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SEMINÁRIO CONCÓRDIA

8º SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE TEOLOGIA

O DEUS DA IRA E O DEUS DO AMOR – LEI E EVANGELHO EM LUTERO

LEI E EVANGELHO NOS ESCRITOS EXEGÉTICOS DO ANTIGO TESTAMENTO


– EM LUTERO.

São Leopoldo 2019

SILVIO FERREIRA DA SILVA FILHO


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

1 – A MENSAGEM DA LEI DE DEUS NO ANTIGO TESTAMENTO – O DEUS DA


IRA ............................................................................................................................................ 6

2 – A MENSAGEM DO EVANGELHO DE DEUS NO ANTIGO TESTAMENTO – O


DEUS DO AMOR ................................................................................................................... 11

3 APLICAÇÃO ...................................................................................................................... 17

CONCLUSÃO ......................................................................................................................... 19

BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................... 20
3

INTRODUÇÃO

A correta distinção lei e evangelho é, depois da ênfase na doutrina da justificação


pela fé, a mais marcante característica da teologia luterana. A lei e o evangelho expressam o
dilema humano em que o cristão conhece nas Escrituras Sagradas a revelação do Deus que o
odeia e o ama ao mesmo tempo.1

Lutero viveu esse dilema. Lei e evangelho foram as ferramentas com as quais Deus
trabalhou na sua vida. A lei foi muito marcante, especialmente, no período inicial da sua vida,
quando ele queria convencer-se a si mesmo da sua salvação através da prática das boas obras,
conforme prescritas pelo catolicismo medieval. Lutero se abasteceu da teologia e do pietismo
da sua época, que ensinavam a salvação e a paz com Deus, através da justiça própria e boas
obres feitas em obediência à lei de Deus. O esquema de salvação era o desenvolvido por
Ockham, que estabelecia que, primeiro, a pessoa tinha condições de obter a perfeição descrita
por Deus; segundo, Deus capacita a pessoa para tornar-se justa; terceiro, a graça de Deus e as
boas obras se completam até que a pessoa vá para o purgatório ou obtenha a perfeita
santidade, entrando nos céus, depois da morte.2

Essa percepção conduziu Lutero do medo ao ódio a Deus. Como amar a um Deus
que consegue demonstrar sua ira e castigo de forma a deixar terrificado o ser humano? No
entanto, quando, pela Palavra de Deus, o Espírito Santo fê-lo confiar que a salvação é
presente de Deus dado ao ser humano pela fé nos méritos de Cristo somente, ele ficou
maravilhado.

O catolicismo não apenas negava os fundamentos da fé, mas os apresentava como


exigências. O fato de Lutero ter percebido, pelas promessas do evangelho, que a fé em Cristo
serena o coração e consola a alma, tornou-se o pilar principal para a Reforma. Embora isso,

1
SCAER, David Paul. The law and the gospel in Lutheran Theology. Logia – A Journal Of Lutheran
Theology, Fort Wayne, v. III, n. 1, p. 27, 1995.
2
DARNELL, Adam. Luther’s law and gospel hermeneutic. Artigo publicado no site Academia.edu. Abril,
2011.
4

por mais que ele tenha resolvido esse dilema teologicamente, ele jamais o resolveu
existencialmente, pois ao longo da sua vida ele entendeu-se a si mesmo como estando
condenado e perdoado diante de Deus, ao mesmo tempo. A lei e o evangelho são
simultaneamente palavra de Deus ao ser humano.3

A Palavra de Deus se acha registrada no Antigo e Novo testamentos. A essência da


proclamação do Antigo Testamento e do Novo Testamento, é a mensagem do julgamento e da
graça. O conceito da “palavra de Deus” envolve os aspectos de destruição, pregados pela lei, e
de cura, proclamados pelo evangelho.4

Não é incomum ouvir que o Deus do Antigo Testamento é um Deus de ira, enquanto
o Deus do Novo Testamento é um Deus de amor.5 Quando, no entanto, nos atemos aos relatos
bíblicos, poderíamos até pensar em afirmar o contrário: O Deus do Antigo Testamento era
mais paciente e condescendente que o Deus do Novo Testamento. A ordem para exterminar
os Cananeus não era mais severa que as advertências de Jesus contra Jerusalém. O Deus que
exterminou os primogênitos do Egito não demonstrou mais juízo do que Cristo, com seu
chicote, purificando o templo, ou proferindo uma coleção de infindáveis ais contra os fariseus
e mestres da lei, denunciando a sua impenitência.

Mas Lutero aprendeu com as Escrituras que há sempre duas maneiras com as quais
Deus confronta o homem: como o que dá a lei e como o que remove a lei.6 Por um lado, ele
tinha que mostrar claramente que a salvação não é produzida pelas obras da lei e, por outro
lado, tinha que apontar que abolir a lei nega a realidade do pecado e a necessidade do
Redentor.

