nas faixas de no processo de produção e no uso da terra de
de 0 a 5 ha, representando 61,1% em relação ao forma mais efetiva, visando ampliar os níveis
total, como apresentado na Tabela 3. Esse as- de produtividade. E naqueles onde a adubação é
pecto é interessante, mas também preocupante, efetivada, os estabelecimentos processam essa
podendo ser explicado pelas mudanças na or- técnica com uso da adubação química, presen-
ganização dessas unidades produtivas familia- tes em pouco mais de um terço das unidades fa-
res: o tamanho exíguo poderia ser um vetor de miliares. Por outro lado, o uso da adubação or-
abandono das atividades nos estabelecimentos gânica é ainda baixo entre os estabelecimentos
de AFs, por serem economicamente inviáveis e dos AFs, superando ligeiramente 10% (IBGE/
certamente não atraírem como “empreendimen- SIDRA, 2019).
to familiar” os filhos. Ou seja, a condição de Na linha da conservação do solo, no contex-
proprietário não serviria como indutor de esta- to das práticas agrícolas, o quadro é desanima-
bilidade no desenvolvimento rural, uma vez que dor, visto que tais práticas não são comuns en-
o caráter patrimonialista não alteraria o quadro tre os AFs, devido ao seu desconhecimento (ou
da possível diminuição em termos quantitativos indiferença) em relação ao processo. Dentre as
dos AFs sergipanos nos estabelecimentos agro- práticas de conservação observadas, destacam-
pecuários. -se a rotação de cultura (presentes em 15,4%
dos estabelecimentos agropecuários), bem
Tabela 3 – Número de estabelecimentos familia- como a prática do pousio ou descanso de solos
res de Sergipe por grupos de área total (em 21,6% dos estabelecimentos), técnicas tra-
(2017) dicionais decorrentes da experiência acumulada
e não necessariamente assimiladas pelo acesso
Número de % em relação
Grupos de área à orientação ou assistência técnica. Por outro
estabelecimentos ao total
lado, as práticas mais aperfeiçoadas de preser-
De 0 a menos de 5 ha 44.009 61,1 vação e recuperação dos solos nas áreas de AF,
tais como a proteção de encostas (presente em
De 5 a menos de 50 ha 25.347 35,1
apenas 590 estabelecimentos), recuperação da
De 50 a menos de 100 ha 1722 2,4 mata ciliar (195), reflorestamento para proteção
de nascentes (118), estabilização de voçorocas
De 100 a menos de 200 ha 551 0,8 (54) e manejo florestal (171) são inexpressivas,
talvez em função do reduzido tamanho das uni-
De 200 a menos de 500 ha 92 0,1
dades agrícolas, que inviabiliza essas práticas
De 500 a menos de 1.000 ha 1 0 ou pela ausência quase que absoluta da ATER
nesses estabelecimentos (IBGE/SIDRA, 2019)
De 1.000 a menos de 2.500 ha - -
No que tange ao uso de defensivos agrícolas,
De 2.500 a menos de 10.000 ha - - observa-se que tal prática não é universal nos
estabelecimentos da AF sergipanos, conforme
De 10.000 ha e mais - -
os dados apresentados pelo Censo Agropecuá-
Produtor sem área 338 0,5
rio em questão. De fato, do universo de produ-
tores da categoria somente 29,2% deles fazem
Total 72.060 100 uso regular de agrotóxicos, portanto, pequena
Fonte: Censo Agropecuário 2017 (IBGE/SIDRA, 2019).
parcela, mas que empareda determinadas ver-
sões de “envenenamento” dos estabelecimentos
Alguns aspectos referentes às técnicas e agropecuários familiares. E a questão não es-
práticas agropecuárias adotadas nos estabele- taria apenas entre os estabelecimentos da AF,
mas também naqueles considerados como não
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 195-209, agosto, 2020
196
Agricultura familiar no estado de Sergipe: Uma leitura a partir dos dados do Censo Agropecuário 2017
familiares (apenas 6,3% desses estabelecimen- mentos, o tamanho reduzido das propriedades
tos utilizaram agrotóxicos, em relação ao to- opera como “indicador negativo”, necessitando
tal), conforme IBGE/SIDRA (2019). Na mes- de uma abordagem mais empírica para confir-
ma linha, relaciona-se ao insignificante uso da mar tal afirmação.
agricultura orgânica entre os estabelecimentos,
tanto familiares como não familiares. Isso por- Tabela 4 – Local de residência dos agricultores fa-
que apenas 980 desses estabelecimentos entre miliares de Sergipe por grupos de área
os AFs e 225 entre os não familiares cultivam total (2017)
produtos orgânicos, mostrando sua reduzida
Grupos de área Estabelecimentos Em outro
importância, sendo que entre os AFs, isso repre- % %
(Em ha) (Quantidade) local
sentou inexpressivos 1,3% em relação ao total
dos estabelecimentos (IBGE/SIDRA, 2019). De 0 a menos de 1 13.834 31,7 5.927 20,9
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 195-209, agosto, 2020
197
José Eloízio da Costa e Diana Mendonça de Carvalho
das atividades produtivas do campo como fonte Classe de alfabetização - CA 15.567 21,6
principal da renda. Assim, os dados possibili-
tam essa leitura um tanto preocupante em rela- Alfabetização de jovens e adultos - AJA 1.169 1,6
ção ao futuro da AF em Sergipe, necessitando
Antigo primário (elementar) 9.780 13,6
evidentemente de estudos mais detalhados para
entender esse complexo quadro sociodemográ- Antigo ginasial (médio 1º ciclo) 2.652 3,7
fico.
Regular do ensino fundamental ou 1º grau 15.778 21,9
De 25 a menos de 35 anos 5.845 8,1 Técnico de ensino médio ou do 2º grau 477 0,7
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 195-209, agosto, 2020
198
Agricultura familiar no estado de Sergipe: Uma leitura a partir dos dados do Censo Agropecuário 2017
AFs sergipanos, predomina a cor parda, repre- nas unidades familiares de produção (171.239
sentando pouco mais de 60% do total, seguida ou 73,1% do total), demonstrando sua impor-
da cor branca e da preta, com 26,7% e 10,5%, tância como segmento do meio rural sergipano.
respectivamente, dos produtores (IBGE/SI- Por outro lado, o setor patronal responde por
DRA, 2019). 26,9% das 234.161 pessoas que estavam ocu-
Outro traço marcante dos AFs estudados é padas nos estabelecimentos agropecuários em
o limitado acesso à assistência técnica, proble- 2017.
ma que se arrasta por décadas e com tendência
de agravar o quadro no futuro próximo. Ini- Tabela 7 – Pessoal ocupado nos estabelecimentos
cialmente, destaca-se a ATER pública, que se agropecuários do Estado de Sergipe
apresenta inexpressiva e de baixa eficiência no (2017)
que se refere ao apoio às unidades familiares,
Pessoal ocupado
alcançando somente 6% delas, de acordo com o Tipo de Agricultura
Censo Agropecuário 2017. Somando-se o apoio Número Em %
estatal com o de outras instituições/entidades,
as ações de ATER em Sergipe alcançam meros Familiar 171.239 73,1
Da mesma forma que o aspecto anterior, Fonte: IBGE, Censo Agropecuário, 2017 (IBGE/SIDRA, 2019).
