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Penélopes

PENÉLOPES
O CALAFRIO CONSTANTE

O Calafrio Constante
O trem de ASBURY parou para que ele pudesse descer exatamente onde sua
mãe estava em pé esperando para encontrá-lo. Seu rosto fino de óculos, abaixo dele,
brilhava com um largo sorriso, o qual desapareceu no momento em que ela o viu
apoiando-se atrás do condutor. O sorriso desapareceu tão de repente, e tão completo
era o ar de espanto que sucedeu ao sorriso, que ele percebeu, pela primeira vez, que
deveria parecer tão doente quanto de fato estava. No céu cinzento e frio, um
surpreendente Sol auribranco, como um estranho potentado a vir do oriente,
elevava-se além do bosque negro que circundava Timberboro. O Sol lançou uma luz
estranha sobre o bloco único de casas baixas de tijolos e barracos de madeira.
Asbury sentiu que estava prestes a testemunhar uma majestosa transformação, que
aqueles telhados planos poderiam, a qualquer momento, converter-se nos torreõs
de algum templo exótico pertencente a um deus que ele não conhecesse. A ilusão, no
entento, durou apenas um momento antes de sua atenção voltar a concentrar-se em
sua mãe.
Ela deu um gritinho; parecia horrorizada. Ele estava satisfeito por ela ter
visto a morte em seu rosto de imediato. Sua mãe, aos sessenta anos, seria
apresentada à realidade, e ele supôs que, se a experiência não a matasse, ajudá-la-ia
no processo de crescimento. Ele desceu e cumprimentou-a. "Você não parece muito
bem", disse ela antes de lançar-lhe um longo olhar clínico. "Não estou com vontade
de conversar", disse ele de uma vez. "Tive uma viagem ruim”.
A sra. Fox observou que seu olho esquerdo estava vermelho. Ele estava
inchado e pálido, e seu cabelo havia recuado tragicamente para um rapaz de vinte e
cinco anos. A fina e avermelhada mecha de cabelo que restou no topo cabeça caía de
forma a parecer alongar-lhe o nariz e dar-lhe uma expressão irritável, que
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combinava com seu tom de voz quando ele falava com ela. "Deve estar frio lá em
cima", disse ela. "Por que você não tira o casaco? Não está frio aqui embaixo.
"Você não precisa me dizer qual é a temperatura!", ele disse em voz alta.
"Sou velho o suficiente para saber quando quero tirar o meu casaco!" O trem
deslizou silenciosamente para longe, atrás dele, deixando à vista os blocos gêmeos
de lojas dilapidadas. Ele fixou o olhar no ponto de alumínio que desaparecia na
floresta. Pareceu-lhe que sua última conexão com um mundo maior estava
desaparecendo para sempre. Então, virou-se e encarou a mãe com tristeza, irritado
por ter-se permitido, mesmo que por um instante, ver um templo imaginário
naquele entroncamento rural em colapso. Ele se acostumou inteiramente ao
pensamento da morte, mas não se acostumou com o pensamento da morte aqui.
Por quase quatro meses, sentiu o fim chegando. Sozinho em seu
apartamento gelado, encolhido sob seus dois cobertores, seu sobretudo e as três
camadas de folhas do New York Times, ele teve um resfriado numa noite, seguido de
um suor violento, que deixou os lençóis encharcados e tirou de sua mente toda
dúvida sobre sua verdadeira condição. Antes disso, sentira uma gradual diminuição
de energia e dores inconsistentes e vagas no corpo e na cabeça. Estava tantos dias
ausente de seu emprego de meio- expediente na livraria, que acabou por perde-lo.
Desde então, foi vivendo, e mal à beça, de suas economias, as quais, diminuindo a
cada dia, eram tudo o que restava entre ele e seu lar. Agora não havia mais nada. Ele
esteva aqui.
"Onde está o carro?", murmurou.
"Lá adiante", disse sua mãe. "E sua irmã está dormindo no banco de trás,
porque eu não gosto de sair cedo sozinha. Não há necessidade de acordá-la. "Não",
ele disse, "não convém acordar cão adormecido", pegando suas duas malas
abarrotadas para atravessar a estrada com elas.
Elas eram pesadas demais para ele, e quando chegou ao carro, sua mãe
notou que estava exausto. Ele nunca tinha voltado para casa com duas malas antes.
Desde a primeira vez em que fora para a faculdade, voltava, todas as vezes, com nada
além do necessário para uma estada de duas semanas e uma expressão resignada e
rígida como madeira, a qual deixava bem claro que ele estava preparado para
suportar a visita por exatamente quatorze dias. "Você trouxe mais do que o
habitual", observou ela, mas ele não respondeu.
Abriu a porta do carro e içou as duas malas ao lado dos pés da irmã, os quais
estavam virados para cima, lançando-lhe, primeiro aos pés — com sapatos de
escoteira — e depois ao resto do corpo, um revoltado olhar de reconhecimento. Ela
estava vestida com um terno preto e tinha um pano branco em volta da cabeça com
rolos de metal saindo das bordas. Seus olhos estavam fechados e sua boca aberta.
Ele e ela tinham as mesmas feições, exceto que as dela eram mais grosseiras. Ela era
oito anos mais velha do que ele e era diretora da escola elementar do condado. Ele
fechou a porta suavemente, para que ela não acordasse, em seguida, deu a volta no
carro, sentou no banco da frente e fechou os olhos. Sua mãe pôs o carro de volta na
estrada e, em poucos minutos, ele sentiu o carro desviar para a rodovia asfaltada.
Então abriu os olhos. A estrada estendia-se entre dois campos abertos de ambrósia-
americana amarela.
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"Você acha que Timberboro melhorou?", Sua mãe perguntou. Essa era sua
pergunta padrão, destinada a ser tomada literalmente. "Ainda está lá, não é?" Ele
disse com uma voz feia. “Duas das lojas têm novas frentes”, disse ela. Então, com uma
ferocidade súbita, ela disse: “Você fez bem em voltar para casa e conseguir um bom
médico! Vou levá-lo ao doutor Block nesta tarde.
"Não irei", disse ele, tentando evitar que a voz tremesse, "para Doutor Block.
Nem nesta tarde nem nunca. Você não acha que, se eu quisesse ir a um médico, teria
ido a um lá onde há bons médicos? Você não sabe que existem médicos melhores em
Nova York?
"Ele demonstraria um interesse pessoal em você", disse ela. "Nenhum
desses médicos de lá teria interesse pessoal em você." "Eu não quero que ele tenha
um interesse pessoal em mim." Então, depois de um minuto, olhando através de um
campo enevoado de aparência roxa, ele disse: "O que há de errado comigo está muito
além de Block", e sua voz foi sumindo num som desgastado, quase um soluço.
Ele não era capaz de, como recomendara seu amigo Goetz, preparar-se para
ver tudo como ilusão, fosse o que já lhe acontecera fossem as poucas semanas que
lhe restavam. Goetz tinha certeza de que a morte não era nada de mais. Goetz, cujo
todo o rosto estivera sempre e totalmente manchado de roxo, com um milhão de
indignações, tinha voltado de seis meses no Japão tão sujo como sempre, mas tão
insípido quanto o próprio Buda. Goetz recebeu a notícia do fim de Asbury com uma
calma indiferença. Citando uma coisa ou outra, ele disse: “Embora o Bodhisattva
conduza um número infinito de criaturas ao nirvana, na realidade, não há nem
Bodhisattvas para liderar nem quaisquer criaturas para ser conduzidas”. No
entanto, movido por alguma preocupação com seu bem-estar, Goetz investiu US$
4,50 para levá-lo a uma palestra sobre o Vedanta. Foi um desperdício do dinheiro
dele. Enquanto Goetz ouvia fascinado o homenzinho escuro na plataforma, o olhar
entediado de Asbury percorria a platéia. Passou por sobre a cabeça de várias garotas
de saris, por um jovem japonês, um homem negro-azul com um fez e várias garotas
que pareciam secretárias. Por fim, no final da fila, seu olhar repousou sobre uma
figura esguia de óculos roupa preta, um padre. A expressão do padre era de um
interesse polido, mas estritamente reservado. Asbury identificou imediatamente
seus próprios sentimentos naquela taciturna expressão superior. Quando a palestra
terminou, alguns estudantes encontraram-se no apartamento de Goetz, o padre
entre eles, mas ele estava igualmente reservado. Com acentuada polidez, ouviu a
discussão sobre a aproximação da morte de Asbury, mas falou pouco. Uma menina
em um sari observou que a auto-satisfação estava fora de questão, já que significava
“salvação”, palavra destituída de sentido. "Salvação", citou Goetz, "é a destruição de
um preconceito simples, e ninguém é salvo".
"E o que você diz sobre isso?" Asbury perguntou ao padre, retribuindo-lhe,
por sobre a cabeça dos outros, o sorriso reservado. As bordas desse sorriso
pareciam tocar uma incerta claridade gélida.
“Há,” o padre disse, “uma probabilidade real do Novo Homem, assistido, é
claro”, acrescentou ele delicadamente, “pela Terceira Pessoa da Trindade”.
"Ridículo!", a garota do sari disse, mas o padre apenas a roçou com o sorriso,
o qual estava um pouco divertido agora.
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Quando se levantou para sair, ele silenciosamente entregou a Asbury um