Quando queremos perceber mais detalhadamente a maneira com a qual Lutero


olhava para as Escrituras em geral, e para o Antigo Testamento em particular, e lidava com a
tensão Lei X Evangelho, é importante deixar as Escrituras do Antigo Testamento falarem, sob
a ótica do Reformador. A essência da proclamação do Antigo Testamento é a mensagem de
juízo e graça, e isso se torna evidente quando olhamos para algumas passagens do Antigo

3
SCAER, David Paul. The law and the gospel in Lutheran Theology. Logia – A Journal Of Lutheran
Theology, Fort Wayne, v. III, n. 1, p. 27, 1995.
4
SAUER, Alfred von Rohr. The Message of Law and Gospel in the Old Testament. Fort Wayne, Indiana:
Concordia Theological Montly: 26 Number: 3 in 1955, p. 172-187.
5
SCAER, David Paul. The law and the gospel in Lutheran Theology. Logia – A Journal Of Lutheran
Theology, Fort Wayne, v. III, n. 1, p. 29, 1995.
6
MAYER, F. E. Human Will in Bondage and Freedom. A Study in Luther’s Distinction Of Law and
Gospel. Saint Louis, Missouri: Concordia Theological Montly, Volume 22, Número 10, páginas 719-747.
5

Testamento e verificamos como Lutero percebia a revelação da Lei de Deus e demonstração


clara do seu maravilhoso Evangelho.
6

1 – A MENSAGEM DA LEI DE DEUS NO ANTIGO TESTAMENTO – O DEUS DA IRA

O texto de Gênesis 2, que relata a ordem de Deus para que Adão e Eva não comessem
do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, e Gênesis 3, que relata a queda do
homem em pecado, coloca em relevo a ameaça e o juízo de Deus, quando ele disse para Adão:
De toda a árvore do jardim comerás livremente (comer comerás lke(aTo lkoïa'), mas da árvore
do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque no dia em que dela comeres,
certamente morrerás (morrer morrerás - tWm)T' tAmï) – Gn 2.16,17. Em Gênesis 3, lemos a
consequência do pecado e o cumprimento da ameaça da lei de Deus: Tu és pó e ao pó
tornarás - bWv)T' rp"ß['-la,w> hT'a;ê rp"å['-yKi( .
Lutero comenta esse texto, dizendo que Adão, criado no estado de santidade,
inocência e justiça, recebeu a lei de Deus. Se ele tivesse obedecido a lei de Deus, não teria
morrido, pois a morte veio pelo pecado. 7 Adão tinha sido feito da terra e, dela, pelo poder de
Deus, foi formado alma vivente. Por causa do seu pecado, teria que experimentar a morte,
como Deus o revelou na Sua infalível lei. Ele iria retornar ao pó, como um ser humano morto.
O pecado reduziu o ser humano a isso: Ao pó. Lutero diz ainda que a queda de Adão foi da
saúde à enfermidade, da vida à morte. Tudo se deteriorou por causa do seu pecado. O ser
humano tornou-se a pior coisa em que poderia ter se tornado. 8
Mais tarde, quando constata a completa corrupção do gênero humano, Deus promete
destruir toda a humanidade por causa do pecado. O relato das Escrituras diz: “Viu o
SENHOR que a maldade do homem se havia multiplicado na terra e que era
continuamente mau todo desígnio do seu coração - #r<a'_B' ~d"Þa'h' t[;îr" hB'²r: yKiî hw"ëhy> ar.Yåw: : - ;
então, se arrependeu o SENHOR de ter feito o homem na terra, e isso lhe pesou no
coração. Disse o SENHOR: Farei desaparecer da face da terra o homem que criei, o
homem e o animal, os répteis e as aves dos céus; porque me arrependo de os haver feito”
(Gn 6.5-7). Lutero comenta que esta passagem deve ser usada contra aqueles que acreditam
que o ser humano tem o livre arbítrio para coisas espirituais. Lutero cita Agostinho, quando

7
LW 1: 110.
8
LW 1: 216.
7

este escreve que sem a graça de Deus ou a ação do Espírito Santo, o ser humano é incapaz de
qualquer coisa, a não ser, pecar.9

E, quando em Gênesis 8.21, Deus arremata, dizendo: “Não tornarei a amaldiçoar a


terra por causa do homem, porque é mau o desígnio íntimo do homem desde a sua
mocidade - wyr"_[uN>mi [r:Þ ~d"²a'h' bleó rc,yEå yKi ; nem tornarei a ferir todo vivente, como fiz”, Lutero
diz que esta passagem é muito importante para afirmar o pecado original. Ele diz: “Considere
nossa infância. De que variadas maneiras o pecado revela-se a si mesmo nos nossos primeiros
anos”.10 Assim, diz Lutero, com provas tão claras que o homem é mau e inimigo de Deus,
quem é tão tolo a ponto de imaginar que os dons naturais do ser humano foram mantidos
intactos depois da queda?11

Quando, mais tarde, depois de chamar Abraão para, por ele serem benditas todas as
nações da terra (Gn 12) e lhe prometer um filho (Gn 15), o SENHOR Deus pré-anuncia seu
juízo sobre o Egito e, por extensão, às nações inimigas do povo de Deus, ao dizer: “Mas
também julgarei a gente a quem tem de sujeitar-se” - ykinO=a' !D"å Wdboß[]y: rv<ïa] yAG°h;-ta, ~g:wô > - (Gn
15.14). Lutero diz que o propósito desta passagem é nos ensinar acerca da natureza de Deus.
Ele livra e liberta da morte. Mas, antes de livrar, ele destrói; antes de fazer viver, ele mergulha
na morte.12

