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Memória e Preservação
Daryle Williams

o patrimônio em processo: trajetória da polftica federal


de preservação no Brasil
de Maria Cecília Londres Fonseca.
Rio de Janeiro, Editora da UFRJ/IPHAN, 1997.

Desde o final da década de 1970, nos Estados Unidos e nos países da


Europa, vários representantes dos mundos universitário e político, bem como
das associações civis, têm-se juntado aos técnicos da área de patrimõnio, artistas
plásticos, críticos de arte e antiquários amadores para discutir os significados
políticos e culturais da preservação do patrimônio cultural. Nos países que gozam
de uma longa história de preservação cultural, as discussões contemporâneas
sobre patrimõnio cultural giram em tomo de questões como a ampliação da
definição de bem patrimonial, a manutenção de dotações orçamentárias gover­
namentais e a pluralização da participação social na prática de preservação.
Poucos desconhecem a importância de uma política racionalizada de preservação
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mas muitos debatem a economia simbólica e material da política de preservar.
Na América Latina e em outras regiões onde um complexo legal-burocrático-so­
cial de patrimõnio é muito mais recente, uma política articulada de preservação

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é reconhecida como um dever do Estado e um direito da sociedade civil, mas os


princípios de base, as regras de patrocínio e a participação social na preservação
não têm atraído o interesse consistente de mais que um número restrito de
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especialistas na área cultural. Aos poucos, esta paisagem cultural está mudando,
na medida em que a questão do patrimônio cultural latino-americano e sua
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preserva ão entram na esfera pública e tomam-se lugares de memória acessíveis ao
público.
No Brasil, enquanto o patrimônio toma-se objeto das atenções dos
intelectuais, de organizaçôes internacionais como a Unesco e o World Wildlife
Fund, de algumas associações civis, e (às vezes) dos partidos políticos, notamos
o surgimento de estudos sobre o papel do Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (IPHAN) na trajetória preservacionista do país. Desde a
passagem do 50° aniversário de fundação do Serviço do Patrimônio Histórico e
Artistico Nacional (precursor do atual IPHAN) em 1987, têm aparecido cada vez


mais trabalhos sobre a história do IPHAN. Guardião legal do patrimônio
histórico e artístico nacional desde 1937, o IPHAN é analisado por seu papel na
construção do patrimônio nacional, tomando-se sujeito e objeto de estudos sobre
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preservação. Nesta literatura, notamos que o próprio IPHAN procura dar conta
dos altos e baixos da sua trajetória numa série de pesquisas internas, publicações
S
e depoimentos orais realizados pelos funcionários da repartição. Neste contexto,
aparece o trabalho de Maria Cecília Londres Fonseca, socióloga e assessora do
ministro da Cultura que tem participado na elaboração do raciocínio conceitual
e do funcionamento do IPHAN por duas décadas.
O trabalho de Fonseca é, nas suas bases, uma história institucional do
IPHAN que enfoca dois momentos-chaves na história da repartição: afase heróica,
que abrange as três décadas seguintes à criação do SPHAN, e afase modema, que
começou na década de 1970. Ao destacar duas fases cronológicas, Fonseca
constrói sua análise institucional ao redor das gestões de Rodrigo Melo Franco
de Andrade, di�etor-fundador do SPHAN entre 1937 e 1967, e de Aloísio
Magalhães, diretor-fundador do Centro Nacional de Referência Cultural e dire­
tor da Fundação Nacional Pró-Memória de 1980 até sua morte em 1982. En­
quanto traça a história instituicional-diretorial da repartição, a autora também
oferece uma reflexão metodológica sobre o potencial- ainda mal-realizado - de
se tomar a preservação de patrimônio um fórum de cidadania culturallatu sen.<u.
Aqui, Fonseca analisa as ramificações socioculturais das tensões entre uma
política tradicional de preservaçao dirigida por profissionais que privilegiam o
patrimônio chamado de "pedra e cal" e uma política que seja mais plural, flexível
e voltada para a grande heterogeneidade sociocultural do país. Sobretudo, Fon­
seca não trata da história da política federal de preservação no Brasil como um
reduto especializado da administração pública, mas como um lugar privilegiado

