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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando


por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo
nível."
Connie Zwe ig e Je r e miah Abr ams ( Or gs.)

AO ENCONTRO DA SOM B RA

O pote nc ia l oc ulto do la do e sc ur o da na tur e za hum a na

Traduç ão

MERLE SCOSS

EDI TORA CULTRI X

Sã o P a ulo

O m a l do nosso te m po é te r m os pe r dido a c onsc iê nc ia do m a l.

Krisk namurti

Algo que oc ultá va m os nos e nf r a que c ia , a té pe r c e be r m os que e sse


a lgo é r a m os nós m e sm os.

Robe rt Frost

Ah, se f osse a ssim tã o sim ple s! Se houve sse pe ssoa s m á s e m um


luga r, insidiosa m e nte c om e te ndo m á s a ç õe s, e se nos ba sta sse se pa r á -
la s do r e sto de nós e de str uí- la s. Ma s a linha que divide o be m do m a l
a tr a ve ssa o c or a ç ã o de todo se r hum a no. E que m se dispor ia a de str uir
um a pa r te do se u pr ópr io c or a ç ã o?
Ale x ande r Solzhe nitsy n

Aquilo que nã o f a ze m os a f lor a r à c onsc iê nc ia a pa r e c e e m nossa s


vida s c om de stino.

C.G.J ung

Agradecimentos

Nossos m a is pr of undos a gr a de c im e ntos a os poe ta s e a r tista s a que m


se guim os e m nossa e xplor a ç ã o do la do e sc ur o da a lm a , e spe c ia lm e nte
à que le s c uj os pe nsa m e ntos sobr e a som br a tive r a m um e f e ito tã o
pr of undo sobr e e ste tr a ba lho e , c om o r e sulta do, sobr e nossa s vida s: C.
G. Jung, John A. Sa nf or d, Adolf Gugge nbühl- Cr a ig, Ma r ie - Louise von
Fr a nz e Robe r t Bly . P e lo de dic a do a poio e pe la c r ia tiva a ssistê nc ia ,
a gr a de c e m os a Je r e m y Ta r c he r, Ba r ba r a Shinde ll. Ha nk Stine , Da nie l
Ma lvin, P a ul Mur phy , Susa n Sha nkin, Susa n De ixle r, Lisa Cha dwic k,
Ste ve Wolf , Joc l Covitz, Tom Ra ute nbe rg, Bob Ste in, Su- za nne Wa gne r,
Linda Nova c k, Mic ha e l e Ka f hr y n Ja lim a n, P e te r Le a vitt, De e na
Me tzge r, Ma r sha de la O e o c ír c ulo lite r á r io f e m inino, Bill e Vivie nne
Howe , Br uc e Bur m a n, Andr e w Sc hultz e a os f unc ioná r ios da s
bibliote c a s do I nstituto C. G. Jung de Los Ange le s e de Sa n Fr a nc isc o.

A Ja ne , Ma r ia n, Susa n e Apr il, "ir m ã s na som br a " de Connie ; gr a tidã o


e te r na à sa be dor ia dos nossos pa is; a os pa c ie nte s f ilhos de Je r e m ia h,
Ra y be a n e P ito.

UM A NOTA SOBRE A LI NGUAGEM

Re c onhe c e m os que nosso idiom a c r ia , a ssim c om o r e f le te , a titude s


que e stã o im pr e gna da s na nossa c ultur a . P or isso nos de sc ulpa m os
pe lo uso a r c a ic o da pa la vr a home m que , qua ndo lida hoj e , pode soa r
de sa gr a dá ve l e a ntiqua da . Nos tr e c hos a qui r e pr oduzidos, home m
de signa o se r hum a no e m ge r a l, a pe ssoa hipoté tic a de que m se f a la .
Ainda nã o f oi e nc ontr a da , inf e lizm e nte , um a pa la vr a m e lhor.
Espe r a m os que e la nã o ta r de a surgir.

Connie Zwe ig e Je r e m ia h Abr a m s,

Orga niza dor e s

Pr ólogo

CONNIE ZWEIG
Na m e ia - ida de , de f r onte i- m e c om m e us de m ônios. Muita s c oisa s que
e u c onside r a va bê nç ã os tor na r a m - se m a ldiç õe s. A la rga e str a da
e str e itou- se , a luz e sc ur e c e u. E na s tr e va s a sa nta e m m im , tã o be m
c uida da e tr a ta da , e nc ontr ou a pe c a dor a .

Me u f a sc ínio pe la Luz, m e u vivo otim ism o e m r e la ç ã o a os r e sulta dos,


m inha f é im plíc ita e m r e la ç ã o a os outr os, m e u c om pr om isso c om a
m e dita ç ã o e c om um c a m inho de ilum ina ç ã o — tudo isso de ixou de
se r um a gr a ç a sa lva dor a e tor nou- se um a sutil m a ldiç ã o, um
e ntr a nha do há bito de pe nsa r e se ntir que pa r e c ia tr a ze r- m e f a c e a
f a c e c om o se u oposto, c om o sof r im e nto de ide a is f r a c a ssa dos, c om
o tor m e nto da m inha inge nuida de , c om o la do e sc ur o de De us.
Na que la é poc a , tive e ste sonho c om a m inha som br a : Estou numa
praia c om me u namorado de infânc ia. As pe ssoas e stão nadando no
mar. Um grande tubarão ne gro surge . Todos se nte m me do. Uma c rianç a
de sapare c e . As pe ssoas e ntram e m pânic o. M e u namorado que r se guir
o tubarão, uma c riatura mític a. Ele não c ompre e nde o pe rigo humano.

De algum modo, faç o c ontato c om o tubarão — e de sc ubro que é de


plástic o. Enfio o de do e o J uro — e le murc ha. M e u namorado se
e nfure c e , c omo se e u tiv e sse matado De us. Ele dá mais v alor ao pe ix e
que à v ida humana. Caminhando pe la praia, e le me de ix a. Vague io,
e ntro no bosque , onde um c obe rtor azul e stá à e spe ra.

Ana lisa ndo e sse sonho, pe r c e bi que e u nunc a ha via le va do a sé r io a


som br a . Eu a c r e dita va , c om c e r ta a r r ogâ nc ia e spir itua l, que um a vida
inte r ior pr of unda e c om pr om e tida m e pr ote ge r ia c ontr a o sof r im e nto
hum a no, que e u pode r ia de a lgum m odo e sva zia r o pode r da som br a
c om m inha s pr á tic a s e c r e nç a s m e ta f ísic a s. Eu a ssum ia , na ve r da de ,
que podia gove r na r a som br a — a ssim c om o gove r na va m e us
se ntim e ntos ou a m inha die ta — a tr a vé s da disc iplina do a utoc ontr ole .

Ma s o la do e sc ur o a pa r e c e sob m uitos disf a r c e s. Me u c onf r onto c om


e le , na m e ia - ida de , f oi c hoc a nte e de va sta dor, um a te r r íve l de silusã o.
Antiga s e íntim a s a m iza de s pa r e c ia m se de bilita r e r om pe r, pr iva da s
da vita lida de e da e la stic ida de . Me us pontos f or te s c om e ç a r a m a se
f a ze r se ntir c om o f r a que za s, obstr uindo o c r e sc im e nto e m ve z de
pr om ovê - lo. Ao m e sm o te m po, insuspe ita da s a ptidõe s a dor m e c ida s
de spe r ta r a m e vie r a m à supe r f íc ie , de str uindo a a utoim a ge m c om a
qua l e u ha via m e a c ostum a do.

Me u â nim o vigor oso e m e u te m pe r a m e nto e quilibr a do de r a m luga r a


um a pr of unda que da no va le do de se spe r o. Aos qua r e nta a nos, c a í e m
de pr e ssã o e vivi na quilo que He r m a nn He sse c ha m ou de "inf e r no de
la m a ". E a de pr e ssã o a lte r na va - se c om um a f úr ia de sc onhe c ida que
se de se nc a de a va de ntr o de m im , de ixa ndo- m e va zia e e nve rgonha da ,
c om o se tive sse sido te m por a r ia m e nte possuída por a lgum a r c a ic o
de us da ir a .

Minha busc a por signif ic a do, que a nte s m e ha via le va do a um


que stiona m e nto inte nsivo, à psic ote r a pia e a pr á tic a da m e dita ç ã o,
r e ssurgiu m a is f or te do que nunc a . Minha a utossuf ic iê nc ia e m oc iona l
e m inha c a pa c ida de c uida dosa m e nte c ultiva da de vive r se m de pe nde r
dos hom e ns de r a m luga r a um a dolor osa vulne r a bilida de . Súbito, e u
e r a um a d a q u e l a s m ulhe r e s obc e c a da s c om os r e la c iona m e ntos
íntim os.

Minha vida pa r e c ia de str oç a da . Tudo a quilo que e u ha via "c onhe c ido"
c om o um a r e a lida de br a via , de sm a nc ha va - se a gor a c om o um tigr e de
pa pe l a o ve nto. Eu m e se ntia c om o se e stive sse m e tr a nsf or m a ndo
na quilo que e u nã o e r a , Tudo o que e u tr a ba lha r a pa r a de se nvolve r e
luta r a pa r a c r ia r se de sf a zia . O f io da m inha vida e r a puxa do; a
histór ia se de se nr e da va . E a que le s que e u de spr e za r a e de sde nha r a
na sc ia m e m m im — c om o um a outr a vida — m a s, a inda a ssim , a
m inha vida , a sua im a ge m no e spe lho, o se u gê m e o invisíve l.

E e ntã o c om pr e e ndi por que a lgum a s pe ssoa s e nlouque c e m , por que


a lgum a s pe ssoa s vive m tór r idos c a sos a m or osos a pe sa r de um f or te
la ç o m a tr im onia l, por que a lgum a s pe ssoa s e m boa situa ç ã o
f ina nc e ir a c om e ç a m a r ouba r ou a e nte sour a r dinhe ir o ou a e sba nj á -
lo. E e nte ndi por que Goe the disse que j a m a is ouvir a f a la r de um
c r im e que e le pr ópr io nã o f osse c a pa z de c om e te r. Eu e r a c a pa z de
tudo.

Le m br e i de um a histór ia que le r a e m a lgum luga r, na qua l um j uiz


olha de ntr o dos olhos do a ssa ssino e r e c onhe c e o im pulso hom ic ida na
sua pr ópr ia a lm a . No insta nte se guinte , e le volta a si m e sm o, volta a
se r um j uiz e c onde na o a ssa ssino à m or te .

Me u e u e sc ur o e hom ic ida ta m bé m tinha se r e ve la do, m e sm o que por


um br e ve insta nte . Ma s e m ve z de c onde ná - lo à m or te , ba nindo- o
nova m e nte a os dom ínios invisíve is, te nte i va ga r osa m e nte r e dir e c iona r
m inha j or na da pa r a pode r e nf r e ntá - lo f a c e a f a c e . De pois de um
pe r íodo de gr a nde de se spe r o, e stou c om e ç a ndo a pe r c e be r um se ntido
m a is a br a nge nte do m e u e u, um a e xpa nsã o da m inha na tur e za e um a
c one xã o m a is pr of unda c om a hum a nida de .

Minha m ã e c om e ntou, há uns vinte a nos, no a uge da m inha a r r ogâ nc ia


e spir itua l, que e u c onse guia a m a r a hum a nida de m a s nã o c onse guia
a m a r o se r hum a no e nqua nto indivíduo. Com a gr a dua l a c e ita ç ã o dos
im pulsos m a is e sc ur os de ntr o de m im , sinto que um a c om pa ixã o m a is
ge nuína c r e sc e e m m inha a lm a . Se r a pe na s um a pe ssoa c om um , c he ia
de a nse ios e c ontr a diç õe s — isso j á f oi um a ná te m a pa r a m im . Hoj e ,
é um a e xpe r iê nc ia e xtr a or diná r ia .

Busque i um a m a ne ir a sim bólic a de de ixa r na sc e r a m inha som br a ,


pa r a que a m inha vida e xte r ior nã o se de sf ize sse e pa r a que e u nã o
pr e c isa sse pôr de la do e sse m odo de vida c r ia tivo que ta nto a m o.
Dur a nte a pr e pa r a ç ã o de ste livr o, via j e i pa r a Ba li, onde a ba ta lha
e ntr e o be m e o m a l é o te m a de todos os te a tr os de la nte r na m á gic a e
r e pr e se nta ç õe s de da nç a . Existe um a c e r im ônia de inic ia ç ã o que o
ba linê s f a z a os de ze sse te a nos, na qua l se us de nte s sã o lim a dos e
nive la dos pa r a que os de m ônios da r a iva , da inve j a , do orgulho e da
c obiç a se j a m e xor c iza dos. De pois de ssa c e r im ônia , o inic ia do se nte -
se pur if ic a do, ba tiza do.

Ah, a nossa c ultur a nã o nos of e r e c e e ssa s c e r im ônia s de inic ia ç ã o!


De sc obr i que , pa r a m im , da r f or m a a e ste livr o e r a um a m a ne ir a de
m a pe a r a de sc ida e le va r um a luz à s tr e va s.

Int r oduç ão: o lado da sombr a na vida c ot idiana

CONNIE ZWEIG e JEREM IAH AB RAM S


Com o pode ha ve r ta nto m a l no m undo?

Conhe c e ndo a hum a nida de , m e a dm ir o é que nã o ha j a m a is.

Woody Alle n, Hannah e suas irmãs

Em 1886, m a is de um a dé c a da a nte s de Fr e ud sonda r a s pr of unde za s


da e sc ur idã o hum a na , Robe r t Louis Ste ve nson te ve um sonho
a lta m e nte r e ve la dor : um hom e m , pe r se guido por um c r im e , e ngolia
um c e r to pó e pa ssa va por um a dr á stic a m uda nç a de c a r á te r, tã o
dr á stic a que e le se tor na va ir r e c onhe c íve l. O a m á ve l e la bor ioso
c ie ntista Dr, Je ky ll tr a nsf or m a va - se no viole nto e im pla c á ve l Mr.
Hy de , c uj a m a lda de ia a ssum indo pr opor ç õe s c a da ve z m a ior e s à
m e dida que o sonho se de se nr ola va .

Ste ve nson de se nvolve u o sonho no se u f a m oso r om a nc e The Strange


Case of Dr. J e k y ll and M r. Hy de [ O e str a nho c a so de Dr. Je ky ll e Mr.
Hy de ] . Se u te m a inte gr ou- se de ta l m odo na c ultur a popula r que
pe nsa m os ne le qua ndo ouvim os a lgué m dize r, "Eu nã o e r a e u m e sm o",
ou "Ele pa r e c ia possuído por um de m ônio", ou "Ela vir ou um a
m e ge r a ". Com o diz o a na lista j unguia no John Sa nf or d, qua ndo um a
histór ia c om o e ssa nos toc a tã o a f undo e nos soa tã o ve r da de ir a , é
por que e la c onté m um a qua lida de a r que típic a — e la f a la a um ponto
e m nós que é unive r sa l.

Ca da um de nós c onté m um Dr. Je ky ll e um Mr. Hy de : um a pe rsona


a gr a dá ve l pa r a o uso c otidia no e um e u oc ulto e notur na ) que
pe r m a ne c e a m or da ç a do a m a ior pa r te do te m po. Em oç õe s e
c om por ta m e ntos ne ga tivos — r a iva , inve j a , ve rgonha , f a lsida de ,
r e sse ntim e nto, la sc ívia , c obiç a , te ndê nc ia s suic ida s e hom ic ida s —
f ic a m e sc ondidos logo a ba ixo da supe r f íc ie , m a sc a r a dos pe lo nosso e u
m a is a pr opr ia do à s c onve niê nc ia s. Em se u c onj unto, sã o c onhe c idos
na psic ologia c om o a sombra pe ssoal, que c ontinua a se r um te r r itór io
indom a do e ine xplor a do pa r a a m a ior ia de nós.

A apr e se nt aç ão da sombr a

A som br a pe ssoa l de se nvolve - se na tur a lm e nte e m toda s a s c r ia nç a s. A


m e dida que nos ide ntif ic a m os c om a s c a r a c te r ístic a s ide a is de
pe r sona lida de ( ta is c om o polide z e ge ne r osida de ) que sã o e nc or a j a da s
pe lo nosso a m bie nte , va m os f or m a ndo a quilo que W. Br ugh Joy
c ha m a o "e u da s de c isõe s de Ano Novo". Ao m e sm o te m po, va m os
e nte r r a ndo na som br a a que la s qua lida de s que nã o sã o a de qua da s à
nossa a utoim a ge m , c om o a r ude za e o e goísm o. O e go e a som br a ,
por ta nto, de se nvolve m - se a os pa r e s, c r ia ndo- se m utua m e nte a pa r tir
da m e sm a e xpe r iê nc ia de vida .

Ca r l Jung viu e m si m e sm o a inse pa r a bilida de do e go e da som br a ,


num sonho que de sc r e ve e m sua a utobiogr a f ia M e morie s, Dre ams,
Re fle c tions [ Me m ór ia s, Sonhos, Re f le xõe s] : Era noite , e m algum lugar
de sc onhe c ido, e e u av anç av a c om muita dific uldade c ontra uma forte
te mpe stade . Hav ia um de nso ne v oe iro. Eu se gurav a e prote gia c om as
mãos uma pe que na luz que ame aç av a e x tinguir- se a qualque r
mome nto. Eu se ntia que pre c isav a mantê - la ac e sa, pois tudo de pe ndia
disso.

De súbito, tiv e a se nsaç ão de que e stav a se ndo se guido. Olhe i para


trás e pe rc e bi uma gigante sc a forma e sc ura se guindo me us passos. M as
no me smo instante tiv e c onsc iê nc ia, ape sar do me u te rror, de que e u
pre c isav a atrav e ssar a noite e o v e nto c om a minha pe que na luz, se m
le v ar e m c onta pe rigo algum.

Ao ac ordar, pe rc e bi de ime diato que hav ia sonhado c om a minha


própria sombra, proje tada no ne v oe iro pe la pe que na luz que e u
c arre gav a. Ente ndi que e ssa pe que na luz e ra a minha c onsc iê nc ia, a
únic a luz que possuo. Embora infinitame nte pe que na e frágil e m
c omparaç ão c om os pode re s das tre v as, e la ainda é uma luz, a minha
únic a luz.
Muita s f or ç a s e stã o e m j ogo na f or m a ç ã o da nossa som br a e , e m
últim a a ná lise , de te r m ina m o que pode e o que nã o pode se r e xpr e sso.
P a is, ir m ã os, pr of e ssor e s, c lé r igos e a m igos c r ia m um a m bie nte
c om ple xo no qua l a pr e nde m os a quilo que r e pr e se nta c om por ta m e nto
ge ntil, c onve nie nte e m or a l, e a quilo que é m e squinho, ve rgonhoso e
pe c a m inoso.

A som br a a ge c om o um siste m a im unológic o psíquic o, de f inindo o que


é e u e o que é nã o- e u. P e ssoa s dif e r e nte s, e m dif e r e nte s f a m ília s e
c ultur a s, c onside r a m de m odos dive r sos a quilo que pe r te nc e a o e go e
a quilo que pe r te nc e à som br a . P or e xe m plo, a lguns pe r m ite m a
e xpr e ssã o da r a iva ou da a gr e ssivida de ; a m a ior ia , nã o. Alguns
pe r m ite m a se xua lida de , a vulne r a bilida de ou a s e m oç õe s f or te s;
m uitos, nã o. Alguns pe r m ite m a a m biç ã o f ina nc e ir a , a e xpr e ssã o
a r tístic a ou o de se nvolvim e nto inte le c tua l; outr os, nã o.

Todos os se ntim e ntos e c a pa c ida de s que sã o r e j e ita dos pe lo e go e


e xila dos na som br a c ontr ibue m pa r a o pode r oc ulto do la do e sc ur o da
na tur e za hum a na . No e nta nto, ne m todos e le s sã o a quilo que se
c onside r a tr a ç os ne ga tivos. De a c or do c om a a na lista j unguia na
Lilia ne Fr e y Rohn, e sse e sc ur o te sour o inc lui a nossa por ç ã o inf a ntil,
nossos a pe gos e m oc iona is e sintom a s ne ur ótic os be m c om o nossos
ta le ntos e dons nã o- de se nvolvidos. A som br a , diz e la , "m a nté m c onta to
c om a s pr of unde za s pe r dida s da a lm a , c om a vida e a vita lida de — o
supe r ior, o unive r sa lm e nte hum a no, sim , m e sm o o c r ia tivo pode m se r
pe r c e bidos a li".

A r e j e iç ão da sombr a
Nã o pode m os olha r dir e ta m e nte pa r a e sse dom ínio oc ulto, A som br a
é , por na tur e za , dif íc il de se r a pr e e ndida . Ela é pe r igosa , de sor de na da
e e te r na m e nte oc ulta , c om o se a luz da c onsc iê nc ia pude sse r ouba r-
lhe a vida .

O a na lista j unguia no Ja m e s Hillm a n, a utor de dive r sa s obr a s, diz: "O


inc onsc ie nte nã o pode se r c onsc ie nte ; a Lua te m se u la do e sc ur o, o
Sol se põe e nã o pode ilum ina r o m undo todo a o m e sm o te m po, e
m e sm o De us te m dua s m ã os. A a te nç ã o e o f oc o e xige m que a lgum a s
c oisa s f ique m f or a do c a m po visua l, pe r m a ne ç a m no e sc ur o. Nã o se
pode olha r e m dua s dir e ç õe s a o m e sm o te m po."

P or e ssa r a zã o, e m ge r a l ve m os a som br a indir e ta m e nte , nos tr a ç os e


a ç õe s de sa gr a dá ve is da s outr a s pe ssoa s, lá fora, onde é m a is se gur o
obse r vá - la . Qua ndo r e a gim os de m odo inte nso a um a qua lida de
qua lque r {pr e guiç a , e stupide z, se nsua lida de , e spir itua lida de , e tc .) de
um a pe ssoa ou gr upo, e nos e nc he m os de gr a nde a ve r sã o ou
a dm ir a ç ã o — e ssa r e a ç ã o ta lve z se j a a nossa som br a se r e ve la ndo.
Nós nos proje tam os a o a tr ibuir e ssa qua lida de à outr a pe ssoa , num
e sf or ç o inc onsc ie nte de ba ni- la de nós m e sm os, de e vita r vê - la de ntr o
de nós.

A a na lista j unguia na Ma r ie - Louise von Fr a nz suge r e que e ssa


pr oj e ç ã o é c om o dispa r a r um a f le c ha m á gic a . Se o de stina tá r io te m
um "ponto f r a c o" onde r e c e be r a pr oj e ç ã o, e ntã o e la se m a nté m , Se
pr oj e ta m os nossa r a iva sobr e um c om pa nhe ir o insa tisf e ito, ou nosso
pode r de se duç ã o sobr e um a tr a e nte e str a nho, ou nossos a tr ibutos
e spir itua is sobr e um gur u, e ntã o a tingim os o a lvo e a pr oj e ç ã o se
m a nté m . Da í e m dia nte , e m issor e r e c e ptor e sta r ã o unidos num a
m iste r iosa a lia nç a , c om o a pa ixona r- se ou e nc ontr a r o he r ói ( ou vilã o)
pe r f e ito.

A som br a pe ssoa l c onté m , por ta nto, todos os tipos de pote nc ia lida de s


nã o- de se nvolvida s e nã o- e xpr e ssa s. Ela é a que la pa r te do inc onsc ie nte
que c om ple m e nta o e go e r e pr e se nta a s c a r a c te r ístic a s que a
pe r sona lida de c onsc ie nte r e c usa - se a a dm itir e , por ta nto, ne glige nc ia ,
e sque c e e e nte r r a ... a té r e de sc obr i- la s e m c onf r ontos de sa gr a dá ve is
c om os outr os.

O e nc ont r o c om a sombr a

Em bor a nã o possa m os f itá - la dir e ta m e nte , a som br a surge na vida


diá r ia . P or e xe m plo, nós a e nc ontr a m os e m tir a da s hum or ístic a s ( ta is
c om o pia da s suj a s ou br inc a de ir a s tola s) que e xpr e ssa m nossa s
e m oç õe s oc ulta s, inf e r ior e s ou te m ida s. Ana lisa ndo de pe r to a quilo
que a c ha m os e ngr a ç a do ( c om o a lgué m e sc or r e ga ndo num a c a sc a de
ba na na ou se r e f e r indo a um a pa r te "pr oibida " do c or po) , de sc obr im os
que nossa som br a e stá a tiva . John Sa nf or d diz que é possíve l que a s
pe ssoa s de stituída s de se nso de hum or te nha m um a som br a m uito
r e pr im ida .

Em ge r a l, é a som br a que r i da s pia da s.

A psic a na lista ingle sa Molly Tuby suge r e se is outr a s m a ne ir a s pe la s


qua is, m e sm o se m sa be r, e nc ontr a m os a nossa som br a no dia - a - dia :

•Nos nossos se ntim e ntos e xa ge r a dos e m r e la ç ã o a os outr os ( "Eu


sim ple sm e nte nã o a c r e dito que e le te nha f e ito isso! ", "Nã o c onsigo
e nte nde r c om o e la é c a pa z de usa r um a r oupa de ssa s! ")
•N o o p in iã o ne ga tivo que r e c e be m os da que le s que nos se r ve m de
e spe lhos ( "Já é a te r c e ir a ve z que voc ê c he ga ta r de se m m e a visa r.")
•Na s inte r a ç õe s e m que c ontinua m e nte e xe r c e m os o m e sm o e f e ito
pe r tur ba dor sobr e dive r sa s pe ssoa s dif e r e nte s ( "Eu e o Sa m a c ha m os
que voc ê nã o e stá se ndo hone sto c om a ge nte .")
•Nos nossos a tos im pulsivos e nã o- inte nc iona is ( "P uxa , de sc ulpe , e u
nã o quis dize r isso! ")
•Na s situa ç õe s e m que som os hum ilha dos ( "Estou tã o e nve rgonha da
c om o j e ito que e le m e tr a ta .")
•Na nossa r a iva e xa ge r a da e m r e la ç ã o a os e r r os a lhe ios ( "Ela
sim ple sm e nte nã o c onse gue f a ze r se u tr a ba lho e m te m po! ", "Ca r a ,
m a s e le pe r de u tota lm e nte o c ontr ole do pe so! ")

Em m om e ntos c om o e sse s, qua ndo som os dom ina dos por f or te s


se ntim e ntos de ve rgonha ou de r a iva , ou qua ndo de sc obr im os que
nosso c om por ta m e nto é ina c e itá ve l, é a som br a que e stá ir r om pe ndo
de um m odo ine spe r a do. E e m ge r a l e la r e tr oc e de c om igua l
ve loc ida de ; pois e nc ontr a r a som br a pode se r um a e xpe r iê nc ia
a ssusta dor a e c hoc a nte pa r a a nossa a utoim a ge m , P or e ssa r a zã o,
pode m os m uda r r a pida m e nte pa r a a ne ga ç ã o, de ixa ndo de pr e sta r
a te nç ã o a f a nta sia s hom ic ida s, a pe nsa m e ntos suic ida s ou a
e m ba r a ç osos se ntim e ntos de inve j a , que r e ve la r ia m um pouc o da
nossa pr ópr ia e sc ur idã o. O f a le c ido psiquia tr a R. D. La ing de sc r e ve
de m odo poé tic o o r e f le xo de ne ga ç ã o da nossa m e nte : O alc anc e do
que pe nsamos e faze mos é limitado pe lo que de ix amos de notar. E por
de ix armos de notar que de ix amos de notar pouc o pode mos faze r para
mudar, até que note mos c omo o de ix ar de notar forma nossos
pe nsame ntos e aç õe s.

Se a ne ga ç ã o pe r m a ne c e r, e ntã o, c om o diz La ing, ta lve z ne m se que r


note m os que de ixa m os de nota r. P or e xe m plo, é c om um e nc ontr a r m os
a som br a na m e ia - ida de , qua ndo nossa s m a is pr of unda s ne c e ssida de s
e va lor e s te nde m a m uda r de dir e ç ã o, ta lve z a té f a ze ndo um gir o de
180 gr a us, I sso e xige a que br a de ve lhos há bitos e o c ultivo de ta le ntos
a dor m e c idos. Se nã o pa r a r m os pa r a ouvir a te nta m e nte o c ha m a do e
c ontinua r m os a nos m ove r na m e sm a dir e ç ã o a nte r ior,
pe r m a ne c e r e m os inc onsc ie nte s da quilo que a m e ia - ida de te m a nos
e nsina r.

A de pr e ssã o ta m bé m pode r e pr e se nta r um a c onf r onta ç ã o pa r a lisa nte


c om o la do e sc ur o, um e quiva le nte m ode r no da "noite e sc ur a da
a lm a " do m ístic o. Nossa e xigê nc ia inte r ior pa r a que de sç a m os a o
m undo subte r r â ne o pode se r supla nta da por c onside r a ç õe s de or de m
e xte r na ( c om o a ne c e ssida de de tr a ba lha r por longa s hor a s) , pe la
inte r f e r ê nc ia dos outr os ou por dr oga s a ntide pr e ssiva s que a m or te c e m
a nossa se nsa ç ã o de de se spe r o. Ne sse c a so, de ixa m os de a pr e e nde r o
pr opósito da nossa m e la nc olia .

Enc ontr a r a som br a pe de um a de sa c e le r a ç ã o do r itm o da vida , pe de


que ouç a m os a s indic a ç õe s do nosso c or po e nos c onc e da m os te m po
pa r a e sta r a sós, a f im de pode r m os dige r ir a s m e nsa ge ns m iste r iosa s
do m undo oc ulto.

A sombr a c ole t iva

Hoj e e m dia , de f r onta m o- nos c om o la do e sc ur o da na tur e za hum a na


toda ve z que a br im os um j or na l ou ouvim os o notic iá r io. Os e f e itos
m a is r e pulsivos da som br a tor na m - se visíve is na e sm a ga dor a
m e nsa ge m diá r ia dos m e ios de c om unic a ç ã o, tr a nsm itida e m m a ssa
pa r a toda a nossa m ode r na a lde ia globa l e le tr ônic a . O m undo tor nou-
se um pa lc o pa r a a sombra c ole tiv a.

A som br a c ole tiva — a m a lda de hum a na — nos e nc a r a de


pr a tic a m e nte toda s a s pa r te s: e la sa lta da s m a nc he te s dos j or na is;
va gue ia pe la s nossa s r ua s e , se m la r, dor m e no vã o da s por ta s; e ntoc a -
se na s c ha m a tiva s se x - shops da s nossa s c ida de s; de svia o dinhe ir o do
siste m a de f ina nc ia m e nto ha bita c iona l; c or r om pe os polític os f a m intos
de pode r e pe r ve r te o siste m a j udic iá r io; c onduz e xé r c itos inva sor e s
a tr a vé s de de nsa s f lor e sta s e á r idos de se r tos; ve nde a r m a m e ntos a
líde r e s e nsa nde c idos e r e pa ssa os luc r os a insurge nte s r e a c ioná r ios;
por c a nos oc ultos, de spe j a a poluiç ã o e m nossos r ios e oc e a nos; c om
invisíve is pe stic ida s, e nve ne na o nosso a lim e nto.

Essa s obse r va ç õe s nã o c onstitue m a lgum novo f unda m e nta lism o a


m a r te la r um a ve r sã o bíblic a da r e a lida de . Nossa é poc a f e z, de todos
nós, te ste m unha s f or ç a da s. O m undo todo obse r va . Nã o há c om o
e vita r o a ssusta dor e spe c tr o de som br a s sa tâ nic a s m ostr a do por
polític os c onive nte s, os c ola r inhos- br a nc os c r im inosos e te r r or ista s
f a ná tic os. Nosso a nse io inte r ior por inte gr a ç ã o — a gor a tor na do
m a nif e sto na m á quina de c om unic a ç ã o globa l — f or ç a - nos a
e nf r e nta r a c onf lita nte hipoc r isia que hoj e e stá e m toda pa r te .

Enqua nto a m a ior ia da s pe ssoa s e gr upos vive o la do soc ia lm e nte


a c e itá ve l da vida , outr a s pa r e c e m vive r a s por ç õe s soc ia lm e nte
r e j e ita da s pe la vida . Qua ndo e ssa s últim a s tom a m - se obj e to de
pr oj e ç õe s gr upa is ne ga tiva s, a som br a c ole tiva tom a a f or m a de
r a c ism o, de busc a de "bode e xpia tór io" ou de c r ia ç ã o do "inim igo".
P a r a os a m e r ic a nos a ntic om unista s, a U.R.S.S. e r a o I m pé r io do Ma l.
P a r a os m uç ulm a nos, os Esta dos Unidos sã o o Gr a nde Sa tã . P a r a os
na zista s, os j ude us sã o ve r m e s bolc he vique s. P a r a o m onge a sc e ta
c r istã o, a s br uxa s tê m pa r te c om o dia bo. P a r a os sul- a f r ic a nos
de f e nsor e s do aparthe id e os a m e r ic a nos da Ku Klux Kla n, os ne gr os
sã o subum a nos e nã o m e r e c e m te r os dir e itos e pr ivilé gios dos
br a nc os.

O pode r hipnótic o e a na tur e za c onta giosa de ssa s f or te s e m oç õe s


f ic a m e vide nte s na e xte nsã o e unive r sa lida de da s pe r se guiç õe s
r a c ia is, da s gue r r a s r e ligiosa s e da s tá tic a s de busc a de bode s
e xpia tór ios. E é a ssim que se r e s hum a nos te nta m de sum a niza r outr os,
num e sf or ç o pa r a a sse gur a r que e le s sã o supe r ior e s — e que m a ta r o
inim igo nã o signif ic a m a ta r se r e s hum a nos igua is a e le s.

Ao longo da histór ia , a som br a te m surgido ( a tr a vé s da im a gina ç ã o


hum a na ) c om o um m onstr o, um dr a gã o, um Fr a nke nste in, um a ba le ia
br a nc a , um e xtr a te r r e str e ou um hom e m tã o vil que nã o pode m os nos
e spe lha r ne le — e le e stá tã o dista nte de nós qua nto um a górgona .
Re ve la r o la do e sc ur o da na tur e za hum a na te m sido, e ntã o, um dos
pr opósitos bá sic os da a r te e da lite r a tur a . Com o disse Nie tzsc he :
"Te m os a r te pa r a que a r e a lida de nã o nos m a te ."

Usa ndo a s a r te s e a m ídia ( a í inc luída a pr opa ga nda polític a ) pa r a


c r ia r im a ge ns tã o m á s ou de m onía c a s qua nto a som br a , te nta m os
ga nha r pode r sobr e e la , que br a r se u f e itiç o. I sso pode a j uda r a
e xplic a r por que f ic a m os tã o e xc ita dos c om a s viole nta s a r e nga s de
a r a utos da gue r r a e de f a ná tic os r e ligiosos. Sim ulta ne a m e nte
r e pe lidos e a tr a ídos pe la violê nc ia e pe lo c a os do nosso m undo,
tr a nsf or m a m os na nossa m e nte e sse s outros e m r e c e ptá c ulos do m a l,
e m inim igos da c iviliza ç ã o.

A pr oj e ç ã o ta m bé m pode a j uda r a e xplic a r a im e nsa popula r ida de dos


f ilm e s e r om a nc e s de te r r or. Atr a vé s de um a r e pr e se nta ç ã o sim bólic a
do la do da som br a , nossos im pulsos pa r a o m a l pode m se r
e nc or a j a dos, ou ta lve z a livia dos, na se gur a nç a do livr o ou da te la .

As c r ia nç a s, tipic a m e nte , c om e ç a m a a pr e nde r os a ssuntos da som br a


a o ouvir c ontos de f a da que m ostr a m a gue r r a e ntr e a s f or ç a s do be m
e do m a l, f a da s- m a dr inha s e te r r íve is de m ônios. As c r ia nç a s, c om o os
a dultos, ta m bé m sof r e m sim bolic a m e nte a s pr ova ç õe s de se us he r óis
e he r oína s e , a ssim , a pr e nde m os pa dr õe s unive r sa is do de stino
hum a no.

Na ba ta lha da c e nsur a que hoj e se de se nr ola tio c a m po da m ídia e da


m úsic a , a que le s que pr e te nde m e str a ngula r a voz da som br a ta lve z
nã o c om pr e e nda m sua urge nte ne c e ssida de de se r ouvida . Num
e sf or ç o pa r a pr ote ge r os j ove ns, os c e nsor e s r e e sc r e ve m Cha pe uzinho
Ve r m e lho e f a ze m c om que e la nã o se j a m a is de vor a da pe lo lobo;
m a s, de sse m odo, a c a ba m de ixa ndo os j ove ns de spr e pa r a dos pa r a
e nf r e nta r o m a l c om que ir ã o se de f r onta r.

Com o a soc ie da de , c a da f a m ília ta m bé m c onstr ói se us pr ópr ios ta bus,


sua s á r e a s pr oibida s. A sombra familiar c onté m tudo o que é r e j e ita do
pe la pe r c e pç ã o c onsc ie nte de um a f a m ília , a que le s se ntim e ntos e
a ç õe s que sã o c onside r a dos de m a sia do a m e a ç a dor e s à sua
a utoim a ge m . Num a honr a da e c onse r va dor a f a m ília c r istã , a a m e a ç a
ta lve z se j a e m br ia ga r- se ou de sposa r a lgué m de outr a r e ligiã o; num a
f a m ília libe r a l e a te ia , ta lve z se j a a opç ã o pe los r e la c iona m e ntos
hom osse xua is. Na nossa soc ie da de , e spa nc a m e nto da e sposa e a buso
dos f ilhos c ostum a va m f ic a r oc ultos na som br a f a m ilia r, m a s hoj e
e m e rge m , e m pr opor ç õe s e pidê m ic a s, à luz do dia .

O la do e sc ur o nã o é ne nhum a c onquista e voluc ioná r ia r e c e nte ,


r e sulta do de c iviliza ç ã o e e duc a ç ã o. Ele te m sua s r a íze s num a sombra
biológic a, que se ba se ia e m nossa s pr ópr ia s c é lula s. Nossos a nc e str a is
a nim a le sc os, a f ina l de c onta s, sobr e vive r a m gr a ç a s à s pr e sa s e à s
ga r r a s. A be sta e m nós e stá viva , m uito viva — só que a m a ior pa r te
do te m po e nc a r c e r a da .

Muitos a ntr opólogos e soc iobiólogos a c r e dita m que a m a lda de hum a na


se j a r e sulta do do c ontr ole da nossa a gr e ssivida de a nim a l, da nossa
opç ã o pe la c ultur a e m de tr im e nto da na tur e za e da pe r da de c onta to
c om a nossa se lva ge r ia pr im itiva . O m é dic o e a ntr opólogo Me lvin
Konne r c onta , e m The Tangle d Wing, que f oi a um zoológic o, viu um a
pla c a que dizia "O Anim a l Ma is P e r igoso da Te r r a " e se de sc obr iu
olha ndo pa r a um e spe lho.

Conhe c e - t e a t i me smo
Em te m pos r e m otos, o se r hum a no r e c onhe c ia a s dive r sa s dim e nsõe s
da som br a : a pe ssoa l, a c ole tiva , a f a m ilia r e a biológic a . No dinte l do
te m plo de Apolo e m De lf os — e r igido na e nc osta do Monte P a r na so
pe los gr e gos do pe r íodo c lá ssic o e hoj e de str uído — os sa c e r dote s
gr a va r a m na pe dr a dua s f a m osa s insc r iç õe s, dois pr e c e itos que a inda
gua r da m im e nsa signif ic a ç ã o pa r a nós nos dia s de hoj e . O pr im e ir o
de le s, "Conhe c e - te a ti m e sm o", te m a m pla a plic a ç ã o ne ste livr o.
Conhe ç a tudo sobr e voc ê m e sm o, a c onse lha va m os sa c e r dote s do de us
da luz. P ode r ía m os dize r : Conhe ç a e spe c ia lm e nte o la do e sc ur o de
voc ê m e sm o.

Som os de sc e nde nte s dir e tos da m e nte gr e ga , Nossa som br a c ontinua a


se r o gr a nde f a r do do a utoc onhe c im e nto, o e le m e nto de str utivo que
nã o que r se r c onhe c ido. Os gr e gos e nte nde r a m m uito be m e sse
pr oble m a e sua r e ligiã o os c om pe nsa va pe lo la do de ba ixo da vida .
Er a na m e sm a e nc osta da m onta nha a c im a de De lf os que os gr e gos
c e le br a va m , todos os a nos, a s sua s f a m osa s ba c a na is, a s orgia s que
glor if ic a va m a pode r osa e c r ia tiva pr e se nç a do de us da na tur e za ,
Dioniso, nos se r e s hum a nos.

Hoj e , Dioniso f oi a vilta do e a pe na s subsiste na s nossa s im a ge ns de


Sa tã , o Dia bo de c a sc os f e ndidos, pe r sonif ic a ç ã o do m a l. Nã o m a is
um de us a se r r e ve r e nc ia do e digno de r e c e be r o nosso tr ibuto, e le f oi
ba nido pa r a o m undo dos a nj os c a ídos.

Ma r ie - Louise von Fr a nz r e c onhe c e a r e la ç ã o e ntr e o dia bo e a som br a


pe ssoa l qua ndo diz, "Na ve r da de , o pr inc ípio da individua ç ã o e stá
r e la c iona do c om o e le m e nto dia bólic o na m e dida e m que e ste últim o
r e pr e se nta a se pa r a ç ã o do divino de ntr o da tota lida de da na tur e za . Os
a spe c tos dia bólic os sã o os e le m e ntos de str utivos — os a f e tos, o
im pulso a utônom o de pode r e c oisa s se m e lha nte s. Ele s r om pe m a
unida de da pe r sona lida de ".

Nada e m e xc e sso

A outr a insc r iç ã o e m De lf os ta lve z se j a m a is r e pr e se nta tiva da é poc a


e m que vive m os. "Na da e m e xc e sso", pr oc la m a o de us gr e go do a lto
de se u sa ntuá r io te r r e str e hoj e de sm or ona do. E, R, Dodds, e studioso
dos c lá ssic os, suge r e um a inte r pr e ta ç ã o pa r a e ssa e pígr a f e . Só um a
pe ssoa que c onhe c e os e xc e ssos, diz e le , pode r ia vive r se gundo e ssa
m á xim a . Só a que le s que c onhe c e m a sua c a pa c ida de pa r a a la sc ívia ,
a c obiç a , a r a iva , a glutona r ia e todos os e xc e ssos — a que le s que
c om pr e e nde r a m e a c e ita r a m o se u pr ópr io pote nc ia l pa r a e xtr e m os
ina de qua dos — pode m opta r por c ontr ola r e hum a niza r sua s a ç õe s.

Vive m os num a é poc a de e xc e ssos c r ític os: ge nte de m a is, c r im e


de m a is, e xplor a ç ã o de m a is, poluiç ã o de m a is, a r m a s nuc le a r e s
de m a is. Esse s sã o e xc e ssos que pode m os r e c onhe c e r e c onde na r,
m e sm o que nos sinta m os im pote nte s pa r a f a ze r a lgo a r e spe ito.

E, a f ina l, e xiste a lgo que p o ssa m o s f a ze r a r e spe ito? P a r a m uita s


pe ssoa s, a s qua lida de s ina c e itá ve is do e xc e sso vã o dir e ta m e nte pa r a a
som br a inc onsc ie nte ou se e xpr e ssa m e m c om por ta m e ntos indistintos.
P a r a a lguns, e sse s e xtr e m os tom a m a f or m a de sintom a s: se ntim e ntos
e a ç õe s inte nsa m e nte ne ga tivos, sof r im e nto ne ur ótic o, doe nç a s
psic ossom á tic a s, de pr e ssã o e a buso da s pr ópr ia s f or ç a s.

Os c e ná r ios pode m pa r e c e r- se a e ste s: qua ndo se ntim os um de se j o


e xc e ssivo, nós o la nç a m os na som br a e de pois o pa ssa m os a o a to se m
ne nhum a pr e oc upa ç ã o pe los outr os; qua ndo se ntim os f om e e xc e ssiva ,
nós a la nç a m os na som br a e de pois nos e m pa ntur r a m os, nos
e m be be da m os e e va c ua m os, tr a ta ndo o nosso c or po c om o lixo;
qua ndo se ntim os um a nse io e xc e ssivo pe lo la do m a is e le va do da vida ,
nós o la nç a m os na som br a e de pois o busc a m os a tr a vé s de
gr a tif ic a ç õe s insta ntâ ne a s ou de a tivida de s he donístic a s, c om o a buso
de dr oga s ou de á lc ool. A lista c ontinua . Na nossa soc ie da de , ve m os o
c r e sc im e nto dos e xc e ssos da som br a por todos os la dos:
•Num im pulso de sc ontr ola do pa r a c onhe c e r e dom ina r a na tur e za ( que
se e xpr e ssa na im or a lida de da c iê nc ia e na uniã o de sr e gr a da e ntr e os
ne góc ios e a te c nologia ) .
•Num a pr e te nsiosa c om pulsã o de a j uda r e c ur a r os outr os ( que se
e xpr e ssa na distor ç ã o e na c o- de pe ndê nc ia do pa pe l dos pr of issiona is
da á r e a de sa úde e na c obiç a de m é dic os e c om pa nhia s
f a r m a c ê utic a s) .
•No r itm o a c e le r a do e de sum a niza do do m e r c a do de tr a ba lho ( que se
e xpr e ssa na a pa tia de um a f or ç a de tr a ba lho a lie na da , na
obsole sc ê nc ia nã o- pla ne j a da , c a usa da pe la a utom a ç ã o, e na
a r r ogâ nc ia do suc e sso) .
•Na m a xim iza ç ã o do c r e sc im e nto e e xpa nsã o dos ne góc ios ( que se
e xpr e ssa na s a quisiç õe s f r a udule nta s de c ontr ole a c ioná r io, no
e nr ique c im e nto ilíc ito, no uso pr ivile gia do de inf or m a ç õe s
c onf ide nc ia is e no c ola pso do siste m a de f ina nc ia m e nto
ha bita c iona l) .
•Num he donism o m a te r ia lista ( que se e xpr e ssa no c onsum o
e xa c e r ba do, na pr opa ga nda e nga nosa , no de spe r díc io e na poluiç ã o
de va sta dor a ) .
•No de se j o de c ontr ola r a nossa vida íntim a , que é inc ontr olá ve l por
sua pr ópr ia na tur e za ( que se e xpr e ssa no na r c isism o ge ne r a liza do, na
e xplor a ç ã o pe ssoa l, na m a nipula ç ã o dos outr os e no a buso de
m ulhe r e s e c r ia nç a s) .
•E no nosso inc e ssa nte m e do da m or te ( que se e xpr e ssa na obse ssã o
c om a sa úde e a f or m a f ísic a , die ta s, m e dic a m e ntos e longe vida de a
qua lque r pr e ç o) .

Esse s a spe c tos da som br a a tinge m toda a nossa soc ie da de . No e nta nto,
a lgum a s soluç õe s que f or a m e xpe r im e nta da s pa r a c ur a r o nosso
e xc e sso c ole tivo pode m se r a inda m a is pe r igosa s que o pr oble m a .
Ba sta c onside r a r, por e xe m plo, o f a sc ism o e o a utor ita r ism o —
hor r or e s que surgir a m da s te nta tiva s r e a c ioná r ia s de de te r a de sor de m
soc ia l e a de c a dê nc ia e pe r m issivida de ge ne r a liza da s na Eur opa . Em
te m pos m a is r e c e nte s e c om o r e a ç ã o a ide ia s pr ogr e ssista s, o f e r vor
do f unda m e nta lism o r e ligioso e polític o voltou a de spe r ta r nos Esta dos
Unidos e na Eur opa , e nc or a j a ndo, na s pa la vr a s do poe ta Willia m B.
Ye a ts, que a "a na r quia se j a la nç a da sobr e o m undo".

Jung a te nuou a que stã o a o a f ir m a r que : "I nge nua m e nte , e sque c e m os
que por de ba ixo do nosso m undo r a c iona l j a z um outr o e nte r r a do. Nã o
se i o que a hum a nida de a inda te r á de sof r e r a té que ouse r e c onhe c ê -
lo."

Se não agor a, quando?


A histór ia r e gistr a , de sde te m pos im e m or ia is, os tor m e ntos c a usa dos
pe la m a lda de hum a na . Na ç õe s inte ir a s de ixa r a m - se le va r a histe r ia s
de m a ssa de pr opor ç õe s de va sta dor a s. Hoj e , c om o té r m ino a pa r e nte
da Gue r r a Fr ia , e xiste m a lgum a s e spe r a nç osa s e xc e ç õe s. P e la
pr im e ir a ve z, na ç õe s inte ir a s pa r a r a m pa r a r e f le tir e te nta r a m a
dir e ç ã o oposta . Conside r e m os e ste r e la to de j or na l, que f a la por si
m e sm o ( c onf or m e c ita do por Je r om e S. Be r nste in e m se u livr o Powe r
and Politic s [ O P ode r e a P olític a ] ) : "O gove r no sovié tic o a nunc ia a
suspe nsã o te m por á r ia de toda s a s pr ova s de Histór ia no pa ís." O j or na l
Philade lphia I nquire r de 11 de j unho de 1988 inf or m a va : A União
Soviética, declarando que os manuais de História ensinaram a gerações de
crianças soviéticas mentiras que envenenaram suas "mentes e almas", anunciou
ontem o cancelamento dos exames finais de História para mais de 53 milhões de
estudantes.

Ao a nunc ia r o c a nc e la m e nto, o j or na l of ic ia l I sv e stia inf or m ou que a


e xtr a or diná r ia de c isã o visa va pôr um té r m ino à tr a nsm issã o de
m e ntir a s de um a ge r a ç ã o pa r a outr a , pr oc e sso e sse que c onsolidou o
siste m a polític o e e c onôm ic o sta linista que a a tua l lide r a nç a pr e te nde
e nc e r r a r.

"A c ulpa da que le s que iludir a m um a ge r a ç ã o a pós outr a ... é


im e nsur á ve l", de c la r a o j or na l num c om e ntá r io de pr im e ir a pá gina .
"Hoj e e sta m os c olhe ndo os f r utos a m a rgos da nossa pr ópr ia la ssidã o
m or a l, Esta m os pa ga ndo por te r m os suc um bido a o c onf or m ism o e ,
a ssim , da do nossa a pr ova ç ã o sile nc iosa a tudo a quilo que hoj e nos
e nc he de ve rgonha e que nã o sa be m os e xplic a r hone sta m e nte a os
nossos f ilhos."

Essa sur pr e e nde nte c onf issã o de toda um a na ç ã o pode r ia m a r c a r o


f im de um a e r a . De a c or do c om Sa m Ke e n, a utor de Fac e s of the
Ene my [ As Fa c e s do I nim igo] , "As únic a s na ç õe s a sa lvo sã o a que la s
que se va c ina m siste m a tic a m e nte , a tr a vé s de um a im pr e nsa livr e e da
voz de um a m inor ia pr of é tic a , c ontr a a intoxic a ç ã o de de stinos divinos
e pur if ic a ç õe s pa r a noic a s".

Hoj e o m undo m ove - se e m dua s dir e ç õe s a pa r e nte m e nte oposta s:


a lguns f oge m dos r e gim e s f a ná tic os e tota litá r ios; outr os e nte r r a m - se
ne le s a té o pe sc oç o. Ta lve z nos sinta m os im pote nte s dia nte de f or ç a s
tã o pode r osa s. Ou, se c he ga m os a pe nsa r no a ssunto, o que se ntim os é
c e r ta m e nte a c onsc iê nc ia c ulpa da dia nte da nossa c um plic ida de
involuntá r ia na s dif ic ulda de s c ole tiva s. Esse pe r tur ba dor e sta do de
c oisa s f oi a c ur a da m e nte e xpr e sso por Jung na m e ta de do sé c ulo: "A
voz inte r ior tr a z à c onsc iê nc ia tudo a quilo de que pa de c e o todo —
se j a a na ç ã o à qua l pe r te nc e m os ou a hum a nida de da qua l f a ze m os
pa r te . Ma s e la a pr e se nta e sse m a l e m um a f or m a individua l, de m odo
que , no iníc io, pode r ía m os supor que todo e sse m a l é a pe na s um tr a ç o
do c a r á te r individua l,"

P a r a pr ote ge r- nos da m a lda de hum a na que e ssa s f or ç a s inc onsc ie nte s


de m a ssa pode m r e pr e se nta r, dispom os de um a únic a a r m a : m a ior
c onsc ie ntiza ç ã o individua l, Se de ixa m os de a pr e nde r ou se de ixa m os
de a gir c om ba se na quilo que a pr e nde m os c om o dr a m a do
c om por ta m e nto hum a no, pe r de m os nosso pode r, e nqua nto indivíduos,
de a lte r a r a nós m e sm os e , a ssim , sa lva r o nosso m undo. Sim , o m a l
e sta r á se m pr e c onosc o. Ma s a s c onse quê nc ia s do m a l ir r e f r e a do nã o
pr e c isa m se r tole r a da s.

"Um a gr a nde m uda nç a na nossa a titude psic ológic a e stá im ine nte ",
disse Jung e m 1959. "O únic o pe r igo ve r da de ir o que e xiste é o pr ópr io
hom e m . Ele é o gr a nde pe r igo c e sta m os, inf e lizm e nte , inc onsc ie nte s
de le . Nós som os a or ige m de todo o m a l vindour o."

O pe r sona ge m P ogo, do c a r tunista Wa lt Ke lly , a pr e se ntou a que stã o


de m a ne ir a ba sta nte sim ple s: "Enc ontr a m os o inim igo, e e le som os
nós." Hoj e pode m os da r um r e nova do signif ic a do psic ológic o à ide ia
de pode r individua l. Os lim ite s pa r a a a ç ã o de c onf r onta r a som br a
e stã o — c om o se m pr e e stive r a m — no indivíduo.

A ac e it aç ão da sombr a
O obj e tivo de e nc ontr a r a som br a é de se nvolve r um r e la c iona m e nto
pr ogr e ssivo c om e la e e xpa ndir o nosso se nso do e u a lc a nç a ndo o
e quilíbr io e ntr e a unila te r a lida de da s nossa s a titude s c onsc ie nte s e a s
nossa s pr of unde za s inc onsc ie nte s.

O r om a nc ista Tom Robbins diz: "O pr opósito de e nc ontr a r a som br a é


e sta r no luga r c e r to da m a ne ir a c e r ta ." Qua ndo m a nte m os um
r e la c iona m e nto a de qua do c om e le , o inc onsc ie nte nã o é um m onstr o
de m onía c o; diz- nos Jung: "Ele só se tor na pe r igoso qua ndo a a te nç ã o
c onsc ie nte que lhe de dic a m os é de se spe r a dor a m e nte e r r a da ."

Um r e la c iona m e nto c or r e to c om a som br a nos of e r e c e um pr e se nte


va lioso: le va - nos a o r e e nc ontr o de nossa s pote nc ia lida de s e nte r r a da s.
Atr a vé s do trabalho c om a sombra ( e xpr e ssã o que c unha m os pa r a nos
r e f e r ir a o e sf or ç o c ontinua do no se ntido de de se nvolve r um
r e la c iona m e nto c r ia tivo c om a som br a ) , pode m os:

c he ga r a um a a utoa c e ita ç ã o m a is ge nuína , ba se a da


num c onhe c im e nto m a is c om ple to de que m
r e a lm e nte som os;
de sa tiva r a s e m oç õe s ne ga tiva s que ir r om pe m
ine spe r a da m e nte na nossa vida c otidia na ;
nos se ntir m a is livr e s da c ulpa e da ve rgonha
a ssoc ia da s a os nossos se ntim e ntos e a tos ne ga tivos;
r e c onhe c e r a s pr oj e ç õe s que m a tiza m a s opiniõe s
que f or m a m os sobr e os outr os; c ur a r nossos
r e la c iona m e ntos a tr a vé s de um a utoe xa m e m a is
hone sto e de um a c om unic a ç ã o dir e ta ;
e usa r a nossa im a gina ç ã o c r ia tiva ( a tr a vé s de
sonhos, de se nhos, e sc r ita e r itua is) pa r a a c e ita r o
nosso e u r e pr im ido.

Ta lve z..., ta lve z ta m bé m possa m os, de sse m odo, e vita r a c r e sc e nta r


nossa som br a pe ssoa ] à de nsida de da som br a c ole tiva .

A a na lista j unguia na e a str óloga br itâ nic a Liz Gr e e ne m ostr a a


na tur e za pa r a doxa l da som br a e nqua nto r e c e ptá c ulo de e sc ur idã o e
f a c ho de luz. "O la do sof r e dor e a le ij a do da nossa pe r sona lida de é
a que la som br a e sc ur a e im utá ve l, m a s ta m bé m é o r e de ntor que
pode r á tr a nsf or m a r nossa vida e a lte r a r nossos va lor e s. O r e de ntor
te m c ondiç õe s de e nc ontr a r o te sour o oc ulto, c onquista r a pr inc e sa e
de r r ota r o dr a gã o... pois e le e stá , de a lgum m odo, m a r c a do — e le é
a nor m a l, A som br a é , a o m e sm o te m po, a que la c oisa hor r íve l que
pr e c isa de r e de nç ã o e o sof r ido sa lva dor que pode r e dim i- la ."