As exigências e julgamentos de Deus são essencialmente acusação do pecado. Deus


fez de Israel Seu povo e, quando seu povo se mostra rebelde, desobediente, contumaz, Deus
afirma através do profeta Amós: “De todas as famílias da terra, somente a vós outros vos
escolhi, portanto eu vos punirei por todas as vossas iniquidades”
- ~k,(ytenO*wO[]-lK' taeÞ ~k,êyle[] dqoåp.a, ‘!Ke-l[; - (Am 3.2). É dramático ver que o Deus da Salvação, da
Aliança, das Promessas do Messias, é o mesmo Deus que promete castigar o seu povo como
prometeu castigar os Sírios, os Filisteus, os de Tiro e Sidom, os Edomitas, os Amonitas, e,
assim, “por três transgressões de Judá, e por quatro, não sustarei o castigo, porque
rejeitaram a lei do SENHOR, e não guardaram os seus estatutos, antes as suas próprias
mentiras os enganaram, e após elas andaram seus pais” (Am 2.4). Lutero destaca que aqui,
Deus repreende Judá, começando com a fonte de todos os pecados, ou seja, a idolatria, que
abandona a verdadeira adoração e a Palavra de Deus. Afinal, ele lutou com essa maldade

9
LW 2 : 39.
10
LW 2: 119.
11
LW 2: 122.
12
LW 3.33.
8

perpetuamente. Veja, a idolatria abominável necessariamente se segue quando nos afastamos


da verdadeira Palavra de Deus – algo que vemos não apenas aqui, mas em todas as
Escrituras.13

A idolatria do povo de Deus incorpora, em Oséias, a metáfora da prostituição. Deus


chama o profeta e o envia para casar-se com uma mulher adúltera, dizendo: “Porque a terra
se prostituiu” – hw")hy> yrEÞx]a;me( #r<a'êh' ‘hn<z>ti hnOÝz"-yKi( - (Os 1.2). Martinho Lutero diz que a
verdadeira semente que purifica as nossas almas é a Palavra de Deus. Quando você se afasta
disso, você comete prostituição. Ele transfere uma símile da carne para o reino espiritual.
Cometer prostituição significa praticar a idolatria. A idolatria é a genuína confiança nas obras;
a prostituição é pecar com infidelidade ao Primeiro Mandamento. Corretamente, a
prostituição é agir contra o Primeiro Mandamento em nome de Deus, isto é, fazer sem fé o
que você imagina que está fazendo para adorar a Deus.14

As ameaças e juízo de Deus continuam. Através do profeta Joel, Deus envia o seu
juízo contra o seu povo na forma de gafanhotos que destroçaram tudo. Ele conclama o seu
povo a abandonar o seu pecado, dizendo: “Cingi-vos de pano de saco e lamentai sacerdotes;
uivai ministros do altar... Ah! Que dia! Porque o Dia do SENHOR está perto e vem como
assolação do Todo-poderoso” - aAb)y" yD:îv;mi dvoßk.W hw"ëhy> ~Ayæ ‘bArq' yKiÛ ~AY=l; Hh'Þa] - (Jl 1.13,15).
Lutero diz que o Dia do SENHOR virá com tamanha destruição que ninguém conseguirá
pará-lo. Então, a mensagem do SENHOR é clara: Arrepende-te.15

Através do profeta Habacuque, o SENHOR Deus repreende a iniquidade de Judá: “Até


quando, SENHOR... Por que me mostras a iniquidade...? - jyBiêT; lm'ä['w> ‘!w<a'’ ynIaEÜr>t; hM'lä' - Pois
a destruição e a violência estão diante de mim; há contendas e o litígio se suscita” (Hb 1.2-
4). Lutero diz que o SENHOR Deus envia Seus profetas para anunciar Sua Palavra, revelar
seu pecado e declarar a ira vindoura de Deus por causa de seus pecados. 16

Há muitas outras manifestações da ira e do juízo de Deus contra o seu povo, como
quando ele envia o profeta Amós para, com o prumo, indicar que a justiça e o juízo de Deus
viriam sobre o seu povo (Am 7.8). Ele convida a Jeremias para quebrar o vaso feito pelo
oleiro como um sinal de que o povo e a cidade seriam esmagados (Jr 19.10,11). Ele fala

13
LW 18. 92.
14
LW 18: 7.
15
LW 18: 60.
16
LW 19: 68.
9

contra o endurecimento do coração do seu povo, quando comissiona o profeta Isaías para
denunciar o coração insensível do seu povo, para lhe endurecer os ouvidos e fechar-lhe os
olhos (Is 6.10).

Deus demonstra querer desistir do seu povo, quando proíbe o profeta Jeremias
interceder pelo seu povo (Jr 7.16). Ou, quando, pelo profeta Oséias, usa os nomes dos filhos
do profeta para descrever o quadro de infidelidade e perversidade do seu povo. Os nomes:
Jezreel -la[,_r>z>yI - , desfavorecida - hm'x'_rU al{ - , Não-Meu-Povo - yMiê[; al{å - (Os 1), Rápido-
Despojo-Presa-Segura - zB;( vx'î ll'Þv' rhEïm;l. - (Is 8.1) mostram com clareza a que ponto o povo
de Deus tinha chegado e o quanto Deus estava por derramar sua ira contra seu povo. Lutero
comenta, dizendo que, com esses nomes, Deus estava dizendo que não teria pena do seu
povo.17

