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Capítulo 2

Projetos e anteprojetos de Código Penitenciário para o Brasil

esde a edição dos primeiros regulamentos penitenciários, em meados do

D século XIX, o Brasil passou a desfrutar de uma grande profusão de normas


regulamentares em âmbito penitenciário. Em lugar de um instrumento
normativo de diretrizes gerais, o que se verificava era a adoção de ■ life rentes
comandos para cada uma das unidades prisionais do país, muitos ileles
absolutamente colidentes entre si. A necessidade de unificação do tratamento
legal dispensado à questão carcerária, juntamente com a cres- i ente exortação
da autonomia científica de um "Direito Penitenciário", sus- i itada desde o X
Congresso Penitenciário Internacional, ocorrido em Praga no ano de 193O,
deram azo a diferentes projetos e anteprojetos de Código Penitenciário para o
Brasil, ao longo do século XX.
O primeiro projeto de Código Penitenciário, que conferiu ao Brasil a
condição de pioneiro na defesa da tripartição dos Códigos em sede penal1, foi
concebido em 1933 por Cândido Mendes, Lemos Brito e Heitor Carrilho. Já em
1957, Oscar Stevenson elaborou um novo anteprojeto de Código, seguido pelo
anteprojeto de Roberto Lyra, em 1963. Por fim, em 1970, Benjamim Moraes
Filho elaborou o último dos anteprojetos de Código Penitenciário.
As diferentes propostas refletem, de forma cristalina, as distintas orien-
tações criminológicas de seus autores e de seu tempo e, muito embora não
tenham sido postas em prática, logrando transformar-se em diplomas legais
concretos, tiveram o condão de traçar muitos dos contornos da atual legislação
penal executiva brasileira.

1 Idem.
2.1 Projeto de Código Penitenciário de 1933 (Cândido Mendes, Lemos Brito
e Heitor Carrilho)

A primeira das quatro proposições de Código Penitenciário foi elaborada em


1933 por Cândido Mendes de Almeida, José Gabriel de Lemos Britto e Heitor
Pereira Carrilho. Este projeto, apesar do pioneirismo na tripartição dos códigos
em sede penal e de seu status de propulsor de outros esboços de Códigos
Penitenciários em todo o mundo, encontrava-se impregnado por uma profunda
orientação positivista e etiológica no tratamento da questão penitenciária.
Primou também pela exaltação do saber médico, nos mesmos moldes da
regulamentação penitenciária vigente até então. Frise-se que a criminologia,
nesse período, "voltou-se, decisivamente, para os laboratórios, penitenciárias,
centros médicos psiquiátricos, afastando-se das elocubrações dos gabinetes ou
das polêmicas dos congressos"211.
Evidências positivistas e antropológicas podem ser encontradas ao longo
de todo o projeto. Ao mesmo tempo em que assevera que as penas detentivas
serão cumpridas de modo a estimular a regeneração dos condenados, levando-
se em consideração as suas condições individuais (art. 9e), também dispõe que
todo sentenciado, independente da natureza de seu delito, será tratado como
alguém que o Estado constrange à segregação ou à restrição de direitos, "não
só com o objectivo de restaurar-lhe as energias physicas e moraes, como no de
defesa da sociedade" (art. 587). Verifica-se, aqui, a presença de duas importan-
tes premissas positivistas: a primeira no sentido de considerar degenerado o
indivíduo admoestado por uma sentença penal e a segunda, consectário lógico
da primeira, no sentido de encontrar na pena uma função eminentemente
reformadora. Tudo isso sob o manto de um discurso defensivista.
Outro dispositivo admite o prolongamento da pena detentiva, com a sua
conversão em medida de segurança, em caso de comprovada temibilidade do
sentenciado, verificada por sua inaptidão ao regime penitenciário e evidente
periculosidade ao terminar a 104
sentença condenatória (art. 13). O recurso à noção
de periculosidade, aqui evidenciada, é característica marcante do projeto de
1933 e também encarna fielmente o ideário de defesa social, em voga nesse
período. O vigilantismo social, contemporâneo do período imperial, porém assaz
incrementado na Primeira República, também se faz presente no projeto em
tela, quando este ordena que nenhum sentenciado, cujo prontuário contenha
provas de sua inapti- 11' i para o regime penitenciário, poderá gozar de
liberdade por término de pena, M I" que seja submetido, ao sair do
estabelecimento, a um regime de vigilância de iliti.1^.10 mínima de três e
máxima de 12 meses (art. 14).
Merecem também destaque algumas disposições acerca da atribuição e
>l.i composição do Conselho Penitenciário. Dentre as funções do Conselho, é
possível ressaltar aquela que determina o envio, aos juízes e presidentes dos 1
ultimais, de boletins anuais "sobre a situação physica e moral de cada condena-
do" (art. 38). Já no tocante à estrutura deste órgão colegiado, salta aos olhos a
1 lii.ilificação de seus membros, já que, nos termos do projeto, o Conselho deve-
li.i ser constituído não apenas pelo Procurador da República e por um repre-
sentante do Ministério Público local, mas também por cinco pessoas nomeadas
pelo Executivo, escolhidos, de preferência, três membros dentre professores de
iliieito ou juristas em atividade forense "e dois dentre professores de medicina
ou 1 linicos profissionaes, um dos quaes deverá ser especializado em
psyquiatria" (art. •12). A admissão de profissionais da área médica no rol de
membros do Conselho Penitenciário, qualificada pela obrigatoriedade de
inclusão de um psiqui- .11 ra, aclara definitivamente a opção positivista clínica
por parte de Cândido Mendes, Lemos Brito e Heitor Carrilho, evidenciando as
sucessivas aspirações de anamnese, ingerência e reforma sobre a interioridade
do condenado. Soma- se a isso o fato de que as sessões do Conselho, segundo
o projeto, deverão ser sempre assistidas pelo diretor e pelo médico do
estabelecimento em que se encontrar o condenado sobre o qual se delibera, a
fim de que prestem eventuais informações sobre a pessoa do preso (art. 46,
parágrafo único).
O aspecto mais marcante do projeto de 1933 reside, no entanto, na mi-
nuciosa organização antropológica, médica e psiquiátrica dos estabelecimentos
penais. Para tanto, preconizou-se a criação dos chamados Institutos de
Antropologia Penitenciária, destinados a "examinar os reclusos dentro dos
recursos experimentaes da technica psycho-anthopologica e medica e seus
methodos auxiliares" (sic) (art. 59). Após estabelecer esta atribuição genérica, o
projeto pormenoriza diversos escopos dos institutos de antropologia
penitenciária, dentre os quais o estudo dos fatores físicos e psíquicos que
definem a personalidade dos delinqüentes (art. 60, §le), o estudo da heredologia
criminal, da predisposição individual na gênese do delito e, particularmente, o
estudo genealógico dos reincidentes (art. 60, §2e) e o estudo da temibilidáde
dos criminosos, apreciada por seus aspectos psico-antropológicos, decorrentes
da formação anormal da personalidade e de sua projeção social (art. 60, §3e).
Dentre os objetivos, também se destacam a individualização da terapêutica
penal, em face dos resultados das investigações biotipológicas e médicas (art.
60, §4S), o esclarecimento e o relato do prognóstico de regeneração do
condenado, com periódica indicação da subsistência ou não do "estado peri-
goso" e com a verificação não apenas da extensão das diferentes taras ou
desvios da normalidade encontrados nos delinqüentes, mas também do
eventual desaparecimento dos principais motivos psicopatológicos responsáveis
pelas reações anti-sociais realizadas (art. 60, §62) e a prolação de pareceres
acerca dos elementos necessários à apreciação da personalidade dos
delinqüentes (art. 60, §8Õ). Para a consecução dos objetivos
supramencionados, assevera o projeto que os institutos de antropologia
penitenciária seriam divididos em quatro seções: odontológica, médica,
psicológica e antropométrica (art. 61).
Todas as impressões colhidas dos condenados deveriam ser condensadas
em seus prontuários, periodicamente atualizados "com o intuito de se apreciar a
marcha da reforma moral dos delinqüentes, sua adaptação profissional, a modi-
106
ficação de suas taras ou desvios psyquicos e a possibilidade de seu reingresso
social abreviado" (art. 62, §2e). Os internados nos Manicômios Judiciários
também possuiriam prontuários psiquiátricos, onde deveriam ser apostas
declarações médico-legais de temibilidade, calcadas no tríplice aspecto
antropológico, moral e psíquico (art. 72).
Bastante elucidativas são também as obrigações conferidas pelo projeto ao
diretor e aos técnicos dos institutos de antropologia penitenciária, com-
prometidos a "realizar e promover estudos que vizem apurar no Brasil a noção
positiva do delicto, nos seus aspectos ethiológico, clínico e therapeutico e,
consequentemente, estabelecer normas de repressão penal, em face dos funda-
mentos biológicos da criminalidade" (art. 63).
Em cooperação com o instituto de antropologia penitenciária, deveriam
também funcionar as seções psiquiátricas das próprias unidades prisionais, or-
ganizadas de modo a maximizar a anamnese acerca da periculosidade dos
reclusos, acentuando o viés defensivista social do saber clínico. Este viés não é
sequer mascarado pelo projeto de 1933, que elenca textualmente, dentre os
objetivos das seções psiquiátricas, "o de definir, para os fins de defesa social, a
temibilidade dos internados, em vista de sua condição mental anômala" (art. 64,
VI). Exatamente no mesmo sentido, estabelece que "o Manicômio Judiciário é
um órgão de defesa social e de observação e assistência psyquiatrica..." (art.
67).
O caráter proscritivo e institucionalizante do projeto é um reflexo cristalino
do sistema penal desenvolvido em nosso país na Primeira República, que se
valeu de inúmeras medidas desse cunho para estabelecer uma eficaz política de
controle social. Sobre tais medidas, escreveram Nilo Batista e Eugênio Raul
Zaffaroni:

As medidas de natureza institucionalizante adquirem uma es-


pecialização, que se submete à nascente criminologia resultante do
encontro entre os saberes médicos e as técnicas policiais: ao lado de
uma penitenciária que pretende avocar-se a tarefa de adestrar para o
trabalho, os asilos da mendicidade inválida, as colônias correcionais
para "vadios, mendigos válidos,capoeiras e desordeiros", os abrigos
de "menores", os manicômios judiciários, tudo isso como que
refletindo a "classificação" dos criminosos então em voga, ensinada
aos policiais, na sua escola, numa disciplina intitulada "História
Natural dos Malfeitores"2.