também se nota um baixo nível de organização
coletiva entre os produtores familiares, repro- Ainda detalhando o pessoal ocupado nos es-
duzindo o trágico quadro nordestino em função tabelecimentos dos AFs, constata-se que em sua
do reduzido interesse em se filiar ou associar essência são “realmente familiares”, na medida
a entidades ou ainda estar envolvido em movi- em que todos os estabelecimentos operam com
mentos sociais organizados. Nesse sentido, os atores que possuem laços de parentesco. A ex-
dados revelam que insignificante 1,6% desta ceção é 17,8% do total das unidades familiares
categoria é sócio das cooperativas, 6,3% estão recenseadas, onde predominam relações de tra-
ligados aos movimentos dos produtores e 5,9% balho fora do vínculo de parentesco, situação
pertencem a associações de moradores. O desta- explicada não pela presença de pessoal ocupa-
que, naturalmente, está nas filiações aos sindi- do de forma permanente, mas principalmente
catos dos trabalhadores rurais, mas ainda assim pela contabilização de pessoal que executa ta-
de pouco alcance, representando apenas 23% do refas em contratos temporários (IBGE/SIDRA,
universo de agricultores recenseados (IBGE/SI- 2019).
DRA, 2019). No total geral do pessoal ocupado no Estado
de Sergipe, aumentou de 6,8% em relação ao
censo anterior e que aparentemente desmonta
4 PESSOAL OCUPADO determinada versão do esvaziamento demográ-
fico rural. Entretanto, em relação ao pessoal
Em relação ao pessoal ocupado nos estabele-
ocupado com laço de parentesco nos estabele-
cimentos dos AFs em Sergipe, os dados do Cen-
cimentos dos AFs, o quadro é diferente: houve
so Agropecuário de 2017 mostram um quadro
diminuição substancial nessas unidades fami-
que certamente é observado também nas demais
liares (menos 35,2%), acompanhando a redução
unidades político-administrativas do Nordeste:
do número de estabelecimentos agropecuários
existem variações, tanto entre os próprios AFs
(menos 20,2%).
quanto entre os contratados diretamente, tanto
temporal como permanentemente. Para ilustrar Comparativamente ao Censo 2006, os dados
esse argumento, a Tabela 7 apresenta o contin- aqui analisados mostram alta do trabalho tem-
gente de pessoal ocupado por estabelecimentos porário entre os AFs em Sergipe, expandido em
agropecuários em valores absolutos. Nela, se 62%, processo relacionado com a diminuição
observa o predomínio de mão de obra ocupada dos AFs que possuem laços de parentesco e me-
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 195-209, agosto, 2020
199
José Eloízio da Costa e Diana Mendonça de Carvalho
nor número de estabelecimentos. A ampliação total do pessoal ocupado), seguida das lavou-
do trabalho temporário relaciona-se também ras temporárias com 28,5% em relação ao total
com o processo de envelhecimento dos AFs e (IBGE/SIDRA, 2019).
concretamente com a necessidade de contrata- Na perspectiva dos dias trabalhados anual-
ção dessa categoria de trabalhador rural. Isso se mente, por número de estabelecimentos, 91,8%
soma à redução da participação dos filhos nes- das unidades familiares operam com pesso-
sas atividades e que, certamente, mudará o qua- al ocupado por 180 dias ou mais, evidenciado
dro demográfico rural sergipano nos próximos pelo domínio do trabalho familiar e da partici-
anos e décadas. pação relativa dos estabelecimentos que operam
Um segundo aspecto revelado na compa- com contratos abaixo de 90 dias: são trabalhos
ração entre ambos os censos, diz respeito aos temporários (presentes em 33,5% desses esta-
“sem laço de parentesco”. A queda acentuada da belecimentos). Em número de pessoal ocupado,
mão de obra (-40,7%), reforça a concepção de os dias trabalhados de 180 dias ou mais repre-
que o trabalho familiar no estabelecimento está sentou 66,5% do contingente e 26,2% em traba-
atenuando, ao lado do afastamento de atores lhos executados em menos de 90 dias, em nada
sem qualquer vínculo familiar (IBGE/SIDRA, alterando a prevalência familiar como meio de
2019). Infelizmente, os dados evidenciam um realização do trabalho nos estabelecimentos
quadro preocupante de perda da importância (IBGE/SIDRA, 2019).
social da AF no estado de Sergipe, mesmo que Por conseguinte, o que se observa em termos
ainda apresente um contingente de pessoal ocu- de pessoal ocupado é o declínio dos AFs ser-
pado superior ao daquele observado no Censo gipanos, embora o segmento ainda gere ocupa-
de 2006 entre os estabelecimentos familiares e ções produtivas para mais de 170 mil pessoas.
não familiares. Esse declínio ocorre devido às questões de na-
Essa queda em importância pode estar rela- tureza não apenas econômicas, mas em função
cionada também com a irrelevância do papel da da percepção dos descendentes desses agricul-
intermediação no processo de contratação de tores que não mais a enxergam como atividade
pessoal na AF, visto que 81,1% não realizaram eficaz de geração de trabalho e renda (LOPES
esse acordo de vontades, até pela diminuição et al., 2007). Daí o uso de novas estratégias de
quantitativa de atores sociais-trabalhadores e de sobrevivência fortalecidas, por exemplo, pela
estabelecimentos. Mas naqueles estabelecimen- oferta e capilaridade da educação básica e supe-
tos nos quais o intermediador atuou, 53% das rior facilmente acessível e da possibilidade de
contratações executadas se voltaram à atividade viver em outro “mundo do trabalho”, necessa-
pecuária e 31,8% à lavoura temporária. Impor- riamente não agrícola, diferente do tradicional
tante observar que a lavoura permanente não trabalho rural familiar. Apesar desse quadro já
é tão relevante como atividade recrutadora de em processo, paradoxalmente não existe inte-
pessoal para a agricultura, por exemplo, porque resse no desfazimento patrimonial da unidade
só se contrata no período de colheitas (IBGE/ familiar que permanece sob a gestão dos geni-
SIDRA, 2019). tores, cada vez mais idosos.
Analisando a questão do pessoal ocupado,
sem levar em consideração o papel da inter- 5 ACESSO A MEIOS DE TRANSPORTE E
mediação, mas o número de estabelecimentos,
o trabalho em unidades familiares esteve con-
TECNOLOGIAS
centrado nas atividades da pecuária bovina e Os meios de transporte e a inserção de tec-
na criação de outros animais (51,6%), ao passo nologias no processo de produção nas unidades
que 27,7% desses estabelecimentos contaram dos AFs sergipanos têm sido caracterizados por
com pessoal ocupado no desenvolvimento das um quadro de mudanças parciais, a exemplo
lavouras temporárias. Esse quadro é reproduzi- da adubação química, ainda inexpressiva, e do
do também pelo número do pessoal que opera inexistente apoio da ATER. Entretanto, novos
nessas unidades familiares, sendo a pecuária dados devem ser inseridos para entender os cha-
a que concentra mais trabalhadores (52,1% do mados “processos de modernização e inovação
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 195-209, agosto, 2020
200
Agricultura familiar no estado de Sergipe: Uma leitura a partir dos dados do Censo Agropecuário 2017
tecnológica”. Ainda assim, essa inserção é limi- (Tabela 8). Os dados sinalizam, de certa forma,
tada, com pouco alcance nos estabelecimentos a importância da AF no Estado em relação aos
familiares. diversos usos dos meios de transporte.