Deus usava de formas não-convencionais para dizer ao seu povo e aos povos vizinhos
o quanto seus pecados eram graves e sérios. Ele comandou ao profeta Isaías que andasse
descalço e desnudo “três anos por sinal e prodígio contra o Egito e a Etiópia” (Is 20.3). O
profeta Ezequiel teve que deitar sobre o seu lado esquerdo e colocar sobre si a iniquidade da
casa de Israel e, depois, teria que cozer seu alimento sobre esterco humano (Ez 4), e, contra
seu próprio povo, disse: “Ai desta nação pecaminosa - ajeªxo yAGæ ŸyAhå - , povo carregado de
iniquidade, raça de malignos, filhos corruptos; abandonaram o SENHOR, blasfemaram do
Santo de Israel, voltaram para trás” - ~ynIßB' ~y[iêrEm. [r;z<å !wOë[' db,K,ä ~[;… - (Is 1.4). O profeta
Jeremias foi proibido de casar e ter filhos como indicação que as esposas e filhos do povo de
Deus iriam morrer de doença. Ele foi proibido de comparecer a momentos de festa porque o
SENHOR Deus iria tirar a voz de alegria e de júbilo do seu povo (Jr 16.1-9).18 Estas ações
incorporam as palavras de juízo de Deus por causa do pecado do seu povo. O pecado pode
resultar em apenas uma coisa: Juízo.

Mas, sem dúvidas, algumas das demonstrações mais duras da ira de Deus estão
registradas no Salmo 22, quando o Salmista pré-anuncia que Deus faria cair sobre seu Filho a
sua ira contra o pecado humano e faria o seu Filho como um verme (Sl 22.6), e em Isaías 53,
quando descarregou sobre ele o castigo que deveríamos suportar (Is 53).

17
LW 18: 7.
18
SAUER, Alfred von Rohr. The message of law and gospel in the Old Testament. Fort Wayne, Concordia
Theological Monthly, nº 03, vol. 26, p. 172-187.
10

Sobre o Salmo 22, Lutero diz que, por causa do pecado do ser humano, Jesus degrada-
se a si mesmo e se coloca abaixo do ser humano, como um verme
- ~['( yWzðb.W ~d"ªa'÷ tP;îr>x, vyai_-al{w> t[;läA; t ykiänOa'w>. Lutero diz que Jesus realiza seu trabalho em
pobreza e fraqueza física e se entrega à morte por causa da morte que o ser humano produziu
com seu pecado. 19

Já o profeta Isaías descreve o Sacrifício Vicário do Servo Sofredor. Depois de dizer


que ele “não tinha aparência, nem formosura... como um de quem os homens escondem o
rosto... foi traspassado pelas nossas transgressões e moído pelas nossas iniquidades... foi
cortado da terra dos viventes; por causa da transgressão do meu povo, foi ele ferido...”
arremata, ao final, dizendo: “Todavia, ao SENHOR agradou moê-lo, fazendo-o enfermar”
- ylix
ê /h,( ‘AaK.D: #peÛx' hw"ùhyw: - (Is 53.2,3,5,8,10).

Martinho Lutero comenta esse texto e diz que o profeta é eloquente ao descrever o
sofrimento de Cristo. Palavra por palavra ele expõe o sofrimento de Jesus em oposição aos
judeus endurecidos. Você quer saber o que é suportar nossos pecados, isto é, o que significa
que Ele foi ferido? Aqui você tem a descrição. Jesus está à sua frente.20

Lutero responde ao porquê do sofrimento de Jesus, deixando claro que a sua


intensidade demonstra o quanto o pecado do ser humano é grave. Ele diz que sempre e
novamente o que ele fez foi pelos pecados do “Meu povo”. Não vamos simplesmente passar
sobre o sofrimento de Cristo, mas devemos sempre olhar para a sua função, que foi por causa
de nossos pecados.21 O caráter surpreendente de Isaías 53 é que o braço salvador de
YAHWEH se mostra não como quem esmaga um inimigo, mas como quando é possível ver o
Servo do Senhor sendo moído e esmagado pelos pecados do mundo inteiro.

A terrível descrição do sacrifício do Servo do Senhor pelos pecados de toda a


humanidade exala o contexto dos sacrifícios pelo pecado e pela culpa, estabelecidos por
YAHWEH, como o meio de reconciliação com seu povo, o que aponta claramente para o
sacrifício de Cristo, numa relação de tipo e antítipo. Essa descrição abre as portas para que
conheçamos, com as lentes de Lutero, o Deus que ama o ser humano e lhe faz as mais
maravilhosas promessas de perdão e salvação, em Cristo Jesus, no Antigo Testamento.

19
LW 12: 78.
20
LW 17: 152.
21
LW 17: 156.
11

2 – A MENSAGEM DO EVANGELHO DE DEUS NO ANTIGO TESTAMENTO – O


DEUS DO AMOR

O Dr. Von Rohr Sauer nos ajuda a compreender a mensagem do Evangelho de Deus
no Antigo Testamento, dizendo que o conceito da graça e misericórdia de Deus no Antigo
Testamento tem uma conexão muito forte com o conceito do remanescente de Israel
(laer"fy. I ra"v
Ü ). que iria sobreviver ao juízo de Deus sobre seu povo. 22 Os profetas anunciaram a
destruição que viria sobre o povo de Deus, mas deixaram claro que um remanescente iria
sobreviver. O profeta Amós fala do remanescente, dizendo: “Aborrecei o mal e amai o bem, e
estabelecei na porta o juízo: talvez o SENHOR, o Deus dos Exércitos se compadeça do
restante - @sE)Ay tyrIaev. - de José” (Amós 5.15). Por mais que o conceito de remanescente
subentenda que Deus puniu o seu povo severamente, o termo sugere misericórdia, pois
sempre retrata o que Deus, por Sua infinita graça, permitiu permanecer.