pequeno cartão no qual havia escrito seu nome, Ignatius Vogle, S.J., e um endereço.
Talvez, pensou Asbury agora, ele devesse tê-lo usado, já que o padre pareceu-lhe um
homem do mundo, alguém que teria entendido a tragédia única de sua morte, uma
morte cujo significado estava muito além do grupo chilreador que os acompanhava.
Mai longe ainda de Block. "O que há de errado comigo", ele repetiu, "está muito além
de Block".
Sua mãe sabia imediatamente o que ele queria dizer: ele queria dizer que ia
ter um colapso nervoso. Ela não disse uma palavra. Ela não disse que isso era
precisamente o que poderia ter dito a ele que aconteceria. Quando as pessoas
pensam que são espertas — mesmo quando são espertas — não há nada que alguém
possa dizer para fazê-las enxergar as coisas, e com Asbury o problema é que, além
de inteligente, ele tinha um temperamento artístico. Ela não sabia de onde ele o teria
herdado, porque seu pai, que era advogado, e homem de negócios, e agricultor, e
político, tudo em um, certamente tinha os pés no chão; onde, decerto, ela sempre
teve os dela. Ela conseguiu, depois que o marido morreu, encaminhar os dois à
faculdade e além; mas havia observado que, quanto mais educação conseguiam,
menos eram capazes de fazer. O pai deles tinha ido para uma escola de uma sala só
até a oitava série, e era capaz de fazer qualquer coisa.
Ela poderia ter dito a Asbury o que o ajudaria. Ela poderia ter dito: “Se você
saísse ao Sol ou trabalhasse por um mês no laticínio, seria uma pessoa diferente!”,
mas sabia exatamente como essa sugestão seria recebida. Ele seria um incômodo no
laticínio, mas ela iria deixá-lo trabalhar lá, se quisesse. Ela o deixara trabalhar lá no
ano passado, quando ele chegou em casa e estava escrevendo a peça. Ele estava
escrevendo uma peça sobre negros (porque alguém iria querer escrever uma peça
sobre negros estava além da compreensão dela) e tinha dito que queria trabalhar na
indústria de laticínios com eles e descobrir quais eram seus interesses. Seus
interesses estavam em fazer o mínimo possível, como ela poderia ter dito a ele, se
alguém pudesse ter dito alguma coisa. Os negros haviam-se instalado com ele, e ele
aprendeu a colocar os ordenadores; numa outra vez ele tinha lavado todas as latas;
e ela achava que, numa outra vez, ele tinha misturado a ração. Então uma vaca o
chutou, e ele não voltou mais para o celeiro. Ela sabia que, se ele entrasse agora, ou
saísse e consertasse cercas, ou fizesse qualquer tipo de trabalho — trabalho real,
não escrita —, ele poderia evitar esse colapso nervoso. “O que aconteceu com aquela
peça que você estava escrevendo sobre os negros?” Ela perguntou.
"Não estou escrevendo peças", disse ele. “E ponha isto na cabeça: não vou
trabalhar em nenhuma leiteria. Nem vou sair ao Sol. Estou doente. Tenho febre e
calafrios e estou tonto e tudo o que quero que você faça é me deixar em paz”. "Nesse
caso, se você está realmente doente, deve ir ao Doctor Block." "E não vou a nenhum
Block", ele terminou, afundando-se no banco e olhando intensa e firmemente para a
frente.
Ela dobrou para a entrada da fazenda, uma estrada vermelha que corria por
uns 500m através das duas pastagens da frente. As vacas secas estavam de um lado
e a manada de leite do outro. Ela desacelerou o carro e depois parou completamente,

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sua atenção foi capturada por uma vaca com um quarto ruim. "Não estão cuidando
dela", disse.
"Olhe só essas tetas!"
Asbury virou a cabeça abruptamente na direção oposta, de onde, porém,
uma vaquinha de olhos esbranquiçados por doença, de perifericamente, observava-
o com firmeza, como se sentisse alguma ligação entre eles. "Bom Deus!", Ele gritou
com uma voz angustiada, "não podemos continuar? São seis horas da manhã!”
"Está bem, está bem”, sua mãe disse, ligando o carro rapidamente. "O que
foi esse grito de dor mortal?", sua irmã falou lentamente do banco de trás. "Oh, é
você", ela disse. “Bem, temos o artista conosco novamente. Categoricamente
categórico”. Sua voz era indiscutivelmente fanhosa. Ele não respondeu nem virou a
cabeça. Já havia aprendido isto: nunca responde-la. "Mary George!" Sua mãe disse
bruscamente. “Asbury está doente. Deixe-o em paz." "O que há de errado com ele?"
Mary George perguntou.
"Lá está a casa!", sua mãe disse como se todos fossem cegos, menos ela.
Ergueu-se na crista da colina — uma casa branca de fazenda, com dois andares, um
amplo alpendre e vistosas colunas. Ela sempre aproximava-se de sua casa com um
sentimento de orgulho, já tendo dito, mais de uma vez, a Asbury: "Você tem uma casa
aqui pela qual metade daquelas pessoas dariam tudo o que têm!".
Ela fora uma vez para o terrível lugar em que ele morava em Nova York.
Subiram cinco lances de degraus de pedra escura, passaram por latas de lixo abertas
em todos os patamares, para, finalmente, chegar a dois quartos úmidos e a um closet
com toalete dentro. "Você não viveria assim em casa", ela murmurou.
"Não!", disse ele com um olhar extasiado, "não seria possível!" Ela supunha
que a verdade era que ela simplesmente não compreendia quão sensível ou quão
peculiar torna-se a pessoa quando é artista. Sua irmã disse que ele não era um
artista, que não tinha talento e que esse era o problema com ele; mas a própria Mary
George não era uma mulher feliz. Asbury disse que ela posava de intelectual, mas
que seu Q.I. não passava de setenta e cinco, que tudo em que ela estava realmente
interessada era conseguir um homem, mas que nenhum homem sensato terminaria
sua primeira olhada nela. Ela tentou dizer a ele que Mary George podia ser muito
atraente, se se importasse com isso, e ele retrucou que um esforço enorme desse a
arruinaria. Se ela fosse, de alguma forma, atraente, disse ele, não seria agora a
diretora de uma escola primária do condado, tendo Mary George dito que, se Asbury
tivesse algum talento, já teria publicado alguma coisa. O que ele havia publicado, ela
queria saber e, por falar nisso, o que escrevera?
A sra. Fox havia apontado que ele tinha apenas 25 anos e Mary George disse
que a idade em que a maioria das pessoas publicava era de vinte e um anos, o que o
deixava exatamente quatro anos atrasados. Sra. Fox, embora não sendo versada em
tais assuntos, ela sugeriu que ele poderia estar escrevendo um livro muito extenso.
Qie livro muito extenso que nada, Mary George disse, ele já faria muito se aparecesse
com um poema. A Sra. Fox esperava que não fosse apenas um poema.