Corroborando, em definitivo, a proeminência da institucionalização e ilo


banimento defensivista, urge trazer à colação o preceito do art. 237 do projeto
de 1933, segundo o qual considerar-se-ia integralmente realizado o "Sistema de
Defesa Social", quando estivessem em funcionamento determina-los
estabelecimentos e instituições. Em outras palavras, o sistema de defesa social
somente estaria perfeito com a implementação, para fins de repressão, das
casas de detenção, das escolas de educação correcional para menores
delinqüentes entre 18 e 21 anos, dos reformatórios para homens e mulheres,
ilas penitenciárias para delinqüentes difíceis ou reputados irreformáveis, das
colônias para a relegação dos delinqüentes perigosos, dos manicômios judi-
ciários, dos sanatórios penais para os delinqüentes tuberculosos e das seções
especiais para os acometidos de outras doenças infecto-contagiosas, assim
como para os alcoólatras e demais toxicômanos. Já para efeito de fiscalização e
orientação da execução das penas, deveriam existir os conselhos peniten-
ciários, a Inspetoria Geral Penitenciária, os institutos de antropologia peni-
tenciária e os institutos de preparação penitenciária. Por derradeiro, para fins de
readaptação social dos liberados, deveriam funcionar os serviços prisionais de
auxílio e encaminhamento do liberado, os patronatos e as colônias para
liberados.
Após elencar os estabelecimentos e instituições imprescindíveis, cuida o
projeto de pormenorizar suas estruturas e seus objetivos. Inicialmente, determi-
na a internação dos condenados por vadiagem ou mendicância nas chamadas
"Colônias de Defesa Social",108
que consistem em colônias colecionais instaladas
2 BATISTA, Nilo e ZAFFARONI, Eugênio Raul, op. cit, p. 458.
em ilhas ou em regiões cultiváveis distantes do perímetro urbano, reforçando o
degredo deste indesejável grupo de indivíduos. Não obstante o fim do período
de internação, o recluso ainda poderia continuar sob o poder do Estado, caso
não alcançasse o objetivo do confinamento - o aperfeiçoamento pelo trabalho
(art. 253). Nesse sentido, enuncia o projeto que cabe ao diretor informar a
autoridade competente, apresentando as sugestões que entender oportunas,
em caso de "persistir o indivíduo no mau procedimento primitivo" (art. 248).
Além das colônias de defesa social, o projeto também prevê a implantação
dos reformatórios para homens e mulheres, onde vigoraria o chamado "regime
correcional educativo", para fins de reforma dos indivíduos pela instrução, pela
educação e pelo trabalho (art. 280). Enquanto no reforma tório para homens
buscar-se-ia fundamentalmente incutir a propensão ao trabalho, no reformatório
de mulheres, assevera o projeto, "será obrigatoria a gymnastica e na parte
relativa á educação oral não se perderá de vista a necessidade de preparar a
mulher para os mistéres domésticos" (art. 331).
Em suma, o regime correcional educativo, na esclarecedora definição do
projeto de 1933, traduz "aquelle em que predomine a idéia de readaptação
social dos delinqüentes, repousando no estudo da personalidade de cada
individuo e na applicação de methodos e processos scientificos que se ajustem
a cada personalidade, no objectivo de corrigir-lhe os vícios e as inclinações
antisociaes pelo tratamento das taras, anomalias ou deformações de ordem
moral determinadas pela má educação, abandono ou miséria econômica" (art.
283).
Nos reformatórios, deveria vigorar uma rígida hierarquização entre os
presos, divididos em três classes distintas, conforme a classificação recebida. A
primeira classe seria composta pelos reclusos de exemplar comportamento,
recebendo o sugestivo nome de "classe de seleção". Logo abaixo, postava-se a
segunda classe - chamada de "classe neutra", representada pelos recém-
ingressos no reformatório. Por derradeiro, a terceira classe, denominada "classe
inferior", para os que se revelassem indóceis à disciplina, refratários ao trabalho
e hostis à moral (art. 287). De acordo com a classificação recebida, poderia o
interno ser agraciado com o que o projeto chama de "regalias", tais como falar,
receber visitas, escrever a parentes ou amigos e conservar luz em sua cela,
entre outras (art. 290). Ademais, enquanto os presos da classe de seleção
deveriam receber chamamento nominal por parte dos funcionários, os demais
seriam chamados por números (art. 296). Como se não bastasse, os presos da
classe de seleção usariam uniforme de uma só cor, com um sinal distintivo de
sua superioridade frente aos demais, restando aos integrantes da "classe
neutra" o uso do uniforme monocolor sem o referido distintivo, e aos presos da
"classe inferior", o uso de uniforme listrado (art. 299)3.
Por derradeiro, urge ressaltar que a proposta de Cândido Mendes, Lemos
Brito e Heitor Carrilho também idealizou para os reformatórios a adoção ilc um
modelo panóptico atenuado, eis que desprovido dos efeitos psicológi- 11 >s
sobre o recluso. Assim, concebeu-se um sistema de observação "de modo ii tido
dar a perceber ao recluso que elle está sendo observado e ainda para que asa
observação não o ponha em permanente excitação nervosa" (art. 318).
Outro importante membro do "Sistema de Defesa Social", planejado pelo
projeto, é a Casa de Correção. As Casas de Correção deveriam acolher os i
ondenados reincidentes e os considerados de difícil ou impossível reforma, a
fim de segregá-los do convívio com os demais apenados, estabelecendo um
regime de vigilância mais austero. Nas Casas de Correção vigoraria a regra do
silêncio, relativizado apenas nas horas de recreio, ocasião em que os
sentenciados poderiam se comunicar, mas somente em pequenos grupos,
formados por .iqueles cuja proximidade não representasse um inconveniente
para a administração (art. 363). Da mesma forma, os sentenciados, quando
agrupados, somente poderiam se locomover em formação militar, mantendo-se
sempre perfilados e atentos aos comandos dos guardas (art. 366). Sem
embargo, os i ondenados seriam submetidos semanalmente a exercícios

110 acompanha as vestimentas listradas, cf. PASTOUREAU, Michel.


3 No tocante à infâmia que historicamente
O pano do Diabo. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1993.
militares, precedidos de contundentes exortações acerca da pátria e dos
deveres dos cidadãos para com ela (art. 369). Esta medida, cumpre salientar,
tinha o condão não apenas de incutir um forte senso de disciplina e obediência,
facilitando o controle sobre os encarcerados, mas também de prepará-los, se
para fins bélicos fosse imperiosa a sua serventia.
Em última instância, na hipótese de malogro da estratégia de regeneração
do apenado, o projeto ainda reservava a possibilidade de substituição deste
viés preventivo-especial-positivo por seu contraponto negativo, mediante uma
sistemática política banitiva. Assim, os condenados cujos comportamentos
ainda fossem considerados ruins ou prejudiciais à ordem poderiam ser
transferidos para a "Colônia de Relegação" (art. 371), a ser localizada em uma
ilha distante ou em algum ponto isolado do território nacional (art. 377), com a
imposição do regime penitenciário auburniano (art. 387).
Como se percebe, todo o arquétipo legal do projeto de 1933 conspira para
viabilizar uma investigação etiológica e uma intervenção utilitarista sobre os
indivíduos tidos como desviantes. Ordem, segurança, pesquisa e regeneração
traduzem os valores precípuos do cárcere, norteando conseqüentemente o
atuar das autoridades.
Explicados, pois, estão os deveres do diretor no sentido de acompanhar a
vida carcerária do sentenciado, escrevendo as suas impressões (art. 155, §9S),
de providenciar para que seja facilitada a ação dos psiquiatras em serviço no
estabelecimento, requisitando seus préstimos sempre que conve- niente (art.
155, §13), de designar para auxiliares4 da administração os sentenciados de
procedimento indicativo de regeneração (art. 155, §23) e de apresentar ao
Conselho Penitenciário, para fins de análise dos pressupostos do livramento
condicional, relatório circunstanciado sobre o "caracter do liberando, revelado
tanto nos antecedentes como na pratica delictuosa, que oriente sobre a
natureza psychica e anthropologica do preso (tendencia para o crime, instinctos
4 Tal posto atribuído a certos sentenciados indicia a utilização dos mesmos como delatores e informantes,
em troca de certas regalias e da garantia de um regime disciplinar flexível. Tal prática é, ainda hoje,
muito difundida no meio prisional, como instrumento de controle e vigilância do coletivo carcerário.
brutaes, influencia do meio, costumes, grão de emotividade, etc)" (art. 698, §12,
II). No mesmo sentido, cabe ao chefe da seção disciplinar examinar as
inclinações, temperamento, propensão ao trabalho, grau de inteligência,
tenacidade, sentimentos altruísticos e antecedentes dos internos (art. 185, §14)
e, ao inspetor-chefe, garantir a observância do silêncio e passar em revista os
sentenciados, assegurando que as formações e marchas exigidas se operem
dentro da mais rigorosa disciplina (art. 201).
Nem mesmo a defesa da individualização da pena (art. 414, alínea "b"), o
rechaço dos castigos corporais (art. 414, alínea "c"), a concentração do rol de
faltas e sanções em um único diploma (art. 603) e o impedimento de reclusão
em celas disciplinares subterrâneas (art. 614) lograram desnaturar a essência
nulificante e repressiva da proposta de 1933.
Assim como nos diversos regulamentos penitenciários até então vigentes, o
cerne ideológico da nova proposta exsurge precipuamente da descrição das
infrações regulamentares e das correspondentes sanções disciplinares. Nesse
sentido, o projeto divide as infrações em duas classes, segundo os critérios da
gravidade e da reiteração faltosa (art. 604), identificando as mais leves como de
primeiro grau e as mais graves de segundo grau.
Consistiam infrações de primeiro grau (art. 605), dentre outras, a
desatenção nos exercícios, nas aulas, nos serviços e nas formações exigidas, a
troca ou o abandono de roupas e calçados, o uso de uniforme diverso do
regulamentar, o desleixo e a falta de higiene de sua cela ou pessoa, a
comunicação por meio de sinais, a comercialização de objetos, a perturbação do
silêncio ou a emissão de gritos ou risadas durante o serviço ou nos recreios, o
riso diante dos guardas, a contestação das ordens recebidas, a falta de
execução meticulosa das tarefas recebidas, o traje da roupa de trabalho durante
o repouso e, por fim, toda e qualquer violação sem gravidade das prescrições
regulamentares e das determinações superiores. Para estas faltas, foram
cominadas as sanções de repreensão reservada ou pública, de privação, pelo
112
período de uma semana, dos direitos de correspondência, visita, recreio, leitura,
exercícios e aquisição de gêneros na i antina, assim como a imposição do
regime celular por um dia (art. 609).
As infrações de segundo grau, por sua vez, envolviam atos de desobedi-
ência, abandono do serviço, ameaças, agressões e insultos, perturbação da
ordem e provocação de motins de sublevação, prática de condutas conside-
radas imorais, entre outras (art. 606). A realização de tais atos poderia ensejar
as penas de perda de dias de prisão para fins de livramento condicional ou
redução da pena (art. 610, inciso I), rebaixamento de classe e uso de uniforme
listrado (inciso II)5, privação de recreio, jogos, exercícios, correspondência,
leitura, visitas, aulas e oficinas (incisos III, IV, VI e VII), multas disciplinares
(inciso V), supressão de luz na cela (inciso VIII), permanência em regime celular
pelo prazo de até 15 dias (inciso IX), reclusão em célula disciplinar (inciso X),
perda do direito de petição de indulto ou livramento condicional, pelo prazo de
seis meses (inciso XI) e transferência para outro estabelecimento penal, de
regime mais rigoroso (inciso XII).
Interessante mencionar que o projeto não vincula uma sanção específica
para cada uma das faltas. Nem mesmo limita o número de sanções por cada
falta, admitindo a combinação de duas ou mais admoestações, conforme a
gravidade do fato e a reincidência do faltoso (art. 612). Esta quebra, tanto
qualitativa quanto quantitativa, da dialética preceito-sanção viabilizaria um
extenso manejamento da sorte do preso, enredando-o em uma perniciosa
nódoa de insegurança jurídica.
No processo de dominação engendrado pela proposta, a punição incerta e
exemplar dos faltosos caminharia de mãos dadas com o império da
meritocracia, de modo a recompensar os que se curvassem ao regime
disciplinar imposto. Daí se extrai a possibilidade de cancelamento dos registros
de todas as faltas graves anteriores daquele que, ao longo da execução, por seu
trabalho, dedicação e procedimento, se mostrasse "perfeitamente regenerado"

5 Frise-se que a injunção do uniforme listrado é tida aqui como efetiva sanção disciplinar, o que atesta
seu caráter degradante.
(art. 618).
Em suma, as diversas proposituras de Cândido Mendes, Lemos de Britto e
Heitor Carrilho evidenciam que todo o plano de regulamentação da execução
penal no Brasil já partiu de premissas inteiramente positivistas e antropológicas
no enfrentamento da questão penitenciária, alijando o saber jurídico em prol de
um despotismo clínico de difícil refutação e dissociação, cujos efeitos parecem
intermináveis.