Martinho Lutero comenta que Deus, que tinha feito com que seu povo tivesse sido
derrubado e afligido pela miséria, que tinha sido tratado com desprezo e escárnio, pudesse ter
alguns remanescentes resgatados. Uma parte muito pequena foi salva, para que Israel não
pereça completamente. Embora Deus tenha afligido muitíssimo seu povo, com seu duro juízo,
com grande desgraça, ainda assim, YAHWEH é o seu Deus.23

Lutero continua dizendo que é assim que o SENHOR Deus lida conosco: Ele
aterroriza e envergonha nossas consciências, e nos faz acreditar que tudo está acabado para
nós. É como se Ele pretendesse nos condenar eternamente. No entanto, Ele sempre nos deixa
alguma esperança. Ele não nos deixa perder totalmente a esperança.

O profeta Isaías, contemporâneo de Amós, fala do conceito da graça de Deus, ligado


ao conceito do remanescente, da mesma forma, ao dizer: “Se o SENHOR dos Exércitos não
nos tivesse deixado alguns sobreviventes, já nos teríamos tornado como Sodoma, e
semelhantes a Gomorra” (Is 1.9). Confiando nesta promessa de Deus, tendo esperança na

22
SAUER, Alfred von Rohr. The Message of Law and Gospel in the Old Testament. Fort Wayne: Concordia
Theological Montlhy, Vol. 26, n. 03, p. 181, 1955
23
LW 17: 102.
12

sobrevivência do remanescente, ele dá ao seu filho o nome de UM-RESTO-VOLVERÁ -


bWvy" ra'v. – que significa exatamente isso: Um remanescente irá retornar.24

Lutero lembra que o apóstolo Paulo cita Isaías capítulo 1 em Romanos 9.29, onde ele
está falando da promessa de Deus de que iria ser o Deus de Abraão e de toda a sua
descendência. Por causa desta promessa, diz Lutero, sempre permanece entre os judeus
aqueles que pertencem a Cristo, e um reino dos judeus tinha que permanecer por causa de
Cristo, que iria nascer, pregar e morrer lá. Assim a árvore foi cortada, mas a raiz e o toco
permaneceram, e isto foi ato da pura misericórdia de Deus e da superabundância da Sua
graça.25

A promessa da Salvação remonta a Gn 3.15, quando Deus, após a queda do homem


em pecado, falava do descendente da mulher que viria deste remanescente para destruir as
obras de Satanás, dizendo: “Este te ferirá a cabeça” - varoê ^åp.Wvy> [[r;z]< aWh… . Martinho Lutero
diz que Jesus, concebido pelo Espírito Santo, nascido da virgem Maria, é a verdadeira
semente da mulher, assim como Deus tinha repetido essa promessa a Abraão e a Davi e é por
isso que Jesus é chamado de filho de Abraão e descendente de Davi. 26

O conceito da graça e do amor de Deus no Antigo Testamento também é retratado na


figura do Pastor que cuida das ovelhas (Sl 23). Lutero comenta esta metáfora terna, ao dizer
que as escrituras dão a Deus muitos nomes amigáveis; mas é especialmente querido e
encantador aquele que o salmista dá a Deus aqui, ao chamá-lo de pastor: "O Senhor é meu
pastor" – y[iªro÷ hw"ïhy> . É muito confortador quando a Escritura chama Deus de nosso refúgio,
nossa força, nossa rocha, nossa fortaleza, escudo, esperança, nosso conforto, Salvador, Rei,
etc. Pois por Suas ações e sem cessar ele verdadeiramente demonstra ao seu povo que ele é
exatamente como as Escrituras o retratam. É extremamente consolador saber, no entanto, que
aqui e em outros lugares nas Escrituras, ele é frequentemente chamado de Pastor. Pois nesta
única pequena palavra “pastor” estão reunidas todas as coisas boas e consoladoras que
louvamos em Deus.27

Esses cuidados amorosos de Deus também são ensinados na comparação do amor que
um pai tem pelos seus filhos. Isso fica evidente numa série de passagens, como no Salmo 103,

24
SAUER, Alfred von Rohr. The Message of Law and Gospel in the Old Testament. Fort Wayne: Concordia
Theological Montlhy, Vol. 26, n. 03, p. 182, 1955.
25
LW 17: 12.
26
LW 1: 163
27
LW 1: 105.
13

quando o SENHOR Deus diz que “como um Pai se compadece dos seus filhos -
~ynI+B'-l[; ba'â ~xeär:K. - assim o SENHOR se compadece dos que o temem.” No Salmo 68, o
amor e a graça de Deus nos são mostrados quando o salmista diz que Ele é o “Pai dos órfãos”
- ~ymiAty>â ybiäa]. Para Lutero, estas palavras de amor e de graça deixam claro que o filho de Deus
pode ser pobre e miserável; contudo, encontrará conforto na confiança que o Senhor da
Criação é o seu Pai.28

Especialmente em Oséias 11.1, quando o profeta diz: “Quando Israel era menino, eu
o amei, e do Egito chamei meu filho” - ynI)b.li ytiar"îq' ~yIr:ßcM
. imiW. O SENHOR Deus é o Pai que
sempre trata seus filhos amados com misericórdia e amor. Lutero comenta, dizendo que Deus
amou o seu povo desde o começo e que sempre o abençoava, apesar de toda a rebeldia do seu
povo. Ele os atraía com “laços de amor” - hb'êh]a; tAtåbo[]B; (V.4), o que lembra as palavras
maravilhosas do Salvador Jesus Cristo, registradas em Mt 11.30. 29