Par t e 1

O que é a sombr a?
Todo home m te m uma sombra e , quanto me nos e la se inc orporar à sua
v ida c onsc ie nte , mais e sc ura e de nsa e la se rá. De todo modo, e la
forma uma trav a inc onsc ie nte que frustra nossas me lhore s inte nç õe s.

CG. J ung

E aqui e x iste um misté rio, e e u não o c ompre e ndo: Se m e sse toque de


algo alhe io e — até me smo — se lv age m, se m as te rrív e is e ne rgias do
lado av e sso da saúde , da sanidade e do juízo, nada func iona, nada
pode func ionar. Pois afirmo que a bondade — aquilo que nós, e m nosso
e u diurno e c omum, c hamamos bondade : o c omum, o de c e nte — nada é
se m os pode re s oc ultos que se de spe jam c ontinuame nte do lado da
sombra.

Doris Le ssing

A sombra do home m, pe nso e u, é a sua v aidade .

Frie dric h Nie tzsc he


Essa sombra, e u a re c onhe ç o c omo c oisa minha.

William Shak e spe are

Introdução

Tudo o que te m substâ nc ia la nç a um a som br a . O e go e stá pa r a a


som br a c om o a luz e stá pa r a a s tr e va s. Essa é a qua lida de que nos
tor na hum a nos. P or m a is que o que ir a m os ne ga r, som os im pe r f e itos.
E ta lve z se j a na quilo que nã o a c e ita m os e m nós m e sm os — a nossa
a gr e ssivida de e ve rgonha , a nossa c ulpa e a nossa dor — que
de sc obr im os a nossa hum a nida de .

A som br a é c onhe c ida por m uitos nom e s: o e u r e pr im ido, o se lf


inf e r ior, o gê m e o ( ou ir m ã o) e sc ur o da s e sc r itur a s e m itos, o duplo, o
e u r e j e ita do, o alte r e go, o id. Qua ndo nos ve m os f a c e a f a c e c om o
nosso la do m a is e sc ur o, usa m os m e tá f or a s pa r a de sc r e ve r e sse
e nc ontr o c om a som br a : c onf r onto c om os nossos de m ônios, luta
c ontr a o dia bo, de sc ida a os inf e r nos, noite e sc ur a da a lm a , c r ise da
m e ia - ida de .

Todos nós possuím os um a som br a . Ou é a nossa som br a que nos


possui? Ca r l Jung tr a nsf or m ou e ssa que stã o e m um e nigm a qua ndo
pe rguntou: "Com o e nc ontr a s o le ã o que te de vor ou?" P ois a som br a é ,
por de f iniç ã o, inc onsc ie nte ; ne m se m pr e é possíve l sa be r se e sta m os
ou nã o sob o dom ínio de a lgum a por ç ã o c om pulsiva dos c onte údos da
nossa som br a .

Jung disse que todos nós c om pr e e nde m os intuitiva m e nte o signif ic a do


da s e xpr e ssõe s sombra, pe rsonalidade infe rior o u alte r e go. "E se e le
a c a so e sque c e u", br inc ou Jung, r e f e r indo- se a o hom e m m é dio, "sua
m e m ór ia pode se r f a c ilm e nte r e f r e sc a da por um se r m ã o de dom ingo,
por sua e sposa ou pe lo c ole tor de im postos."

P a r a pode r m os se r c a pa ze s de e nc ontr a r a som br a na nossa vida


c otidia na — da ndo- lhe a c e sso e , a ssim , r om pe ndo se u dom ínio
c om pulsivo sobr e nós — pr e c isa m os, a nte s de m a is na da , a lc a nç a r
um a c om pr e e nsã o a br a nge nte do f e nôm e no. O c onc e ito de som br a
de r iva da s de sc obe r ta s f e ita s por Sigm und Fr e ud e Ca r l Jung,
Gua r da ndo o de vido r e spe ito a o se u a ntigo m e str e , Jung r e c onhe c e u
que o tr a ba lho r e voluc ioná r io de Fr e ud f oi a a ná lise m a is de ta lha da e
pr of unda da c isã o que e xiste e ntr e o la do da luz e o la do da som br a na
psique hum a na . De a c or do c om Lilia ne Fr e y Rohn, a ntiga a luna e
c ole ga de Jung, "Já e m 1912, e nqua nto a inda sob a inf luê nc ia da s
te or ia s de Fr e ud, Jung usa va a e xpr e ssã o ' o la do da som br a na psique
hum a na ’ pa r a c a r a c te r iza r ' de se j os nã o r e c onhe c idos' e ' por ç õe s
r e pr im ida s da pe r sona lida de ' ".

Em 1917, e m se u e nsa io On the Psy c hology of the Unc onsc ious [ Sobr e
a P sic ologia do I nc onsc ie nte ] , Jung f a la da som br a pe ssoa l c om o o
outro e m nós, a pe r sona lida de inc onsc ie nte do nosso m e sm o se xo, o
inf e r ior r e pr e e nsíve l, o outr o que nos e m ba r a ç a ou e nve rgonha : "P or
som br a , que r o dize r o la do ' ne ga tivo' da pe r sona lida de , a som a de
toda s a que la s qua lida de s de sa gr a dá ve is que pr e f e r im os oc ulta r, j unto
c om a s f unç õe s insuf ic ie nte m e nte de se nvolvida s e o c onte údo do
inc onsc ie nte pe ssoa l."

A som br a é ne ga tiva a pe na s a pa r tir do ponto de vista da c onsc iê nc ia ;


e la nã o é — c om o insistia Fr e ud — tota lm e nte im or a l e inc om pa tíve l
c om a nossa pe r sona lida de c onsc ie nte . P e lo c ontr á r io, e la c onté m e m
pote nc ia l va lor e s da m a is e le va da m or a lida de . I sso é pa r tic ula r m e nte
ve r da de ir o, diz Fr e y Rohn, qua ndo e xiste um la do oc ulto na som br a
que a soc ie da de c onside r a c om o positivo, a inda que a pr ópr ia pe ssoa o
ve j a c om o inf e r ior.

A som br a a pr oxim a - se m a is da quilo que Fr e ud e nte ndia c om o "o


c onte údo r e pr im ido". Ma s, e m c ontr a ste c om a visã o de Fr e ud, a
som br a de Jung é um a pe r sona lida de inf e r ior que te m se us pr ópr ios
c onte údos, ta is c om o pe nsa m e nto a utônom o, ide ia s, im a ge ns e
j ulga m e ntos de va lor, que sã o se m e lha nte s a os da pe r sona lida de
c onsc ie nte supe r ior.

Em 1945, Jung r e f e r ia - se à som br a c om o sim ple sm e nte a que la c oisa


que um a pe ssoa nã o que r ia se r. "Um a pe ssoa nã o se tor na ilum ina da
a o im a gina r f or m a s lum inosa s", a f ir m ou, "m a s sim a o tor na r
c onsc ie nte a e sc ur idã o. Esse últim o pr oc e dim e nto, no e nta nto, é
de sa gr a dá ve l e , por ta nto, im popula r."

Hoj e e m dia , e nte nde m os por som br a a que la pa r te da psique


inc onsc ie nte que e stá m a is pr óxim a da c onsc iê nc ia , m e sm o que nã o
se j a c om ple ta m e nte a c e ita por e la . P or se r c ontr á r ia à a titude
c onsc ie nte que e sc olhe m os, nã o pe r m itim os que a som br a e nc ontr e
e xpr e ssã o na nossa vida ; a ssim e la se orga niza e m um a pe r sona lida de
r e la tiva m e nte a utônom a no inc onsc ie nte , onde f ic a pr ote gida e oc ulta .
Esse pr oc e sso c om pe nsa a ide ntif ic a ç ã o unila te r a l que f a ze m os c om
a quilo que é a c e itá ve l à nossa m e nte c onsc ie nte .

P a r a Jung e se us se guidor e s, a psic ote r a pia of e r e c e um r itua l de


r e nova ç ã o pe lo qua l a pe r sona lida de da som br a pode se r pe r c e bida e
a ssim ila da , r e duzindo a ssim se us pote nc ia is inibidor e s ou de str utivos c
libe r a ndo a e ne rgia vita l positiva que e sta va a pr isiona da . Jung
c ontinuou a oc upa r- se c om os pr oble m a s c or r e la tos de de str utivida de
pe ssoa l e m a l c ole tivo dur a nte toda a sua longa e ilustr e c a r r e ir a . Sua s
inve stiga ç õe s m ostr a r a m que lida r c om a som br a e o m a l é , e m
últim a a ná lise , um "se gr e do individua l", igua l à que le de e xpe r im e nta r
De us, e um a e xpe r iê nc ia tã o pode r osa que pode tr a nsf or m a r a pe ssoa
c om o um todo.

Jung busc a va r e sposta s pa r a a s inquie ta nte s que stõe s que nos


pe r tur ba m a todos, diz o e studioso j unguia no Andr e w Sa m ue ls, e o
tr a ba lho de sua vida of e r e c e "um a e xplic a ç ã o c onvinc e nte , nã o
a pe na s da s a ntipa tia s pe ssoa is m a s ta m bé m dos c r ué is pr e c onc e itos e
pe r se guiç õe s dos nossos te m pos". Jung via o se u pr ópr io de stino c om o
o de um e xplor a dor, um hom e m a c r ia r novos c a m inhos pa r a
c onc e itua r a ntiquíssim os pr oble m a s — pr oble m a s psic ológic os be m
c om o pr oble m a s f ilosóf ic os, e spir itua is e r e ligiosos. Ele disse que
que r ia dir igir- se à que la s pe ssoa s que busc a m um signif ic a do e m sua s
vida s, m a s pa r a que m os tr a dic iona is ve íc ulos da f é e da r e ligiã o nã o
f unc iona m m a is. Na public a ç ã o de 1937, Psy c hology and Re ligion
[ P sic ologia e Re ligiã o] , Jung diz; "P r ova ve lm e nte tudo o que nos r e sta
hoj e é a a bor da ge m psic ológic a . É por isso que tom o e ssa s f or m a s-
pe nsa m e nto que se tor na r a m histor ic a m e nte c r ista liza da s, te nto
de r r e tê - la s e ve r tê - la s de ntr o dos m olde s da e xpe r iê nc ia im e dia ta ."

Robe r t A. Johnson, c onhe c ido a utor c c onf e r e nc ista c uj os e sc r itos


inc lue m - se na te r c e ir a ge r a ç ã o de ide ia s j unguia na s, diz que a
c ontr ibuiç ã o dur a dour a de Jung f oi o de se nvolvim e nto de um a visã o
m a gníf ic a da c a pa c ida de hum a na pa r a a c onsc iê nc ia .

"Ele postulou um m ode lo do inc onsc ie nte tã o m onum e nta l que o


Oc ide nte a inda nã o f oi ple na m e nte c a pa z de a pr e e nde r toda s a s sua s
im plic a ç õe s."

Ta lve z a m a ior r e a liza ç ã o de Jung te nha sido a de r e ve la r o


inc onsc ie nte c om o a f onte c r ia tiva de tudo a quilo que f ina lm e nte
c he ga m os a se r e nqua nto indivíduos. Na ve r da de , nossa m e nte e
pe r sona lida de c onsc ie nte s se de se nvolve m e a m a dur e c e m a partir da
m a té r ia - pr im a do inc onsc ie nte , e m inte r a ç ã o c om a s e xpe r iê nc ia s da
vida .

Junta m e nte c om o se lf ( o "e u", o "si- m e sm o", o c e ntr o psic ológic o do


se r hum a no) e a anima e o animas ( a s im a ge ns ide a is inte r na liza da s do
se xo oposto, a im a ge m da a lm a e m c a da pe ssoa ) , Jung c la ssif ic ou a
sombra c om o um dos pr inc ipa is a r qué tipos do inc onsc ie nte pe ssoa l. Os
a r qué tipos sã o e str utur a s ina ta s e he r da da s no inc onsc ie nte —
"im pr e ssõe s digita is" psic ológic a s — que c ontê m c a r a c te r ístic a s
f or m a da s de a nte m ã o, qua lida de s pe ssoa is e tr a ç os c om pa r tilha dos
c om todos os outr os se r e s hum a nos. Ele s sã o f or ç a s psíquic a s viva s
de ntr o da psique hum a na . De a c or do c om o Critic al Dic ionary of
J ungian Analy sis, "Os de use s sã o m e tá f or a s de c om por ta m e ntos
a r que típic os e os m itos sã o r e pr e se nta ç õe s a r que típic a s' ". O de c ur so
da a ná lise j unguia na e nvolve um a pe r c e pç ã o c r e sc e nte de ssa
dim e nsã o a r que típic a da vida de um a pe ssoa .

P a r a a pr e se nta r e de f inir a som br a pe ssoa l na P a r te 1, e sc olhe m os


dive r sos e xe m plos a dm ir á ve is de e sc r itor e s j unguia nos, pois f oi na s
f or m ula ç õe s j unguia na s que o c onc e ito tor nou- se c onhe c ido e útil
c om o um a f e r r a m e nta pa r a o c r e sc im e nto pe ssoa l e a c ur a
te r a pê utic a . Ne sta se ç ã o, os e sc r itor e s a pr e se nta m a s que stõe s
e sse nc ia is que nos tor na m possíve l pe r c e be r a som br a na vida
c otidia na . Na s se ç õe s subse que nte s de ste livr o, a tr a vé s de e nsa ios
e sc olhidos de ntr e um a a m pla ga m a de ide ia s, o c onc e ito de som br a é
a m plia do de sua m a nif e sta ç ã o pe ssoa l pa r a sua s m a nif e sta ç õe s
c ole tiva s: pr e c onc e ito, gue r r a , c r ue lda de .

Abr indo e sta se ç ã o, o poe ta Robe r t Bly usa um tom m uito pe ssoa l
pa r a c onta r a histór ia da som br a , num tr e c ho se le c iona do de A Little
Book on the Human Shadow [ Um P e que no Livr o sobr e a Som br a
Hum a na ) . A m e dida que va m os c r e sc e ndo, diz Bly , o e u r e pr im ido
tr a nsf or m a sse num sa c o a m or te c e dor — a "c om pr ida sa c ola que
a r r a sta m os a tr á s de nós" — que c onté m a s nossa s por ç õe s
ina c e itá ve is. Bly ta m bé m e sta be le c e um a liga ç ã o e ntr e a nossa sac ola
pe ssoa l e outr os tipos de sac olas: a s som br a s c ole tiva s.

A se guir, o a na lista j unguia no Edwa r d C. W hitm ont m ostr a - nos a visã o


do te r a pe uta sobr e a som br a c onf or m e e la a pa r e c e nos sonhos e
e xpe r iê nc ia s de vida do pa c ie nte . Esse e xc e r to de The Sy mbolic Que st
[ A Busc a Sim bólic a ] dá um a e xc e le nte de f iniç ã o do nosso te m a .

"O que a som br a sa be ", Ca pítulo 3, é um a e ntr e vista f e ita e m 1989 por
D, P a tr ic k Mille r c om John A, Sa nf or d, a na lista de Sa n Die go e
m inistr o e pisc opa l, or igina lm e nte public a da na r e vista The Sun. Ao
longo de sua c a r r e ir a , Sa nf or d oc upou- se c om a s dif íc e is que stõe s do
m a l hum a no. Sua a ná lise psic ológic a da f a m osa histór ia de Robe r t
Louis Ste ve nson. "Dr, Je ky ll e Mr. Hy de " a pa r e c e no Ca pítulo 5 de sta
se ç ã o.

"A som br a na histór ia e na lite r a tur a " é um e xc e r to de Arc he ty pe s: A


Natural History of the Se lf [ Os Ar qué tipos: Um a Histór ia Na tur a l do
Se lf] , do psic ólogo br itâ nic o Anthony Ste ve ns. I nse r ido e ntr e a s dua s
c ola bor a ç õe s de Sa nf or d, e sse a r tigo de sc r e ve a som br a c onf or m e e la
a pa r e c e na s obr a s da im a gina ç ã o.

O Ca pítulo 6, "A pe r c e pç ã o da som br a nos sonhos", é um e nsa io da


f a m osa psic a na lista e e studiosa dos sonhos Ma r ie - Louise von Fr a nz,
um a da s m a is pr óxim a s c ola bor a dor a s de Jung.

Foi e xtr a ído de M an and M is Sy mbols [ O Hom e m e se us Sím bolos] ,


um livr o popula r que a Dr a . von Fr a nz a j udou a e sc r e ve r e e dita r
j unto c om Jung e tr ê s outr os disc ípulos f ié is no c om e ç o da dé c a da de
60. Esse livr o de r e f e r ê nc ia f oi a últim a obr a de C, G. Jung, um a
c om pila ç ã o de ide ia s e im a ge ns e nde r e ç a da a o le igo e m ge r a l.

Enc e r r a m os e sta se ç ã o c om a s c onstr utiva s obse r va ç õe s do te xto do


te r a pe uta Willia m A. Mille r, "O e nc ontr o da som br a na vida
c otidia na ", e xtr a ído de se u livr o Your Golde n Shadow [ A sua Som br a
Dour a da ] . Mille r le va - nos a o f e nôm e no da som br a a tr a vé s do e xa m e
da s nossa s pr oj e ç õe s, la psos ve r ba is e tir a da s hum or ístic a s, e m ostr a -
nos c om o de sc obr ir a som br a nos a c onte c im e ntos c om uns da vida .

Ce r ta ve z, e xa spe r a do c om a lguns disc ípulos que f a zia m c ita ç õe s


lite r a is de se us c onc e itos f or a do c onte xto, Jung disse : "A som br a é
sim ple sm e nte todo o inc onsc ie nte ! " Em bor a nã o f a la sse a sé r io, sua
obse r va ç ã o só se r ia ve r da de ir a se um a pe ssoa nã o tive sse a m ínim a
pe r c e pç ã o do inc onsc ie nte na vida c otidia na . P ois, tã o logo
c om e ç a m os a de se nvolve r a pe r c e pç ã o de por ç õe s da pe r sona lida de
inc onsc ie nte , a som br a a ssum e um a f or m a pe ssoa l ide ntif ic á ve l, e
isso inic ia o pr oc e sso de trabalho c om a sombra. Esse pr oc e dim e nto
a c a ba r á por le va r- nos a um a pr of unda pe r c e pç ã o de que m r e a lm e nte
som os. De a c or do c om o a na lista Er ic h Ne um a nn: "O s e l f f ic a
e sc ondido na som br a ; e la é a gua r diã dos por ta is, a gua r diã da
e ntr a da . O c a m inho pa r a o se lf é a tr a vé s de la ; por tr á s do a spe c to
e sc ur o que e la r e pr e se nta e stá o a spe c to da tota lida de , e é só f a ze ndo
a m iza de c om a som br a que ga nha m os a a m iza de do se lf."

1. A c ompr ida sac ola que ar r ast amos at r ás de nós

ROB ERT B LY

Diz um a a ntiga tr a diç ã o gnóstic a que nã o inve nta m os a s c oisa s,


a pe na s a s r e le m br a m os. De ntr e os e ur ope us que c onhe ç o, a que le s que
m e lhor r e le m br a m o la do e sc ur o sã o Robe r t Louis Ste ve nson, Jose ph
Conr a d e Ca r l Jung, Vou r e tom a r a lgum a s de sua s ide ia s e a c r e sc e nta r
uns pouc os pe nsa m e ntos m e us.

Fa le m os pr im e ir o sobr e a som br a pe ssoa l. Com um ou dois a nos de


ida de , te m os um a "pe r sona lida de de 360 gr a us". A e ne rgia se ir r a dia
de toda s a s pa r te s do nosso c or po e de toda s a s' pa r te s da nossa
psique . Um a c r ia nç a c or r e ndo é um globo vivo de e ne rgia . Qua ndo
c r ia nç a s, som os um a bola de e ne rgia ; m a s um dia pe r c e be m os que
nossos pa is nã o a pr e c ia m c e r ta s pa r te s de ssa bola . Ele s dize m ; "Voc ê
nã o c onse gue f ic a r quie to?" ou "Nã o é bonito te nta r m a ta r se u
ir m ã ozinho". Atr á s de nós te m os um a sa c ola invisíve l e , pa r a
c onse r va r o a m or de nossos pa is, ne la c oloc a m os a pa r te de nós que
nossos pa is nã o a pr e c ia m . Qua ndo c om e ç a m os a ir à e sc ola , nossa
sa c ola j á é ba sta nte gr a nde , E a í nossos pr of e ssor e s nos dize m : "O
bom m e nino nã o f ic a br a vo c om c oisinha s à - toa ", e nós gua r da m os
nossa r a iva na sa c ola . Qua ndo e u e m e u ir m ã o tínha m os doze a nos c m
Ma dison, Minne sota , é r a m os c onhe c idos c om o "os bons m e ninos Bly ".
Nossa s sa c ola s j á tinha m um quilôm e tr o de c om pr im e nto!

De pois f a ze m os o c ole gia l e pa ssa m os por outr o bom pr oc e sso de


gua r da r c oisa s na sa c ola . Agor a que m nos pr e ssiona nã o sã o os
m a lva dos a dultos e , sim , o nosso pr ópr io gr upo e tá r io. A pa r a noia dos
j ove ns e m r e la ç ã o a os a dultos ta lve z e ste j a de sloc a da . Eu m e ntia
a utom a tic a m e nte , dur a nte todo o c ole gia l, pa r a m e tor na r m a is
pa r e c ido c om os j oga dor e s de ba sque te . Qua lque r pa r te de m im que
f osse m a is "le nta " ia pa r a a sa c ola . Me us f ilhos pa ssa m a gor a por e sse
pr oc e sso, que e u j á tinha obse r va do na s m inha s f ilha s, m a is ve lha s
que e le s. Minha m ulhe r e e u olhá va m os, c onste r na dos, qua nta s c oisa s
e la s c oloc a va m na sa c ola , m a s nã o ha via na da que pudé sse m os f a ze r.
Minha s f ilha s pa r e c ia m tom a r sua s de c isõe s c om ba se na m oda e nos
ide a is c ole tivos de be le za , e sof r ia m ta nta pr e ssã o da s a m iguinha s
qua nto dos r a pa ze s.

P or isso suste nto que o j ove m de 20 a nos c onse r va um a sim ple s f a tia
da que le globo de e ne rgia . I m a gine um hom e m que f ic ou c om um a
f ina f a tia — o r e sta nte do globo e stá na sa c ola — e que e le c onhe c e
um a m ulhe r ; diga m os que a m bos tê m 24 a nos de ida de . Ela c onse r vou
um a f ina e e le ga nte f a tia . Ele s se une m num a c e r im ônia e e ssa uniã o
de dua s f a tia s c ha m a - se c a sa m e nto. Me sm o unidos, os dois nã o
f or m a m um a pe ssoa ! É e xa ta m e nte por isso que o c a sa m e nto, qua ndo
a s sa c ola s sã o gr a nde s, a c a r r e ta solidã o dur a nte a lua - de - m e l. Cla r o
que todos nós m e ntim os a e sse r e spe ito. "Com o f oi sua lua - de - m e l?"
"Fa ntá stic a , e a sua ?"

Ca da c ultur a e nc he a sa c ola c om c onte údos dif e r e nte s. Na c ultur a


c r istã , a se xua lida de ge r a lm e nte va i pa r a a sa c ola . E, c om e la , m uito
da e sponta ne ida de . P or outr o la do, Ma r ie Louise von Fr a nz nos a le r ta
pa r a nã o se ntim e nta liza r m os a s c ultur a s pr im itiva s a ssum indo que e la s
nã o tinha m ne nhum a sa c ola . Ela diz que , na ve r da de , e ssa s c ultur a s
tinha m sa c ola s dif e r e nte s da s nossa s e , à s ve ze s, a té m a ior e s. Ta lve z
c oloc a sse m ne la s a individua lida de ou a inve ntivida de . Aquilo que os
a ntr opólogos c onhe c e m c om o "pa r tic ipa ç ã o m ístic a " ou "a m iste r iosa
m e nte c om una l" pode pa r e c e r m uito bonito, m a s ta lve z signif ique
a pe na s que todos os m e m br os da tr ibo c onhe c e m e xa ta m e nte a
m e sm a c oisa e ne nhum de le s c onhe c e na da a lé m disso. E possíve l que
a s sa c ola s de todos os se r e s hum a nos se j a m m a is ou m e nos do m e sm o
ta m a n h o , P a ssa m os nossa vida a té os 20 a nos de c idindo qua is a s
pa r te s de nós m e sm os que por e m os na sa c ola e pa ssa m os o r e sto da
vida te nta ndo r e tir á - la s de lá . Algum a s ve ze s pa r e c e im possíve l
r e c upe r á - la s c om o se a sa c ola e stive sse la c r a da . Va m os supor que a
sa c ola e stá la c r a da — o que a c onte c e ?... Um a gr a nde nove la do
sé c ulo XI X of e r e c e u um a ide ia a r e spe ito. Ce r ta noite , Robe r t Louis
Ste ve nson a c or dou e c ontou pa r a a m ulhe r um tr e c ho do sonho que
a c a ba r a de te r. Ela o c onve nc e u a e sc r e vê - lo, e le o f e z e o sonho
tor nou- se o "Dr, Je ky ll e Mr. Hy de ". O la do a gr a dá ve l da
pe r sona lida de tor na - se , na nossa c ultur a ide a lista , c a da ve z m a is
a gr a dá ve l, O hom e m oc ide nta l ta lve z se j a , por e xe m plo, um m é dic o
libe r a l que só pe nsa e m f a ze r o be m . Em te r m os m or a is e é tic os, e le é
m a r a vilhoso. Ma s a substâ nc ia na sua sa c ola a ssum e pe r sona lida de
pr ópr ia ; e la nã o pode se r ignor a da . A histór ia c onta que a substâ nc ia
tr a nc a da na sa c ola a pa r e c e , c e r to dia , e m uma outra parte da c ida de .
Ela e stá c he ia de r a iva e , qua ndo f ina lm e nte é vista , te m a f or m a e os
m ovim e ntos de um gor ila .

O que e ssa histór ia c onta é que qua ndo c oloc a m os um a pa r te de nós


na sa c ola , e ssa pa r te r e gr ide . Re tr oc e de a o ba r ba r ism o. I m a gine um
r a pa z que la c r a a sa c ola a os 20 e e spe r a uns quinze ou vinte a nos pa r a
r e a br i- la . O que e le ir á e nc ontr a r ? É tr iste , m a s toda a se xua lida de ,
se lva ge r ia , im pulsivida de , r a iva e libe r da de que e le c oloc ou na sa c ola
r e gr e dir a m ; nã o a pe na s se u te m pe r a m e nto se tor nou pr im itivo c om o
e la s a gor a sã o hostis à pe ssoa que a br e a sa c ola . O hom e m ou a
m ulhe r que a br e m a sa c ola a os 45 a nos se nte m m e do. Ele s dã o um a
olha da e ve e m a som br a de um gor ila se e sgue ir a ndo c ontr a a pa r e de ;
or a , qua lque r pe ssoa que ve j a um a c oisa de ssa s f ic a a te r r or iza da !

P ode - se dize r que , na nossa c ultur a , a m a ior ia dos hom e ns c oloc a o


se u la do f e m inino ( a m ulhe r inte r ior ) na sa c ola . Qua ndo e le que r, lá
pe los 35 ou 40 a nos, e ntr a r nova m e nte e m c onta to c om o se u la do
f e m inino, a m ulhe r inte r ior ta lve z lhe se j a ba sta nte hostil. Ne sse m e io
te m po, e le e stá e nf r e nta ndo a hostilida de da s m ulhe r e s no m undo
e xte r ior. A r e gr a pa r e c e se r : o la do de f or a é um e spe lho do la do de
de ntr o. É a ssim que a s c oisa s sã o ne ste nosso m undo. E a m ulhe r que
que r ia se r a c e ita pe la sua f e m inilida de e pa r a isso gua r dou se u la do
m a sc ulino ( o hom e m inte r ior ) na sa c ola , ta lve z de sc ubr a , vinte a nos
m a is ta r de , que e le lhe é hostil. Ta lve z e le ta m bé m se j a inse nsíve l e
br uta l e m sua s c r ític a s. Essa m ulhe r e sta r á e m a pur os. Vive r c om um
hom e m hostil da r á a e la a lgué m a que m c e nsur a r e a livia r á a pr e ssã o,
m a s nã o r e solve r á o pr oble m a da sa c ola f e c ha da . Ne sse m e io te m po,
e la e stá pr ope nsa a um a dupla r e j e iç ã o: a do hom e m inte r ior e a do
hom e m e xte r ior. Existe m uita dor nisso tudo.

Ca da pa r te da nossa pe r sona lida de que nã o a m a m os tor na r- se - á hostil


a nós. Ela ta m bé m pode dista nc ia r- se de nós e inic ia r um a r e volta
c ontr a nós. Muitos dos pr oble m a s sof r idos pe los r e is de Sha ke spe a r e
de se nvolve r a m - se a pa r tir da í. Hotspur, lá "no P a ís de Ga le s", r e be la -
se c ontr a o r e i. A poe sia de Sha ke spe a r e é m a r a vilhosa m e nte se nsíve l
a o pe r igo de ssa s r e volta s inte r ior e s. O r e i, no c e ntr o, se m pr e e stá e m
pe r igo.

Qua ndo visite i Ba li há a lguns a nos, pe r c e bi que e ssa a ntiga c ultur a


hindu utiliza a m itologia pa r a tr a ze r à luz do dia os e le m e ntos da
som br a . Os te m plos e nc e na m , qua se todos os dia s, r e pr e se nta ç õe s do
Ram ay ana. Algum a s pe ç a s a te r r or iza nte s sã o e nc e na da s c om o pa r te
do c otidia no da vida r e ligiosa . Dia nte da m a ior ia da s c a sa s ba line sa s
e xiste um a f igur a e sc ulpida e m pe dr a : hostil, f e r oz, a gr e ssiva e c om
gr a nde s de nte s a guç a dos. Sua inte nç ã o nã o é f a ze r o be m . Visite i um
f a br ic a nte de m á sc a r a s e vi se u f ilho, de 9 ou 10 a nos, se nta do dia nte
da c a sa a e sc ulpir, c om se u c inze l, um a f igur a hostil e r a ivosa . O
obj e tivo de sse povo nã o é dissipa r a s e ne rgia s a gr e ssiva s — ta l c om o
nós f a ze m os c om o nosso f ute bol ou os e spa nhóis c om a s sua s
tour a da s. Se u ide a l é f a ze r e ssa s e ne rgia s e m e rgir e m na a r te . Os
ba line se s ta lve z se j a m viole ntos e br uta is na gue r r a m a s, na vida
c otidia na , pa r e c e m se r be m m e nos viole ntos que nós. O que isso
signif ic a ? As pe ssoa s do Sul dos Esta dos Unidos c oloc a m no j a r dim
a nõe zinhos ne gr os de f e r r o f or j a do, c om o a j uda ; nós, no Nor te ,
f a ze m os o m e sm o c om pa c íf ic os ve a dinhos. Gosta m os de r osa s no
pa pe l de pa r e de , Re noir sobr e o sof á e John De nve r no a pa r e lho de
som . Entã o a a gr e ssivida de e sc a pa da sa c ola e a ta c a a todos.

Aba ndone m os o c ontr a ste e ntr e a s c ultur a s ba line sa e a m e r ic a na e


siga m os e m f r e nte . Que r o f a la r sobr e a liga ç ã o e ntr e a s e ne rgia s da
som br a e o pr oj e tor de c ine m a . Va m os supor que m inia tur iza m os
a lgum a s pa r te s de nós m e sm os, a s e nr ola m os c om o um f ilm e e
c oloc a m os de ntr o de um a la ta , onde e la s f ic a r ã o no e sc ur o. Entã o
um a noite — se m pr e à noite — a s f or m a s r e a pa r e c e m , im e nsa s, e nã o
c onse guim os de svia r nossos olhos de la s. Esta m os dir igindo à noite ,
f or a da c ida de , e ve m os um hom e m e um a m ulhe r num a e nor m e te la
de c ine m a a o a r livr e ; pa r a m os o c a r r o e obse r va m os, Algum a s
f or m a s que f or a m e nr ola da s de ntr o da la ta ( dupla m e nte invisíve is, por
e sta r e m só pa r c ia lm e nte "r e ve la da s" e por te r e m sido m a ntida s na
e sc ur idã o) e xiste m , dur a nte o dia , a pe na s c om o pá lida s im a ge ns num a
f ina tir a de c e luloide c inze nto. Qua ndo um a c e r ta luz se a c e nde por
tr á s de nós, f or m a s f a nta sm a gór ic a s a pa r e c e m na pa r e de à nossa
f r e nte . Ela s a c e nde m c iga r r os: a m e a ç a m os outr os c om r e vólve r e s.
Nossa psique , por ta nto, é um a m á quina na tur a l de pr oj e ç ã o; pode m os
r e c upe r a r a s im a ge ns que gua r da m os e nr ola da s na la ta e pr oj e tá - la s
pa r a os outr os ou sobr e os outr os.

O m a r ido pode r e ve r sua r a iva , e nr ola da na la ta por vinte a nos, no


r osto da m ulhe r, A m ulhe r que se m pr e vê um he r ói no r osto do
m a r ido, c e r ta noite , vê a li um tir a no. A Nor a de A Doll' s House [ Ca sa
de Bone c a s] via e ssa s dua s im a ge ns a lte r na da m e nte . Um dia de sse s
e nc ontr e i m e us ve lhos diá r ios e pe gue i, a o a c a so, o de 1956. Na que le
a no e u e sta va te nta ndo e sc r e ve r um poe m a sobr e a na tur e za dos
public itá r ios. Le m br e i- m e c om o a le nda de Mida s e r a um f a tor
im por ta nte pa r a a m inha inspir a ç ã o. Tudo o que Mida s toc a va se
tr a nsf or m a va e m our o. No m e u poe m a , e u dizia que toda s a s c oisa s
viva s na s qua is o public itá r io toc a va se tr a nsf or m a va m e m dinhe ir o e
que e r a por isso que os public itá r ios tinha m a a lm a tã o f a m inta . Eu
e sc r e vi pe nsa ndo nos public itá r ios que c onhe c ia e m e dive r ti
a ta c a ndo- os à s e sc ondida s. Ma s, c onf or m e f ui r e le ndo e sse s ve lhos
e sc r itos, se nti um c hoque a o ve r o f ilm e que e u e sta va pr oj e ta ndo.
Entr e a é poc a e m que e sc r e vi tudo a quilo e o a gor a , e u tinha
de sc obe r to c om o c om e r se m inge r ir a lim e nto: a c om ida que os
a m igos m e of e r e c ia m se tr a nsf or m a va e m m e ta l a nte s de c he ga r na
m inha boc a . A im a ge m f ic ou c la r a ? Ningué m pode c om e r ne m be be r
m e ta l. E por isso Mida s e r a im por ta nte pa r a m im . Ma s o f ilm e que
m ostr a va o m e u Mida s inte r ior e sta va e nr ola do na la ta . Os
public itá r ios, pe r ve r sos e tolos, a pa r e c ia m à noite sobr e um a te la
im e nsa e m e f a sc ina va m . Logo de pois de sse poe m a , e sc r e vi um livr o
c ha m a do Poe ms for the Asc e nsion of J . P. M organ [ P oe m a s pa r a a
Asc e nsã o de J. P. Morga n] ; m e us poe m a s sobr e o m undo da s f ina nç a s
a lte r na va m - se c om a núnc ios disc utíve is r e pr oduzidos de j or na is e
r e vista s. A se u m odo, é um livr o vivo. Ningué m quis public á - lo, m a s
tudo be m . De toda m a ne ir a , e r a m só pr oj e ç õe s. Vou le r um poe m a
que e sc r e vi ne ssa é poc a . Cha m a - se "I nquie ta ç ã o".

Estranha inquie taç ão paira sobre a naç ão.


E a última c ontradanç a, o bramir das ondas do mar de M organ,
A div isão do e spólio. Uma lassidão
pe ne tra os diamante s do c orpo.
Na e sc ola, uma e x plosão; uma c rianç a se mimorta;
quando a batalha finda, te rras e mare s arruinados,
duas formas e me rge m e m nós, e se v ão.

M as o babuíno assobia nas praias da morte —


subindo, c aindo, jogando c oc os e c alhaus,
bambole ia na árv ore
c ujos ramos c ontê m a v astidão do frio,
plane tas e m órbita e um sol ne gro,
o zumbido dos inse tos e os v e rme s e sc rav izados
na prisão da c asc a.
Carlos M agno, aportamos às tuas ilhas!

Voltamos às árv ore s c obe rtas de ne v e


e à profunda e sc uridão e nte rrada na ne v e , atrav é s
da qual v iajaste toda a noite
c om as mãos a c onge lar; agora c ai a e sc uridão
na qual dormimos e de spe rtamos — uma sombra onde
o ladrão e stre me c e , o insano de v ora a ne v e ,
ne gra laje se pulta no sonho o banque iro
e o ne goc iante c ai de joe lhos no c alabouç o do sono.

Há c inc o a nos, c om e c e i a suspe ita r de sse poe m a . P or que de i


de sta que e spe c ia l a os ba nque ir os e a os ne goc ia nte s? Se tive sse que
substituir "ba nque ir o", o que e u dir ia ? "Um e str a te gista , a lgué m que
pla ne j a m uito be m "... or a , e u pla ne j o m uito be m . E "ne goc ia nte "?
"Um hom e m im pie doso, de r osto dur o"... olhe i- m e a o e spe lho.
Re e sc r e vi e sse tr e c ho do poe m a , que a gor a e stá a ssim : ... uma sombra
onde

o ladrão e stre me c e , o insano de v ora a ne v e ,


ne gra laje se pulta no sonho o e strate gista
e o impie doso c ai de joe lhos no c alabouç o do sono.

Agor a , qua ndo vou a um a f e sta , sinto- m e dif e r e nte do que c ostum a va
m e se ntir a o c onhe c e r um hom e m de ne góc ios. P e rgunto a um
hom e m , "O que voc ê f a z?" e e le r e sponde , "Ne goc io c om a ç õe s". E
e le te m a r de que m pe de de sc ulpa s. Digo pa r a m im m e sm o, "Ve j a só:
a lgo de m im que e sta va no f undo de m im e stá e xa ta m e nte a o m e u
la do". Sinto a té um a e str a nha vonta de de a br a ç a r o hom e m de
ne góc ios. Nã o todos e le s, é c la r o!

Ma s a pr oj e ç ã o ta m bé m é um a c oisa m a r a vilhosa . Ma r ie - Louise von


Fr a nz obse r vou num de se us e sc r itos: "P or que a ssum im os que a
pr oj e ç ã o é se m pr e um a c oisa r uim ? ' Voc ê e stá pr oj e ta ndo' tor nou- se
um a a c usa ç ã o e ntr e os j unguia nos. As ve ze s a pr oj e ç ã o é útil, é a
c oisa c e r ta ." Sua obse r va ç ã o é sá bia . Eu sa bia que e sta va m e m a ta ndo
de ina niç ã o, m a s e sse c onhe c im e nto nã o c onse guia sa ir dir e ta m e nte
da sa c ola pa r a a m inha m e nte c onsc ie nte . Ele pr e c isa va a nte s pa ssa r
pe lo m undo. "Com o sã o pe r ve r sos os public itá r ios", e u dizia pa r a m im
m e sm o. Ma r ie - Louise von Fr a nz nos f a z le m br a r que , se nã o
pr oj e ta r m os, nunc a c onse guir e m os e sta be le c e r um a c one xã o c om o
m undo. As m ulhe r e s r e c la m a m que o hom e m pe ga se u la do f e m inino
ide a l e o pr oj e ta sobr e e la s. Ma s se nã o f ize sse isso, c om o pode r ia e le
sa ir da c a sa da m ã e ou do a pa r ta m e nto de solte ir o? A que stã o nã o é
ta nto o f a to de pr oj e ta r m os, m a s sim por qua nto te m po m a nte m os a
pr oj e ç ã o sobr e o outr o. P r oj e ç ã o se m c onta to pe ssoa l é pe r igoso.
Milha r e s, m ilhõe s de hom e ns a m e r ic a nos pr oj e ta r a m se u f e m inino
inte r ior sobr e Ma r ily n Monr oe . Se um m ilhã o de hom e ns de ixou sua s
pr oj e ç õe s sobr e e la , o m a is pr ová ve l e r a que Ma r ily n m or r e sse . Ela
m or r e u. P r oj e ç ã o se m c onta to pe ssoa l pode c a usa r da nos à pe ssoa
que a r e c e be .

Se j a dito ta m bé m que Ma r ily n Monr oe pr e c isa va de ssa s pr oj e ç õe s


c om o pa r te de sua â nsia de pode r, e que sua pe r tur ba ç ã o c e r ta m e nte
r e tr oc e dia a pr oble m a s na inf â nc ia . Ma s o pr oc e sso de pr oj e ta r e
r e c olhe r a pr oj e ç ã o — f e ito c om ta nta de lic a de za , f a c e a f a c e , na
c ultur a tr iba l — f oge de c ontr ole qua ndo e ntr a e m c e na a
c om unic a ç ã o de m a ssa . Na e c onom ia da psique , a m or te de Ma r ily n
e r a ine vitá ve l c a té m e sm o c e r ta . Ne nhum se r hum a no pode r e c e be r
ta nta s pr oj e ç õe s — isto é , ta nto c onte údo inc onsc ie nte — e sobr e vive r.
P or isso é da m a ior im por tâ nc ia que c a da pe ssoa tr a ga de volta sua s
pr ópr ia s pr oj e ç õe s.

Ma s por que a br ir m ã o ou c oloc a r na sa c ola ta nto de nós m e sm os? P or


que o f a ze m os a inda tã o j ove ns? E se c oloc a m os de la do ta nta s da s
nossa s r a iva s, e sponta ne ida de s, f om e s, e ntusia sm os, nossa s por ç õe s
r ude s e f e ia s, c om o pode m os vive r ? O que nos m a ntê m vivos? Alic e
Mille r a na lisou e sse ponto no se u livr o Prisione rs of Childhood
[ P r isione ir os da I nf â nc ia ] , public a do e m br oc hur a c om o título The
Drama of the Gifte d Child [ O Dr a m a da Cr ia nç a Be m Dota da ] .

O dr a m a é e ste . Che ga m os c om o be bê s "tr ilha ndo nuve ns de glór ia " e


vindos da s m a is dista nte s a m plidõe s do unive r so, tr a ze ndo c onosc o
a pe tite s be m pr e se r va dos da nossa he r a nç a de m a m íf e r os,
e sponta ne ida de s m a r a vilhosa m e nte pr e se r va da s dos nossos 150 m il
a nos de vida na s á r vor e s, r a iva s be m pr e se r va da s dos nossos 5 m il
a nos de vida tr iba l — e m sum a , ir r a dia ndo nossos 360 gr a us — e
of e r e c e ndo e sse dom a os nossos pa is. Ele s nã o o que r ia m , Que r ia m
um a linda m e nininha ou um lindo ga r otinho. Esse é o pr im e ir o a to do
dr a m a . Nã o que r dize r que nossos pa is f osse m pe r ve r sos; é que e le s
pr e c isa va m de nós pa r a a lgum a c oisa . Minha m ã e , im igr a nte de
se gunda ge r a ç ã o, pr e c isa va de m e u ir m ã o e de m im pa r a da r um
toque de c la sse à f a m ília . Fa ze m os o m e sm o a os nossos f ilhos; é pa r te
da vida ne ste pla ne ta . Nossos pa is r e j e ita r a m a quilo que é r a m os a nte s
de pode r m os f a la r e , a ssim , a dor da r e j e iç ã o e stá pr ova ve lm e nte
gua r da da e m a lgum loc a l pr é - ve r ba l de ntr o de nós.
Qua ndo li o livr o de Alic e Mille r, f ique i de pr im ido por tr ê s se m a na s.
Com ta nta s c oisa s pe r dida s, o que pode m os f a ze r ? P ode m os c onstr uir
um a pe r sona lida de que se j a m a is a c e itá ve l a os nossos pa is. Alic e
Mille r c onc or da que tr a ím os a nós m e sm os m a s diz, "Nã o se c ulpe por
isso. Nã o há na da m a is que voc ê pude sse te r f e ito". Nos te m pos
a ntigos, é pr ová ve l que a s c r ia nç a s que se opunha m a os pa is f osse m
c onde na da s à m or te . Fize m os, e nqua nto c r ia nç a s, a únic a c oisa
se nsa ta dia nte da s c ir c unstâ nc ia s. A a titude a de qua da , diz Alic e Mille r,
é o luto.

Fa le m os a gor a dos outr os tipos de sa c ola s. Qua ndo c oloc a m os m uita


c oisa na nossa sa c ola pa r tic ula r, o r e sulta do é nos sobr a r pouc a
e ne rgia . Qua nto m a ior a sa c ola , m e nor a e ne rgia . Algum a s pe ssoa s
tê m , por na tur e za , m a is e ne rgia que outr a s; m a s todos nós te m os m a is
e ne rgia do que nos é possíve l usa r. P a r a onde e la f oi? Se c oloc a m os
nossa se xua lida de na sa c ola e nqua nto som os c r ia nç a s, é lógic o que
pe r de m os ba sta nte e ne rgia . Qua ndo c oloc a o se u la do m a sc ulino na
sa c ola ou o e nr ola c om o um f ilm e e gua r da na la ta , um a m ulhe r
pe r de e ne rgia . Assim , pode m os im a gina r que a nossa sa c ola pe ssoa l
c onté m e ne rgia que a gor a nã o e stá à nossa disposiç ã o, Se um hom e m
diz que nã o é c r ia tivo, que r dize r que e le gua r dou sua c r ia tivida de na
sa c ola . O que e le que r dize r c om "Eu nã o sou c r ia tivo"? Nã o se r ia
"De ixe pa r a o e spe c ia lista "? Or a , é e xa ta m e nte isso que e le e stá
dize ndo! O que e le que r é um poe ta de a lugue l, um m e r c e ná r io c a ído
dos c é us. Ele de ve r ia , isso sim , e sta r e sc r e ve ndo os se us pr ópr ios
poe m a s.

Já f a la m os da nossa sa c ola pe ssoa l, m a s pa r e c e que c a da c ida de ou


c om unida de ta m bé m possui a sua sa c ola . Vivi m uitos a nos nos
a r r e dor e s de um a c ida de zinha a gr íc ola de Minne sota . Espe r a va - se que
c a da ha bita nte da que la c ida de tive sse os m e sm os obj e tos na sa c ola ;
or a , qua lque r a lde ia gr e ga te r ia obj e tos dif e r e nte s na sa c ola ! E c om o
se a c ida de , por um a de c isã o psíquic a c ole tiva , c oloc a sse c e r ta s
e ne rgia s na sa c ola e te nta sse im pe dir que a lgué m a s tir a sse de lá .
Ne sse a ssunto, a s c ida de s inte r f e r e m c om nossos pr oc e ssos
pa r tic ula r e s e é por isso que é m a is pe r igoso vive r na s c ida de s do que
j unto à na tur e za . P or outr o la do, c e r tos ódios f e r oze s que se ntim os
num a c ida de pe que na à s ve ze s nos a j uda m a ve r pa r a onde f or a m a s
nossa s pr oj e ç õe s. A c om unida de j unguia na , c om o a c ida de , te m a sua
sa c ola ; e la ge r a lm e nte r e c om e nda a os j unguia nos que m a nte nha m a
vulga r ida de e o a m or a o dinhe ir o na sa c ola . Ma s a c om unida de
f r e udia na ge r a lm e nte e xige que os f r e udia nos m a nte nha m sua vida
r e ligiosa na sa c ola , Existe ta m bé m um a sa c ola na c iona l, e a nossa é
be m c om pr ida . A Rússia e a China tê m de f e itos dignos de nota ; m a s se
um c ida dã o a m e r ic a no tive r c ur iosida de de sa be r o que e xiste na
nossa sa c ola na c iona l ne ste insta nte , ba sta ouvir c om a te nç ã o a lgum
f unc ioná r io do De pa r ta m e nto de Esta do c r itic a ndo a Rússia . Com o
dizia Rona ld Re a ga n, nós som os nobr e s; a s outr a s na ç õe s tê m
im pé r ios. As outr a s na ç õe s supor ta m lide r a nç a s e sta gna da s, tr a ta m a s
m inor ia s c om br uta lida de , f a ze m la va ge m c e r e br a l e m se us j ove ns e
r om pe m tr a ta dos. Um r usso pode r á de sc obr ir a r e spe ito da sa c ola
r ussa le ndo a lgum a r tigo do Prav da sobr e os Esta dos Unidos. Esta m os
lida ndo c om um a r e de de som br a s, um pa dr ã o de som br a s pr oj e ta do
por a m bos os la dos e todos se e nc ontr a ndo e m a lgum ponto no a r. Nã o
e stou dize ndo na da de novo c om e sta m e tá f or a , m a s que r o tor na r be m
c la r a a distinç ã o e ntr e a som br a pe ssoa l, a som br a da c ida de e a
som br a na c iona l.

Use i tr ê s m e tá f or a s a qui: a sa c ola , a la ta de f ilm e e a pr oj e ç ã o. Já


que a la ta ( ou sa c ola ) e stá f e c ha da e sua s im a ge ns pe r m a ne c e m na
e sc ur idã o, só pode m os ve r o se u c onte údo qua ndo o la nç a m os — c om
a m a ior inoc ê nc ia , c om o c ostum a m os dize r — lá f or a no m undo. E
e ntã o a s a r a nha s se tor na m m á s, a s se r pe nte s a stuc iosa s e os bode s
libidinosos; os hom e ns tor na m - se line a r e s, a s m ulhe r e s pa ssa m a se r
f r a c a s, os r ussos de ixa m de te r pr inc ípios e todos os c hine se s se
pa r e c e m . Ape sa r de tudo, é pr e c isa m e nte a tr a vé s de sse "m a r de
la m a " dispe ndioso, pr e j udic ia l, r uinoso e c onf uso que a c a ba r e m os por
e ntr a r e m c onta to c om a la m a sob nossos pé s.

2. A e voluç ão da sombr a

EDWARD C. WHITM ONT


O te r m o s o m b r a r e f e r e - se à que la pa r te da pe r sona lida de que f oi
r e pr im ida e m be ne f íc io do e go ide a l. Um a ve z que toda s a s c oisa s
inc onsc ie nte s sã o pr oj e ta da s, e nc ontr a m os a som br a na pr oj e ç ã o —
na nossa visã o do "outr o". Assim c om o a s f igur a s onír ic a s ou
f a nta sia s, a som br a r e pr e se nta o inc onsc ie nte pe ssoa l. Ela é c om o que
um c om posto da s c our a ç a s pe ssoa is dos nossos c om ple xos e , por ta nto,
o por ta l de a c e sso a toda s a s e xpe r iê nc ia s tr a nspe ssoa is m a is
pr of unda s.

Fa la ndo e m te r m os pr á tic os, é c om um que a som br a a pa r e ç a c om o


um a pe r sona lida de inf e r ior. No e nta nto, pode ha ve r ta m bé m um a
som br a positiva , que surge qua ndo te nde m os a nos ide ntif ic a r c om a s
nossa s qua lida de s ne ga tiva s e a r e pr im ir nossa s qua lida de s positiva s.

Este é um e xe m plo c lá ssic o de um a situa ç ã o que nos é f a m ilia r. Um a


pa c ie nte de m e ia ida de que ixa va - se inc e ssa nte e a m a rga m e nte da
sogr a . Sua de sc r iç ã o do pr oble m a , de m odo ge r a l, pa r e c e c or r e ta e
a de qua da , pois a s de c la r a ç õe s do se u m a r ido e r a m qua se idê ntic a s. A
m ã e é vista por a m bos c om o dom ina dor a a o e xtr e m o, c om o a lgué m
inc a pa z de a dm itir a s opiniõe s a lhe ia s, c om o a lgué m que pe de
c onse lhos e logo os de spr e za , c om o a lgué m que se diz e m posiç ã o de
de sva nta ge m , a busa da e m a r tir iza da ; o r e sulta do é que o
r e la c iona m e nto c om e la tor na - se im possíve l. Nossa pa c ie nte ( a nor a )
se nte que a sogr a se inte r põe e ntr e e la e o m a r ido: o f ilho pr e c isa
c onsta nte m e nte se r vir à m ã e , e a e sposa , e m c onse quê nc ia , se nte - se
e c lipsa da . Sua situa ç ã o c onj uga l pa r e c e e sta r num im pa sse insolúve l.
Ela te m o se guinte sonho: Estou num c or r e dor e sc ur o. Te nto a lc a nç a r
m e u m a r ido, m a s o c a m inho e stá ba r r a do pe la m inha sogr a . O m a is
a ssusta dor, no e nta nto, é que a m inha sogr a nã o m e vê e m bor a um
holof ote br ilhe inte nsa m e nte sobr e m im . E c om o se , pa r a e la , e u nã o
e xistisse .

Le m br e m o- nos que um sonho se m pr e suge r e um a situa ç ã o


inc onsc ie nte . Ele é c om ple m e nta r e r e ve la a quilo que nã o e stá
suf ic ie nte m e nte de ntr o do c a m po da nossa pe r c e pç ã o. Um sonho nã o
ir á r e f or m ula r um a situa ç ã o que o sonha dor j á pe r c e be de m odo
a de qua do e c or r e to. Qua ndo e xiste m dúvida s na m e nte c onsc ie nte , um
sonho pode a j uda r a r e solvê - la s pe la r e ite r a ç ã o, m a s, qua ndo o sonho
r e pe te a lgo de que nos se ntim os a bsoluta m e nte c onve nc idos, tr a ta - se
de um de sa f io que nos e stá se ndo f e ito pe lo inc onsc ie nte ; nossa s
pr oj e ç õe s se e rgue m c ontr a nós. A pr im e ir a vista , o sonho da nossa
pa c ie nte pa r e c e c onf ir m a r a sua que ixa c onsc ie nte . Ma s o que e le diz
qua ndo busc a m os um a pr oj e ç ã o inc onsc ie nte ? Ele diz, c om toda a
c la r e za , à sonha dor a , "O holof ote e stá sobr e v oc ê , nã o sobr e a sua
sogr a ". Ele m ostr a a s qua lida de s inc onsc ie nte s que e la pr oj e ta sobr e a
sogr a e que se inte r põe m e ntr e e la pr ópr ia e o m a r ido. Ne la, a sogr a
im pe de - a de a lc a nç a r o m a r ido. O que se inte r põe no se u c a m inho é a
sua própria te ndê nc ia de se m pr e e sta r c om a r a zã o, a sua própria
te ndê nc ia de c r ia r obstá c ulos e m e nospr e za r a s c oisa s e a sua própria
te ndê nc ia de se r a gr a nde m á r tir. O holof ote e stá sobr e e la , m a s a
sogr a nã o a vê ; e la e stá tã o dom ina da e ide ntif ic a da c om a s
qua lida de s im puta da s à sogr a que é inc a pa z de ve r a si m e sm a c om o
r e a lm e nte é , de ve r a sua pr ópr ia e ve r da de ir a individua lida de . Em
c onse quê nc ia , é c om o se a sua individua lida de de ixa sse de e xistir. Já
que nã o c onse gue ve r r e a lm e nte a si m e sm a , e la ta m pouc o c onse gue ,
na vida r e a l, ve r a sogr a c om o um se r hum a no e , por ta nto, nã o
c onse gue lida r de m odo a de qua do c om a s tá tic a s de obstr uç ã o que
utiliza . Esse é um c ír c ulo vic ioso pe r f e ito, que ine vita ve lm e nte oc or r e
qua ndo f ic a m os a pr isiona dos a um a pr oj e ç ã o de som br a ( ou a um a
pr oj e ç ã o de anim us ou de anim a) . Um a pr oj e ç ã o se m pr e e m ba ç a a
nossa visã o da outr a pe ssoa . Me sm o qua ndo a c onte c e de a s qua lida de s
pr oj e ta da s se r e m qua lida de s r e a is da outr a pe ssoa — c om o oc or r e
ne ste c a so —, a r e a ç ã o a f e tiva que m a r c a a pr oj e ç ã o suge r e que o
c om ple xo a f e tivo e m n ó s e m ba ç a a nossa visã o e inte r f e r e c om a
nossa c a pa c ida de de ve r c om obj e tivida de e e sta be le c e r r e la ç õe s de
um m odo hum a no.