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de política pública onde o Estado, os intelectuais e a sociedade constroem os


símbolos e meios da comunidade nacional.
O tratamento das origens da preservação federal é bastante convencional,
especialmente na análise da gestão de Rodrigo M. R de Andrade. Fonseca delineia
as ligações íntimas entre Andrade e várias figuras do modernismo (destacam-se
Mário de Andrade e Lúcio Costa) e o papel destas na institucionalização da
política de tombamento. Analisa o anteprojeto de preservação redigido por Mário
de Andrade e a sua polêmica concretização no Decreto-Lei 25, de 30 de novembro
de 1937. Na avaliação dos registros originais nos quatro Livros de Tombo, a autora
se concentra nos preceitos estéticos e preconceitos cronológicos dos modernistas
para explicar a forte tendência do jovem SPHAN a prestigiar os monumentos
arquitetônicos da Colônia (especialmente a arquitetura barroca mineira) e do
modernismo, e a desprezar o estilo eclético e a arte popular, bem como o
patrimônio arqueológico e paisagístico. Em contrapartida às duras críticas de
elitismo feitas à política original de tombamento a partir dos anos 70, Fonseca
argumenta que os processos originais de tombamento indicam que o SPHAN
cumpria a tarefa de articular uma política de administração pública e um saber
histórico baseado em pesquisas científicas que eram inéditos no Brasil.
Na análise da fase heróica, a autora segue uma periodização consagrada
pelo próprio IPHAN que divide as origens da preservação entre a falta de
preservação pré-1936, os feitos dos anos 1930 e 1940 sob a direção do Rodrigo
Melo Franco de Andrade, e a decadência dos anos 60 até o início dos anos 70. A
utilização desta periodização traz alguns problemas para o argumento do trabalho
porque tende a ofuscar a presença de outros atores nos primórdios da preservação,
como a Família Imperial, o Museu Nacional e o Museu Histórico Nacional, os
institutos histórico-geográficos e os filantropos particulares que propuseram
políticas alternativas de defmição e preservação do patrimônio nacional. Embora
a história oficial do IPHAN geralmente desconheça a presença de outros atores
na política de preservação, os críticos desta história têm a obrigação de tomar
visível o que a memória oficial esquece. O uso da história oficial do IPHAN é
ainda mais complicado quando consideramos que o IPHAN se memorializa
como nunca se tendo rendido às políticas autoritárias do Estado Novo, embora
a instituição SÓ lograsse seus êxitos maiores graças ao apoio do Estado Novo, que
se congratulou por ser defensor do patrimônio histórico e artístico nacional.
Nestes pontos, Fonseca podia ter aprofundado mais os subtextos de memória que
percorrem a fase heróica.
Contudo, é importante enfatizar que o tratamento analítico do Conselho
Consultivo dos anos 30 e 40 é inédito. A análise é central para uma avaliação da
composição social dos membros e da atuação programática do Conselho numa
época em que o número de tombamentos era elevado. A análise do Conselho

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também é importante por explicar como a política de tombamento foi elaborada