O amor e a bondade incondicional de Deus também é comparado ao amor de uma


mãe. Através do profeta Isaías, o SENHOR Deus diz: “Acaso pode uma mulher esquecer-se
do filho que ainda mama, de sorte que não se compadeça do filho do seu ventre? Mas ainda
que esta viesse a se esquecer dele, eu, todavia, não me esquecerei de ti” (Isaías 49.15).
Lutero comenta esse texto, dizendo: “Como eu poderia te esquecer?” Portanto, deixe o cristão
saber que esta é a sua condição, sentir-se abandonado. Mas, na verdadeira desolação, levanta
a cabeça do meio das ondas e diz: Embora eu me sinta abandonado e esquecido, conheço a
promessa de Deus dada a mim. Portanto, ele me deserta para me colocar à prova, e mostra-me
o poder da Palavra para que eu possa confiar nele e depois não ser envergonhado. Não é
realmente um ato de renúncia, mas um teste. É nosso consolo que Deus nos testa, assim, pelas
provações, para ver se estamos dispostos a perseverar.30

Lutero destaca que o Deus gracioso que usa símiles da natureza para descrever o
pecado e a morte do ser humano, como sua consequência, ao dizer: “Tu reduzes o homem ao
pó – aK'_D:-d[; vAna/â bveäT' – ... de madrugada viceja e floresce; á tarde murcha e seca” (Sl
90.3,6) é o mesmo Deus que diz: “Desfaço as tuas transgressões como a névoa -
^y[,êv'P. ‘b['k' ytiyxiÛm' - e os teus pecados como uma nuvem; torna-te para mim, pois eu te remi”
(Is 44.22). Lutero diz que esse texto é muito bonito! “Lembre-se do Deus que varre suas

28
LW 1: 8.
29
LW 18: 44.
30
LW 17: 127.
14

transgressões”. Isso é dito em oposição aos ídolos. É como se Ele estivesse dizendo: Os ídolos
não podem perdoar pecados; pelo contrário, eles fazem seus devotos cansados. Portanto, é
claro: nenhum trabalho, nenhum culto e religião remove o pecado. Só eu faço isso e varro-o
como uma nuvem. A comparação é tirada do sol. Assim como o sol absorve as nuvens no céu
como a neve, o sol nascente purifica a terra envolta em névoa. Mesmo assim varro o pecado
para longe. Aqui Cristo é retratado em Sua própria atividade. Lá devemos olhar para Ele
como o Eterno Sumo Sacerdote, que deve matar todos os pecados do mundo inteiro. Ele não é
um juiz como os papistas o fazem ser. Meu negócio é eliminar os pecados, assim como é o
negócio do sol varrer a nuvem e a neblina. Você vê a eficácia do sol, quão poderosamente,
não imediatamente, mas quando pouco a pouco, engole as nuvens. Assim, Deus todos os dias
engole a nuvem em nós, para que dia após dia nós andemos em uma fé mais forte. A fé é a luz
do coração e a obra do Espírito Santo, que é ativo na conduta e edificação diárias. É da conta
de Cristo varrer pecados como nuvem e névoa.31

Usando a símile dos pontos cardeais, Deus diz, através do salmista Davi: “Quanto
dista o Oriente do Ocidente - br"_[]M;(mi( xr"z>miâ qxoår>Ki - , assim afasta de nós as nossas
transgressões” (Sl 103.12). O mesmo conceito de remover pecados e lança-los para longe,
está registrado no livro do profeta Miquéias 7.18,19: “Quem, ó Deus, é semelhante a ti, que
perdoas a iniquidade e te esqueces da transgressão do restante da tua herança? O
SENHOR não retém a sua ira para sempre, porque tem prazer na misericórdia. Tornará a
ter compaixão de nós; pisará aos pés as nossas iniquidades, e lançará todos os nossos
pecados nas profundezas do mar” - ~t'(waJox;-lK' ~y"ß tAlïcm
u .Bi %yli²v.t;w> - Lutero comenta esse
texto, dizendo que Deus colocará nossos pecados longe de nós para que eles nunca mais
incomodem nossa consciência. Ele nos dará paz de consciência e uma consciência muito livre,
pois, de fato, a paz segue o perdão dos pecados - uma paz onde o coração sente a doçura da
bondade divina, agora que seu pecado foi perdoado.32

O salmo 22 e Isaías 53 encerram, por hora, uma série interminável de comentários de


Lutero sobre o amor de Deus que perdoa o ser humano e o ama. O Salmo 22 traz a figura do
verme - h['leAT – , quando o Filho de Deus, Jesus Cristo, torna-se um verme para redimir o
ser humano. Ele vence a morte e destrói os inimigos dos seres humanos. Lutero comenta,
dizendo que Ele se degrada tão profundamente e se torna um homem sim, até se degrada
abaixo de todos os homens, como está escrito no Salmo 22: "Eu sou verme e não homem,

31
LW 17: 81.
32
LW 18: 179.
15

desprezado pelos homens e desprezado pelo povo”. Em tal fraqueza física e pobreza, ele ataca
o inimigo, se deixa vestir da cruz e é morto, e por sua morte na cruz, ele destrói o inimigo e o
vingador.33