I m a gine m os um m otor ista que , se m pe r c e be r, usa óc ulos c om le nte s


ve r m e lha s. Ele te r ia dif ic ulda de s pa r a distinguir e ntr e a s luze s
ve r m e lha , a m a r e la e ve r de dos se m á f or os e c or r e r ia pe r igo c onsta nte
de sof r e r um a c ide nte . De na da lhe a dia nta r ia que a lgum a s, ou
m e sm o que toda s a s luze s que e le pe r c e be c om o ve r m e lha s f osse m
r e a lm e nte ve r m e lha s. O pe r igo, pa r a e le , e stá na sua inc a pa c ida de de
dif e r e nc ia r e se pa r a r o que a sua "pr oj e ç ã o ve r m e lha " lhe im põe ,
Qua ndo oc or r e um a pr oj e ç ã o de som br a , nã o som os c a pa ze s de
dif e r e nc ia r e ntr e a r e a lida de da outr a pe ssoa e nossos pr ópr ios
c om ple xos. Nã o c onse guim os distinguir e ntr e f a to e f a nta sia . Nã o
c onse guim os ve r onde c om e ç a m os e onde o outr o te r m ina . Nã o
c onse guim os ve r o outr o; ne m a nós m e sm os.

P e ç a pa r a um a m igo lhe de sc r e ve r o tipo de pe r sona lida de que e le


a c ha m a is de spr e zíve l, m a is insupor tá ve l, m a is odiosa e de c onvívio
m a is im possíve l; e le de sc r e ve r á a s sua s pr ópr ia s c a r a c te r ístic a s
r e pr im ida s — um a a utode sc r iç ã o que é a bsoluta m e nte inc onsc ie nte e
que , por ta nto, se m pr e o tor tur a qua ndo e le r e c e be se u e f e ito de um a
outra pe ssoa . Essa s m e sm a s qua lida de s sã o tã o ina c e itá ve is pa r a e le
pr e c isa m e nte por que e la s r e pr e se nta m o se u pr ópr io la do r e pr im ido;
só a c ha m os im possíve l a c e ita r nos outr os a quilo que nã o c onse guim os
a c e ita r e m nós m e sm os. Qua lida de s ne ga tiva s que nã o nos
inc om oda m de m odo tã o inte nso ou que a c ha m os r e la tiva m e nte f á c il
pe r doa r — se é que pr e c isa m os pe r doá - la s — e m ge r a l nã o
pe r te nc e m à nossa som br a .

A som br a é a e xpe r iê nc ia a r que típic a do "outr o", a que le que , por se r-


nos e str a nho, é se m pr e suspe ito. A som br a é o im pulso a r que típic o de
busc a r o bode e xpia tór io, de busc a r a lgué m pa r a c e nsur a r e a ta c a r a
f im de nos vinga r m os e nos j ustif ic a r m os; e la é a e xpe r iê nc ia
a r que típic a do in im ig o , a e xpe r iê nc ia da c ulpa bilida de que se m pr e
r e c a i sobr e o outr o, pois e sta m os sob a ilusã o de que c onhe c e m os a
nós m e sm os e j á tr a ba lha m os a de qua da m e nte nossos pr ópr ios
pr oble m a s. Em outr a s pa la vr a s, na m e dida e m que é pr e c iso que e u
se j a bom e j usto, e le , e la ou e le s tor na m - se os r e c e ptá c ulos de todo o
m a l que de ixo de r e c onhe c e r de ntr o de m im m e sm o.

As r a zõe s pa r a isso r e side m na na tur e za m e sm a do pr ópr io e go; o


de se nvolvim e nto do e go oc or r e c om o r e sulta do do e nc ontr o e ntr e o Eu
— e nqua nto te ndê nc ia pote nc ia l da pe r sona lida de — e a r e a lida de
e xte r na , ou se j a , e ntr e a individua lida de pote nc ia l inte r ior e a
c ole tivida de e xte r ior. No pr im e ir o níve l de e xpe r iê nc ia e ntr e o c e r to e
o e r r a do, que é a ba se pa r a a a utoa c e ita ç ã o, os iníc ios de c onsc iê nc ia
sã o a ssum idos e pr oj e ta dos sobr e a c ole tivida de e xte r ior. A c r ia nç a
a c e ita a si m e sm a e m te r m os de a de qua ç ã o. A ha r m onia c om o Eu ( e ,
por ta nto, c om a c onsc iê nc ia ) pa r e c e de pe nde r de iníc io da a c e ita ç ã o
e xte r na — ou se j a , dos va lor e s c ole tivos e da p e rso n a , be m c om o
da que le s e le m e ntos da individua lida de que e stã o de m a sia do e m
de sa c or do c om os va lor e s a c e itos da p e r s o n a pa r a pode r e m se r
c onsc ie nte m e nte inc or por a dos à im a ge m que o e go f a z de si m e sm o.
Ele s se tor na m , a ssim , suj e itos a r e pr e ssã o. Ma s nã o de sa pa r e c e m ;
c ontinua m a a tua r c om o um alte r e go invisíve l que pa r e c e e sta r f or a
do indivíduo — e m outr a s pa la vr a s, a tua m c om o a som br a . O
de se nvolvim e nto do e go ba se ia - se na r e pr e ssã o do "e r r a do" ou do
"m a u" e na pr om oç ã o do "bom ". Nosso e go nã o c onse gue f or ta le c e r-
se a m e nos que pr im e ir o a pr e nda m os os ta bus c ole tivos, a c e ite m os os
va lor e s do supe r e go e da p e r s o n a e nos ide ntif ique m os c om os
pa dr õe s m or a is c ole tivos.

É da m a ior im por tâ nc ia nota r que a s qua lida de s que f or a m r e pr im ida s


por se r e m inc om pa tíve is c om os ide a is da pe rsona e c om os va lor e s
c ultur a is ge r a is ta lve z se j a m f unda m e nta is pa r a a e str utur a bá sic a da
pe r sona lida de ; m a s, por te r e m sido r e pr im ida s, pe r m a ne c e r ã o
pr im itiva s e , por ta nto, ne ga tiva s. I nf e lizm e nte , a r e pr e ssã o nã o
e lim ina a s qua lida de s ou im pulsos, ne m os im pe de de a gir. Ela a pe na s
os r e m ove da c onsc iê nc ia do e go; e le s c ontinua m a e xistir c om o
c om ple xos. Ao se r e m r e m ovidos da nossa visã o, e sc a pa m da nossa
supe r visã o e pode m , a ssim , c ontinua r a e xistir de m odo ir r e f r e a do e
de str utivo. P or ta nto, a som br a c onsiste e m c om ple xos e qua lida de s
pe ssoa is ba se a dos e m im pulsos e pa dr õe s de c om por ta m e nto que sã o
um a inque stioná ve l pa r te "e sc ur a " da e str utur a da pe r sona lida de . Na
m a ior ia dos c a sos, e ssa s qua lida de s sã o f a c ilm e nte obse r vá ve is pe la s
outr a s pe ssoa s. Só nós m e sm os nã o c onse guim os vê - la s. As qua lida de s
da som br a f or m a m , e m ge r a l, um a gudo c ontr a ste c om os ide a is do
e go e os e sf or ç os da vonta de . O a ltr uísta se nsíve l ta lve z a br igue um
br uta l e goísta de ntr o de si; a som br a do br a vo gue r r e ir o ta lve z se j a
um la m ur ia nte c ova r de ; a doc e na m or a da ta lve z hospe de um a a m a rga
m e ge r a .

A e xistê nc ia da som br a ( ou a ne c e ssida de de la ) é um a r e a lida de


a r que típic a do gê ne r o hum a no, pois o pr oc e sso de f or m a ç ã o do e go —
o c onf lito e ntr e c ole tivida de e individua lida de — é um pa dr ã o hum a no
ge r a l. A som br a é pr oj e ta da de dua s m a ne ir a s: individua lm e nte , na
f or m a da pe ssoa a que m a tr ibuím os todo o m a l; e c ole tiva m e nte , na
sua f or m a m a is ge r a l, c om o o I nim igo, a pe r sonif ic a ç ã o do m a l. Sua s
r e pr e se nta ç õe s m itológic a s sã o o dia bo, o a r qui- inim igo, o te nta dor, o
de m ônio, o duplo ou o e le m e nto e sc ur o/m a u no pa r de ir m ã os/ir m ã s.
A som br a é um c om pone nte do de se nvolvim e nto do e go, Ela é um
pr oduto da c isã o que oc or r e qua ndo e sta be le c e m os o c e ntr o da nossa
pe r c e pç ã o. Ela é a quilo que , a o m e dir m os o c onj unto, pe r c e be m os
que f a lta va . Ela c oinc ide de m odo a pr oxim a do c om a quilo que f oi
c onside r a do ( pr im e ir o por Fr e ud e , a gor a , por qua se todos nós) c om o
o inc onsc ie nte : ou se j a , os e le m e ntos r e pr im idos da c onsc iê nc ia . Na s
r e pr e se nta ç õe s inc onsc ie nte s e spontâ ne a s, a som br a ge r a lm e nte é
pe r sonif ic a da por um a f igur a do m e sm o se xo da pe ssoa que a sonha .

O r e c onhe c im e nto da som br a pode a c a r r e ta r e f e itos m a r c a nte s sobr e


a pe r sona lida de c onsc ie nte . A pr ópr ia noç ã o de que o m a l que ve m os
na outr a pe ssoa ta lve z e ste j a e m nós m e sm os, pode pr ovoc a r c hoque s
de inte nsida de va r ia da de pe nde ndo da f or ç a da s nossa s c onvic ç õe s
é tic a s e m or a is. E pr e c iso â nim o pa r a nã o f ugir ou se r e sm a ga do pe la
visã o da pr ópr ia som br a ; é pr e c iso c or a ge m pa r a a ssum ir a
r e sponsa bilida de pe lo pr ópr io e u inf e r ior. Qua ndo e sse c hoque pa r e c e
qua se im possíve l de se r supor ta do, o inc onsc ie nte ge r a lm e nte e xe r c e
sua f unç ã o c om pe nsa tór ia e ve m e m nossa a j uda c om um a visã o
c onstr utiva da situa ç ã o; c om o ne ste sonho: Algué m que ria me matar
c om uma maç ã. Então, v i que um dos me us v izinhos, de que m jamais
goste i, hav ia c onse guido transformar um te rre no roc hoso e árido, que
e u c onside rav a inútil, num bonito jardim.

Esse sonho m ostr a o pr oble m a da som br a sob dois â ngulos: pr im e ir o,


e m te r m os a r que típic os e de pois e m te r m os individua is. O pa c ie nte
a ssoc ia va à m a ç ã a f a m osa m a ç ã do pr im e ir o c a pítulo do Gê ne sis —
o pr e se nte do dia bo. A pe ssoa de sc onhe c ida que te nta va m a ta - lo c om
o pr e se nte do dia bo ( ou da se r pe nte ) r e pr e se nta um a f or m a
a r que típic a da som br a , a r e a lida de hum a na ge r a l de que todos nós
pr e c isa m os lida r c om o pr oble m a da som br a . O vizinho r e a l, de que m
e le nã o gosta va , r e pr e se nta a som br a pe ssoa l, Na ve r da de , o sonho
diz: "Voc ê r e c e ia que a som br a — a quilo e m voc ê que of e r e c e a
m a ç ã , a disc r im ina ç ã o e ntr e o be m e o m a l e , por ta nto, a c onsc iê nc ia
da te nta ç ã o do m a l de ntr o de voc ê — o m a te ." P ois, por te r c om ido a
m a ç ã , o hom e m c onhe c e r ia a m or te ( Gê ne sis 3:19) ; m a s a m a ç ã
ta m bé m im plic a que "... se r e is c om o de use s, c onhe c e ndo o be m e o
m a l" ( Gê ne sis 3:5) . O sonho, por ta nto, suge r e que e sse pr oble m a
pe ssoa l que ta nto c hoc ou o se u sonha dor é um pr oble m a ge r a l,
f unda m e nta l, hum a no — logo, a r que típic o. A c onf r onta ç ã o c om o
pr ópr io m a l pode se r um a e xpe r iê nc ia m or tif ic a nte e de str utiva ; m a s,
c om o a m or te , e la a ponta pa r a a lé m do signif ic a do pe ssoa l da
e xistê nc ia . É im por ta nte que o sonha dor pe r c e ba isso.

A se gunda pa r te do sonho diz: "Foi o se u pr ópr io la do da som br a —


a quilo e m voc ê que voc ê a c ha ina c e itá ve l, ou se j a , a que la s qua lida de s
que voc ê a ssoc ia a o vizinho de que m nã o gosta — que tr a nsf or m ou
um te r r e no á r ido e inútil num pa r a íso." A som br a , qua ndo pe r c e bida , é
um a f onte de r e nova ç ã o; o im pulso novo e pr odutivo j a m a is na sc e dos
va lor e s e sta be le c idos do e go. Qua ndo c he ga m os a um im pa sse , a um a
f a se e sté r il e m nossa vida — a pe sa r de um de se nvolvim e nto a de qua do
do e go — de ve m os busc a r o nosso la do e sc ur o e a té e ntã o ina c e itá ve l,
que e stá à disposiç ã o do nosso la do c onsc ie nte . No Fausto, Goe the f a z
o dia bo r e sponde r a ssim qua ndo lhe pe rgunta m , "Que m sois, e ntã o?":
Parte daque le Pode r que pe nsa faze r o M al e ac aba faze ndo o Be m.

( O inve r so ta m bé m é ve r da de ir o: qua nto m a is que r e m os f a ze r o be m ,


m a is a c a ba m os c r ia ndo o m a l — qua ndo, por e xe m plo, nos tor na m os
"f a ze dor e s do be m " pr of issiona is, sube stim a ndo o m a l ou de ixa ndo de
pe r c e be r nossa s inte nç õe s e goísta s.) I sso nos le va a o f a to bá sic o de
que a som br a é a por ta pa r a a nossa individua lida de . Na m e dida e m
que nos of e r e c e um pr im e ir o vislum br e da pa r te inc onsc ie nte da
nossa pe r sona lida de , a som br a r e pr e se nta o pr im e ir o e stá gio e m
dir e ç ã o a o e nc ontr o do Eu. Nã o e xiste , na ve r da de , ne nhum a c e sso a o
inc onsc ie nte e à nossa pr ópr ia r e a lida de se não a tr a vé s da som br a . Só
qua ndo pe r c e be m os a que la pa r te de nós m e sm os que a té e ntã o nã o
vim os ou pr e f e r im os nã o ve r, pode m os a va nç a r pa r a que stiona i e
e nc ontr a r a s f onte s da s qua is e la se a lim e nta e a s ba se s sobr e a s qua is
r e pousa . Logo, ne nhum pr ogr e sso ne m c r e sc im e nto sã o possíve is a té
que a som br a se j a a de qua da m e nte c onf r onta da — e c onf r ontá - la
signif ic a m a is do que a pe na s c onhe c ê - la . Só de pois de te r m os f ic a do
r e a lm e nte c hoc a dos a o ve r c om o som os de ve r da de , c m ve z de nos
ve r c om o que r e m os se r ou pr e te nde m os se r, é que pode m os da r o
pr im e ir o pa sso r um o à r e a lida de individua l.

Qua ndo a pe ssoa é inc a pa z de inte gr a r se u pote nc ia l positivo e se


de sva lor iza e m e xc e sso, ou qua ndo e la é idê ntic a — por f a lta de f or ç a
m or a l, por e xe m plo — a o se u pr ópr io la do ne ga tivo, e ntã o o pote nc ia l
positivo tom a - se a c a r a c te r ístic a da som br a . Ne sse c a so, a som br a é
um a som br a positiva ; e la é , e ntã o, o m a is lum inoso dos "dois ir m ã os".
Ne sse c a so, os sonhos ta m bé m te nta r ã o tr a ze r à c onsc iê nc ia a quilo
que f oi inde vida m e nte sube stim a do: a s qua lida de s positiva s. I sso, no
e nta nto, oc or r e c om m e nos f r e quê nc ia do que a im a ge m
e xa ge r a da m e nte boa e br ilha nte de nós m e sm os. For m a m os e ssa
im a ge m br ilha nte por que q u e r e m o s e sta r de ntr o de pa dr õe s
c ole tiva m e nte a c e itá ve is.

Existe m dive r sa s m a ne ir a s possíve is de r e a gir à som br a . Re c usa m o-


nos a e nf r e ntá - la . Ou, um a ve z c onsc ie nte s de que e la é pa r te de nós,
te nta m os e lim iná - la e r e m ovê - la de im e dia to. Ou nos r e c usa m os a
a ssum ir a r e sponsa bilida de por e la e de ixa m os que e la a j a a se u
m odo. Ou ta lve z opte m os por "sof r e - la " de um a m a ne ir a c onstr utiva ,
ve ndo- a c om o a pa r te da nossa pe r sona lida de que pode r á nos le va r a
um a sa udá ve l hum ilda de e hum a nida de , e a té m e sm o a nova s
de sc obe r ta s e a hor izonte s m a is a m plos.

Qua ndo nos r e c usa m os a e nf r e nta r a som br a , ou qua ndo te nta m os


c om ba tê - la c om a f or ç a da nossa vonta de , e xc la m a ndo: "P a r a tr á s,
Sa ta ná s! ", e sta m os tã o- som e nte r e le ga ndo e ssa e ne rgia pa r a o
inc onsc ie nte e da li e la e xe r c e r á se u pode r de um a f or m a ne ga tiva ,
c om pulsiva , pr oj e ta da . Entã o, nossa s pr oj e ç õe s tr a nsf or m a m o m undo
à nossa volta num a m bie nte que nos m ostr a a nossa pr ópr ia f a c e ,
m e sm o que nã o a r e c onhe ç a m os c om o nossa . Tor na m o- nos c a da ve z
m a is isola dos; e m ve z de um a r e la ç ã o r e a l c om o m undo à nossa
volta , e xiste a pe na s um a r e la ç ã o ilusór ia , pois nos r e la c iona m os, nã o
c om o m undo c om o e le é , m a s sim c om o "m undo m a u e pe r ve r so"
que a pr oj e ç ã o da nossa som br a nos m ostr a . O r e sulta do é um e sta do
de se r inf la do e a utoe r ótic o, se c c iona do da r e a lida de , que ge r a lm e nte
tom a a s c onhe c ida s f or m a s de "Ah, se pe lo m e nos ta l c oisa f osse
a ssim ", ou "Ah, qua ndo ta l c oisa a c onte c e r " ou "Ah, se a s pe ssoa s m e
e nte nde sse m ( ou a pr e c ia sse m ) dir e ito".

De vido à s nossa s pr oj e ç õe s, ve m os e sse im pa sse c om o ódio do


a m bie nte por nós; c om isso, c r ia m os um c ír c ulo vic ioso que se
p r o lo n g a ad infinitum, ad nause am. Essa s pr oj e ç õe s da r ã o um a ta l
f or m a à s nossa s a titude s e m r e la ç ã o a os outr os que por f im f a r e m os
surgir, lite r a lm e nte , a quilo que pr oj e ta m os. I m a gina m o- nos tã o
pe r se guidos pe lo ódio que o ódio a c a ba na sc e ndo nos outr os e m
r e sposta a os nossos c á ustic os m e c a nism os de de f e sa . O outr o vê a
nossa de f e nsiva c om o hostilida de gr a tuita : isso de spe r ta os se us
m e c a nism os de de f e sa e e le pr oj e ta a sua som br a sobr e nós; r e a gim os
c om a nossa de f e nsiva , c a usa ndo a ssim a inda m a is ódio.

P a r a pr ote ge r o se u pr ópr io c ontr ole e sobe r a nia , o e go


instintiva m e nte of e r e c e gr a nde r e sistê nc ia a o c onf r onto c om a
som br a ; qua ndo c a pta um vislum br e da som br a , a r e a ç ã o m a is
c om um do e go é te nta r e lim iná - la . Mobiliza m os a nossa vonta de e
de c idim os, "Nã o que r o m a is se r a ssim ! " E e ntã o ve m o de str uidor
c hoque f ina l, qua ndo de sc obr im os que isso é im possíve l, pe lo m e nos
e m pa r te , por m a is que te nte m os. P ois a som br a r e pr e se nta pa dr õe s
de se ntim e nto e de c om por ta m e nto a utônom os e e ne rge tic a m e nte
c a r r e ga dos. A e ne rgia de sse s pa dr õe s nã o pode se r sim ple sm e nte
de tida por um a to da vonta de . Tor na - se ne c e ssá r ia um a r e c a na liza ç ã o
ou tr a nsf or m a ç ã o. No e nta nto, e ssa ta r e f a e xige a pe r c e pç ã o e a
a c e ita ç ã o da som br a c om o a lgo que nã o pode se r sim ple sm e nte
e lim ina do.

De a lgum m odo, qua se todos nós se ntim os que qua lque r qua lida de ,
um a ve z r e c onhe c ida , pr e c isa r á ne c e ssa r ia m e nte se r pa ssa da a o a to;
pois, m a is dolor oso do que e nf r e nta r a som br a , é r e sistir a os nossos
im pulsos e m oc iona is, supor ta r a pr e ssã o de um de se j o, sof r e r a
f r ustr a ç ã o ou a dor de um de se j o insa tisf e ito. Logo, pa r a e vita r te r de
r e sistir a os nossos im pulsos e m oc iona is qua ndo os r e c onhe c e m os,
pr e f e r im os sim ple sm e nte nã o vê - los e nos c onve nc e r de que e le s nã o
e stã o a li. A r e pr e ssã o pa r e c e m e nos dolor osa que a disc iplina . Ma s e la
é , inf e lizm e nte , m a is pe r igosa , pois nos f a z a gir se m a c onsc iê nc ia dos
nossos m otivos, ou se j a , de m odo ir r e sponsá ve l. Me sm o que nã o
se j a m os r e sponsá ve is pe lo m odo c om o somos e se ntim os, pr e c isa m os
a ssum ir a r e sponsa bilida de pe lo m odo c om o a g i m o s . P or ta nto,
pr e c isa m os a pr e nde r a nos disc iplina r. E a disc iplina e stá na
c a pa c ida de de , qua ndo ne c e ssá r io, a gir de m odo c ontr á r io a os nossos
se ntim e ntos. Essa é um a pr e r r oga tiva — be m c om o um a ne c e ssida de
— e m ine nte m e nte hum a na .

A r e pr e ssã o, por outr o la do, sim ple sm e nte de svia os olhos. Qua ndo
pe r siste nte , a r e pr e ssã o se m pr e le va a e sta dos psic opa tológic os; m a s
e la é , ta m bé m , indispe nsá ve l à f or m a ç ã o inic ia l do e go. I sso signif ic a
que todos nós por ta m os os ge r m e s da psic opa tologia de ntr o de nós.
Ne sse se ntido, um a psic opa tologia e m pote nc ia l é um a pa r te
inte gr a nte da nossa e str utur a hum a na , A som br a pr e c isa te r, de a lgum
m odo, e m a lgum m om e nto, e m a lgum luga r, o se u luga r de e xpr e ssã o
le gítim a . Ao c onf r ontá - la , te m os a e sc olha de qua ndo, de c om o e de
onde pode m os pe r m itir da r e xpr e ssã o à s sua s te ndê nc ia s de ntr o de um
c onte xto c onstr utivo. E qua ndo nã o é possíve l r e f r e a r a e xpr e ssã o do
se u la do ne ga tivo, pode m os a m or te c e r se u e f e ito a tr a vé s de um
e sf or ç o c onsc ie nte pa r a a c r e sc e nta r um e le m e nto a te nua nte ou, a o
m e nos, um pe dido de de sc ulpa s. E qua ndo nã o pode m os ( ou nã o
de ve m os) nos a bste r de f e r ir, pode m os pe lo m e nos te nta r f a zê - lo c om
ge ntile za e e sta r pr ontos pa r a a r c a r c om a s c onse quê nc ia s. Se
de svia m os vir tuosa m e nte os olhos, nã o te m os e ssa possibilida de ; e
e ntã o é pr ová ve l que a som br a , de ixa da a si m e sm a , nos a tr ope le de
um a m a ne ir a de str utiva e pe r igosa . Entã o, a lgo "a c onte c e " c onosc o e
é ge r a lm e nte qua ndo nos c a usa a s m a ior e s inc onve niê nc ia s; j á que
nã o sa be m os o que e stá a c onte c e ndo, na da pode m os f a ze r pa r a
a te nua r se u e f e ito, e j oga m os toda a c ulpa sobr e o nosso se m e lha nte .

Existe m ta m bé m , é c la r o, im plic a ç õe s soc ia is e c ole tiva s do pr oble m a


da som br a . Ela s sã o e spa ntosa s, pois ne la s e stã o a s r a íze s do
pr e c onc e ito e da disc r im ina ç ã o soc ia l, r a c ia l e na c iona l.

Toda m inor ia , todo gr upo disside nte , c a r r e ga a pr oj e ç ã o da som br a da


m a ior ia — que r se tr a te de ne gr os, de br a nc os, de c r istã os, de j ude us,
de ita lia nos, de ir la nde se s, de c hine se s ou de f r a nc e se s. Alé m disso, j á
que a som br a é o a r qué tipo do inim igo, é pr ová ve l que sua pr oj e ç ã o
nos e nvolva na s m a is sa ngr e nta s gue r r a s pr e c isa m e nte na s é poc a s de
m a ior c om pla c ê nc ia a r e spe ito da pa z e da nossa pr ópr ia r e tidã o. O
inim igo e o c onf lito c om o inim igo sã o f a tor e s a r que típic os, pr oj e ç õe s
da nossa c isã o inte r ior e nã o pode m se r le gisla dos ou sim ple sm e nte
e lim ina dos pe la vonta de , Só é possíve l lida r c om e le s — se é que é
possíve l de todo — c onf r onta ndo a nossa som br a e c ur a ndo a nossa
c isã o individua l. As é poc a s m a is pe r igosa s, ta nto c ole tiva qua nto
individua lm e nte , sã o a que la s e m que pr e sum im os te r e lim ina do a
som br a .

A som br a nã o pode se r e lim ina da . Ela é a nossa ir m ã e sc ur a , se m pr e


pr e se nte . Qua ndo de ixa m os de ve r onde e la e stá , é pr ová ve l que os
pr oble m a s e ste j a m a c a m inho. P ois é c e r to que e la e sta r á a tr á s de
nós. P or ta nto, a pe rgunta a de qua da nã o se r ia : "Te nho um pr oble m a de
som br a , te nho um la do ne ga tivo?" e sim : "Onde e xa ta m e nte e stá a
m inha som br a a gor a ?" Qua ndo nã o pode m os vê - la , é hor a de tom a r
c uida do! E se r ia útil le m br a r a de c la r a ç ã o de Jung de que ne nhum
c om ple xo é pa tológic o pe r se . Ele só se tor na pa tológic o qua ndo
supom os que nã o o te m os; pois e ntã o é e le que nos te m .

3. O que a sombr a sabe : uma e nt r e vist a c om John A. Sanf or d

D. PATRICK M ILLER
THE SUN:

Jung disse c e r ta ve z; "P r e f ir o se r ínte gr o a se r bom ." Essa a f ir m a ç ã o


c e r ta m e nte c onf unde ou pe r tur ba m uita ge nte . P or que a m a ior ia da s
pe ssoa s nã o c onse gue r e c onhe c e r a r e la ç ã o que e xiste e ntr e a
m a lda de e o e xc e sso de "bonda de "?

SANFORD:

Na ve r da de , é e sse o pr oble m a do e go e da som br a , um pr oble m a que


f ic a be m c la r o na tr a diç ã o c r istã . Na Bíblia , a s dif e r e nç a s e ntr e o
be m e o m a l e stã o tr a ç a da s c om m uita nitide z: e xiste De us, que é
bom , e e xiste o Dia bo, que é m a u. De us que r que o se r hum a no se j a
bom e De us c a stiga o m a l. De a c or do c om o Novo Te sta m e nto, se
um a pe ssoa se e ntr e ga a o m a l e pr a tic a m á s a ç õe s, sua a lm a se
c or r om pe e é de str uída ; ou se j a , insta la - se um pr oc e sso psic ológic o
ne ga tivo. Assim , dia nte do c r istã o e stá se m pr e o obj e tivo ou o m ode lo
de "se r bom ", e isso é a lgo que te m va lor.

No e nta nto, a tr a diç ã o c r ista or igina l r e c onhe c ia que o hom e m tr a z,


de ntr o de si, o se u oposto. Sã o P a ulo disse ; "Nã o f a ç o o be m que
que r o, m a s o m a l que nã o que r o" ( Rom a nos 7;19) . Esta s sã o pa la vr a s
de um pr of undo psic ólogo; e le sa bia que tinha um a som br a e
a c r e dita va que só De us pode r ia sa lvá - lo de ssa c ondiç ã o. P or é m , o
f a to de c onhe c e r sua c ondiç ã o m a ntinha a sua inte gr ida de .

Ma is ta r de , e ssa pe r spe c tiva pr of unda pe r de u- se e a s pe ssoa s se


se ntia m obr iga da s a se ide ntif ic a r c om o be m ou, pe lo m e nos, a f ingir
que e r a m boa s. Qua ndo f a z isso, voc ê de pr e ssa pe r de c onta to c om a
som br a . E e m a lgum ponto do pe r c ur so — isso f ic a e vide nte na I da de
Mé dia — a I gr e j a c om e te u um gr a ve e r r o: a lé m da s a ç õe s, ta m bé m
a s fantasias pa ssa r a m a se r m á s. Voc ê e r a m a u sim ple sm e nte por
e ntr e te r f a nta sia s sobr e o m a l; a dulté r io e r a pe c a do, m a s pe nsa r e m
a dulté r io ta m bé m e r a pe c a do. Am bos pr e c isa va m se r c onf e ssa dos e
pe r doa dos.

E c om isso a s pe ssoa s c om e ç a r a m a ne ga r e a r e pr im ir sua s f a nta sia s,


e a som br a f oi e m pur r a da a inda m a is pa r a o f undo. A divisã o
a m pliou- se .

THE SUN:

Esse pr oc e sso oc or r e u e m pa r a le lo c om a pe r da do e le m e nto


f e m inino?

SANFORD:

Sim , e u dir ia que sim . Na r e a lida de f e m inina , os c ontr a ste s nã o sã o


tã o m a r c a dos. O e le m e nto m a sc ulino vê a s c oisa s à br ilha nte luz do
dia : isto é isto e a quilo é a quilo. O e le m e nto f e m inino e quiva le a ve r
a s c oisa s à luz da lua : e la s f ic a m dif usa s, nã o sã o tã o distinta s um a s
da s outr a s. Toda e ssa que stã o da som br a é m uito sutil e c om ple xa ; nã o
é tã o sim ple s qua nto pa r e c e se r a do be m e do m a l.

O e le m e nto f e m inino te r ia a te nua do e ssa c om ple ta c isã o e ntr e a


som br a e o e go. No iníc io, a I gr e j a lide r a va um a e spé c ie de
m ovim e nto f e m inino, m a s de pois tor nou- se ba sta nte pa tr ia r c a l. O e go
e a som br a se a pa r ta r a m c a da ve z m a is, pr e pa r a ndo o pa lc o pa r a
f e nôm e nos do tipo Je ky ll e Hy de . Se voc ê e studa r a histór ia do
c r istia nism o, va i ve r e sse de se nvolvim e nto c om toda a c la r e za .
P e ssoa s que pr of e ssa va m f a ze r o be m , por e xe m plo, e sta va m
lide r a ndo a I nquisiç ã o.

Os c r istã os nã o de tê m a posse e xc lusiva da som br a , é c la r o. Todo


m undo f a z c oisa s te r r íve is. Ma s na tr a diç ã o c r istã , e ssa c isã o é
a bsoluta . Um a c oisa boa que surgiu disso tudo f oi a volta da s
psic ologia s de pr of undida de . Em bor a a I gr e j a te nta sse ba nir a s
f a nta sia s, é e vide nte que e la tinha c onsc iê nc ia da vida inte r ior e
se m pr e de u va lor à intr ospe c ç ã o.
THE SUN:

Eu c r e sc i na s vizinha nç a s dos f unda m e nta lista s r e ligiosos e se m pr e


note i um a e spé c ie de te nsã o ne le s — c om o se e le s te nta sse m im pe dir
que c e r ta s c oisa s e ntr a sse m e m sua s m e nte s e m uito m e nos de se
e xpr e ssa r a be r ta m e nte . P a r e c e que é pr e c iso um a qua ntida de im e nsa
de e ne rgia pa r a m a nte r a c isã o inte r ior.

SANFORD:

Ce r to. E o r e sulta do nã o é um a pe ssoa r e a lm e nte boa . Os e sf or ç os


pa r a a lc a nç a r a bonda de pur a r e sulta m num a pose ou num a a utoilusã o
sobr e a bonda de . I sso de se nvolve um a pe rsona — um a m á sc a r a de
bonda de ve stida sobr e o e go. O Dr. Je ky ll tinha um a pe rsona im e nsa e
a c r e dita va ne la por c om ple to, m a s nunc a c he gou a se r um hom e m
r e a lm e nte bom . A c one xã o e ntr e Je ky ll e Hy de e r a o a nse io se c r e to
de Je ky ll e m tornar- se Hy de — m a s Je ky ll se r e c usa va a de spir a
m á sc a r a que tinha ve stido pa r a a soc ie da de e pa r a si m e sm o. Qua ndo
de sc obr iu a dr oga que podia tr a nsf or m á - lo na sua som br a , Je ky ll
pe nsou te r e nc ontr a do a r e sposta ide a l. Ma s e ntã o f oi dom ina do pe lo
se u pr ópr io a nse io de se r Hy de .

Aqui é im por ta nte c om pr e e nde r a dif e r e nç a c r uc ia l e ntr e a som br a e


o m a l ge nuíno. Com o disse Fr itz Kunke l c e r ta ve z, o se gr e do é que o
e go — nã o a som br a — é o diabo, Kunke l a c r e dita va que o m a l e xiste
a lé m do e go — um m a l a r que típic o — m a s, pa r a a m a ior ia da s
pe ssoa s, o e go é que é o ve r da de ir o pr oble m a .

A de f iniç ã o j unguia na da som br a f oi m uito be m c oloc a da por Edwa r d


C. W hitm ont, a na lista de Nova Yor k, a o dize r que a som br a é "tudo
a quilo que f oi r e pr im ido dur a nte o de se nvolvim e nto da pe r sona lida de ,
por nã o se a de qua r a o ide al do e go". Se voc ê te ve um a e duc a ç ã o
c r ista , c om o ide a l do e go de se r be ne vole nte , m or a lm e nte r e to, ge ntil
e ge ne r oso, e ntã o c e r ta m e nte voc ê pr e c isou r e pr im ir toda s a s sua s
qua lida de s que f osse m a a ntíte se de sse ide a l: r a iva , e goísm o, louc a s
f a nta sia s se xua is e a ssim por dia nte . Toda s e ssa s qua lida de s que voc ê
se c c ionou f or m a r ia m a pe r sona lida de se c undá r ia c ha m a da "som br a ".
E se e ssa pe r sona lida de se c undá r ia se isola sse ba sta nte , voc ê pa ssa r ia
a se r a quilo que c ha m a m os "pe r sona lida de m últipla ".

Em todos os c a sos de pe r sona lida de m últipla , se m pr e pode m os


ide ntif ic a r c la r a m e nte a som br a . Ela ne m se m pr e é m á — só é
dif e r e nte do e go. Jung e sta va c e r to qua ndo disse que nove nta por
c e nto da som br a é our o pur o. Tudo o que f oi r e pr im ido ( se j a lá o que
f or ) c onté m um a qua ntida de tr e m e nda de e ne rgia , c om um gr a nde
pote nc ia l positivo. P or isso a som br a , nã o im por ta quã o pe r tur ba dor a
e la possa se r, nã o é intr inse c a m e nte m á . O e go, c om sua r e c usa de
intr ovisã o e c om sua r e c usa de a c e ita r o todo da pe r sona lida de ,
c ontr ibui m uito m a is pa r a o m a l do que a pr ópr ia som br a , THE SUN:

O que o se nhor e stá dize ndo é que a som br a te m m á f a m a por que o


e go pr oj e ta sua pr ópr ia m a lda de sobr e e la .

SANFORD:

Exa ta m e nte . Se voc ê c onsulta r a que le m a nua l de psic ologia a que


da m os o nom e de Novo Te sta m e nto, va i e nc ontr a r e ssa f r a se : o dia bo
é "o pa i de toda s a s m e ntir a s", Agor a , a som br a nunc a m e nte ; é o e go
que m e nte a r e spe ito de se us m otivos r e a is. É por isso que o suc e sso
de qua lque r psic ote r a pia e qua lque r c onve r sã o r e ligiosa ge nuína
e xige m a bsoluta hone stida de sobr e nós m e sm os.

THE SUN:

A a na lista j unguia na Ma r ie - Louise von Fr a nz e sc r e ve u: "A som br a


a r r a sta o hom e m a o im e dia tism o da s situa ç õe s do tipo a qui e a gor a , e
a ssim c r ia a biogr a f ia r e a l do se r hum a no, que e stá se m pr e inc lina do
a a ssum ir que é a pe na s a quilo que pe nsa se r. A biogr a f ia c r ia da pe la
som br a é que im por ta ." Essa a f ir m a ç ã o m e f a z pe nsa r na te ndê nc ia
da nossa soc ie da de de se de siludir c om os nossos polític os — por que a
biogr a f ia que e le s e xibe m dur a nte a c a m pa nha nunc a é "a biogr a f ia
que im por ta ".

SANFORD:

A biogr a f ia que o polític o que r nos pa ssa r — e que ge r a lm e nte é


c r ia da pe lo pe ssoa l de r e la ç õe s públic a s — é a pe rsona, a m á sc a r a ,
Ela e sc onde a ve r da de ir a r e a lida de do polític o. Ma s e u a c ho que é
possíve l c onvive r r a zoa ve lm e nte be m c om e ssa r e a lida de . A longo
pr a zo, a dm itir a som br a é be m m e nos pe r nic ioso do que ne gá - la . O
que a r r uinou o c a ndida to Ga r y Ha r t, por e xe m plo, nã o f oi e le te r
c a sos m a s, sim , te r c ontinua do a m e ntir sobr e se us c a sos de pois que a
ve r da de ve io à tona . P e ssoa lm e nte , isso só m e f e z pe nsa r que e le nã o
e r a lá m uito br ilha nte .

Está c la r o que vive m os num a é poc a e m que a s e le iç õe s sã o ve nc ida s


ou pe r dida s pe la f or ç a da pe rsona. Rona ld Re a ga n é o e xe m plo par
e x c e lle nc e , por que sa be m os que e le nunc a f e z ou disse c oisa a lgum a
que nã o f osse r e pr e se nta ç ã o. Sinto- m e m uito m a is à vonta de c om o
pr e side nte Ge orge Bush, inde pe nde nte m e nte de a pr ova r ou nã o o que
e le diz, por que pe lo m e nos te nho a se nsa ç ã o de que é e le que e stá a li
— é o hom e m de ve r da de que e stá f a la ndo.
Ta lve z a s pe ssoa s e stive sse m um pouc o m a is e m c onta to c om os
polític os — o polític o pe ssoa de ve r da de — nos ve lhos te m pos da s
c a m pa nha s a o vivo, c om c a r a va na s pe r c or r e ndo o pa ís. A m a ne ir a
c om o a m ídia e le tr ônic a a m plif ic a a pe rsona m ostr a um la do
m onstr uoso da nossa te c nologia ... é um a c oisa m uito pe r igosa .

THE SUN:

A som br a , c e r ta m e nte , pa r e c e e sta r m uito pr e se nte na nossa a tua l


m ídia de e ntr e te nim e nto — de sde a s histór ia s de Ste phe n King e Clive
Ba r ke r a té os f ilm e s de te r r or e o sa ta nism o de c la r a do de a lgum a s
ba nda s he av y - m e tal. Eu m e pe rgunto se tudo isso nã o que r dize r que
e sta m os c a m inha ndo pa r a o r e c onhe c im e nto — e inte gr a ç ã o — da
som br a ou se e sta m os a pe na s indo e sgoto a ba ixo, c om o pa r e c e m
pe nsa r a lguns c r ític os soc ia is e c e nsor e s.

SANFORD:

A que stã o é : e m que m om e nto c r uza m os a linha divisór ia da som br a


— que é um e le m e nto dif íc il, m a s a inda a ssim hum a no — e
ingr e ssa m os no c a m po do r e a lm e nte de m onía c o. I sso nos le va à
que stã o do m a l arque típic o: e xistir ia um dia bo que e stá a lé m do e go
hum a no? P or f a la r nisso, os c r istã os nã o f or a m os únic os que se
pr e oc upa r a m c om o dia bo. Os a ntigos pe r sa s a c r e dita va m num a f or ç a
divina que pr oduzia o m a l.

O holoc a usto na Ale m a nha na zista e os e xpurgos de Sta lin nã o f or a m


r e sulta dos da som br a hum a na individua l. Ali, a c ho que e sta m os ve ndo
na psique c ole tiva um a f or ç a m a ligna , que é r e a lm e nte sinistr a e que
pr e c isa m os r e c e a r. Muita s pe ssoa s ne ga m que e sse m a l e xiste ,
a f ir m a ndo que todos os a ssa ssinos sã o vítim a s de um a inf â nc ia inf e liz
e de m a us- tr a tos pe los pa is. Ma s e u sinto que e xiste a li um a f or ç a
m a ligna a r que típic a .

Alguns da que le s que c e nsur a m a s le tr a s do roc k e c oisa s se m e lha nte s


ta lve z e ste j a m pa r c ia lm e nte c e r tos a r e spe ito do m a l que e la s c ontê m ,
Sou f r a nc o e m c onf e ssa r que à s ve ze s ba to os olhos ne sse tipo de
c oisa e sinto um a f or te r e pugnâ nc ia . Algum a s de la s m e pa r e c e m
sinistr a s. Ma s nã o pode m os, de m odo a lgum , a f ir m a r que a s pe ssoa s
que m or a liza m sobr e o m a l a r que típic o e stã o livr e s de le . Na ve r da de ,
m or a liza r sobr e o m a l é um a boa m a ne ir a de suc um bir a o m a l. Essa é
um a que stã o sutil. Se voc ê a ta c a o m a l pa r a se de f e nde r de um
m e rgulho e m si m e sm o, voc ê e stá c om e te ndo o m e sm o e r r o do Dr.
Je ky ll.

THE SUN:
Ma s c om o pode m os ve r a dif e r e nç a e ntr e um a c oisa que pa r e c e
sinistr a e um a c oisa que é sinistr a ?

SANFORD:

Essa é um a boa pe rgunta , e ne m se m pr e f á c il de r e sponde r. De pe nde


m uito da psic ologia da pe ssoa e nvolvida . Qua nto m a is r ígido f or se u
r e f e r e nc ia l psic ológic o, m a ior o núm e r o de c oisa s que lhe pa r e c e r ã o
sinistr a s. Tudo o que posso dize r é que , qua ndo o níve l a r que típic o do
m a l f ina lm e nte e nc ontr a e xpr e ssã o, todo m undo f ic a c hoc a do. Ma s
ne m se m pr e e m te m po, é c la r o. O m undo de m or ou ba sta nte pa r a
r e c onhe c e r o m a l da Ale m a nha na zista .

O que nos a j uda a ve r a dif e r e nç a é a quilo que Jung c ha m ou de


"f unç ã o se ntim e nto" — nossos m e ios inte r ior e s de a va lia r o va lor da s
c oisa s. A f unç ã o se ntim e nto nos diz o que é de se j á ve l e o que nã o é
de se j á ve l, m a s nã o se tr a ta de um j ulga m e nto f e ito pe lo e go. O e go
de te r m ina o que é bom ou m a u a pa r tir do ponto de vista de sua s
pr ópr ia s pr e oc upa ç õe s: o e go c onside r a bom tudo a quilo que a poia o
se u siste m a e goc ê ntr ic o de de f e sa ; e c onside r a m a u o que e stá e m
a ntíte se c om e sse siste m a . P or e xe m plo, os pur ita nos c onta m ina r a m
os índios a m e r ic a nos c om doe nç a s que os dizim a r a m ; vir a m isso
c om o um a c oisa boa e f ize r a m se r m õe s dize ndo que De us lhe s a br ia o
c a m inho pa r a c oloniza r a que la s te r r a s. É c la r o que o índio, m or r e ndo
de va r íola , tinha um a opiniã o be m dif e r e nte sobr e o be m e o m a l
de ssa situa ç ã o.

A f unç ã o se ntim e nto e stá livr e de c onta m ina ç ã o e goc ê ntr ic a , Ela é
um a pur a a va lia ç ã o e m oc iona l, m a s ne m se m pr e lhe da m os ouvido.
Qua ndo o povo a m e r ic a no, f ina lm e nte , opôs- se à Gue r r a do Vie tnã ,
f oi por que a f unç ã o se ntim e nto a c a bou por e m e rgir : um núm e r o c a da
ve z m a ior de pe ssoa s c he gou a o j ulga m e nto e moc ional de que a que la
e r a um a gue r r a e r r a da e te r r íve l, m e sm o que suposta m e nte se r visse
a os nossos obj e tivos polític os. E é c la r o que e ssa s pe ssoa s e sta va m
c e r ta s, O j ulga m e nto de va lor da f unç ã o se ntim e nto é um
de te r m ina nte c onf iá ve l do be m e do m a l num a situa ç ã o — de sde que
a f unç ã o se ntim e nto te nha a s inf or m a ç õe s c or r e ta s. Se e la nã o te m
toda s a s inf or m a ç õe s ou se vê a pe na s um a pa r te do pr oble m a , e ntã o é
possíve l que c he gue a um a c onc lusã o e r r a da .

THE SUN:

Na sua e xpe r iê nc ia e obse r va ç ã o, qua l é o pr oc e sso de inte gr a ç ã o da


som br a ?

SANFORD:
A pr im e ir a ve z que um a pe ssoa vê a som br a c om c la r e za , e la f ic a
m a is ou m e nos hor r or iza da . Alguns dos nossos siste m a s e goc ê ntr ic os
de de f e sa ne c e ssa r ia m e nte se r om pe m ou se dilue m , O r e sulta do pode
se r um a de pr e ssã o te m por á r ia ou um e ne voa m e nto da c onsc iê nc ia .
Jung c om pa r ou o pr oc e sso de inte gr a ç ã o — que e le c ha m ou de
indiv iduaç ão — a o pr oc e sso da a lquim ia . Um dos e stá gios da a lquim ia
é a m e lanose , qua ndo tudo e ne gr e c e de ntr o do va so que c onté m os
e le m e ntos a lquím ic os. Ma s e sse e stá gio de e ne gr e c im e nto é
a bsoluta m e nte e sse nc ia l. Jung disse que e le r e pr e se nta o pr im e ir o
c onta to c om o inc onsc ie nte , que é se m pr e o c onta to c om a som br a . O
e go e nc a r a isso c om o um a e spé c ie de de r r ota .

THE SUN:

É possíve l f ic a r a pr isiona do ne sse e stá gio? P ode m os e sta r f a da dos a


te r um e nc ontr o a pós outr o c om a som br a , se m que oc or r a a
inte gr a ç ã o?

SANFORD:

Ac ho que nã o, por que um a visã o ge nuína da som br a ta m bé m põe e m


a ç ã o a quilo que Jung c ha m ou de Se lf, o c e ntr o c r ia tivo. E e ntã o a s
c oisa s c om e ç a m a m ove r- se , pa r a que a de pr e ssã o nã o se tor ne
pe r m a ne nte . De pois disso, m il e um a m uda nç a s pode m oc or r e r ; é
dif e r e nte , pa r a c a da pe ssoa . Aquilo que Kunke l c ha m ou o "c e ntr o
r e a l" da pe r sona lida de c om e ç a a e m e rgir e , gr a dua lm e nte , o e go é
r e or ie nta do pa r a um a r e la ç ã o m a is íntim a c om e sse c e ntr o r e a l.
Entã o é be m m e nos pr ová ve l que a pe ssoa se a ssoc ie a o m a l ge nuíno,
por que a inte gr a ç ã o da som br a se m pr e c oinc ide c om a dissoluç ã o da
f a lsa pe rsona. A pe ssoa tor na - se m uito m a is r e a lista a r e spe ito de si
m e sm a ; ve r a ve r da de sobr e a nossa pr ópr ia na tur e za se m pr e te m
e f e itos m uito sa luta r e s. A hone stida de é a gr a nde de f e sa c ontr a o m a l
ge nuíno. P a r a r de m e ntir pa r a nós m e sm os a r e spe ito de nós m e sm os,
e ssa é a m a ior pr ote ç ã o que pode m os te r c ontr a o m a l.

THE SUN:

Se o e go nã o é o "c e ntr o r e a l" de nós m e sm os, e ntã o e le é o c e ntr o do


quê ?

SANFORD:

O que distingue a psic ologia j unguia na de pr a tic a m e nte toda s a s


outr a s psic ologia s é a ide ia de que e xiste m dois c e ntr os da
pe r sona lida de . O e go é o c e ntr o da c onsc iê nc ia ; o Se lf é o c e ntr o da
pe r sona lida de c om o um todo que inc lui a c onsc iê nc ia , o inc onsc ie nte
e o e go. O Se lf é , a o m e sm o te m po, o todo e o c e ntr o. O e go é um
pe que no c ír c ulo, c om ple to e m si m e sm o, f or m a do a pa r tir do c e ntr o
m a s c ontido no todo. Assim , o e go pode r ia se r m a is be m de sc r ito
c om o o c e ntr o m e nor da pe r sona lida de ; o Se lf, c om o o c e ntr o m a ior,
Podemos ver melhor esse relacionamento nos nossos sonhos. Na nossa vida em
estado de vigília, o ego é como o Sol — ele ilumina tudo, mas também impede
que vejamos as estrelas. O que não percebemos é que os conteúdos da
consciência do ego não são coisas criadas por nós; eles nos são dados, eles vêm
de algum outro lugar. Somos constantemente influenciados pelo inconsciente,
mas em geral não percebemos isso. O ego prefere acreditar que cria todos os
seus próprios pensamentos. Nos nossos sonhos tudo muda com o aparecimento do
ego onírico. Quando nos lembramos do sonho, automaticamente nos
identificamos com o ego onírico; referimo-nos a ele como "eu", dizendo "eu
encontrei um urso e aí nós lutamos e depois apareceu a dançarina" e assim por
diante. Mas a diferença é que, durante o sonho, o ego onírico conhece coisas que
o ego desperto não conhece. Por exemplo, você lembra que sonhou que corria
muito depressa e não lembra por quê. Mas, no sonho, você sabia, O importante é
que o ego onírico nunca é mais significativo do que qualquer outra figura do
sonho. Talvez até o encontremos vencido ou enevoado. Quando o Sol se põe, as
estrelas aparecem — e então você descobre que é apenas uma das estrelas de
um céu todo estrelado.

Essa é a pa isa ge m da a lm a , invisíve l na nossa vida e m e sta do de


vigília .

THE SUN:

O que e u pe r c e bo é que m e sinto m a is ou m e nos à vonta de c om a


i d e i a da som br a na vida e m e sta do de vigília . P or é m , a ide ia da
som br a nos sonhos é m uito m a is do que um a sim ple s ide ia — e la é
c om ple ta m e nte r e a l e m uito pode r osa . Às ve ze s e u m e tor no a
som br a , c om o se e la se inte gr a sse a mim.

SANFORD:

No sonho, a som br a é um siste m a e ne rgé tic o que é , pe lo m e nos, tã o


pode r oso qua nto voc ê m e sm o. Na a r e na psíquic a do sonho, todos os
e le m e ntos da psique sã o m e nos distintos uns dos outr os e o e go onír ic o
pode obse r vá - los ou tr a nsf or m a r- se ne le s ou qua lque r c oisa
inte r m e diá r ia .

A som br a te m se m pr e um a spe c to do pr ópr io e u, a s qua lida de s da


som br a pode r ia m tor na r- se pa r te da e str utur a do e go. Até se pode
dize r que a som br a é c om o o ir m ã o ou a ir m ã do e go e nã o
ne c e ssa r ia m e nte um a f igur a sinistr a . E é im por ta nte le m br a r que a
som br a se m pr e te m um a r a zã o pa r a tudo o que f a z. um a r a zã o que
e stá r e la c iona da c om a s qua lida de s que f or a m e xc luída s do e go. É
ba sta nte inc om um que nos tor ne m os a som br a num sonho; o m a is
pr ová ve l é que o e go onír ic o obse r ve a som br a m uda ndo de f or m a
dur a nte o sonho.

THE SUN:

Ac ho que é m a is se gur o tr a nsf or m a r- se na som br a num sonho do que


e m e sta do de vigília .

SANFORD:

Bom , e ntã o e nc ontr a m os m a is um a ve z a s sutile za s da som br a . Minha s


ide ia s ne sse a ssunto se gue m m a is a s de Kunke l que a s de Jung, A ide ia
é que o e go e stá , or igina lm e nte , m uito pr óxim o do c e ntr o do Eu. A
m e dida que va i se a f a sta ndo, e le de se nvolve um a postur a e goc ê ntric a,
que ge r a lm e nte é e xa c e r ba da por inf luê nc ia s de sf a vor á ve is na
inf â nc ia . A na tur e za de ssa s inf luê nc ia s ir á de te r m ina r a na tur e za da s
de f e sa s e goc ê ntr ic a s da pe ssoa e , logo, a na tur e za da som br a .

Diga m os que um a pe ssoa vê a si m e sm a c om o f r a c a e inope r a nte


dia nte do se u a m bie nte , por é m e nc ontr a um outr o c a m inho pa r a
se guir pe la vida : tor na - se um a e spé c ie de "pa r a sita ". Ela nã o
de se nvolve a sua f or ç a ; e la de pe nde de outr os que sã o f or te s m a s
pr e c isa ha bilita r- se a ga nha r e sse a poio. Assim e la a ssum e um a
postur a de ne c e ssita da e de m e r e c e dor a de a poio. Essa é a sua postur a
e goc ê ntr ic a dia nte da vida ; e la é o tipo de pe ssoa que se m pr e va i
pr e c isa r da sua a j uda e que se r á c a pa z de c ita r um a inf inida de de
r a zõe s pe la s qua is voc ê de ve a j udá - la . Se voc ê nã o a a j uda r, e ntã o
voc ê se r á um a pe ssoa m á .

Um a c a r a c te r ístic a de ssa pe ssoa é que e la é m uito c ha ta . Os outr os


de ixa m de a j udá - la qua ndo e la os a bor r e c e de m a is e , e ntã o, e la se
se nte a m e a ç a da e a nsiosa . Agor a , o que e la r e pr im iu pa r a m a nte r sua
postur a e goc ê ntr ic a pa r a sitá r ia f or a m a s qua lida de s da c or a ge m e da
hone stida de — qua lida de s a lta m e nte de se j á ve is. Ma s a pe r sona lida de
pa r a sitá r ia vê e ssa s qua lida de s c om o m á s e se a pa vor a dia nte de la s.
E, na ve r da de , a s qua lida de s r e pr im ida s pode m tor na r- se pe r igosa s.

Tom e m os o e xe m plo do a dole sc e nte que te m a de f e sa e goc ê ntr ic a da


ta r ta r uga ; tudo o que e le que r é se r de ixa do e m pa z. Ele tor na - se o
a lvo de um ba ndo de "dur õe s" c uj a pr ope nsã o e goc ê ntr ic a é
a tor m e ntá - lo, e xa ta m e nte por que e le é um solitá r io. O ba ndo o
pe r se gue e im por tuna a té o dia e m que sua c our a ç a e goc ê ntr ic a de
"r e c olhe r- se na c a sc a " e xplode e b u m ! ... a som br a pula pa r a f or a .
Ta lve z e le a pe na s se e nvolva num a pa nc a da r ia e e ntã o, m e sm o que
a pa nhe um pouc o, sa iu- se be m — e pr ova ve lm e nte m a is inte gr a do.
P or outr o la do, se e le pe ga r o r e vólve r do pa i e a tir a r nos se us
a tor m e nta dor e s, e ntã o um a c oisa te r r íve l a c onte c e u. Qua ndo a
e ne rgia é r e pr im ida por um te m po por de m a is longo e e m e xc e ssiva
pr of undida de , a lgo de c onse quê nc ia s la m e ntá ve is pode oc or r e r.

THE SUN:

O se nhor a c ha que e sse r a pa z e sta va "pe dindo" pa r a se r a tor m e nta do?

SANFORD:

Se m dúvida . Ao níve l inc onsc ie nte , e le e sta va e nvia ndo um a


m e nsa ge m sobr e a quilo de que pr e c isa va pa r a se inte gr a r. Fa la ndo
sobr e e sse tipo de situa ç ã o, Kunke l c ostum a va dize r que os "a r c a nj os"
sã o e nvia dos pa r a c om ple ta r o pla no divino.

THE SUN:

Ma s os a r c a nj os nã o vã o ne c e ssa r ia m e nte c uida r de nós.

SANFORD:

Ce r to. Ele s só a r m a m o c e ná r io. Tudo o que sa be m os é que qua ndo os


a r c a nj os se e nvolve m , a s c oisa s nunc a m a is se r ã o a s m e sm a s.
Ningué m pode pr e dize r o que va i a c onte c e r e m se guida . A libe r a ç ã o
da som br a nã o de ve se r e nc a r a da c om le via nda de . P or isso se r ia
m uito m e lhor se a que le r a pa z de sc obr isse sua hostilida de num a
te r a pia ou e m a lgum a outr a situa ç ã o sob c ontr ole , onde sua som br a
pude sse e m e rgir gr a dua lm e nte .