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Ela puxou o carro para a entrada lateral, e uma dispersão de galinhas-


d’angola explodiu no ar e seguiu gritando em volta da casa. "De novo em casa, olelê;
de novo em casa, olalá!" ala disse.
"Oh Deus", Asbury gemeu.
"O artista chega à câmara de gás", disse Mary George em sua voz anasalada.
Debruçou na porta, saiu e, esquecendo suas malas, moveu-se para a frente
da casa como se estivesse em transe. Sua irmã saiu e manteve-se ao lado da porta do
carro, olhando de esguelha a figura instável e curvada. Enquanto ela o observava
subir os degraus da frente, sua boca afrouxou-se no rosto atônito. "Nossa", ela disse,
"ele tem alguma coisa” Parece ter cem anos de idade.
"Não te falei?", sussurrou sua mãe. "Agora mantenha a boca fechada e deixe-
o em paz".
Ele entrou na casa, parando no corredor apenas o tempo suficiente para ver
seu rosto pálido e abatido olhando para ele por um instante no espelho do píer.
Segurando-se no corrimão, subiu as escadas íngremes, atravessou o patamar, depois
subiu o segundo lance, mais curto, e entrou em seu quarto, um grande quarto aberto
e arejado com um tapete azul desbotado e cortinas brancas recém-colocadas para
sua chegada. Sem olhar para nada, caiu de bruços na própria cama. Era uma cama
antiga e estreita, com uma cabeceira ornamental alta, na qual estava esculpida uma
cesta com guirlandas transbordando de frutas de madeira.
Enquanto ainda estava em Nova York, havia escrito uma carta para sua mãe,
que encheu dois cadernos. Ele não queria que fosse lida senão após sua morte. Era
uma carta como a que Kafka dirigira ao pai. O pai de Asbury morreu há vinte anos e
Asbury considerou isso uma grande bênção. O velho, ele tinha certeza, tinha sido um
membro da gangue do tribunal, um ruralista “digno” metido nas coisas mais
sórdidas, e ele sabia que não teria sido capaz de suportá-lo. Ao ler algumas de suas
correspondências, ficara chocado com a estupidez nelas contida.
Ele sabia, é claro, que sua mãe não entenderia a carta imediatamente. Sua
mente literal exigiria algum tempo para descobrir o significado disso, mas ele achava
que ela seria capaz de ver que ele a perdoou por tudo que lhe havia feito. Quanto a
isso, supunha que apenas por meio dessa carta ela perceberia o que lhe tinha feito.
Ele não achava que ela estivesse consciente disso. Sua auto-satisfação em si era
pouco consciente, mas por causa da carta, ela poderia experimentar uma dolorosa
percepção, e isso seria a única coisa de valor que ele tinha a deixar-lhe.
Se ler seria doloroso para ela, escrever foi, às vezes, insuportável para ele
— pois, para encará-la, ele precisara encarar-se. “Vim aqui para escapar da
atmosfera de escravidão de casa”, escreveu ele, “para encontrar a liberdade, liberar
minha imaginação, tomá-la como um falcão de sua gaiola e colocá-la ‘girando no giro
que se alarga’ (Yeats) e o que descobri? Ela era incapaz de voar. Era um pássaro que
você havia domesticado, encolhido ressabiado em sua gaiola, recusando-se a sair!”
As próximas palavras foram sublinhadas duas vezes. “Não tenho imaginação. Não
tenho talento. Não posso criar. Não tenho nada além do desejo por essas coisas. Por
que você não matou isso também? Mulher, por que você me manietou?

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Escrevendo isso, ele havia chegado ao abismo do desespero e achou que, ao


ler, ela, ao menos, começaria a sentir sua tragédia e a parte nela cabia-lhe. Não era
que ela tivesse imposto sua vontade na vida dele. Isso nunca foi necessário. Sua
vontade tinha sido simplesmente o ar que ele respirava e, quando finalmente
encontrou outro ar, não pôde sobreviver nele. Ele sentia que, mesmo que não
entendesse imediatamente, a carta a deixaria com um calafrio duradouro e, talvez,
com o tempo, a levaria a enxergar-se como era.
Ele havia destruído todo o resto que já escrevera — seus dois romances sem
vida, sua meia dúzia de peças de teatro, seus poemas pomposos, seus contos
esquisitos — e guardava apenas os dois cadernos que continham a carta. Estavam
na maleta preta que sua irmã, bufando e soprando, arrastava pelo segundo lance de
escadas. Sua mãe, carregando a bolsa menor, vinha à frente. Ele virou-se para cima
quando ela entrou no quarto.
"Vou abrir e tirar suas coisas", ela disse, "e você pode ir para a cama, que,
em alguns minutos, vou trazer seu café-da-manhã." Ele sentou-se e retrucou com
uma voz irritada: “Não quero café-da-manhã, e posso abrir minha própria mala.
Deixe-me em paz. Sua irmã chegou à porta, com o rosto cheio de curiosidade, e
deixou a bolsa preta cair com um baque sobre a soleira da porta. Então ela começou
a empurrá-la pelo quarto com o pé até que estivesse perto o suficiente para dar uma
boa olhada nele. "Se eu estivesse com uma aparência tão mal quanto a sua", ela disse,
"iria para o hospital".
Sua mãe cortou os olhos bruscamente para ela e saiu. Então a Sra. Fox
fechou a porta e foi para a cama e sentou-se ao lado dele. "Agora, desta vez, quero
que você faça uma longa visita e descanse", disse ela.
“Esta visita”, ele disse, “será permanente”.
"Maravilhoso!" Ela exclamou. "Você pode ter um pequeno estúdio no seu
quarto; de manhã, pode escrever peças e, à tarde, pode ajudar na leiteria!"
Ele virou um rosto de madeira branca para ela. "Feche as cortinas e deixe-me
dormir", disse.
Quando ela se foi, ele ficou por algum tempo olhando para as manchas de
água nas paredes cinzentas. Descendo do topo, formas compridas de pingentes
foram gravadas por vazamentos e, diretamente sobre sua cama, no teto, outro
vazamento havia feito um pássaro feroz com asas abertas. Tinha um pingente de
gelo em seu bico e havia pingentes menores pendendo de suas asas e cauda. Ele
estava lá desde a infância e sempre o irritara, e às vezes o assustara. Costumava ter
a ilusão de que estava em movimento e prestes a descer misteriosamente e colocar
o pingente de gelo em sua cabeça. Fechou os olhos e pensou: mais alguns dias, e eu
não terei mais que olhar. E logo caiu no sono.
***
Quando ele acordou à tarde, havia um rosto rosa de boca aberta sobre si e,
das duas grandes orelhas familiares de cada lado, os tubos pretos do estetoscópio
de Block estendiam-se até o peito exposto. O médico, vendo que ele estava acordado,
fez uma cara de chinês, revirou os olhos quase para fora da cabeça e gritou: "Diga
AHHHH!"
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Block era irresistível para as crianças. Por quilômetros naquela região, elas
vomitavam e sentiam febres para receber uma visita dele. A Sra. Fox estava de pé
atrás dele, sorrindo radiante. "Aqui está o Doutor Block!", disse como se tivesse
capturado esse anjo no telhado, trazendo-o para o seu garotinho.
— Tire-o daqui — murmurou Asbury, olhando para o rosto asinino do que
parecia ser o fundo de um buraco negro.
O médico olhou mais de perto, balançando as orelhas. Block era careca e
tinha um rosto redondo tão inconsciente quanto o de um bebê. Nada sobre ele
indicava inteligência, exceto dois olhos frios, clínicos e niquelados, afixados com
uma curiosidade imóvel em o que ele olhava. - Você parece mesmo mal, Azzberry —
ele murmurou. Ele tirou o estetoscópio e colocou-o na bolsa. "Eu não sei quando vi
alguém da sua idade tão triste quanto você. O que está fazendo consigo?
Asbury sentiu pancadas contínuas na nuca, de forma a parecer-lhe que seu
coração, nela aprisionado, estivesse lutando para sair. "Não mandei chama-lo", disse
ele.
Block colocou a mão no rosto confrontante, puxou-lhe a pálpebra para baixo
e perscrutou-o. "Você deve ter caído na gandaia por lá", disse ele. Começou a
pressionar a mão nas costas de Asbury. "Eu fui até lá uma vez", disse, "e
viu exatamente o quão pouco eles tinham e vim direto para casa. Abra sua boca".
Asbury abriu-a automaticamente; o olhar penetrante como broca passou
por ela e abaixou-se. Ele fechou-a de estalo e, com um chiado ofegante, disse: "Se eu
quisesse um médico, teria ficado lá, onde poderia ter conseguido um bom!"
"Asbury!", sua mãe disse.
"Há quanto tempo você está tendo problema na garganta?" Block
perguntou.
"Ela mandou chamar você!", disse Asbury. "Ela pode responder às
perguntas."
"Asbury!", sua mãe disse.
Block inclinou-se sobre sua bolsa e tirou um tubo de borracha. Empurrou a
manga de Asbury para cima e amarrou o tubo ao redor de seu braço. Então pegou
uma seringa e preparou-se para encontrar a veia, cantarolando um hino enquanto
pressionava a agulha. Asbury jazia com um olhar indignado e rígido enquanto a
privacidade de seu sangue era invadida por esse idiota. “Oh, Senhor, lentamente,
mas certeiro”, Block cantou com uma voz sussurrante. “Oh, Senhor, lentamente, mas
certeiro”. Quando a seringa estava cheia, retirou a agulha. "O sangue não mente", ele
disse. Colocou em um frasco, vedou-o e colocou-o em sua bolsa. "Azzbury", começou
ele, "há quanto tempo ..."
Asbury sentou-se, empurrou a cabeça para frente e disse: “Eu não mandei
chamar você. Não vou responder a nenhuma pergunta. Você não é meu médico. O
que há de errado comigo não está além de você.
"A maioria das coisas está além de mim", disse Block. "Eu não encontrei
nada ainda que tenha entendido completamente", suspirou e levantou-se. Seus olhos