por um círculo limitado de técnicos e arquitetos que tendiam a se afastar do
aparato estatal do Estado Novo, mas acabavam se afastando da sociedade civil.
Fonseca argumenta que este isolamento, mesmo sendo socialmente elitista, deixa
o SPHAN manter-se acima da política repressiva do Estado Novo. Isto parece
certo. Mas também é importante lembrar que a auto-autarquização do IPHAN
se integrava às tendências antidemocráticas do Estado Novo, e tendia a reforçar
uma política fechada e antipluralista de preservação patrimonial que permane­
ceria após a queda do Estado Novo.
No momento em que passa a considerar a fase moderna, Fonseca é
inovadora ao esclarecer a estruturação e o funcionamento da política de preser­
vação a partir da aposentaria de Rodrigo M. F. de Andrade em 1967. Focalizando
a carreira administrativa de Aloísio Magalhães, a autora descreve cuidadosa­
mente a crise da preservação heróica da pedra e cal, relacionando-a aos apelos para
uma renovação do preservacionismo federal feitos por Magalhães e outros. Ao
lado das propostas de reforma que surgiram dentro do IPHAN nos anos 70,
Fonseca aponta as reivindicações dos governos estaduais e municipais, das
organizações internacionais como a Unesco, dos habitantes de centros históricos
tombados e de alguns setores da sociedade civil, de ampliação dos conceitos e de
administração do patrimônio. Ao analisar as novas tendências na política de
preservação, Fonseca escreve uma história fascinante do Centro Nacional de
Referência Cultural , fundado em 1975, e de seu lugar no reposicionamento
ideológico-administrativo da preservação nos anos 70 e 80, quando o aparato
institucional de instituições culturais sofreu várias mudanças.
Ao longo de sua consideração sobre a fase moderna da preservação, a
autora mapeia o vão entre os conceitos originais de tombamento e as iniciativas
democratizadoras defendidas por Magalhães e outros integrantes do CNCR.
Aqui, destaca-se a discussão da campanha montada pelo CNCR para criar uma
base de dados de referência cultural que abrangeria uma amostra ampla da
produção cultural brasileira informada por uma ótica antropológica e emográfica
da diversidade da cultura nacional. Esta discussão serve para uma comparação
esclarecedora entre as propostas reformadoras e a ótica mais tradicional do bem
cultural, que continuava a lidar com o patrimônio monumental. Junto com esta
análise das tensões entre visões de preservação antigas e novas, a autora localiza
as propostas de Magalhães dentro dos discursos oficiais em prol do nacionalismo
cultural, do desenvolvimento e da abertura política proferidos pelo regime
militar. Segundo Fonseca, o balanço destas propostas era complicado visto que,
embora elas ampliassem as bases do patrimônio cultural, estavam sujeitas a duras
críticas de intelectuais bem como de certos interesses políticos que apontavam
Magalhães e a política oficial da Fundação Nacional Pró-Memória (FNPM) como

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cúmplices do regime autoritário. Estas observações nos levam a considerar que


tanto no caso da política original de preservação desenvolvida durante o Estado
Novo, como da renovação da preservação oficial proposta nos anos 80, o IPHAN
contava com regimes conservadores para elaborar políticas inovadoras de de­
finição cultural.
Fonseca atribui a natureza limitada da expansão da definição de bem
cultural sob as gestões de Magalhães no CNRC e na FNPM aos desentendimentos
entre os proponentes do referenciamento e os defensores do tombamento tradi­
cional. A estes problemas, a autora acrescenta as dificuldades internas do grupo
de referenciamento em anicular uma sólida base político-administrativa dentro
das comunidades, das práticas, e dos locais heterogêneos que referenciava. A
história institucional da fase moderna conclui localizando os novos conceitos de
preservação dentro das redefinições da política cultural promulgadas durante os
governos Figueiredo e Sarney. Fonseca não descarta a hipótese de que muitos dos
planos pluralizadores advogados por Magalhães não alcançaram seus objetivos
porque os proponentes do referenciamento não valorizavam suficientemente os
métodos e os êxitos jurídico-técnicos do patrimônio de pedra e cal. Não obstante,
a autora reserva o penúltimo capítulo para uma análise dos processos de tom­
bamento abertos entre 1970 e 1990, que indica que as propostas de referência e
pluralização acabavam por modificar a política mais tradicional de tombamento,
ampliando o complexo de bens culturais tombados e democratizando as raízes
culturais que ela representava.
Um preceito que subjaz ao longo do texto questiona como uma política
de preservação pode criar oportunidades de incentivar e fortalecer a cidadania.
Descrito por Rodrigo M. F. de Andrade como os documentos de identidade da
nacionalidade, o patrimônio mantém, desde o início da preservação federal, uma
longa associação com a construção da cidadania nacional. A autora parte desta
formulação para discutir o papel da sociedade brasileira na preservação moderna,
buscando os lugares em que interesses civis recorrem ao Estado para defender o
patrimônio e, nesse processo, reivindicam uma agência para a definição dos
símbolos da cultura nacional. A autora sugere que o patrimônio como res publica
é ainda desconhecido por muitos setores da população brasileira - sejam classes
dominantes ou subalternas. Mas também indica como o patrimônio tem surgido
como lugar de memória, possibilitando uma mobilização e uma politização de
interesses sociais na negociação que deve ser valorizada pelo Estado e pela
sociedade.
Quando Fonseca aborda a questão da cidadania cultural, toma um dos
conceitos mais caros da preservação moderna. O que falta na execução da sua
análise da relação entre preservação moderna e cidadania cultural no Brasil é um
comprometimento nítido com a presença da sociedade civil na construção do