Kunke l f e z um a obse r va ç ã o m iste r iosa : "Na ba ta lha de c isiva , De us


e stá se m pr e do la do da som br a , nã o do la do do e go." Com toda s a s
sua s dif ic ulda de s, a som br a e stá m a is pr óxim a da f onte da c r ia ç ã o.

Agor a , um a ssunto be m dif e r e nte é o e go que nã o e stá num e sta do


e goc ê ntr ic o. Esse e go te m um r e la c iona m e nto sa udá ve l ta nto c om a
som br a qua nto c om o Eu. Na ve r da de , o e go nã o é dim inuído no
pr oc e sso de inte gr a ç ã o; a s sua s f r onte ir a s é que se tor na m m e nos
r ígida s. Existe um a e nor m e dif e r e nç a e ntr e um e go f or te e um e go
e goc ê ntr ic o; e sse últim o é se m pr e f r a c o. A individua ç ã o, a obte nç ã o
do nosso pote nc ia l r e a l, nã o pode oc or r e r se m um e go f or te .

THE SUN:

I sso que r dize r que é im possíve l se r a pe na s o "Eu"?

SANFORD:
Ce r to. O e go é o ve íc ulo ne c e ssá r io pa r a a e xpr e ssã o do S e l f , m a s
voc ê pr e c isa que r e r pôr o e go na linha . E c om o Moisé s c onf r onta ndo-
se c om a voz de De us na sa r ç a a r de nte e de pois de sc e ndo pa r a
c onduzir o povo de I sr a e l pa r a f or a do Egito. Essa é a a ç ã o do e go
f or te .

4. A sombr a na hist ór ia e na lit e r at ur a

ANTHONY STEVENS

O m e do de "c a ir " na iniquida de te m se e xpr e ssa do a o longo da histór ia


do c r istia nism o c om o o te r r or de se r "possuído" pe los pode r e s da s
tr e va s. As histór ia s de posse ssã o se m pr e pr ovoc a r a m f a sc ínio e
hor r or ; o Conde Drác ula de Br a m Stoke r é a pe na s um e xe m plo
r e c e nte do gê ne r o. Histór ia s de va m pir os e lobisom e ns pr ova ve lm e nte
se m pr e e stive r a m c onosc o.

Ta lve z o m a is f a m oso e xe m plo de posse ssã o nos se j a m ostr a do pe la


le nda de Fa usto, que , c a nsa do de sua vir tuosa e xistê nc ia a c a dê m ic a ,
f a z um pa c to c om o dia bo. Fa usto pa ssa va , e vide nte m e nte , por um a
c r ise da m e ia - ida de . Sua busc a obse ssiva por c onhe c im e nto le va r a - o
a um de se nvolvim e nto distor c ido e inte le c tua liza do da pe r sona lida de ,
c om um a e xpr e ssiva por ç ã o da s pote nc ia lida de s do Eu nã o- vivida s e
"tr a nc a da s" no inc onsc ie nte . Com o e m ge r a l a c onte c e ne sse s c a sos, a
e ne rgia psíquic a r e pr im ida e xige a te nç ã o. I nf e lizm e nte , Fa usto nã o se
e ntr e ga a um a pa c ie nte a utoa ná lise , dia loga ndo c om a s f or m a s que
e m e rge m do inc onsc ie nte a f im de a ssim ila r a Som br a ; pe lo c ontr á r io,
e le se de ixa "c a ir ne la " e se r possuído por e la .

O pr oble m a é que Fa usto a c r e dita que a soluç ã o pa r a o se u pr oble m a


e stá e m "inge r ir m a is dose s do m e sm o r e m é dio", insistindo c om
de te r m ina ç ã o no ve lho pa dr ã o ne ur ótic o ( ou se j a , pr e c isa a dquir ir
a inda m a is c onhe c im e nto) . Assim c om o o Dr. Je ky ll, outr o solte ir ã o
inte le c tua l c om um pr oble m a se m e lha nte , Fa usto se inte r e ssa pe la
num inosida de da Som br a qua ndo e la se "pe r sonif ic a " e , sa c r if ic a ndo o
se u e go, de ixa - se e nf e itiç a r por e la . Com o r e sulta do, e la pa ssa a
dom ina r e sse s dois hom e ns e o f im da histór ia é a quilo que todos
r e c e a m os: Fa usto tor na - se um bê ba do, um libe r tino, e nqua nto Je ky ll
tr a nsf or m a - se no m onstr uoso Mr. Hy de .

Nossa f a sc ina ç ã o por Fa usto e Me f istóf e le s, por Je ky ll e Hy de de r iva


da na tur e za a r que típic a do pr oble m a que e le s c r ista liza m . Num
se ntido, ta nto Fa usto c om o o Dr. Je ky ll sã o he r óis, pois ousa m f a ze r
a quilo que a m a ior ia de nós e vita : pr e f e r im os nos c om por ta r c om o
Dor ia n Gr a y , ve stindo um a f a c e ( Pe rsona) inoc e nte pa r a o m undo e
m a nte ndo oc ulta s nossa s qua lida de s m á s, na e spe r a nç a de que
ningué m a s de sc ubr a . Entr e te m os pe nsa m e ntos de "pe r de r " a Som br a ,
r e nunc ia r à nossa dua lida de m or a l, e xpia r o pe c a do de Adã o e ,
nova m e nte r e c onc ilia dos c om De us, r e ingr e ssa r no Ja r dim do Éde n.
I nve nta m os a Utopia , o El Dor a do ou Sha ngr ilá , onde o m a l é
de sc onhe c ido. Busc a m os c onsolo na s f a nta sia s m a r xista s ou
r ousse a unia na s de que o m a l nã o e stá na nossa na tur e za e , sim , na
soc ie da de "c or r om pida " que nos m a nté m a gr ilhoa dos; ba sta r ia m uda r
a na tur e za da soc ie da de pa r a que o m a l de sa pa r e c e sse pa r a se m pr e
de ste m undo.

As histór ia s de Je ky ll e de Fa usto, a ssim c om o a histór ia bíblic a da


que da de Adã o, sã o f á bula s a c a ute la dor a s que nos f a ze m pôr os pé s no
c hã o e nos tr a ze m de volta à e te r na r e a lida de do nosso pr ópr io m a l.
As tr ê s histór ia s sã o va r ia ç õe s do m e sm o te m a a r que típic o: um
hom e m , e nte dia do c om sua vida , de c ide ignor a r a s pr oibiç õe s do
supe r e go pa r a pode r libe r a r a Som br a , e nc ontr a r a Anima, "c onhe c ê -
la " e v iv e r. Todos os tr ê s vã o longe de m a is: e le s c om e te m hy bris ( o
pe c a do da a r r ogâ nc ia ) e nê me sis ( a j ustiç a ) é o r e sulta do ine xor á ve l.
"O pr e ç o do pe c a do é a m or te ."
A a nsie da de que pe r c or r e toda s e ssa s histór ia s nã o é ta nto o m e do de
se r a pa nha do c om o o m e do de que o la do m a u f uj a de c ontr ole . Os
e nr e dos da s histór ia s de f ic ç ã o- c ie ntíf ic a visa m c r ia r o m e sm o m a l-
e sta r ; é o c a so do "Frank e nste in" de Ma r y She lle y , pr otótipo de toda s
e la s. Fr e ud c om pr e e nde u que e ssa é um a a nsie da de unive r sa l do se r
hum a no, c onf or m e pode m os ve r e m se u r e la to do f e nôm e no e m
Civ ilization and I ts Disc onte nts [ A Civiliza ç ã o e se us
De sc onte nta m e ntos] , De vido à é poc a e à s c ir c unstâ nc ia s e m que
vive u ( a Vie na burgue sa de f ins do sé c ulo XI X) , Fr e ud a c r e dita va que
o m a l r e pr im ido r e c e a do por hom e ns e m ulhe r e s e r a inte ir a m e nte de
na tur e za se xua l. Sua inve stiga ç ã o siste m á tic a de sse a spe c to da
Som br a , c om bina da c om o de c línio do pode r do supe r e go j ude u-
c r istã o, f e z m uito pa r a purga r a nossa c ultur a de se us de m ônios
e r ótic os; isso pe r m itiu que m uitos c om pone nte s da Som br a , a té e ntã o
r e pr im idos, f osse m inte gr a dos à pe r sona lida de tota l de hom e ns e
m ulhe r e s, se m f or ç á - los a sof r e r a c ulpa de c or r e nte do pr oc e sso, que
c e r ta m e nte te r ia a f ligido ge r a ç õe s a nte r ior e s. Te m os a í um e xe m plo
im pr e ssiona nte , e m e sc a la c ole tiva , do va lor te r a pê utic o a tr ibuído por
Jung a o pr oc e sso a na lític o de r e c onhe c im e nto e inte gr a ç ã o dos
c om pone nte s da Som br a .

No e nta nto, um a spe c to da Som br a que a inda e stá por se r e xor c iza do
— tã o pode r oso qua nto o de se j o se xua l m a s de c onse quê nc ia s m uito
m a is de sa str osa s — é o de se j o de pode r e de str uiç ã o. Que Fr e ud te nha
ignor a do e sse c om pone nte por ta nto te m po, a pe sa r de te r
te ste m unha do a P r im e ir a Gue r r a Mundia l e a subse que nte a sc e nsã o
do f a sc ism o, é sur pr e e nde nte , pa r a dize r o m ínim o. P ode m os
suspe ita r que tive sse a lgo que ve r c om a sua de te r m ina ç ã o de f a ze r de
sua te or ia da se xua lida de a s ba se s da psic a ná lise . ( "Me u c a r o Jung,
pr om e ta - m e nunc a a ba ndona r a te or ia da se xua lida de . Ela é , e m
e ssê nc ia , o que im por ta ! Olhe , de ve m os tr a nsf or m á - la num dogm a ,
num a f or ta le za ine xpugná ve l.") Anthony Stor r f e z a inte r e ssa nte
suge stã o de que e ssa a titude ta m bé m se de ve sse a o r e sse ntim e nto de
Fr e ud dia nte da de se r ç ã o de Alf r e d Adle r, que ha via a ba ndona do o
m ovim e nto psic a na lític o e xa ta m e nte por a c r e dita r que o de se j o de
pode r de se m pe nha va um pa pe l m uito m a is im por ta nte na psic ote r a pia
hum a na do que o de se j o se xua l.

A ta r e f a de c onf r onta r os e le m e ntos br uta is e de str utivos da Som br a


tor nou- se , no sé c ulo XX, o de stino ine sc a pá ve l da nossa e spé c ie : se
f a lha r m os, nã o te r e m os e spe r a nç a de sobr e vive r. Com boa r a zã o
tor nou- se e ssa a nossa "a nsie da de unive r sa l". Esse é o pr oble m a da
Som br a dos nossos te m pos. "Ta lve z a inda e ste j a m os e m te m po de
de te r o a poc a lipse ", de c la r a Konr a d Lor e nz. "Ma s a nossa situa ç ã o é
pr e c á r ia ."
Ne ste e xa to m om e nto da histór ia da hum a nida de , a e voluç ã o tr ouxe -
nos a o ponto c r ític o. Se o nosso de stino nã o f or a niquila r a nós
m e sm os e à m a ior ia da s outr a s e spé c ie s sobr e a f a c e da Te r r a , e ntã o
a ontoge nia de ve tr iunf a r sobr e a f iloge nia . Existe um urge nte
im pe r a tivo biológic o pa r a tr a ze r a Som br a à c onsc iê nc ia . A c a rga
m or a l de ssa im e nsa ta r e f a se r á m a ior do que qua lque r ge r a ç ã o
a nte r ior pode r ia j a m a is te r c onc e bido; o de stino do pla ne ta e de todo o
nosso siste m a sola r ( pois hoj e sa be m os que nã o som os os únic os se r e s
se nsíve is ne le ) e stá e m nossa s m ã os. Únic o de ntr e os gr a nde s
psic ólogos dos nossos te m pos, Jung of e r e c e u um m ode lo c onc e itua i
que ta lve z a j ude a tor na r possíve l e sse tr iunf o ontológic o. No c onc e ito
da Som br a e le sinte tizou o tr a ba lho de Adle r e de Fr e ud e , na sua
de m onstr a ç ã o da s pr ope nsõe s de r e a liza ç ã o do Eu, e le os tr a nsc e nde u.
Ape na s, se c he ga r m os c onsc ie nte m e nte a um a c or do c om a nossa
nature za — e , e m pa r tic ula r, c om a na tur e za da Som br a — é que
pode m os te r a e spe r a nç a de e vita r a c a tá str of e tota l.

5. Dr. Je kyll e M r. Hyde

JOHN A. SANFORD
P ode m os c om e ç a r c om pa r a ndo a de sc r iç ã o de He nr y Je ky ll c om a de
Edwa r d Hy de . Le m os que Je ky ll e r a um "hom e m de c inque nta a nos,
gr a nde , be m c onstituído, de r osto ba r be a do, c om um toque f ur tivo
ta lve z, m a s c om toda s a s c a r a c te r ístic a s de c a pa c ida de e ge ntile za ".
Assim , nã o há r a zã o pa r a supor m os que Je ky ll nã o possuísse m uita s
boa s qua lida de s. Ma s a suge stã o do "toque f ur tivo" tr a i o f a to de que ,
oc ulta sob a bonda de de He nr y Je ky ll, e xistia um a pe ssoa de c a r á te r
m a is duvidoso. De pois, Je ky ll dá m a ior e s de ta lhe s de si m e sm o:
"pr e zo o r e spe ito dos hom e ns sá bios e bons de ntr e os m e us
se m e lha nte s". I sso nos inf or m a que , j unto c om sua s r e se r va s na tur a is
de bonda de e ge ntile za , He nr y Je ky ll se ntia o de se j o de se r a pr ova do
pe los se us se m e lha nte s e por isso a ssum ia um a de te r m ina da postur a
dia nte da soc ie da de , ou se j a , a dota va um a pe rsona a gr a dá ve l que lhe
gr a nj e a va a a pr ova ç ã o e o r e spe ito dos outr os.

Je ky ll pe r c e bia , no e nta nto, um outr o la do da sua pe r sona lida de que


e sta va e m de sa c or do c om e ssa p e rso n a : "um c e r to te m pe r a m e nto
f r ívolo e im pa c ie nte ". I sso o le va va a busc a r c e r tos pr a ze r e s da vida
que e le a c ha va dif íc il r e c onc ilia r c om se u "de se j o im pe r ioso" de
m a nte r a dignida de . Je ky ll pe r c e bia que a dota va um "se m bla nte m uito
m a is gr a ve do que o usua l dia nte da s pe ssoa s". Em outr a s pa la vr a s, o
se m bla nte gr a ve a dota do por Je ky ll e m públic o e r a um a m á sc a r a pa r a
e sc onde r um outr o la do da sua pe r sona lida de que e le nã o que r ia que
ningué m visse e c onside r a va c om "m ór bida ve rgonha ". Com o
c onse quê nc ia , Je ky ll e sc r e ve u, "e sc ondi m e us pr a ze r e s" e "j á e stou
c om pr om e tido c om um a pr of unda duplic ida de de vida ".

Je ky ll m ostr ou te r visã o psic ológic a . Ele tinha c onsc iê nc ia da


dua lida de da sua pr ópr ia na tur e za e de c la r ou que "o hom e m nã o é
um a unida de : na ve r da de , o hom e m é duplo". Até a r r isc ou la nç a r a
hipóte se de que o hom e m é c onstituído por todo um sor tim e nto de
se m ide use s, que sua pe r sona lida de nã o é um a unida de , m a s um a
a lde ia c om todos os se us ha bita nte s; um e nf oque que a s m ode r na s
psic ologia s de pr of undida de c or r obor a m . Ele via e ssa dua lida de c om o
"c om ple ta " e "pr im itiva ", ou se j a , a r que típic a e , por ta nto, pr e se nte
de sde o iníc io c om o um a spe c to f unda m e nta l da e str utur a psic ológic a
bá sic a do se r hum a no. Ar m a do c om e ssa visã o psic ológic a de si
m e sm o, Je ky ll pode r ia te r a lc a nç a do o a uge do de se nvolvim e nto
c onsc ie nte .

Ma s, c om o ve r e m os, f a lhou por c a usa de um e r r o psic ológic o


f unda m e nta l.

Edwa r d Hy de é de sc r ito c om o j ove m , c he io de e ne rgia dia bólic a ,


ba ixo e um ta nto de f or m a do. Ele é o J agannath, o "nã o- hum a no", a
pe ssoa c uj a sim ple s pr e se nç a e voc a o ódio nos outr os. De m onstr a
um a f r ie za de sde nhosa e som br ia e é inc a pa z de se ntim e ntos
hum a nos; a ssim , nã o é e spic a ç a do pe la c onsc iê nc ia e é inc a pa z de
se ntir c ulpa . A j uve ntude de Hy de suge r e que , e nqua nto pe r sona lida de
da som br a de Je ky ll, e le c onté m e ne rgia nã o utiliza da , A Som br a ,
c om o vim os, inc lui a vida nã o vivida : toc a r a pe r sona lida de da
Som br a signif ic a r e c e be r um a inf usã o de e ne rgia nova , ou se j a , a
e ne rgia da j uve ntude . A ba ixa e sta tur a e a a pa r ê nc ia de f or m a da de
Hy de indic a m que , e nqua nto pe r sona lida de da som br a , Hy de pouc o
c om pa r tilhou da vida e xte r ior de Je ky ll. Te ndo vivido a m a ior pa r te do
te m po na e sc ur idã o do inc onsc ie nte , e le te m a a pa r ê nc ia de f or m a da ,
c om o a á r vor e f or ç a da a c r e sc e r e ntr e a s r oc ha s e sob a som br a de
outr a s á r vor e s, A f a lta de c onsc iê nc ia de Hy de , de sc r ita por Je ky ll
c om o um a "soluç ã o pa r a os la ç os do c om pr om isso", ta m bé m é
c a r a c te r ístic a da pe r sona lida de da som br a . É c om o se a Som br a
de ixa sse os se ntim e ntos m or a is e os c om pr om issos pa r a a
pe r sona lida de do e go, e nqua nto e la pr ópr ia te nta vive r os im pulsos
inte r ior e s e pr oibidos, tota lm e nte ise nta dos e f e itos a te nua nte s de
qua lque r se ntim e nto de c e r to ou e r r a do.

Ma s ta lve z a c oisa m a is im por ta nte que nos é dita sobr e Edwa r d Hy de


se j a o c om e ntá r io de Je ky ll na pr im e ir a ve z que a dr oga o
tr a nsf or m ou e m Hy de : "P e r c e bi que e u e r a ... m a is pe r ve r so, de z
ve ze s m a is pe r ve r so, e sc r a viza do à m inha m a lda de or igina l..." De
iníc io, Je ky ll vir a e m si m e sm o a pe na s um c e r to "te m pe r a m e nto
f r ívolo", um la do que busc a va os pr a ze r e s e que pode r ia te r le va do a
a lguns e r r os e na da m a is; por é m , um a ve z tr a nsf or m a do e m Hy de ,
e le pe r c e be que é m uito m a is pe r ve r so do que j a m a is pe nsa r a . De ssa
de sc r iç ã o, pa r e c e que a pe r sona lida de da som br a c om e ç a c om o
nosso la do e sc ur o pe ssoa l m a s, e m a lgum ponto, f a z c onta to c om um
níve l m a is pr of undo e m a is a r que típic o do m a l; e sse níve l é tã o f or te
que a únic a c oisa que Je ky ll podia dize r de Hy de e r a que e le , e só e le
e ntr e os hom e ns, e r a pur o m a l. Na s m ã os de sse m a l a r que típic o, a
busc a de pr a ze r e s a que Je ky ll que r ia e ntr e ga r- se logo le vou a um a
a tivida de ve r da de ir a m e nte sa tâ nic a — c om o é e xe m plif ic a do no
inf e r na l a ssa ssina to do Dr. Ca r e w, c om e tido pe lo pur o pr a ze r do m a l e
da de str uiç ã o. P ode m os ve r e ssa m e sm a qua lida de sa tâ nic a
e m e rgindo na que la s situa ç õe s e m que um a pe ssoa m a ta outr a a
sa ngue - f r io, se j a na gue r r a ou na c r im ina lida de , se m ne nhum
r e m or so e vide nte . Tr a ta - se de um m a l a r que típic o que nos c hoc a e
ta m bé m nos f a sc ina , a tr a indo a nossa hor r or iza da a te nç ã o pa r a a s
m a nc he te s dos j or na is.

C. G. Jung e sc r e ve u c e r ta ve z que nos tor na m os a quilo que f a ze m os.


I sso nos a j uda a c om pr e e nde r a inda m a is a r a zã o pa r a a de str uiç ã o de
Je ky ll. Um a ve z que de c ide s e r Hy de , m e sm o que por pouc o te m po,
e le te nde a tornar- se Hy de . A de c isã o de libe r a da de faze r o m a l, f a z
c om que nos tor ne m os m a us. É por e ssa r a zã o que vive r os im pulsos
m a is e sc ur os da Som br a nã o é um a soluç ã o pa r a o pr oble m a da
som br a , pois, se o te nta m os, pode m os f a c ilm e nte se r possuídos ou
a bsor vidos pe lo m a l. I sso c onf ir m a a na tur e za a r que típic a do m a l,
pois um a da s qua lida de s dos a r qué tipos é que e le s pode m tom a r posse
do e go — a lgo c om o se r de vor a do pe lo a r qué tipo ou tor na r- se idê ntic o
a e le .

O pr ópr io Je ky ll pe r c e be e sse pe r igo qua ndo c om e ç a a se tr a nsf or m a r


involunta r ia m e nte e m Hy de , Foi um c hoque te r r íve l pa r a e le . Ele
e spe r a va se r c a pa z de pa ssa r de Je ky ll a Hy de , e de Hy de a Je ky ll, de
a c or do c om a sua vonta de : m a s a gor a de sc obr e que Hy de e stá
a ssum indo o c om a ndo. Sua c onf ia nç a a nte r ior, que o le vou a dize r :
"no insta nte e m que e u quise r, livr o- m e de Mr. Hy de ", e va por a - se .
Essa a titude m ostr a um a ne gligê nc ia e m r e la ç ã o a o m a l que pr e dispôs
Je ky ll a se r possuído por e le . Ela r e a pa r e c e na c e na e m que Je ky ll
se nta no pa r que e r e f le te que , a f ina l de c onta s, "sou c om o m e us
vizinhos", e c om pa r a - se f a vor a ve lm e nte c om outr os hom e ns,
de sta c a ndo sua vonta de a tiva e m c ontr a ste c om o "pr e guiç oso
de sc uido" dos outr os. O de spr e zo de sc uida do de Je ky ll pe la s f or ç a s do
m a l, j unto c om se u de se j o de e sc a pa r à te nsã o de sua na tur e za
dua lista , a br e m o c a m inho pa r a a sua de str uiç ã o últim a .
Ne sse ponto da histór ia , Je ky ll tom a a r e soluç ã o de nunc a m a is se
e nvolve r c om a por ç ã o Hy de da sua pe r sona lida de , e a té de c la r a a
Utte r son, "Jur o por De us, j ur o por De us que nunc a m a is por e i os olhos
ne le . Jur o pe la m inha honr a que a c a be i c om e le ne ste m undo. Tudo
e stá a c a ba do". E Je ky ll r e a lm e nte te nta da r f im a Hy de . Re tom a sua s
a ntiga s oc upa ç õe s, de dic a - se m a is do que nunc a à s boa s a ç õe s e
ta m bé m , pe la pr im e ir a ve z, de vota - se à r e ligiã o.

De ve m os a dm itir que a de voç ã o r e ligiosa de Je ky ll signif ic a que e le


pa ssou por a lgum a c e r im ônia r e ligiosa f or m a l, ta lve z liga ndo- se a
a lgum a I gr e j a . Sa be m os, é c la r o, que a r e ligiosida de de Je ky ll nã o é
sinc e r a . Ele na da sa be de De us; a pe na s e spe r a e nc ontr a r na r e ligiã o
f or m a l, e e m sua s pr ópr ia s pr e te nsõe s r e ligiosa s, um a de f e sa c ontr a
Hy de . Se m dúvida , m uitos de nós, hoj e , usa m os a r e ligiã o de ssa
m a ne ir a ; e spe c ia lm e nte a que la s c r e nç a s r e ligiosa s que c onde na m os
pe c a dos hum a nos, a m e a ç a m o pe c a dor c om c a stigos e e nc or a j a m a s
boa s a ç õe s c om o sina l de sa lva ç ã o. Esse tipo de r e ligiã o te nde a a tr a ir
a s pe ssoa s que , c onsc ie nte ou inc onsc ie nte m e nte , luta m por m a nte r
sua s som br a s sob c ontr ole .

Ma s a te nta tiva nã o f unc iona pa r a o Dr. Je ky ll, Mr. Hy de f ic ou m a is


f or te de ntr o de le . Hy de , e nqua nto pe r sona lida de da som br a , c ontinua
a e xistir no inc onsc ie nte e a gor a , m a is do que nunc a , luta pa r a
libe r ta r- se , ou se j a , luta pa r a possuir a pe r sona lida de de Je ky ll a f im
de vive r do j e ito que de se j a . O la do e sc ur o f oi f or ta le c ido de m a is;
f r a c a ssa a te nta tiva de m a ntê - lo sob c ontr ole e c onse r vá - lo tr a nc a do
no por ã o da psique , pois Hy de a gor a é m a is f or te que Je ky ll. E c om
isso Robe r t Louis Ste ve nson e stá nos dize ndo que , se vive r a Som br a
nã o é a r e sposta , ta m pouc o o é sua r e pr e ssã o; pois a m bos os pr oc e ssos
de ixa m a pe r sona lida de dividida e m dois.

Existe a inda a f a lta de sinc e r ida de e a pr e te nsã o r e ligiosa de Je ky ll.


Ta nto a r e ligiosida de qua nto o de se j o de se de sve nc ilha r de Hy de
or igina m - se do instinto de a utopr e se r va ç ã o, nã o de se us se ntim e ntos
m or a is. Nã o é por m otivos e spir itua is que Je ky ll que r de te r Hy de , m a s
por te m e r a sua de str uiç ã o. Sob a supe r f íc ie , c ontinua a e xistir se u
a nse io nã o r e c onhe c ido pe lo m a l: isso f ic a e vide nte qua ndo e le ,
m e sm o de pois de tom a r a im por ta nte r e soluç ã o de de sve nc ilha r- se de
Hy de , nã o de str ói a s r oupa s de Hy de ne m de soc upa se u a pa r ta m e nto
no Soho. P ode r ía m os dize r que , ne ssa a ltur a , o únic o m e io de Je ky ll
e vita r se r dom ina do pe lo m a l se r ia te r a a lm a ple na de um e spír ito
m a is f or te que o e spír ito do m a l; m a s, a o pe r m itir a sua pr ópr ia
tr a nsf or m a ç ã o e m Hy de , Je ky ll e sva ziou sua a lm a e o m a l pôde
tom a r posse de le .

O e r r o f unda m e nta l de He nr y Je ky ll f oi o se u de se j o de e sc a pa r à
te nsã o dos opostos de ntr o de si. Com o vim os, e le e r a dota do de um a
c e r ta c onsc iê nc ia psic ológic a , m a ior que a da m a ior ia da s pe ssoa s,
pois pe r c e bia a dua lida de de sua na tur e za ; e sta va c onsc ie nte de que
ha via um outr o de ntr o de si, c uj os de se j os e r a m c ontr á r ios a o se u
a nse io de se r a pr ova do pe la soc ie da de . Se tive sse a m plia do e ssa
c onsc iê nc ia e suste nta do a te nsã o dos opostos de ntr o de si, isso o te r ia
le va do a o de se nvolvim e nto da sua pe r sona lida de ; na lingua ge m que
e sta m os usa ndo, e le te r ia pa ssa do pe lo pr oc e sso de individua ç ã o. Ma s,
e m ve z disso, Je ky ll optou por te nta r e sc a pa r a e ssa te nsã o a tr a vé s da
dr oga tr a nsf or m a dor a , pa r a a ssim pode r se r ta nto Je ky ll qua nto Hy de
e de sf r uta r dos pr a ze r e s e be ne f íc ios de vive r, se m c ulpa ou te nsã o, os
dois la dos de sua pe r sona lida de . É bom nota r que , e nqua nto Je ky ll, e le
nã o se se ntia r e sponsá ve l por Hy de , "Af ina l de c onta s, a c ulpa e r a de
Hy de e só de Hy de ", de c la r ou c e r ta ve z.

I sso nos dá um a pista e m r e la ç ã o a o m odo c om o o pr oble m a da


Som br a p o d e se r e nf r e nta do. O e r r o de Je ky ll ta lve z nos m ostr e o
c a m inho pa r a um a c onc lusã o be m - suc e dida do nosso e m ba te c om a
Som br a : o suc e sso pode e sta r e m suste nta r e ssa te nsã o que Je ky ll
r e c usou. Ta nto a r e pr e ssã o do c onhe c im e nto da Som br a qua nto a
ide ntif ic a ç ã o c om a Som br a sã o te nta tiva s de e sc a pa r à te nsã o inte r na
dos opostos, te nta tiva s de "de sa ta r os nós" que une m , de ntr o de nós, o
la do c la r o e o la do e sc ur o. O m otivo, c la r o, é e sc a pa r à dor do
pr oble m a ; m a s, se e sc a pa r à dor le va a o de sa str e psic ológic o,
suste nta r a dor ta lve z possibilite o e nc ontr o da tota lida de .

Suste nta r um a ta l te nsã o dos opostos é c om o um a c r uc if ic a ç ã o.


De ve m os e sta r suspe nsos e ntr e os opostos, um e sta do dolor oso e
dif íc il de se r suste nta do. Ma s, ne sse e sta do de suspe nsã o, a gr a ç a de
De us é c a pa z de ope r a r de ntr o de nós. O pr oble m a da nossa dua lida de
j a m a is pode r á se r r e solvido no níve l do e go; é um pr oble m a que nã o
a dm ite soluç ã o r a c iona l. Ma s qua ndo e xiste a c onsc iê nc ia do
pr oble m a , o Eu, a I mago De i de ntr o de nós te m c ondiç õe s de a gir e
pr oduzir um a sínte se ir r a c iona l da pe r sona lida de .

Ou, e m outr a s pa la vr a s: se suste nta r m os c onsc ie nte m e nte o f a r do dos


opostos na nossa na tur e za , os pr oc e ssos de c ur a se c r e tos e ir r a c iona is
que oc or r e m no nosso inc onsc ie nte pode r ã o a gir e m nosso be ne f íc io e
tr a ba lha r visa ndo a sínte se da pe r sona lida de . Esse pr oc e sso ir r a c iona l
de c ur a , que e nc ontr a se u c a m inho a tr a vé s de obstá c ulos
a pa r e nte m e nte intr a nsponíve is, possui um a de f inida qua lida de
f e m inina . Que m a f ir m a que os opostos — c om o o e go e a Som br a —
j a m a is pode m unir- se é a m e nte m a sc ulina , r a c iona l e lógic a . No
e nta nto, o e spír ito f e m inino é c a pa z de e nc ontr a r um a sínte se onde a
lógic a diz que ne nhum a sínte se pode se r e nc ontr a da . P or e ssa r a zã o, é
inte r e ssa nte nota r que na histór ia de Ste ve nson a s f igur a s f e m inina s
sã o pouc a s, tê m a pa r iç ã o e spor á dic a e , qua ndo surge m , sã o vista s sob
um a ótic a ne ga tiva . Ne nhum dos pr inc ipa is pe r sona ge ns do livr o é
m ulhe r. Je ky ll, Enf ie ld, Utte r son, P oole , o e spe c ia lista e m gr a f ologia
Mr. Gue st, o Dr. La ny on — hom e ns, todos e le s. As f igur a s f e m inina s
a pe na s sã o m e nc iona da s. Existe a m ulhe r que c uida va do a pa r ta m e nto
de Hy de , um a m ulhe r "de m á c a ta dur a ", f r ia e r a buge nta . Há um a
br e ve m e nç ã o à m oç a a te r r or iza da , de sc r ita c om o "soluç a ndo
histe r ic a m e nte ", que Utte r son e nc ontr a qua ndo va i à c a sa de Je ky ll
na que la últim a noite . Ta m bé m há , é c la r o, a ga r otinha que f oi
pisote a da e a s m ulhe r e s, "se lva ge ns c om o ha r pia s", que c e r c a r a m
Hy de . E o pr ópr io Hy de , no la bor a tór io na que la últim a noite , é
de sc r ito c om o "c hor a ndo c om o um a m ulhe r ou um a a lm a pe na da ". A
únic a a lusã o va ga m e nte positiva a um a m ulhe r ou a o f e m inino é a
m oç a que te ste m unha o a ssa ssina to do Dr, Ca r e w; m a s, m e sm o de la ,
diz- se que de sm a iou à vista da que la c e na .

Em sum a , o f e m inino f a z m á f igur a na histór ia de Ste ve nson. A


m ulhe r é ou f r ia e r a buge nta , ou f r a c a e inc a pa z, ou e ntã o um a
vítim a , o que suge r e que o e spír ito f e m inino tor nou- se inope r a nte e f oi
inc a pa z de a j uda r na que la situa ç ã o. Tr a duzido na lingua ge m da
psic ologia , pode m os dize r que , qua ndo a c onsc iê nc ia psic ológic a é
r e c usa da — c om o Je ky ll a r e c usou — a nossa pa r te f e m inina , a nossa
pr ópr ia a lm a , e nf r a que c e , e sm or e c e e se de se spe r a ; um a tr a gé dia ,
pois é a nossa pr ópr ia e ne rgia f e m inina que pode nos a j uda r a
e nc ontr a r um a sa ída pa r a e sse pr oble m a que , de outr o m odo, é
insolúve l.

Ca be a qui um c om e ntá r io sobr e Mr. Utte r son. O pe r f il de Utte r son


c om pr ova a ha bilida de de Ste ve nson c om o f ic c ionista pois, e m bor a a
m a ior pa r te da na r r a tiva nos se j a c onta da a tr a vé s de se us olhos e
e xpe r iê nc ia s, e le pr ópr io j a m a is se intr om e te . Se u c a r á te r é
ha bilm e nte tr a ç a do. Gosta m os de Utte r son, pode m os a té im a giná - lo e
se guir se us pe nsa m e ntos, se ntim e ntos e r e a ç õe s; a inda a ssim , o
holof ote da histór ia inc ide se m pr e , a tr a vé s de le , sobr e o m isté r io
c e ntr a l de Je ky ll e Hy de de m odo que Utte r son j a m a is sobe a o c e ntr o
do pa lc o. Ta lve z por isso nossa te ndê nc ia é e nc a r a r Utte r son c om o um
sim ple s a c e ssór io lite r á r io, um a f igur a ne c e ssá r ia pa r a que a histór ia
se j a c onta da , m a s nã o c om o um pe r sona ge m que te m a lgo a nos
e nsina r sobr e o m isté r io do be m e do m a l.

Na ve r da de Utte r son é m a is im por ta nte do que pa r e c e , pois e le é a


f igur a hum a na c uj a se nsibilida de é de spe r ta da pe lo m a l e e m c uj a
c onsc iê nc ia f ina lm e nte e m e rge toda a histór ia do be m e do m a l, do
e go e da Som br a . Ele r e pr e se nta o se r hum a no que te m um a f unç ã o
se ntim e nto suf ic ie nte m e nte f or te pa r a se hor r or iza r dia nte do m a l e
se r c a pa z de r e sistir a o se u dom ínio. É e xa ta m e nte e ssa f unç ã o
se ntim e nto — que pe r m ite a o se r hum a no r e a gir c om hor r or à s
pr of unde za s do m a l — que e r a f r a c a e m Je ky ll e tota lm e nte
ine xiste nte e m Hy de .

Ta m bé m é ne c e ssá r io que o m a l ve nha a se r f ina lm e nte c onhe c ido


por a lgué m . Os a tos de Je ky ll e Hy de e r a m um se gr e do, m a s os
se gr e dos tê m um j e ito pr ópr io de te nta r e m e rgir. Todo se gr e do é
im pulsiona do por oc ulta s f or ç a s inte r ior e s e m dir e ç ã o à c onsc iê nc ia
hum a na e , por isso, a s m á s a ç õe s a c a ba m por a lc a nç a r a pe r c e pç ã o
da hum a nida de e m ge r a l ou de a lgué m e m pa r tic ula r. Note m os, por
e xe m plo, que no c om e ç o da histór ia a m e nte de Utte r son é tor tur a da
por a lgo que e le de sc onhe c e e que lhe c a usa insônia . Este é um sina l
se gur o de que o inc onsc ie nte e stá pe r tur ba ndo Utte r son e te nta ndo
e nc ontr a r um a m a ne ir a de f a zê - lo pe r c e be r a te r r íve l e e sc ur a vida
se c r e ta de Je ky ll e Hy de . É de sse m odo que , na histór ia , a
c onsc iê nc ia de Utte r son tor na - se o r e c e ptá c ulo pa r a o c onhe c im e nto
do m a l e , por ta nto, e le r e pr e se nta o que há de m e lhor e m a is hum a no
no e go; um a e spé c ie de r e de ntor c uj a c onsc iê nc ia , de spe r ta ndo pa r a
os a c onte c im e ntos, e c uj o se ntim e nto de hor r or of e r e c e m um a
sa lva gua r da hum a na c ontr a o dom ínio dos pode r e s da s tr e va s sobr e a
vida hum a na .

E o Dr. La ny on? Ta m bé m e le c he ga a ve r a na tur e za do m a l, m a s da


m a ne ir a e r r a da . La ny on nã o te ntou c om pr e e nde r o m isté r io de Je ky ll
e Hy de da m e sm a m a ne ir a que Utte r son, e qua ndo toda a e xte nsã o do
m a l lhe c a iu e m c im a , f oi de m a is pa r a e le . La ny on viu o m a l
de pr e ssa de m a is e e m e xc e ssiva pr of undida de , se m o pr e pa r o ne m o
a poio hum a no ne c e ssá r ios. E e sse é o outr o la do da tom a da de
c onsc iê nc ia do m a l. P r e c isa m os tom a r c onsc iê nc ia de le , m a s olhá - lo
e m de m a sia da pr of undida de e inge nua m e nte pode nos c a usa r um
c hoque do qua l nã o c onse guir e m os nos r e c upe r a r, A dr oga de m onía c a
que Je ky ll f a br ic ou pa r a c onse guir sua tr a nsf or m a ç ã o e m Hy de
ta m bé m m e r e c e um c om e ntá r io, e m e spe c ia l ne ste m om e nto da
histór ia que vive m os, c e r c a dos de dr oga s c a pa ze s de a lte r a r a nossa
m e nte . Note i que m uita s ve ze s o á lc ool pa r e c e tr a nsf or m a r de Je ky ll
pa r a Hy de a pe r sona lida de de a lgum a s pe ssoa s, Ela s sã o de um a
m a ne ir a a té tom a r e m a lguns gole s e , e ntã o, surge o la do f e io da
pe r sona lida de . Em c e r tos c a sos, é possíve l que na ba se do im pulso
pe la be bida e ste j a a luta da Som br a pa r a se a f ir m a r, a ssim c om o
Hy de e spe r a va a nsiosa m e nte que Je ky ll tom a sse a dr oga pa r a pode r
e m e rgir e vive r sua vida e sc ur a .

P ode m os nota r que , e m bor a a pa r te m á da pe r sona lida de de Je ky ll o


de str uísse , e la a c a bou por de str uir ta m bé m a si m e sm a . Tã o logo
Je ky ll é tota lm e nte possuído por Hy de , Hy de se suic ida . É um
de sf e c ho instr utivo, pois nos diz que o m a l a c a ba supe r a ndo a si
m e sm o e pr ovoc a ndo sua pr ópr ia de str uiç ã o. É e vide nte que o m a l
nã o pode vive r por si m e sm o; e le só pode e xistir qua ndo e xiste a lgo
bom de que e le possa se a lim e nta r.

6. A pe r c e pç ão da sombr a nos sonhos

M ARIE- LOUISE VON FRANZ


A som br a nã o c onstitui o todo da pe r sona lida de inc onsc ie nte . Ela
r e pr e se nta qua lida de s e a tr ibutos de sc onhe c idos ou pouc o c onhe c idos
do e go — a spe c tos que , na sua m a ior ia , pe r te nc e m à e sf e r a pe ssoa l e
que pode r ia m , do m e sm o m odo, se r c onsc ie nte s. Em a lguns a spe c tos,
a som br a ta m bé m é c onstituída de f a tor e s c ole tivos que se or igina m
de um a f onte e xte r ior à vida pe ssoa l do indivíduo.

Qua ndo um a pe ssoa f a z um a te nta tiva de ve r a sua som br a , e la tor na -


se c onsc ie nte ( e , c om f r e quê nc ia , e nve rgonha da ) da que la s qua lida de s
e im pulsos que ne ga e m si m e sm a , e m bor a ve j a c la r a m e nte nos
outr os — c oisa s c om o e gotism o, pr e guiç a m e nta l e de sm a ze lo;
f a nta sia s, intr iga s e tr a m a s ir r e a is; de sa te nç ã o e c ova r dia ; im ode r a do
a m or a o dinhe ir o e à s posse s — e m sum a , todos os pe c a dilhos a
r e spe ito dos qua is j á te nha dito a si m e sm a : "Nã o im por ta , ningué m
va i nota r e , de qua lque r m odo, todo m undo f a z."

Se se ntim os um a r a iva a va ssa la dor a c r e sc e ndo de ntr o de nós qua ndo


um a m igo nos r e pr e e nde por um e r r o, pode m os e sta r r a zoa ve lm e nte
c e r tos de que a li e nc ontr a r e m os um a pa r te da nossa som br a da qua l
nã o e sta m os c onsc ie nte s. É na tur a l que f ique m os a bor r e c idos qua ndo
os outr os, que nã o sã o "m e lhor e s" que nós, nos c r itic a m pe los e r r os da
nossa som br a . Ma s o que pode m os dize r qua ndo sã o os nossos pr ópr ios
sonhos — um j uiz inte r ior, de ntr o do nosso pr ópr io se r — que nos
r e pr e e nde m ? E ne sse m om e nto que o e go é a pa nha do e o r e sulta do,
e m ge r a l, é um silê nc io c he io de e m ba r a ç o. De pois disso c om e ç a a
dor e o e xte nso tr a ba lho de a utoe duc a ç ã o — um tr a ba lho, pode - se
dize r, que é o e quiva le nte psic ológic o a os tr a ba lhos de Hé r c ule s. Um a
da s ta r e f a s de sse de sa f or tuna do he r ói, le m br a m os, f oi lim pa r num
únic o dia os e stá bulos de Augia s, onde c e nte na s de c a be ç a s de ga do
ha via m de f e c a do dur a nte m uita s dé c a da s — ta r e f a tã o e nor m e que o
c om um dos m or ta is se r ia tom a do de de sâ nim o só de pe nsa r ne la .

A som br a nã o é f e ita a pe na s de om issõe s. Ela se m ostr a , c om ba sta nte


f r e quê nc ia , e m nossos a tos im pulsivos ou im pe nsa dos. Ante s que
te nha m os te m po de pe nsa r, a obse r va ç ã o de sa str osa f oi f e ita , a tr a m a
f oi ur dida , a de c isã o e r r a da f oi tom a da , e nos de f r onta m os c om
r e sulta dos que j a m a is ha vía m os pr e te ndido ou de se j a do
c onsc ie nte m e nte . Alé m disso, a som br a e stá m uito m a is e xposta a
c onta m ina ç õe s c ole tiva s que a pe r sona lida de c onsc ie nte . Qua ndo um
hom e m e stá sozinho, por e xe m plo, e le se se nte r e la tiva m e nte à
vonta de ; m a s, tã o logo "os outr os" f a ç a m c oisa s e sc ur a s e pr im itiva s,
e le c om e ç a a te m e r que o j ulgue m um tolo se nã o f ize r o m e sm o. E
a ssim e le c e de a im pulsos que , na ve r da de , nã o lhe pe r te nc e m . É
e spe c ia lm e nte e m c onta tos c om pe ssoa s do nosso m e sm o se xo que
tr ope ç a m os na nossa som br a e na de la s. Em bor a possa m os ve r a
som br a num a pe ssoa do se xo oposto, e m ge r a l e la nos pe r tur ba m e nos
e nós a pe r doa m os c om m a is f a c ilida de .

Nos sonhos e m itos, por ta nto, a som br a a pa r e c e c om o um a pe ssoa do


m e sm o se xo do sonha dor, O sonho que na r r o a se guir ta lve z sir va
c om o e xe m plo. O sonha dor e r a um hom e m de 48 a nos que te nta va
vive r pa r a e por si m e sm o, tr a ba lha ndo dur o e se disc iplina ndo,
r e pr im indo o pr a ze r e a e sponta ne ida de m uito m a is do que c onvinha à
sua ve r da de ir a na tur e za .

Eu possuía e m or a va num c a sa r ã o na c ida de e a inda nã o c onhe c ia


todos os se us inúm e r os c ôm odos. Com e c e i a a nda r pe la c a sa e
de sc obr i, pr inc ipa lm e nte na a de ga , m uita s sa la s que e u nunc a tinha
visto, e a té sa ída s que le va va m pa r a outr a s a de ga s ou pa r a r ua s
subte r r â ne a s. Fique i pr e oc upa do qua ndo de sc obr i que m uita s de ssa s
sa ída s nã o e sta va m tr a nc a da s e a lgum a s ne m tinha m f e c ha dur a . Alé m
disso, ha via a lguns ope r á r ios tr a ba lha ndo na vizinha nç a que pode r ia m
te r e ntr a do...

Qua ndo volte i a o a nda r té r r e o, pa sse i por um quinta l onde nova m e nte
de sc obr i dive r sa s sa ída s pa r a a r ua ou pa r a outr a s c a sa s. Qua ndo
te nte i inve stigá - la s m a is de pe r to, um hom e m se a pr oxim ou r indo a lto
e gr ita ndo que é r a m os ve lhos c ole ga s da e sc ola pr im á r ia . Le m br e i
de le e , e nqua nto e le m e c onta va a sua vida , c a m inhe i a o se u la do pa r a
a sa ída e pa sse e i c om e le pe la s r ua s, Ha via um e str a nho c la r o- e sc ur o
no a r e nqua nto c a m inhá va m os por um a e nor m e r ua c ir c ula r e
c he gá va m os a um gr a m a do ve r de onde tr ê s c a va los r e pe ntina m e nte
pa ssa r a m ga lopa ndo por nós. Er a m a nim a is be los e f or te s, se lva ge ns
m a s be m - tr e ina - dos, e nã o ha via c a va le ir o na se la . ( Te r ia m e le s
f ugido a o se r viç o m ilita r ?) O la bir into de e str a nha s pa ssa ge ns,
c â m a r a s e sa ída s de str a nc a da s na a de ga f a z le m br a r a a ntiga
r e pr e se nta ç ã o e gípc ia do m undo subte r r â ne o que , c om sua s
possibilida de s ignor a da s, é um sím bolo f a m oso do inc onsc ie nte .
Mostr a , ta m bé m , c om o a pe ssoa e stá "a be r ta " a outr a s inf luê nc ia s no
la do inc onsc ie nte da som br a , e c om o e le m e ntos m iste r iosos e
e str a nhos pode m ir r om pe r. A a de ga , pode - se dize r, é a ba se da psique
do sonha dor. No quinta l da e str a nha c onstr uç ã o ( que r e pr e se nta o
obj e tivo psíquic o a inda nã o pe r c e bido da pe r sona lida de do sonha dor ) ,
um a ntigo c ole ga de e sc ola a pa r e c e de súbito, Essa pe ssoa
obvia m e nte pe r sonif ic a um outr o a spe c to do pr ópr io sonha dor — um
a spe c to que f e z pa r te de sua inf â nc ia m a s que e le e sque c e u e pe r de u.
Ac onte c e c om f r e quê nc ia que a s qua lida de s da inf â nc ia de um a
pe ssoa ( por e xe m plo, a a le gr ia , a ir a sc ibilida de ou ta lve z a c onf ia nç a )
de sa pa r e ç a m de r e pe nte , e a pe ssoa nã o sa be onde ou c om o a s
pe r de u, Esta é um a c a r a c te r ístic a pe r dida do sonha dor que a gor a
r e tor na ( do quinta l) e te nta r e f a ze r a a m iza de . Essa f igur a
pr ova ve lm e nte r e pr e se nta a c a pa c ida de ne glige nc ia da do sonha dor de
goza r a vida e o la do e xtr ove r tido de sua som br a .

Ma s logo e nte nde m os por que o sonha dor se se nte "inquie to" um pouc o
a nte s de e nc ontr a r o ve lho a m igo, a pa r e nte m e nte inof e nsivo. Qua ndo
pa sse ia c om e le pe la s r ua s, os c a va los ga lopa m à solta . O sonha dor
pe nsa que e le s ta lve z te nha m e sc a pa do a o se r viç o m ilita r ( o que
e quiva le a dize r, e sc a pa do à disc iplina c onsc ie nte que a té e ntã o
c a r a c te r izou sua vida ) . O f a to de os c a va los nã o te r e m c a va le ir o
m ostr a que os im pulsos instintivos pode m e sc a pa r do c ontr ole
c onsc ie nte . No ve lho a m igo e nos c a va los, r e a pa r e c e toda a e ne rgia
positiva que f a lta va a nte s e que e r a tã o ne c e ssá r ia a o sonha dor, Esse é
um pr oble m a que surge , c om f r e quê nc ia , qua ndo e nc ontr a m os o nosso
"outr o la do". A som br a ge r a lm e nte c onté m va lor e s que sã o
ne c e ssá r ios a c onsc iê nc ia m a s que e xiste m sob um a f or m a que tor na
dif íc il inte gr á - los à nossa vida . As pa ssa ge ns e o c a sa r ã o de sse sonho
ta m bé m m ostr a m que o sonha dor a inda nã o c onhe c e sua s pr ópr ia s
dim e nsõe s psíquic a s e a inda nã o é c a pa z de oc upá - la s.

A som br a ne sse sonho é típic a de um intr ove r tido ( um hom e m que


te nde a r e tir a r- se de m a sia do da vida e xte r ior ) . No c a so de um
e xtr ove r tido, que e stá m a is volta do pa r a os obj e tos e xte r ior e s e pa r a a
vida e xte r ior, a som br a pa r e c e r ia be m dif e r e nte .

Um r a pa z de te m pe r a m e nto ba sta nte vivo e sta va se m pr e inic ia ndo


novos e be m - suc e didos e m pr e e ndim e ntos m a s, a o m e sm o te m po, se us
sonhos insistia m e m que e le de ve r ia te r m ina r um a c e r ta obr a de
c r ia ç ã o pe ssoa l que c om e ç a r a . Este é um dos sonhos: Um hom e m e stá
de ita do num sof á e puxou a m a nta sobr e o pr ópr io r osto. E um
f r a nc ê s, um f or a - da - le i c a pa z de a c e ita r qua lque r e nc a rgo c r im inoso.
De sç o a s e sc a da s a c om pa nha do por um polic ia l e se i que um a
c onspir a ç ã o f oi a r m a da c ontr a m im : o f r a nc ê s va i m e m a ta r c om o se
f osse por a c ide nte . ( É a ssim que a c oisa pa r e c e r ia , vista de f or a .) Ele
r e a lm e nte se e sgue ir a por tr á s de m im qua ndo nos a pr oxim a m os da
sa ída , m a s e u e stou de gua r da . Um hom e m a lto e gor do ( ba sta nte r ic o
e inf lue nte ) subita m e nte a poia - se a pa r e de a o m e u la do, se ntindo- se
m a l. De im e dia to, a pr ove ito a opor tunida de pa r a m a ta r o polic ia l,
a punha la ndo- o no c or a ç ã o, "Só se nti um pouc o de um ida de " — é o
m e u c om e ntá r io. Agor a e stou sa lvo por que o f r a nc ê s nã o va i m a is m e
a ta c a r j á que o m a nda nte do c r im e e stá m or to. ( P r ova ve lm e nte , o
polic ia l e o hom e m gor do sã o a m e sm a pe ssoa , e o se gundo de a lgum
m odo substituiu o pr im e ir o.) O m a rgina l r e pr e se nta o outr o la do do
sonha dor — sua intr ove r sã o — que c he gou a um e sta do de c om ple ta
pr iva ç ã o. Ele e stá de ita do num sof á ( que r dize r, e le é pa ssivo) e puxa
a m a nta sobr e o r osto por que que r se r de ixa do e m pa z. P or outr o la do,
o polic ia l e o pr óspe r o hom e m gor do ( que se c r e ta m e nte sã o a m e sm a
pe ssoa ) pe r sonif ic a m os be m - suc e didos e m pr e e ndim e ntos e
r e sponsa bilida de s do sonha dor. O m a l- e sta r súbito do hom e m gor do
e stá liga do a o f a to de que o sonha dor r e a lm e nte a doe c e r a vá r ia s
ve ze s, qua ndo pe r m itir a que sua e ne rgia dinâ m ic a e xplodisse
f or te m e nte e m sua vida e xte r ior. Ma s e sse hom e m be m - suc e dido nã o
te m sa ngue na s ve ia s — só um a e spé c ie de um ida de — o que signif ic a
que e ssa s a m bic iosa s a tivida de s e xte r na s do sonha dor nã o c ontê m
ne nhum a vida ge nuína , ne nhum a pa ixã o; sã o a pe na s m e c a nism os se m
sa ngue . P or isso nã o se r ia um a pe r da r e a l se o hom e m gor do f osse
m or to. No f im do sonho, o f r a nc ê s e stá sa tisf e ito; e le r e pr e se nta ,
obvia m e nte , a f igur a de um a som br a positiva que só se tor na r a
ne ga tiva e pe r igosa por que a a titude c onsc ie nte do sonha dor nã o
e sta va de a c or do c om e la .

Esse sonho nos m ostr a que a som br a pode c onstituir- se de m uitos


e le m e ntos dif e r e nte s — por e xe m plo, a m biç ã o inc onsc ie nte ( o
hom e m gor do be m - suc e dido) e intr ove r sã o ( o f r a nc ê s) , Alé m disso, o
sonha dor a ssoc ia va a os f r a nc e se s a c a pa c ida de de lida r be m c om os
c a sos de a m or. P or ta nto, a s dua s f igur a s da som br a ta m bé m
r e pr e se nta m dois im pulsos be m - c onhe c idos: pode r e se xo. O im pulso
pe lo pode r a pa r e c e m om e nta ne a m e nte sob um a f or m a dupla : o
polic ia l e o hom e m be m - suc e dido. O polic ia l ( um f unc ioná r io
públic o) pe r sonif ic a a a da pta ç ã o c ole tiva , e nqua nto que o hom e m
be m - suc e dido de nota a a m biç ã o; m a s é c la r o que a m bos se r ve m a o
im pulso pe lo pode r. Qua ndo o sonha dor c onse gue de te r e ssa pe r igosa
f or ç a inte r ior, o f r a nc ê s de ixa subita m e nte de se r hostil. Em outr a s
pa la vr a s, o a spe c to igua lm e nte pe r igoso do im pulso pe lo se xo ta m bé m
f oi dom ina do.

É e vide nte que o pr oble m a da som br a de se m pe nha um pa pe l


im por ta nte e m todos os c onf litos polític os. Se o hom e m que te ve e sse
sonho nã o f osse se nsíve l a o pr oble m a da som br a , e le pode r ia
f a c ilm e nte ide ntif ic a r o m a rgina l f r a nc ê s c om os "pe r igosos
c om unista s" e o polic ia l/hom e m pr óspe r o c om os "vor a ze s
c a pita lista s" de ste m undo. De sse m odo, e le e vita r ia ve r que possuía
de ntr o de si e sse s e le m e ntos be lic osos. Qua ndo obse r va m os a s nossa s
pr ópr ia s te ndê nc ia s inc onsc ie nte s nos outr os, isso é c ha m a do um a
"pr oj e ç ã o". A a gita ç ã o polític a , e m todos os pa íse s, e stá r e ple ta de ssa s
pr oj e ç õe s, ta nto qua nto a boa ta r ia do tipo "f undo- de - quinta l" de
pe ssoa s ou de pe que nos gr upos. Todos os tipos de pr oj e ç ã o
obsc ur e c e m a visã o que te m os dos nossos se m e lha nte s, de str uindo sua
obj e tivida de e , a ssim , f r ustr a ndo qua lque r possibilida de de um
r e la c iona m e nto hum a no ge nuíno.

Existe a inda um a outr a de sva nta ge m e m pr oj e ta r m os nossa som br a .