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pareciam cintilar sobre Asbury como se de uma grande distância.


"Ele não estaria tão feio", explicou a sra. Fox, "se não estivesse realmente doente.
Mas eu quero que você volte, todos os dias, até curá-lo.
Os olhos de Asbury eram de um violeta intenso. "O que há de errado comigo
é o caminho além de você”, ele repetiu, deitando-se e fechando os olhos até que Block
e
sua mãe saíssem.
***
Nos dias que logo se seguiram, embora tivesse piorado rapidamente, sua
mente funcionou com uma clareza aterradora. No momento da morte, sentia-se num
estado tal de iluminação que em nada condizia com o tipo de conversa que tinha que
ouvir de sua mãe. Em grande parte, a conversa era sobre vacas com nomes como
Daisy e Bessie Button e suas funções íntimas — suas mastites, seus vermes e seus
abortos. A mãe insistia para que, no meio do dia, ele saísse, sentasse na varanda e
“apreciasse a vista” e, como opor resistência exigiria grande esforço, arrastava-se
para fora e sentava-se em uma cadeira rígida, mantendo os pés envoltos em um
cobertor e as mãos agarrada aos braços da cadeira como se estivesse prestes a
atirar-se no brilhante céu azul de porcelana chinesa. O gramado estendia-se por um
quarto de acre até uma cerca de arame farpado, que o dividia do pasto da frente. No
meio do dia, as vacas secas descansavam lá, sob uma fila de árvores de liquidâmbar.
Do outro lado da estrada, havia duas colinas com um lago, e sua mãe podia sentar-
se na varanda e observar o rebanho atravessar a represa até a colina do outro lado.
A cena toda estava cercada por uma parede de árvores que, na hora do dia em que
era obrigado a sentar-se ali, era um azul desbotado que o lembrava tristemente do
macacão desbotado dos negros.
Irritado, ouvia a mãe detalhar as falhas dos empregados. "Esses dois não são
idiotas", disse ela. "Sabem como cuidar de si mesmos."
"Eles precisam", ele murmurou, mas não adiantava discutir com ela. No ano
passado, escrevera uma peça sobre negros e queria estar perto deles por um tempo
para ver como realmente se sentiam com relação à condição em que vivam, mas os
dois que trabalhavam para ela perderam toda a iniciativa ao longo dos anos. Eles
não conversavam. O chamado Morgan era castanho claro, parte indiano; o outro,
mais velho, Randall, era muito negro e gordo. Quando eles disseram alguma coisa
para ele, era como se estivessem falando com um corpo invisível localizado à direita
ou à esquerda de onde ele realmente estava, e, depois de dois dias trabalhando lado
a lado com eles, sentiu que não havia estabelecido um relacionamento. Decidiu
tentar algo mais ousado do que falar e, numa tarde, quando estava em pé perto de
Randall, observando-o ajustar um ordenhador, silenciosamente, pegou seus
cigarros e acendeu um. O negro parou o que estava fazendo e observou-o. Esperou
até que Asbury desse duas tragadas e, então, disse: "Ela não permite fumar aqui".
O outro aproximou-se e ficou por ali, rindo.
"Eu sei", disse Asbury e, depois de uma pausa deliberada, sacudiu o pacote
e o estendeu, primeiro para Randall, que pegou um, e depois para Morgan, que pegou
um. Ele então acendeu os cigarros, e os três ficaram ali fumando. Não havia sons, a

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não ser o clique constante das duas máquinas de ordenha e a ocasional batida de
uma cauda de vaca contra o próprio corpo. Foi um daqueles momentos de comunhão
em que a diferença entre preto e branco é absorvida em nada.
No dia seguinte, duas latas de leite haviam sido devolvidas da queijariia
porque absorveram o odor do tabaco. Ele assumiu a culpa e disse à mãe que tinha
sido ele, e não os negros, quem tinha fumado. "Se você estava fazendo isso, eles
também estavam", ela disse. "Você acha que eu não conheço esses dois?" Ela era
incapaz de considera-los inocentes; mas a experiência o entusiasmara tanto que ele
estava determinado a repeti-la de alguma outra forma.
Na tarde seguinte, quando ele e Randall estavam na leiteria derramando o
leite fresco nas latas, ele pegou o copo de gelatina em que os negros bebiam e,
inspirado, serviu-se de um copo do leite morno e bebeu. Randall parou de se servir
e ficou meio curvado sobre a lata, observando-o. "Ela não permite", disse ele. "Isso é
a coisa que ela não mais proíbe."
Asbury serviu outro copo e entregou a ele.
"Ela não permite", ele repetiu.
"Escute", disse Asbury com voz rouca, "o mundo está mudando. Não há
razão para eu não beber depois de você ou você depois de mim!
"Ela não deixa nenhum de nós beber deste leite aqui", disse Randall.
Asbury continuou a estender-lhe o copo. "Você aceitou o cigarro", disse ele.
“Tome o leite. Não vai machucar minha mãe perder dois ou três copos
de leite por dia. Temos que pensar livremente se quisermos ser livres!
O outro tinha chegado e estava de pé na porta.
"Não quero esse leite", disse Randall.
Asbury virou-se e segurou o copo para Morgan. "Aqui garoto, beba isso",
disse ele.
Morgan olhou para ele; então seu rosto assumiu um olhar decidido de
astúcia. "Eu não vi você beber nem um gole", disse ele.
Asbury detestava o leite. O primeiro copo quente revirou-lhe o estômago.
Ele bebeu metade do que estava segurando e entregou o resto ao negro, que o pegou
e olhou para dentro do vidro como se contivesse algum grande mistério; então
colocou no chão próximo ao refrigerador.
"Você não gosta de leite?" Perguntou Asbury.
"Eu gostei, mas eu não bebo mais isso."
"Por quê?"
"Ela não é baixa", disse Morgan.
"Meu Deus!" Asbury explodiu, "ela, ela, ela!" Ele tinha tentado a mesma coisa
no dia seguinte, e no próximo, e no próximo, mas não conseguia levá-los a beber o
leite. Algumas tardes mais tarde, quando estava do lado de fora da leiteria, prestes a

