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CRÔNICA

Aluna: Michelli de Souza Possmozer

Pelo direito de passar por esta vida sem ter de “incomodar”

A educação, no papel, é um direito de todos os cidadãos brasileiros, está lá na


Constituição Federal de 88. Mas e na realidade? Infelizmente, o índice de
analfabetismo de nosso país mostra o contrário. De acordo com dados do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ainda existem cerca de 11,3
milhões de analfabetos no Brasil.

Quando olho para esse dado e penso na importância de saber ler e escrever no
mundo contemporâneo, eu lembro da minha avó. Dona Celina, que infelizmente
não está mais entre nós, só estudou até a segunda série do primeiro grau, o que
chamamos hoje de 3º ano do ensino fundamental. Vovó, que sempre foi da
igreja, só sabia ler a bíblia, mas na hora de ler outras coisas e até para assinar
o próprio nome, ela sentia dificuldades. Até que, na minha adolescência, vovó
me pediu para ensiná-la a ler e a escrever. Na época, ela disse para mim que
queria ir aos lugares sem precisar “incomodar” as pessoas.

No dia seguinte, comprei um caderno de caligrafia para a vovó e comecei a dar


aulas para ela. Meu avô, que se dizia um pouco mais letrado, tinha estudado até
a quarta série, o que é hoje o 5º ano do ensino fundamental. Vovô também lia a
bíblia e já sabia assinar o próprio nome, andava para cima e para baixo de
ônibus, digamos que era um pouco mais “safo” do que vovó. Mas quando minha
avó começou a ler outras coisas, aprender a escrever de letra cursiva e a formar
frases, vovô se interessou e quis fazer “as aulas de ler e escrever” com a neta,
duas vezes na semana. Comprei um caderno de caligrafia também para o vovô.
Vovó e vovô foram, então, os primeiros dois alunos que tive na vida.

Essas aulinhas caseiras, que não foram muitas, mudaram a vida dos meus avós.
Eles começaram a se sentir mais felizes, importantes, porque agora podiam ler
as cartas que chegavam pelo correio sem precisar pedir ajuda aos filhos e aos
netos. A partir daquela época, eles começaram a sair mais sozinhos, afinal,
podiam ir para o ponto de ônibus sem ter de “incomodar”, pois já conseguiam ler
o letreiro dos coletivos. A partir dessa pequena experiência com meus avós,
percebi o quanto a alfabetização é importante para o exercício da cidadania.
Saber ler e escrever não significa apenas ser uma pessoa informada e capaz de
se comunicar adequadamente. É ir e vir sem ter de incomodar. É não depender
dos filhos e dos netos para saber o que diz a carta que chegou do correio. É ser
capaz de ler um documento e, ao final, assinar o próprio nome – em letra cursiva
– porque você, de fato, está ciente do que está assinando.

Talvez, a minha paixão pelo mundo das letras tenha nascido daí, dessa pequena
experiência de letramento com meus avós. Sinto muitas saudades da vovó e
tenho muito orgulho de saber que ela não passou por este mundo sem saber ler
e escrever. E, o que para ela parecia mais importante: sem ter que “incomodar”
ninguém.

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