Qua ndo a ide ntif ic a m os c om os "pe r igosos c om unista s" ou os "vor a ze s
c a pita lista s", por e xe m plo, um a pa r te da nossa pe r sona lida de f ic a
ne sse la do. O r e sulta do é que m uita s ve ze s ( e m bor a de m odo
involuntá r io) f a ze m os, à s e sc ondida s de nós m e sm os, c oisa s que
a j uda m a que le outr o la do — ou se j a , ina dve r tida m e nte , a j uda m os o
nosso inim igo. Se , pe lo c ontr á r io, pe r c e be m os a pr oj e ç ã o e som os
c a pa ze s de disc utir o a ssunto se m m e do ne m hostilida de , lida ndo de
m odo se nsa to c om a outr a pe ssoa , e ntã o e xiste um a c ha nc e de
c om pr e e nsã o m útua — ou, pe lo m e nos, um a tr é gua .

Se a som br a se tor na nosso a m igo ou nosso inim igo de pe nde m uito de


nós m e sm os. Com o m ostr a m os sonhos do c a sa r ã o ine xplor a do e do
m a rgina l f r a nc ê s, a som br a ne m se m pr e é um opone nte . Na ve r da de ,
e la é e xa ta m e nte c om o qua lque r se r hum a no c om o qua l pr e c isa m os
nos r e la c iona r, à s ve ze s c e de ndo, à s ve ze s r e sistindo, à s ve ze s a m a ndo
— o que que r que a situa ç ã o e xij a . A som br a só se tor na hostil qua ndo
é ignor a da ou m a l c om pr e e ndida .

7. O e nc ont r o da sombr a na vida c ot idiana

WILLIAM A. M ILLER

Existe m pe lo m e nos c inc o c a m inhos e f ic a ze s pa r a a "via ge m inte r ior "


a f im de obse r va r m os a c om posiç ã o da nossa som br a : ( 1) pe dir que os
outr os nos diga m c om o nos ve e m ; ( 2) de sc obr ir o c onte údo da s nossa s
pr oj e ç õe s; ( 3) e xa m ina r nossos "la psos" ve r ba is e de c om por ta m e nto
e inve stiga r o que r e a lm e nte a c onte c e qua ndo som os vistos de m odo
dif e r e nte do que pr e te ndía m os; ( 4) a na lisa r nosso se nso de hum or e
nossa s ide ntif ic a ç õe s; e ( 5) e studa r nossos sonhos, de va ne ios e
f a nta sia s.

A opinião dos out r os


P ode m os c om e ç a r olha ndo o nosso r e f le xo alé m do e spe lho. Ao olha r
no e spe lho, ve m os a pe na s o r e f le xo de nós m e sm os do m odo c om o
pr e f e r im os nos ve r. Ao olha r a lé m do e spe lho, ve m os a nós m e sm os
do m odo c omo somos v istos. Se e sse e xe r c íc io lhe pa r e c e r im possíve l,
c om e c e c om a lgum a outr a pe ssoa .

P e nse e m a lgué m que voc ê sa be que vive e m a lgum gr a u de


a utoilusã o. I sso nã o é dif íc il por que todos nós e sta m os be m
f a m ilia r iza dos c om a s dim e nsõe s da som br a dos outr os e se m pr e nos
e spa nta que e le s se j a m tã o ignor a nte s de a lgo que é tã o e vide nte .

Me sm o que e u possa que re r ne gá - lo, sou obr iga do a c onc or da r ( e m


te or ia , pe lo m e nos) que e sse a ssunto é um a r ua de m ã o dupla . Ou
se j a , se e u posso ve r c la r a m e nte a sua som br a , que voc ê nã o vê ,
se gue - se que voc ê ta m bé m pode ve r c la r a m e nte a m inha som br a , que
e u nã o ve j o. Se m e a gr a da dize r- lhe o que e u ve j o ( de m odo ge ntil, é
c la r o) , e ntã o, pr ova ve lm e nte , a gr a da - lhe dize r- m e o que voc ê vê ( de
m odo ge ntil, é c la r o) .

Um dos m é todos m a is e f ic a ze s pa r a obse r va r m os a nossa som br a


pe ssoa l é pe dir a os outr os que nos diga m c om o nos ve e m . A m a ior ia
da s pe ssoa s, inf e lizm e nte , tr e m e só de pe nsa r nisso. P r e f e r im os
c ontinua r a a c ha r que os outr os nos ve e m e xa ta m e nte do m odo c om o
ve m os a nós m e sm os.

As pe ssoa s e m m e lhor posiç ã o pa r a nos a j uda r a ve r os e le m e ntos da


nossa som br a sã o a que la s que nos c onhe c e m be m . P ode se r o m a r ido,
a e sposa , um a outr a pe ssoa signif ic a tiva , um a m igo íntim o, um c ole ga
ou c om pa nhe ir o de tr a ba lho. P a r a doxa lm e nte , a s pe ssoa s que m a is
pode r ia m nos se r úte is sã o a que la s à s qua is ta lve z da m os m e nos
a te nç ã o. Aque la s a que m a c usa m os de subj e tivida de de c la r a da ,
pr oj e ç ã o ou sim ple s inve nc ionic e . Se r ia m e nos a m e a ç a dor ouvir a
opiniã o de um e str a nho; m a s os e str a nhos nã o e stã o e m posiç ã o de nos
of e r e c e r pe r c e pç õe s tã o a utê ntic a s c om o a s da s pe ssoa s que nos
c onhe c e m be m . Essa é um a outr a indic a ç ã o da dif ic ulda de de ssa
via ge m .

Va m os supor que e u pe ç a a sua opiniã o e voc ê m e diz que m e viu


c om o "subm isso" na s vá r ia s situa ç õe s e m que e stive m os e nvolvidos.
Ta lve z e u a c he vá lida a sua obse r va ç ã o, m e sm o que m e se j a dif íc il
ouvi- la . No f undo, o que e u que r o é dize r : "De que r a ios voc ê e stá
f a la ndo? Subm isso é a últim a c oisa que e u que r o se r." Ma s se gur o a
língua .

Essa r e a ç ã o m e of e r e c e um a pista ba sta nte substa nc ia l de que


pr ova ve lm e nte a c a be i de e nc ontr a r um tr a ç o ou c a r a c te r ístic a
ve r da de ir os da m inha som br a . P ois toda ve z que nos de c la r a m os "a
f a vor " ou "c ontr a " e de f e nde m os nossa posiç ã o c om intr a nsigê nc ia ,
ta lve z e ste j a m os e xa ta m e nte no te r r itór io da nossa som br a pe ssoa l, e
f a r ía m os be m e m inve stiga r.

Ouvi a sua ide ntif ic a ç ã o do tr a ç o da m inha som br a , e m e sm o que e u


a c he e xtr e m a m e nte dif íc il a c r e dita r que pa r e ç o se r subm isso, e u a
a c e ito c om o a sua pe r c e pç ã o. Vou e ntã o a um a m igo íntim o, e xplic o o
que e stou f a ze ndo e lhe digo que um outr o a m igo m e vê c om o um a
pe ssoa subm issa . P e ç o- lhe pa r a se r hone sto e m e dize r se é a ssim que
e le m e vê . P osso m e sa tisf a ze r c om e ssa se gunda opiniã o ou que r e r
r e pe tir o pr oc e sso. Em todo c a so, se sou sinc e r o na m inha j or na da
pa r a de ntr o de m im m e sm o, vou que r e r sa be r o m á xim o possíve l, de
um m odo ou de outr o. Qua ndo dua s ou m a is pe ssoa s,
inde pe nde nte m e nte , dize m que ve e m e m m im um c e r to tr a ç o da
som br a , e u f a r ia be m e m a c r e dita r ne ta s e e xplor a r o a ssunto c om
m a is pr of undida de .

Nossa pr oj e ç õe s
Um se gundo c a m inho pa r a c he ga r à som br a pe ssoa l é e xa m ina r
nossa s pr oj e ç õe s. A pr oj e ç ã o é um m e c a nism o inc onsc ie nte que
usa m os se m pr e que é a tiva do um tr a ç o ou c a r a c te r ístic a da nossa
pe r sona lida de que nã o e stá r e la c iona do c om a c onsc iê nc ia . Com o
r e sulta do da pr oj e ç ã o inc onsc ie nte , obse r va m os e sse tr a ç o pe ssoa l na s
outr a s pe ssoa s e r e a gim os a e le . Ve m os nos outr os a lgo que é pa r te de
nós, m a s que de ixa m os de ve r e m nós.

Fa ze m os pr oj e ç õe s ne ga tiva s e pr oj e ç õe s positiva s. Na m a ior pa r te do


te m po, o que ve m os nos outr os sã o a s dim e nsõe s inde se j á ve is de nós
m e sm os. P or ta nto, pa r a e nc ontr a r os e le m e ntos da som br a ,
pr e c isa m os e xa m ina r qua is os tr a ç os, c a r a c te r ístic a s e a titude s que
nos de sa gr a da m nos outr os e a inte nsida de c om que nos de sa gr a da m .

O m é todo m a is sim ple s c onsiste e m lista r toda s a s qua lida de s que nã o


a pr e c ia m os nos outr os; por e xe m plo, va ida de , ir r ita bilida de , e goísm o,
m a us m odos, a m biç ã o, e tc . Qua ndo a lista e stive r c om ple ta ( e é
pr ová ve l que e la se j a be m longa ) , de sta c a m os a s c a r a c te r ístic a s que
nã o só nos de sa gr a da m nos outr os m a s que ta m bé m odia m os,
de te sta m os e de spr e za m os. Essa se gunda lista se r á um a im a ge m
r a zoa ve lm e nte e xa ta da nossa som br a pe ssoa l. Ta lve z e la se j a dif íc il
de a c r e dita r e m a is dif íc il a inda de a c e ita r.

P or e xe m plo, se liste i a a r r ogâ nc ia c om o um dos tr a ç os que


sim ple sm e nte nã o posso supor ta r nos outr os e se c r itic o c om
ve e m ê nc ia um a pe ssoa pe la sua a r r ogâ nc ia no tr a to c om os outr os, e u
f a r ia be m e m e xa m ina r o m e u pr ópr io c om por ta m e nto pa r a ve r se e u
ta m bé m nã o e sta r e i pr a tic a ndo a a r r ogâ nc ia .
É c la r o que ne m toda s a s nossa s c r ític a s sobr e os outr os sã o pr oj e ç õe s
de tr a ç os inde se j á ve is da nossa pr ópr ia som br a ; m a s se m pr e que a
nossa r e a ç ã o a o outr o e nvolve e m oç ã o e xc e ssiva ou r e a ç ã o
e xa ge r a da , pode m os e sta r c e r tos de que a lgo inc onsc ie nte f oi
e stim ula do e e stá se ndo a tiva do. Com o j á disse m os, a s pe ssoa s sobr e
a s qua is pr oj e ta m os de ve m te r um "ga nc ho" no qua l a pr oj e ç ã o possa
se f ixa r. Se Jim à s ve ze s é a r r oga nte , por e xe m plo, te nho um a c e r ta
"r a zã o" e m nã o a pr e c ia r o se u c om por ta m e nto. Ma s, na ve r da de ir a
pr oj e ç ã o da som br a , m inha s c r ític a s a o Jim e xc e de r ia m e m m uito a
sua de m onstr a ç ã o de a r r ogâ nc ia .

As situa ç õe s de c onf lito le va nta m m uita s que stõe s e f a ze m surgir


f or te s e m oç õe s; por isso of e r e c e m um pa lc o e xc e pc iona l pa r a
possíve is pr oj e ç õe s da som br a . Na e xpe r iê nc ia do c onf lito, ta lve z
se j a m os c a pa ze s de a pr e nde r m uito sobr e a s c a r a c te r ístic a s da nossa
som br a . Aquilo que c onde na m os no "inim igo" ta lve z na da m a is se j a
que a pr oj e ç ã o da som br a da nossa pr ópr ia e sc ur idã o.

Ta m bé m pr oj e ta m os a s qua lida de s positiva s da nossa som br a sobr e os


outr os. Ve m os nos outr os a que le s tr a ç os positivos que possuím os m a s
que , por qua lque r r a zã o, nã o de ixa m os que pe ne tr e m na nossa
c onsc iê nc ia e que nã o c onse guim os disc e r nir.

P or e xe m plo, pe r c e be m os qua lida de s positiva s num a pe ssoa se m que


ha j a ne nhum a e vidê nc ia e m pír ic a e m se u a poio. I sso a c onte c e m uito
nos e nvolvim e ntos r om â ntic os e , à s ve ze s, na a va lia ç ã o pe ssoa l. Os
e na m or a dos, pr e sa s do de se j o um pe lo outr o, pr oj e ta m m utua m e nte
se us pr ópr ios a tr ibutos positivos inc onsc ie nte s. O tr a ç o pr oj e ta do
ta lve z e xista de a lgum a f or m a no outr o; c a so c ontr á r io, a pr oj e ç ã o
nã o se m a nte r ia . Ma s é f r e que nte que e sse tr a ç o nã o e xista no gr a u
que o outr o a c r e dita ou vê . P or e xe m plo, Susa n, que te m um a
dim e nsã o m uito ge ntil e ge ne r osa na sua som br a , pr oj e ta - a sobr e Sa m
e louva - o pe la sua gr a nde ge ntile za , e m e spe c ia l pa r a c om e la
pr ópr ia . Os a m igos te nta m a j uda r Susa n a ve r que , e m bor a Sa m nã o
pa r e ç a se r e goísta e á vido, sua s de m onstr a ç õe s de ge ntile za e
ge ne r osida de nã o pa ssa m de "tir os de pólvor a se c a ". Ma s Susa n se
r e c usa a ouvi- los.

Qua ndo som os "f isga dos" por um a qua lida de positiva de outr a pe ssoa ,
pr oj e ta m os sobr e e la todos os tipos possíve is de qua lida de s positiva s.
I sso à s ve ze s a c onte c e e m e ntr e vista s de a va lia ç ã o de pe ssoa l e é
c onhe c ido c om o "e f e ito ha lo". O e ntr e vista do que a ssim "f isgou" o
e ntr e vista dor se r á , a os se us olhos, inc a pa z de e r r o. O e ntr e vista dor
que "a ur e olou" o e ntr e vista do c om qua lida de s pe ssoa is positiva s nã o
pe r c e be r a a s f or te s e vidê nc ia s e m c ontr á r io.
Esse s e xe m plos de m onstr a m situa ç õe s inde se j á ve is m a s, de todo
m odo, c om pr ova m o pode r da pr oj e ç ã o positiva . P or ta nto, f a r ía m os
be m e m pe r c e be r a pr e se nç a da s dim e nsõe s positiva s pote nc ia is na
nossa som br a , be m c om o da s ne ga tiva s. Nossa te ndê nc ia é e num e r a r
a s qua lida de s que a dm ir a m os e a dm ir á - la s pr of unda m e nte nos outr os.
P or isso qua ndo nos ouvim os dize r : "Ah, m a s e u nunc a c onse guir ia se r
tã o bom a ssim ", f a r ía m os be m e m inve stiga r e sse s tr a ç os, pois e le s
sã o, se m dúvida , um a pa r te da nossa Som br a Dour a da .

Nossos "lapsos"

Um te r c e ir o c a m inho pa r a c he ga r à som br a pe ssoa l é e xa m ina r


nossos la psos ve r ba is, la psos de c om por ta m e nto e c om por ta m e ntos
e quivoc a dos. Os la psos ve r ba is sã o a que le s e r r os de lingua ge m nã o-
inte nc iona is que nos c a usa m um se m - f im de e m ba r a ç os. Qua ndo
dize m os que , e ntr e outr a s c oisa s, a som br a é tudo a quilo que
gostaríam os de se r m a s nã o ousa m os, pr e pa r a m os o pa lc o pa r a o
a pa r e c im e nto da som br a a tr a vé s de sse s f e nôm e nos. "Essa é a últim a
c oisa que e u pr e te ndia dize r " ou "Nã o a c r e dito que e u te nha dito um a
c oisa de ssa s" e "de sc ulpa s" se m e lha nte s de m onstr a m que , e nqua nto a
c onsc iê nc ia pr opõe , a som br a ge r a lm e nte dispõe .

P or e xe m plo: Ann f oi e nsina da a se m pr e da r a m a is c a r idosa


inte r pr e ta ç ã o a tudo o que os outr os f a ze m . Sua a m iga Chr is de c idiu
tor na r- se m a ne quim a os 60 a nos de ida de e m a tr ic ulou- se num a
e sc ola de m ode los. Ann que r ia e logiá - la , e m bor a , no íntim o, a c ha sse
a ide ia r idíc ula . Sua som br a lhe disse c omo a quilo e r a r idíc ulo qua ndo
Ann, que r e ndo c ongr a tula r- se c om Chr is pe la sua de c isã o, disse lhe :
"Te nho a c e r te za de que voc ê va i se r um fantástic o pinguim ." É c la r o
que Ann que r ia dize r "m a ne quim ", m a s c om o nã o tinha pe r c e bido
e xa ta m e nte o qua nto c r itic a va a de c isã o de Chr is, e la ( ou a sua
som br a ) disse "pinguim ", E isso e r a o que Ann r e a lm e nte pe nsa va da
situa ç ã o.

La psos de c om por ta m e nto ta lve z se j a m a inda m a is r e ve la dor e s.


P a r e c e à s ve ze s nã o ha ve r e xplic a ç ã o a lgum a pa r a o c om por ta m e nto
"a be r r a nte " de um a pe ssoa . Algué m diz: "Nã o se i o que de u ne le .
Nunc a vi e sse hom e m a gir de sse j e ito." O c om por ta m e nto pa r e c e
tota lm e nte e str a nho a o que se pe r c e be da na tur e za e do te m pe r a m e nto
ge r a l da pe ssoa , e todos ( inc luindo e la pr ópr ia ) f ic a m a tur didos c om a
e xpe r iê nc ia .

Um outr o tipo de "la pso" oc or r e qua ndo a pe ssoa é vista de m odo


dif e r e nte a o que pr e te ndia . P or e xe m plo, a c onf e r e nc ista pr e te ndia
m ostr a r- se e xtr e m a m e nte sim pá tic a à sua pla te ia ; de pois da pa le str a ,
dize m - lhe que e la "f oi sa r c á stic a do c om e ç o a o f im ". Um a m ulhe r
m ode sta e tím ida of e nde - se c om os "a va nç os" dos hom e ns num a
f e sta ; e la nã o pe r c e be u que e sta va la nç a ndo olha r e s c onvida tivos a
todos e le s. Um hom e m é c onvida do a f a ze r um br e ve disc ur so
hom e na ge a ndo um c ole ga num j a nta r ; f ic a tota lm e nte c onf uso qua ndo
a e sposa de pois lhe diz que sua s obse r va ç õe s hum or ístic a s "c he ga r a m
a se r of e nsiva s".

Em situa ç õe s c om o e ssa s ( que c e r ta m e nte sã o e xpe r iê nc ia s c om uns a


todos nós) , é - nos da da a opor tunida de de f a ze r a via ge m inte r ior pa r a
de sc obr ir m a is sobr e nós m e sm os e nos be ne f ic ia r da s de sc obe r ta s.
P ode m os opta r por f a zê - lo ou nã o. De na da nos se r vir á r ir de sse s
"la psos", a ssum ir um a a titude de f e nsiva , r a c iona lizá - los ou va r r ê - los
pa r a de ba ixo do ta pe te . Enf r e ntá - los c or a j osa m e nte nos pe r m itir á
disc e r nir a e sc ur idã o na nossa som br a e ta m bé m nos e nr ique c e r á c om
um a c om pr e e nsã o m a is pr of unda de nós m e sm os; e ssa , por sua ve z,
ir á ve ta r os "la psos" e m ba r a ç osos, inc onve nie nte s ou m e sm o
pe r nic iosos.

Nosso se nso de humor e nossas ide nt if ic aç õe s


Um qua r to c a m inho na busc a da som br a pe ssoa l é o e xa m e do nosso
se nso de hum or e da nossa r e a ç ã o a o hum or ism o e m ge r a l. Sa be m os
que o hum or ism o pode se r m uito m a is do que a pa r e nta ; na ve r da de , é
m uito f r e que nte que os gr a c e j os se j a m m a nif e sta ç õe s da s ve r da de s
da som br a . As pe ssoa s que ne ga m e r e pr im e m c om ve e m ê nc ia a
som br a e m ge r a l sã o de stituída s de se nso de hum or e a c ha m pouc a s
c oisa s e ngr a ç a da s.

Conside r e m os, por e xe m plo, a que la ve lha histór ia dos tr ê s pa dr e s de


um a c ida de zinha que f a zia m "r e uniõe s de tr a ba lho" se m a na is. Qua nto
m a is se e nc ontr a va m , m a is c r e sc ia sua intim ida de e m a is c onf ia va m
uns nos outr os. Um be lo dia de c idir a m que ha via m a tingido o níve l de
c onf ia nç a m útua que lhe s pe r m itia c onf e ssa r se us m a is gr a ve s
pe c a dos e c om pa r tilha r a c ulpa . "Conf e sso que r oubo dinhe ir o dos
dona tivos", disse o pr im e ir o. "I sso é m a u", disse o se gundo, que e ntã o
c onf e ssou: "Me u pe c a do m a is gr a ve é que e stou te ndo um c a so c om
um a se nhor a da c ida de vizinha ." O te r c e ir o pa dr e , ouvindo a ba ixe za
dos outr os dois, de c la r ou: "Ah, que r idos ir m ã os, pr e c iso lhe s c onf e ssa r
que m e u pe c a do m a is te r r íve l é a ta ga r e lic e . Ma l posso e spe r a r pe lo
f im de sta r e uniã o! "

Muitos de nós r ie m c om o f ina l de ssa histór ia por que é e ngr a ç a do;


isso é o que dize m os. P or é m , m a is do que isso, e ssa histór ia "f isga " o
e le m e nto ta ga r e la da nossa som br a e a dor a m os nos ide ntif ic a r c om a
sa tisf a ç ã o que o te r c e ir o pa dr e se ntir á a o divulga r os pe c a dos dos dois
c ole ga s. É c la r o que sabe m os que é e r r a do, e c e r ta m e nte n ó s nã o o
f a r ía m os; m a s le m br e m os que , e ntr e outr a s c oisa s, a som br a é tudo
a quilo que nã o ousa m os se r m a s gostaríam os de se r. Ac ha r e ssa
histór ia e ngr a ç a da nos pe r m ite , r e a lm e nte , pe r c e be r a nós m e sm os
c om um pouc o m a is de c la r e za . P or outr o la do, a pe ssoa que ne ga e
r e pr im e a som br a nã o va i a c ha r gr a ç a ne nhum a na histór ia ; pe lo
c ontr á r io, va i e m itir um a opiniã o se ve r a sobr e o a c onte c ido. Va i
c he ga r à c onc lusã o de que nã o te m gr a ç a ne nhum a ; é um a ve rgonha ,
é um sina l dos te m pos de va ssos que vive m os; os tr ê s pa dr e s m e r e c e m
c a stigo, e tc ., e tc .

S a b e m o s que é de e xtr e m o m a u gosto r ir da dor ou da de sgr a ç a


a lhe ia ; a inda a ssim , a c ha m os tr e m e nda m e nte e ngr a ç a dos os tom bos
da pe ssoa que e stá c om e ç a ndo a a pr e nde r a pa tina r no ge lo. Há
m uita s dé c a da s, um a da s c e na s que m a is dive r tia os f r e que nta dor e s
de c ine m a e r a a c lá ssic a que da r e sulta nte do e sc or r e gã o num a c a sc a
de ba na na . Rim os dos inf or túnios do pa lha ç o. O hum or de ssa s
situa ç õe s de spe r ta o nosso r iso c onf or m e o sa dism o r e pr im ido e m nós
e nc ontr a e xpr e ssã o. Exa m ina r a quilo que a c ha m os e ngr a ç a do e
j oc oso a j uda - nos a a lc a nç a r um m a ior a utoc onhe c im e nto.

P ode m os obse r va r a m a gnitude e a inte nsida de da som br a nos e ve ntos


e spor tivos, e m e spe c ia l nos e spor te s e m que há c onta to f ísic o. Um
c om por ta m e nto que pr ova ve lm e nte a c a r r e ta r ia m ulta ou pr isã o e m
qua lque r outr o c e ná r io, tor na - se a qui a pr opr ia do, e nc or a j a do e a té
m e sm o a pla udido. Suge stõe s que se a pr oxim a m do a ssa ssina to sã o
f e ita s por pe ssoa s nor m a lm e nte pa c íf ic a s. Ce r ta ve z, qua ndo e u
a ssistia a um c a m pe ona to de luta - livr e pa r a f a ze r um a pe squisa
soc iológic a , vi um gr upo de se nhor a s idosa s. Fique i tã o f a sc ina do c om
o c om por ta m e nto de la s que e sque c i de f a ze r m inha pe squisa . Er a m
se nhor a s "nor m a is" a té os luta dor e s subir e m a o r ingue e a luta
c om e ç a r. Aí e la s se punha m de pé , a gita va m os punhos e gr ita va m :
"Ma ta e sse de sgr a ç a do! ", "Que br a o br a ç o de le ! " Essa e xpr e ssã o
indir e ta da a gr e ssivida de da som br a e r a a or de m do dia .

Nossos sonhos, de vane ios e f ant asias


Um últim o c a m inho pa r a c he ga r à som br a é o e studo dos nossos
sonhos, de va ne ios e f a nta sia s. Em bor a a lguns pr e te nda m ne ga r, todos
nós sonha m os, c onstr uím os c a ste los no a r e f a nta sia m os. Se
c om e ç a r m os a pr e sta r a te nç ã o a e ssa s e xpe r iê nc ia s, pode m os
a pr e nde r m uito sobr e a nossa som br a e se us c onte údos.

Qua ndo a som br a a pa r e c e nos nossos sonhos, e la surge c om o um a


f igur a do m e sm o se xo que nós. No sonho, r e a gim os a e la c om m e do,
a ntipa tia ou a ve r sã o, ou do m odo c om o r e a gim os a a lgué m que nos é
inf e r ior — um se r "m e nor ". No sonho ge r a lm e nte que r e m os e vitá - la ,
m uita s ve ze s se ntindo que e la nos pe r se gue , se j a isso ve r da de ou nã o.
A som br a ta m bé m pode a pa r e c e r sob um a f or m a indistinguíve l, que
intuitiva m e nte te m e m os e da qua l que r e m os e sc a pa r.

Já que a f igur a é a nossa pr ópr ia som br a ou a lgum a pa r te


r e pr e se nta tiva da nossa som br a , pr e c isa m os e nf r e ntá - la e de sc obr ir o
que e la é e qua l a sua m e nsa ge m . P r e c isa m os obse r va r sua s a ç õe s,
a titude s e pa la vr a s ( se houve r ) . Já que pe r sonif ic a dim e nsõe s de nós
m e sm os que pode r ia m se r c onsc ie nte s, e la é um r e c ur so útil pa r a
c onhe c e r m os a nós m e sm os. A te ndê nc ia usua l no sonho, por é m , é
e vita r a som br a , e xa ta m e nte c om o m uitos de nós f a ze m na vida
c onsc ie nte .

P ode m os ne ga r que nos e ntr e ga m os a diva ga ç õe s e f a nta sia s, m a s a


ve r da de é que pa ssa m os m a is te m po nisso do que e sta m os dispostos a
a dm itir, É insupor tá ve l — se nã o im possíve l — m a nte r a m e nte
c onsc ie nte c onc e ntr a da dur a nte todo o se u te m po de vigília . P or ta nto,
e m que pe nsa m os qua ndo nã o há na da e m que pe nsa r ? P a r a onde
e sc a pa a nossa m e nte ? Qua is a s im a ge ns e f a nta sia s que inva de m o
nosso pe nsa m e nto? As diva ga ç õe s e f a nta sia s pode m se r tã o c ontr á r ia s
à pe rsona que ve stim os que ta lve z nos a ssuste m , Nã o te m os a m e nor
inte nç ã o de a dm itir pa r a os outr os qua l a f e iç ã o que e la s tê m e m uitos
de nós ne m se que r a s a dm ite m pa r a si m e sm os.

Ma s, a o ne ga r a sua e xistê nc ia , pe r de m os um a outr a opor tunida de de


c onhe c e r a nós m e sm os. P ois de sc obr im os, na s nossa s diva ga ç õe s e
f a nta sia s, os pe nsa m e ntos, pla nos, sonhos e e sque m a s que som os
inc a pa ze s de a c e ita r num níve l c onsc ie nte . Sã o c om f r e quê nc ia
f a nta sia s de violê nc ia , se xo, pode r e r ique za . Fa nta sia s c om o our o e
de va ne ios de e nr ique c im e nto, onde nos ve m os c om o a que le que
a lc a nç a o im possíve l. A som br a e stá pr onta pa r a c om pa r tilha r se u
our o c onosc o, se a nossa vonta de f or e nc ontr á - la e r e f le tir sobr e e la .

P ode m os c onc luir que e ntr a r na nossa pr ópr ia som br a é um pr oc e sso


m uito pe ssoa l e c onstituir á , pa r a c a da pe ssoa , um a e xpe r iê nc ia
dif e r e nte . Ca da um de nós de ve se guir o se u pr ópr io m é todo pa r a
e ntr a r na som br a e c onhe c ê - la . Em bor a se j a im possíve l e sta be le c e r
um c a m inho ge né r ic o pa r a e ssa j or na da inte r ior a tr a vé s da som br a ,
e spe r a m os que nossa s r e c om e nda ç õe s possa m se r pr ove itosa s.

O OUTRO

Por que c lamas aos de use s, ás e stre las,


às e spumas de oc ultos oc e anos
ou às se me nte s de jardins longínquos,
se o que te fe re é a tua própria v ida,
se o que c rav a as garras nas tuas e ntranhas
é o nasc e r de c ada nov o dia
e a noite que c ai,
re torc ida e assassinada?
Se o que se nte s é a dor e m outro algué m,
que não c onhe c e s mas que e stá se mpre
pre se nte
e é v itima, inimigo, amor,
e tudo aquilo de que
pre c isas para alc anç ar a totalidade ?
Não te e ntre gue s ao pode r das tre v as
ne m e sv azie s de um só trago a taç a do praze r.
Olha à tua v olta: e x iste outro algué m,
se mpre um outro algué m.
O que e le re spira é a tua asfix ia,
o que e le c ome é a tua fome .
M orto, le v ará c onsigo a me tade mais pura
da tua própria morte .

Rosá r io Ca ste lla nos

Par t e 2

A formação da sombra: construindo o eu reprimido na família

Som br a : c ha m a - m e de ir m ã o, pa r a que e u nã o te m a a quilo que busc o.

Anônimo

Ve rgonha , c ulpa , orgulho, m e do, ódio, inve j a , c a r ê nc ia e a vide z sã o


subpr odutos ine vitá ve is da c onstr uç ã o do e go, Ele s e stim ula m a
pola r ida de e ntr e o se ntim e nto de inf e r ior ida de e a vonta de de pode r,
Ele s sã o os a spe c tos da som br a da pr im e ir a e m a nc ipa ç ã o do e go.

Edward C. W hitmont

P a ssa m os nossa vida , a té os 20 a nos, de c idindo qua is a s pa r te s de nós


m e sm os que por e m os na "sa c ola ", e pa ssa m os o r e sto da vida te nta ndo
r e tir á - la s de lá .

Robe rt Bly

Introdução

Ca da um de nós te m um a he r a nç a psic ológic a que nã o é m e nos r e a l


que nossa he r a nç a biológic a . Essa he r a nç a inc lui um le ga do de
som br a que nos é tr a nsm itido e que a bsor ve m os no c a ldo psíquic o do
nosso a m bie nte f a m ilia r. Ali e sta m os e xpostos a os va lor e s,
te m pe r a m e ntos, há bitos e c om por ta m e ntos dos nossos pa is e ir m ã os.
Com f r e quê nc ia , os pr oble m a s que nossos pa is nã o c onse guir a m
r e solve r e m sua s pr ópr ia s vida s vê m a loj a r- se e m nós sob a f or m a de
disf unç õe s nos pa dr õe s de soc ia liza ç ã o.

"O la r é o nosso ponto de pa r tida ", disse T. S. Eliot. E a f a m ília é o


pa lc o onde e nc e na m os a nossa individua lida de e o nosso de stino. A
f a m ília é o nosso c e ntr o de gr a vida de e m oc iona l, o loc a l onde
c om e ç a m os a ga nha r ide ntida de e a de se nvolve r o c a r á te r sob a
inf luê nc ia da s dif e r e nte s pe r sona lida de s que nos c e r c a m .

De ntr o da a tm osf e r a psic ológic a c r ia da por pa is, ir m ã os, gua r diã e s e


outr a s im por ta nte s f onte s de a m or e a pr ova ç ã o, c a da c r ia nç a inic ia o
pr oc e sso ne c e ssá r io de de se nvolvim e nto do e go. A a da pta ç ã o do
hom e m à soc ie da de e xige a c r ia ç ã o de um e go — de um "e u" — pa r a
a gir c om o pr inc ípio orga niza dor da nossa c onsc iê nc ia e m e xpa nsã o. O
de se nvolvim e nto do e go de pe nde da r e pr e ssã o da quilo que é "e r r a do"
ou "m a u" e m nós, be m c om o da nossa ide ntif ic a ç ã o c om a quilo que é
visto e e nc or a j a do c om o "bom ". I sso dá à pe r sona lida de e m
c r e sc im e nto a va nta ge m e str a té gic a de e lim ina r a a nsie da de e
of e r e c e r um r e f e r e nc ia l positivo. O pr oc e sso de c r e sc im e nto do e go
c ontinua por toda a pr im e ir a m e ta de da vida , se ndo m odif ic a do por
inf luê nc ia s e e xpe r iê nc ia s e xte r na s à m e dida que sa ím os pa r a o
m undo.

Existe um a r e la ç ã o dir e ta e ntr e a f or m a ç ã o do e go e da som br a : o "e u


r e pr im ido" é um subpr oduto na tur a l do pr oc e sso de c onstr uç ã o do e go
que a c a ba r á se tor na ndo o e spe lho do e go. Re pr im im os a quilo que nã o
se e nc a ixa na visã o que f a ze m os de nós m e sm os e , de sse m odo,
va m os c r ia ndo a som br a . De vido à na tur e za ne c e ssa r ia m e nte
unila te r a l do de se nvolvim e nto do e go, nossa s qua lida de s
ne glige nc ia da s, r e pr im ida s e ina c e itá ve is a c um ula m - se na psique
inc onsc ie nte e se orga niza m c om o um a pe r sona lida de inf e r ior — a
som br a pe ssoa l.

No e nta nto, a quilo que é r e pr im ido nã o de sa pa r e c e . Continua a vive r


de ntr o de nós — f or a da vista e f or a da m e nte m a s, a inda a ssim , r e a l;
u m alte r e go inc onsc ie nte que se e sc onde logo a ba ixo do lim ia r da
pe r c e pç ã o. É f r e que nte que e le ir r om pa do m odo m a is ine spe r a do,
e m c ir c unstâ nc ia s e m oc iona is e xtr e m a s. "Foi o dia bo que m e f e z
f a ze r isso! ", é um e uf e m ism o dos a dultos pa r a e xplic a r o
c om por ta m e nto do nosso alte r e go.
O a nta gonism o e ntr e o e go e a som br a r e m onta a te m pos pa ssa dos e é
um te m a r e c or r e nte da m itologia : o r e la c iona m e nto e ntr e os ir m ã os
ou os gê m e os opostos ( um bom e o outr o m a u) , r e pr e se nta ç õe s
sim bólic a s do e go/alte r e go no de se nvolvim e nto psic ológic o. Juntos,
e sse s ir m ã os opostos f or m a m um todo. E, do m e sm o m odo, qua ndo o
e go a ssim ila o e u r e pr im ido, c a m inha m os r um o à tota lida de .

Na s c r ia nç a s m a is j ove ns, a r e gula ç ã o do lim ia r da pe r c e pç ã o


c onsc ie nte é f r ouxa e a m bígua . Nos play grounds, pode m os obse r va r o
pr oc e sso de f or m a ç ã o da som br a na s c r ia nç a s e se u e nc or a j a m e nto
pe los a dultos. Fic a m os e spa nta dos c om a m e squinha r ia e a c r ue lda de
que vê m à tona qua ndo a s c r ia nç a s br inc a m . Nossa a nsie da de pa r a
inte r f e r ir é , e m ge r a l, um a r e a ç ã o e spontâ ne a . P ois é na tur a l e
instintivo nã o que r e r m os que a c r ia nç a se m a c huque . Ma s ta m bé m
que r e m os que a c r ia nç a r e pr im a os se ntim e ntos e a ç õe s que nós
r e pr im im os, pa r a que e la possa se a de qua r a o nosso ide a l a dulto de
br inque do a pr opr ia do. E, a lé m disso, pr oj e ta m os ou a tr ibuím os à
c r ia nç a "m a l c om por ta da " a quilo que a nte r ior m e nte r e pr im im os e m
nós m e sm os. Qua ndo a c r ia nç a c a pta a m e nsa ge m , e la de ixa de se
ide ntif ic a r c om e sse s im pulsos pa r a sa tisf a ze r a s e xpe c ta tiva s do
a dulto.

A som br a dos outr os e stim ula , a ssim , um c ontínuo e sf or ç o m or a l na


f or m a ç ã o do e go e da som br a de um a c r ia nç a . Qua ndo pe que nos,
a pr e nde m os a e nc obr ir a quilo que e stá a c onte c e ndo a ba ixo da
pe r c e pç ã o do e go, pa r a pa r e c e r m os bons e a c e itá ve is à s pe ssoa s que
nos sã o im por ta nte s. A pr oj e ç ã o — a tr a nsposiç ã o involuntá r ia de
te ndê nc ia s inc onsc ie nte s ina c e itá ve is sobr e obj e tos ou pe ssoa s do
m undo e xte r ior — a j uda o e go f r á gil a obte r um r e tor no positivo. De
a c or do c om a a na lista j unguia na Jola nde Ja c obi, "Ningué m gosta de
a dm itir sua pr ópr ia e sc ur idã o. As pe ssoa s que a c r e dita m que se u e go
r e pr e se nta a tota lida de de sua psique , a s pe ssoa s que nã o c onhe c e m
ne m que r e m c onhe c e r toda s a s outr a s qua lida de s que pe r te nc e m a o
e go, c ostum a m pr oj e ta r a s ' pa r te s' de sc onhe c ida s da sua ' a lm a ' sobr e
o m undo à sua volta ".

É c la r o que o oposto ta m bé m oc or r e . Qua ndo a c r ia nç a se nte que


j a m a is c or r e sponde r á à s e xpe c ta tiva s dos outr os, e la pode a pr e se nta r
um c om por ta m e nto ina c e itá ve l e tor na r- se um bode e xpia tór io pa r a a
pr oj e ç ã o da som br a dos outr os. A "ove lha ne gr a " de um a f a m ília é
a que le que se tor nou r e c e ptá c ulo e por ta dor da som br a da que la
f a m ília . De a c or do c om a psic a na lista Sy lvia Br inton P e r e r a e m The
1
Sc ape goat Comple x ge r a lm e nte o a dulto ide ntif ic a do c om o bode
e xpia tór io é , por na tur e za , ba sta nte se nsíve l à s c or r e nte s inc onsc ie nte s
e e m oc iona is. Ele f oi a c r ia nç a que tom ou sobr e si a som br a f a m ilia r.
O a na lista j unguia no br itâ nic o A. I . Alle nsby na r r a um a histór ia de
som br a f a m ilia r, que lhe f oi c onta da por Jung ( e ssa histór ia f oi
e xtr a ída do livr o de John Conge r, J ung and Re ic h: The Body as Shadow
[ Jung e Re ic h: O Cor po c om o Som br a ] : (Jung) contou-me ter conhecido
certa vez um quacre famoso que não admitia jamais ter feito algo errado em sua
vida. "E sabe o que aconteceu aos filhos desse homem?", perguntou-me Jung, "o
filho virou ladrão e a filha, prostituta. Como o pai não assumia sua própria
sombra, seu quinhão na imperfeição da natureza humana, os filhos foram
obrigados a viver o lado escuro que o pai ignorava."

Alé m dos pa dr õe s de r e la c iona m e nto pa is- f ilhos, outr os e ve ntos


a c r e sc e nta m c om ple xida de a o pr oc e sso de f or m a ç ã o da som br a . À
m e dida que o e go da c r ia nç a va i ga nha ndo pe r c e pç ã o, pa r te de le
f or m a um a m á sc a r a — ou pe rsona —, a f a c e que e xibim os a o m undo,
a im a ge m da quilo que pe nsa m os se r e que os outr os pe nsa m que
som os. A p e rso n a sa tisf a z a s e xigê nc ia s do r e la c iona m e nto c om o
nosso a m bie nte e c ultur a , c onc ilia ndo o ide a l do nosso e go c om a s
e xpe c ta tiva s e os va lor e s do m undo onde c r e sc e m os. Sob a supe r f íc ie ,
a som br a va i e stoc a ndo o m a te r ia l r e pr im ido. Todo o pr oc e sso de
de se nvolvim e nto do e go e da p e rso n a é um a r e sposta na tur a l a o
a m bie nte e é inf lue nc ia do pe la c om unic a ç ã o c om a nossa f a m ília ,
c om nossos a m igos, c om nossos pr of e ssor e s e c onse lhe ir os. A
inf luê nc ia de ssa s pe ssoa s m a nif e sta - se a tr a vé s da a pr ova ç ã o, da
de sa pr ova ç ã o, da a c e ita ç ã o e da ve rgonha .

Conside r a ndo e sse c e ná r io da nossa vida e m f a m ília , pode m os ve r


c om o o alte r e go se de se nvolve . A som br a dos outr os m e m br os da
f a m ília e xe r c e f or te inf luê nc ia sobr e a f or m a ç ã o do e u r e pr im ido da
c r ia nç a , e spe c ia lm e nte qua ndo os e le m e ntos e sc ur os nã o sã o
r e c onhe c idos de ntr o do gr upo f a m ilia r ou qua ndo os m e m br os da
f a m ília c onspir a m pa r a e sc onde r a som br a de um de le s, a lgué m
pode r oso, ou f r a c o, ou m uito que r ido.

Os e nsa ios na P a r te 2 m ostr a m o c onte xto pa r a a f or m a ç ã o da


som br a , disc utindo vá r ios a spe c tos de sse pr oc e sso nos pr im e ir os a nos
da nossa vida . No Ca pítulo 8, e xtr a ído de Ge tling the Lov e You Want [ A
Obte nç ã o do Am or que De se j a s] , Ha r ville He ndr ix, te r a pe uta de
c a sa is e c onhe c ido e sc r itor, m ostr a c om o a r e pr e ssã o pr oduz o e u
r e pr im ido a o f r a gm e nta r a c oe r ê nc ia do nosso se nso de ide ntida de .

Qua ndo a dinâ m ic a f a m ilia r é e xtr e m a m e nte ne ga tiva , a busiva ou


a nor m a l, a c ulpa e a ve rgonha tr a nsf or m a m - se no pr oble m á tic o
â m a go da som br a que nos é le ga da . Robe r t M. Ste in, a na lista
j unguia no de Los Ange le s, disc ute o te m a da r e j e iç ã o e tr a iç ã o
pa te r na s e se us e f e itos dur a dour os e c onta m ina dor e s sobr e a psique da
c r ia nç a , no Ca pítulo 9, e xtr a ído de se u livr o I nc e st and Human Lov e
[ I nc e sto e Am or Hum a no] .

Os pa is sã o os pr im e ir os m e str e s de um a c r ia nç a , e a e sc r itor a Kim


Che r nin suge r e , e m "O la do do a ve sso do r e la c iona m e nto m ã e - f ilha ",
que sua s liç õe s ne m se m pr e sã o doc e s. A inve j a , a r a iva e a c ulpa da
m ã e c r ia m um a situa ç ã o pa r a doxa l pa r a a m oç a que hoj e a tinge a
m a ior ida de , diz Che r nin, a utor a de dive r sa s obr a s sobr e a s "de sor de ns
a lim e nta r e s" e ntr e a s m ulhe r e s. Qua ndo e sse s se ntim e ntos de ixa m de
se r r e c onhe c idos c om o c om pone nte s da som br a , pode m tr a ze r
c onse quê nc ia s tr á gic a s e de str uidor a s pa r a a f ilha .

Se r pa i/m ã e é um a r e sponsa bilida de dif íc il e a té m e sm o pe r igosa . O


e nsa io de John A. Sa nf or d, "Os pa is e a som br a dos f ilhos", tr a z luz à
ta r e f a de a j uda r os f ilhos a de se nvolve r um a som br a que nã o os
de bilite c om inte r f e r ê nc ia s no se u c r e sc im e nto psic ológic o na tur a l e
sa udá ve l. Esse e nsa io é um e xc e r to do livr o Ev il: The Shadow Side of
Re aliiy [ O Ma l: O La do Esc ur o da Re a lida de ] .

A f or m a ç ã o da som br a é ine vitá ve l e unive r sa l. Ela f a z de nós a quilo


que som os; e la nos le va a o trabalho c om a sombra, que f a z de nós
a quilo que pode m os se r.

8. Cr iando o f also e u

HARVILLE HENDRIX
Em sua s te nta tiva s de r e pr im ir c e r tos pe nsa m e ntos, se ntim e ntos e
c om por ta m e ntos, os pa is usa m vá r ia s té c nic a s. Às ve ze s, e m ite m
or de ns c la r a s: "Nã o m e diga que voc ê e stá pe nsa ndo a ssim ! ", "Me nino
c r e sc ido nã o c hor a ", "Nã o bote a m ã o a í ne ssa pa r te do se u c or po! ",
"Nunc a m a is que r o ouvir voc ê dize ndo isso! " e "Nã o é a ssim que a
ge nte a ge a qui na nossa f a m ília ! " Ou se nã o ( c om o f a z a m ã e qua ndo
va i c om o f ilho à loj a ) r a lha m , a m e a ç a m e e spa nc a m . Muita s ve ze s,
os pa is m olda m a c r ia nç a a tr a vé s de um pr oc e sso m a is sutil de
inva lida ç ã o — sim ple sm e nte opta m por nã o ve r ou nã o r e c om pe nsa r
c e r ta s c oisa s. P or e xe m plo, se os pa is dã o pouc o va lor a o
de se nvolvim e nto inte le c tua l, pr e se nte ia m os f ilhos c om br inque dos e
e quipa m e ntos e spor tivos, nã o c om livr os ne m c om k its de c iê nc ia . Se
os pa is a c r e dita m que a s m e nina s de ve m se r ge ntis e f e m inina s e os
m e ninos f or te s e a f ir m a tivos, e le s só r e c om pe nsa r ã o se us f ilhos por
c om por ta m e ntos a de qua dos a o se xo de c a da um . P or e xe m plo, se o
ga r otinho e ntr a na sa la r e boc a ndo um br inque do pe sa do, e le s dize m :
"Olha que ga r otã o f or te que voc ê é "; m a s, se é a m e nina que e ntr a
c om a que le m e sm o br inque do, e le s pr e vine m : "Cuida do pa r a nã o
e str a ga r se u lindo ve stidinho."

No e nta nto, a inf luê nc ia m a is pr of unda que os pa is e xe r c e m sobr e os


f ilhos é a tr a vé s do e xe m plo. A c r ia nç a obse r va instintiva m e nte a s
e sc olha s que os pa is f a ze m , a s libe r da de s e pr a ze r e s que e le s se
c onc e de m , os ta le ntos que de se nvolve m , a s ha bilida de s que ignor a m e
a s r e gr a s que se gue m . I sso tudo te m um e f e ito pr of undo sobr e e la : "É
a ssim que se vive . E a ssim que se ve nc e na vida ." Que r a c r ia nç a
a c e ite o m ode lo dos pa is que r se r e be le c ontr a e le , e ssa soc ia liza ç ã o
inic ia i ta m bé m de se m pe nha um pa pe l signif ic a tivo na e sc olha dos
c om pa nhe ir os.

A r e a ç ã o de um a c r ia nç a a os dita m e s da soc ie da de pa ssa por dive r sos


e stá gios pr e visíve is. É típic o que a pr im e ir a r e sposta se j a e sc onde r
dos pa is c om por ta m e ntos pr oibidos. A c r ia nç a te m pe nsa m e ntos de
r a iva , m a s nã o os ve r ba liza . Ela e xplor a se u c or po na pr iva c ida de do
se u qua r to. Ator m e nta os ir m ã ozinhos m e nor e s qua ndo os pa is e stã o
f or a . E, f ina lm e nte , c he ga à c onc lusã o de que a lguns pe nsa m e ntos e
se ntim e ntos sã o tã o ina c e itá ve is que de ve r ia m se r e lim ina dos; a ssim ,
e la c onstr ói um pa i/m ã e im a giná r io de ntr o da sua c a be ç a , pa r a
polic ia r se us pr ópr ios pe nsa m e ntos e a tivida de s — e ssa é a pa r te da
m e nte que os psic ólogos c ha m a m "supe r e go". A pa r tir de sse
m om e nto, se m pr e que te m um pe nsa m e nto pr oibido ou se pe r m ite um
c om por ta m e nto "ina c e itá ve l", a c r ia nç a e xpe r im e nta um golpe de
a nsie da de a dm inistr a do por e la m e sm a . Esse golpe é tã o de sa gr a dá ve l
que e la f a z a dor m e c e r a lgum a s de ssa s pa r te s pr oibida s de si m e sm a
— e m te r m os f r e udia nos, e la a s r e pr im e . O pr e ç o últim o de sua
obe diê nc ia é a pe r da da tota lida de .

P a r a pr e e nc he r o va zio, a c r ia nç a c r ia um "f a lso e u", um a e str utur a


de c a r á te r que se r ve a o duplo pr opósito de c a m uf la r a s pa r te s do se u
se r que e la r e pr im iu e pr ote gê - la c ontr a novos sof r im e ntos. P or
e xe m plo, o m e nino c r ia do por um a m ã e ina c e ssíve l e se xua lm e nte
r e pr e ssor a pode tor na r- se um "dur ã o". Ele diz a si m e sm o: "Nã o ligo
se m inha m ã e nã o é m uito a f e tuosa . Nã o pr e c iso de ssa boba ge m
se ntim e nta l. P osso m e vir a r sozinho. E, outr a c oisa ... e u a c ho que se xo
é suj o! " E e le a c a ba por a plic a r e sse pa dr ã o de r e sposta a toda s a s
situa ç õe s. Nã o im por ta que m te nte se a pr oxim a r de le , e le le va nta a
m e sm a ba r r ic a da . Ma is ta r de , de pois de supe r a r a r e lutâ nc ia e m se
e nvolve r c om r e la c iona m e ntos a m or osos, é pr ová ve l que e le ve nha a
c r itic a r sua c om pa nhe ir a pe lo de se j o de intim ida de e sa udá ve l
se xua lida de que e la de m onstr a : "P or que voc ê que r ta nto c onta to? P or
que voc ê é tã o obc e c a da c om se xo? I sso nã o é nor m a l! "

Um m e nino dif e r e nte ta lve z r e a gisse de m odo oposto a e sse tipo de


c r ia ç ã o; e le ir ia e xa ge r a r se us pr oble m a s, na e spe r a nç a de que
a lgué m vie sse e m se u soc or r o: "Coita dinho de m im . Estou f e r ido.
Estou pr of unda m e nte f e r ido. P r e c iso de a lgué m que tom e c onta de
m im ." Já um te r c e ir o m e nino ta lve z se tom a sse a va r e nto, luta ndo pa r a
se a pode r a r de c a da na c o de a m or, c om ida ou be ns m a te r ia is que
c r uza sse m se u c a m inho, c om m e do de nunc a te r o ba sta nte . Ma s
qua lque r que se j a a na tur e za do f a lso e u, se u pr opósito é o m e sm o:
m inim iza r a dor de pe r de r um a pa r te da tota lida de divina da c r ia nç a
or igina l.

Em a lgum ponto na vida de um a c r ia nç a , no e nta nto, e ssa e nge nhosa


f or m a de a utopr ote ç ã o tom a - se a c a usa de novos f e r im e ntos, à
m e dida que e la é c r itic a da por possuir e sse s tr a ç os ne ga tivos. Os
outr os a c onde na m por se r ina c e ssíve l ou c a r e nte ou e goísta ou gor da
ou sovina . Os que a a ta c a m nã o ve e m a f e r ida que e la te nta pr ote ge r
ne m a va lia m a sá bia na tur e za de sua de f e sa ; tudo o que ve e m é o la do
ne ur ótic o de sua pe r sona lida de . Ela é j ulga da inf e r ior, e la nã o é
ínte gr a .

E a gor a a c r ia nç a e stá pr e sa na sua pr ópr ia a r m a dilha . Ela pr e c isa


a ga r r a r- se a se us tr a ç os a da pta tivos de c a r á te r por que e le s se r ve m a
um pr opósito útil, m a s e la nã o que r se r r e j e ita da . O que pode e la
f a ze r ? A soluç ã o é ne ga r ou a ta c a r os que a c r itic a m . "Nã o sou f r ia e
dista nte ", diz e la e m de f e sa pr ópr ia , "sou, isso sim , f or te e
inde pe nde nte ." Ou, "Nã o sou f r a c a e c a r e nte ; sou se nsíve l". Ou, "Nã o
sou á vida e e goísta ; sou pr e vide nte e pr ude nte ". Em outr a s pa la vr a s:
"Nã o é de mim que voc ê e stá f a la ndo. Voc ê só e stá m e ve ndo sob um a
luz ne ga tiva ."

Num c e r to se ntido, e la e stá c e r ta . Se us tr a ç os ne ga tivos nã o sã o pa r te


da sua na tur e za or igina l. For a m f or j a dos na dor e tor na r a m - se pa r te
de um a ide ntida de que f oi a ssum ida , um "pse udônim o" que a a j uda
e m sua s m a nobr a s num m undo c om ple xo e à s ve ze s hostil, I sso nã o
que r dize r, no e nta nto, que e la nã o te m e sse s tr a ç os ne ga tivos; e xiste m
inúm e r a s te ste m unha s que pode r ã o c om pr ova r que e la os possui. Ma s,
pa r a m a nte r um a a utoim a ge m positiva e a m plia r sua s c ha nc e s de
sobr e vivê nc ia , e la pr e c isa ne gá - los. Esse s tr a ç os ne ga tivos tom a m - se
a quilo que c ha m a m os "o e u r e pr im ido", a s pa r te s do f a lso e u que sã o
de m a sia do dolor osa s pa r a se r e m r e c onhe c ida s.

Va m os f a ze r um a pa usa e c la ssif ic a r e ssa pr olif e r a ç ã o de pa r te s do


e u. Até a gor a , f om os c a pa ze s de se c c iona r nossa tota lida de or igina l,
a que la pa r te a m or osa e unif ic a da c om a qua l na sc e m os, e m tr ê s
e ntida de s se pa r a da s:

1. O "e u pe r dido" — a s pa r te s do nosso se r que f om os


Obr iga dos a r e pr im ir de vido a s e xigê nc ia s da soc ie da de ;
2. O "f a lso e u" — a f a c ha da que e r igim os pa r a pr e e nc he r o
va zio c r ia do por e ssa r e pr e ssã o e pe la f a lta de
de se nvolvim e nto a de qua do;

3. O "e u r e pr im ido" — a s pa r te s ne ga tiva s do nosso f a lso e u


que sã o de sa pr ova da s e que , por ta nto, ne ga m os.

De toda e ssa c om ple xa c ola ge m , e m ge r a l só pe r c e be m os a s pa r te s


do nosso se r or igina ] que a inda e stã o inta c ta s be m c om o c e r tos
a spe c tos do f a lso e u. Juntos, e sse s e le m e ntos f or m a m a nossa
"pe r sona lida de ", o m odo c om o nos de sc r e ve m os pa r a os outr os. O e u
pe r dido e stá qua se que tota lm e nte f or a da nossa pe r c e pç ã o;
r om pe m os pr a tic a m e nte toda s a s liga ç õe s c om a s pa r te s r e pr im ida s
do nosso se r. O e u r e pr im ido ( a s pa r te s ne ga tiva s do f a lso e u) , pa ir a
logo a ba ixo do lim ia r da nossa pe r c e pç ã o e e stá se m pr e a m e a ç a ndo
e m e rgir. P a r a m a ntê - lo oc ulto, pr e c isa m os ne gá - lo c om toda s a s
nossa s f or ç a s ou e ntã o pr oj e tá - lo sobr e os outr os: "Eu n ã o sou
e goísta ", a f ir m a m os c om a m a ior c onvic ç ã o. Ou: "O quê ? Eu,
pr e guiç oso? Voc ê é que é pr e guiç oso! "

9. Re j e iç ão e t r aiç ão

ROB ERT M . STEIN

Ana lise m os m a is de pe r to os m e c a nism os que sã o postos e m


m ovim e nto qua ndo um a pe ssoa f oi pr of unda m e nte f e r ida por
e xpe r iê nc ia s de tr a iç ã o e de silusã o na inf â nc ia . A c r ia nç a se se nte
r e j e ita da e tr a ída qua ndo a tr a nsiç ã o da tota lida de do e sta do
a r que típic o or igina l pa r a o r e la c iona m e nto pe ssoa l m a is hum a no e stá
a use nte ou é ina de qua da . I sso oc or r e , por e xe m plo, qua ndo a m ã e
c ontinua a se ide ntif ic a r c om o pa pe l a r que típic o da Mã e pr ote tor a e
nutr idor a m e sm o que outr os se ntim e ntos e e m oç õe s, ta lve z opostos,
e ste j a m surgindo no se u r e la c iona m e nto c om os f ilhos. Este s pr e c isa m
e xpe r im e nta r um qua dr o m a is a br a nge nte da ve r da de ir a
pe r sona lida de da m ã e pa r a pode r e m , e le s ta m bé m , c om e ç a r a
e xpe r im e nta r m a is a sua pr ópr ia individua lida de .