2.2 Anteprojeto de Código Penitenciário de 1957 (Oscar Stevenson)

Em 1956, diante da necessidade de harmonização da normatização pe-


nitenciária com o Código Penal de 1940, o Ministério da Justiça designou uma
comissão de juristas e técnicos para elaborar uma nova proposta de Código
Penitenciário para o Brasil. Tal comissão seria presidida por Roberto Lyra, mas,
em virtude de sua recusa6, coube ao vice-presidente Oscar Penteado Stevenson
a direção dos trabalhos.
Iniciado em 1956 e concluído em 28 de abril de 1957, o novo anteprojeto
prescreveu significativas inovações para a regulamentação carcerária,
contemplando preceitos até então carentes de positivação em âmbito peni-
tenciário, como os princípios da legalidade e da individualização judicial e
executiva da pena. Por outro lado, padeceu em certa medida da tentação
positivista, além de protrair a tutela de determinadas medidas de cunho
totalizante. De qualquer modo, é inegável e manifesto o progresso
paradigmático apresentado pela nova proposta.
No intuito de evitar que o direito penitenciário se tomasse mera elucubração
formal, distante da realidade, o anteprojeto advogou fervorosamente o postulado
da legalidade, de modo a conter o discricionarismo administrativo e judicial,
sobretudo na esfera disciplinar. Nesse sentido, reza a Exposição de Motivos que
6 Oscar Stevenson, no entanto, justificou a ausência de Roberto Lyra na realização do anteprojeto com a
informação de que o mesmo se encontrava114 fora do país, exonerando-se quando de sua chegada. Nesse
sentido, cf. Projeto e Anteprojetos de Código Penitenciário. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1978, p. 129.
"as faltas disciplinares, e as sanções correspondentes, têm de ser elencadas,
de modo taxativo, em normas legisladas. Relegar a questão para regimentos ou
decretos regulamentares será formalizar direito penitenciário defectivo, sem o
requisito impreterível da certeza" (item 11 da Exposição de Motivos).
O projeto também abarca a vedação do enclausuramento penitenciário sem
a correspondente ordem legal da autoridade competente (art. 6e) ou em
estabelecimento inadequado à execução da reprimenda imposta (art. 72). Proíbe
ainda a imposição de medidas privativas de liberdade por instâncias alheias ao
Poder Judiciário (art. 92), prática bastante corriqueira na sociedade imperial
brasileira, em que as determinações policiais se revestiam de onipotência e os
poderes públicos e privados se mostravam complementares, quando não
idênticos.
Pela análise minuciosa do projeto, é possível perceber nele uma índole
teleológica mais humanizadora. Verifica-se, em diversos trechos, uma recor- i
ente busca pela minimização dos efeitos deletérios do cárcere e pelo repúdio ao
caráter privatístico dos direitos dos reclusos, que passariam a ser encarados i
omo verdadeiros direitos públicos, subjetivos, individuais, de personalidade e
civis (item 31 da Exposição de Motivos). Preceitua-se, nesse sentido, a adoção
dos critérios de individualização e de respeito à dignidade humana (art. 5e), o
impedimento da exploração de presos por funcionários (art. 10), a idealização
de uma administração prisional orientada por um senso hierárquico alheio ao
militarismo, a determinação de que o quadro administrativo dos estabeleci-
mentos penais femininos fosse integrado exclusivamente por mulheres (art. 29)
e a prescrição de que os veículos de transporte de presos seguissem padrões
dignos de arejamento, iluminação e segurança (art. 41) e que resguardassem o
preso da curiosidade pública e do perigo de agressão (art. 43).
Busca-se ainda o refreamento do ímpeto punitivo dos agentes penitenciá-
rios, por intermédio da previsão expressa do delito de abuso de poder, quer pela
prática de atos de violência, quer pela injunção de medidas constritivas não
previstas em lei, ou ainda pela provocação dos funcionários contra os reclusos
(art. 111). Destaca-se, por derradeiro, a promoção de meios capazes de
amainar as diferenças entre a existência enclausurada e o viver livre, tendo em
conta a necessidade de inculcar nos apenados a convicção de ainda integrarem
a sociedade (art. 4e).
Sem embargo, os efeitos mais contundentes da nova proposta seriam
sentidos no sistema disciplinar em vigor nas unidades prisionais. Além do
acolhimento do princípio da legalidade em sede penitenciária (art. 106),
estariam também proscritos os meios atentatórios à dignidade, a coação moral,
os castigos corporais, as restrições alimentares e a imposição de vestes
listradas (art. 107)7. Igualmente inadmissíveis seriam o constrangimento físico e
o emprego de armas, salvo em casos extremos e taxativos (arts. 108 e 109),
bem como a imposição de instrumentos de sujeição, tais como o grilhões ou
algemas, a pretexto de castigo ou medida cautelar (art. 110).
Por fim, a nova proposta inovaria ao retirar do diretor do estabelecimento os
poderes exclusivos de decisão acerca da caracterização das faltas, da
imposição das sanções disciplinares correspondentes e da concessão de
regalias e benefícios. Tais funções passariam a ser desempenhadas por um
Conselho Disciplinar (art. 112 e seguintes), composto pelo diretor, como pre-
sidente, por três funcionários, dentre os quais um médico 8, e por três repre -
sentantes dos apenados, eleitos pelo coletivo carcerário dentre aqueles que
ostentassem bom ou excelente comportamento (art. 271).
Não obstante a série de inovações humanizadoras, urge ressaltar que
muitas das premissas deste projeto se identificam com as do projeto de 1933,
revelando sua indelével essência positivista e etiológica. O novo projeto cor-
robora textualmente esta influência ao dispor que o regime adotado colima a
eficácia na execução das medidas privativas de liberdade, por meio de "trata-
mento educativo, moral, espiritual e terapêutico, bem como disciplinar" (art. I 9).

7 No que tange à imposição de vestes listradas, assevera o projeto, no item 26 da Exposição de Motivos:
"Estas desmoralizam a quem se vê compelido a usá-las, mas, acima de tudo, os foros de cultura da nação
que as conserva". 116
8 Vislumbra-se, aqui, uma permanência do ideário positivista clínico.
Para tanto, previu-se a criação de dois organismos técnicos próprios. O primeiro
deles chamar-se-ia "Serviço de Observação Preparatória", composto por um
psiquiatra, um clínico e um assistente social, possuindo a função de examinar a
personalidade dos presos provisórios, de modo a identificar as condições
mentais, a motivação do fato imputado e a existência ou não de periculosidade.
O laudo conclusivo deste órgão deveria ser remetido à autoridade judiciária
competente, para a instrução do processo criminal (art. 226)9.
Por sua vez, o segundo organismo técnico, denominado "Serviço de
Recuperação", seria responsável pelo estudo da personalidade dos condena-
dos, distribuindo-os em classes, para a determinação do tratamento conveniente
(art. 47). A apreciação anamnéstica da personalidade deveria atender ao estudo
do indivíduo pelos aspectos clínico, morfológico, fisiológico e neuropsiquiátrico
(art. 53, §19), passando pela análise de sua inteligência, sentimentos, instintos,
tendências e aptidões (art. 53, §29), bem como de sua vida pregressa, formação
religiosa e nível cultural (art. 53, §39)10.
Como se não bastasse, o escopo do referido tratamento seria, nos dizeres
do projeto, o de "transformar o ser anti-social em um homem capaz de conviver,
em liberdade, com os homens livres" (item 18 da Exposição de Motivos). Assim
como o serviço de recuperação, os demais setores técnicos dos
estabelecimentos penitenciários também deveriam dirigir suas atividades no
sentido da recuperação social (art. 39), mediante uma "ação educativa e
sanadora sobre os recolhidos, para curar-lhes os males do corpo e da alma,
incutir-lhes hábitos morais [...]" (item 18 da Exposição de Motivos).
Apesar de Stevenson apregoar a autonomia entre um Direito Penal, pri-
mariamente retributivo, e um Direito Penitenciário, que adota como principal d
escopo secundário do Direito Penal - recuperação do condenado a pro- p<«ta
reformadora do novo projeto é acompanhada por um arcabouço punitivo
bastante rigoroso, não apenas em relação ao elenco de faltas disciplinares, mas

9 No mesmo sentido, cf. item 45 da Exposição de Motivos.


10 No mesmo sentido, cf. item 19 da Exposição de Motivos.
tiimbém quanto à aplicação de algumas espécies de sanções disciplinares.
Em outras palavras, embora seja clara a dissociação feita pelo projeto
ipianto aos propósitos da execução da pena, figurando em primeiro plano o fim
de reparação moral, tal finalidade perdura até o momento de uma even- tual
transgressão ao regulamento penitenciário. Ocorrida a infração, as fundões
retributiva e dissuasória passariam a imperar. Daí o dispositivo expresso no
sentido de que "as sanções aplicáveis aos apertados têm caráter repressivo,
devendo aplicar-se nos limites necessários à preservação da disciplina" (art.
272).
Compreensível também a determinação segundo a qual a escolha das
..inções disciplinares a serem aplicadas deveria seguir os critérios da
individualização e da conveniência do regime penitenciário, tendo como um ile
seus parâmetros a personalidade do faltoso (art. 124). Com isso, é possível
identificar, mais uma vez, a incessante busca do legislador no sentido de domi-
nar semanticamente e substancialmente os preceitos e as sanções legais, sem-
pre no vislumbre de um controle social mais efetivo.
Este desafio não raramente enseja a concepção de punições
desarrazoadas c de preceitos legais supérfluos ou superdimensionados. No
projeto em tela, em especial, causa espécie a configuração das faltas leves, ou
de primeiro grau, em virtude da conversação em voz baixa, para frustrar a
fiscalização (art. 121, inciso I), da irreverência de não se pôr em pé diante do
diretor, chefes de serviço ou autoridades, na ocasião de inspeções ou visitas ao
estabelecimento (art. 121, inciso IV), da desatenção em serviço ou nas aulas
(art. 121, inciso V), da permuta ou do abandono de objetos, roupas ou calçados
(art. 121, inciso VIII), do desleixo da higiene corporal e desasseio da cela (art.
121, inciso X), da comunicação com outrem por sinais (art. 121, inciso XII) e do
uso de roupas de trabalho durante o sono noturno (art. 121, inciso XXVII).
Para as faltas desta natureza, estavam cominadas as penas de repreensão,
de suspensão de visitas, recreios, leitura, exercícios e aquisição de gêneros e
118
bens por até trinta dias e de confinamento celular por até dez dias (art. 125). Já
dentre as faltas graves, ou de segundo grau, possuem especial relevo a resis-
tência, inclusive por atitude passiva, à execução de ordem ou ato administrativo
(art. 122, inciso III), o dano culposo a objetos do estabelecimento ou de outrem
(art. 122, inciso XI), a abstenção de alimento como forma de protesto ou atitude
de rebeldia (art. 122, inciso XV), a participação em reclamações coletivas (art.
122, inciso XVII) e a concorrência ou reiteração de faltas leves (art. 122,
parágrafo único).
O faltoso estaria sujeito não apenas à perda de pontos para a obtenção de
benefícios, ao rebaixamento de classe, ã perda de oficio e â suspensão de
certos direitos, mas sobretudo ao confinamento em célula disciplinar por até
trinta dias (art. 126, inciso V), onde somente passaria a gozar de recreio, com
uma hora de duração, após permanecer em confinamento absoluto por dez dias
(art. 130), sendo certo que as células disciplinares gozariam de condições
semelhantes às demais, com a diferença de serem guarnecidas com apenas "o
mínimo indispensá' vel para o sono e a satisfação das necessidades de higiene"
(art. 129).
O confinamento em célula disciplinar, somado a pelo menos três outras
sanções, também seria reservado ao preso que cometesse falta de terceiro
grau, ou gravíssima, consistente na prática de crime ou contravenção (art. 127).
O faltoso de terceiro grau que fosse considerado perigoso, seja pela presunção
legal, seja a partir de uma "apreciação em concreto", poderia continuar
segregado mesmo após o término da pena de confinamento em célula
disciplinar, enquanto fosse necessário (art. 128)11.