Nesse contexto, destacam-se aqui alguns
indicadores relevantes associados ao acesso a Tabela 8 – Número de automóveis, caminhões e
motocicletas, automóveis, tratores e implemen- utilitários nos estabelecimentos agro-
tos agrícolas. Isso indica mudanças nas últimas pecuários Familiares e Não Familiares
décadas no que se refere aos meios de trans- de Sergipe (2017)
portes utilizados pelos AFs, particularmente
Número de veículos
para uso individual. O transporte com uso de Veículos
animais, principalmente equinos, praticamente Familiares Não familiares
desapareceu em Sergipe, sendo substituído, em
sua maioria pelas motocicletas, que se tornou Automóveis 1.484 922
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 195-209, agosto, 2020
201
José Eloízio da Costa e Diana Mendonça de Carvalho
deiras, com 258 unidades. Números inexpressi- explicada pelo aspecto tradicional no uso do re-
vos considerando que existem no Estado mais banho como ativo. A criação de bovinos se con-
de 70 mil estabelecimentos considerados como centra em estabelecimentos que agregam área
de AF (IBGE/SIDRA, 2019). na faixa de 5 a 50 ha, que, pelos padrões das
unidades dos AFs em Sergipe, podem ser enqua-
dradas como “médios estabelecimentos”. Nessa
6 PARTICIPAÇÃO DA AGRICULTURA classe, o rebanho bovino representa 59,3% em
FAMILIAR NA PRODUÇÃO número de cabeças e 56,1% em número dos
AGROPECUÁRIA estabelecimentos agropecuários enquadrados
como de AFs (IBGE/SIDRA, 2019).
6.1 Pecuária Outro aspecto interessante da atividade cria-
A atividade pecuária nos estabelecimentos tória sergipana relaciona-se ao seu desenvolvi-
familiares em Sergipe integra um processo so- mento no território do semiárido estadual, com
cioeconômico de “longa duração”. Ainda que a presença dominante dos rebanhos bovinos,
as unidades de produção sejam relativamente caprinos e ovinos, não apenas pelo aspecto de
pequenas, a pecuária tem grande relevância na criações tipicamente tradicionais, mas da intro-
constituição da renda familiar desses agriculto- dução de mecanismos que podem ser conside-
res. E os números do Censo Agropecuário 2017 rados como “modernos”. Porém, os problemas
reforçam a assertiva. Destacam-se as criações associados à escassez hídrica continuam sendo
de bovinos, ovinos, caprinos e o desenvolvi- determinantes na área estudada. Conforme es-
mento da avicultura. clarece Rocha (2017, p. 182): “[...] a disponibi-
lidade e os usos da água no Estado de Sergipe,
Na Tabela 9 se observa a relevância das
particularmente na Região Semiárida, continu-
cinco criações majoritariamente presentes nos
am a ser uma questão crucial no que concerne ao
estabelecimentos, bem como o seu papel estra-
desenvolvimento dessa localidade”. Para tentar
tégico na consolidação dos pequenos agriculto-
conviver com as adversidades do meio ambien-
res. A exceção dos ovinos e caprinos, as cria-
te e melhorar o desempenho dos rebanhos, tem
ções nos estabelecimentos familiares superam
crescido o uso da palma forrageira como prin-
80% do total das criações do Estado, inferindo
cipal fonte de alimentos para os animais, bem
que a pecuária ainda permanece como atividade
como a inserção da inseminação artificial como
central no desenvolvimento da unidade de pro-
uma das técnicas mais difundidas na região.
dução familiar sergipana.
Importante relatar que as cinco atividades pe-
Tabela 9 – Participação da agricultura familiar nos cuárias destacadas na Tabela 9, além de tradicio-
principais rebanhos da pecuária sergi- nais entre os AFs, são as mais relevantes no Esta-
pana (2017) do, mesmo com problemas de natureza produtiva,
devido ao baixo nível tecnológico do processo de
Estabelecimentos produção. Além disso, a criação de bovinos emer-
Criações ge como componente simbólico entre os produto-
Total Familiares %
res familiares de todas as faixas de tamanho, na
Bovinos 41.993 33.682 80,2
medida em que se articula não apenas para “criar
e vender” para matadouros locais, mas também
Caprinos 1.816 1.410 77,6 para o autoconsumo, como é o caso do leite, que,
nos últimos anos, tem tido sua produção amplia-
Ovinos 10.723 8.390 78,2
da face à constituição de duas cadeias produtivas.
Suínos 7.065 5.879 83,2 A primeira cadeia produtiva relaciona-se
com as chamadas “fabriquetas de queijo” pul-
Galinhas, galos, frangos e pintos 35.787 28.950 80,9
verizadas às dezenas no território do sertão ser-
Fonte: Censo Agropecuário 2017 (IBGE/SIDRA, 2019). gipano e que imprime um processo tradicional
de articulação com os produtores de leite de
Note-se que a alta participação do gado bo- base familiar. Nos anos mais recentes, contu-
vino nos estabelecimentos familiares pode ser
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 195-209, agosto, 2020
202
Agricultura familiar no estado de Sergipe: Uma leitura a partir dos dados do Censo Agropecuário 2017
do, tem mudado esse padrão face às exigências versificação produtiva, mesmo com pouco des-
sanitárias e a inserção de componentes tecno- taque quando comparadas à atividade da pecu-
lógicos no processo de produção, aumentando, ária tradicional familiar. A análise dos produtos
de certa forma, a produtividade dessas unidades agrícolas que geraram maior efeito no meio rural
de fabricação artesanal do queijo e derivados. em Sergipe, parte da prévia observação do que
É evidente que a relação é assimétrica em de- foi produzido nos últimos anos, face à ascensão
trimento dos pequenos produtores de leite cru. de especificidades no interregno entre os censos
Já a segunda cadeia produtiva tem como base agropecuários do IBGE, como a Grande Seca
a integração com grandes unidades beneficia- de 2012 a 2017 (ROCHA, 2017). Essa combi-
doras/processadoras instaladas no Estado, onde nação permitiu a classificação dessas culturas
praticamente dominam o pequeno mercado in- na nomenclatura conhecida, ou seja, lavouras
terno, porém priorizando a exportação inter-re- temporárias e permanentes. Em número de es-
gional dos produtos derivados do leite. A conhe- tabelecimentos agropecuários, o Censo Agro-
cida desorganização social dos produtores (não pecuário 2017 revela que 90% desenvolveram
há uma cooperativa de pequenos produtores de atividades relacionadas às lavouras temporárias
leite no Estado) e a força econômico-financeira e dessas, 73,2% são da AF. Para verificar o peso
dessas empresas, observada na constituição as- do segmento, na Tabela 10 estão representadas,
simétrica dos preços, praticamente subordina em termos absolutos, as quantidades produzidas
individualmente os pequenos produtores fami- de boa parte das lavouras temporárias cultiva-
liares no fornecimento da matéria-prima. das em Sergipe, fazendo comparação entre os
estabelecimentos da AF e da Não AF, bem como
Como perspectiva, aufere-se que a economia
do percentual do que foi cultivado nas unidades
rural sergipana para os próximos anos tem na
familiares em relação ao total. Foram escolhi-
pecuária o segmento mais importante, que, ao
das onze lavouras e, destas, seis tiveram partici-
lado do agronegócio do milho, forma a estrutura
pação acima de 80% nas unidades familiares, e
econômica do meio rural do Estado. Da mes-
dez com mais de 50% em quantidade produzida.