Qua ndo a m ã e se ide ntif ic a c om o a r qué tipo positivo da m ã e , a m ã e


ne ga tiva a f luir á f or te m e nte a o se u inc onsc ie nte . O f ilho, e m ve z de
vive nc ia r um a tr a nsiç ã o da Mã e a r que típic a pa r a a m ã e m a is hum a na
e dota da de m uitos m a tize s de se ntim e ntos e e m oç õe s, vê - se
a pr isiona do e ntr e dua s f or ç a s a r que típic a s oposta s. Essa de sc obe r ta
de str ói, de m odo a br upto, se u se nso de tota lida de e pr oduz um
r om pim e nto na sua pe r sona lida de ; o que e le e xpe r im e nta é a r e j e iç ã o
e a tr a iç ã o. Ele se r e sse nte por se r de sa loj a do dos lim ite s da situa ç ã o
a r que típic a m ã e - f ilho positiva , m a s, a o m e sm o te m po, se u im pulso
pa r a a individua ç ã o instiga - o a pr osse guir. Sua s e sc olha s sã o
lim ita da s: ou pe r m a ne c e um a c r ia nç a ou e voc a a ir a da r e pr e ssor a e
e xige nte m ã e ne ga tiva absoluta. Nã o e xiste e sc olha inte r m e diá r ia . Ele
se de f r onta , por ta nto, c om um a f or ç a e sc ur a que de str ói todo e
qua lque r se nso de gr a tif ic a ç ã o ou r e a liza ç ã o, m e sm o que pr ossiga
r um o a o obj e tivo de f or m a r e e xpr e ssa r sua pr ópr ia individua lida de . E
a ssim é que e le é tr a ído.

Na m e sm a m e dida e m que a m ã e positiva a c e ita e a m a a na tur e za da


c r ia nç a c om toda s a s sua s f r a que za s e ina de qua ç õe s, a m ã e ne ga tiva
a r e j e ita e e xige que sua s insuf ic iê nc ia s se j a m supe r a da s. I sso, no
e nta nto, oc or r e num níve l c ole tivo, de m odo que e quiva le a um a
r e j e iç ã o de tudo a quilo que é únic o e individua l na c r ia nç a ; ou de
todos os f a tor e s que nã o c or r e sponda m à im a ge m que a m ã e possa te r
de c om o se u f ilho de ve r ia se r. A c onse quê nc ia de se m e lha nte
e xpe r iê nc ia é que a c r ia nç a pr e c isa e sc onde r ou r e pr im ir a sua
singula r ida de , e e ssa s qua lida de s inc or por a m - se à som br a . Já que a
som br a se m pr e c onté m m uita s c oisa s que sã o r e a lm e nte ina c e itá ve is,
r e pulsiva s e pr e j udic ia is pa r a os outr os e à soc ie da de , e ssa
c onta m ina ç ã o de individua lida de e som br a pode se r de sa str osa . P ois a
pe ssoa e ntã o e xpe r im e nta a a c e ita ç ã o da a lm a e da som br a c om o
idê ntic a s. I sso f a z c om que lhe se j a e xtr e m a m e nte dif íc il e sta be le c e r
ou m a nte r c onta to íntim o c om qua lque r pe ssoa . Se m pr e que a lgué m
c om e ç a a se a pr oxim a r de la , e la inva r ia ve lm e nte f a r á a lgo pa r a que
e sse a lgué m a r e j e ite . P r e c isa m os te nta r c om pr e e nde r m e lhor e sse
f e nôm e no, de ve z que e le é tã o c om um .

P or que a pe ssoa que sof r e u o pr of undo f e r im e nto a r que típic o da


tr a iç ã o pa r e c e e sta r se m pr e a pr ovoc a r r e j e iç ã o? É c om o se houve sse
a lgo, de ntr o de la , a pe dir r e j e iç ã o, Essa pe ssoa e m ge r a l e xpr e ssa
e xa ta m e nte e sse ponto de vista a r e spe ito de si m e sm a . Dur a nte
a lgum te m po, a c r e dite i que isso se de via inte ir a m e nte a o m e do de
um a pr oxim ida de que ir ia e xpor o ve lho f e r im e nto a nova s inj úr ia s.
Fa zia se ntido; m a s de pois pe r c e bi que , e m bor a o f e r im e nto f ic a sse
e xposto num c onta to íntim o, o que o ha via c a usa do e m pr im e ir o luga r
e r a a e xpe r iê nc ia inf a ntil da tr a iç ã o e da r e j e iç ã o. P or ta nto, qua ndo
um a pe ssoa r e j e ita e pr ovoc a a r e j e iç ã o, a situa ç ã o or igina l de
f e r im e nto e stá se r e pe tindo. E é óbvio que e la nã o e vita o sof r im e nto
a tr a vé s de sse s m e c a nism os inc onsc ie nte s. Busque m os outr a s
e xplic a ç õe s.

Com pr e e nde r e m os m e lhor os f a tos ve ndo- os c om o c onse quê nc ia da


inc a pa c ida de da pe ssoa de distinguir e ntr e a som br a e a a lm a , I sso
e voc a pr of undos se ntim e ntos de ve rgonha , de c ulpa e m e do se m pr e
que e la e ntr a e m c om unhã o c om outr a a lm a . Ou se j a , e xiste m
e le m e ntos inf a ntis e r e gr e ssivos na som br a que de ve r ia m te r sido
a ssim ila dos e inte gr a dos à pe r sona lida de c om o um todo; m a s isso nã o
a c onte c e u de vido à e xpe r iê nc ia de se ve r a r e j e iç ã o pe lo a r qué tipo
pa r e nta l ne ga tivo inte r na liza do. Se m pr e que e xiste e ssa c onta m ina ç ã o
e ntr e a a lm a e a som br a , a pe ssoa c ontinua a se se ntir r e j e ita da
m e sm o que e nc ontr e a c e ita ç ã o e a m or pr of undos. Ela e xige que a
outr a pe ssoa a r e dim a da c ulpa que se nte a r e spe ito dos a spe c tos
ve r da de ir a m e nte inac e itáv e is e de strutiv os da sua som br a , os qua is
e la nã o dif e r e nc iou da tota lida de do se u se r. Alguns e le m e ntos da
som br a — ta is c om o e xigê nc ia s inf a ntis e ne c e ssida de s de
de pe ndê nc ia , se xua lida de inf a ntil ou indif e r e nc ia da , a vide z,
b r u ta lid a d e , e tc . — e m bor a f a ç a m pa r te da c ondiç ã o hum a na ,
pr e c isa m se r c ontidos ou ir ã o f e r ir os outr os. A a c e ita ç ã o de ssa s
qua lida de s no outr o a c om pa nha o a m or e o r e spe ito de um a pe ssoa
pe la a lm a da outr a , m a s nã o que r dize r que e la e ste j a disposta a se r
sa c r if ic a da pe la som br a . Ma s é isso, pr e c isa m e nte , o que é busc a do
pe la s pe ssoa s que pr ovoc a m a r e j e iç ã o, ou se j a , que lhe s se j a
pe r m itido da r ple na e xpr e ssã o à sua som br a e que se j a m a m a da s pe lo
c a stigo que e la lhe s inf lige — e la s a c ha m que só a ssim e la s pode m
se ntir a c e ita ç ã o e a m or ve r da de ir os. I sso la nç a um a luz um ta nto
dif e r e nte sobr e o pr oble m a e suge r e a ne c e ssida de de a pr oxim a ç ã o,
nã o o m e do de e sta r pr óxim o. Em outr a s pa la vr a s, e xiste um a
ne c e ssida de pr of unda de se livr a r da c ulpa e dos e le m e ntos
a m e dr onta dor e s da som br a ; e é por isso que a som br a é
c ontinua m e nte tr a zida pa r a a que le s r e la c iona m e ntos que of e r e c e m a
possibilida de de c onta to hum a no íntim o.

10. O lado do ave sso do r e lac ioname nt o mãe - f ilha

KIM CHERNIN
Che ga m os a o la do do a ve sso do vínc ulo m ã e - f ilha , a o se u
indisf a r ç á ve l sa bor a m a rgo. I nve j a r a nossa pr ópr ia f ilha , que r e r
a quilo que e la te m , se ntir que tudo f oi c onse guido à s nossa s c usta s —
que te r r íve l e c r ue l ir onia inve j á - la e xa ta m e nte pe la s opor tunida de s
que ta nto a nsia m os por lhe pr opor c iona r !

Na m inha qua lida de de m ã e , c he gue i a um e nte ndim e nto de sse


pr oble m a da s m ulhe r e s a tr a vé s da intr ospe c ç ã o. E, a ssim , tom e i o
c uida do de obse r va r a lgo a inda m a is dif íc il de se r a dm itido do que a
c r ise se c r e ta da vida da m ã e . P ois o tipo de r e la c iona m e nto m ã e - f ilha
que m a is a pa r e c e no m e u c onsultór io é a que le no qua l a m ã e se nte
um a inve j a a guda e e xa spe r a nte dia nte da s opor tunida de s a be r ta s à
f ilha ; um r e sse ntim e nto pe la r e la tiva f a c ilida de c om que a f ilha
pa r e c ia c a pa z de ingr e ssa r no novo m undo de opor tunida de s que se
a br ia à sua f r e nte a té que o se u "pr oble m a a lim e nta r " se
de se nvolve sse e a im obiliza sse .

A inve j a da m ã e pe la f ilha a m a da : pa r a um a m ã e , pouc a s e m oç õe s


se r ã o m a is dif íc e is de se r a na lisa da s do que e ssa . É na tur a l
de se j a r m os o m e lhor pa r a nossa s f ilha s, tudo o que nos f oi ne ga do, e
pa r a isso nos sa c r if ic a m os instintiva m e nte . Com o, e ntã o, pode m os
lida r c om e ssa e xa spe r a ç ã o que se ntim os a o ouvi- la s f a la r sobr e "a
nova m ulhe r "? O que pode m os f a ze r c om e sse r a nc or, à s ve ze s
ine gá ve l, que se a vulta de ntr o de nós qua ndo a s ouvim os ta ga r e la r
sobr e o f utur o, pla ne j a ndo te r tr ê s f ilhos e via j a r pe lo m undo todo e
se tor na r um a pintor a e a inda ga nha r um a f or tuna no m e r c a do de
a ç õe s? E se r á pr e c iso que a ba f e m os um r iso a m a rgo, um suspir o de
que m sa be da s c oisa s, m e ne a ndo a c a be ç a c om o que m diz, c la r o, j á
ouvi tudo isso a nte s? A inve j a da m ã e .

É típic o que a m ã e da s m ulhe r e s que m e pr oc ur a r a m te nha tido


possibilida de s de e sc olha e m sua vida . Ela r e c e be u e duc a ç ã o, m uita s
ve ze s e duc a ç ã o supe r ior, e f r e que nte m e nte c om e ç ou um a c a r r e ir a .
Optou por r e nunc ia r a e ssa c om o pa r te do a utossa c r if íc io que pa r e c e
a c om pa nha r a m a te r nida de , m a s nunc a f oi c a pa z de a c e ita r
ple na m e nte e sse sa c r if íc io. Ela se ntia inve j a da f ilha , se ntia
r e sse ntim e nto.

Essa r a iva por sa c r if ic a r- se pe los f ilhos ta m bé m é e vide nte na s


m ulhe r e s que te nta m c onc ilia r c a r r e ir a ou voc a ç ã o c om a
m a te r nida de . Ne sse c a so, é c la r o, o pr oble m a sã o a s e sc olha s diá r ia s
e r e pe tida s que de spe r ta m a inc e r te za , a a ngústia e a ir r ita ç ã o. De ixa r
os f ilhos a ssistir e m te le visã o pa r a que e la possa de se nha r ou pinta r.
Se r vir- lhe s e spina f r e c onge la do pa r a nã o pr e c isa r la va r os pr a tos e ,
a ssim , dispor da que le s de z m inutos livr e s pa r a c onte m pla ç ã o e
m e dita ç ã o. De ixa r os f ilhos no j a r dim de inf â nc ia por um a ou dua s
hor a s a m a is, pa r a que e la possa a ssistir a um a a ula . As ve ze s a m ã e
de c ide de um m odo, à s ve ze s de outr o. Af ina l, m a l e la c om e ç a a
m e dita r e é pr e c iso sa ir c or r e ndo, j á a tr a sa da , pa r a pe ga r os f ilhos na
e sc ola .

Com o f ilha s, se m pr e soube m os do r e sse ntim e nto da nossa m ã e por


m a is he r oic a m e nte que a m ulhe r m a is ve lha te nta sse disf a r ç a r sua
a nsie da de . Ainda a ssim , pe lo be m da m ã e , a f ilha nã o que r ia tom a r
c onhe c im e nto. Via a m ã e se m pr e te nta ndo, se m pr e f r a c a ssa ndo;
ouvia - a insistir que o m a ior be m da m ulhe r é sa c r if ic a r- se pe la
f a m ília . E na f r a se se guinte ouvia - a ne ga r que a quilo que f a zia e r a
um sa c r if íc io. Ela a via pa ssa r um dia inte ir o a ssa ndo pã o de c e nte io
f e r m e nta do do tipo que a a vó c ostum a va f a ze r. Se ntia a a nsie da de
c om que a m ulhe r m a is ve lha olha va e m volta da m e sa e obse r va va o
r osto dos f ilhos, te nta ndo j ustif ic a r, a tr a vé s de sua s r e a ç õe s, toda a
e ne rgia que ha via de spe ndido na que le dia . Via a s tige la s suj a s de
f e r m e nto e f a r inha a c um ula ndo- se na pia da c ozinha , c om o se a m ã e
nã o c onse guisse se c onve nc e r a ir la vá - la s e gua r dá - la s. Er a a f ilha
m a is ve lha que a s la va va e gua r da va , a m e sm a m ulhe r que a lguns
a nos m a is ta r de c om e ç a r ia , e la pr ópr ia , a "m or r e r de ina niç ã o". P ois
e la sa bia que a ba ta lha tr a va da c om o pã o, a c um ula ndo- se sobr e tudo
o m a is, ha via ir r ita do a sua m ã e .

Ela obse r va va a m ã e no supe r m e r c a do ir e vir e ntr e a se ç ã o de


c onge la dos e a de ve r dur a s f r e sc a s. Ela a via pe ga r um pa c ote de
e spina f r e c onge la do e sor r ir c om um a e xpr e ssã o te nsa e nqua nto dizia
à f ilha , a inda um a c r ia nç a , que de ve z e m qua ndo nã o f a z m a l, tudo
be m j a nta r um pr a to c onge la do só por e ssa ve z, nã o é ? A f ilha a
obse r va va vir a r- se de súbito e c or r e r à se ç ã o de c onge la dos e pôr de
volta o e spina f r e c om o se f osse um obj e to im undo. Ela a se guia a o
ba lc ã o de ve r dur a s, via a m ã e pe ga r e spina f r e f r e sc o e pa r e c e r
subita m e nte c a nsa da e m a l- hum or a da , e da r um a olha da no r e lógio e
pôr o e spina f r e no c a r r inho e e ntã o c oloc á - lo de volta no ba lc ã o. Ela
m a r c ha va a tr á s da m ã e a té a se ç ã o de c onge la dos, onde nova m e nte a
m ã e pe ga va o pa c ote de e spina f r e c onge la do e se volta va , diz a f ilha ,
c om o "a spe c to de um a f e r a a c ua da ". E a ssim c ontinua va , de um la do
pa r a outr o, a m ba s te nta ndo r ir da c oisa toda , te nta ndo f ingir que e r a
um j ogo a que la j or na da a ngustiosa da obr iga ç ã o m a te r na l à livr e
e sc olha ; um a j or na da na qua l a m ulhe r m a is ve lha e xpr e ssa va sua
inc e r te za e se u r e sse ntim e nto e m r e la ç ã o a o se u pa pe l. A f ilha le m br a
c om o a m ã e , f ina lm e nte , le vou pa r a c a sa o e spina f r e f r e sc o, que
m ur c hou na ge la de ir a se m j a m a is te r ido a o f ogã o. Ela le m br a que
se ntia a r a iva da m ã e a tr a vé s do m odo c om o os a lim e ntos e r a m
c om pr a dos, gua r da dos e pr e pa r a dos.

Adulta , a f ilha inte r pr e ta . Ela diz que a m ã e nã o c onse guia m a is


a c e ita r a s lim ita ç õe s de sua vida . Re c onhe c e que a m ã e se r e sse ntia
a m a rga m e nte da m a te r nida de , f r e que nte m e nte a sa bota va , se ntia
inve j a da f ilha por se r c a pa z de f a ze r outr a s e sc olha s, m uita s ve ze s
c om pe tia c om a f ilha e , se m pr e e r a de r r ota da pe la sua pr ópr ia
a m biva lê nc ia . E por se ntir um a ve rgonha tã o pr of unda de sse s
se ntim e ntos, a m ulhe r m a is ve lha ge r a lm e nte nã o sa bia que os se ntia ,
e m bor a a f ilha os pr e sse ntisse .

A f ilha , c r ia da ne sse tipo de a tm osf e r a de m istif ic a ç ã o e


a m biva lê nc ia , ine vita ve lm e nte te r á pr oble m a s qua ndo pa r tir pa r a
vive r a sua pr ópr ia vida . Ela e nf r e nta r á um a te r r íve l divisã o inte r ior
qua ndo te nta r a sse gur a r a si m e sm a que a m ã e f oi f e liz c om os
sa c r if íc ios que f e z e m se u be ne f íc io e , a o m e sm o te m po, a f ir m a r a si
m e sm a que a quilo nã o f oi ne nhum sa c r if íc io. Em de se spe r o, a f ilha
te nta e lim ina r a pr ópr ia r a iva e a se nsa ç ã o de "ina niç ã o" e m oc iona l,
a sse gur a ndo a si m e sm a que nã o há m otivo a lgum pa r a se se ntir
"f a m inta ". E ne sse m e io te m po e la nã o ousa f or m ula r c e r ta s pe rgunta s
sobr e a m ã e ; e ssa ir r ita ç ã o c om a m ã e por te r tr a ído o pote nc ia l
f e m inino de de se nvolvim e nto; e ssa se nsa ç ã o de inf inita a nsie da de que
e xiste e ntr e m ã e s e f ilha s; todos e sse s se ntim e ntos que e la nã o ousa
a dm itir f a ze m c om que lhe se j a im possíve l se pa r a r- se da m ulhe r m a is
ve lha , se guir sua pr ópr ia vida e de ixá - la pa r a tr á s. Ela pa r a e he sita
a nte sua s pr ópr ia s possibilida de s de de se nvolvim e nto, e nqua nto te nta
f r e ne tic a m e nte de se nr e da r o nó c om ple xo que a m a r r a sua s e ne rgia s e
a m biç õe s.

Tr a nsc e nde r a m ã e nã o é um a sim ple s que stã o de f a ze r c om nossa


pr ópr ia vida a quilo que a m ã e nã o f e z. É, a nte s, um a que stã o de f a ze r
a quilo que a pr ópr ia m ã e ta lve z tive sse de se j a do f a ze r e nã o f e z por
e sc olha pe ssoa l. Se f or a m a s ne c e ssida de s e c onôm ic a s ou a c r e nç a no
de stino ine vitá ve l da m ulhe r que de r a m f or m a à vida da m ã e , a
instituiç ã o da m a te r nida de lhe te r ia sido de im e nsa a j uda pa r a supe r a r
se u de sc onte nta m e nto e inf e lic ida de . Ma s, se a m ã e tinha a lte r na tiva s
e m e sm o a ssim optou por sa c r if ic a r- se e m pr ol da f ilha ; se e la
c ontinuou a se se ntir a m biva le nte e m r e la ç ã o a e ssa e sc olha , a inda
a nsia ndo por um a vida que nã o te ve ; se e la se c onve nc e u, de pois que
os f ilhos na sc e r a m , de que nã o pode r ia te r outr a s f or m a s de
sa tisf a ç ã o e r e a liza ç ã o pe ssoa is, m e sm o que j á te nha c om e ç a do a
duvida r da ve r da de de tudo isso; se sua vida c ontinuou a f e r m e nta r
c om se ntim e ntos nã o a dm itidos de inve j a , r e sse ntim e nto e m udos
a nse ios — e ntã o sua vida tr a r ia pa r a a f ilha o pr oble m a de
tr a nsc e nde r a m ã e , e e sse pr oble m a e stá , a c r e dito, no â m a go do
"pr oble m a a lim e nta r ". A f ilha e nf r e nta a que stã o de tr a nsc e nde r a
m ã e qua ndo a m ulhe r m a is ve lha de ixa de se r c a pa z de a c e ita r a sua
opr e ssã o c om o ine vitá ve l, ou se a pa ga c om o pe ssoa e pa ssa a vive r
a tr a vé s da vida da f ilha . P ois e ntã o a f ilha , se busc a o se u pr ópr io
de se nvolvim e nto, de f r onta - se c om dua s possibilida de s intole r á ve is. De
súbito, a o a lc a nç a r a m a ior ida de e e ntr a r no m undo, e la c or r e o r isc o
de de spe r ta r a inve j a e o r e sse ntim e nto da m ulhe r m a is ve lha . E, pior
a inda , m a is dolor oso e pe r tur ba dor, e la a gor a e stá na posiç ã o de
le m br a r à m ã e o se u pr ópr io f r a c a sso e pr iva ç ã o.

A que m c a be a c ulpa ? À m ã e f e r ida que um dia f oi f ilha ? À f ilha


e nr a ive c ida , que ta lve z se tor ne um dia , m ã e e la m e sm a , o a lvo da
r e pr ova ç ã o de sua pr ópr ia f ilha ?

P r e c isa m os supe r a r e ssa te ndê nc ia de c ulpa r a s m ã e s. E a o m e sm o


te m po pr e c isa m os tom a r c onsc iê nc ia da nossa r a iva e f r ustr a ç ã o, a
se nsa ç ã o de a ba ndono que toda s nós se ntim os um dia , f ilha s de
m ulhe r e s e m c r ise c om o nós m e sm a s. E, de pois do c hoque de
a dm itir m os a r a iva que se ntim os pe la m ã e , pr e c isa m os a pr e nde r a
inse r ir e ssa r a iva num c onte xto soc ia l, tir a ndo a m ã e pe ssoa l de
de ntr o de c a sa e posic iona ndo- a no e xa to m om e nto histór ic o e m que
e la de u à luz um a c r ia nç a .

A m a ior ia da s m ulhe r e s c onse gue m a nte r e m se gr e do o se u c ola pso e


a sua c r ise de sde que pe r m a ne ç a m no la r e pe r sista m na ba ta lha ,
c a da ve z m a is f útil, de sa c r if ic a r- se a o c a sa m e nto e à m a te r nida de .
Ma s a c r ise oc ulta ir r om pe e se tor na e vide nte tã o logo um a m ulhe r
sa i pa r a a pr ove ita r a s opor tunida de s soc ia is que nossa é poc a põe à sua
disposiç ã o. Assim um a m ulhe r de qua lque r ida de tor na - se um a m ã e
m ode r na , um a m ulhe r e m sé r ia c r ise ( m e sm o que oc ulta ) , qua ndo nã o
c onse gue a pa ga r- se , sa c r if ic a r- se e vive r a tr a vé s da vida dos f ilhos.
Ma s a m e sm a m ulhe r, de qua lque r ida de , tr a nsf or m a - se num a f ilha
c om um a "de sor de m a lim e nta r " no m om e nto e m que sa i e m busc a do
se u pr ópr io de se nvolvim e nto e pr e c isa f a ze r um a pa usa pa r a r e f le tir
sobr e a vida da sua m ã e .

Um a "de sor de m a lim e nta r " só pode r á se r r e solvida de ntr o de sse


c onte xto c ultur a l m a is a m plo, que nos pe r m ite e xtr a va sa r a r a iva pe lo
m odo te r r íve l c om o e la nos c r iou, m a s a gor a inc luindo ne ssa r a iva a s
m ã e s e nqua nto f ilha s c om dir e ito a o se u pr ópr io de se spe r o. Entã o
te r e m os libe r a do um a r a iva que a c usa , nã o a s m ã e s, m a s um siste m a
soc ia l que nunc a de ixou de opr im ir a s m ulhe r e s. E, f ina lm e nte ,
se r e m os c a pa ze s de libe r ta r do e m a r a nha do nó de a utode str uiç ã o e
obse ssã o o c onhe c im e nto r a dic a l e sa luta r de que um a "de sor de m
a lim e nta r " é um a to pr of unda m e nte polític o.

Estou de sc r e ve ndo ge r a ç õe s de m ulhe r e s que sof r e m c ulpa : m ulhe r e s


que nã o c onse gue m se r m ã e s de sua s f ilha s por que se us m a is
le gítim os sonhos e a m biç õe s nã o f or a m r e c onhe c idos; m ã e s que
sa be m te r f r a c a ssa do e nã o c onse gue m pe r doa r a si m e sm a s pe lo se u
f r a c a sso; f ilha s que se c e nsur a m por pr e c isa r de m a is do que a m ã e
e r a c a pa z de of e r e c e r, que vir a m e e xpe r im e nta r a m toda a e xte nsã o
da c r ise da m ulhe r m a is ve lha e que nã o c onse gue m se ntir r a iva pe la
m ã e por que sa be m o qua nto e la pr e c isa que e la s a pe r doe m .

E o que é f e ito de toda e ssa c ulpa que a s f ilha s se nte m ? Com o e la se


e xpr e ssa ? Onde e la ir r om pe de um a f or m a disf a r ç a da e sintom á tic a ?

Sa be m os a r e sposta . Já e nc ontr a m os a r e sposta pa r a e ssa s pe rgunta s;


sa be m os c om o a s f ilha s da nossa é poc a se volta m c ontr a si m e sm a s.
Vim os o m odo c om o e la s se que br a m no m om e nto e m que de ve r ia m
pr ospe r a r e se de se nvolve r ; obse r va m os o m odo c om o e la s se
tor tur a m c om a "f om e " e f a ze m de se u c or po o inim igo, c om o a ta c a m
sua c a r ne f e m inina . Esse s f úte is a ta que s a o c or po f e m inino, a tr a vé s
dos qua is te nta m os nos libe r ta r da s lim ita ç õe s do pa pe l f e m inino,
e sc onde m um a a m a rga ba ta lha c ontr a a m ã e . Os tr a ç os
c a r a c te r ístic os de um a "de sor de m a lim e nta r " f a la m - nos da c ulpa que
se ntim os e da r a iva oc ulta que nã o c onse guim os e xpr e ssa r. P ois o que
um a m ulhe r ir á a ta c a r qua ndo nã o c onse gue e xpr e ssa r dir e ta m e nte
sua r a iva pe la m ã e ? Nã o é ba sta nte pr ová ve l que e la , volta ndo e ssa
r a iva c ontr a si m e sm a , a dir e c ione c ontr a o c or po f e m inino que
c om pa r tilha c om a m ã e ? Num a ssusta dor a to de substituiç ã o
sim bólic a , a f ilha dispa r a a r a iva que se nte pe la m ã e c ontr a o se u
pr ópr io c or po, um c or po tã o se m e lha nte à que le que a a lim e ntou e
a tr a vé s do qua l e la a pr e nde u a c onhe c e r a m ã e nos pr im e ir os
m om e ntos de sua e xistê nc ia .

Ma s o nosso pr oble m a , a qui, nã o é o c or po f e m inino. O nosso


pr oble m a é a c ulpa e a a ngústia de r iva da s de sse a ta que sim bólic o
c ontr a a m ã e , que e ntr a va m o de se nvolvim e nto da f ilha . Na
e spe r a nç a de dom ina r a r a iva , a a nsie da de e a se nsa ç ã o de pe r da a o
se se pa r a r da m ã e , a m ulhe r que hoj e a tinge a m a ior ida de — a o
dir igir e sse s se ntim e ntos c ontr a a sua pr ópr ia c a r ne f e m inina —
e nvolve - se num a to inte nsif ic a do de a utode str uiç ã o no m om e nto
m e sm o e m que busc a de se nvolve r um novo se ntido de ide ntida de .
Esse é o tr á gic o pa r a doxo que a nova m ulhe r pr e c isa r e solve r.

11. Os pais e a sombr a dos f ilhos

JOHN A. SANFORD

É c e r to que a f igur a da Som br a se m pr e há de e xistir na nossa


pe r sona lida de . P a r a c he ga r a de se nvolve r um a pe r sona lida de
c onsc ie nte , pr e c isa m os nos ide ntif ic a r c om a lgum a c oisa , e isso
im plic a a ine vitá ve l e xc lusã o do se u oposto. É im por ta nte que , no
pr oc e sso de c r e sc im e nto, a s c r ia nç a s se ide ntif ique m c om os a tr ibutos
psic ológic os a pr opr ia dos e nã o c om a Som br a ; pois, se houve r
de m a sia da ide ntif ic a ç ã o c om a Som br a , o e go te r á um "pé tor to", um
de f e ito f a ta l. A individua ç ã o e a tota lida de só sã o possíve is qua ndo a
pe r sona lida de c onsc ie nte te m um a c e r ta a titude m or a l. Se a s pe ssoa s
se ide ntif ic a m a be r ta m e nte c om o se u la do tr a iç oe ir o, de sone sto ou
viole nto, e nã o tê m se ntim e ntos de c ulpa ne m olha m pa r a de ntr o de si
m e sm a s, a tota lida de nã o c onse gue e m e rgir.

Aj uda r os f ilhos a se de se nvolve r c or r e ta m e nte a e sse r e spe ito, no


e nta nto, nã o é na da sim ple s. A pr e ga ç ã o m or a lista por pa r te dos pa is,
da igr e j a , da soc ie da de , e tc . ge r a lm e nte é ine f ic a z ou a té m e sm o
pe r igosa . De m uito m a ior im por tâ nc ia é o tipo de vida que os pa is
r e a lm e nte le va m e o gr a u de hone stida de psic ológic a que possue m . A
pr e ga ç ã o m or a lista por pa r te de pa is hipóc r ita s é m a is do que inútil.
De im por tâ nc ia a inda m a is f unda m e nta l a o de se nvolvim e nto da
Som br a e à e ve ntua l r e soluç ã o do pr oble m a da Som br a é a "liga ç ã o"
que de ve oc or r e r e ntr e pa is e f ilhos. De sde c e do na vida , um a c r ia nç a
pr e c isa se r liga da pe lo a m or à m ã e e /ou a o pa i, ou a um substituto
a de qua do do pa i ou da m ã e . De sse m odo, e stã o la nç a da s a s ba se s da
vida m or a l; pois, e m últim a a ná lise , a vida m or a l r e sum e - se no
r e la c iona m e nto de um a pe ssoa c om outr a s pe ssoa s e na c a pa c ida de
de se ntim e ntos hum a nos. Em a lgum a s c r ia nç a s e ssa liga ç ã o nunc a
oc or r e ; ne sse c a so, a s ne c e ssá r ia s de f e sa s e m oc iona is c ontr a o la do
m a is e sc ur o da Som br a nã o e xiste m ou sã o f r á ge is. I sso pode le va r a o
de se nvolvim e nto de pe r sona lida de s c r im inosa s ou soc iopá tic a s, ou
se j a , à ide ntif ic a ç ã o do e go c om a Som br a .

Ma s, a o m e sm o te m po e m que e nc or a j a m os f ilhos a se ide ntif ic a r


c om sua s c a r a c te r ístic a s m a is positiva s, e stim ula ndo- os a se r
hone stos, a te r c e r to r e spe ito pe los outr os e a ssim por dia nte , os pa is
nã o de ve m a f a sta r e m de m a sia os f ilhos do se u la do e sc ur o. P ois a
Som br a nunc a é m a is pe r igosa do que qua ndo a pe r sona lida de
c onsc ie nte pe r de c onta to c om e la . Conside r e m os o c a so da r a iva . É
c la r o que nã o se de ve pe r m itir que os f ilhos c e da m a im pulsos de
r a iva que se j a m de str utivos pa r a os outr os. Ao m e sm o te m po, se r á
um a pe r da pa r a os f ilhos se f or e m tota lm e nte pr iva dos de c onta to
c om a r a iva ; pois a r a iva , c om o j á vim os, m uita s ve ze s é um a r e a ç ã o
sa udá ve l. Se o pa i/m ã e diz: "Voc ê é um m e nino m a u por que e stá c om
r a iva da sua ir m ã ", e xiste o pe r igo de que a c r ia nç a se nsíve l possa
r e pr im ir sua r a iva pa r a ga nha r a a pr ova ç ã o dos pa is. I sso r e sulta
num a c isã o na pe r sona lida de e num a som br a a utônom a e , por ta nto,
pe r igosa ; pa r a nã o m e nc iona r a pe r da de c onta to c om a e ne rgia vita l
que e ssa r a iva pr opic ia . I sso é e spe c ia lm e nte noc ivo se os pa is se
pe rmite m se ntir r a iva , m a s nã o pe r m ite m que os f ilhos a sinta m . "Eu
posso f ic a r f ur ioso, m a s voc ê nã o", é , c om f r e quê nc ia , a a titude
r e a lm e nte e xpr e ssa pe los pa is. Assim , é e str e ito o c a m inho que o
pa i/m ã e pode tr ilha r. Qua ndo a c r ia nç a f ic a f ur iosa c om se u ir m ã o,
ta lve z um a a titude do gê ne r o, "Eu e nte ndo que voc ê e ste j a f ur ioso
c om se u ir m ã o, m a s voc ê nã o pode j oga r um a pe dr a ne le ", possa
e nc or a j a r a c r ia nç a a de se nvolve r a r e pr e ssã o ne c e ssá r ia sobr e se us
instintos e a f e tos m a is viole ntos, se m se a f a sta r do se u la do e sc ur o,
Com o é ine vitá ve l que te nha m os um a pe r sona lida de liga da à som br a ,
dize m os que a Som br a é um a r qué tipo. Dize r que um a c oisa é um
a r qué tipo e quiva le a a f ir m a r que e la é um bloc o de c onstr uç ã o
e sse nc ia l da pe r sona lida de . Ou, usa ndo a pa la vr a na sua f or m a
a dj e tiva , dize r que a lgo é "a r que típic o" signif ic a que e le é "típic o" de
todos os se r e s hum a nos. Assim , é típic o de todos os se r e s hum a nos
que , a o de se nvolve r e m um a pe r sona lida de c onsc ie nte , de se nvolva m
ta m bé m a c om pa nhe ir a e sc ur a de ssa pe r sona lida de , a Som br a . P or
se r um a r qué tipo, a Som br a é f r e que nte m e nte r e pr e se nta da nos m itos,
nos c ontos de f a da s e na lite r a tur a e m ge r a l. Um e xe m plo de ssa
últim a é a nove la de Robe r t Louis Ste ve nson, Dr. J e k y ll e M r. Hy de .

Ta m bé m é im por ta nte que os pa is nã o c a stigue m os f ilhos c om a


r e j e iç ã o. Ta lve z o m e lhor c a stigo que os pa is pode m da r a os f ilhos
se j a o c a stigo im e dia to que , um a ve z a plic a do, e stá te r m ina do, O pior
c a stigo é , c om c e r te za , a r e c usa de a f e iç ã o e a pr ova ç ã o pa r a
c ontr ola r o c om por ta m e nto da c r ia nç a . Qua ndo isso a c onte c e , a
c r ia nç a c a pta a m e nsa ge m de que é m á e , a lé m disso, r e sponsá ve l
pe lo m a u hum or do pa i ou da m ã e ; isso le va a se ntim e ntos de c ulpa e
de a utor r e j e iç ã o, E e ntã o, pa r a e sta r à a ltur a dos pa is, a c r ia nç a te nta
de se spe r a da m e nte a da pta r- se à s f or m a s de c om por ta m e nto que
a gr a de m a os pa is, o que r e sulta r á num a c isã o a inda m a ior da Som br a .

Se pr e te nde m te r suc e sso a o lida r c om a som br a dos f ilhos, os pa is


pr e c isa m a c e ita r e e sta r e m c onta to c om sua pr ópr ia Som br a . Os pa is
que tê m dif ic ulda de e m a c e ita r se us pr ópr ios se ntim e ntos ne ga tivos e
sua s r e a ç õe s m e nos nobr e s, a c ha r ã o dif íc il a c e ita r de m odo c r ia tivo o
la do e sc ur o dos f ilhos. Ma s que r o e nf a tiza r que "a c e ita ç ã o" nã o
signif ic a "pe r m issivida de ". De na da se r ve à c r ia nç a te r pa is que
pe r m ite m todo tipo de c om por ta m e nto. Existe m f or m a s de
c om por ta m e nto que nã o sã o a c e itá ve is na soc ie da de hum a na ; a
c r ia nç a pr e c isa a pr e nde r isso; a c r ia nç a pr e c isa orga niza r sua pr ópr ia
c a pa c ida de inte r ior de c ontr ola r e ssa s f or m a s de c om por ta m e nto.
Um a a tm osf e r a pe r m issiva f a z c om que se e m bote a c a pa c ida de de a
c r ia nç a de se nvolve r se u pr ópr io siste m a de m onitor a ç ã o do
c om por ta m e nto. O de se nvolvim e nto do e go, e ntã o, se r á de m a sia do
f r a c o pa r a pe r m itir que a c r ia nç a , qua ndo a dulta , possa lida r c om a
Som br a .

Esta r disposto a lida r c r ia tiva m e nte c om o pr oble m a da Som br a e xige


dos pa is um a dose inc om um de sutile za , de c onsc iê nc ia , de pa c iê nc ia
e de sa be dor ia . Nã o se pode e xa ge r a r na pe r m issivida de ; nã o se pode
e xa ge r a r na a uste r ida de . A c ha ve e stá e m que os pa is pr e c isa m te r
c onsc iê nc ia do pr oble m a da sua pr ópr ia Som br a e da sua c a pa c ida de
de a c e ita r a si m e sm os, a o m e sm o te m po c m que de se nvolve m o
vigor do se u pr ópr io e go pa r a pode r e m lida r c om se us a f e tos. A vida
f a m ilia r e m ge r a l — e se r pa i ou m ã e , e m pa r tic ula r — é um c a dinho
no qua l o pr oble m a da som br a pode se r e nf r e nta do e tr a ba lha do, pois
é c e r to que a vida f a m ilia r inc lui um a c onste la ç ã o de se ntim e ntos
ne ga tivos. P or e xe m plo, e m a lgum m om e nto um pa i/m ã e te r á ,
ine vita ve lm e nte , se ntim e ntos ne ga tivos e m r e la ç ã o a um f ilho —
qua ndo a c r ia nç a se por ta m a l, qua ndo inc om oda , qua ndo inte r f e r e
c om a vida inde pe nde nte dos pa is, qua ndo e xige de m a sia do sa c r if íc io
de dinhe ir o, de te m po ou de e ne rgia . Sob a s c oe r ç õe s da vida e m
f a m ília , é c e r to que a s pe ssoa s e xpe r im e nta r ã o divisõe s de ntr o de si
m e sm a s. O a m or por um f ilho pode se r supe r a do, a o m e nos
m om e nta ne a m e nte , pe lo ódio; o de se j o sinc e r o de f a ze r o m e lhor pe lo
f ilho pode se r supe r a do por f or te s se ntim e ntos de r a iva ou de
r e j e iç ã o. E, de sse m odo, ve m os o qua nto som os divididos, e e ssa
a utoc onf r onta ç ã o va i ge r a r a nossa c onsc iê nc ia psic ológic a . Aí e stá
um dos gr a nde s m é r itos da pe r sona lida de da som br a : o nosso
c onf r onto c om a Som br a é e sse nc ia l pa r a o de se nvolvim e nto da nossa
c onsc iê nc ia .

Só aque le c uja lira luminosa


e c oou nas sombras
pode rá um dia re staurar
se u infinito louv or.

Só aque le que c ome u


papoulas c om os mortos
nunc a v oltará a pe rde r
aque la suav e harmonia.

M e smo que a image m


nas águas se e ne v oe :
Conhe c e e a quie ta - te .

No M undo Duplo
todas as v oze s ganham
e te rna suav idade .

Ra ine r Ma r ia Rilke

The Sonne ts to Orphe us

Par t e 3

Os e mbat e s da sombr a: a danç a da inve j a, da r aiva e da f alsidade


Onde o a m or im pe r a , nã o há vonta de de pode r ; e onde o pode r
pr e dom ina , o a m or e stá a use nte . Um é a som br a do outr o,

C. G. J ung

Em ge r a l, nossa som br a é e vide nte pa r a os outr os m a s de sc onhe c ida


pa r a nós m e sm os. E a inda m a ior é a nossa ignor â nc ia do c om pone nte
m a sc ulino ou f e m inino de ntr o de nós... P or isso Jung de u o nom e de
"obr a de a pr e ndiz" da tota lida de à inte gr a ç ã o da som br a e de "obr a
pr im a " à inte gr a ç ã o e ntr e anima e animus.

J ohn A, Sanford

O ódio te m m uito e m c om um c om o a m or, pr inc ipa lm e nte c om


a que le a spe c to a utotr a nsc e nde nte do a m or, a f ixa ç ã o sobr e os outr os,
a de pe ndê nc ia de le s e , na ve r da de , a e ntr e ga de um a pa r te da pr ópr ia
ide ntida de a e le s... Aque le que ode ia a nse ia pe lo obj e to do se u ódio,
Vá c la v Ha ve i

Int r oduç ão

Os la ç os pr of undos que se ntim os pe los ir m ã os e a m igos íntim os do


nosso se xo gua r da m um m isté r io tã o pr of undo qua nto os la ç os que
se ntim os por a m a nte s im a giná r ios do se xo oposto. I r m ã e ir m ã , ir m ã o
e ir m ã o, ve m o- nos r e f le tidos num e spe lho que r e ve la ta nto um a
pr of unda ide ntida de qua nto um a pr of unda dif e r e nç a . Que r liga dos
pe lo sa ngue ou pe lo e spír ito, pode m os ve r um no outr o a som br a e o
e u.

Em m uita s f a m ília s, dua s ir m ã s pa r e c e r ã o se de se nvolve r c om o


opostos, c om o os dois polos de um ím ã . Em The Pre gnant Virgin [ A
Virge m Gr á vida ] , a a na lista j unguia na Ma r ion Woodm a n c ha m a - a s
"ir m ã s no sonho". Com o a s ir m ã s m itológic a s Eva e Lilith, P sique e
Or ua l, I na nna e Er e shkiga l, c a da um a c onté m o c ontr a ponto dos dons
da outr a : um a é a tr a ída pe lo m undo da m a té r ia , da na tur e za e do
a lim e nto; a outr a é a tr a ída pe lo m undo do e spír ito, da c ultur a e da
m e nte . Ete r na m e nte se pa r a da s, e te r na m e nte unida s, na vida e ssa s
dupla s ge r a lm e nte sã o de sf e ita s pe lo c iúm e inte nso, por inve j a ,
c om pe tiç ã o e e quívoc os.

O te m a dos ir m ã os ou de outr os pa r e s m a sc ulinos que sã o


supe r f ic ia lm e nte opostos, m a s a inda a ssim c om ple m e nta r m e nte
unidos, ta m bé m r e ssurge c om f r e quê nc ia : Ca im e Abe l, Je sus e Juda s,
Ote lo e la go, P r óspe r o e Ca libã . Em c a da dupla , a da nç a e ntr e o e go e
a som br a se a lte r na pa r a que , qua ndo um surge , o outr o r e tr oc e da . Se
num m om e nto c r uc ia l um hom e m vê o outr o c om o som br a /inim igo,
e sse ir m ã o pode r á m or r e r pe la s m ã os do se u gê m e o. Ma s, na que le
m e sm o m om e nto, um a pa r te do e u do a ssa ssino ta m bé m m or r e .

A c ha ve pa r a a c ur a de sse s r e la c iona m e ntos tur bule ntos é o "tr a ba lho


c om a som br a ". Qua ndo um a m ulhe r que é be m dif e r e nte de sua ir m ã
pe rgunta a si m e sm a num a situa ç ã o dif íc il, "O que m inha ir m ã
f a r ia ?", e la e stá invoc a ndo sua s ha bilida de s nã o de se nvolvida s e
invisíve is, que sã o visíve is na outr a . Qua ndo um hom e m é c a pa z de
va lor iza r e inte gr a r um tr a ç o de outr o hom e m que nã o lhe se j a
f a m ilia r — se lva ge r ia , se r e nida de ou se nsua lida de — e le , ta m bé m ,
a m plia o se u se nso de e u a o inc luir um a pa r te do outr o.

Ta m bé m nos nossos r e la c iona m e ntos c om o se xo oposto m uita s ve ze s


nos pe r tur ba m os qua ndo e nc ontr a m os nossos opostos. Nós nos
a pa ixona m os por pe ssoa s tã o dif e r e nte s de nós qua nto possíve l —
pa ssivo/a gr e ssivo, intr ove r tido/e xtr ove r tido, r e ligioso/a te u,
c om unic a tivo/r e se r va do. É c om o se f ôsse m os a tr a ídos pe los outr os
por que e le s tê m a quilo de que pr e c isa m os. Ele s pode m vive r a s
qua lida de s e a ptidõe s que pe r m a ne c e m la te nte s e m nós: um a m ulhe r
tím ida pe r m ite que o m a r ido f a le por e la ; um hom e m nã o- c r ia tivo
pe r m ite que , por a ssoc ia ç ã o, a c r ia tivida de da e sposa lhe dê pr a ze r.

Ta lve z e ste a dá gio se j a ve r da de ir o: Se nã o o de se nvolve r m os,


c a sa r e m os c om e le . Se nã o inte gr a r m os a nossa r a iva , a nossa r igide z,
a c a pa c ida de de r a c ioc ínio ou pr of undida de e m oc iona l, se r e m os
a tr a ídos pa r a pe ssoa s que pode r ã o nos c om pe nsa r e ssa s f r a que za s e
inf e r ior ida de s, e nos a r r isc a r e m os a nunc a de se nvolvê - la s por nós
m e sm os.

Esse c a sa m e nto de opostos ta m bé m a c onte c e f r e que nte m e nte na


nossa soc ie da de por um a r a zã o c ultur a l: o ide a l de c la r a do do e go
m a sc ulino ( se r r a c iona l, dom ina dor, inse nsíve l e or ie nta do pa r a
obj e tivos) é o la do da som br a do ide a l de c la r a do do e go f e m inino ( se r
e m oc iona l, subm issa , a gr a dá ve l e or ie nta da pa r a pr oc e ssos) . Com o
r e sulta do, a som br a e a pe ssoa a m a da pode m c om pa r tilha r de ssa s
m e sm a s qua lida de s.

A a str óloga e a na lista j unguia na Liz Gr e e ne e xplic a : "Aque le hom e m


a lta m e nte e spir itua liza do, r e f ina do e é tic o pode te r um a som br a
ba sta nte pr im itiva e ta lve z ta m bé m um a te ndê nc ia a se a pa ixona r por
m ulhe r e s m uito pr im itiva s." No e nta nto, Gr e e ne m ostr a que , qua ndo
e nc ontr a e ssa s qua lida de s na s f igur a s da som br a do se u pr ópr io se xo,
e le a s ode ia . Com o r e sulta do, diz Gr e e ne : "Te m os a que la c ur iosa
dic otom ia de ide a liza r e de te sta r a m e sm a c oisa ."
Em bor a os e ste r e ótipos m a sc ulino- f e m inino pa r e ç a m e sta r
r a pida m e nte e ntr a ndo e m c ola pso à m e dida que ga nha m os m a is
opç õe s soc ia is e e c onôm ic a s, o inc onsc ie nte a inda pr e c isa a lc a nç a r o
m undo e xte r ior. O c r e sc im e nto de se quilibr a do, e m hom e ns e
m ulhe r e s, a inda nos le va a c om ple ta r a nós m e sm os a tr a vé s da
pr oj e ç ã o e do c a sa m e nto c om o nosso oposto.

I sso ta m bé m e xplic a por que , nos e stá gios poste r ior e s de um


r e la c iona m e nto, r e a gim os c om a m a rgur a qua ndo nossa s pr oj e ç õe s
sã o a ba la da s e de sc obr im os, na pe ssoa a m a da , o nosso e u r e pr im ido
— e te nta m os nos de f e nde r c ontr a os nossos pr ópr ios im pulsos
pr oibidos, e xpr e ssos pe la outr a pe ssoa . A r a iva , a inve j a e a f a lsida de
sã o, c om f r e quê nc ia , o r e sulta do. Se m um tr a ba lho c om a som br a ,
e ssa a ngústia ta lve z le ve a um a dolor osa se pa r a ç ã o; c om e sse
tr a ba lho, nosso sof r im e nto ta lve z tr a ga c om o r e c om pe nsa a
a utope r c e pç ã o m a is pr of unda . Ja m e s Ba ldwin e xpr e ssou- o de m a ne ir a
poé tic a , qua ndo disse : Só m e é possíve l ve r nos outr os

o que posso v e r de ntro de mim.

Qua lque r a rgum e nto pode se r le va do a e xtr e m os, é c la r o, e te r m ina r


num a sim plif ic a ç ã o e xa ge r a da . Algum a s pe ssoa s a f ir m a m que tudo é
pr oj e ç ã o e que , por ta nto, ba sta - nos tr a ba lha r c om a som br a no nosso
m undo inte r ior e a ssum ir a r e sponsa bilida de por nossos pr ópr ios
se ntim e ntos ne ga tivos. Ma s o que suge r im os a qui é que e xiste m
oc a siõe s na s qua is nossa r a iva é le gítim a , na s qua is nossos se ntim e ntos
ne ga tivos tê m r a zã o de se r. O e stupr o, o a ssa ssina to e o ge noc ídio
j ustif ic a m nossa r a iva e j ustif ic a m , ta m bé m , a a ç ã o soc ia l que é
libe r a da pe la nossa r a iva , Nos nossos r e la c iona m e ntos pe ssoa is, o
pr opósito do tr a ba lho c om a som br a nã o é inva lida r os pe nsa m e ntos e
se ntim e ntos ne ga tivos que ine vita ve lm e nte e m e rge m ; é , a nte s, la nç a r
luz sobr e a s c oisa s que pr oj e ta m os, que a j uda m os a c r ia r e , por ta nto,
a c ur a r, e a s c oisa s que e xiste m ( inde pe nde nte m e nte de nós) na outr a
pe ssoa e que pode m e stim ula r e m nós um a r e a ç ã o ne ga tiva vá lida .

Esta se ç ã o e xplor a os e m ba te s da som br a nos r e la c iona m e ntos


a dultos. No Ca pítulo 12, e xtr a ído de Psy c he ' s Siste rs [ A P sique da s
I r m ã s] , Chr istine Downing, pr of e ssor a de r e ligiã o e e sc r itor a da linha
j unguia na , e xplor a os a r qué tipos do ir m ã o e da ir m ã , tipic a m e nte
ne glige nc ia dos pe la psic ologia , que se lim ita à s que stõe s liga da s a pa is
e f ilhos e a o a m or r om â ntic o.

O Ca pítulo 13 f oi e xtr a ído de The Surv iv al Pape rs [ Estudos de


Sobr e vivê nc ia ] , um livr o sobr e a m e ia - ida de , de Da r y l Sha r p, a na lista
j unguia no de Tor onto e e ditor da I nne r City Book s. Ele de sc r e ve o
e nc ontr o c om um a m igo/ir m ã o, que o e xpõe à s qua lida de s da sua
pr ópr ia som br a . De pois de m uitos a nos, os a m igos c om uns pe r c e be m
que e le s ha via m tr oc a do de luga r, c a da um tom a ndo- se m a is
se m e lha nte à quilo que o outr o e r a a nte s.

Com um a r e im pr e ssã o do b e st- se lle r de Ma ggie Sc a r f , I ntimate


P a r t n e r s [ P a r c e ir os íntim os] , f a ze m os a tr a nsiç ã o pa r a os
r e la c iona m e ntos c om o se xo oposto. Sc a r f de sc r e ve m a r ido e m ulhe r
pr e sos na a r m a dilha da ide ntif ic a ç ã o pr oj e tiva , c a da qua l c a r r e ga ndo
os a spe c tos r e pr im idos do e u do outr o. Ela e xplor a a te nsã o c r ia da
pe la a tr a ç ã o inic ia l por e sse s tr a ç os novos e nã o- f a m ilia r e s e a
subse que nte a ve r sã o a e le s, que c a usa a c r ise e m m uitos c a sa m e ntos.

Mic ha e l Ve ntur a , c olunista de Los Ange le s, num tr e c ho de Shadow


Danc ing in the USA. [ A Da nç a da Som br a nos Esta dos Unidos] na r r a o
e nc ontr o c om se us pr ópr ios "hor r or e s", que e m e rge m do a r m á r io
dur a nte se u c a sa m e nto. Com se u e stilo be m - hum or a do, Ve ntur a e xpõe
um a ssunto ba sta nte sé r io: na se gur a nç a do c a sa m e nto, nossos
de m ônios pode m le va nta r sua s hor r e nda s c a be ç a s.

Qua lque r r e la c iona m e nto íntim o pode se r vir c om o e xc e le nte ve íc ulo


pa r a o tr a ba lho c om a som br a , no qua l o f ogo do a m or pode se
a la str a r pe los luga r e s im obiliza dos, ilum ina r os de svã os e sc ur os e nos
a pr e se nta r a nós m e sm os.

12. Irmãs e irmãos lançando sombras

CHRISTINE DOWNING
P a r a um a m ulhe r, ir m ã é a outr a pe ssoa m a is se m e lha nte a e la
m e sm a de ntr e toda s a s c r ia tur a s do m undo. Ela é do nosso m e sm o
se xo e ge r a ç ã o, c a r r e ga a m e sm a he r a nç a biológic a e soc ia l. Te m os
os m e sm os pa is; c r e sc e m os na m e sm a f a m ília e f om os e xposta s a os
m e sm os va lor e s, pr e m issa s e pa dr õe s de inte r a ç ã o.

O r e la c iona m e nto f r a te r na l é um dos m a is dur a dour os de todos os


la ç os hum a nos, c om e ç a ndo c om o na sc im e nto e só te r m ina ndo c om a
m or te de um dos ir m ã os. Em bor a nossa c ultur a pa r e ç a nos pe r m itir a
libe r da de de e sque c e r os la ç os f r a te r nos e nos a f a sta r dos nossos
ir m ã os/ir m ã s, te nde m os a nos r e a pr oxim a r de le s nos m om e ntos de
c e le br a ç ã o ( c a sa m e ntos e na sc im e ntos) be m c om o na s é poc a s de
c r ise ( divór c ios e f a le c im e ntos) . E ne sse s m om e ntos de sc obr im os,
c om sur pr e sa , a r a pide z c om que r e ssurge m os pa dr õe s de inte r a ç ã o
da inf â nc ia e a inte nsida de dos r e sse ntim e ntos e va lor e s da inf â nc ia .

Ainda a ssim , e ssa outr a pe ssoa tã o se m e lha nte a m im m e sm a é ,


indisc utive lm e nte , outra. Ma is que qua lque r outr a pe ssoa , e la se r ve
c om o a pe ssoa e m c om pa r a ç ã o c om a qua l e u de f ino a m im m e sm a .
( Algum a s pe squisa s suge r e m que a s c r ia nç a s pe r c e be m a distinta
dive r sida de e ntr e ir m ã os/ir m ã s be m a nte s de se se pa r a r e m por
c om ple to da m ã e .) Se m e lha nç a e dif e r e nç a , intim ida de e dive r sida de
— ne nhum a de ssa s c oisa s pode se r supe r a da . Aque le pa r a doxo, a que la
te nsã o, e xiste m no pr ópr io â m a go do r e la c iona m e nto.