2.3 Anteprojeto de Código Penitenciário de 1963 (Roberto Lyra)

O terceiro anteprojeto foi elaborado em 1963 por Roberto Lyra. Em lugar da


denominação "Código Penitenciário", o insigne jurista optou pela designação
"Código das Execuções Penais", asseverando oportunamente que "a penitência
110 referido dispositivo mantém impressionante similitude com o atual regramento da Lei de Execução
Penal, acerca do Regime Disciplinar Diferenciado.
cabe à sociedade"12.
O autor do projeto, por reverência ao princípio da legalidade, criticava
duramente o regramento penitenciário por meio de provimentos executivos, que,
segundo ele, não passavam de leis complementares com ou sem o nome de
código, adstritos às minúcias, limitadores da intervenção judicial e legitimadores
de um "policialismo desenvolto e superficial, a pretexto de combate aos
perigosos e ao mal definido marginalismo ou predelitualismo (vagabundos e
ociosos, ébrios e alcoólatras, intoxicados em geral, homossexuais etc.)"13. O
inconformismo do autor também se evidencia nas seguintes considerações:

Aparelhos de vigilância, controle e segurança estendem-se, for-


tificam-se, aprofundam-se. O Estado intervém em tudo, mergu-
Ihando na inteligência e no coração dos indivíduos para sondar idéias
e sentimentos. Polícias internacionais e interestaduais permutam
dados e providências. Fiscaliza-se e registra-se tudo14.

I ">aí a opção de Lyra por inserir no Código das Execuções Penais apenas
as iHirmas gerais (art. I2) em matéria executiva, de modo a traçar os parâmetros
norteadores para a regulamentação implementada nos diversos Estados, se-
cundo as suas particularidades. Assim, assevera que "normas gerais facilitarão
e estimularão os avanços para a ação, e não a reação, não contra, mas a favor
dos homens mais necessitados - causa, objeto e fim da execução"15. Tal
característica i oi na o novo projeto ontologicamente diverso de seus
antecessores, já que a 11 igência, o detalhismo e o complexo de ritos, antes
verificados, cedem lugar à estruturação organizacional, à edificação de diversos
conceitos (arts. 2S ao 89) r .1 declaração principiológica, atinentes à execução da
pena.
Dentre os axiomas ventilados pelo novo anteprojeto, destacam-se os iue

12 Cf. Projeto e Anteprojetos de Código Penitenciário. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1978, p. 200.
13Idem, p. 205.
14 Idem, p. 209. 120
15 Idem, p. 203.
preceituam que a lei penal executiva terá aplicação imediata e retroagirá para
beneficiar o sentenciado (art. 11), podendo inclusive ser aplicada por • inalogia
(art. 12), e que a interpretação da lei penal executiva admitirá a extensão, bem
como o suplemento da ciência e da técnica especializadas (art. 13). De todo
modo, segundo o novo projeto, a execução da pena deve- ii.i ser encarada de
modo eminentemente finalístico, dando-se mais valor ao utilitarismo político16
doque ao conteúdo jurídico do ordenamento. Em linhas gerais, Lyra entendia
que a pena privativa de liberdade deveria ser ministrada com o propósito de
exercer sobre o sentenciado uma ação propedêutica, com vistas à sua
reinserção social.
A preocupação com a judicialização da execução também é recorrente no
projeto em tela. Irresignado com as arbitrariedades praticadas pelas autoridades
custodiantes, Lyra apôs em seu anteprojeto o dispositivo segundo o qual as
margens do critério administrativo serão preenchidas sempre com o senso da
dignidade e solidariedade humanas (art. 14). Ainda nesse contexto, constata o
autor:

(...) a autoridade administrativa tornou-se praticamente irresponsável.


E mais influente a mudança de um diretor do que a de um Código. O
rigor das penas depende do carcereiro. Ele suspende a execução e
libera de fato. Seu arbítrio atua para o bem e o mal, para o nobre e o
ignóbil. Favorece, prejudica, persegue contra a lei e a sentença.
Que deve prevalecer numa democracia a serviço de um povo fiel à
justiça e à verdade? O absolutismo dos carcereiros, a ditadura
administrativa, a inconstitucionalidade dos "desregimes" ou a lei e a
dignidade humana?17

Diante desse quadro, Lyra avocou todos os poderes em sede de execução


penal ao Poder Judiciário, transformando o juízo da execução em universal,
16 O utilitarismo político defendido por Roberto Lyra advém de uma clara influência do ideário de Tobias
Barreto.
17 Cf. Projeto e Anteprojetos de Código Penitenciário. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1978, p. 211.
capaz de fazer valer o dispositivo da sentença, em todos os seus termos e
efeitos (art. 18). Ademais, todos os presos e internados ficariam, ininterrup-
tamente, sob o império do juiz (art. 19). Segundo o autor, a jurisdicionalidade
teria o condão de conduzir a execução penal à humanidade, à legalidade e à
responsabilidade, sendo incompreensível a ausência do juiz no único momento
real e concreto da jurisdição18.
Também é possível verificar no projeto o anseio de construção de um
arcabouço executivo-penal não apenas independente em relação aos
ordenamentos adjetivo e substantivo, mas sobretudo genuinamente brasileiro. O
autor, nesse aspecto, proclamava acertadamente que o direito brasileiro
deveria, a exemplo do Código de 1830, voltar a ser visto como modelo,
repelindo, assim, o status de mero tradutor da legislação estrangeira, até
mesmo em função das incomparáveis realidades e necessidades19.
Este projeto representou ainda a mudança no olhar teórico sobre o crime e
o criminoso, embora não se tenha abandonado o eixo criminológico etiológico.
Anatomia, fisiologia e psicologia passam a ser veementemente rechaçadas
como causas diretas da criminalidade. Em seus lugares, notabilizam-se as
condições de vida a que são submetidos os indivíduos. Como se percebe, a
orientação positivista cede espaço ao enfoque do meio social, refletindo as
mudanças paradigmáticas na criminologia da época. Lyra julgava não haver
tratamento para o crime, havendo na criminogênese doenças de que padece a
sociedade, e não o Homem. Com isso, a "medicação" deveria destinar-se ao
corpo e à alma da sociedade, e não dos indivíduos 20. Ainda segundo o autor, "o
ante-
I'm/cio não poderia estimular o exame da personalidade do criminoso e das
causas ilti i riminalidade sem o exame do meio social de onde vem e para onde
voltará o delinqüente e onde ondulam, às vezes tempestuosamente, as forças
etiológicas"131.
18 Idem, p. 212.
19Idem, p. 202. 122
20Idem, p. 214.
Sem embargo do abandono do paradigma meramente positivista, em prol do
enfoque do meio social, certo é que o periculosismo mantém, no novo proje- i<
>, lodo o seu vigor, sendo observado não mais pelo prisma estritamente
subjetivo IXMiculosidade do indivíduo -, mas agora também pela ótica do
ambiente em que o indivíduo se vê inserido - perigosidade do meio social (art.
16).
No que tange ao arcabouço disciplinar, a proposta de 1963 delega aos
regu- Inmentos penitenciários dos Estados a especificação quanto às espécies
de infra- V k s e sanções disciplinares de menor gravidade, sua duração, forma
e a autoridade competente para aplicá-las e executá-las (art. 49). Já as
infrações graves e suas icspectivas sanções deveriam ser previstas pelo
Regulamento Federal das Execuções Penais, expedido pelo Poder Executivo
(art. 245). O anteprojeto ainda estabelece que as sanções não poderão afetar a
dignidade e a saúde do preso (art. 51), sendo vedada a manutenção do
indivíduo em estabelecimento que rião assegure a execução legal e humana da
pena (art. 28), além de proibidas todas as formas aviltantes de tratamento e
identificação (art. 171). Ademais, as punições disciplinares não teriam o condão
de impedir o acesso do recluso à instrução e ao trabalho (art. 52), sendo
terminantemente proibidas as restrições de ordem salarial (art. 53) c alimentar
(art. 54) como formas de sanção.
Ao contrário da proposta anterior, o anteprojeto de 1963 veda o cance-
lamento de infrações disciplinares (art. 57). Lyra explica que tal medida se deve
à necessidade de refrear o arbítrio da autoridade administrativa, a quem
competiria escolher os beneficiários do cancelamento, sonegando ao juiz os
elementos de convicção sobre o mérito para a fruição de benefícios21.
No tocante às penas restritivas de liberdade, consistentes nas obrigações
de permanecer e trabalhar em lugares determinados pelo juízo da execução
(art. 90), Lyra afirma que as mesmas partem de raízes brasileiras, quais sejam,
as penas de desterro para fora da Comarca, do Código de 1830, depois

21132 Idem, p. 215.


transformadas em medidas de segurança contra a periculosidade regional -
exílio local - do Código de 1940233. Já a relação entre direitos e deveres dos
apenados é apresentada de forma contraposta aos direitos e deveres da auto-
ridade custodiante. Desse modo, os apenados ficariam sob a imediata proteção
do poder público (art. 155), conservando todos os direitos que não hajam sido
suspensos em função da reprimenda (art. 156), exceção feita ao direito de visita
íntima, já que Lyra entendia que o mesmo é contraproducente sob os aspectos
moral, fisiológico, psicológico, familiar e disciplinar, razão pela qual o proscreveu
de seu anteprojeto.
Importante inovação do anteprojeto advém do comando que veda, aos
regulamentos penitenciários, a restrição dos direitos de representação e re-
clamação dos presos e internados (art. 166). Nesse aspecto, ressalte-se a
possibilidade de eleição anual, por parte dos apenados, de um representante do
coletivo frente à administração prisional (art. 181).
O anteprojeto também se mostra pioneiro ao estabelecer a criação do
Conselho Federal das Execuções Penais e dos Conselhos Estaduais das Exe-
cuções Penais (art. 208) e ao contemplar a possibilidade de perdão judicial,
depois de iniciada a execução, nos casos em que, pela natureza da sanção, não
couber a suspensão condicional da pena (arts. 134 e 136). Cumpre destacar, no
entanto, que tal benesse estava diretamente atrelada à constatação de ausência
de periculosidade do indivíduo, o que reforça a feição perigosista do anteprojeto
de 1963.
Em síntese, é seguro afirmar que a proposta de Roberto Lyra buscou não
apenas seguir o sentido da humanização da execução penal, mas também
arrefecer o absolutismo das premissas positivistas e antropológicas, muito
embora as tenha substituído por paradigmas igualmente etiológicos. De todo
modo, é inegável sua contribuição para o delineamento da atual regulamentação
penitenciária.