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Penélopes

PENÉLOPES
O CALAFRIO CONSTANTE

entrar, ouviu Morgan perguntar: "Por que você deixa ele beber aquele leite todos os
dias?"
"Ele é quem sabe o que faz", disse Randall. "Eu é que sei o que faço".
"Como é que ele pode falar tão mal da própria mãe?"
"Ela não bateu nele o suficiente quando era pequeno", disse Randall.
A insuportabilidade da vida em casa vencera-o, e ele retornou a Nova York
dois dias antes. No que lhe dizia respeito, teria morrido lá, e a questão agora era
saber quanto tempo aguentaria ficar aqui. Ele poderia ter apressado seu fim, mas o
suicídio não teria sido uma vitória. A morte estava chegando a ele legitimamente,
como uma justificativa, como um presente da vida. Esse foi o seu maior triunfo. E
também, para as mentes refinadas do bairro, um filho suicida indicaria uma mãe que
fracassara, e, embora fosse esse o caso, sentia que era um constrangimento público
de que poderia poupá-la. O que ela aprenderia com a carta seria uma revelação
particular. Ele havia fechado os cadernos em um envelope pardo e havia escrito:
"Para ser aberto somente após a morte de Asbury Porter Fox". Colocou o envelope
na gaveta da escrivaninha e trancou-o, mantendo a chave no bolso do pijama até que
pudesse decidir um lugar para deixá-la.
Quando sentavam na varanda pela manhã, a mãe sentia que, em algum
momento, ela deveria falar sobre os assuntos que a ele interessavam. Na terceira
manhã, ela começou a conversar sobre seus escritos. “Quando você ficar bem”, ela
disse, “acho que seria legal se escrevesse um livro sobre este lugar. Precisamos de
outro bom livro como E o Vento Levou.
Ele podia sentir os músculos em seu estômago começando a apertar.
“Inclua a guerra nele”, ela aconselhou. "Isso sempre deixa um livro longo."
Ele colocou a cabeça para trás gentilmente, como se temesse que ela
quebrasse. Depois de um momento, disse: "Eu não vou escrever livro nenhum".
"Bem", ela disse, "se você não sente vontade de escrever um livro, pode
simplesmente escrever poemas. Eles são bonitos.” Ela percebeu que o que ele
precisava era conversar com alguém intelectualizado, mas Mary George era a única
intelectual que ela conhecia, e Asbury não falava com ela. A mãe havia pensado em
Bush, o ministro metodista aposentado, mas não mencionou isso. Agora, ela decidiu
arriscar. "Acho que vou pedir ao Dr. Bush para vir ver você", disse ela, elevando o
posto de Bush. “Você iria gostar dele. Ele coleciona moedas raras.
Não estava preparada para a reação que recebeu. Ele começou a tremer
todo e a dar risadas espasmódicas altas. Ele parecia prestes a engasgar. Depois de
um minuto, acalmou-se, tossindo. "Se você pensa que eu preciso de ajuda espiritual
para morrer", ele disse, "você está muito enganada. E muito menos daquele asno do
Bush. Meu Deus!"
"Eu não quis dizer isso", ela disse. "Ele tem moedas que datam da época de
Cleópatra."
"Bem, se você convidá-lo para vir aqui, vou manda-lo ao inferno", disse ele. "Bush!
Ah, essa é demais!

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Penélopes

PENÉLOPES
O CALAFRIO CONSTANTE

"Eu estou feliz que algo o diverte", ela disse acidamente.


Por um tempo, ficaram sentados em silêncio. Então sua mãe olhou para
cima.
Ele havia se chegado para frente novamente e sorriu para ela. Seu rosto
estava cada vez mais animado, como se ele tivesse acabado de ter uma ideia
brilhante. Ela olhou para ele. "Vou dizer quem eu quero que venha aqui ", disse ele.
Pela primeira vez, desde que voltou para casa, sua expressão ficara agradável;
embora, em seu olhar, também houvesse, pensou ela, uma espécie de malícia.
"Quem você quer que venha?" Ela perguntou desconfiada.
"Quero um padre", anunciou ele.
"Um padre?", sua mãe disse em uma voz incompreensiva.
"De preferência um jesuíta", disse ele, animando-se mais e mais.
“Sim, por todos os meios, um jesuíta. Eles os têm na cidade. Você pode ligar
e pedir um para mim.
"Qual é o problema com você?", sua mãe perguntou.
Ela não estava preparada para a reação que recebeu. Ele começou a tremer
todo e dar risadas espasmódicas altas. Ele parecia prestes a engasgar. Depois de um
minuto ele se acalmou em tosse. "Se você acha que eu preciso de ajuda espiritual
para morrer", ele disse, "você está muito enganado. E certamente não daquele asno
de Bush. Meu Deus!"
“A maioria deles é muito bem-educada”, ele disse, “mas os jesuítas são
infalíveis. Um jesuíta seria capaz de discutir algo além do tempo”. Lembrando-se de
Ignatius Vogle, S.J., ele já podia imaginar o padre. Este seria um pouco mais
mundano, talvez um pouco mais cínico. Protegidos por sua antiga instituição, os
padres podiam dar-se o luxo de ser cínicos, de manipular dois lados opostos de
modo a sempre tirar vantagem da situação. Ele falaria com um homem de cultura
antes de morrer — mesmo neste deserto! Além disso, nada irritaria tanto sua mãe.
Ele não conseguia entender por que não havia pensado nisso antes.
"Você não é membro dessa igreja", a sra. Fox disse logo. "Ele estão a mais de
trinta quilômetros de distância. Não mandariam alguém. Ela esperava que isso
acabasse com o assunto.
Ele sentou-se absorvido na idéia, determinado a forçá-la a telefonar, já que
ela sempre fazia o que queria, se ele insistisse. "Estou morrendo", ele disse, "e eu não
pedi a você para fazer nada além desta única coisa, e você me recusa".
"Você não está morrendo."
"Quando você perceber", disse ele, "será tarde demais."
Outro desagradável silêncio transcorreu. Mas, em pouco tempo, a mãe
disse: “Hoje em dia, os médicos não deixam que os jovens morram. Eles lhes dão
alguns desses novos medicamentos.

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Penélopes

PENÉLOPES
O CALAFRIO CONSTANTE

Ela começou a sacudir o pé com uma segurança de dar nos nervos. "As
pessoas simplesmente não morrem como antigamente", disse ela.
“Mãe”, ele disse, “a senhora deve estar preparada. Acho que até Block sabe,
e ainda não o contou. Block, após a primeira visita, vinha sempre sombrio, sem
piadas ou expressões engraçadas, e levara o sangue em silêncio, com seus olhos-cor-
de-níquel nada amigáveis. Ele era, por definição, o inimigo da morte, e agora parecia
saber que estava lutando genuinamente contra ela. Ele havia dito que não
prescreveria nada até saber o que estava errado, e Asbury riu na cara dele. "Mãe",
ele disse, "eu vou morrer", tentando fazer que cada palavra soasse como um golpe
de martelo na cabeça dela.
Ela empalideceu um pouco, mas não piscou. “Você acha que por um minuto”,
ela disse com raiva, “eu pretendo sentar aqui e deixar você morrer?” Seus olhos eram
tão duros quanto duas velhas cordilheiras vistas à distância. Ele sentiu o primeiro
golpe distinto de dúvida.
“Pensa?”, ela perguntou ferozmente.
"Eu acho que você não tem nada a ver com isso", disse ele em uma voz
abalada.
“Certo!”, disse ela, levantando-se e saindo do alpendre como se não
conseguisse suportar por mais tempo tanta estupidez.
Esquecendo o jesuíta, ele rapidamente passou em revista seus sintomas: a
febre tinha aumentado, intercalando-se com calafrios; ele mal tinha energia para
arrastar-se até a varanda; a comida era repugnante para ele; e Block não havia
conseguido dar-lhe a menor satisfação. Ainda sentado lá, sentiu o começo de um
novo calafrio, como se a morte, jocosamente, já estivesse chacoalhando seus ossos.
Ele puxou a colcha dos pés, colocou-a em volta dos ombros e subiu as escadas,
desajeitadamente, para a cama.
Ele continuou a piorar. Nos dias que se seguiram, ficou muito mais fraco e
incomodou-a tão constantemente com relação ao jesuíta que, finalmente, em
desespero, ela decidiu condescender com sua tolice. Fez o telefonema, explicando
com uma voz fria que seu filho estava doente, talvez um pouco fora de si, e desejava
falar com um padre. Enquanto ela fazia a ligação, Asbury ficou pendurado no
corrimão, descalço, enrolado no cobertor, escutando. Quando a mãe desligou, ele
gritou para o andar de baixo, querendo saber quando o padre chegaria.
"Amanhã em algum momento", sua mãe disse irritada.
Ele poderia dizer, pelo fato de ter feito o telefonema, que a segurança da
mãe estava começando a espedaçar-se. Sempre que ela recebia ou despedia-se de
Block, havia muitos sussurros no corredor do andar de baixo. Naquela noite, ele
ouviu a mãe e Mary George conversando em voz baixa na sala-de-estar. Ele,
pensando ter ouvido seu nome, levantou-se e foi, na ponta dos pés, até o corredor e
desceu os três primeiros degraus, até ouvir as vozes distintamente.
"Eu tive que chamar esse padre", sua mãe estava dizendo. "Receio que isso
seja sério. Eu pensei que era apenas um colapso nervoso, mas agora creio que seja