ma forma, pode-se particularizar a questão do
Como esperado, a cana-de-açúcar teve maior
leite de vaca como a principal estratégia, pela
participação nas unidades não familiares, sendo
forte capilaridade nos mercados locais, ser-
insignificante a participação nas unidades fami-
vindo como principal indutor na melhoria das
liares nessa cultura típica de grandes unidades
condições de vida dos AFs sergipanos, sendo de
de produção.
maior impacto nos residentes do território do
sertão1. Quanto ao valor da produção das lavouras
temporárias, a agricultura familiar se destaca,
Diante do exposto, fica evidente o avanço e a
sendo responsável por 50,7% do total. No en-
importância da pecuária bovina estadual e o pa-
tanto, registra diminuição relativa de 42,9% no
pel econômico que exerce para várias unidades
valor da venda, processo explicado pela menor
familiares de produção, pela agregação de renda,
capacidade desses agricultores estabelecerem
apesar dos problemas mencionados. Ademais,
preços para venda (IBGE/SIDRA, 2019). Ainda
essa produção abre outras perspectivas regionais
assim, essa participação é significativa em um
em Sergipe, como a polarização de municípios
segmento em que o domínio das unidades não
produtores, comercializadores e distribuidores do
familiares presumidamente é determinante.
leite em diversas escalas mercantis e espaciais.
No que tange às lavouras permanentes, con-
siderando nos dados do Censo 2017 (IBGE/SI-
6.2 Lavouras
DRA, 2019) apenas as plantações com 50 pés
A referência às lavouras entre os agricultores ou mais, destacam-se como as mais importantes
familiares de Sergipe ganha importância na di- e tradicionais no Estado, as seguintes: acerola,
caju (fruto), coco-da-baía, laranja e maracujá.
1 Ordenamento Territorial estabelecida pelo Governo do Estado de Entre elas, os estabelecimentos dos AFs repre-
Sergipe em meados da primeira década dos anos 2000, para fins de
sentam 74% dentre aqueles que cultivam ace-
planejamento. Para maiores detalhes, ver: https://infonet.com.br/
noticias/economia/governo-divide-o-estado-em-oito-areas-para- rola, 64% dos que produzem o fruto do caju,
estabelecer-planejamento/. Acesso em 03/04/2020. 71,6% dos que agricultam o tradicional coco-
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 195-209, agosto, 2020
203
José Eloízio da Costa e Diana Mendonça de Carvalho
Tabela 10 – Quantidade produzida (em toneladas e mil frutos) pelas lavouras temporárias de Sergipe entre
os estabelecimentos familiares e não familiares e participação (%) dos AFs em relação ao total
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 195-209, agosto, 2020
204
Agricultura familiar no estado de Sergipe: Uma leitura a partir dos dados do Censo Agropecuário 2017
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 195-209, agosto, 2020
205
José Eloízio da Costa e Diana Mendonça de Carvalho
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 195-209, agosto, 2020
206
Agricultura familiar no estado de Sergipe: Uma leitura a partir dos dados do Censo Agropecuário 2017
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 195-209, agosto, 2020
207
208
Agricultura familiar na Bahia: uma análise dos dados do Censo Agropecuário 2017
Resumo: Neste artigo analisam-se alguns dados do Abstract: This article analyzes some data from Census
Censo Agropecuário 2017 do IBGE, referentes à agri- of Agricultural IBGE 2017, referring to family farming
cultura familiar no Estado da Bahia. Fazem-se compa- in the State of Bahia. Comparisons are made in relation
rações com o Brasil e a Região Nordeste. Como apoio, to Brazil and the Northeast region. As support, comple-
utilizam-se dados qualitativos complementares, inclu- mentary and primary information are used. It is inten-
sive primários. Pretende-se verificar a atual situação da ded to verify the nowadays situation of Bahia’s family
agricultura familiar baiana, destacando-se: um resumo farming, highlighting: a historical summary land tenu-
histórico e aspectos da sua estrutura fundiária, pesso- re, population, employed persons, farming numbers,
al ocupado, número de estabelecimentos, principais main crops, animal production, financing and technical
lavouras, produção animal, acesso a financiamento e guidance. In these aspects, it is observed that remains
orientação técnica. Em todos esses aspectos observa-se historical inequality of family farming in relation to the
que permanece a desigualdade histórica da agricultura national average values. The results for Bahia and the
familiar baiana em relação aos valores médios nacio- Northeast, where the most precarious Pronafians (Group
nais. Os resultados para Bahia e Nordeste, espaços onde B Pronaf) are concentrated, are similar. In counterpart
se concentram os agricultores familiares mais precários results are different in relation to Brazil. The unequal
(Grupo B do Pronaf), são similares. Em contrapartida, distribution of financing access shows the same beha-
diferenciam-se os resultados em relação ao Brasil. A vior as the indicators of value of production. Facing
distribuição desigual do acesso a financiamentos apre- that challenge, it proposes to strengthen the politics of
senta o mesmo comportamento dos indicadores referen- ATER in order to attempt Pronaf program’s main target,
tes ao valor da produção. Diante desse desafio, propõe- improving family farming.
-se valorizar mais a política de ATER como meio para Keywords: Family Farming; Non-Family Farming;
atingir o principal objetivo do Pronaf, que é fortalecer a Inequalities; Pronaf.
agricultura familiar.
Palavras-chave: Agricultura Familiar; Agricultura Não
Familiar; Desigualdades; Pronaf.
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 211-226, agosto, 2020
209
Edna Maria da Silva, Livia Liberato de Matos Reis e Vitor de Athayde Couto
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 211-226, agosto, 2020
210
Agricultura familiar na Bahia: uma análise dos dados do Censo Agropecuário 2017
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 211-226, agosto, 2020
211
Edna Maria da Silva, Livia Liberato de Matos Reis e Vitor de Athayde Couto
zada em 2019 (SILVA, 2020), observa-se também É nesse contexto assimétrico de uma es-
um processo de fusões e aquisições de empresas e trutura agrária e ocupacional que se pretende
de propriedades rurais. Em contraposição, a área analisar a agricultura familiar baiana, em suas
média dos menores estabelecimentos (onde se múltiplas manifestações. Na seção dedicada à
concentra a agricultura familiar baiana) continua Metodologia, logo a seguir, começa-se por defi-
experimentando um processo inverso, de fracio- nir o conceito de agricultura familiar e os seus
namento das propriedades. diferentes segmentos classificados segundo a
Nas entrevistas com técnicos que executam tipologia do Pronaf.
serviços de Assistência Técnica e Extensão Rural
(ATER), tanto pública quanto privada (chamada
de editais), são muito frequentes os relatos de 3 METODOLOGIA
ocorrência de fracionamentos das pequenas pro-
O conceito de agricultura familiar, definido
priedades rurais. Isso se deve a casamentos dos
pela Lei n. 11.326, de 24/07/2006, e regula-
filhos, além dos casos de terras cedidas (comoda-
mentado pelo Decreto n. 9.064, de 31/05/2017,
to), e inventários não concluídos. Nesses casos,
serve de referência para o Censo Agropecuário
muitas ocupações são autodeclaradas como “ter-
2017 do IBGE. Daí decorre a quase totalidade
ras cedidas” (geralmente por alguém da família),
dos dados utilizados neste artigo. Além do Cen-
“posses” ou “propriedades”, a depender do enten-
so Agropecuário, outros dados têm referência
dimento do agricultor (SILVA, 2020).