124
2.4 Anteprojeto de Código Penitenciário de 1970 (Benjamin Moraes Filho)

Atendendo à orientação do então ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, no


sentido de se complementar a matéria do Código de Processo Penal, Benjamin
Moraes Filho concluiu, em 29 de outubro de 1970, uma nova proposta de
Código Penitenciário para o Brasil. Na esteira dos pensamentos de Giuseppino
Ferrucio Falchi, Eugênio Cuello Calon e Roberto Lyra, também foi escolhida a
designação "Código de Execuções Penais", haja vista a amplitude das matérias
tratadas, que por vezes mostram-se alheias à disciplina propriamente
penitenciária.
O anteprojeto de 1970 inspirou-se no anteprojeto de Código de Processo
Penal, de autoria de José Frederico Marques, no Regulamento Penitenciário do
Estado da Guanabara (1968) e nas Regras Mínimas para o Tratamento de
Reclusos, formuladas em 1953 pela Organização das Nações Unidas. Re- viM.i
por uma comissão de notáveis juristas - José Frederico Marques, José
Salgado Martins e José Carlos Moreira Alves -, a nova proposta pretendeu
estruturar um ordenamento não-assentado em generalidades, como fizera o
anteprojeto de 1963, nem muito casuístico, tal qual o projeto de 1933, com seus
854 artigos. Buscou, desse modo, fixar normas gerais para o regime pe-
nitenciário, conferindo aos Estados o poder de legislar supletivamente e de
elaborar regulamentos para a execução penal (art. 233). Pretendeu também
versar sobre questões essenciais de natureza processual e administrativa, sem-
pre tendo em conta a necessidade de conciliação entre os escopos de retri-
buição e defesa social.
Ao contrário do anteprojeto de Roberto Lyra, que conferia ao Poder Judi- i
íário o império da execução penal, o último dos anteprojetos optou por firmar um
critério eclético, atribuindo também à autoridade administrativa os pode- i es de
execução das normas e da aplicação do tratamento penal (art. 9 9) e de
resolução dos incidentes da execução, em especial o de excesso. Com isso, a
intervenção judiciária passaria a compreender certos atos decisórios, mas, em
maior escala, os atos de supervisão. Esta tendência de recuo da jurisdicio-
nalização da execução penal, iniciada pelo anteprojeto de 1970, não pode ser
dissociada da conjuntura então vivenciada por nosso país, profundamente
mergulhado em um regime de exceção que se valia da obscuridade do cárcere
como eficaz instrumento de coerção e controle social.
Juntamente com a administrativização da execução penal, o anteprojeto
tutela a classificação do apenado como um dos alicerces do regime penal a ser
implementado. Nesse sentido, dispõe o item 14 de sua Exposição de Motivos:

A classificação visa ao estudo da personalidade, à individualização


do tratamento penal e à lotação adequada dos sentenciados presos
[...] A fase executória tem como base o princípio da individualização
que não se compadece com as distinções formais da fase
cominatória, mas tão só com as ausências ou insuficiências da
personalidade do sentenciado, aferidas no exame de classificação22.

Concretizando tal premissa, assevera o anteprojeto que o exame de classi-


ficação é obrigatório e deve ter em vista o estudo da personalidade, a
individualização do tratamento e a lotação dos presos nos estabelecimentos
adequados (art. 41). Tal exame abrangeria os exames médico e psiquiátrico, a
verificação da situação sociofamiliar, o atestado de "nível ético", a apuração do
grau de instrução, a verificação de tendência ou aptidão profissional e a aferição
do "grau de inadaptação social" do condenado (art. 41, parágrafo único). Não é
de se estranhar que o anteprojeto tenha estruturado o regime penal de modo a
possibilitar a individualização do tratamento, tendo em conta, precipuamente, as
"insuficiências da personalidade do sentenciado" (art. 34).
O regime carcerário proposto seguiria ainda o modelo progressivo (art.
147), escalonado em três fases, destinadas aos processos de classificação,
tratamento e livramento condicional do apenado. Inicialmente, o sentenciado
passaria por uma anamnese classificatória, de duração de um a seis meses.
126
22 Idem, p. 271.
Uma vez enquadrado em um dos três estágios da fase de tratamento -
orientação, adaptação ou semiliberdade -, o apenado seria submetido a um
autêntico processo terapêutico, de modo a "regenerá-lo" do crime. Desvinculada
do fator tempo, a fase de tratamento passaria a ter como critério único o índice
de aproveitamento do apenado (art. 149, parágrafo único), revelado pela análise
de seu índice ético, de seu grau de sociabilidade e de sua conduta prisional (art.
48). Isso porque a abolição da progressividade a termo fixo, no entendimento de
Benjamin Moraes Filho, atenderia aos reclames da individualização da pena,
afastando a adoção de um critério genérico de aferição do aproveitamento
emendativo do sentenciado23.
Por fim, o apenado cuja periculosidade fosse declarada cessada, pela su-
posição de que não voltaria a delinqüir (art. 201), poderia ingressar na última
fase de execução da pena - livramento condicional -, desde que empreendesse
a reparação do dano causado, salvo impossibilidade de fazê-lo, e cumprisse
mais da metade da pena, se primário, ou dois terços, se reincidente (art. 198).
Para o condenado primário e menor de 21 anos ou maior de setenta, o prazo do
livramento poderia ser reduzido a um terço da pena (art. 202). Já o livramento
do apenado tido como "criminoso habitual ou por tendência" se submeteria a um
prazo indeterminado de pena, subsistindo tão-somente os requisitos da
reparação do dano e da cessação da periculosidade (art. 203).
Percebe-se, pelo exposto, que o escopo de reforma moral do recluso se fez
bastante presente no novo anteprojeto. Daí a motivação de seu artigo 4 e, que
estabelece como finalidades da execução penal, entre outras, a educação ou a
reeducação do sentenciado, a fim de prepará-lo para o exercício da liberdade
(inciso II), o incutimento, por meio de processos educativos e corretivos, da
consciência moral e cívica (inciso III) e a adaptação ou readaptação do apenado
às exigências do convívio social (inciso IV).
O disciplinarismo também não foi olvidado. A disciplina, segundo o
.inteprojeto, constitui um instrumento para despertar no apenado o hábito da

23 Idem, p. 272.
ordem e o sentimento de respeito ao seu semelhante, o que demonstra a
inflexibilidade deste axioma em sede penitenciária.
A exemplo da proposta de 1963, o anteprojeto de 1970 se absteve de
detalhar as faltas disciplinares em espécie, deixando esta tarefa a cargo dos
regulamentos estaduais. Arrolou, no entanto, os diversos tipos de sanção
disciplinar, bem como a forma de sua aplicação, no intuito de federalizar o
poder de regulamentação punitiva, evitando, assim, as cominações excessivas,
os ritos discricionários e a condução tendenciosa do procedimento de apuração
das faltas e injunção das sanções disciplinares carcerárias. Poderiam ser
aplicadas, desse modo, as sanções de repreensão, de isolamento na própria
cela, em alojamento coletivo ou em cela de segurança, pelo máximo de noventa
dias (art. 113), e de transferência de estabelecimento (art. 108), além das
sanções secundárias de perda de regalias, rebaixamento de índice disciplinar e
apreensão de valores ou objetos (art. 109).
Dentre as sanções disciplinares, possui especial destaque o isolamento em
cela de segurança, consistente na segregação do faltoso e uma cela com as
mesmas dimensões, higiene, aeração e iluminação da cela comum, porém
dotada "com a mínima estrutura necessária para a subsistência do apenado -
cama e instalação sanitária" (art. 110). Tal punição reeditaria a sanção de
confinamento em célula disciplinar, constante do anteprojeto de 1957, sendo
porém triplicada em sua duração, eis que infligida não mais pelo máximo de
trinta, mas de noventa dias ininterruptos.
O anteprojeto inova ao contemplar circunstâncias atenuantes e agravantes
das sanções disciplinares (arts. 116 e 117), bem como a possibilidade de
suspensão condicional da sanção disciplinar por um a seis meses (art. 118) e a
vinculação do isolamento preventivo ao critério da necessidade da medida, por
razões de segurança individual ou coletiva (art. 123). Já no tocante aos direitos,
deveres, prerrogativas e regalias dos apenados, o anteprojeto passa a arrolar
textualmente os direitos conferidos (art. 126), diferenciando-os taxativamente
128
das regalias (art. 132), atribuindo-lhes a qualificação de "direitos subjetivos"24 e
contrapondo-os aos deveres da Administração Penitenciária.
Em contrapartida, quando da enumeração dos deveres (art. 125), o
anteprojeto acaba por impor gravosas obrigações ao sentenciado, tais como a
de se abster de reivindicar ou exigir tudo aquilo que esteja fora das prerro-
gativas inerentes à sua pessoa e à sua condição de preso (inciso II), de não
incitar ou participar de movimentos coletivos de subversão à ordem ou ã
disciplina (inciso VI), de executar as tarefas e ordens recebidas sem formular
exigências ou reclamações tidas como improcedentes ou reprováveis (inciso IX)
ou de se submeter ao tratamento penal que lhe for prescrito, sem relutância ou
recusa injustificada (inciso X). Cumpre salientar que muitos dos deveres então
concebidos foram concretamente incorporados pela hodierna legislação penal
executiva, sendo rigorosamente exigidos até o presente, sob pena de
admoestação por falta grave, não obstante seu cunho excessivamente
repressivo.
(Capítulo 3

Normatização Penitenciária Contemporânea

modelo penitenciário hoje vigorante em nosso país, como é cediço, teve

O muitos de seus contornos traçados a partir do conjunto de trans- li ii


mações sofridas pela sociedade brasileira ao longo do período de exceção
democrática, instaurado pelo golpe de estado de 1964. Até aquele momento,
apenas a Lei n2 3.274, de 1957, compilava normas gerais acerca do legime
penitenciário, normas estas de caráter eminentemente programático c
organizacional, sem significativos reflexos na realidade carcerária. Após 1964, o
sistema penitenciário retoma com vigor a sua utilidade para os escopos de
repressão política, reforçando os ideários do regime então vigente, notadamente

24 Ibidem.
o defensivismo social e o combate à periculosidade individual.
O arrefecimento ditatorial não surtiu grandes efeitos na realidade peni-
tenciária brasileira, preterida pela tendência liberalizante da sociedade brasi-
leira. Do mesmo modo, a Lei de Execução Penal e o Regulamento do Sistema
Penal do Rio de Janeiro, não obstante terem preenchido o hiato de legalidade
penitenciária até então verificado, não lograram afastar, em definitivo, os
paradigmas político-criminais arraigados em nosso ordenamento, repetindo, em
certos momentos, o mesmo discurso legal anterior e contribuindo, assim, para a
perpetuação de uma estrutura correcional autoritária e inquisitiva.
Nem mesmo a Carta de 1988 foi capaz de desatar esse verdadeiro nó à
justiça penal, visto que os regulamentos penitenciários não sofreram a ne-
cessária adequação à nova ordem constitucional. Como se vê, o hiato de
legalidade está preenchido, mas por uma legalidade efêmera e extremamente
afrontada pelo obscurantismo penitenciário.