Como um verme na cruz pode destruir a morte? Kenneth Hagen diz que é preciso
examinar a literatura cristã. Ele cita alguns exemplos, ao dizer Clemente usa a figura do Filho
como um verme para descrever a humilhação de Cristo e, depois, a sua ressurreição. Em
Orígenes, o verme figura a humanidade de Cristo. Em Cirilo de Jerusalém, a nova vida vem
do verme. Em Gregório de Nissa, o verme é retratado da seguinte maneira: Ele é como a isca
que atrai um peixe guloso. Segundo ele, a carne de Cristo é a isca. A divindade de Cristo é o
gancho. Lutero toma essa noção de Gregório de como Deus toma um anzol afiado, coloca
uma isca / verme e jogua-a no mar. O verme é a humanidade de Cristo, o gancho é a
divindade. O diabo diz: "não devo engolir a pequena isca?" Ele não viu o gancho.34 Martinho
Lutero comenta, dizendo que a divindade de Cristo que estava escondido sob o verme
devorou o diabo. 35

A respeito do Servo Sofredor de Isaías 53, Lutero fala do sacrifício vicário do


Salvador Jesus e diz que se Cristo carrega minhas iniquidades, não preciso carrega-las.36 John
Osvalt explana esse assunto, ao dizer que Jesus sofreu, nós, porém, é que pecamos (...) ele
carregou as nossas enfermidades ... nós, porém, o consideramos ferido. Nesta ênfase
recorrente, o profeta comunica o perene abalo dos que se apoiam em sua própria capacidade
de realizar as atividades de suas vidas quando descobrem que o que entendiam ser as misérias
bem merecidas de outro, na realidade eram suas – quando descobrem que necessitavam de um
Salvador. 37

O sofrimento do Servo de YAHWEH precisa ser entendido no contexto Oriental,


onde se acreditava que o sofrimento sempre era em consequência de um pecado que a pessoa
cometeu. No entanto, o Servo de YAHWEH está sofrendo por culpa alheia, em virtude dos
nossos pecados. Keil e Delitzsch comentam, dizendo que Jesus não entrou na comunhão de
nossos sofrimentos apenas, mas que ele tomou sobre si os sofrimentos que teríamos e

33
HAGEN, Kenneth. Luther on atonement. Fort Waye: Concordia Theological Quarterly. Vol. 61, n.4, p.269.
34
HAGEN, Kenneth. Luther on atonement. Fort Waye: Concordia Theological Quarterly. Vol. 61, n.4, p.270.
35
Idem.
36
LW 17: 158.
37
OSVALT, John N. Isaías. Volume 2 - Capítulos 40 a 66. Tr. Valter Graciano Martins. São Paulo: Cultura
Cristã, 2011, p. 470.
16

merecíamos suportar; ele portanto não apenas os levou sobre si, mas os carregou em sua
própria pessoa, para nos livrar desses castigos.38

Martinho Lutero comenta esse texto, dizendo que o propósito do sofrimento de


Cristo não foi para si mesmo e para os seus próprios pecados, mas para os nossos pecados e
pesares. Ele suportou o que deveríamos ter sofrido. Aqui você vê a fonte de onde São Paulo
desenha inúmeras correntes do sofrimento e méritos de Cristo, e ele condena todas as
religiões, méritos e esforços em todo o mundo através dos quais os homens buscam a
salvação. Note que há inúmeras seitas que até hoje estão trabalhando para obter a salvação.
Mas aqui o profeta diz: “Ele fez tudo por nós”. É difícil para a carne repudiar todos os seus
recursos, afastar-se de si mesma e ser transportada para Cristo. É para nós, que não
merecemos nada, que não tenhamos em consideração nossos méritos, mas para simplesmente
nos apegarmos à Palavra entre o céu e a terra, mesmo que não a sintamos. A menos que
tenhamos sido instruídos por Deus, não entenderemos isso. Portanto, eu me delicio neste texto
como se fosse um texto do Novo Testamento. Este novo ensinamento, que destrói a justiça da
Lei, parece absurdo para os judeus. Por essa razão, os apóstolos precisavam das Escrituras.
Certamente Ele suportou nossas dores. Seu sofrimento foi nada mais que o nosso pecado.
Estas palavras, NOSSA, POR NÓS, PARA NÓS, devem ser escritas em letras de ouro. Quem
não acredita nisso não é cristão. No entanto, nós o estimamos. Nós pensamos que ele estava
sofrendo por causa do Seu próprio pecado, por assim dizer. Aos olhos do mundo e da carne,
Cristo não sofre por nós, visto que Ele parecia ter merecido a Si mesmo. Isto é o que o profeta
diz aqui também, que Ele foi julgado culpado aos olhos do mundo. É, portanto, difícil
acreditar que tal sofreu por nós. A lei é que todos morrem por seus próprios pecados. A razão
natural, e também divina, argumenta que todos devem suportar nosso próprio pecado. No
entanto, o que Cristo faz é o contrário de toda lei e costume. Portanto, a razão infere que ele
foi ferido por Deus por amor a si mesmo. Portanto, o profeta nos leva tão fervorosamente
além de toda a justiça e nossa capacidade racional e nos confronta com o sofrimento de Cristo
para nos impressionar que tudo o que Cristo tem é meu. Esta é a pregação de todo o
Evangelho, para nos mostrar que Cristo sofreu por nossa causa, contrariando a lei.39