específica, anotada em cada caso – Censo De-
A condição precária de posse e uso de terras, mográfico IBGE 2010, e informações obtidas
sem geolocalização nem documentação conclusa, em pesquisa de campo (SILVA, 2020).
dificulta a execução dos serviços de ATER, a for-
Para fins legais considera-se agricultor fa-
mulação do planejamento e a definição da tipolo-
miliar e empreendedor familiar rural aquele
gia dos agricultores. No limite, dificulta também
que pratica atividades no meio rural e atende
a negociação de contratos de financiamento, com-
simultaneamente a quatro requisitos (BRASIL,
pra e venda da produção, sobretudo nos mercados
2006): a) não possuir área superior a quatro mó-
institucionais, a exemplo de vendas ao Programa
dulos fiscais; b) fazer uso predominantemente
Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).
da mão de obra da família; c) o rendimento fa-
No Gráfico 3, observa-se que o número de miliar deve ser originado predominantemente
pessoas ocupadas na agropecuária do Estado da na unidade de produção familiar; d) a gestão da
Bahia cresceu de 50,64% entre os anos 1970 e unidade produtiva deve ser desenvolvida pela
1985, e decresceu 34,23% no período compre- família. O Decreto n. 9.064/2017, que regula-
endido entre 1985 e 2017. Em 2017 (IBGE/SI- menta a referida lei, determina que deve ser uti-
DRA, 2019), 2.106.127 pessoas encontravam-se lizada, no mínimo, metade da força de trabalho
ocupadas nos estabelecimentos rurais. Quando familiar no processo de produção e geração de
se comparam os dados de 1970 com 2017, ob- rendimentos; e também que, no mínimo, meta-
serva-se uma taxa de decrescimento de 0,92%. de do rendimento familiar deve ser auferido das
atividades desenvolvidas no estabelecimento
Gráfico 3 – Evolução do pessoal ocupado: Bahia, (BRASIL, 2017).
Nordeste e Brasil, 1970-2017
Como observado por Aquino et al. (2018),
25.000.000
aqueles que não se enquadram nos referidos
20.000.000
critérios foram denominados de agricultores
15.000.000 não familiares. Esses critérios, que expressam
10.000.000 relações sociais de produção, associados às
5.000.000 2.662.835 2.508.590
normas operacionais do crédito rural definidas
2.125.809 2.106.127
0
2.518.925 3.202.485 2.326.437 para o público beneficiário do Pronaf, são ado-
1970 1975 1980 1985 1995 2006 2017 tados pelo IBGE e possibilitam a construção de
Brasil Nordeste Bahia
uma tipologia específica para os agricultores
Fonte: IBGE Censo Agropecuário 1970 a 2017 (IBGE/SIDRA, familiares.
2019).
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 211-226, agosto, 2020
212
Agricultura familiar na Bahia: uma análise dos dados do Censo Agropecuário 2017
Aqui se adota a tipologia do IBGE: Agricul- meio da tabulação dos dados do Censo Agrope-
tura familiar e Agricultura não familiar ou pa- cuário 2017.
tronal. A agricultura familiar, que se enquadra
em alguma categoria do Pronaf, pode ser subdi-
vida em agricultura familiar Grupo B (Pronaf B, 4 RESULTADOS E DISCUSSÃO
com renda bruta anual até R$ 20 mil), agricultu-
ra familiar Grupo V (Pronaf V, com renda bruta 4.1 Número de estabelecimentos, área e
anual de R$ 20 mil até R$ 360 mil) e agricul- pessoal ocupado
tura familiar não Pronaf (com renda bruta anu-
No Brasil, a agricultura familiar abrange
al acima de R$ 360 mil). Entretanto, cabe uma
3.897.408 estabelecimentos, que representam
observação. Ao se excluírem os agricultores fa-
76,82% do total dos estabelecimentos. Essa su-
miliares de um conjunto-universo, não implica,
perioridade de mais de ¾ do número de estabe-
por exclusão, serem patronais os restantes. A
lecimentos da agricultura familiar verifica-se
rigor, o conceito de patronal supõe propriedade
em todas as macrorregiões brasileiras. Confor-
individual e privada. Todavia, existem coletivi-
me a Tabela 1, o Nordeste concentra a maior
dades representadas por territórios (indígenas,
parte dos estabelecimentos não familiares e fa-
quilombolas, outras comunidades tradicionais),
miliares, dentre as macrorregiões. A agricultu-
faxinais, fundos de pasto etc. Muitos desses ter-
ra familiar no Nordeste representa 79,17% do
ritórios, onde sobrevivem agricultores familia-
total dos estabelecimentos da Região e 34,65%
res, são também beneficiários do Pronaf. Para
do total dos estabelecimentos brasileiros.
simplificar, apresenta-se a análise conforme a
tipologia disponibilizada pelo IBGE.
Tabela 1 – Número de estabelecimentos agrícolas:
Os agricultores que se enquadram no grupo Brasil e regiões (2017)
familiar não Pronaf (pouco numerosos em rela-
ção aos totais), embora tenham os pré-requisi- Tipologia
tos para serem considerados agricultores fami- Brasil
grande Região
liares, ainda não são beneficiários do Programa. Total
Agricultura Agricultura
não familiar familiar
Os agricultores do tipo não familiar ou patronal
são aqueles que não se enquadram nos critérios Brasil 5.073.324 1.175.916 3.897.408
definidos por lei em nenhuma categoria de agri-
Norte 580.613 100.038 480.575
cultor familiar do Pronaf.1
Com referência à agricultura familiar, não Nordeste 2.322.719 483.873 1.838.846
se podem fazer comparações entre os dados dos
280.470
Censos Agropecuários de 2006 e 2017, devido Sudeste 969.415 688.945
“retrato” da realidade (situação) com indicado- Fonte: Censo Agropecuário 2017 (IBGE/SIDRA, 2019).
res agrupados em três escalas territoriais (Bra-
sil, Nordeste e Bahia). Essa análise encontra- Assim, como em relação ao Brasil, a Bahia
-se no próximo item, onde são apresentados e é o estado com o maior número de estabeleci-
analisados os principais resultados obtidos por mentos não familiares e também familiares na
1 De acordo com Del Grossi (2019), para a realização do Censo Região Nordeste. Em 2017, foram recenseados
Agropecuário 2017 adotaram-se os critérios do Manual de 593.411 estabelecimentos familiares no estado.
Crédito Rural definidos pelo Conselho Monetário Nacional
Eles representam 77,80% dos 762.848 estabe-
(CMN), vigentes em 30 de setembro de 2017, que estabelecem
os requisitos para ser considerado beneficiário do Pronaf. Dentre lecimentos baianos e 25,55% dos nordestinos,
os requisitos do Pronaf para acessar as linhas de crédito exige- que totalizam 2.322.719 estabelecimentos (Ta-
se que os agricultores comprovem seu enquadramento através bela 2).
da Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP) ativa. A renda bruta
familiar não pode exceder R$ 360.000,00. Especificamente para
os beneficiários do Grupo B do Pronaf a renda bruta familiar anual
não pode ser superior a R$ 20.000,00.