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complexo patrimonial nacional. A autora é cuidadosa em citar as reclamações dos


donos de propriedades privadas afetados pelos processos de tombamento e o
impacto dessas queixas no complexo jurídico-econômico de tombamento. Tam­
bém nota várias manifestações da crescente participação de interesses civis na
política de negociar o que vai ser preservado e por quê. Não obstante, as
construções cotidianas de significado e conhecimento geradas em torno do
patrimônio por populações locais que convivem com os bens tombados, por
ruristas que os visitam, por artistas, guias e empresários que vivem deles ainda
são mal explicadas. Na medida em que estes personagens, que constroem seus
próprios significados sobre o patrimônio mas não costumam aparecer nas delibe­
rações do Conselho Consultivo, são mal ouvidos, perdemos pistas importantes
para a compreensão do lugar do patrimônio dentro da cidadania contemporãnea.
Ao que parece, Fonseca poderia ter melhor resgatado o universo de memórias
orais, rituais, comercializações, e narrações que, embora não cheguem a ser
arquivados nos processos oficiais do IPHAN, colocam o patrimônio tombado na
esfera pública e abrem espaço para a participação culrural-política na articulação
dos direitos e deveres da cidadania nacional.
A análise da história institucional da preservação é acrescida de dois
capítulos introdutórios sobre a trajetória ideológica e historiográfica da preser­
vação nos países ocidentais. Além de servir como referência para a comparação
histórica e programática com o caso brasileiro, o argumento desses capítulos
integra-se à conclusão que recapirula a trajetória brasileira, avaliando os probie­
mas a serem enfrentados numa futura elaboração dos sujeitos e objetos do
patrimônio culrural nacional. Enfim, Fonseca valoriza a presença atual de uma
multiplicidade de interesses na política de preservação. Reconhece que nem
todos esses interesses podem (ou devem) ser totalmente dirigidos por uma
instituição federal, mas não desprestigia o potencial do IPHAN em anicular uma
política oficial de preservação baseada, de um lado, na valorização técnica do
patrimônio já tombado, e do outro, na construção de novos significados sociocul­
rurais do patrimônio. Por fim, me parece correta a conclusão da autora sobre o
grande desafio do órgão: promover os plenos direitos culrurais da sociedade
através de e em parceria com uma política estatal de preservação.

Notas conl'(}'/)l!TSil!S in lhe am (1992); Henry


Kammen, Myrtic cords ofmemmy, (1991);
John Bodnar, Remaking America: pub/ic
memory, commemoration, and patriotism in
1. Ver, por exemplo: Richard Bolton, ed., lhe twemieth century (1992); e as reações
Cu/ture wan: documenrs from lhe recenl geradas pela publicação do livro de

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Roben Hewison, The hentage industry: exemplo, Daryle WiUiams, "Ad perpetuam
Britain in a climate of decline (1987). rei memoriam: the Vargas regime and
2. Para uma introdução aos debates atuais Brazil's national historieal patrimony,
sobre o patrimônio culrural na América 1930-1945", Luso-Brazilian Review, 31:2
Latina, ver Nestor Garcia Canc1ini, (1994); José Reginaldo SanlOs Gonçalves,
Políticas cu/turales en Ammca Latina A retórica da perda: os discursos do
(1987) e Culturas híbridas: estratégias para potrimônio cultural no Brasil (1996);
entrar e sair da modernidade (1997); e Regina Abreu, A fabricação do imortal:
William Rowe and Vivian Schelling, memória, história e estratégias de ClJnsagração
Memory & modernity: popular culture in no Brasil (1996); eAnois do Museu

Latin Amenca (1991). Hist6rico Nacional (1997).


3. Para uma introdução ao conceito 5. Publicações imponailtes do IPHAN
teórico de lugares de memória, ver Pierre incluem os depoimentos orais dos
Nora, Lieux de mem6rie (1984). ex-funcionários (1987), Ideólogos do
4. Esta literatura inclui estudos sobre património cultural (1991),A invenção
instiruições antigas posteriormente do património (1995), e a Revista do
subordinadas ao IPHAN atual. Ver, por Patrimônio.

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