I r m ã os/ir m ã s do m e sm o se xo pa r e c e m se r um pa r a o outr o,
pa r a doxa lm e nte , ta nto o e u ide a l qua nto o que Jung c ha m a "a
som br a ". Ele s e stã o e nvolvidos num pr oc e sso m útuo, únic o e
r e c ípr oc o de a utode f iniç ã o. Em bor a a f ilha c onc e ba a m ã e ta nto
qua nto a m ã e c onc e be a f ilha , o r e la c iona m e nto m ã e - f ilha nã o é tã o
sim é tr ic o qua nto o r e la c iona m e nto ir m ã - ir m ã . É c la r o que m e sm o
e ntr e ir m ã s e xiste a lgum a a ssim e tr ia , a lgum a hie r a r quia ; a or de m de
na sc im e nto e a ida de r e la tiva f a ze m c e r ta dif e r e nç a . Ma s, a o
c ontr á r io da e sm a ga dor a e qua se sa gr a da dif e r e nç a que se pa r a a m ã e
e o be bê , a s dif e r e nç a s e ntr e ir m ã s sã o sutis e r e la tiva s, num a e sc a la
pr of a na . As dif e r e nç a s e ntr e ir m ã s pode m se r ne goc ia da s, tr a ba lha da s
e r e de f inida s por e la s pr ópr ia s. De m odo ge r a l, o tr a ba lho de
a utode f iniç ã o m útua pa r e c e pr osse guir a tr a vé s de um a pola r iza ç ã o
que se m ic onsc ie nte m e nte e xa ge r a a s dif e r e nç a s pe r c e bida s e r e pa r te
os a tr ibutos e ntr e a s ir m ã s ( "Eu sou a inte lige nte , e la é a bonita ") .
Ta m bé m é f r e que nte que a s ir m ã s pa r e ç a m r e pa r tir os pa is e ntr e e la s
( "Eu sou a ga r otinha do pa pa i, voc ê a da m a m ã e ") . Eu sou que m e la
nã o é . Ela é o que e u m a is gosta r ia de se r m a s a c ho que nunc a se r e i,
e també m o que m a is m e orgulho de não se r m a s te nho m e do de vir a
se r.

A ir m ã é dif e r e nte — dif e r e nte a té m e sm o da nossa a m iga m a is


íntim a ( e m bor a e ssa a m iga possa m uita s ve ze s se r vir c om o ir m ã -
substituta ) — pois "se r ir m ã " é um r e la c iona m e nto a tr ibuído, nã o
e sc olhido. Esta m os liga da s à nossa ir m ã de um m odo c om o nunc a
e sta r e m os a um a a m iga . John Bowlby diz que a c oisa m a is im por ta nte
sobr e os ir m ã os é a sua familiaridade — os ir m ã os pode m f a c ilm e nte
tor na r- se um a f igur a de a pe go, a que m nos volta m os qua ndo
c a nsa dos, f a m intos, doe nte s, a la r m a dos ou inse gur os. Os ir m ã os
ta m bé m se r ve m c om o c om pa nhe ir os de br inc a de ir a s, m a s se u pa pe l é
dif e r e nte : busc a m os um c om pa nhe ir o de br inc a de ir a s qua ndo e sta m os
de bom hum or e c onf ia nte s e o que que r e m os é , e xa ta m e nte , br inc a r.
O r e la c iona m e nto c om os ir m ã os é pe r m a ne nte , dur a a vida toda e é
qua se im possíve l de sa ta r os la ç os por c om ple to. ( P ode m os nos
divor c ia r m a is c onc lusiva m e nte de um pa r c e ir o do que de um
ir m ã o/ir m ã .) E, c om o e ssa pe r m a nê nc ia a j uda a f a ze r de le o
r e la c iona m e nto no qua l pode m os e xpr e ssa r hostilida de e a gr e ssã o
c om m a is se gur a nç a — c om m a is se gur a nç a a té que no
r e la c iona m e nto c om nossos pa is, pois nunc a som os tã o de pe nde nte s
dos ir m ã os qua nto som os de pe nde nte s do pa i e da m ã e na inf â nc ia ( na
im a gina ç ã o, som os se m pr e ) — o la ç o e ntr e ir m ã os/ir m ã s do m e sm o
se xo ta lve z se j a o m a is te nso, o m a is volá til e a m biva le nte que j a m a is
c onhe c e r e m os.

De sc obr i que o a nse io por um r e la c iona m e nto c om a ir m ã é se ntido


a té m e sm o por m ulhe r e s que nã o tê m ir m ã s biológic a s e , ta m bé m ,
que toda s nós busc a m os por "e la " e m m uita s substituta s a o longo da
nossa vida .

A I r m ã e o I r m ã o sã o a quilo que Jung c ha m a r ia a r qué tipos, tã o


pr e se nte s na nossa vida psíquic a {inde pe nde nte m e nte da e xpe r iê nc ia
lite r a l) qua nto a Mã e e o P a i. Com o todos os a r qué tipos, a I r m ã
c ontinua m e nte r e a pa r e c e sob f or m a pr oj e ta da ou "de tr a nsf e r ê nc ia " e
te m um a spe c to inte r ior. O e xa m e do signif ic a do de "se r ir m ã " e m
nossa s vida s e xige a te nç ã o a os tr ê s m odos de se r : o m odo da ir m ã
lite r a l, o m odo da ir m ã substituta e o m odo da ir m ã inte r ior ( o
a r qué tipo) .
Eu sou que m e la nã o é . A ir m ã inte r ior — o m e u e u ide a l e a m inha
som br a num a únic a e e str a nha ir m ã — a pa r e c e de m odo tã o
signif ic a tivo no pr oc e sso de individua ç ã o que e la e xiste que r e xista a
ir m ã lite r a l ou nã o. Ainda a ssim , c om o todos os a r qué tipos, e la e xige
que a tom e m r e a l e pa r tic ula r iza da , e xige que a tr a ga m pa r a o m undo
e xte r ior da s im a ge ns dif e r e nc ia da s. Qua ndo nã o e xiste um a ir m ã r e a l,
pa r e c e m se m pr e e xistir ir m ã s im a giná r ia s ou ir m ã s substituta s.
Me sm o qua ndo e xiste um a ir m ã r e a l, é f r e que nte que e xista m f igur a s
im a giná r ia s ou substituta s, c om o se a ir m ã r e a l nã o f osse a de qua da o
ba sta nte pa r a c a r r e ga r ple na m e nte o a r qué tipo; por isso o a r qué tipo
pr e c isa r ia se r im a gina do, pe r sonif ic a do. A I r m ã a pa r e c e c om o r osto
e spe c íf ic o de um a a m iga , um a f igur a onír ic a , um a pe r sona ge m de
livr o ou um a he r oína m itológic a .

Com pr ove i que a I r m ã é r e a lm e nte um a da que la s f a nta sia s pr im a is


que Fr e ud viu c om o a tiva s na nossa vida psíquic a , inde pe nde nte m e nte
de e xpe r iê nc ia histór ic a , pe la f r e quê nc ia c om que m ulhe r e s se m
ir m ã s c om pa r e c ia m a os m e us c ur sos sobr e ir m ã s; e ssa s m ulhe r e s
sa bia m que , ta m bé m e la s, pr e c isa va m tr a ba lha r o signif ic a do de sse
r e la c iona m e nto e m sua s vida s. A pr im e ir a ve z que isso a c onte c e u,
pe rgunte i a m im m e sm a : "Que te nho a dize r a e ssa m ulhe r e s? O que
e u se i sobr e a m ulhe r que nunc a te ve um a ir m ã biológic a ?" E e ntã o
le m br e i: "Se i ba sta nte , te nho m uito a dize r, c om c e r te za ." P ois te nho
um a m ã e que e r a f ilha únic a , e um a f ilha que só te m ir m ã os hom e ns.
Minha m ã e c ontou- m e c om o e spe r a va a nsiosa que e u c r e sc e sse pa r a
que e la pude sse , f ina lm e nte , te r um a ir m ã ; e e u se i que , c om o sutil
c ontr a ponto a o la ç o m ã e - f ilha que m e une à m inha f ilha , e xiste
ta m bé m um la ç o ir m ã - ir m ã .

E ta m bé m pe r c e bo c om o a ide ia que m inha m ã e f a z de "se r ir m ã " é


m a tiza da pe lo f a to de e la nã o te r tido um a ir m ã qua ndo c r ia nç a . Ela
ide a liza e sse r e la c iona m e nto; e la vê c om o la ç os ir m ã - ir m ã a nossa
intim ida de , m a s nã o a nossa r iva lida de ; e c om o pode r ia m inha m ã e
pe r c e be r o va lor dos te nsos m om e ntos de inte r a ç ã o e ntr e m inha ir m ã
e e u qua ndo é r a m os j ove ns? P or m a is de c inque nta a nos, os e nc ontr os
e ntr e m inha m ã e e sua c unha da f or a m c onta m ina dos por um a inve j a
m utua m e nte obse ssiva e , no e nta nto, j a m a is oc or r e u à m inha m ã e que
e la s m a ntinha m um r e la c iona m e nto ir m ã - ir m ã . Em m inha f ilha , a
a usê nc ia de um a ir m ã biológic a m ostr a - se de m odo dif e r e nte : c om o
e la c r e sc e u e ntr e ir m ã os hom e ns, os hom e ns tê m pouc o m isté r io pa r a
e la ; e la se volta pa r a a s m ulhe r e s c om o a m iga s a m or osa s — e c om o
ir m ã s.

Da r o nom e de a r qué tipo à I r m ã a j uda a e xpr e ssa r a m inha se nsa ç ã o


de que e xiste um a dim e nsã o tr a nspe ssoa l, e xtr a - r a c iona l e re ligiosa no
"se r ir m ã "; um a dim e nsã o que dota toda s a s f igur a s r e a is sobr e a s
qua is "tr a nsf e r im os" o a r qué tipo, de um a a ur a num inosa m e nte
de m onía c a ou divina . Contudo, nã o que r o dize r que e xiste a lgum a
e ssê nc ia unive r sa l e a - histór ic a no f a to de "se r ir m ã ". O ga tilho que
a c iona um a r qué tipo é se m pr e a e xpe r iê nc ia pa r tic ula r ; o gr a u e m
que e ssa s e xpe r iê nc ia s sã o c om pa r tilha da s, e m que r e c or r e m e
e voc a m r e sposta s se m e lha nte s de ve se m pr e se r e xplor a do, nã o
a pe na s a ssum ido. Ta m bé m f ique i pr of unda m e nte im pr e ssiona da pe la
obse r va ç ã o de Fr e ud de que , e m bor a te nha m os tr a nsf or m a do o a m or
pa is- f ilhos e m a lgo sa gr a do, m a ntive m os o c a r á te r pr of a no do a m or
f r a te r no. Eu pr ópr ia vive nc ie i o a r qué tipo da I r m ã c om o a lgo m e nos
e sm a ga dor a m e nte num inoso que o a r qué tipo da Mã e . A sa ntida de da
I r m ã é , de a lgum m odo, pr opor c iona l à quilo que c a r a c te r iza a m inha
pr ópr ia a lm a : e la é m ulhe r, nã o de usa . Me u e nc ontr o c om a m or ta l
P siquê oc or r e num a dim e nsã o dif e r e nte do m e u e nc ontr o c om
P e r sé f one , a de usa c om que m inic ie i m inha busc a por Ela .

A som br a é r e le va nte a o nosso inte r e sse nos ir m ã os/ir m ã s por que Jung
diz que nos m itos, na lite r a tur a e nos nossos sonhos, a som br a é
ge r a lm e nte r e pr e se nta da c om o um "ir m ã o". Jung se ntia um f a sc ínio
e spe c ia l pe lo que c ha m a va "o te m a dos dois ir m ã os hostis"; um te m a
que , pa r a e le , sim boliza va toda s a s a ntíte se s e , de m odo e spe c ia l, a s
dua s a bor da ge ns oposta s no tr a to c om a inf luê nc ia pode r osa do
inc onsc ie nte : ne ga ç ã o ou a c e ita ç ã o, r e a lism o ou m istic ism o. O e studo
de sse te m a se m pr e r e m e tia Jung a os dois ir m ã os do c onto de E. T. A.
Hoff m a nn, The De v il' s Elix ir [ O Elixir do Dia bo] . A inte r pr e ta ç ã o que
Jung of e r e c e de sse c onto m ostr a que a ne ga ç ã o e o m e do que o
pr ota gonista se nte do se u m a lic ioso e sinistr o ir m ã o le va m à r igide z e
à e str e ite za de m e nte , a um a inf le xibilida de viole nta , à
unidim e nsiona lida de do "hom e m se m som br a ".1

Jung a c r e dita que , e m ge r a l, a pr im e ir a ta r e f a pa r a o va r ã o de m e ia -


ida de é a pr e nde r a r e liga r- se c om a f igur a de sse ir m ã o. A a pa r e nte
im possibilida de e stim ula a r e gr e ssã o à inf â nc ia m a s, c om o os m e ios
que e ntã o f unc iona va m nã o e stã o m a is disponíve is, a r e gr e ssã o
ultr a pa ssa a pr im e ir a inf â nc ia e pe ne tr a o le ga do da vida a nc e str a l.
De spe r ta m , e ntã o, a s im a ge ns m itológic a s e os a r qué tipos e r e ve la - se
um m undo e spir itua l inte r ior, de c uj a e xistê nc ia ne m se que r
suspe itá va m os. O c onf r onto c om a som br a a r que típic a é c om o um a
e xpe r iê nc ia pr im or dia l do nã o- e go, o c om ba te c ontr a um opone nte
inte r ior que la nç a um de sa f io que nos inic ia no tr a ba lho de c he ga r a
um a c or do c om o inc onsc ie nte .

No e nta nto, a s m a is pr of unda s r e f le xõe s de Jung sobr e o signif ic a do


inte r ior de "se r ir m ã o" se inspir a r a m , nã o nos ir m ã os a nta gônic os, e
sim nos Diósc ur os gr e gos: os gê m e os Ca stor e P ólux, um m or ta l e o
outr o im or ta l, tã o de vota dos um a o outr o que ne m na m or te que r e m
se pa r a r- se . Em se u e nsa io sobr e o a r qué tipo do r e na sc im e nto, Jung
e sc r e ve : Som os a que le pa r de Diósc ur os, um dos qua is é m or ta l e o
outr o im or ta l, e que , e m bor a se m pr e j untos, j a m a is se r ã o um só...
Ta lve z pr e f e r ísse m os se r se m pr e "e u" e na da m a is. Ma s nos
de f r onta m os c om a que le a m igo ou inim igo inte r ior, e se e le é nosso
a m igo ou inim igo, de pe nde de nós m e sm os.

Na s r e pr e se nta ç õe s m itológic a s da a m iza de e ntr e dois hom e ns, Jung


vê um r e f le xo e xte r ior do r e la c iona m e nto c om e sse a m igo inte r ior da
a lm a , e m que m a na tur e za gosta r ia de nos tr a nsf or m a r — a que la
outr a pe ssoa que som os e e m que m , c ontudo, j a m a is nos
tr a nsf or m a m os por c om ple to; a que la pe r sona lida de m a ior e m a is
a m pla que a m a dur e c e de ntr o de nós, o Eu.2

Qua ndo r e f le tim os sobr e e ssa f igur a inte r ior do nosso m e sm o se xo —


que pode se r positiva ou ne ga tiva , que é ou som br a ou Eu — tom a - se
e vide nte que a c onc e pç ã o de Jung sobr e o ir m ã o inte r ior te m m uito
e m c om um c om a f igur a que Otto Ra nk c ha m a o "Duplo". Ta nto no
se u tr a ba lho inic ia l, The M y th of lhe Birth of the M e ro [ O Mito do
Na sc im e nto do He r ói] , qua nto no se u poste r ior e a br a nge nte e studo
sobr e o inc e sto na m itologia e na lite r a tur a , Ra nk e xplor ou a
im por tâ nc ia do ir m ã o hostil e nqua nto te m a m itológic o e lite r á r io
r e c or r e nte . Em ge r a l, os ir m ã os sã o gê m e os e qua se se m pr e um
pr e c isa m or r e r pa r a sa lva r a vida do outr o. Em se us e sc r itos
subse que nte s. Ra nk inc lui e sse s ir m ã os no te m a m a is ge né r ic o do
Duplo. O ir m ã o a gor a é ba sic a m e nte visto c om o um a f igur a inte r ior,
um alte r e go. O Duplo pode r e pr e se nta r o e u m or ta l ou o e u im or ta l;
pode se r te m ido c om o im a ge m da nossa m or ta lida de ou louva do c om o
sím bolo da nossa im pe r e c ibilida de . O Duplo é a Mor te ou a Alm a
I m or ta l. Ele inspir a m e do e a m or, de spe r ta o "e te r no c onf lito" e ntr e a
nossa "ne c e ssida de de se m e lha nç a e de se j o de dif e r e nç a ". O Duplo
a te nde à ne c e ssida de de um e spe lho, de um a som br a , de um r e f le xo.
Ele pa r e c e a ssum ir um a vida inde pe nde nte , m a s e stá tã o intim a m e nte
liga do à e ne rgia vita l do he r ói que a de sgr a ç a lhe a dvé m qua ndo e le
te nta solta r- se por c om ple to do he r ói.

Ra nk le m br a - nos que o hom e m pr im itivo "c onside r a a som br a o se u


duplo m iste r ioso, um se r e spir itua l que , no e nta nto, é r e a l" e que o
nom e gr e go pa r a e sse duplo e m f or m a de som br a — e sse a spe c to do
e u que sobr e vive à m or te e que e stá a tivo nos sonhos de pois que o e go
c onsc ie nte se r e tir a — e r a psy c he . E por isso que Ra nk c onside r a que
o r e la c iona m e nto c om um ir m ã o inte r ior do m e sm o se xo, um duplo,
signif ic a o r e la c iona m e nto c om o nosso pr ópr io e u inc onsc ie nte , c om
a nossa psique , c om a m or te e a im or ta lida de , No se u se ntido m a is
pr of undo, e le e xpr e ssa o nosso de se j o de de ixa r o e go m or r e r pa r a
nos unir m os a o e u tr a nsc e nde nte . Ele sim boliza o nosso a nse io de
r e ndiç ã o a a lgo m a ior que o e go.

A im a ge m do a m or f r a te r no r e pr e se nta o nosso im pulso de ir "a lé m


da psic ologia ". A pr im e ir a f a se da vida psíquic a se f a z por m e io da
dif e r e nc ia ç ã o, m a nif e sta ndo- se m uita s ve ze s c om o hostilida de ; m a s a
se gunda f a se é a lc a nç a da a tr a vé s da r e ndiç ã o e do a m or. Ma s Ra nk
a le r ta pa r a o pe r igo de tom a r isso lite r a lm e nte , e xte r na m e nte .
Ne nhum se r hum a no, c ônj uge ou ir m ã o, pode c a r r e ga r o f a r do de
de se m pe nha r o pa pe l de alte r e go pa r a outr o. "Esse e ste nde r a m ã o
pa r a a lgo m a ior... te m or ige m na ne c e ssida de individua l de se
e xpa ndir pa r a a lé m dos dom ínios do e u... pa r a a lgum tipo de ' a lé m ' ,.,
a o qua l e le possa se subm e te r." Ma s na da e xiste na r e a lida de que
"possa c a r r e ga r o pe so da sua e xpa nsã o". É e xtr e m a m e nte dif íc il
"pe r c e be r que e xiste um a dif e r e nç a e ntr e nossa s ne c e ssida de s
e spir itua is e nossa s ne c e ssida de s pur a m e nte hum a na s, e que a
sa tisf a ç ã o ou a r e a liza ç ã o de c a da um a de la s de ve se r e nc ontr a da e m
e sf e r a s dif e r e nte s". A f a lsa pe r sona liza ç ã o da ne c e ssida de de se r
a m a do pr e c ipita , ine vita ve lm e nte , o de se spe r o e a se nsa ç ã o de
ir r e m e diá ve l inf e r ior ida de . Ra nk e spe r a a j uda r- nos a r e c onhe c e r que
a im a ge m do duplo, c om ple m e nta r e tota liza dor, é um sím bolo que
ne nhum outr o se r hum a no pode e nc a r na r por nós; pr e c isa m os
e nte ndê - lo r e ligiosa m e nte ; vê - lo c om o um a pe r sonif ic a ç ã o da nossa
ne c e ssida de dua l de dif e r e nc ia ç ã o e se m e lha nç a , de individua lida de e
c one xã o, de vida na tur a l e im or ta lida de . As r e f le xõe s de Ra nk sobr e o
te m a dos ir m ã os le va m - no "a lé m da psic ologia ".3

Às ve ze s, a c onc e pç ã o de Jung sobr e a som br a é igua lm e nte pr of unda .


Outr a s ve ze s, e le e sc r e ve c om o se pa r tisse da pe r spe c tiva do e go, e
vê a som br a c om o um a f igur a ne ga tiva , c om o um a pe r sonif ic a ç ã o
a pe na s dos a spe c tos de sva lor iza dos e ne ga dos da nossa histór ia
pe ssoa l; a spe c tos e sse s que pr e c isa r ía m os r e inte gr a r a nte s de
e sta r m os pr ontos pa r a o ve r da de ir o tr a ba lho de individua ç ã o, que se
f a z a tr a vé s do e m ba te c om os a r qué tipos do se xo oposto. O últim o
e stá gio da j or na da e m dir e ç ã o à tota lida de psic ológic a , c om o Jung a
de sc r e ve , m a is um a ve z e nvolve um a r qué tipo que a pa r e c e c om o um a
f igur a do m e sm o se xo, o Eu. O m ode lo, qua ndo a pr e se nta do na sua
f or m a line a r, se pa r a r a dic a lm e nte os e m ba te s c om a s dua s f igur a s
inte r ior e s do m e sm o se xo, a som br a e o Eu — um a pe r te nc e a o
c om e ç o da j or na da , o outr o a o se u té r m ino. Assim , os la ç os inte r ior e s
e ntr e a som br a e o Eu sã o obsc ur e c idos. A num inosida de e a
a m biva lê nc ia ine r e nte s a f igur a do m e sm o se xo sã o a s que
pode r ía m os e spe r a r se sim ple sm e nte f a lá sse m os de la c om o nosso
ir m ã o inte r ior.
13. Meu irmão e eu

DARYL SHARP

Sozinho na que la noite , m inha m e nte r e tor nou a o te m po que pa sse i


c om Ar nold e m Zur ique . Vive r c om e le e nsinou- m e qua se ta nto sobr e
tipologia qua nto le r Jung.

Ar nold e r a um intuitivo de lir a nte . Fui busc á - lo na e sta ç ã o qua ndo e le


c he gou. Eu j á o e spe r a va há tr ê s tr e ns. Fie l a o se u tipo, sua c a r ta nã o
e r a pr e c isa . Fie l a o m e u, e u e r a .

— Alugue i um c ha lé f or a da c ida de — inf or m e i- o a r e spe ito e nqua nto


a pa nha va a sua m a la . O f e c ho e sta va que br a do e a s c or r e ia s j á
tinha m de sa pa r e c ido. Um a r odinha f a lta va . — Sã o doze m inutos e
m e io de tr e m e e le nunc a a tr a sa . O c ha lé te m ve ne zia na s ve r de s e
pa pe l de pa r e de de bolinha s. A pr opr ie tá r ia é um a m or, pode m os
m obilia r a c a sa do j e ito que quise r m os.

— P e r f e ito! — disse Ar nold, se gur a ndo um j or na l sobr e a c a be ç a .


Chovia . Ele nã o tinha c ha pé u e e sque c e r a de tr a ze r a c a pa de c huva ,
E c a lç a va c hine lo, sa nto De us! Nã o c onse guim os a c ha r se u ba ú, pois
e le o de spa c ha r a pa r a Luc e r na .

— Luc e r na , Zur ique ... tudo é Suíç a pa r a m im — f ilosof ou.

Foi ba sta nte dive r tido no c om e ç o. Ne ssa é poc a nã o nos c onhe c ía m os


dir e ito. Eu nã o sa bia o que m e e spe r a va . Nunc a e stive r a tã o pr óxim o
de a lgué m tã o... be m , tã o dife re nte .

O te m po na da signif ic a va pa r a Ar nold. Ele pe r dia o tr e m , e sque c ia


c om pr om issos. Esta va se m pr e a tr a sa do pa r a a s a ula s e qua ndo,
f ina lm e nte , e nc ontr a va a sa la c e r ta , nã o tinha lá pis ne m pa pe l. Um
dia tinha r ios de dinhe ir o, no outr o nã o tinha na da , pois nã o c ontr ola va
a s de spe sa s.

Nã o distinguia o le ste do oe ste e se pe r dia se m pr e que sa ía de c a sa . E


à s ve ze s de ntr o de c a sa .

— Voc ê e stá pr e c isa ndo de um c ã o- guia — gr a c e j e i.

— Nã o e nqua nto voc ê e stive r por pe r to — r e tr uc ou sor r indo.

Ele e sque c ia o f or no liga do à noite . Nunc a a pa ga va a s luze s. As


pa ne la s f e r via m e de r r a m a va m e o a ssa do vir a va c a r vã o e nqua nto
e le , se nta do na va r a nda , a dm ir a va o c é u. A c ozinha im pr e gnou- se
pa r a se m pr e do c he ir o de tor r a da que im a da . Ele pe r dia a s c ha ve s, a
c a r te ir a , a s a nota ç õe s de a ula s, o pa ssa por te . Nunc a tinha um a c a m isa
lim pa . Com um a sur r a da j a que ta de c our o, j e a ns de f undo f r ouxo e
m e ia s de spa r e lha da s, m a is pa r e c ia um va ga bundo.

Se u qua r to vivia na m a ior de sor de m , c om o se um f ur a c ã o tive sse


pa ssa do por a li.

— Eu f ic o louc o só de olha r pa r a voc ê — c a nta r ola va e u, a j e ita ndo a


gr a va ta dia nte do e spe lho.

Eu gosta va de m e ve stir c om e le gâ nc ia ; isso f a zia c om que m e


se ntisse be m . Sa bia o luga r e xa to de c a da c oisa . Minha e sc r iva ninha
e r a be m orga niza da e m e u qua r to se m pr e a r r um a do. Eu a pa ga va a s
luze s qua ndo sa ía de c a sa e tinha um e xc e le nte se nso de dir e ç ã o. Nã o
pe r dia c oisa a lgum a e e r a se m pr e pontua l. Sa bia c ozinha r e c ostur a r.
Sa bia e xa ta m e nte qua nto dinhe ir o tinha no bolso. Na da m e e sc a pa va ,
e u m e le m br a va de todos os de ta lhe s.

— Voc ê nã o vive na r e a lida de — c om e nte i, e nqua nto Ar nold se


a ve ntur a va a f r ita r um ovo, Um a ve r da de ir a e pope ia . P r im e ir o nã o
a c ha va a f r igide ir a , de pois c oloc ou- a sobr e um bic o de gá s a pa ga do.

— Nã o na r e a lida de que v o c ê c onhe c e — r e sponde u, um pouc o


m a goa do. — Dia bo! — pr a gue j ou. Tinha se que im a do de novo.

Lute i pa r a gosta r do Ar nold, Eu que r ia gosta r de le . Sua na tur e za


e xpa nsiva e sua e xube r â nc ia ina ta s e r a m e nc a nta dor a s. Eu a dm ir a va
se u a r de de sc uida da c onf ia nç a . Ele e r a a a lm a de qua lque r f e sta .
Ada pta va - se f a c ilm e nte à s nova s situa ç õe s. Er a m uito m a is
a ve ntur e ir o do que e u. Em qua lque r luga r que ia , f a zia a m igos. E os
tr a zia pa r a de ntr o de c a sa .

Ele e r a dota do de um a m iste r iosa pe r c e pç ã o. Se m pr e que m e via


a tola do na r otina , tinha a lgum a novida de a suge r ir. Sua m e nte e r a
f é r til; f e r vilha va de novos pla nos e ide ia s. Se us pa lpite s e m ge r a l
e sta va m c e r tos. Er a c om o se e le tive sse um se xto se ntido, e nqua nto e u
m e r e str ingia a os c inc o c ostum e ir os, Minha visã o e r a m unda na —
onde e u via um a "c oisa " ou um a "pe ssoa ", Ar nold via a a lm a de la .

Ma s c onsta nte m e nte surgia m pr oble m a s e ntr e nós. Qua ndo e le


m a nif e sta va a inte nç ã o de f a ze r a lgum a c oisa , e u o tom a va a o pé da
le tr a . Eu a c r e dita va que e le que r ia dize r a quilo que tinha dito, que e le
que r ia f a ze r a quilo que a nunc ia r a . I sso e r a e spe c ia lm e nte pe r tur ba dor
qua ndo e le de ixa va de a pa r e c e r na hor a e luga r m a r c a dos. Ac onte c ia
c om ba sta nte f r e quê nc ia .

— Olhe a qui — e u r e c la m a va —, e u e sta va c onta ndo que voc ê vinha .


Até c om pr e i os ingr e ssos. Onde é que voc ê e sta va ?

— Tive que pa r a r no c a m inho — r e spondia , na de f e nsiva —, um a


outr a c oisa que a pa r e c e u e e u nã o c onse gui r e sistir.

— Voc ê é instá ve l, nã o dá pa r a c onf ia r e m voc ê . Voc ê é supe r f ic ia l.


Vive na s nuve ns, E ne m te m um a opiniã o f or m a da !

Ma s nã o e r a a ssim que Ar nold via a s c oisa s.

— Eu só e xplor o a s possibilida de s — e xplic a va qua ndo e u pe la dé c im a


ve z o a c usa va de se r ir r e sponsá ve l ou de , pe lo m e nos, m e e nga na r, —
Ela s nã o sã o r e a is a té se r e m e xpr e ssa s e , qua ndo e u a s e xpr e sso, e la s
ga nha m f or m a . Ma s isso nã o que r dize r que pr e c iso m e pr e nde r a
e la s. Algum a outr a c oisa m e lhor pode m e a c onte c e r. Eu nã o f ic o
a m a r r a do à s c oisa s que digo, Nã o é m inha c ulpa se voc ê tom a tudo
tã o a o pé da le tr a .

E pr osse guia :

— As intuiç õe s sã o c om o pa ssa r inhos voa ndo e m c ír c ulos na m inha


c a be ç a . Ela s vê m e vã o. Ta lve z e u a s a c om pa nhe , ta lve z nã o; e u
nunc a se i, m a s pr e c iso de te m po pa r a ve r if ic a r o voo de la s.

Um dia , qua ndo le va nte i, e nc ontr e i m a is um a pa ne la va zia c hia ndo


e m c im a do bic o de gá s a c e so. Ar nold se a r r a sta va pa r a f or a da
c a m a , pr oc ur a ndo os óc ulos.

— Voc ê viu o m e u ba r be a dor ? — pe rguntou.

— Vá pa r a o inf e r no! — gr ite i, f ur ioso, a ga r r a ndo um pe ga dor de


pa ne la . — Qua lque r dia de sse s voc ê a inda va i bota r f ogo na c a sa . Nós
dois va m os vir a r c inza . E qua ndo vie r e m r e c olhe r a s c inza s num a
ur na pa r a m a nda r pa r a os nossos pa r e nte s, vã o dize r "Pobrezinhos! Dois
rapazes com tanto futuro! Pena que um deles fosse um paspalhão!" Arnold
entrou na cozinha no instante em que eu jogava a panela queimada porta afora.

— Ah, é ? — disse e le . — Foi voc ê que f e z um j a nta r pa r a a Cy nthia


onte m à noite . Eu ne m e sta va e m c a sa .

Er a ve r da de . Fique i r ubr o de ve rgonha . Minha r e dom a se e stilha ç ou.


A r e a lida de que e u c onhe c ia se e xpa ndiu.

— De sc ulpe — m ur m ur e i, hum ilde —, e u tinha e sque c ido.

Ar nold ba te u pa lm a s e se pôs a da nç a r pe la c ozinha .


— Be m - vindo à r a ç a hum a na ! — c a nta va e le . E, c om o se m pr e ,
de sa f ina do.

Só e ntã o pe r c e bi que Ar nold e r a a m inha som br a . Foi um a r e ve la ç ã o.


I sso nã o de ve r ia te r sido um a sur pr e sa por que j á ha vía m os de f inido
que nossos c om ple xos e r a m r a dic a lm e nte dif e r e nte s, m a s f oi. E m e
a tingiu c om o um r a io. Eu disse isso a o Ar nold.

— Nã o se inc om ode — r e sponde u. — Voc ê ta m bé m é a m inha


som br a . E por isso que voc ê m e f a z subir pe la s pa r e de s.

Abr a ç a m o- nos. Ac ho que e sse inc ide nte sa lvou o nosso


r e la c iona m e nto.

Tudo isso a c onte c e u há m uito te m po. Ne sse s a nos que se pa ssa r a m ,


tor ne i- m e m a is pa r e c ido c om o Ar nold. E e le , m a is pa r e c ido c om igo.
Ele j á distingue a e sque r da da dir e ita e a té a pr e nde u a f a ze r c r oc hê .
Sua a te nç ã o a os de ta lhe s ge r a lm e nte é m a is a guç a da que a m inha . Ele
m or a sozinho e te m um j a r dim m a r a vilhoso. Conhe c e o nom e de toda s
a s f lor e s, e m la tim .

Enqua nto isso, sa io pa r a j a nta r e à s ve ze s va gue io pe los ba r e s a té o


na sc e r do dia . Extr a vio pa pé is va liosos. Esque ç o nom e s e núm e r os de
te le f one . P e r c o- m e num a c ida de e str a nha . Explor o possibilida de s
e nqua nto a s c oisa s se e m pilha m à m inha volta . Se nã o tive sse um a
f a xine ir a , e u logo se r ia sote r r a do pe lo lixo.

Esse s de se nvolvim e ntos sã o a s c onse quê nc ia s ine spe r a da s do f a to de


voc ê c he ga r a c onhe c e r a sua som br a e inc or por á - la à sua vida . Um a
ve z que e sse pr oc e sso se põe e m m ovim e nto, tor na - se dif íc il de tê - lo.
Voc ê nã o pode volta r a se r a quilo que e r a , m a s o que pe r de de um
la do ga nha do outr o. Voc ê pe r de um pouc o da quilo que f oi, m a s
a c r e sc e nta um a dim e nsã o que nã o e xistia a nte s. Onde voc ê pe ndia
pa r a um la do, a gor a voc ê e nc ontr a o e quilíbr io. Apr e nde a a pr e c ia r
a que le s que f unc iona m de m odo dif e r e nte e de se nvolve um a nova
a titude e m r e la ç ã o a si m e sm o.

Ve j o Ar nold de te m pos e m te m pos. Ainda som os "ir m ã os na som br a ",


m a s a gor a a s posiç õe s f or a m tr oc a da s.

Conto- lhe m inha a ve ntur a m a is r e c e nte . Ele sa c ode a c a be ç a .

— Voc ê , he in?, ' se u' gr a nde va dio! — br inc a , soc a ndo o m e u om br o.


Ar nold de sc r e ve c a lm a s noite s a o pé da la r e ir a , c om uns pouc os
a m igos íntim os, e diz que nunc a m a is que r volta r a via j a r. Justo e le !
Qua ndo e u o c onhe c i, nã o ha via o que o f ize sse f ic a r e m c a sa .
— Voc ê , he in?, ' se u' gr a nde c ha to m onótono! — br inc o, soc a ndo o se u
om br o.

14. O e nc ont r o do opost o no par c e ir o c onj ugal

M AG G IE SCARF

Um f a to da r e a lida de c onj uga l, be m c onhe c ido pe los e spe c ia lista s


ne ssa á r e a , é que a s qua lida de s c ita da s pe los pa r c e ir os c om o a s que
pr im e ir o os a tr a ír a m um pa r a o outr o c oinc ide m c om aque las que são
ide ntific adas c omo as fonte s de c onflito no de c or r e r do
r e la c iona m e nto. As qua lida de s "a tr a e nte s" r e c e be m , c om o te m po,
novos r ótulos; tor na m - se a s c oisa s m á s e dif íc e is do pa r c e ir o, os
a spe c tos de sua pe r sona lida de e c om por ta m e nto que sã o vistos c om o
pr oble m á tic os e ne ga tivos, P or e xe m plo, o hom e m que se se ntiu
a tr a ído pe lo c a lor, e m pa tia e f á c il soc ia bilida de da e sposa pode r á , e m
a lgum m om e nto f utur o, r e de f inir e sse s m e sm os a tr ibutos c om o
"e str idê nc ia ", "intr om issã o" e um a m a ne ir a "supe r f ic ia l" de se
r e la c iona r c om os outr os. A m ulhe r que inic ia lm e nte va lor iza va o
m a r ido pe la sua c onf ia bilida de , pr e visibilida de e pe lo se nso de
se gur a nç a que e le lhe of e r e c ia , pode r á , a o longo do c a m inho,
c onde na r e ssa s m e sm a s qua lida de s c om o te diosa s, e nf a donha s e
r e dutor a s. E é a ssim que os a dm ir á ve is e m a r a vilhosos tr a ç os do
pa r c e ir o tor na m - se a s c oisa s f e ia s e te r r íve is que a pe ssoa gosta r ia de
te r pe r c e bido a nte s! Em bor a e ssa s qua lida de s se j a m se m pr e
idê ntic as, e m a lgum m om e nto do r e la c iona m e nto e la s ga nha m nom e s
dif e r e nte s.

As c oisa s m a is a tr a e nte s no pa r c e ir o ta m bé m sã o, e m ge r a l, a s que


tê m m a ior c a rga de se ntim e ntos a m biva le nte s. É por isso que m inha s
c onve r sa s c om c a sa is se m pr e c om e ç a m do m e sm o m odo que inic ie i a
m inha e ntr e vista c om os Br e tt, se nta dos f a do a la do à m inha f r e nte . —
Diga m - m e — pe rgunte i a o j ove m c a sa l —, qua l f oi a pr im e ir a c oisa
que os a tr a iu no outr o? — Me u olha r pa ssou de La ur a , a te nta e
obse r va dor a , pa r a o r osto lige ir a m e nte c a nsa do de se u m a r ido Tom ,
— O que é que voc ê a c ha que a f e z e spe c ia l pa r a e le ... e voc ê ,
e spe c ia l pa r a e la ?

P or m a is m unda na que m e pa r e c e sse a pe rgunta , e la pr ovoc ou no


c a sa l a c ostum e ir a r e a ç ã o de sur pr e sa e a té m e sm o de susto. La ur a
r e spir ou f undo, pe gou um a m e c ha de se us longos c a be los lour o- e sc ur o
e la nç ou- a sobr e o om br o. Tom pa r e c ia e sta r a ponto de sa lta r m a s,
e m ve z disso, a f undou- se a inda m a is no m a c io sof á m a r r om .
Vir a r a m - se um pa r a o outr o, c om um sor r iso; La ur a e nr ube sc e u e ,
e ntã o, os dois c a ír a m na r isa da .

O que f ic ou c la r o é que os Br e tt via m a si m e sm os c om o tipos


hum a nos m uito dif e r e nte s — c om o polos opostos, e m m uitos se ntidos.

Qua se no f im da nossa pr im e ir a c onve r sa , por e xe m plo, e u lhe s


pe rgunte i: — Se a lgué m que voc ê s dois c onhe c e m ... diga m os, um
a m igo ou um a pe ssoa da f a m ília ... e stive sse de sc r e ve ndo o
r e la c iona m e nto de voc ê s pa r a a lgué m de f or a , o que voc ê s a c ha m
que e le dir ia ?

— I m pr ová ve l — r e sponde u Tom de im e dia to, c om um sor r iso.

— I m pr ová ve l? — P or quê ? — pe rgunte i. — Ah, se i lá — e le e nc olhe u


os om br os —, le r j or na l ou ir à igr e j a , c inism o ou f é e m De us... Eu
sou m uito lógic o e r e se r va do, e a La ur a é e xa ta m e nte o oposto.

Ele he sitou e olhou pa r a La ur a , que a sse ntia c om a c a be ç a e m a ntinha


um a e xpr e ssã o a o m e sm o te m po c om pungida e a le gr e . — Voc ê é
c a lm o e pa ssivo — a dm itiu e la —, e e u e stou se m pr e a c e sa , pr onta
pa r a o que de r e vie r. — Ele c onc or dou e m e disse : — Nós som os
dif e r e nte s e m tudo o que se possa im a gina r...

Na ve r da de , c om o m uitos c a sa is que pa r e c e m vive r e m c a sa m e nto de


opostos, e le s e sta va m lida ndo c om o m a is pe ne tr a nte de todos os
pr oble m a s c onj uga is: distinguir qua is os se ntim e ntos, de se j os,
pe nsa m e ntos, e tc . que e stã o de ntr o de um e qua is os que e stã o de ntr o
do pa r c e ir o, Esse dile m a e stá r e la c iona do c om a de m a r c a ç ã o da s
f r onte ir a s pe ssoa is. A pr inc ipa l c a usa de a ngústia nos r e la c iona m e ntos
íntim os e r e sponsá ve is é , na ve r da de , um a c onf usã o bá sic a e ntr e
sa be r e xa ta m e nte o que e stá a c onte c e ndo na nossa pr ópr ia c a be ç a e o
que e stá a c onte c e ndo na c a be ç a do pa r c e ir o.

Muitos c a sa is, c om o os Br e tt, pa r e c e m se r polos opostos — dua s


pe ssoa s totalme nte dife re nte s. Sã o c om o m a r ione te s num e spe tá c ulo:
c a da um de le s de se m pe nha um pa pe l be m dif e r e nte do outr o na pa r te
do pa lc o que e stá a be r ta a o olha r do obse r va dor obj e tivo; m a s, f or a
da vista , os c or dõe s da s m a r ione te s se e m a r a nha m . Ele s e stã o
pr of unda m e nte e nr e da dos e e m oc iona lm e nte inte r liga dos, a ba ixo do
níve l da pe r c e pç ã o c onsc ie nte de c a da um . P ois c a da um de le s
inc or por a , c a r r e ga e e xpr e ssa pe lo outro os a spe c tos r e pr im idos do e u
( o se r inte r ior ) do outr o.

Exa m ina ndo o r e la c iona m e nto dos Br e tt, o que pa r e c ia e sta r


oc or r e ndo e r a um a divisã o e m oc iona l do tr a ba lho. Er a c om o se
a que le c a sa l tive sse tom a do c e r tos de se j os hum a nos, a titude s,
e m oç õe s, m odos de se r e la c iona r e se c om por ta r — um a va sta ga m a
de se ntim e ntos e r e a ç õe s que pode r ia m se r pa r te s inte gr a da s do
r e pe r tór io de uma pe ssoa — e os r e pa r tisse à m oda do "e u f ic o c om
isto e voc ê f ic a c om a quilo".

Com o a m a ior ia dos c a sa is, e le s f ize r a m e ssa "pa r tilha " por m e io de
um a c or do inc onsc ie nte , nã o- ve r ba liza do m a s m uito e f ic a z. No se u
r e la c iona m e nto, La ur a f ic a va c om o otim ism o e Tom c om o
pe ssim ism o; e la a c r e dita va e m tudo, e le e r a o c é tic o; e la que r ia
a be r tur a e m oc iona l, e le que r ia gua r da r- se pa r a si m e sm o; e la se
a pr oxim a va e e le se a f a sta va — o hom e m f ugindo da intim ida de .
Juntos, f or m a va m um orga nism o a da pta tivo ple na m e nte inte gr a do; só
que La ur a tinha que c uida r de toda a inspir a ç ã o e Tom , de toda a
e xpir a ç ã o.

No e nta nto, se La ur a , no pa lc o, pa r e c ia que r e r tota l intim ida de ,


hone stida de , inte gr ida de e unida de , f or a do pa lc o e la e Tom tinha m
r e a lm e nte um a c or do. Se m pr e que e la te nta va a pr oxim a r- se de le , o
c or dã o da a utonom ia de Tom e r a a tiva do e e le e r a im pe lido — de um
m odo qua se r e f le xo — a se a f a sta r de im e dia to. Ela de pe ndia de le
pa r a pr e se r va r o e spa ç o ne c e ssá r io e ntr e a m bos.

P ois La ur a , c om o qua lque r outr a pe ssoa , pr e c isa va de a lgum a


a utonom ia pr ópr ia — a lgum te r r itór io pe ssoa l no qua l e la pude sse se r
um a pe ssoa por dir e ito pr ópr io, busc a r se us pr ópr ios de se j os e
obj e tivos individua is. Ma s pa r a La ur a , sa tisf a ze r sua s pr ópr ia s
ne c e ssida de s inde pe nde nte s e r a pe r c e bido c om o a lgo e r r a do e
pe r igoso — a lgo que um a m ulhe r a dulta sa dia nã o f a z. P a r a e la , o
pa pe l c e r to, c om o m ulhe r, e r a c onc e ntr a r- se e m pe r m a ne c e r
p r ó x im a , no r e la c iona m e nto; e la nã o c onse guia r e c onhe c e r sua s
ne c e ssida de s a utônom a s c om o a lgo que e xistia de ntr o de la , a lgo que
e la r e a lm e nte que r ia . Ela só tinha c onsc iê nc ia da s ne c e ssida de s do e u
( o e u se pa r a do e inde pe nde nte ) na m e dida e m que e ssa s ne c e ssida de s
e xistia m no pa r c e ir o e e r a m e xpr e ssa da s pe lo pa r c e ir o.
Do m e sm o m odo, o de se j o na tur a l de Tom de se a pr oxim a r
intim a m e nte de outr a pe ssoa e r a um a ne c e ssida de que e le via , não
de ntr o de si m e sm o, m a s c om o a lgo que ba sic a m e nte e xistia e m
Laura. A ne c e ssida de de e sta r pr óxim o de sua pa r c e ir a , no c onte xto
de um r e la c iona m e nto c onf ia nte e m utua m e nte r e ve la dor, e r a vista
c om o ne c e ssida de de la. Tom nunc a se ntia isso c om o um de se j o ou
um a ne c e ssida de que se or igina va de ntr o do se u pr ópr io se r, Ele e r a , a
se us pr ópr ios olhos, a utossuf ic ie nte ; ou se j a , e le ba sta va a si m e sm o.

Ma s, a o m e sm o te m po e m que La ur a de pe ndia de Tom pa r a se a f a sta r


qua ndo e la se a pr oxim a va , Tom de pe ndia de La ur a pa r a te nta r a
a pr oxim a ç ã o a f im de se se ntir ne c e ssá r io e de se j a do — íntim o.

Em luga r de e xpr e ssa r dir e ta m e nte qua lque r de se j o ou ne c e ssida de de


intim ida de ( ou m e sm o c onsc ie ntiza r- se de sse s de se j os e se ntim e ntos e
a ssum ir a r e sponsa bilida de por e le s) . Tom pr e c isa va dissoc iá - los de
sua c onsc iê nc ia . Esse s pe nsa m e ntos e de se j os o f a zia m se ntir- se
de m a sia do e xposto, de m a sia do vulne r á ve l! Qua ndo que r ia
pr oxim ida de , e le pr e c isa va se ntir e sse de se j o c om o se vie sse da
e sposa ; e le pr e c isa va a sse gur a r- se , se m qua lque r r e c onhe c im e nto
c onsc ie nte do que e sta va f a ze ndo, de que o "c or dã o" da intim ida de de
La ur a e r a puxa do. Um a m a ne ir a de f a zê - lo, ta lve z, se r ia a dota r um a r
se ntim e nta l e a bstr a ído pa r a que e la f ic a sse a se pe rgunta r se e le nã o
e sta r ia pe nsa ndo e m Ka r e n. E e ntã o La ur a ir ia pe r se gui- lo
a nsiosa m e nte ... e m busc a do inte r c â m bio íntim o que e le pr ópr io
de se j a va .

O que a c onte c ia no r e la c iona m e nto de sse c a sa l é e xtr e m a m e nte


c om um nos c a sa m e ntos e m ge r a l. O c onf lito que os dois pa r c e ir os
e sta va m e nf r e nta ndo — um c onf lito e ntr e que r e r sa tisf a ze r sua s
pr ópr ia s ne c e ssida de s individua is e que r e r sa tisf a ze r a s ne c e ssida de s
do r e la c iona m e nto — f oi dividido igua lm e nte e ntr e e le s. Em ve z de
se r e m c a pa ze s de a dm itir que ambos que r ia m intim ida de e que ambos
que r ia m busc a r se us pr ópr ios obj e tivos inde pe nde nte s — ou se j a , que
o c onflito autonomia/intimidade e ra um c onflito que e x istia de ntro da
c abe ç a de c ada um — os Br e tt, inc onsc ie nte m e nte , f ize r a m e sse
a c or do se c r e to.

La ur a nunc a pr e c isa r ia a ssum ir c onsc ie nte m e nte sua ne c e ssida de de


um e spa ç o pe ssoa l; Tom nunc a pr e c isa r ia a dm itir pa r a si m e sm o se u
pr ópr io de se j o de se r e m oc iona lm e nte a be r to, c onf ia nte e íntim o. Ela
c a r r e ga va , pe los dois, a ne c e ssida de de intim ida de ( ne c e ssida de do
r e la c iona m e nto) . Ele c a r r e ga va , pe los dois, a ne c e ssida de de
a utonom ia ( a ne c e ssida de que c a da pe ssoa te m de pe r se guir se us
obj e tivos individua is) . La ur a , por ta nto, se m pr e pa r e c ia que r e r e sta r
um pouc o m a is pe r to e Tom se m pr e pa r e c ia que r e r e sta r m a is dista nte
e de sim pe dido.

O r e sulta do f oi que , e m ve z de um c onf lito inte r ior ( a lgo que e xistia


de ntr o do m undo subj e tivo de c a da um ) , o dile m a de sse c a sa l tor nou-
se um c onf lito in te rp e sso a l — um c onf lito que te r ia de se r
c onsta nte m e nte tr a va do e ntr e e le s.

E ssa transiç ão de um proble ma intrapsíquic o ( ou se j a , um pr oble m a


de ntr o da m e nte de um indivíduo) para um c onflito inte rpe ssoal ( ou
se j a , um a dif ic ulda de que dua s pe ssoa s e nf r e nta m ) oc or r e por m e io
da ide ntif ic a ç ã o pr oj e tiva .

Esse te r m o r e f e r e - se a um m e c a nism o m e nta l m uito pe ne tr a nte ,


tr a iç oe ir o e ge r a lm e nte de str utivo, que e nvolve a pr oj e ç ã o dos
a spe c tos ne ga dos e r e pr im idos da e xpe r iê nc ia inte r ior de um a pe ssoa
sobr e o se u pa r c e ir o íntim o e , a se guir, a pe r c e pç ã o de sse s
se ntim e ntos dissoc ia dos c om o e x iste nte s no parc e iro. Nã o a pe na s os
pe nsa m e ntos e se ntim e ntos inde se j á ve is sã o vistos c om o e sta ndo
de ntr o do pa r c e ir o, c om o ta m bé m o pa r c e ir o é e nc or a j a do, por m e io
de "de ixa s" e pr ovoc a ç õe s, a c om por ta r- se c om o se e le s lá
e stiv e sse m] E e ntã o a pe ssoa ide ntif ic a - se indir e ta m e nte c om a
e xpr e ssã o, pe lo pa r c e ir o, da s e m oç õe s, pe nsa m e ntos e se ntim e ntos
r e pr im idos.

Um dos m e lhor e s e m a is c la r os e xe m plos do m odo c om o a


ide ntif ic a ç ã o pr oj e tiva ope r a é m ostr a do pe lo hom e m tota lm e nte nã o-
a gr e ssivo e que j a m a is se e nr a ive c e . Esse hom e m , que é
singula r m e nte de stituído de r a iva , só pode pe r c e be r os se ntim e ntos de
r a iva à m e dida que e le s e xiste m num a outr a pe ssoa — na e sposa , é
m a is pr ová ve l. Qua ndo a lgo pe r tur ba dor ac onte c e a e sse hom e m que
j a m a is se e nr a ive c e , e e le e x pe rim e nta e m oç õe s de r a iva , e le nã o
te r á um c onta to c onsc ie nte c om e la s. Ele não v ai sabe r que e stá c om
raiv a, mas v ai fic ar muito fe liz se de tonar uma e x plosão de hostilidade
e raiv a na e sposa.

A e sposa , que ta lve z nã o e stive sse se ntindo r a iva a lgum a a nte s da


inte r a ç ã o, de r e pe nte de sc obr e que e stá dom ina da pe la r a iva ; na
ve r da de , sua r a iva , que pa r e c ia de ve r- se a qua lque r outr o m otivo, é a
r a iva que e stá se ndo vivida pe lo m a r ido. Num c e r to se ntido, c om isso
e la e stá "pr ote ge ndo" o m a r ido c ontr a c e r tos a spe c tos do se u se r
inte r ior que e le nã o c onse gue a ssum ir e a dm itir c onsc ie nte m e nte .

O m a r ido que j a m a is se e nr a ive c e pode e ntã o se ide ntif ic a r c om a


e xpr e ssã o, pe la e sposa , da r a iva que e le r e pr im iu se m j a m a is pr e c isa r
a ssum ir r e sponsa bilida de pe ssoa l por e ssa r a iva — ne m m e sm o e m
te r m os de se c onsc ie ntiza r do f a to de que , pa r a c om e ç a r, que m e sta va
c om r a iva e r a e le ! E é m uito f r e que nte que os se ntim e ntos de r a iva ,
r e pr im idos c om ta nta f ir m e za de ntr o do e u, se j a m c r itic a dos no
pa r c e ir o c om a m e sm a se ve r ida de , Num a situa ç ã o de ide ntif ic a ç ã o
pr oj e tiva , o m a r ido que j a m a is se e nr a ive c e ge r a lm e nte se hor r or iza
dia nte do te m pe r a m e nto viole nto e da s e xpr e ssõe s e c om por ta m e ntos
im pulsivos e de sc ontr ola dos da m ulhe r !

Do m e sm o m odo, a pe ssoa que j a m a is se e ntr iste c e ta lve z só ve j a


sua s pr ópr ia s de pr e ssõe s à m e dida que e la s se e xpr e ssa m no pa r c e ir o
( que , ne ssa s c ir c unstâ nc ia s, é visto c om o a pe ssoa que c a r r e ga a
tr iste za e o de se spe r o por a m bos) .

De m odo ge r a l, a s pr oj e ç õe s te nde m a se r inte rc â m b io s — um


"c om é r c io" de pa r te s r e pr im ida s do e u, que os dois m e m br os do c a sa l
c onc or da m e m f a ze r. E, e ntã o, c a da um de le s vê no outr o a s c oisa s
que nã o c onse gue pe r c e be r e m si m e sm o... e luta , inc e ssa nte m e nte ,
pa r a m udá - la s.

15. A danç a da sombr a no palc o do c asame nt o

M ICHAEL VENTURA

Ja n e e u pa ssa m os dir e to da pa que r a pa r a o c a sa m e nto. De c idim os


c a sa r de z dia s de pois de nos te r m os c onhe c ido. I sso nos poupou a
ta r e f a de f ic a r nã o- c onhe c e ndo um a o outr o, que e m ge r a l c onsiste
na que la c oisa tr iste que é um e xpe r im e nta ndo o se u "e u" no outr o,
te sta ndo de m odo c om pulsivo e /ou inte nc iona l a c a pa c ida de de
c om pr om isso. I sso é ne c e ssá r io num a f a se da vida m a s, c om o m uitos
da nossa ida de , j á o tínha m os f e ito m uita s ve ze s a nte s. De c idim os que
de ssa ve z e r a se m te ste . I r ía m os da nç a r c onf or m e a m úsic a .

Ca sa r c onf or m e a m úsic a .

Ca sa m os um c om o outr o ou c a sa m os c om o im pulso? Boa pe rgunta.


Um a pe rgunta que só pode se r r e spondida qua ndo j á é ta r de de m a is.
Me lhor a inda . P ois o a m or na da se r á se nã o houve r f é . Na da .

Qua ndo Br e nda n na sc e u, qua se nove a nos a nte s de Ja n e e u nos


c onhe c e r m os, e la m a nda r a im pr im ir nos c a r tõe s o r e f r ã o do ve lho
blue s:

Baby l le arne d to lov e y ou


Hone y ' fore I c alle d
2
Baby ' fore I c alle d y our name

O a m or ge r a lm e nte a c onte c e do j e ito que diz e ssa ve lha c a nç ã o.


Com o se a m a r f osse "dize r o se u nom e ". E, c om c e r te za , "se r a m a do"
é se ntir que o nosso nom e é dito c om um a inf le xã o que nunc a ouvim os
a nte s.

E o nosso c onvite de c a sa m e nto dizia a ssim :

Come on ov e r
We ain' t fak in'
3
W hole lotta shak in’ goin’ on

É e squisito, hoj e , pe nsa r c om o f oi va ga a nossa pr e m oniç ã o de usa r


e sse ve r so de Je r r y Le e Le wis — e m bor a um a únic a ve z te nha m os
"c he ga do a s via s de f a to" ( r e ve la dor a e ssa ve lha e xpr e ssã o, nã o é ?,
c om e sse e str a nho f or m a lism o) , e f oi Ja n que m c om e ç ou, que br ou
m e us óc ulos, e e ntã o e u de i ne la , um a ve z só, e e la ba te u c ontr a a
pa r e de , nós dois nos se ntindo tã o suj os e f e ios e e r r a dos. Qua ntos a vôs
e a vós, a m a rgos e há m uito idos, e sta va m na sa la na que la hor a ,
c a c a r e j a ndo de sa tisf a ç ã o dia nte da nossa ve rgonha ? Os de la ,
ir la nde se s; os m e us, sic ilia nos. Dua s tr a diç õe s que nã o nos e nsina r a m
a pe r doa r. Apr e nde r a pe r doa r é r om pe r c om um pa ssa do
im pe r doá ve l.