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 211-226, agosto, 2020
213
Edna Maria da Silva, Livia Liberato de Matos Reis e Vitor de Athayde Couto
Gráfico 4 – Número de estabelecimentos rurais por área, agricultura familiar e não familiar: Bahia (2017)
100.000
90.000
80.000
70.000
60.000
50.000
40.000
30.000
20.000
10.000
0
Mais de 0 a menos de 0,1 ha
De 0,5 a menos de 1 ha
De 1 a menos de 2 ha
De 2 a menos de 3 ha
De 3 a menos de 4 ha
De 4 a menos de 5 ha
De 5 a menos de 10 ha
De 10 a menos de 20 ha
De 20 a menos de 50 ha
De 50 a menos de 100 ha
De 10.000 ha e mais
Ainda em relação à distribuição dos ativos fun- de 28.020.859 ha. A agricultura não familiar, por
diários, vale destacar que 593.411 estabelecimen- sua vez, ocupa 19.011.716 ha, que representam
tos familiares baianos ocupam 9.009.143 ha ou 67,80% da área total, com apenas 169.437 esta-
32,20% da área total dos estabelecimentos, que é belecimentos (IBGE/SIDRA, 2019). O elevado
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 211-226, agosto, 2020
214
Agricultura familiar na Bahia: uma análise dos dados do Censo Agropecuário 2017
Tabela 3 – Estabelecimentos agropecuários segmentados pela tipologia (un): Brasil, Nordeste e Bahia (2017)
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 211-226, agosto, 2020
215
Edna Maria da Silva, Livia Liberato de Matos Reis e Vitor de Athayde Couto
Essa diferença é compensada por uma maior A Tabela 4 apresenta o valor da produção
participação nacional dos agricultores familiares (milhões R$) para os tipos agricultor não fa-
do Grupo V, que é de 22,45%, contra 8,46% e miliar, agricultor familiar Grupo B, agricultor
8,40% para a Região Nordeste e Bahia, respecti- familiar Grupo V e agricultor familiar não Pro-
vamente. Observe-se que os valores para o Estado naf, nas escalas Brasil, Nordeste e Bahia. No
da Bahia são próximos da média nordestina. Isso que se refere ao valor da produção por catego-
é devido ao que se pode chamar de nivelamento rias, observa-se que a agricultura não familiar
pela pobreza, como também pela elevada repre- ou patronal concentra elevada participação na
sentatividade dos agricultores baianos do Grupo Bahia (75,43%), no Nordeste (70,34%) e no
B em relação à Região Nordeste, que é de 1/3 Brasil (77,10%).
aproximadamente, ou 32,23%. Chama a atenção Essa mesma tabela demonstra os seguin-
o fato de os agricultores familiares não Pronaf tes resultados para a Bahia: 1) Embora possua
terem uma participação residual em relação ao o maior número de agricultores familiares no
total, nas três escalas de análise, ou seja, 0,51%, Grupo B (69,31%), a sua participação no valor
para o Brasil, e 0,07% para Nordeste e Bahia. da produção estadual é de apenas 9,15%. 2) A
Comparando-se as categorias B e V, obser- agricultura não familiar detém 22,21% dos es-
va-se, na Bahia, que os agricultores familiares tabelecimentos e contribui com ¾ ou 75,40% do
do Grupo B representam 32,23% dos estabele- valor da produção. Os dados (estabelecimentos
cimentos nordestinos, e 19,30% dos nacionais. e valor) apresentados para os agricultores do
Os agricultores familiares do Grupo V repre- Grupo B aproximam-se da média dos estados
sentam 32,60% em relação ao Nordeste, e ape- nordestinos, mas se distanciam significativa-
nas 5,60% em relação ao Brasil. Eis aqui mais mente dos indicadores médios nacionais, como
um importante indicador da desigualdade. é de se esperar.
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 211-226, agosto, 2020
216
Agricultura familiar na Bahia: uma análise dos dados do Censo Agropecuário 2017
das famílias. O fato de não serem famílias assa- feijão, milho, algodão e soja) e permanentes
lariadas sugere uma espécie de acumulação pri- (manga), nos estabelecimentos agropecuá-
mitiva em pleno capitalismo contemporâneo. A rios que possuem a partir de 50 pés, os dados
grande concentração de agricultores familiares da Tabela 5 mostram a relevante contribuição
do Grupo B, tanto na Bahia, quanto em toda a da agricultura familiar nas plantações que são
região Nordeste, revela a permanência de uma destinadas ao consumo humano no mercado
divisão inter-regional do trabalho no Brasil, interno. Pode-se destacar a produção de arroz
ainda que parcial. Não sendo o desenvolvimen- em casca, que representa 69,71%, e a produção
to desigual objeto deste artigo, analisa-se agora de feijão, que representa 40,24% da produção
a participação dos segmentos na produção agro- baiana. A produção de manga apresenta um total
pecuária estadual. de 250.706 toneladas, sendo que a agricultura
familiar representa 30,88% e a agricultura não
4.3 Participação da agricultura familiar na familiar representa 60,11%. Para as culturas co-
merciais de milho, algodão e soja, identifica-se
produção agropecuária baiana
significativa participação dos estabelecimentos
No que se refere à quantidade produzida em patronais, que representam 93,47%, 99,89% e
toneladas para as lavouras temporárias (arroz, 99,94% da produção, respectivamente.
Tabela 5 – Quantidade produzida das principais lavouras alimentares e comerciais (toneladas): Bahia
(2017)
Nos estabelecimentos com pecuária, os prin- Na Tabela 6, percebe-se que os bovinos es-
cipais rebanhos são bovinos, equinos, suínos, tão distribuídos em um total de 297.894 estabe-
ovinos, caprinos, asininos e muares. Esses re- lecimentos. Mais de 4/5 desses estabelecimen-
banhos concentram-se em mais de 75% do total tos (235.599 ou 79,10%) são representados pela
de estabelecimentos da agricultura familiar. Ex- agricultura familiar, sendo que 1/5 (62.295 ou
ceção se faz aos bubalinos, que ocupam menos 20,90%) são do tipo não familiar. Todavia, se
de 30% dos estabelecimentos familiares, por for observado o efetivo do rebanho por estabe-
serem animais exigentes em mananciais abun- lecimento, a agricultura familiar detém um nú-
dantes de água – o que requer maiores áreas, e, mero médio de cabeças que representa 42,50%
com raras exceções, fora do semiárido baiano. dos animais, ou seja, tem participação menor
No grupo aves, os galináceos da agricultura fa- do que a agricultura não familiar. Os equinos
miliar são muito representativos, encontrando- foram identificados em 148.599 estabelecimen-
-se presentes em mais de 4/5 do total de estabe- tos, sendo que 111.802 ou 75,24% são repre-
lecimentos (IBGE/SIDRA, 2019). sentados pela agricultura familiar e 36.797 ou
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 211-226, agosto, 2020
217
Edna Maria da Silva, Livia Liberato de Matos Reis e Vitor de Athayde Couto
24,76% são representados pela agricultura não Os suínos encontram-se em 148.342 esta-
familiar. belecimentos, sendo 120.849, que representam
Os caprinos encontram-se em 71.473 esta- 81,47%, do tipo familiar. Os demais estabeleci-
belecimentos, sendo que 57.337 (80,22%) são mentos, 27.493 (18,53%), são do tipo não fami-
do tipo familiar e apenas 14.136 (19,78%) são liar. Calculando-se o número médio de cabeças
estabelecimentos do tipo não familiar. Ao se por estabelecimento, verifica-se que a agricul-
analisar o número de cabeças por estabeleci- tura familiar também participa com um quanti-
mento, a agricultura familiar também apresenta tativo elevado em relação à agricultura não fa-
um quantitativo elevado em relação à agricul- miliar. Na Bahia, 71,11% dos animais estão na
tura não familiar. Na Bahia, 73,78% dos capri- categoria agricultura familiar. Embora 120.849
nos estão concentrados em estabelecimentos da estabelecimentos familiares baianos criem suí-
agricultura familiar. Embora se produzam ca- nos, 58.374 (quase metade) venderam animais.