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Penélopes

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O CALAFRIO CONSTANTE

algo sério. Doutor Block também crê que seja algo sério, e, o que quer que seja, torna-
se pior por ele estar tão fraco.
"Cresça, mamãe", disse Mary George, "já lhe disse e volto a dizer: o que há
de errado com ele é puramente psicossomático". Não havia nada em que ela não
fosse uma especialista.
"Não", disse a mãe, "é uma doença real. O médico disse isso. Ele pensou ter
detectado uma falha na voz dela.
"Block é um idiota", disse Mary George. "Você precisa encarar os fatos:
Asbury não sabe escrever, e fica doente. Ele será inválido em vez de artista. Você
sabe do que ele precisa?
"Não", sua mãe disse.
"Dois ou três tratamentos de choque", disse Mary George. "Tire esse negócio
de artista da cabeça dele de uma vez por todas."
Sua mãe deu um gritinho, e ele agarrou o corrimão.
"Guarde bem minhas palavras", continuou sua irmã, "tudo o que ele será por
aqui nos próximos cinquenta anos é uma decoração".
Ele voltou para a cama. De certa forma, ela estava certa. Ele havia reprovado
seu deus, a Arte, a quem fora um servo fiel, e a Arte agora enviava-lhe a Morte. Desde
o início, vira isso com uma espécie de clareza mística. Foi dormir pensando no lugar
tranqüilo no cemitério da família onde logo estaria jazendo, e, pouco depois, viu seu
corpo ser levado lentamente para lá, enquanto sua mãe e Mary George, sentadas nas
cadeiras da varanda, assistiam sem nenhum interesse. Enquanto o esquife era
carregado pela represa, elas podiam erguer a vista e ver a procissão
refletida de cabeça para baixo na lagoa. Uma figura magra e escura em um colarinho
romano o seguiu. Ele tinha um rosto misteriosamente saturnino em que havia uma
mistura sutil de ascetismo e corrupção. Asbury foi colocado em uma cova rasa na
encosta da colina e os indistintos pranteadores, depois de ficar em silêncio por um
tempo, espalharam-se sobre o verde que escurecia. O jesuíta retirou-se para um
ponto debaixo de uma árvore morta para fumar e meditar. A Lua surgiu, e Asbury
tornou-se consciente de uma presença que se curvou sobre ele e de um calor suave
em seu rosto frio. Sabendo que era a Arte, que havia vindo para acordá-lo, sentou-se
e abriu os olhos. Do outro lado da colina, todas as luzes na casa de sua mãe estavam
acesas. O lago negro estava salpicado de pequenas estrelas cor-de-níquel. O jesuíta
havia desaparecido. Ao redor dele, as vacas estavam espalhadas, pastando ao luar, e
uma delas, grande e branca, intensamente manchada, lambia-lhe suavemente a
cabeça como, se fosse um bloco de sal. Ele acordou com um estremecimento e
descobriu que sua cama estava encharcada de suor e, quando sentou-se, tremendo
no escuro, percebeu que o fim não estava a muitos dias de distância. Olhou para
dentro da cratera da morte e, tonto, caiu de costas no travesseiro.
No dia seguinte, sua mãe notou algo quase etéreo em seu rosto devastado.
Ele parecia uma daquelas crianças moribundas que devem ter o Natal antecipado.
Ele sentou-se na cama, comandou o rearranjo de várias cadeiras e fez que ela
removesse a foto de uma donzela acorrentada a uma pedra, pois sabia que aquilo

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Penélopes

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O CALAFRIO CONSTANTE

faria o jesuíta sorrir. Levada dali também a confortável cadeira de balanço, o quarto,
no final das providências, com suas severas manchas de parede, tinha certas
características de cela. Ele sentiu que isso seria atraente para o visitante.
Durante toda a manhã, ele esperou, olhando irritado para o teto, onde o
pássaro com o pingente de gelo em seu bico parecia preparado e também à espera;
mas o padre não chegou até o final da tarde. Assim que sua mãe abriu a porta, uma
voz barulhenta e ininteligível começou a ecoar no corredor do andar de baixo. O
coração de Asbury bateu violentamente. Em um segundo, houve um rangido pesado
nas escadas. Então, quase que imediatamente, sua mãe, com sua expressão
constrangida, entrou, seguida por um homem idoso, que atravessou a sala, pegou
uma cadeira ao lado da cama e colocou-a debaixo de si.
"Sou o padre Finn, do Purgatório", disse em uma voz calorosa. Ele tinha um
grande rosto vermelho, um montinho firme de cabelo grisalho e era cego de um olho,
mas o olho bom, azul e claro, estava concentrado em Asbury. Havia uma mancha de
gordura em seu colete. “Então você quer falar com um padre?”, ele disse. "Muito
esperto. Nenhum de nós sabe a hora em que Nosso Bendito Senhor pode nos
chamar.” Cravou, então, o olho bom na mãe de Asbury e disse: “Obrigado, a senhora
pode nos deixar agora.”
A Sra. Fox aprumou-se e não se mexeu.
“Gostaria de falar com o padre Finn sozinho”, disse Asbury, sentindo, de
repente, que ali havia um aliado, embora não esperasse um padre como esse. Sua
mãe deu-lhe um olhar de desgosto e saiu do quarto. Ele sabia que ela não iria longe,
mas ouviria atrás da porta.
"Muito gentil de sua parte ter vindo", disse Asbury. “Este lugar é
incrivelmente triste. Não há ninguém com quem uma pessoa inteligente possa
conversar. O senhor, padre, que opinião tem sobre Joyce? O padre levantou da
cadeira e aproximou-se. "Você vai ter que gritar", disse ele. "Cego em um olho e
surdo em um ouvido."
"O que você acha de Joyce?" Asbury disse mais alto.
“Joyce? Que Joyce?”, perguntou o padre.
"James Joyce", Asbury disse, e riu.
O padre passou a enorme mão no ar como se estivesse incomodado com
mosquitos. "Eu não o conheci", ele disse. "Agora. Você faz suas orações matinais e
noturnas?
Asbury pareceu confuso. "Joyce foi um grande escritor", murmurou,
esquecendo-se de gritar.
"Você não está, hein?", disse o padre. “Bem, você nunca aprenderá a ser bom
a menos que ore regularmente. Você não pode amar Jesus a menos que fale com Ele.”
“O mito do deus agonizante sempre me fascinou”, gritou Asbury, mas o
padre não pareceu compreender.
Você tem problemas com a pureza?, perguntou ele, e, à medida que Asbury
empalidecia, prosseguiu, sem esperar por uma resposta. “Todos nós temos, mas
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Penélopes