38
KEIL, C.F.; DELITZSCH, F. Commentary on The Old Testament. v. 7. Grand Rapids/ Cambridge: William
B. Eerdmans Publishing Company, 1991, p.316.
39
OSWALD, Hilton C. Editor. Luther Works. Lectures on Isaiah. Saint Louis: Concordia Publishing House,
1972. vol 17, p 152.
17

APLICAÇÃO

Quando, em nome do SENHOR DEUS, o pregador denuncia o pecado do povo


de Deus, como quando faz o convite para a Confissão dos Pecados no culto público, não
está tratando de uma vaga ameaça do castigo de Deus; mas, da realidade da ira do
SENHOR, que virá com tamanha destruição que ninguém conseguirá pará-la. Então, a
mensagem do SENHOR Deus é clara: Arrepende-te!40

Quando o pregador proclama a Palavra do SENHOR Deus como seu Arauto


enviado, e proclama a Lei, ele está anunciando a Palavra do Deus da Ira, cuja Palavra
revela o pecado e declara a ira vindoura de Deus por causa do pecado. Lutero ressalta
que o pecado pode resultar em apenas uma coisa: Juízo.41

A descrição mais eloquente do que o nosso pecado é capaz de produzir é feita,


de acordo com Lutero, quando Jesus Cristo, nosso Salvador, está suportando nossos
pecados sobre si. Quando se minimiza o pecado e as suas consequências, coisa comum
nos tempos atuais, está-se negando a realidade do pecado e rejeitando a necessidade do
Salvador.42 Em tempos de relativismo e do politicamente correto, é tentação cada vez
mais atraente ao pregador relativizar e diminuir o peso do pecado e seus nefastos
desdobramentos, esquecendo-se que a consequência mais direta disso é a diminuição de
Cristo e da Sua obra da Redenção.

Uma vez que o pregador proclamou a Lei em todo o seu rigor – Lei que revela
a ira de Deus que destrói e mata, mesmo assim, o SENHOR Deus é gracioso e perdoa os
pecados, em Cristo Jesus. Quando, no Antigo Testamento, Deus mostra o seu amor,
deixando um remanescente, deixa claro que, mesmo que as circunstâncias digam o
contrário, ele não nos deixa sem esperança.43

40
LW 18:60.
41
LW 19.68.
42
LW 17:152.
43
LW 17:102.
18

A proclamação do Evangelho sempre lembrará que o Deus de amor é o nosso


Pastor. Lutero diz que essa descrição nos consola porque temos no SENHOR Deus o
nosso refúgio, força, rocha, fortaleza, escudo, esperança, conforto, salvador. É
exatamente assim que as Escrituras retratam o Deus de Amor. Nesta palavra, segundo
Lutero, estão reunidas todas as coisas boas e consoladoras que louvamos em Deus. 44

Anunciar o amor de Deus aos que sofrem angústia e miséria significa dizer
que, embora o filho de Deus se sinta abandonado e esquecido por Deus, ele conhece a
promessa de Deus e se apega a ela.

Face ao pecado que assola as consciências e deixa estéril a vida e a alma, é


maravilhoso ouvir Jesus dizer: “Meu negócio é eliminar o pecado, assim como o sol
varre a neblina”.45 Lutero ainda nos lembra que Deus coloca os nossos pecados longe
de nós para que nunca mais incomodem nossa consciência.46 Ele nos dará paz de
consciência – uma paz onde o nosso coração sente a doçura da bondade do Deus de
Amor.

44
LW 17:12.
45
LW 17:81.
46
LW 18.179.
19

CONCLUSÃO

O luteranismo é conhecido por, depois da ênfase na doutrina da justificação pela fé,


considerar a correta distinção Lei X Evangelho como sua pedra de toque. Lutero, C.W.F.
Walther e outros teólogos renomados trouxeram à tona a necessidade de distinguir
corretamente Lei X Evangelho para proclamar assim todo o desígnio de Deus – colocar
pessoas diante do Deus da Ira, que ameaça, pune e castiga o pecado e, proclamar o perdão
gracioso em Cristo, que atribui a fé como justiça, cancela a culpa, apaga os erros, conforta o
coração, alivia a consciência e areja a vida, tornando-a fértil, alegre, pujante.

Será mesmo que temos cuidado em afiar nossa teologia, usando os dois lados desta
lima? Temos nós entendido as Escrituras Sagradas, usando a correta distinção Lei X
Evangelho como uma ferramenta poderosa na nossa hermenêutica? Não temos sido nós
afligidos por outras leituras das Escrituras, tendo como base pressupostos que nos distanciam
do seu conteúdo cristalino?

Qual foi a última vez que você, assentado no banco da sua congregação, se sentiu
acusado pela pregação da Lei, ameaçado pelos seus castigos e, por outro lado, confortado,
perdoado, consolado, pelo Evangelho?

Qual foi a última vez que você, pregador, tomou o texto da perícope para a pregação
do fim de semana e, além de uma exegese bem fundamentada, se ateve na dificílima tarefa de
aplicar a pregação Lei X Evangelho para aqueles que o Salvador lhe confiou pastorear?

Precisamos sempre de novo abrir as Escrituras Sagradas para ouvir Deus falar
conosco. O Deus de Ira, cujas ameaças fazem estremecer o nosso coração, e o Deus de Amor,
cujas promessas confortam e animam nossa vida, em Cristo Jesus e na sua Obra da Redenção.

Que o bom Deus nos empurre sempre para esse exercício proveitoso.

Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Amém!


20

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