3.1 Regulamento Penitenciário do Estado da Guanabara (Decreto n2 1.162,


de 1968)

Editado em 21 de novembro de 1968, em consonância com o poder


estadual de legislar supletivamente e de elaborar regulamentos para a exe-
cução penal, o Regulamento Penitenciário do Estado da Guanabara (Decreto n9
1.162/68) representou o primeiro diploma a fixar normas específicas para a
organização de todas as unidades prisionais do Rio de Janeiro.
A idéia de um novo regulamento fora suscitada pelo Dr. Augusto Frederico
Gaffrée Thompson, ex-superintendente do Sistema Penitenciário da Guanabara,
a quem se designou a elaboração de um trabalho neste sentido. Concluído o
trabalho, foi o mesmo submetido à chancela do novo superintendente, promotor
Antônio Vicente da Costa Júnior, que apresentou diversas impugnações de
ordem doutrinária, que culminaram com a revisão e a desfiguração do Projeto
Thompson. A gênese do novo regramento, da lavra do insigne promotor, adveio
130
da necessidade premente de um estatuto concomitantemente repressivo e
defensivista, tornando-se útil ao regime de exceção então vigente, ao objetivar
"a repressão contra o delito e a preservação social contra a periculosidade pós-
delitual"25. Tal escopo partia necessariamente das premissas do combate à
reincidência, do tratamento psicossomático, cultural e laborterápico e do
segregacionismo. O Regulamento da Guanabara representou basicamente o
resultado da junção dos preceitos consagrados nos anteprojetos de código
penitenciário de 1956, elaborado por Oscar Stevenson, e de 1963, de autoria de
Roberto Lyra. Diante disso, é possível deduzir, sem maiores esforços, a
orientação teleológica do novo regramento, marcado pela tutela do postulado da
legalidade, pelo recurso a construções de ordem teórica e axiomática, pela visão
finalística e utilitarista da execução penal e, sobretudo, pelo enfoque
positivista239 e etiológico.
Este último viés é notado desde os primeiros dispositivos do Decreto,
quando da concepção do Sistema Penitenciário (Título I). Nesse sentido, os
estabelecimentos penais se dividiam em escolares, industriais, correcionais e
pré-comunitários (art. 3S), seguindo critérios fundados na carência da per-
sonalidade e no índice de periculosidade revelados pelos reclusos240.
Assim como a secção dos estabelecimentos, também os escopos ideali-
miIos para eles têm o condão de descortinar a ideologia penitenciária então !iii|h
lante. Desse modo, enquanto a educação nas unidades escolares tinha I >< >i
fim "o progresso ético-social da personalidade do interno" (art. 55), nas pri- •i irs
industriais deveria ser desenvolvida, como atividade básica, a laborterapia (,nt.
5Q). Já nas unidades correcionais cuidar-se-ia de incutir no interno, mil ire tudo,
o hábito da conduta disciplinada (art. 6Q). Esta, então, incentivaria no apenado o
hábito da ordem (art. 57). Como se vê, todo o regime penitenciário erigido pelo
novo diploma estava concatenado de modo a tor- n.ii eficaz o tratamento
penitenciário (art. 17), instrumentalizado por seus quatro pilares: assistência,

25 COTRIM NETO, A. B. Exposição de motivos do regulamento penitenciário do Estado da Guanabara.


Superintendência do Sistema Penitenciário (SUSIPE), Secretaria de Justiça, Rio de Janeiro, 1968, p. 17.
educação, trabalho e disciplina (art. 53).
A necessidade de "tratamento" dos reclusos e a diversificação quanto à
natureza dos estabelecimentos penitenciários estavam necessariamente atrela-
i las a um rigoroso processo de categorização, alicerçado pela criação do
Conselho ile Classificação e Tratamento e das Comissões de Classificação e
Tratamento das unidades (arts.l 1 a 16). Tais órgãos atuariam sobre a pessoa
do apenado desde o seu ingresso no sistema penitenciário, ocasião em que o
mesmo deveria ser trans- Icrido para o Pavilhão de Classificação26, onde seria
submetido a uma série de exames, tendentes a averiguar seu estado físico e
psiquiátrico, sua situação sociofamiliar, seu nível ético, seu grau de instrução,
sua aptidão profissional e seu grau de inadaptação social, revelada no ato ou na
atividade criminosa desenvolvida (art. 22). Todas essas informações extraídas
do "objeto" da execução penal estariam sintetizadas no recém-instituído Boletim
Penitenciário, dotado de seis quesitos distintos - índice ético, grau de
sociabilidade, aplicação educacional, dedicação ao trabalho, nível disciplinar e
estado psicológico (art. 32) -, onde em cada um deles receberia um
determinado conceito - negativo, neutro, bom, ótimo, excelente ou excepcional
(art. 33).
Uma vez classificado, seria o preso inicialmente lotado em uma das unida-
des da Superintendência do Sistema Penitenciário (SUSIPE), onde permanece-
ria em período probatório pelo prazo de 180 dias (art. 26), sendo estreitamente
observado em suas ações e atividades (art. 27). Findo o período de prova, rece-
beria a sua lotação definitiva (art. 28), estando sujeito a um regime penitenciário
constituído por normas "adequadas à sua personalidade" (art. 30).
O critério da personalidade do interno também norteava a sua migração
entre as diversas unidades prisionais do Estado. Em outras palavras: a
necessidade de dar ao interno "o tratamento mais compatível com sua
26 Cumpre ressaltar que a figura do Pavilhão de Classificação está sendo reavivada pela atual Secretaria
de Administração Penitenciária do Estado do Rio de Janeiro (presidida pelo promotor de justiça Astério
Pereira dos Santos), que transformou a antiga Casa de Custódia de Benfica em um grande Centro de
132
Observação Criminológica, responsável pela anamnese não apenas dos presos que ingressam no sistema,
mas também daqueles que em breve retomarão ao convívio social.
personalidade" (art. 36) constituía, ao lado da conveniência disciplinar, legítimo
fundamento para as transferências entre os estabelecimentos da SUSIPE. Tudo
propiciado por uma incessante graduação dos apenados.
Este frenesi classificatório, que há muito acomete nossas autoridades
penitenciárias, é muito bem ilustrado pelas palavras de Cotrim Neto, redator da
Exposição de Motivos, e de Antônio Vicente da Costa Júnior, artífice do
Regulamento do Estado da Guanabara. Enquanto o primeiro admite textu-
almente que no regulamento "deu-se particular ênfase à classificação dos inter-
nos, a fim de possibilitar boa adequação do tratamento penitenciário que se lhes
atribuirá"27, o segundo assevera:

Unânime, tranqüilo e de antanho é o clamor dos penitenciaristas pela


classificação do apenado. Diversificados, a princípio, entre a
antropologia e a sociologia criminal, unem-se, hoje, os criminólogos,
apregoando como indispensável a pesquisa dos diversos fatores
determinantes da ação anti-social. Desta forma, a instituição de um
colegiado com a presença de um médico psiquiatra, um professor,
um sociólogo e um administrador penitenciário de notória
competência e comprovada experiência, a síntese e o diagnóstico
serão autenticados por um lastro científico e uma dimensão ampla
[...].
A seleção, em termos científicos, é princípio fundamental. Será
efetuada pela averiguação das antecedências do ato criminoso e pela
fixação das causas endógenas e exógenas que concorreram para a
sua prática. Sua efetivação permitirá a lotação do interno, no tipo de
estabelecimento que melhor concorra para a sua adaptação social28.

27 COTRIM NETO, op. cit., p. 21.


28 Idem. Outro aspecto digno de nota no prefácio do Regulamento, e que ajuda a aclarar sua essência, diz
respeito à defesa velada do instituto da pena indeterminada. Nesse sentido, afirmou o ilustre autor que o
Regulamento da Guanabara enfrentaria inúmeros obstáculos para seu sucesso, dentre os quais "uma
legislação penal que encerra a pena fixa e o livramento condicional rígido. Quando a semente da sentença
indeterminada, que Frederick Hill, inspetor das prisões da Escócia, lançou em 1839, frutificar no campo do
Direito Penal Brasileiro, haverá maior eficácia nos sistemas penitenciários". COSTAJÚNIOR, op. cit., p. 10.
Todo este processo de disposição dos internos, conforme os seus "graus de
|u i sonalidade", não se limitava porém ao mero registro em seus Boletins. O
lolulamento, evidencia o Decreto, deveria transcender as elucubrações teóri- i .is
e ser impingido no próprio uniforme dos condenados, fazendo-os carregar n-
mprc consigo uma marca de "infâmia" ou de "mérito". Assim é que os índi- i es
de aproveitamento deveriam ser representados por plaquetas coloridas - (ndice
"bom" representado pela cor vermelha, "ótimo" pela verde, "excelente" pela
dourada e "excepcional" pela cor azul - que os internos usariam em seus
uniformes, de forma cogente, no lado esquerdo do peito (art. 51)29. Como se i
'Ir,erva, o uso de placas se restringe apenas aos portadores de índices positivos
dr aproveitamento. Mas é exatamente esta sutileza que mascara o micropoder
discriminatório do mandamento, que não apenas hierarquiza os presos "bons",
mas estigmatiza justamente os que não portam sinal algum, já que os mesmos
seriam prontamente identificados como de menor conceito.
Urge salientar, por oportuno, que toda esta vocação positivista e
hierarquizante do Regulamento da Guanabara não se sustenta apenas na dou-
trina pátria. A forte influência estrangeira nos rumos de nosso penitenciarismo,
verificada já na construção (e regulamentação) da Casa de Correcção da Corte,
também é sentida aqui, mormente diante do disposto item 3 da Exposição de
Motivos, que revela a subserviência acrítica de nosso legislador:

Não temos a veleidade de pretender que o Sistema Penitenciário da


Guanabara, a SUSIPE, possa ser apresentado sequer como razoável
à face de organizações similares de nações ou estados-federais de
países ricos [...] Que essas nos inspirem, que persigamos a cons-
trução do que elas nos sugerem e, ainda, que adotemos as reco-
mendações de idôneas entidades de caráter científico internacional,
somente assim poderemos envaidecer-nos de nossos feitos30.

29 Trata-se inequivocamente de um refluxo dos preceitos lavrados pelo Decreto ns 678, de 1850,
134
mas há muito proscritos de nosso ordenamento.
30 COTRIM NETO, op. cit., p. 12.
É igualmente cediço que a vocação positivista de um regramento peni-
tenciário está intimamente atrelada ao grau de arbítrio concedido à autoridade
encarregada de fazer valer as disposições da sentença penal: a autoridade
administrativa custodiante. Com isso, o novo Regulamento tratou de resgatar o
prestígio do "arbítrio administrativo" - arrefecido nas propostas de Oscar
Stevenson e Roberto Lyra -, atribuindo a este o papel de catalisador do princípio
da individualização da pena. Para legitimar o reforço do alvedrio administrativo,
Cotrim Neto, então secretário de Justiça, valeu-se das "científicas" explicações
de Saleilles:
¥
A individualização judiciária não constitui ainda senão um diagnóstico:
é uma classificação individual, classificação feita sobre a realidade,
quer dizer, sobre o sujeito real, em lugar de o ser sobre a
individualização abstrata, como é o caso da individualização legal.
Mas em matéria de tratamento moral como quando se trata da
terapêutica médica, o diagnóstico não basta, sendo necessária a
aplicação do remédio, o que varia para cada um daqueles a quem o
mesmo é aplicado. Ora, isso, em matéria de penologia, não mais
depende de quem pronuncia a pena, porém daquele que a aplica. E
aquele que a aplica é a administração penitenciária; é mister,
destarte, que a lei deixe suficiente iniciativa e elasticidade na
adaptação do regime, para que a administração, por seu turno,
individualize a aplicação da pena às exigências educacionais e
morais de cada um. É a individualização administrativa31.