prinos em 57.337 estabelecimentos da agricul- Isso representa 81,44% do total de 71.677 esta-
tura familiar, em apenas 29.399 estabelecimen- belecimentos baianos que venderam suínos. A
tos (51,27%) foram registradas vendas. Isso se venda de suínos da agricultura familiar repre-
deve, em parte, ao autoconsumo das famílias. senta 57,62% das vendas totais na Bahia.
Observa-se também uma expressiva partici-
Tabela 6 – Número de estabelecimentos com pe- pação dos rebanhos caprinos, ovinos e suínos
cuária: Bahia (2017) em termos de faturamento. Nos estabelecimen-
tos da agricultura familiar, os principais reba-
Não Familiar
Estabeleci- Familiar
nhos são caprinos, com 71,8% do valor das ven-
mentos com Total
pecuária Qtde % Qtde %
das; ovinos, com 70,3%; e suínos, com 53,3%
do faturamento (IBGE/SIDRA, 2019).
Bovinos 62.295 20,91 235.599 79,09 297.894 Os galináceos (galinhas, galos, frangos e
Equinos 36.797 24,76 111.802 75,24 148.599
pintos) encontram-se distribuídos em um total
de 411.263 estabelecimentos. Cerca de 4/5 des-
Caprinos 14.136 19,79 57.337 80,21 71.473 ses estabelecimentos (331.400 ou 80,58%) são
do tipo familiar, enquanto apenas 1/5 (79.863
Ovinos 26.421 21,76 95.007 78,24 121.428
ou 19,42%) são do tipo não familiar (Tabela
Suínos 27.493 18,53 120.849 81,47 148.342 6). Quanto ao número de estabelecimentos da
agricultura familiar que realizam vendas, em
Galináceos* 79.863 19,42 331.400 80,58 411.263 relação ao total de estabelecimentos, a Bahia, a
Fonte: Censo Agropecuário 2017 (IBGE/SIDRA, 2019). Região Nordeste e o Brasil apresentam partici-
Nota: *Galinhas, galos, frangas, frangos e pintos. pações semelhantes, em torno de 80%. Todavia,
ao se analisar a quantidade média de unidades
Os ovinos são produzidos em 121.428 es- vendidas, por estabelecimento, o percentual de
tabelecimentos, sendo que 95.007 (78,24%) estabelecimentos que realizam vendas na agri-
são da agricultura familiar e apenas 26.421 ou cultura familiar é inferior ao da agricultura não
21,76% são do tipo não familiar (Tabela 6). Ao familiar. Na Bahia, embora 331.400 estabeleci-
se analisar o número de cabeças por estabele- mentos da agricultura familiar criem galináce-
cimento, a agricultura familiar também reve- os, apenas 81.129 (24,48%) realizam vendas.
la um quantitativo elevado em relação à agri-
Os dados aqui analisados mostram a rele-
cultura não familiar, com 71,96% dos animais
vância da agricultura familiar, tanto na produ-
concentrados em estabelecimentos da categoria
ção de lavouras quanto na criação de animais
agricultura familiar. Embora se pratiquem sis-
que, mesmo em uma conjuntura adversa, res-
temas de criação de ovinos em 95.007 estabele-
ponde por significativa parcela da produção,
cimentos da agricultura familiar, apenas 51.906
sobretudo para o mercado interno. A depender
(54,63%) estabelecimentos realizaram vendas.
do nível de integração dos agricultores ao mer-
Entre as famílias produtoras de ovinos, o auto-
cado, importa também conhecer qual é a par-
consumo também é significativo, por se tratar
ticipação dos estabelecimentos que obtiveram
de rebanhos deslanados, tipo carne.
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 211-226, agosto, 2020
218
Agricultura familiar na Bahia: uma análise dos dados do Censo Agropecuário 2017
Tabela 7 – Número de estabelecimentos que obtiveram financiamento: Brasil, Nordeste e Bahia (2017)
Como se pode observar na Tabela 8, os va- em relação ao total de cada tipo, constata-se que
lores percentuais representam a participação de os agricultores melhor estruturados (não fami-
cada tipo de agricultor, nas três escalas, consi- liar, familiar Grupo V, e não Pronaf) concentram
derando se obteve ou não financiamento. Os va- maior percentual de estabelecimentos com fi-
lores agregados são semelhantes para as escalas nanciamento. Essa constatação sugere que exis-
Bahia e Nordeste, enquanto se diferenciam dos te uma relação direta entre os estabelecimentos
resultados em relação ao Brasil. Analisando-se a mais estruturados, portanto, com maiores ní-
participação dos estabelecimentos classificados veis de rendimento anual, e o acesso ao crédito
por tipo de agricultor, com e sem financiamento (AQUINO; GAZOLLA; SCHNEIDER, 2018).
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 211-226, agosto, 2020
219
Edna Maria da Silva, Livia Liberato de Matos Reis e Vitor de Athayde Couto
Tabela 8 – Percentual de estabelecimentos com e sem financiamento em relação ao total de cada tipo: Bra-
sil, Nordeste e Bahia (2017)
Como foi visto, o limite máximo dos valores termos de política agrária-agrícola à representa-
financiados para o grupo Pronaf V é significati- ção numérica desses agricultores. “[...] os últimos
vamente superior ao limite máximo dos financia- dez anos mostraram um aumento da desigualda-
mentos de apoio ao grupo Pronaf B. Portanto, se o de inter-regional” (COUTO; DUFUMIER; REIS,
grupo Pronaf V se encontra mais concentrado no 2013, p. 25; COUTO, 2014). Pode-se concluir que
Centro-Sul, esta macrorregião acaba atraindo va- o Programa, que deveria ser de equidade e apoio
lores médios de financiamento bem maiores. As- a toda a agricultura familiar nacional, acaba con-
sim, a forte concentração da agricultura familiar tribuindo, pela via do crédito, para o aumento das
no Nordeste e Bahia não tem correspondência em desigualdades sociais e regionais no Brasil.