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O CALAFRIO CONSTANTE

devemos orar ao Espírito Santo quanto a isso. Mente, coração e corpo. Nada é
superado sem oração. Orar com sua família. Você reza com sua família?
"Deus me livre!", murmurou Asbury. "Minha mãe não tem tempo para rezar
e minha irmã é atéia", ele gritou.
"Uma pena!", disse o padre. "Então você deve orar por elas."
"O artista reza criando", Asbury arriscou-se.
"Não é o suficiente!" Retrucou o padre. “Se você não orar diariamente,
estará negligenciando sua alma imortal. Você conhece seu catecismo?
Certamente não, murmurou Asbury.
"Quem fez você?", perguntou o padre em tom marcial.
"Pessoas diferentes acreditam em coisas diferentes sobre isso", disse
Asbury.
"Deus fez você", disse o padre de pronto. "Quem é Deus?"
"Deus é uma ideia criada pelo Homem", disse Asbury, sentindo que, naquele
jogo de dois, ele avançava bem.
"Deus é um espírito infinitamente perfeito", disse o padre. “Você é um
garoto muito ignorante. Por que Deus te fez?"
“Deus não ..."
"Deus o fez para que você o conheça, ame-o, sirva-o neste mundo e seja feliz
com ele no próximo!", disse o velho padre num tom aguerrido. "Se você não se aplica
ao catecismo, como espera salvar sua alma imortal?
Asbury viu que havia cometido um erro e que era hora de se livrar do velho
idiota.
"Escute", ele disse, "eu não sou católico".
"Uma desculpa esfarrapada para não fazer suas orações!", o velho bufou.
Asbury caiu ligeiramente na cama. "Estou morrendo", ele gritou.
"Mas você ainda não morreu", disse o padre, "e como espera encontrar Deus
cara-a-cara se nunca falou com ele? Como você espera receber o que não pede? Deus
não envia o Espírito Santo para aqueles que não clamam por ele. Peça a Ele para
enviar o Espírito Santo”.
"O Espírito Santo?", disse Asbury.
"Você é tão ignorante que nunca tenha ouvido falar do Espírito Santo?",
perguntou o padre.
"Certamente, ouvi falar do Espírito Santo", disse Asbury furiosamente, "e o
Espírito Santo é a última coisa que estou procurando!"
"E ele pode ser a última coisa que você tenha", disse o padre, com o olho
feroz inflamado. “Você quer que sua alma sofra a condenação eterna? Você quer ser

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Penélopes

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O CALAFRIO CONSTANTE

privado de Deus por toda a eternidade? Você quer sofrer a dor mais terrível, maior
que o fogo, a dor da perda? Você quer sofrer a dor da perda por toda a eternidade?"
Asbury moveu os braços e as pernas, impotente, como se estivesse preso à
cama por aquele olho terrível.
“Como o Espírito Santo pode encher sua alma quando está cheia de lixo?”, o
padre rugiu. “O Espírito Santo não virá até que você se veja como é — um jovem
preguiçoso, ignorante e vaidoso!”, disse ele, batendo com o punho na mesinha de
cabeceira.
A Sra. Fox irrompeu. “Chega disso!”, exclamou ela. “Como atreve-se a falar
assim com um pobre menino doente? O senhor o está perturbando. O senhor deve
ir embora.
"O pobre rapaz nem conhece o catecismo", disse o padre, levantando-se. “Eu
deveria pensar que a senhora o teria ensinado a fazer suas orações diárias. A
senhora negligenciou seu dever como mãe.” Virou para a cama e disse afavelmente:
“Eu lhe darei minha bênção e, depois disso, você deve fazer suas orações diárias sem
fracassar”, e então colocou a mão na cabeça de Asbury e retumbou alguma coisa em
latim. “Ligue para mim a qualquer momento”, ele disse, “e podemos conversar um
pouco”, e então seguiu as costas rígidas da sra. Fox. A última coisa que Asbury ouviu
dizer foi: "Ele é um rapaz de bom coração, mas muito ignorante."
Na manhã seguinte, ele estava tão fraco que ela decidiu que ele deveria ir ao
hospital. "Eu não vou a nenhum hospital", ele continuou repetindo, virando a cabeça
de um lado para o outro como se quisesse soltá-la do corpo. "Eu não vou a nenhum
hospital enquanto estiver consciente." Ele estava pensando amargamente que, uma
vez que perdesse a consciência, ela poderia arrastá-lo para o hospital e enchê-lo de
sangue e prolongar sua miséria por dias. Estava convencido de que o fim estava se
aproximando, que seria hoje, e estava atormentado agora pensando em sua vida
inútil. Sentiu-se como se fosse uma casca que teria que ser preenchida com alguma
coisa, mas não sabia o quê. Começou a tomar nota de tudo na sala, como se fosse a
última vez — a antiga e ridícula mobília, o padrão no tapete, o quadro bobo que sua
mãe havia substituído. Ele até olhou para o pássaro feroz com o pingente de gelo em
seu bico e sentiu que ele estava ali por algum motivo que não conseguia adivinhar.
Havia algo de que ele estava à procura, algo que ele achava que deveria ter,
alguma última experiência culminante significativa que ele deveria fazer por si
mesmo antes de morrer — fazer por si mesmo fora de sua própria inteligência. Ele
sempre confiara em si mesmo e nunca tinha sido um carpidor do inefável.
Certa vez, quando Mary George tinha treze anos e ele cinco, ela, com a
promessa de um presente sem nome, atraíra-o a uma grande tenda cheia de gente e
o arrastara para a frente, onde um homem de terno azul e gravata vermelha e branca
estava em pé. "Aqui", disse ela em voz alta. "Eu já estou salva, mas você pode salvá-
lo. Ele é um verdadeiro fedorento e grande demais para ainda usar calças curtas”.
Livrando-se da irmã, que o apertava, fugiu às carreiras, como um cachorrinho
espantado e, depois, quando pediu seu presente, ela disse: “Você teria Salvação se
tivesse esperado por ela, mas, como agiu daquela forma, não conseguirá nada!

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O CALAFRIO CONSTANTE

Com o transcorrer do dia, ele foi ficando mais e mais frenético, temendo
morrer sem que tenha tido uma última experiência significativa. Sua mãe sentou-se
ansiosamente ao lado da cama. Ela ligou para Block duas vezes, mas não conseguiu
encontrá-lo. Ele achava que, mesmo agora, ela não percebia que ele ia morrer, muito
menos que o fim estava apenas a algumas horas de distância.
A luz da sala começava a ter uma qualidade estranha, quase como se
estivesse assumindo a presença. De uma forma escura, entrou e pareceu esperar.
Do lado de fora, parecia não se mover mais do que a borda da linha de árvores
desbotada, que ele podia ver alguns centímetros acima do peitoril de sua janela. De
repente, ele pensou naquela experiência de comunhão que tivera na leiteria com os
negros quando fumaram juntos, e logo começou a tremer de excitação. Eles
fumariam juntos uma última vez.
Depois de um momento, virando a cabeça no travesseiro, disse: “Mãe, quero
dizer adeus aos negros”.
Sua mãe empalideceu. Por um instante, seu rosto pareceu se desconjuntar-
se. Então, a linha de sua boca enrijeceu-se; as sobrancelhas juntaram-se. "Adeus?",
ela disse em uma voz estável. "Onde você vai?" Por alguns segundos, ele apenas
olhou para ela. Então ele disse: “Eu acho que você sabe. Chame-os. Não tenho muito
tempo.
"Isso é um absurdo", ela murmurou, mas levantou-se e saiu despachada. Ele
a ouviu tentando falar novamente com Block antes de sair. É tocante e patético,
pensou, que ela ligasse para Block numa hora como essa. Ele esperou, preparando-
se para o encontro como um homem religioso poderia se preparar para o último
sacramento. Logo ouviu os passos deles na escada.
"Aqui está Randall e Morgan", disse sua mãe, introduzindo-os.
“Vieram dizer olá”.
Os dois entraram sorrindo e se arrastaram para o lado da cama. Eles ficaram
ali, Randall na frente e Morgan atrás. "Você parece bem", disse Randall. "Você parece
muito bem."
"Você parece bem", o outro disse. "Sim, você parece bem."
"Eu nunca vi você tão bem antes", disse Randall.
"Sim, ele não parece bem?", sua mãe disse. "Eu acho que ele parece muito
bem."
"Sim", disse Randall, "eu te digo que você nem está doente."
"Mãe", disse Asbury com uma voz forçada. "Eu gostaria de conversar com
eles a sós."
Sua mãe endureceu; depois, saiu marchando. Ela atravessou o corredor e
entrou no quarto do outro lado e sentou-se. Através das portas abertas ele podia vê-
la começar a balançar-se em pequenos empurrões curtos. Os dois negros pareciam
desamparados, como se a última a proteção houvesse desaparecido.
A cabeça de Asbury estava tão pesada que ele não conseguia pensar no que
ia fazer. "Estou morrendo", disse.
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O CALAFRIO CONSTANTE

Ambos os sorrisos tornaram-se gelados. "Você parece bem", disse Randall.