O aumento do campo de atribuições da autoridade administrativa, fomenta-


do pelo Regulamento da Guanabara, coincidiu logicamente com a delimitação
da intervenção judicial na seara penitenciária. Desse modo, vedou-se ao Juiz da
execução interferir na aplicação dos regulamentos penitenciários, estando sua

31 SALEILLES. L'lndwidualization de la Peme. Paris: Ed. Alcan, 1898, pp. 262-263, apud COTRIM NETO, op.
cit., PP. 13-14.
ação restrita apenas às hipóteses de violação das normas legais e prescrições
regulamentares. O próprio juiz à época titular da Vara de Execuções Criminais
do Estado, Dr. Claudino de Oliveira e Cruz, abarcava tal medida, ao salientar
que o limite de atuação do Juízo Executivo deveria se assentar exclusivamente
no conceito de incidente de execução. Quando não caracterizado o incidente,
deveria ser vasto o rol de atribuições dos diretores das unidades prisionais32.
Embora coadunada à inércia judicial, a mitigação da intervenção judicial na
esfera penitenciária se mostrou bastante temerária, se considerarmos que a
autoridade custodiante, para lograr o estabelecimento da ordem e da disciplina,
tende a desrespeitar os direitos públicos subjetivos dos apenados, sem que tais
violações cheguem sequer ao conhecimento do Juízo. Controverte-se com mai-
i M intensidade, desde então, se a ação judicial deve ter cunho suplementar e i
opressivo, ou eminentemente preventivo, no sentido de nortear a atuação ad-
ministrativa e tolher seu impulso abusivo.
Os efeitos mais incisivos do amplo arbítrio administrativo, propiciado |h-Io
novo regramento, recaem naturalmente sobre o regime disciplinar im- IMisto. A
amplitude de subsunção, nesse contexto, se estende desde o isolamento
preventivo do faltoso, até a definitiva aplicação das reprimendas.
Uma vez praticada a suposta falta disciplinar, deveria o interno ser con-
>luzido à inspetoria da unidade, onde caberia ao inspetor decidir por sua
segregação preventiva ou não, tendo em conta a gravidade do fato (art. I Í9). No
entanto, o juízo quanto à gravidade do fato era absolutamente livre, a míngua
de dados objetivos fornecidos pelo Decreto. Ademais, excetuada a transferência
de estabelecimento, de atribuição do Superintenden- te do Sistema
Penitenciário, todas as demais sanções deveriam ser aplicadas exclusivamente
pelo diretor do estabelecimento (art. 128), após parecer - não-vinculativo - da
Comissão de Classificação e Tratamento da unidade (art. 16, inciso II). Também
ficaria a critério exclusivo do diretor suspender i ondicionalmente a execução
das sanções disciplinares aplicadas (art. 132).
136
32 Apud COTRIM NETO, op. cit., p. 16.
Além da mencionada pena de transferência, prevê também o Decreto n u
1.162, de 1968, as sanções de repreensão e de isolamento, na própria cela, em
alojamento especial, em cela de segurança, ou ainda em cela de segurança
especial (art. 119). Completam o elenco de medidas repressivas as sanções
secundárias de perda de favores, suspensão de visitas, rebaixamento de
classificação disciplinar e apreensão de valores ou objetos (art. 120).
Mais uma vez, merece destaque o isolamento do faltoso. Seguindo a linha
do anteprojeto de Roberto Lyra, o Regulamento da Guanabara impõe a
reclusão, pelo máximo de noventa dias (art. 127), em cela de segurança - com
as mesmas dimensões, higiene, aeração e iluminação da cela comum, porém
guarnecida apenas com instalações sanitárias, cama e colchão (art. 121). Até
então, não haveria inovação alguma, não fosse o requinte do legislador no
sentido de agravar, ainda mais, um confinamento já qualificado. Assim, quando
o gravame segregacionista parecia já ter alcançado o seu ápice com a cela de
segurança, surge a terceira espécie de isolamento - a cela de segurança
especial -, de evidente cunho retributivo. Este cubículo deveria ter guarnição
compatível com a periculosidade revelada pelo interno33, não podendo, porém,
prescindir de ventilação e luz suficientes (art. 122). Note-se que o Regula-
mento é totalmente silente quanto às dimensões e condições de higiene da
cela, bem como quanto à necessidade de cama, colchão e instalação sanitária,
dando margem a um enclausuramento assaz mortificante. De qualquer modo,
aparentemente cônscio dos efeitos deletérios da cela de segurança especial, o
legislador teve a "benevolência" de determinar o limite máximo de trinta dias de
sua duração (art. 127, parte final), ao contrário dos noventa dias dos demais
afastamentos, bem como consentiu a visitação médica diária e o banho de sol
semanal, por uma hora (art. 136).
Extremamente relevante, ademais, é a subversão do princípio da legalidade
cometida pelo regulamento. Ao deixar de identificar quais condutas seriam

33 Inevitável o paralelo entre a cela de segurança especial e o atual regime disciplinar


diferenciado, ante a similitude das medidas.
passíveis de recolhimento em cela de segurança especial, o Decreto reforçou o
arbítrio desregrado da autoridade, consagrando um quadro de grave
insegurança jurídica, típico de uma instituição totalizante.
Prosseguindo na análise do arcabouço disciplinar, urge tecer algumas con-
siderações de ordem prática. Inicialmente, não há qualquer distinção quanto à
maior ou menor gravidade das condutas praticadas, sendo aposto um rol único
de faltas (art. 158). Prevê também o regulamento várias circunstâncias
atenuantes (art. 130) e agravantes (art. 131) das sanções, com destaque para a
personalidade do interno. Se a personalidade fosse classificada como
abonadora, teria sempre o condão de atenuar a sanção (art. 130, inciso I). Caso
contrário, ensejaria invariavelmente a majoração do rigor sancionatório (art. 131,
inciso I). De qualquer forma, o eixo punitivo estaria deslocado do fato praticado
para a pessoa do faltoso, consagrando um direito executivo-penal de autor.
Outro dado relevante diz respeito ao processo disciplinar de apuração do
fato e aplicação das sanções. Não obstante a previsão regulamentar de suspen-
são da execução (arts. 132 a 134), revisão da punição (art. 152) e perdão
disciplinar (art. 153), ainda persiste a inclinação inquisitória deste processo. Em
especial na instrução probatória do procedimento, marcada pela
prescindibilidade da oitiva do condutor do faltoso (art. 143, inciso III) e pela
admissão, como prova, de todo e qualquer elemento de informação que a
Comissão de Classificação de Tratamento entender necessário (art. 148).
Por fim, fomenta o regulamento um modelo nitidamente meritocrático, ao
elencar 17 espécies de favores a serem gradativamente prestados aos pre - sos
(art. 166), muitos deles com autênticas características de direitos subjetivos,
mas utilitariamente rebaixados à condição de "mercês generosas" da , na
expectativa de um controle mais eficaz sobre a massa carcerária. Dentre os
referidos "favores", figuram a permissão de visita de pessoas amigas (inciso I),
de visita íntima (inciso III), de visita a ascendente, descendente ou cônjuge
enfermo e em estado grave (inciso XIII), de comparecimento à cerimônia
138
Iiincbre dc ascendente, descendente ou cônjuge (inciso XIV), de visita mensal
ao lar (inciso XVI) e de gozo de férias em local apropriado, para os que tenham
trabalhado durante 12 meses contínuos (inciso XVII).
No que tange à fruição de férias, a própria Exposição de Motivos do
regulamento reconhece a sua natureza de direito, ressaltando o seu caráter ile
necessidade, de recuperação fisiológica, desatado de qualquer ligação i om
institutos premiais34. Não obstante, termina por incluí-las no rol de lavores,
invocando não só a velha justificativa da ausência de condições estruturais, mas
sobretudo a covardia da originalidade. A ver:

Se não autorizamos inscrição das férias no quadro dos "direitos" (art.


163 e segs.) de quaisquer apenados empregados em trabalho
continuado, tal resultou simplesmente de considerações práticas; l2
de não ser possível, no momento, dispor de estabelecimentos
adequados para agasalhar permanentemente muitas dezenas,
eventualmente mais de uma centena, de internos escalados para
férias; 2S de não querermos escandalizar35 com a generalização de
uma conquista do penitenciarismo ainda não plenamente consa-
grada, embora digna da melhor consideração36.

Por derradeiro, é possível afiançar que o Regulamento do Estado da


Guanabara, última matriz do regramento penitenciário atual do estado, apesar
de sua inafastável essência repressiva e defensivista, conta com muitos de seus
preceitos preservados pelo atual Regulamento do Sistema Penal do Rio de
Janeiro, orientando ainda hoje o cotidiano e o destino dos apenados.

3.2 Projeto do Código Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro (1980)

Consternado pela calamidade do sistema penitenciário no Estado do Rio de


Janeiro, o então governador Antônio de Pádua Chagas Freitas, ao nomear
34 COTRIM NETO, op. cit., p. 24.
35 Revela-se, aqui, todo o vigor da opinião pública e da pressão midiática sobre os rumos do
penitenciarismo brasileiro.
36Idem, p. 26.
como secretário de Estado de Justiça Erasmo Martins Pedro, determinou como
absolutamente prioritárias a definição de uma política penitenciária e sua or-
denação jurídica. Para este fim, foi elaborado pelo então diretor do Sistema
Penitenciário, promotor Antônio Vicente da Costa Júnior, um novo projeto de
Código Penitenciário para o Estado, em substituição ao Regulamento Peniten-
ciário do Estado da Guanabara. O incipiente trabalho parte da premissa de que
o código penal de 1940, muito embora não tenha se compromissado com uma
finalidade explícita para a pena privativa de liberdade, fez predominar o princípio
meramente retributivo37. Conseqüentemente, a busca pela conciliação entre os
paradigmas de caráter preventivo especial e os dominantes institutos
retributivos geraria inevitável conflito e a incontida debilitação do Direito
Criminal38. Assim é que o projeto preconiza a autonomia do Direito Penitenciário
frente ao Direito Penal39, cabendo basicamente ao primeiro "a demarcação,
entre os lindes da legalidade, do desempenho da administração penitenciária"40.
Apesar de se apresentar como instrumento de vanguarda, o projeto se
embasa nos mesmos supedâneos do então vigente Regulamento Penitenciário
do Estado da Guanabara, também de autoria do promotor. Assim, o novo
arcabouço legal é concebido a partir da tripartição "sistema", "regime" e
"tratamento" (art. 2Q), com vistas à aplicação individualizada de critérios e
métodos para a consumação das finalidades das penas privativas de liberdade e
das medidas de segurança detentivas.
O objetivo precípuo do regime penitenciário seria então o de "concorrer,
eficazmente, para a realização da defesa social, em atendimento à moderna
exigência científica e, também, ao imperativo da integração autônoma, do
Direito Penitenciário, no processo da reação criminal"41. O tratamento

37Cf. COSTA JÚNIOR, Antônio Vicente. Exposição cie Motivos do Projeto de Código Penitenciário do Estado
do Rio de Janeiro. Departamento do Sistema Penitenciário (DESIPE), Secretaria de Estado de Justiça, Rio de
Janeiro, 1980, p. 6.
38Idem, p. 7.
39 A defesa da autonomia penitenciária elucida a escolha, pelo autor do projeto, da designação
"Código Penitenciário".
40 140op. cit, p. 19.
COSTA JÚNIOR, Antônio Vicente,
41Idem, p. 23.
penitenciário, por sua vez, é tido como a adequação, dos critérios e métodos
estabelecidos pelo regime, à individualidade do homem preso (art. 81). Suas
finalidades seriam as de incutir no preso a consciência dos seus deveres de
homem e de cidadão, o sentimento inspirador de conduta compatível com os
padrões de licitude e as exigências éticas da sociedade e a vontade para o
respeito aos princípios familiais, cívicos e morais que ordenam o convívio social
(art. 82). Enfim, o tratamento penitenciário destinar-se-ia a "suprir as eventuais
ausências ou insuficiências de estrutura pessoal"42.

Segundo o projeto,

o essencial é exterminar em todo homem preso a razão do seu duelo


com a licitude, que está, sempre, no abandono social a que foi
relegado, na educação que não teve ou não aproveitou, no trabalho
que não conheceu ou que jamais o realizou, ou enfim, no desprezo
pelo hábito da ordem e do sentimento de respeito ao semelhante43.