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 211-226, agosto, 2020
220
Agricultura familiar na Bahia: uma análise dos dados do Censo Agropecuário 2017
Essa desigualdade remete para outra ques- po V possui a maior participação entre os bene-
tão: como corrigir os impactos decorrentes de ficiários, com 43,11%. Nessa categoria, a Região
uma política de crédito, sem impor as tradicio- Nordeste e a Bahia apresentam uma participação
nais restrições das políticas de quotas regio- bem inferior, de 16,22% e 16,98%, respectiva-
nais? Uma das hipóteses considera que a via da mente. A categoria familiar Grupo B possui a me-
orientação técnica recebida pelos agricultores, nor representação em escala nacional (24,17%)
desde que bem formulada e executada, pode e para o Nordeste e Bahia apresenta 54,20% e
estimular os agricultores a reestruturar os seus 50,15%, respectivamente. Os agricultores não
respectivos sistemas de produção, com base em familiares possuem representação relativamente
inovações de base sustentável. próxima nas escalas nacional, regional e estadual,
30,93%; 29,34% e 32,59%, respectivamente.
4.5 Orientação Técnica Recebida Analisando-se, nas três escalas, o número
total de estabelecimentos que obtiveram orien-
Para avançar na discussão mencionada ao fi- tação técnica em relação ao total geral de esta-
nal do tópico anterior, na Tabela 10 encontra-se belecimentos, observa-se que são 20,21% para
o número de estabelecimentos beneficiados com o Brasil contra 8,21% para o Nordeste e 7,68%
o serviço de orientação técnica, por categoria de para a Bahia (IBGE/SIDRA, 2019). Em síntese,
agricultor, e em relação ao total de estabelecimen- tanto no Nordeste quanto na Bahia o acesso à
tos que foram objeto desse serviço. Observa-se orientação/assistência técnica é expressivamen-
que, na escala nacional, a categoria familiar Gru- te menor que na escala nacional.
Tabela 10 – Número de estabelecimentos com orientação técnica: Brasil, Nordeste e Bahia (2017)
Conforme a Tabela 11, quando se considera bem orientação técnica, 38,80% foram orienta-
a participação dos estabelecimentos com e sem dos, no Brasil, 15,75% no Nordeste, e 15,50%
orientação técnica em relação ao total de cada na Bahia.
tipo, os estabelecimentos beneficiados, na esca- Quanto aos grupos que constituem a catego-
la nacional, têm uma participação bem maior do ria familiar (Grupo B, Grupo V e familiar não
que os estabelecimentos nordestinos e baianos. Pronaf), de forma agregada, verifica-se que os
Em relação ao número total de estabeleci- estabelecimentos beneficiados, em escala na-
mentos não familiares, 27% foram orientados, cional (708.318), representam 18,17% dos es-
no Brasil, 11,57% no Nordeste, e 11,26% na tabelecimentos familiares (3.897.408). No Nor-
Bahia. No que se refere ao número total de es- deste e Bahia, a participação é bem menor, de
tabelecimentos familiares no Grupo V que rece- 7,33% e 6,61%, respectivamente.
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 211-226, agosto, 2020
221
Edna Maria da Silva, Livia Liberato de Matos Reis e Vitor de Athayde Couto
Tabela 11 – Participação (%) dos estabelecimentos com e sem orientação técnica em relação ao total de
cada tipo: Brasil, Nordeste e Bahia (2017)
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 211-226, agosto, 2020
222
Agricultura familiar na Bahia: uma análise dos dados do Censo Agropecuário 2017
tegoria mais frágil da agricultura familiar Talvez essa questão encerre o maior desa-
(Grupo B do Pronaf); fio para qualquer política de fortalecimento da
4) Permanece significativa a desigualdade agricultura familiar. Por quê? Sabe-se, e a histó-
na estrutura de posse e uso da terra; ria, com suas incontáveis avaliações, já deixou
bem claro que não adianta induzir o agricultor
5) É importante a contribuição da agricul-
familiar ao financiamento (e consequente en-
tura familiar na produção, no autoconsu-
dividamento) sem a indispensável orientação
mo das famílias, e no abastecimento do
técnica. Em decorrência do desmantelamento
mercado. Os agricultores familiares do
das políticas nacional e estaduais de ATER, as
Grupo B (69,20% dos estabelecimentos)
perspectivas não parecem otimistas, a menos
participam com 9,10% do valor da produ-
que se fortaleçam as suas instituições. Esse for-
ção, enquanto os não familiares (21,60%
talecimento deve ser tanto da infraestrutura pú-
dos estabelecimentos) participam com
blica direta, quanto indireta, ou seja, gestão de
75,40%;
convênios e também contratos junto a empresas
6) As vendas de produtos animais apresen-
privadas e organizações sociais.2
tam a mesma desigualdade constatada
para o valor da produção agrícola em ge-
ral; REFERÊNCIAS
7) Nos estabelecimentos dos agricultores fa-
miliares baianos, os principais rebanhos AQUINO, J. R.; GAZOLLA, M.; SCHNEIDER,
são: caprinos, com 73,78% do número S. Dualismo no campo e desigualdades internas
de cabeças sobre o total; ovinos, com na agricultura familiar brasileira. Revista de
71,96%; suínos, com 71,11%; e represen- Economia e Sociologia Rural [online]. v. 56, n.
tam, respectivamente, 71,80%; 70,30%; e 1, p.123-142, 2018.
53,30% do valor das vendas;
BARROS, G. S. C. Agricultura familiar.
8) A participação nos financiamentos segue Piracicaba: Cepea/ Esalq/USP, 2006. Disponível
aproximadamente a mesma distribuição em: http://www.cepea.esalq.usp.br/especialagro/
dos indicadores da tipologia e valor da EspecialAgroCepea_9.doc. Acesso em: 06 fev.
produção; 2020.
9) Na escala nacional, os estabelecimen-
tos que receberam orientação técnica BRASIL. Lei nº 11.326, de 24 de julho de 2006.
têm uma participação bem maior do que Estabelece as diretrizes para a formulação da
os baianos: 20,21% para o Brasil contra Política Nacional da Agricultura Familiar e
7,68% para a Bahia; Empreendimentos Familiares Rurais. Disponível
10) Tanto no Brasil quanto na Bahia, os agri- em: http://www.planalto.gov.br/ccivil. Acesso em:
cultores não familiares receberam mais 05 jan. 2020.
orientação técnica do que os agricultores
BRASIL. Decreto no 9.064, de 31 de maio
familiares. Foram 26,97% de estabeleci-
de 2017. Dispõe sobre a Unidade Familiar de
mentos orientados, no Brasil, e 11,26%,
Produção Agrária, institui o Cadastro Nacional
na Bahia.
da Agricultura Familiar e regulamenta a Lei n.
As três últimas constatações remetem para a 11.326, de 24 de julho de 2006, que estabelece as
seguinte questão: o que explica essa maior parti- diretrizes para a formulação da Política Nacional
cipação da agricultura não familiar, se a política da Agricultura Familiar e empreendimentos
de ATER pública, em tese, definiu como prio- familiares rurais. Disponível em: http://www.
ridade a agricultura familiar? Seria a presença planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/
(e a consequente orientação técnica direta) de Decreto/D9064.htm. Acesso em: 05 jan. 2020.
oligopólios nas principais cadeias produtivas do
chamado agronegócio? Essas e outras questões
requerem novas pesquisas para que se adequem
melhor as políticas públicas. 2 Mais detalhes podem ser encontrados em Couto (2013; 2014) e
Silva (2020).
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 211-226, agosto, 2020
223
Edna Maria da Silva, Livia Liberato de Matos Reis e Vitor de Athayde Couto
Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 51, suplemento especial, p. 211-226, agosto, 2020
224