"Vou morrer", repetiu Asbury. Então, aliviado, lembrou-se de que iriam
fumar juntos. Ele pegou o pacote na mesa e estendeu a mão para Randall,
esquecendo-se de sacudir os cigarros. O negro pegou o pacote e colocou no bolso.
"Obrigado", disse ele. “Obrigado mesmo.”
Asbury fitou-o como se ele tivesse esquecido de novo. Depois de um
segundo, percebeu que o rosto do outro negro tornara-se infinitamente triste; então
percebeu que não estava triste, mas mal-humorado. Remexeu a gaveta da mesa,
tirou um pacote fechado e empurrou-o para Morgan. "Eu o agradeço, senhor
Asbury", disse Morgan, animando-se. "Você certamente parece bem."
"Estou prestes a morrer", disse Asbury, irritado.
"Você parece bem", disse Randall.
" Dentro de alguns dias, você vai estar rodando por aqui", Morgan previu.
Nenhum deles parecia encontrar um lugar adequado para descansar o
olhar. Asbury olhou descontroladamente para o outro lado do corredor, onde sua
mãe estava com sua cadeira-de-balanço virada de modo que suas costas o
encaravam. Era evidente que ela não tinha a intenção de ajuda-lo a livrar-se deles.
"Deve ter sido uma gripezinha à toa", disse Randall depois de um tempo.
"Eu tomo um pouco de terebintina e açúcar quando estou com um
resfriado", disse Morgan.
"Cale a boca", disse Randall, virando-se para ele.
"Cale a boca você", disse Morgan. "Eu sei o que eu tomo."
"Ele não toma o que você toma", rosnou Randall.
"Mãe!", Asbury chamou em uma voz trêmula.
Sua mãe se levantou. “O senhor Asbury já teve companhia por tempo
suficiente”, ela chamou. "Vocês dois podem voltar amanhã."
"Nós vamos", disse Randall. "Você parece bem."
"Tá mesmo," Morgan disse.
Eles saíram concordando um com o outro sobre o quanto ele parecia bem,
mas a visão de Asbury ficou borrada antes mesmo que eles chegassem ao corredor.
Por um instante, viu a forma de sua mãe como se fosse uma sombra na porta, que
logo desapareceu pela escada atrás dos dois. Depois, sem interesse, ouviu-a ligar
para Block de novo. Sua cabeça estava girando. Agora, ele sabia que não haveria
experiência significativa antes de morrer. Não havia mais nada a fazer senão dar à
mãe a chave da gaveta onde estava a carta e esperar o fim. Ele afundou em um sono
pesado do qual acordou, por volta das cinco, para ver rosto branco da mãe, muito
pequeno, no fundo de um poço de escuridão. Ele tirou a chave do bolso do pijama e
entregou a ela e murmurou que havia uma carta na mesa para ser aberta quando ele
partisse, mas ela não parecia entender. Ela colocou a chave na mesa de cabeceira e

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Penélopes

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O CALAFRIO CONSTANTE

a deixou lá e retornou ao seu sonho em que duas pedras grandes estavam circulando
uma em torno da outra dentro de sua cabeça.
Ele acordou um pouco depois das seis para ouvir o carro de Block parar na
entrada da garagem. O som era como uma convocação, trazendo-o rapidamente, e
com a cabeça clara, para fora de seu sono. Ele teve um súbito e terrível
pressentimento de que o destino que o aguardava seria mais devastador do que
qualquer outro que pudesse imaginar. Ficou absolutamente imóvel, imóvel como um
animal no instante que antecede um terremoto.
Block e sua mãe conversavam enquanto subiam as escadas, mas ele não
distinguiu as palavras. O médico entrou fazendo caretas; a mãe sorria. "Adivinhe o
que você tem, meu amorzinho!", ela exclamou. Sua voz atingiu-o com a força de um
tiro.
"O velho Block, maníaco feito ele só, já descobriu”, disse Block, afundando
na cadeira ao lado da cama. Ele ergueu as mãos sobre a cabeça no gesto de um
lutador vitorioso que recebe seus prêmios e deixou-os desmoronar em seu colo
como se o esforço o tivesse exaurido. Então, tirou um lenço vermelho, que usava
como bandana, para ser engraçado, e enxugou o rosto completamente, tendo uma
expressão diferente sobre ele toda vez que aparecia por trás do pano.
"Eu acho que você está tão esperto quanto pode ser!", a Sra. Fox disse.
“Asbury”, ela disse, “você tem febre ondulante. Ela vai voltar, mas não vai matá-lo!”
Seu sorriso era tão brilhante e intenso quanto uma lâmpada sem sombra. "Estou tão
aliviada", disse ela.
Asbury sentou-se devagar, com o rosto inexpressivo; então caiu de novo.
Block inclinou-se sobre ele e sorriu. "Você não vai morrer", disse ele, com
profunda satisfação.
Nada em Asbury agitou-se, exceto seus olhos. Eles não pareciam mover-se
na superfície, mas, em algum lugar, em suas profundezas turvas havia um
movimento quase imperceptível, como se algo estivesse lutando debilmente. O olhar
de Block parecia estender-se como um alfinete de aço pronto a segurar o que quer
que fosse, até que a vida saltasse para fora dele. "Febre ondulante não é tão grave,
Azzberry", ele murmurou. "É o mesmo que brucelose em uma vaca."
O rapaz deu um gemido baixo e depois ficou quieto.
“Ele deve ter bebido leite não pasteurizado lá em Nova York”, disse a mãe
suavemente, e, depois, na ponta dos pés, os dois saíram, como se achassem que ele
ia dormir.
Quando o som dos passos desapareceu nas escadas, Asbury sentou-se
novamente. Ele virou a cabeça, quase sub-repticiamente, para o lado onde a chave
estava deitada na mesa de cabeceira. Esticou a mão, fechou-a e a pôs de volta no
bolso. Olhou, através da sala, para o pequeno espelho de penteadeira oval. Os olhos
que olhavam para ele eram os mesmos que devolveram seu olhar todos os dias
daquele espelho, mas parecia-lhe que estavam mais pálidos. Eles pareciam
chocados, como se tivessem sido preparados para uma visão horrível prestes a cair
sobre ele. Ele estremeceu, virou a cabeça rapidamente para o outro lado e olhou pela
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Penélopes

PENÉLOPES
O CALAFRIO CONSTANTE

janela. Um sol ofuscante vermelho-ouro movia-se serenamente sob uma nuvem


roxa. Abaixo, a linha das árvores estava negra contra o céu vermelho. Formava uma
parede frágil, parada como se fosse a frágil defesa que ele montara em sua mente
para protegê-lo do que estava por vir. O rapaz caiu no travesseiro e olhou para o
teto. Seus membros, que haviam sido atormentados por tantas semanas por febre e
frio, estavam entorpecidos agora. A velha vida nele estava esgotada. Esperava a
vinda da nova. Foi então que sentiu o começo de um calafrio, um calafrio tão
peculiar, tão leve, que era como uma onda quente em um mar de frio mais profundo.
Sua respiração ficou curta. O pássaro feroz que, durante os anos de sua infância e os
dias de sua doença, estava pousado sobre sua cabeça, esperando misteriosamente,
pareceu, de repente, estar em movimento. Asbury empalideceu e a última camada
de ilusão foi rasgada como que por um redemoinho de seus olhos. Ele viu que, pelo
resto de seus dias, frágil, torturado, mas duradouro, viveria diante de um terror
purificador. Um grito fraco, um último protesto impossível escapou dele. Mas o
Espírito Santo, estampado no gelo em vez de fogo, continuou, implacável, a descer.

Flannery O’Connor.

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