Esta visão etiológica revela a pretensão, ainda que eventual, de reforma


moral do indivíduo. O autor do projeto, nesse sentido, expressamente revelou
ser preferível, mas não essencial, a transmutação da consciência ou da
sensibilidade do preso259.
Os instrumentos para o tratamento penitenciário continuariam a ser os
mesmos utilizados pelo então vigente Regulamento Penitenciário do Estado da
Guanabara - assistência, educação, trabalho e disciplina (art. 83) - dotados, no
entanto, de caráter obrigatório (art. 90). Para a viabilização do tratamento
carcerário, o projeto elege como vigas mestras a autonomia administrativa e o
processo de classificação, obrigatório para todos os ingressos no sistema e a
cargo da Comissão Central de Classificação e Tratamento e das Comissões de
Classificação e Tratamento de cada uma das unidades (arts. 13 a 17). O exame
de classificação do sentenciado teria em vista o estudo de sua personalidade e
42Idem, p. 27.
43Idem, p. 28..
abrangeria, dentre outras anamneses, a aferição de seu senso moral e de seu
grau de inadaptação social (art. 96), devidamente registrados no prontuário (art.
100) e materializados pelas placas coloridas fixadas nos uniformes dos internos
(art. 116)260.
Não apenas o rótulo do apenado, mas o próprio regime a ele imposto, seria
o reflexo de seu índice de classificação, e a aplicação dos regimes aberto e
semi-aberto estaria diretamente vinculada ao requisito periculosista da

142
"ausência de risco para a execução penal" (art. 67, inciso V). Em caso dc risco
para a execução, de cometimento de falta disciplinar, ou ainda, se o apenado
revelasse "indício de inadaptação ào regime" (art. 75), os regimes aberto e
semi-aberto poderiam ser revogados. Cumpre destacar, na esteira da opção
administrativista, que a suspensão dos regimes aberto e semi-aberto, mais
benéficos ao apenado, seria, em regra261, atribuição do dirigente do ói gão
central do sistema, e pelo tempo que o mesmo fixasse (art. 75).
Já no que tange à disciplina carcerária, o projeto de 1980 estabelece como
sanções a repreensão, o isolamento - na própria cela ou em alojamento
especial, por até noventa dias, ou ainda, em cela de segurança, ou cela de
segurança especial, por até trinta dias - e a transferência de estabelecimento
(art. 175), assim como a modificação ou a revogação do regime, a interdição
permanente ou temporária de direitos específicos, a suspensão ou a revogação
de favores ou concessões e a apreensão de valores ou objetos (art. 176).
Mantém o projeto a pormenorização das circunstâncias atenuantes (art. 183) e
agravantes (art. 184) das sanções, em que a personalidade do interno ainda
figura como determinante. A ausência de graduação quanto à gravidade das
condutas praticadas também persiste, diante de um elenco único de faltas
disciplinares (art. 174).
São igualmente preservados os institutos da suspensão da execução (art.
185), da revisão da punição (art. 204) e do perdão disciplinar (art. 205), assim
como é preconizada a adoção do indulto disciplinar ao preso que praticasse ato
exemplar de conduta ou que revelasse comportamento indicativo de total
reabilitação (art. 208).
O rol de faltas disciplinares também reedita basicamente aquele encontrado
no Regulamento da Guanabara, com destaque, ante a manifesta iniqüidade,
para a punição da prática de atos contrários à moral e aos bons costumes (art.
174, inciso XI), da ocultação de fatos relacionados com a falta de outrem (inciso
XXIII), da recusa a submeter-se a tratamento médico prescrito pelo médico
(inciso XXXIII), do cometimento de irreverência diante do diretor ou de
autoridades (inciso XLVI), da ostentação de divisa (placa colorida) que não
corresponda à respectiva classificação (inciso LI) e da manutenção, com
visitantes ou internos, de conversas ou discussões em que sejam criticados os
poderes públicos, as leis do país ou as autoridades (inciso XLVI).
Dc acordo com o "grau de conduta" e o "índice de reintegração social" (ai
ts. 215 e 235) revelados pelo preso, o mesmo poderia ser agraciado com
ftwores, concedidos pelo diretor do estabelecimento (art. 217), ou mediante i
miivisões, deferidas pelo dirigente do órgão central do sistema ou pelo juízo <l.i
execução (art. 224). O projeto arrola, como "favores", as próprias visitas de IMI

entes e pessoas amigas (art. 216, inciso I), assim como o uso de objetos vi
iluptuários nas celas (inciso V) e a apresentação do preso a instituições públicas
ou privadas para a solução ou atendimento de questões pessoais que exijam a
sua presença (inciso XI). Já dentre as "concessões", figurariam o i umprimento
de pena em regime semi-aberto ou aberto (art. 221, inciso III), o i umprimento
da pena em prisão na comarca da condenação ou da residência i lo sentenciado
(inciso IV), o trabalho externo (inciso VII) e a visita periódica família (inciso IX).
De qualquer forma, a fruição das concessões estaria atrelada, cumula-
tivamente, à sua compatibilidade com o regime e o tratamento penitenciário
aplicado, à comprovação da conveniência ou oportunidade da medida e à
ausência de risco para a execução penal (art. 230), requisitos estes concebidos
no sentido de se subjetivar demasiadamente a outorga dos benefícios,
ampliando a intromissão estatal sobre o status jurídico dos apenados.
Por derradeiro, ilustrando o resquício antidemocrático ainda predominante
à época, cumpre ressaltar que o projeto de 1980 estabelece como normas de
conduta para as concessões externas, dentre outras, não participar de
aglomerações na via pública (art. 248, inciso VII), sinônimo de subversão para o
144
regime militar, e de não participar de divulgação jornalística ou publicitária sem
prévia autorização da administração penitenciária (inciso X), evitando, assim, a
exposição indesejável de determinados "fatos" e "métodos" carcerários.

3.3 A Lei de Execução Penal (Lei n2 7.210, de 1984) e o Regulamento do


Sistema Penal do Estado do Rio de Janeiro (Decreto n2 3.397, de 1986)

A Lei de Execução Penal (Lei n2 7.210, de 1984) e o Regulamento do


Sistema Penal do Estado do Rio de Janeiro (RPERJ - Decreto ne 3.397, de
1986) constituem os instrumentos normativos reguladores da estrutura e da
disciplina carcerárias no estado. Tais diplomas, não obstante os inegáveis
progressos trazidos, tais como a positivação do princípio da legalidade em sede
executiva, ainda se encontram influenciados pelo modelo neodefensivista social,
consagrando a ressocialização do condenado como objetivo anunciado da
pena, reincorporando a noção de periculosidade do agente e primando pela
idéia de "tratamento > 1 delinqüente".
No entanto, a mais sentida deficiência da normatização penitenci.ul.i
contemporânea reside, salvo melhor juízo, na carência de comandos legiili
capazes de eficazmente tolher o enorme discricionarismo administrativo com u
qual nos deparamos. É absolutamente imperioso percebermos que a estratégia
de controle disciplinar carcerário passa necessariamente pela supressão da in
timidade, do autodiscernimento e da confiança do preso no sistema legal Jc
garantias. Tal confiança é rapidamente eliminada quando o indivíduo constata
que a efetividade de seus direitos elementares depende do exclusivo alvedrio
da autoridade custodiante, e não da potestade do comando normativo, muito
distante da realidade da cadeia. Com isso, garantias legais se transformam,
quase que por milagre, em benesses da impune e soberana autoridade peni
tenciária, reforçando os convenientes laços de submissão.
Nesse sentido, afiança Ferrajoli que a dupla função da pena - exemplar no
momento da condenação, disciplinatória e comprometedora no momento da
execução - confere às instituições punitivas um caráter fortemente potestativo e
totalizante. Disso segue-se uma sorte de duplicação do trabalho judicial: a pena,
depois de ter sido determinada pelos juízes em relação ao delito praticado,
devera redeterminar-se pelos órgãos encarregados da execução em relação à
conduta na prisão. Confere-se, assim, a estes órgãos um poder imenso e
incontrolado: a pena quantitativamente flexível e qualitativamente diferenciada
em sede de execução não é menos despótica do que as penas arbitrárias pré-
modernas, das quais difere somente porque o arbítrio, em lugar de se esgotar
no ato de sua imposição, prorroga-se durante todo o curso de sua aplicação44.
Por fim, nas hipóteses em que os métodos de controle interno não se
mostram suficientes, o adestramento moral dá lugar à violência institucional,
instrumentalizada pela livre atribuição de sanções disciplinares e pela
brutalidade física. Tudo isso sob os signos da impunidade dos coatores e da
condescendência do Poder Público, em especial daqueles entes historicamente
comprometidos com o ideário defensivista.

3.3.1. O regime disciplinar da Lei de Execução Penal

A Lei de Execução Penal foi concebida como o instrumento normativo


capaz de conferir humanidade e racionalidade ao tortuoso processo de injunção
il.i |'«'Mii privativa dc liberdade ao indivíduo. No entanto, a despeito de alguns
(Vulgos, não se verifica, substancialmente, uma ruptura em relação ao mode- I"
penitenciário tradicional, calcado no discricionarismo administrativo, no
ili niiliiismo etiológico e na arraigada visão positivista da pena.
Mm momentos de crise, a sociedade brasileira atribui a responsabilidade
pela liiluu i.i do sistema penitenciário a uma série de fatores exógenos à
estrutura nor- nt.it iva da execução penal em nosso país, olvidando-se, no
entanto, que esta é rc»p< tnsável por nortear as ações e sancionar as inúmeras
violações à ordem consti-
iiii lonal. Em lugar de corrigir as iniqüidades em sede executiva, o que se vê é a
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legitimação, por parte de nossa constitucionalmente defasada legislação, de

44 FERRAJOLI, Luigi, op. cit., p. 328.


uma
le de práticas arcaicas e atentatórias aos direitos mais elementares dos
reclusos.

Não será a lei que [...] tem favorecido esse descalabro nas prisões
brasileiras — em grande parte delas? A Lei de Execução Penal,
fazendo caso omisso do Direito Penitenciário, não observa as Regras
Mínimas para o Tratamento dos Presos, não só porque descumpre
disposições delas, mas também senão principalmente porque não
tem o "espírito" delas; e, além disso, viola ou facilita a violação dos
direitos humanos dos presos (provisórios e condenados) ; não
observa outros textos normativos sobre direitos humanos [...]. Ora,
uma lei, seja esta ou aquela, qualquer lei, não é produto de geração
espontânea [...]45.

Sem dúvida alguma, o foco de maior iniqüidade da LEP encontra-se em


seu capítulo IV, que se dedicou à previsão dos deveres, direitos e disciplina dos
presos. E patente, aqui, a desproporção da relação jurídica estabelecida entre
Homem e Estado.
Inicialmente, a LEP elenca os deveres básicos dos condenados46, se desta-
cando as exigências de comportamento disciplinado e contrário aos levantes
prisionais, de obediência ao servidor e de submissão à sanção disciplinar
imposta47. Corroborando a eleição, por parte do legislador, de um sistema legal
repres-
211 ALVES, Roque de Brito. Estudos de criminologia. Apud DOTTI, René Ariel.
"Notas para a história das penas no sistema criminal brasileiro". Revista
Forense. Rio de Janeiro, v.
45MIOTTO, Armida Bergamini. "Direito Penitenciário, Lei de Execução Penal e Defensoria Pública". Revista
dos Tribunais, São Paulo, v. 794, dez. 2001, ano 90, p. 458.
46 Extensíveis aos presos provisórios, por força do parágrafo único do artigo 39 da LEP
47Artigo 39 da LEP:' Art 39. Constituem deveres do condenado: I - comportamento disciplinado e
cumprimento fiel da sentença; II - obediência ao servidor e respeito a qualquer pessoa com quem deva
relacionar-se; III - urbanidade e respeito no trato com os demais condenados; IV - conduta oposta aos
movimentos individuais ou coletivos de fuga ou de subversão à ordem ou à disciplina; V
81, ne 292, dez 1985, p. 10.
231 Idem,p. 233.
161 A suspensão ou revogação dos regimes aberto e semi-aberto somente seria
de competên
cia do juiz da execução nas hipóteses em que a aplicação inicial destes regimes
decorresse
de pronunciamento judicial, e não de uma determinação administrativa do
dirigente do
órgão central do Sistema, ex vi do artigo 80 do projeto.

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