P e nse na pa la vr a : "pe r doa r "... "doa r "... "da r ", O pe r dã o é um dom tã o


gr a nde que o c onc e ito de "da r " e stá c ontido na pa la vr a "pe r doa r ". A
tr a diç ã o c r istã te ntou tor na r o pe r dã o hum ilde e pa ssivo: of e r e ç a a
outr a f a c e . Ma s "da r " é um ve r bo a tivo, que r e ve la a ve r da de ir a
na tur e za do pe r dã o: pe r doa r e nvolve o a to de tom a r a lgo de si m e sm o
e dá - lo a o outr o, pa r a que de a gor a e m dia nte lhe pe r te nç a , Nã o te m
na da de pa ssivo. É um inte r c â m bio. Um inte r c â m bio de f é : a c r e dita r
que a quilo que f oi f e ito pode se r de sf e ito ou tr a nsc e ndido. Qua ndo
dua s pe ssoa s pr e c isa m f a ze r e sse inte r c â m bio um a c om a outr a , e sse
pode se r um dos a tos m a is íntim os de sua s vida s.

O pe r dã o é um a pr om e ssa de t r a b a l h a r pa r a de sf a ze r, pa r a
tr a nsc e nde r, O c a sa m e nto m uito c e do of e r e c e a os e nvolvidos a
opor tunida de de pe r doa r. Houve m uita s c a de ir a s que br a da s, m uitos
pr a tos que br a dos — a té um a m á quina de e sc r e ve r que br a da , m inha
ve lha e a m a da Oly m pia m a nua l por tá til que e sta va c om igo de sde os
te m pos do c olé gio e que e u m e sm o a r r e be nte i — te ste m unha ndo quã o
de se spe r a do pode se r o de se spe r o c onj unto de todos os Mic ha e ls, Ja ns
e Br e nda ns. W hole lotta shak in’ goin' on: te m m u i t a c oisa para
sac udir, e , à s ve ze s, qua ndo voc ê e stá te nta ndo r om pe r a s c r osta s
e ndur e c ida s de ntr o de si m e sm o e de ntr o de c a da um dos outr os,
a lguns pr a tos e m á quina s de e sc r e ve r e m óve is pode m pa r tic ipa r do
pr oc e sso.

O a spe c to m a is odioso dos "diga a si m e sm o que e stá tudo be m " e "e u


e stou OK, voc ê e stá OK" é a inc a pa c ida de de le s de a dm itir que à s
ve ze s voc ê pr e c isa gr ita r, ba te r por ta s, que br a r m óve is, a va nç a r o
f a r ol ve r m e lho e pe r de r o c ontr ole só pa r a pode r c ome ç ar a a c ha r a s
pa la vr a s que de sc r e ve m e ssa c oisa que e stá c om e ndo voc ê por de ntr o.
Às ve ze s, a m e dita ç ã o e o diá logo sim ple sm e nte nã o c onse gue m
r e m ovê - la . Às ve ze s e la pr e c isa m e sm o é de um a boa "c or ta da " —
ou, pe lo m e nos, a whole lotta shak in’ um a boa "sa c udida ge r a l". Que m
te m m e do de que br a r, por de ntr o ou por f or a , e stá no c a sa m e nto
e r r a do. P ôr tudo pa r a f or a . Esc a nc a r a r a s j a ne la s. De pois da
te m pe sta de , va m os ve r o que r e stou.

E isso é "o le nitivo que o c a sa m e nto of e r e c e " — ouvi e ssa e xpr e ssã o
e m dive r sos c onte xtos m a s, e xc e to ne sse se ntido, sou inc a pa z de
c om pr e e ndê - la . De sc obr ir o que é inque br á ve l e m m e io a tudo o que
f oi que br a do. De sc obr ir que a uniã o pode se r tã o ir r e dutíve l qua nto a
solidã o. De sc obr ir que os dois pr e c isa m c om pa r tilha r, nã o só o que
não c onhe c e m um do outr o, m a s ta m bé m o que n ã o c onhe c e m de si
m e sm os.

Com pa r tilha r o que c onhe c e m os é , e m c om pa r a ç ã o, um e xe r c íc io


insignif ic a nte .

Te r e i e u dito que ha via a pe na s um a m ultidã o de Ja ns, Br e nda ns e


Mic ha e ls a c a m pa dos na c a ve r na ilum ina da pe la f ogue ir a que te m a
a pa r ê nc ia de um ve lho e ba r a to duple x c om c a ixilhos de m a de ir a a o
sul do Boule va r d Sa nta Mônic a e m Los Ange le s? A vida ne m se que r é
a ssim tã o sim ple s! O que dize r do popula c ho e nf ur e c ido a que m , por
polide z, de nom ina m os "o pa ssa do"? Nã o há na da de a bstr a to c om "o
pa ssa do". Aquilo que m a r c ou voc ê a inda e stá m a r c a ndo voc ê . Existe
um luga r e m nós onde a s f e r ida s nunc a c ic a tr iza m e onde os a m or e s
nunc a te r m ina m . Ningué m sa be m uito sobr e e sse luga r e xc e to que e le
e xiste , a lim e nta ndo nossos sonhos e f or ta le c e ndo e /ou a ssom br a ndo os
nossos dia s. No c a sa m e nto, e le e xiste c om m a is f or ç a que de há bito.

Ensa ngue nta da , a ç oita da , se m im or ta , nua e tor tur a da , m inha m ã e


pe nde de um ga nc ho no m e u a r m á r io... pois pe nde de um ga nc ho
de ntr o de m im . Às ve ze s pr e c iso tir á - la pa r a f or a e e xe c uta m os a
da nç a da dila c e r a ç ã o, a r r a nc a ndo na c os um do outr o e , c he ios de
f e lic ida de , e spa lha m os sa lpic os por todo la do — por c im a de Ja n,
vá r ia s da s m uita s Ja ns, e vá r ios dos m uitos Br e nda ns, e f uj a m pa r a a s
m onta nha s, m e us que r idos, por que e stou no m e u hor r or. Um dos m e us
m uitos, m e us insiste nte s hor r or e s.

Ca da um de nós, todos nós, e sta m os c he ios de hor r or. Se voc ê se c a sa


pa r a te nta r e spa nta r os se us, só va i se sa ir be m se f ize r se u hor r or
c a sa r c om o hor r or do outr o, os dois hor r or e s de voc ê s dois se
c a sa r ã o, voc ê sa ngr a r á e c ha m a r á isso de a m or.

Me u a r m á r io e stá c he io de ga nc hos, c he io de hor r or e s, e e u també m


os a m o — a m o os m e us hor r or e s e se i que e le s m e a m a m , e por
m inha c a usa lá f ic a r ã o pe ndur a dos pa r a se m pr e , por que e le s ta m bé m
sã o bons pa r a m im , e le s ta m bé m e stã o do m e u la do, e le s m e de r a m
m uito pa r a se r e m m e us hor r or e s, e le s m e f ize r a m f or te pa r a
sobr e vive r. Existe m uita c oisa no nosso novo lé xic o "ilum ina do" que
suge r e que pode m os nos m uda r pa r a um a c a sa que nã o te nha e sse tipo
de a r m á r io. Voc ê se m uda pa r a um a c a sa de ssa s e pe nsa que e stá tudo
be m a té que c om e ç a a ouvir um gr ito dista nte e a se ntir um c he ir o
e str a nho e a os pouc os pe r c e be que o a r m á r io e stá a li; tudo be m , m a s
e le f oi e m pa r e da do e qua ndo pr e c isa de se spe r a da m e nte a br i- lo voc ê
e nc ontr a tij olos e m ve z da por ta .

Na nossa c a ve r na na e nc osta da m onta nha , ne ste a pa r ta m e nto, e xiste


um a r m á r io onde os m e us ga nc hos pe nde m a o la do dos de Ja n e dos
de Br e nda n — é e spa ntoso qua ntos ga nc hos um m e nino de a pe na s
onze a nos c onse gue a c um ula r —, que ta m bé m e stã o a li por boa s e
dolor osa s r a zõe s de le s m e sm os.

P a r a que o c a sa m e nto s e j a um c a sa m e nto, e sse s e nc ontr os nã o


a c onte c e m por c om pulsã o ou por a c ide nte ; e le s a c onte c e m por
inte nç ã o. Nã o que r o dize r que todos os e nc ontr os c om todos os vá r ios
e us e f a nta sm a s se j a m pla ne j a dos ( isso nã o é possíve l, e m bor a à s
ve ze s possa m se r e voc a dos c onsc ie nte m e nte ) ; o que que r o dize r é que
e sse níve l de a tivida de é r e c onhe c ido c om o pa r te da busc a , pa r te da
r e sponsa bilida de que c a da pe ssoa te m por si m e sm a e pe lo outr o.

E e ssa é a gr a nde dif e r e nç a e ntr e a s e xpe c ta tiva s de um c a sa m e nto e


a s de um r e la c iona m e nto. Minha e xpe r iê nc ia de um r e la c iona m e nto é
dua s pe ssoa s c om pulsiva m e nte tr oc a ndo c a de ir a da s a o som de um a
se le ç ã o m usic a l dos a r qué tipos inte r ior e s um a da outr a . Me u gâ ngste r
dur ã o te m um c a so c om a tua ga ta de inf e r ninho. Sou o te u m e nor
a ba ndona do, é s a m inha m ã e a m or osa . Sou o pa i que pe r de ste , é s a
m inha f ilha a m a da . Sou o te u a dor a dor, é s a m inha de usa . Sou o te u
de us, é s a m inha sa c e r dotisa . Sou o te u pa c ie nte , é s a m inha a na lista .
Sou a tua inte nsida de , é s o m e u solo. Esse s sã o a lguns dos pa dr õe s
m a is e xtr a va ga nte s. Animus e anima no sobe - e - de sc e da ga ngor r a .

Esse s pa dr õe s m a ntê m - se r a zoa ve lm e nte be m e nqua nto os pa r e s


a r que típic os se suste nta m . Ma s um a noite o ga r otinho de ntr o de le
pr oc ur a a m a m ã e de ntr o de la e e m ve z disso e nc ontr a um a a na lista de
língua a f ia da que disse c a sua s e ntr a nha s. A m e nina de ntr o de la
pr oc ur a o pa pa i de ntr o de le m a s e nc ontr a um a dor a dor pa gã o que
que r f a ze r a m or c om um a de usa , e isso f a z de la um a m e nina f ingindo
que é um a de usa pa r a a gr a da r o pa pa i que nã o pa ssa de um idola tr a
libidinoso m a s... ne sse j ogo, m e nina nã o e ntr a . A m ulhe r se se nte
a tr a ída pe lo m a c hã o m a s e le , se c r e ta m e nte , pr oc ur a pe la m ã e —
qua ndo o e u se xua l do hom e m e stá a se r viç o de um ga r otinho inte r ior,
nã o é de sur pr e e nde r que e le nã o c onsiga ou que te r m ine m uito
de pr e ssa . Ou e ntã o e le nã o e stá r e a lm e nte a l i , pa r a e le é um a
m a stur ba ç ã o. P a r a e sse hom e m c om sua psique de ga r otinho, a
m ulhe r r e a l é a pe na s um a substituta . E a m ulhe r que e stá c om e le na
c a m a — um a e xte nsã o da sua m a stur ba ç ã o — f ic a se pe rgunta ndo
( m e sm o que a a ç ã o se j a boa ) por que nã o c onse gue se ntir que e stá
dor m indo c o m a lgué m . E por que e le se a f a sta tã o de pr e ssa qua ndo
a c a ba .

P or outr o la do, o pr of e ssor tr a nsa c om a e xc ita ç ã o do a luno, o a na lista


tr a nsa c om o a ba ndono do pa c ie nte e o c a sa l se vê , na c a m a , c om o
de us e de usa a ilum ina r os c é us — m a s a psique é um a e ntida de
m últipla e m utá ve l, e ne nhum de sse s pa r e s c om pa tíve is se m a nté m
e stá ve l por m uito te m po. Os de se nc ontr os a r que típic os logo c om e ç a m
e e ntã o é um de sa str e de c onf r onta ç õe s que pode m le va r a nos se m
c he ga r a pa r te a lgum a ( v ale ria a pe na le va r a nos pa r a c he ga r a
a lgum luga r ) . As pe ssoa s se c a nsa m e de siste m . E e ntã o o c ic lo
r e c om e ç a c om outr a pe ssoa .

Minha e xpe r iê nc ia de um c a sa m e nto é que tudo isso e stá pr e se nte


m a s, instintiva ou c onsc ie nte m e nte , o que te m os ne le sã o dua s pe ssoa s
a tr ope la ndo os a r qué tipos

101
inte r ior e s um a da outr a , de sa f ia ndo- os, se duzindo- os, lisonj e a ndo- os,
e m bosc a ndo- os, f a ze ndo- os f a la r, a br indo- se a e le s, f ugindo de le s,
viola ndo- os, a pa ixona ndo- se por a lguns e odia ndo outr os, c onhe c e ndo
a lguns, f a ze ndo a m iza de c om outr os, pe ndur a ndo a lguns no ga nc ho do
a r m á r io do pa r c e ir o — c a bide s dos qua is pe nde m pa is, m ã e s, ir m ã s,
ir m ã os, outr os a m or e s, ídolos, f a nta sia s, ta lve z a té vida s pa ssa da s e a
v e rdade ira c onsc iê nc ia mitológic a que à s ve ze s e m e rge de ntr o de nós
c om ta l f or ç a que se ntim os o e lo que r e m onta a m ilha r e s de a nos e
a té m e sm o a outr os dom ínios do se r.

I sso é o que "de sposa m os" no outr o, um pr oc e sso que c ontinua


e nqua nto tr a ba lha m os pa r a ga nha r a vida , va m os a o c ine m a ,
a ssistim os te le visã o, va m os a o m é dic o, pa sse a m os pe la s P a lisa de s,
via j a m os pa r a o Te xa s, a c om pa nha m os a s e le iç õe s, te nta m os pa r a r de
be be r e nos e m pa ntur r a m os de Hä a ge n- Da zs.

Quando ouv i a prime ira história de amor


c ome c e i a proc urar por ti, se m sabe r
o quanto e stav a c e ga.
Os amante s não se e nc ontram num lugar.
Ele s e x iste m, de sde se mpre , um no outro.
Rumi

Talv e z todos os dragõe s de sta v ida


se jam princ e sas à e spe ra de
v e r- nos, be los e brav os.
Talv e z o horror se ja ape nas,
no mais fundo do se u se r, algo
que pre c isa do nosso amor.
Raine r M aria Rilk e

Par t e 4

O c or po r e pr imido: doe nç a, saúde e se xualidade


Re f e r ir- se a o c or po c om o m a is do que um a som br a e quiva le a
r e nunc ia r a o pe ssim ism o do sé c ulo XX e ga nha r a c or a ge m de
r e a f ir m a r o se r vivo do hom e m .

J ohn P. Conge r

A m a lda de hum a na r e side no f undo da s nossa s e ntr a nha s... O pr a ze r


c a r na l é a pr inc ipa l te nta ç ã o que o dia bo usa pa r a a tr a ir o e go a os
a bism os do inf e r no. Contr a e ssa c a tá str of e , o e go a te r r or iza do te nta
m a nte r o c ontr ole do c or po a qua lque r pr e ç o. A c onsc iê nc ia ,
a ssoc ia da a o e go, opõe - se a o inc onsc ie nte ou a o c or po e nqua nto
r e positór io da s f or ç a s da som br a , Ale x ande r Lowe n

O Hom e m Se lva ge m ( um a f igur a m a sc ulina da som br a ) e nc or a j a - nos


a c onf ia r na quilo que e stá e m ba ixo: a m e ta de inf e r ior do c or po, os
órgã os ge nita is, a s pe r na s e tor noze los, nossa s insuf ic iê nc ia s, a s sola s
dos pé s, os a nc e str a is a nim a is, a pr ópr ia Te r r a , os te sour os da Te r r a ,
os m or tos há m uito ne la e nte r r a dos, a dif íc il r ique za da s pr of unde za s.
"A á gua pr e f e r e os luga r e s ba ixos", diz o Ta o Te King, que é um livr o
ve r da de ir o do Hom e m Se lva ge m , Robe r t Bly

Int r oduç ão
O c or po hum a no vive há dois m il a nos à som br a da c ultur a oc ide nta l.
Se us im pulsos a nim a is, sua s pa ixõe s se xua is e sua na tur e za pe r e c íve l
f or a m ba nidos pa r a a e sc ur idã o e tr a nsf or m a dos e m ta bus por um
c le r o que só da va va lor a os dom ínios m a is e le va dos do e spír ito e da
m e nte e a o pe nsa m e nto r a c iona l. O a dve nto da e r a c ie ntíf ic a vir ia a
a f ir m a r que o c or po é um m e r o e nvoltór io de e le m e ntos quím ic os,
um a m á quina se m a lm a .

Re sulta do: a c isã o m e nte /c or po f ir m ou- se c om toda a solide z. Nossa


c ultur a la nç a a sua luz sobr e a lógic a do he m isf é r io e sque r do do
c é r e br o e os e sf or ç os do e go individua l, de ixa ndo e nsom br e c idos a
intuiç ã o do he m isf é r io dir e ito do c é r e br o e o c or po f ísic o. Com o um
r io, e ssa c isã o divide a topogr a f ia do nosso te r r e no c ultur a l e c r ia
pola r ida de s por todos os luga r e s que pe r c or r e : c a r ne /e spír ito,
pe c a dor /inoc e nte , a nim a l/divino, e goísta /a ltr uísta .

Se ntim os os te r r íve is r e sulta dos de sse pa r a digm a — o c or po c om o


som br a — na nossa pr ópr ia vida : c ulpa e ve rgonha e m r e la ç ã o à s
f unç õe s c or por a is, f a lta de e sponta ne ida de nos m ovim e ntos e
se nsa ç õe s e um a ba ta lha c r ônic a c ontr a a doe nç a psic ossom á tic a . O
c or po r e pr im ido ta m bé m surge , na sua c r ua nude z, na s tr iste s
e pide m ia s a tua is de a buso de c r ia nç a s, víc io e m se xo, a buso da s
pr ópr ia s f or ç a s e de sor de ns a lim e nta r e s.

Nossa s tr a diç õe s r e ligiosa s e e spir itua is e nc or a j a m a c isã o


m e nte /c or po a o suge r ir que o pr opósito da e voluç ã o hum a na é
tr a nsc e nde r o c or po. Cr istã os e hindus pr oc ur a m r e dir e c iona r os
de se j os c or por a is pa r a pr opósitos "m a is e le va dos"; nossa s
ne c e ssida de s "inf e r ior e s" de pr a ze r e la ze r sã o c onside r a da s ignóbe is.
Os c ie ntista s e nvolvidos c om a a lta te c nologia da c ibe r né tic a e da
inte ligê nc ia a r tif ic ia l a tiç a m o de ba te a o a f ir m a r que o c or po um dia
se tor na r á supé r f luo por c onta de a lte r a ç õe s e inte r ve nç õe s
e le tr ônic a s e m se us órgã os, a té se r m os c a da ve z m e nos c a r ne da
nossa c a r ne e c a da ve z m a is c ir c uitos c om puta dor iza dos c om o o
onisc ie nte hum a noide Da ta da sé r ie de TV "Jor na da na s Estr e la s: A
Se gunda Ge r a ç ã o".

É c la r o que e ssa visã o f utur ístic a do c or po é a pe na s um de ntr e os


vá r ios c e ná r ios possíve is. Os de f e nsor e s da s te r a pia s som á tic a s, e m
ve z de de pr e c ia r o c or po, ve e m - no c om o o ve íc ulo pe lo qua l
a lc a nç a m os a tr a nsf or m a ç ã o, o te m plo sa gr a do no qua l r e a liza m os o
tr a ba lho e spir itua l. Com o diz John P. Conge r : "O c or po é a nossa
e sc ola , a nossa liç ã o, o nosso inté r pr e te , o nosso inim igo be m -
a m a do... a nossa pla ta f or m a de la nç a m e nto pa r a dom ínios m a is
e le va dos."

Mulhe r e s que e stã o e xplor a ndo os va lor e s e spir itua is f e m ininos


e m e rge nte s ta m bé m a poia m e ssa e xpr e ssã o da tota lida de do e u. Toda
um a nova ge r a ç ã o de m e str e s e te r a pe uta s e stá e nvolve ndo o c or po,
a tiva m e nte , no pr oc e sso sim bólic o. Ao a lim e ntá - lo c om sons, im a ge ns
e r itm os te r a pê utic os, e vita ndo os "le õe s" que gua r da m os por ta is da
m e nte , e le s a c r e dita m que pode m r e tir a r o c or po do dom ínio da s
som br a s.

Muita s pe ssoa s pa r e c e m a c r e dita r que a som br a é invisíve l e se


e sc onde e m a lgum luga r nos r e c e ssos da nossa m e nte . Ma s os que
tr a ba lha m r e gula r m e nte c om o c or po hum a no e c onse gue m le r a sua
lingua ge m m uda sã o c a pa ze s de ve r ne le a f or m a e sc ur a da som br a .
Ela se e sboç a nos nossos m úsc ulos e te c idos, no nosso sa ngue , nos
nossos ossos. Toda a nossa biogr a f ia pe ssoa l e stá c onta da no nosso
c or po, e é ne le que os que c onhe c e m a sua lingua ge m pode m lê - la .

É c la r o que pa r a a s pe ssoa s c om pr e disposiç ã o na tur a l à pe r c e pç ã o


c iné tic a ( ta is c om o ba ila r inos, a tle ta s e a r tista s) nã o é ne nhum a
novida de que o c or po se j a um a c ha ve pa r a o nosso de spe r ta r. Ma s
pa r a a que le s c uj a s a ptidõe s r e side m no se ntim e nto ou no pe nsa m e nto,
o pr oc e sso de r e tir a r o c or po do dom ínio da som br a pode se r e xc ita nte
e a gir c om o um a f e r r a m e nta bá sic a do "tr a ba lho c om a som br a ".

O pr opósito de sta se ç ã o é a bor da r a som br a a tr a vé s do c or po, um a


e str a da m e nos pe r c or r ida que a r ota sim bólic a da m e nte , e sc olhida
por Jung e por outr os, f a sc ina dos pe lo m undo inte r ior. No Ca pítulo 16,
John P. Conge r, a na lista de bioe ne rgé tic a e m Be r ke le y , c om pa r a os
pontos de vista de Ca r l Jung e Wilhe lm Re ic h qua nto a o inc onsc ie nte e
sua r e la ç ã o c om o c or po hum a no. Conge r a c r e dita que sua s dif e r e nte s
de f iniç õe s de psique e som a se de ve m à dif e r e nç a de e stilo e de
te m pe r a m e nto de c a da um ; a inda a ssim , Conge r de sve nda a lguns
pa r a le los sur pr e e nde nte s.

A se guir, e m "a a na tom ia do m a l", John C. P ie r r a kos, disc ípulo de


Re ic h, a m plia a disc ussã o da c our a ç a c or por a l c om o f onte do
c om por ta m e nto hum a no m a ligno. Qua ndo a vita lida de e m oc iona l é
se c c iona da e o c or po se e nr ij e c e c ontr a o se ntim e nto, diz e le , a s
e ne rgia s na tur a is da pe ssoa sã o a ba f a da s e um r e sulta do pode se r a
br uta lida de .

O m é dic o e e sc r itor La r r y Dosse y , num a r e im pr e ssã o de Be y ond


I llne ss [ Alé m da Doe nç a ] , e xplor a um pa pe l oc ulto da doe nç a e m
r e la ç ã o à sa úde . Ela s se m pr e a nda m j unta s, c om o o pr e to e o br a nc o,
diz e le , e c a da qua l te m um pr opósito e um a c ontr ibuiç ã o.

No Ca pítulo 19, e xtr a ído de Arc he ty pal M e dic ine [ Me dic ina
Ar que típic a ] , o m é dic o e a na lista j unguia no Alf r e d J. Zie gle r e xplor a
c om e loquê nc ia os sintom a s da doe nç a c om o sintom a s da vida nã o-
vivida . Ele e xplic a : "Qua ndo nossa s f a tuida de s se de sgove r na m ,
nossa s inf e r ior ida de s e qua lida de s r e c e ssiva s r e ve r te m a
m a nif e sta ç õe s c or por a is... Nossa som br a a dquir e substâ nc ia ."

Com o a se xua lida de é um a pa r te na tur a l da vida do nosso c or po,


ta m bé m e la te m um la do e sc ur o e um la do c la r o. Num c a pítulo de
M arriage De ad or Aliv e [ Ca sa m e nto Vivo ou Mor to] , o a na lista
j unguia no suíç o Adolf Gugge nbühl- Cr a ig inve stiga o la do de m onía c o
da se xua lida de : m a soquism o, sa dism o, inc e sto e se xo c om pa r c e ir os
pr oibidos, O e le m e nto de m onía c o da se xua lida de te m um a e ne rgia e
um a a tr a ç ã o be m e spe c íf ic a s.

Em sum a , o c or po é um unive r so c om ple to e m si m e sm o. Com o disse


He inr ic h Zim m e r, "Todos os de use s e stã o no nosso c or po". E ta m bé m
todos os de m ônios, a c r e sc e nta r ia m os nossos c ola bor a dor e s,

16. O c or po c omo sombr a

JOHN P. CONG ER
Estr ita m e nte f a la ndo, a som br a é a pa r te r e pr im ida do e go e
r e pr e se nta a quilo que som os inc a pa ze s de r e c onhe c e r a r e spe ito de
nós m e sm os, O c or po que se oc ulta sob a s r oupa s m uita s ve ze s
e xpr e ssa de m odo f la gr a nte a quilo que c onsc ie nte m e nte ne ga m os, Na
im a ge m que a pr e se nta m os a os outr os, ge r a lm e nte nã o que r e m os
m ostr a r a nossa r a iva , a nossa a nsie da de , a nossa tr iste za , a nossa
lim ita ç ã o, a nossa de pr e ssã o ou a nossa c a r ê nc ia . Já e m 1912,
e sc r e via Jung: "De ve - se a dm itir que a ê nf a se c r istã sobr e o e spír ito
le va ine vita ve lm e nte a um a insupor tá ve l de pr e c ia ç ã o do la do f ísic o do
hom e m e , a ssim , pr oduz um a e spé c ie de c a r ic a tur a otim ista da
na tur e za hum a na ."1 Em 1935, Jung f a zia pa le str a s na I ngla te r r a sobr e
sua s te or ia s e m ge r a l e , de pa ssa ge m , m ostr ou c om o o c or po pode
a pr e se nta r- se c om o som br a : Nã o gosta m os de olha r pa r a o la do da
som br a de nós m e sm os; por ta nto, há m uita s pe ssoa s na nossa
soc ie da de c iviliza da que pe r de r a m de todo sua s som br a s, pe r de r a m a
te r c e ir a dim e nsã o e , c om isso, pe r de r a m o c or po. O c or po é um
a m igo e xtr e m a m e nte duvidoso, pois pr oduz c oisa s da s qua is nã o
gosta m os: há um e xc e sso de c oisa s sobr e a pe rsonific aç ão de ssa
sombra do e go. Às ve ze s e la f or m a o e sque le to no a r m á r io e todos,
na tur a lm e nte , que r e m livr a r- se de le .2

Na ve r da de , o nosso c or po é a nossa som br a na m e dida e m que e le


c onté m a histór ia tr á gic a da s m il m a ne ir a s c om o e sta nc a m os e
r e pr im im os o f luxo e spontâ ne o da e ne rgia vita l a té que o nosso c or po
se tr a nsf or m a num obj e to m or to. A vitór ia da r a c iona liza ç ã o e xtr e m a
da vida é c onse guida à s c usta s da vita lida de m a is pr im itiva e na tur a l.
P a r a a s pe ssoa s que c onse gue m "le r " o c or po, e le m a nté m o r e gistr o
do nosso la do r e pr im ido, r e ve la ndo a quilo que nã o ousa m os f a la r e
e xpr e ssa ndo nossos m e dos pr e se nte s e pa ssa dos. O c or po c om o
som br a é pr inc ipa lm e nte o c or po c om o "c a r á te r ", o c or po c om o
e ne rgia r e pr e sa da que pe r m a ne c e nã o r e c onhe c ida e nã o- utiliza da ,
que nã o é a dm itida ne m e stá disponíve l.

Em bor a Jung f osse um hom e m vibr a nte , a lto e "c or pór e o", na ve r da de
e le pouc o f a lou sobr e o c or po. Qua ndo c onstr uiu a tor r e e m Bollinge n,
e le voltou a um a vida m a is pr im itiva , bom be a ndo a sua pr ópr ia á gua
de poç o e r a c ha ndo a sua pr ópr ia le nha . Sua c or por a lida de ,
e sponta ne ida de e e nc a nto indic a va m c e r ta sa tisf a ç ã o e um "e sta r e m -
c a sa " c om o se u pr ópr io c or po. Dive r sa s de sua s de c la r a ç õe s
oc a siona is m ostr a m um a a titude e m r e la ç ã o a o c or po que , e m bor a
m a is de sa pe ga da e m a is m e ta f ór ic a , e sta va e m ha r m onia c om a s
ide ia s de Wilhe lm Re ic h.

Re ic h, a que le que nos e nsinou a obse r va r e a tr a ba lha r c om o c or po,


e r a dir e to e c onc r e to. Ele via a m e nte e o c or po c om o
"f unc iona lm e nte idê ntic os".3 Re ic h tr a ba lhou a psique c om o um a
e xpr e ssã o c or por a l e of e r e c e u um a a lte r na tiva e a ntídoto br ilha nte s
a os sof istic a dos psic a na lista s a na lític os de Vie na que , pe lo m e nos no
iníc io, nã o pe r c e bia m o pode r da e xpr e ssã o c or por a l na psic a ná lise . A
na tur e za de Re ic h e r a inte nsa , um ta nto r ígida , se m m uita tole r â nc ia
pe los j ogos da m e nte m e ta f ísic a e lite r á r ia . Ele e r a um c ie ntista
e nr a iza do na quilo que podia ve r, c om um a pr e disposiç ã o im pa c ie nte
pa r a de sc a r ta r tudo o m a is c om o "m ístic o" — um a c a te gor ia na qua l,
a o ingr e ssa r no c ír c ulo de Fr e ud no iníc io dos a nos 20, logo inc luiu
Jung. Ma is ta r de , e m Ethe r, God and De v il [ Éte r, De us e o Dia bo]
( 1949) , Re ic h e sc r e ve u: A ide ntidade func ional c omo um princ ípio de
pe squisa do func ionalismo e rgonômic o e stá e x pre ssa, no se u máx imo
brilhantismo, na unidade de psique e soma, e moç ão e e x c itaç ão,
se nsaç ão e e stímulo. Essa unidade ou ide ntidade , e nquanto princ ípio
v ital básic o, e x c lui de uma v e z por todas qualque r transc e nde ntalismo
ou me smo a autonomia das e moç õe s.4

Jung, por outr o la do, f oi inf lue nc ia do por Ka nt, c uj a te or ia do


c onhe c im e nto m a nte ve - o f ilosof ic a m e nte or ie nta do pa r a o e studo da
psique c om o c ie ntista , c om o e m pir ic ista , se m c onc luir que de tive sse o
dom ínio da Re a lida de . No e nsa io On the Nature of lhe Psy c he [ Sobr e a
Na tur e za da P sique ] , Jung e sc r e ve u: J á que psique e maté ria e stão
c ontidas num únic o e me smo mundo e , alé m disso, e stão e m c ontato
c ontínuo uma c om a outra e de pe nde m, e m última análise , de fatore s
transc e nde ntais irre pre se ntáv e is, não ape nas é possív e l c omo també m
razoav e lme nte prov áv e l que psique e maté ria se jam dois aspe c tos
dife re nte s de uma únic a e me sma c oisa.5

Em bor a ha j a f r e que nte s e e spa ntosos pontos de a c or do e ntr e e le s,


Re ic h e Jung a bor da r a m se u tr a ba lho de m a ne ir a s r a dic a lm e nte
oposta s. Com ta nta s dif e r e nç a s ir r e c onc iliá ve is de e stilo e
te m pe r a m e nto dia nte de nós, a pr oposta de unir e sse s dois siste m a s é
ine spe r a da e um ta nto a ssusta dor a . A ir onia é que a uniã o dos siste m a s
de Jung e Re ic h se dê a tr a vé s da m e dia ç ã o te ór ic a de Fr e ud. Re ic h e
Jung nunc a c onve r sa r a m e ntr e si, j a m a is tr oc a r a m c or r e spondê nc ia
ne m se c om unic a r a m de qua lque r m odo. Ape na s a lguns c om e ntá r ios
e spa r sos indic a m que Re ic h sa bia da e xistê nc ia de Jung; e se u
c onhe c im e nto de Jung soa um ta nto pr e c onc e ituoso e ba se a do num a
a va lia ç ã o supe r f ic ia l. P or outr o la do, nã o e xiste ne nhum a m e nç ã o a
Re ic h e m ne nhum dos e sc r itos de Jung. Ma s ta nto Re ic h qua nto Jung
e sta va m se m pr e c onf r onta ndo se us c onc e itos c om a doutr ina de
Fr e ud. E, a ssim , de sse m odo ine spe r a do, pode m os e sta be le c e r um
c r uza m e nto e ntr e os c onc e itos de Re ic h e os de Jung.

Num e nsa io que e sc r e ve u e m 1939, Jung c om pa r ou se u c onc e ito da


som br a c om o c onc e ito f r e udia no do inc onsc ie nte . "A som br a ", disse
e le , "c oinc ide c om o inc onsc ie nte p e s s o a l ( que c or r e sponde à
c onc e pç ã o de Fr e ud do inc onsc ie nte ) ".6 No pr e f á c io à te r c e ir a e diç ã o
d e The M ass Psy c hology of Fasc ism [ P sic ologia de Ma ssa do
Fa sc ism o] , e sc r ito e m a gosto de 1942, Re ic h disse que se u c onc e ito da
c a m a da se c undá r ia c or r e spondia a o inc onsc ie nte de Fr e ud. Re ic h
e xplic ou que o f a sc ism o e m e rge da se gunda c a m a da da e str utur a
biopsíquic a — e ssa últim a r e pr e se nta r ia a s tr ê s c a m a da s a utônom a s
da e str utur a ( ou de pósito de de se nvolvim e nto soc ia l) do c a r á te r. A
c a m a da supe r f ic ia l do hom e m m é dio, de a c or do c om Re ic h, é
"r e se r va da , polida , c om pa ssiva , r e sponsá ve l, c onsc ie nc iosa ". Ma s a
c a m a da supe r f ic ia l de "c oope r a ç ã o soc ia l nã o e stá e m c onta to c om o
â m a go biológic o pr of undo do e u: e la é suste nta da por um a se gunda
c a m a da , inte r m e diá r ia , que é f e ita e xc lusiva m e nte de im pulsos
c r ué is, sá dic os, la sc ivos, vor a ze s e inve j osos. Ela r e pr e se nta o
inc onsc ie nte f r e udia no ou aquilo que e stá re primido".7

Já que a "som br a " de Jung e a "se gunda c a m a da " de Re ic h


c or r e sponde m , a m ba s, a o "inc onsc ie nte " de Fr e ud, pode m os a dm itir
pe los m e nos c e r ta c or r e spondê nc ia e ntr e e la s. Re ic h via a se gunda
c a m a da , a o r e f le tir- se no c or po, c om o c ontr a ç õe s r ígida s e c r ônic a s
dos m úsc ulos e te c idos, um a c our a ç a de f e nsiva c ontr a a ssa ltos do
inte r ior e do e xte r ior, um a "c om por ta " que r e duzia de m odo dr á stic o o
f luxo de e ne rgia no c or po. Re ic h tr a ba lha va dir e ta m e nte sobr e a
c amada e nc ouraç ada do c or po e , a ssim , libe r a va o m a te r ia l
r e pr im ido. O c or po c om o som br a r e f e r e - se , e ntã o, a o a spe c to
e nc our a ç a do do c or po.

No c onto de f a da s de Ha ns Chr istia n Ande r se n, The Shadow [ A


Som br a ] , um a som br a c onse gue de sliga r- se de se u pr opr ie tá r io, um
hom e m de le tr a s.8 O hom e m c ontinua a vive r r a zoa ve lm e nte be m e
a té de se nvolve um a nova som br a , um ta nto m a is m ode sta . Alguns
a nos m a is ta r de , e le e nc ontr a sua a ntiga som br a , que se tor nou r ic a e
f a m osa . Em via s de de sposa r um a pr inc e sa , a som br a te m a a udá c ia
de te nta r c ontr a ta r se u a ntigo m e str e pa r a se r a s u a som br a . O
hom e m te nta de nunc iá - la , m a s a som br a , inte lige nte , o a pr isiona e
c onve nc e a pr inc e sa de que a sua som br a ha via e nlouque c ido; e a ssim
e lim ina o hom e m que punha e m r isc o o se u a m or. Essa histór ia nos
c onta c om o os a spe c tos e sc ur os e de sc a r ta dos do e go pode m unir- se
de um a m a ne ir a tã o pode r osa e im pr e visíve l e m a te r ia liza r- se c om
ta nta f or ç a que pa ssa m a dom ina r e r e ve r te m o r e la c iona m e nto
m e str e - se r vo; um a histór ia que de m onstr a a quilo que Re ic h te r ia visto
c om o o de se nvolvim e nto do c a r á te r e nc our a ç a do.

No se u se ntido m a is e str ito, por ta nto, o c or po c om o som br a r e pr e se nta


o c or po c om o c our a ç a e e xpr e ssa a quilo que é r e pr im ido pe lo e go.
P ode m os ta m bé m supor que o c onc e ito da p e r s o n a de Jung
c or r e sponde à pr im e ir a c a m a da de Re ic h, "Na c a m a da supe r f ic ia l de
sua pe r sona lida de ", e sc r e ve u Re ic h ( no m e sm o tr e c ho j á c ita do) , "o
hom e m m é dio é r e se r va do, polido, c om pa ssivo, r e sponsá ve l e
c onsc ie nc ioso". 9 "A pe rsona", e sc r e ve u Jung, "é um c om ple xo siste m a
de r e la ç õe s e ntr e a c onsc iê nc ia individua l e a soc ie da de , um tipo de
m á sc a r a ba sta nte a de qua da que se de stina , por um la do, a c a usa r um a
im pr e ssã o de f inida nos outr os e , por outr o, a oc ulta r a ve r da de ir a
na tur e za do indivíduo".10 Em bor a a "p e rso n a " de Jung f unc ione de
m odo m a is c om ple xo que a "pr im e ir a c a m a da " de Re ic h, e xiste um a
r a zoá ve l c or r e spondê nc ia e ntr e os dois siste m a s. Jung via a pe rsona
c om o pa r te de um e quilíbr io e ntr e o c onsc ie nte e o inc onsc ie nte , um a
se quê nc ia de c om pe nsa ç õe s. Qua nto m a is um hom e m de se m pe nha r o
pa pe l de f or te pa r a o m undo, m a is e le se r á inte r ior m e nte c om pe nsa do
por f r a que za f e m inina . Qua nto m e nos um hom e m pe r c e be r o
f e m inino de ntr o de si, ta nto m a is pr ová ve l se r á que e le pr oj e te no
m undo um a f or m a pr im itiva de anim a, ou se j a , pr ope nso a a ta que s,
c a pr ic hos, pa r a noia s e histe r ia s. Re ic h te ndia a de sc a r ta r a c a m a da
supe r f ic ia l c om o inc onse que nte ; Jung e studa va a inte r a ç ã o vita l e ntr e
a m á sc a r a e a vida inte r ior.

P a r a Re ic h, o m e io de a lc a nç a r a c a m a da c e ntr a l do hom e m e r a
de sa f ia r a c a m a da se c undá r ia da som br a . A r e sistê nc ia tor nou- se ,
pa r a Re ic h, um a e spé c ie de ba nde ir a que a ssina la va a á r e a de
e nc our a ç a m e nto e m ostr a va o c a m inho pa r a a lc a nç a r o â m a go do se r
hum a no. "Ne sse â m a go, e m c ondiç õe s soc ia is f a vor á ve is, o hom e m é
e m e ssê nc ia um a nim a l hone sto, la bor ioso, c oope r a tivo, a m or oso e , se
m otiva do, r a c iona lm e nte hostil."11

Essa e quiva lê nc ia e ntr e o c onc e ito da som br a de Jung e a c a m a da


se c undá r ia de Re ic h nã o pa ssa de um a a pr oxim a ç ã o ine xa ta . Jung via
a som br a c om o pa r te do c e ntr o vita l da na tur e za divina da psique
hum a na ; o la do e sc ur o of e r e c e - nos um pode r oso m e io de e ntr a da à
vida ne ga da do hom e m , Ma s pa r a Re ic h, o m a l é um m e c a nism o
c r ônic o que ne ga a e ne rgia vita l, se ndo um obstá c ulo a o c e ntr o
biológic o e spontâ ne o do hom e m . O dia bo nunc a a lc a nç a o níve l
c e ntr a l, m a s pe r sonif ic a a se gunda c a m a da r e pr im ida .

Após a nos de tr a ba lho, Re ic h ve io a c om pa r tilha r do de se spe r o


te r a pê utic o de Fr e ud. Ele ha via te nta do dissolve r a c our a ç a , e m
e sc a la de m a ssa a tr a vé s da e duc a ç ã o e , e m te r m os individua is, na
te r a pia . Se u m ode lo da s tr ê s c a m a da s nã o r e c onhe c e va lor na c a m a da
se c undá r ia , que pa r e c e vir tua lm e nte im possíve l de dissolve r- se por
c om ple to. Hoj e e m dia , os pr a tic a nte s ge r a lm e nte a dm ite m que toda s
a s pe ssoa s pr e c isa m de a lgum a c our a ç a c om o pr ote ç ã o. A te r a pia
busc a , nã o a pe na s dissolve r e ssa c our a ç a , c om o ta m bé m intr oduzir
f le xibilida de e e sc olha c onsc ie nte na quilo que e r a um a e str utur a de
de f e sa r ígida e inc onsc ie nte .

Em bor a o c onc e ito biológic o de c our a ç a te nha a plic a ç ã o e spe c íf ic a


no tr a ba lho e ne rgé tic o c om o c or po, a som br a — c om o se u
e quiva le nte f unc iona l e m te r m os psíquic os — de sf r uta de um a ga m a
de signif ic a dos a pr opr ia dos à sua f unç ã o psic ológic a . A som br a
c onté m e ne rgia que f oi r e pr im ida . A som br a nã o pode se r tota lm e nte
dissolvida , ne m r e pr im ida c om suc e sso. P r e c isa m os nos r e la c iona r
c om a som br a c inte gr á - la , m e sm o r e c onhe c e ndo que a lgum â m a go
pr of undo da som br a j a m a is se r á dom a do. A som br a e o duplo c ontê m ,
nã o a pe na s a e sc ór ia da nossa vida c onsc ie nte , m a s ta m bé m a nossa
e ne rgia vita l pr im itiva e indif e r e nc ia da , um a pr om e ssa do f utur o c uj a
pr e se nç a a m plia a nossa pe r c e pç ã o e nos f or ta le c e a tr a vé s da te nsã o
dos opostos.

17. A anat omia do mal

JOHN C. PIERRAKOS
Explor e m os o c onc e ito do m a l a bor da ndo- o a pa r tir do se u oposto, o
be m . Na sa úde , que é o be m ou a ve r da de da vida , a r e a lida de do se r
hum a no, a e ne rgia e a c onsc iê nc ia e stã o be m unif ic a da s, O hom e m
se nte e ssa unida de . Há pouc o te m po um m úsic o que ve io pa r a um a
c onsulta disse m e que , qua ndo toc a va a pa r tir do se u se r inte r ior, os
m ovim e ntos do se u orga nism o sim ple sm e nte f luía m de m odo
e spontâ ne o; e r a m e le s que toc a va m o instr um e nto. Ele s se libe r ta va m ,
se c oor de na va m e c r ia va m sons be líssim os, Qua ndo o se r hum a no
e stá num e sta do sa udá ve l, sua vida é um c onsta nte pr oc e sso c r ia tivo.
Ele é inunda do por se ntim e ntos de a m or e de unida de c om os outr os
se r e s hum a nos. A unida de é a pe r c e pç ã o de que e le nã o é dif e r e nte
dos outr os. Ele que r a j udá - los; ide ntif ic a - se c om e le s: pe r c e be que
tudo o que a c onte c e a e le s a c onte c e a si m e sm o. Um a pe ssoa
sa udá ve l te m um a dir e ç ã o positiva na sua vida . Ela "que r " a sua vida
num a dir e ç ã o positiva e , a ssim , e nc ontr a o suc e sso — e m se us
ne góc ios, e m se us pe nsa m e ntos, e m sua se nsa ç ã o de c onte nta m e nto
c onsigo m e sm a . Ne sse e sta do, e xiste pouc a ou ne nhum a doe nç a , e
ne nhum a m a lda de .

Enqua nto que , no e sta do de doe nç a , a pr im e ir a c a r a c te r ístic a é que a


r e a lida de é distor c ida — a r e a lida de do c or po, a r e a lida de da s
e m oç õe s e a r e a lida de da ve r da de ir a na tur e za dos outr os se r e s e de
sua s a ç õe s. A m a lda de , por ta nto, é um a distor ç ã o de f a tos que , e m si
m e sm os, sã o na tur a is. Com o a pe ssoa doe nte nã o pe r c e be sua s
pr ópr ia s distor ç õe s, e la a c ha que os m a le s da sua vida e o se u m a u
f unc iona m e nto vê m de f or a . Qua nto m a is doe nte f ic a , m a is a c ha que
se us pr oble m a s sã o c a usa dos por f or ç a s e xte r na s. Um a pe ssoa e m
e sta do psic ótic o, por e xe m plo, vê o m undo c om o hostil. Ela se nta
num a c a de ir a , olha pa r a a pa r e de e diz, "e le s e stã o f a ze ndo isso
c om igo. Ele s vã o m e m a ta r, e le s vã o m e e nve ne na r ". Ela a bdic a por
c om ple to de sua r e sponsa bilida de pe ssoa l pe la sua vida e pe la s sua s
a ç õe s, Ela se nte que tudo lhe a c onte c e a pa r tir de f or a . Um a pe ssoa
sa udá ve l é c a pa z de , e m gr a nde m e dida , f a ze r e xa ta m e nte o oposto.

O que a c onte c e na pe ssoa doe nte ? Sua c onsc iê nc ia e sua s e ne rgia s se


a lte r a m , de a lgum m odo. Sua c onsc iê nc ia nã o é a m e sm a de a nte s.
Ela tr a nsf or m a a vida num a ve r sã o distor c ida de si m e sm a e , e ntã o, a
e ne rgia de ssa pe ssoa a lte r a a s m a nif e sta ç õe s da c onsc iê nc ia . Se u
pe nsa m e nto é lim ita do. Se us se ntim e ntos sã o e xpr e ssos pe lo ódio, pe la
br uta lida de e c r ue lda de , pe lo m e do e te r r or.

Wilhe lm Re ic h, a o de sc r e ve r a c ondiç ã o de e nc ouraç ame nto,


e sc la r e c e u o m odo c om o a doe nç a a ge . A pe ssoa e nc our a ç a da , disse
e le , f e c ha - se à na tur e za e rgue ndo ba r r e ir a s c ontr a os im pulsos vita is
de ntr o do se u c or po. O c or po e nc our a ç a do e ndur e c e e tor na - se
ina c e ssíve l a o se ntim e nto; a s se nsa ç õe s orgâ nic a s dim inue m ou
de sa pa r e c e m . A pe ssoa tor na - se indif e r e nte ; e la ode ia , m a s ne m
se que r sa be que ode ia . Ela é a m biva le nte .

Re ic h a c r e dita va que c a da e ntida de , c a da se r hum a no, te m um


â m a go, c om o o c or a ç ã o, onde o m ovim e nto pulsa nte da vida se inic ia .
Na pe ssoa r e la tiva m e nte livr e , o m ovim e nto pulsa nte a lc a nç a a
pe r if e r ia se m se r distor c ido e e ssa pe ssoa se e xpr e ssa , se m ove , se nte ,
r e spir a , vibr a . Ma s na pe ssoa e nc our a ç a da , e ntr e o â m a go e a
pe r if e r ia , e xiste um a "Linha Ma ginot". Qua ndo os im pulsos vita is
a tinge m a s f or tif ic a ç õe s da c our a ç a , a pe ssoa se a te r r or iza e a c r e dita
que pr e c isa supr im i- los; pois a c r e dita que , se subir e m à supe r f íc ie ,
e la se r á dizim a da . P a r a e la , se us se ntim e ntos — e spe c ia lm e nte os
r e la c iona dos c om o se xo — sã o te r r íve is, suj os, m a us. Qua ndo os
im pulsos a gr e ssivos m a ntidos de ntr o de sse núc le o a tinge m a c our a ç a ,
e le s a f a ze m e str e m e c e r. E, de f a to, se e le s r om pe r e m a "Linha
Ma ginot", o te r r or tor na r á e ssa pe ssoa a bsoluta m e nte br uta l. Ela e stá
a te r r or iza da por que nã o c onse gue tole r a r se us se ntim e ntos, o
m ovim e nto e a se nsa ç ã o de vida de ntr o de la , o doc e m ur m úr io da
e m oç ã o, o pulsa r do a m or, e e la a ge c ontr a si m e sm a e c ontr a os
outr os, tor na ndo- se "a ntivida ". Ela nã o pe r c e be que a c our a ç a é um a
m or te que tor na ina c e ssíve l o â m a go da vida ; e la nã o pe r c e be que o
f e io e o odioso é a c our a ç a . No e sta do e nc our a ç a do, por ta nto, o se r
hum a no se divide — a m e nte se se pa r a do c or po; o c or po, da s
e m oç õe s; a s e m oç õe s, do e spír ito.

O e nc our a ç a m e nto pode f a ze r da pe ssoa um m ístic o, por que e la nã o


c onse gue a c e ita r o f a to de que De us e stá ne la , Ela olha pa r a De us "lá
f or a ", e diz "Se e u r e za r, se e u m e pur if ic a r, r e solve r e i todos os m e us
pr oble m a s". Ma s isso nunc a é possíve l, por que um a pe ssoa que tom a o
r um o da e spir itua lida de se m a nte s te r tr a ba lha do sua s ne ga tivida de s
— a s de f e sa s do se u e go, sua s r e sistê nc ia s — voa a lto c om o Í c a r o
m a s, qua ndo a lc a nç a o Sol f la m e j a nte , c a i no m a r, o m a r da vida , e
se a f oga . É a pe na s tr a nsc e nde ndo e supe r a ndo os obstá c ulos à vida
que o se r hum a no pode e le va r- se a os dom ínios da c r ia ç ã o e da
e spir itua lida de .
Em c ontr a ste c om o m ístic o, o e nc our a ç a m e nto pode tor na r um a
pe ssoa br uta l. Qua ndo e xpr e ssa se us se ntim e ntos, e la é um m onstr o. E
e ntã o e xpe r im e nta o te r r or, por que a c ha que , se pe r c e be r se us
se ntim e ntos ge nuínos, se r á de str uída .

Com o um se r hum a no e nc our a ç a do se libe r ta de ssa s ba r r e ir a s? Re ic h


disse que pr e c isa m os r e c onhe c e r nã o a pe na s o r a c iona l m a s ta m bé m
o ir r a c iona l pr ove itoso. P r e c isa m os ve r a nossa ir r a c iona lida de c om o
a lgo m uito im por ta nte . P r e c isa m os c onhe c ê - la , a dm iti- la , e xpô- la .
P ois e la c onté m o f luxo do r io da vida . Se nos se c c iona m os do
ir r a c iona l, tor na m o- nos pe da nte s e m or tos. Com isso nã o que r o dize r
que de va m os nos c om por ta r ir r a c iona lm e nte e m todos os m om e ntos,
que r o dize r que pr e c isa m os a c e ita r a ir r a c iona lida de , tom a r a e ne rgia
que e stá inve stida ne la , de sa tivá - la e c om pr e e nde r os obstá c ulos que
e rgue m os na vida que c r ia m a ir r a c iona lida de . Re ic h disse outr a c oisa
f unda m e nta l: pr e c isa m os de sc a r ta r o c onc e ito da a ntíte se e ntr e De us
e o dia bo. P r e c isa m os e xpa ndir a s f r onte ir a s do nosso pe nsa m e nto.

A m a nif e sta ç ã o do m a l, por ta nto, nã o é a lgo que se j a intr inse c a m e nte


dif e r e nte da e ne rgia e da c onsc iê nc ia pur a s; e la é a pe na s um a c r ia ç ã o
que m udou sua s c a r a c te r ístic a s. Em e ssê nc ia , o m a l nã o e xiste ; m a s
no dom ínio da m a nif e sta ç ã o hum a na , sim .

O que signif ic a o m a l e m r e la ç ã o à e ne rgia e à c onsc iê nc ia ? Em


te r m os de e ne rgia , signif ic a um a de sa c e le r a ç ã o, um a dim inuiç ã o de
f r e quê nc ia , um a c onde nsa ç ã o. A pe ssoa se se nte pe sa da , a ta da ,
im obiliza da . Sa be m os que qua ndo nos se ntim os hostis, m or tos ou de
qua lque r outr o m odo ne ga tivos, se ntim o- nos m uito pe sa dos. Com a
e ne rgia , se ntim os o oposto: vibr a nte s. Ca m inha m os nos bosque s e nos
se ntim os voa r. P or ta nto, a e ne rgia do c or po pode se de sa c e le r a r e se
c onde nsa r.

Em te r m os de c onsc iê nc ia , qua nto m a is ba ixa a f r e quê nc ia do


m ovim e nto, ta nto m a ior a distor ç ã o da c onsc iê nc ia ; e vic e - ve r sa .
Qua nto m a is pe sa dos e ne ga tivos som os, ta nto m e nos c r ia tivos,
se nsíve is e c om pr e e nsivos se r e m os, P ode m os a lc a nç a r o ponto de
bloque a r todo m ovim e nto e pe r m a ne c e r na c a be ç a ; ne sse e xtr e m o,
f ic a m os obstr uídos e e ntã o na da im por ta , A r e ligiã o e vá r ios siste m a s
é tic os a pr e se nta r a m toda s a s a titude s ne ga tiva s ( ta is c om o o ódio, a
f a lsida de , o de spe ito c a tr a iç ã o) c om o m a l, m a l. m a l. A r e ligiã o vê
e sse s e sta dos e a s a ç õe s que os e xpr e ssa m c om o r e sulta do de um a
c onsc iê nc ia distor c ida do que é bom e m a u de a c or do c om sua s
c odif ic a ç õe s.

Na Bíblia , Je sus disse um a se nte nç a que a m e u ve r le va nta um a


que stã o im por ta nte . Fa la ndo a se us disc ípulos, e le e nsinou: "Nã o
r e sista is a o m a u" ( Ma te us 5:39) . Exa m ine m os e sse e nsina m e nto. A
pr ópr ia r e sistê nc ia é o m a l. Qua ndo nã o e xiste r e sistê nc ia , a e ne rgia é
de sobstr uída e f lue nte . Qua ndo e xiste r e sistê nc ia , o m ovim e nto c e ssa ,
se opõe e e sta gna o orga nism o. A r e sistê nc ia suf oc a a s e m oç õe s,
a niquila a e ne rgia e m a ta os se ntim e ntos. A r e sistê nc ia é f ilha da
c a ute la , um m e c a nism o pe nsa nte — pe nsa nte nã o no se ntido de
pe nsa m e nto a bstr a to, m a s de pe nsa m e nto orga niza c iona l.

A c onsc iê nc ia é , de a lgum m odo, r e sponsá ve l pe lo f luxo de e ne rgia no


orga nism o, a ssim c om o a c onsc iê nc ia num a dim e nsã o c ósm ic a é
r e sponsá ve l pe lo f luxo de e ne rgia no unive r so. Qua ndo digo
"r e sponsá ve l por ", nã o que r o dize r "c ulpa da por ": na psiquia tr ia ,
e vita m os se m pr e c e nsur a r um a pe ssoa por sua s a ç õe s ne ga tiva s ou
se u c onte údo inc onsc ie nte . Te nta m os vê - los c om o r e sulta do de um
e sta do dinâ m ic o c r ia do de um m odo do qua l a pe ssoa nã o e stá c ie nte
e pe lo qua l, por ta nto, nã o pode se r c e nsur a da . Qua ndo a c onsc iê nc ia é
ne ga tiva , a pe ssoa é r e siste nte à ve r da de . Existe m r e sistê nc ia s
c onsc ie nte s, que um a pe ssoa usa inte nc iona lm e nte e c ie nte da quilo
que e la opta por f a ze r. Um hom e m f e r ido pe la e sposa pode opta r por
r e ve la r se us se ntim e ntos de a m or e pe r doa r ; ou opta r por m a nte r o
se ntim e nto ne ga tivo e de str utivo, e vinga r- se da e sposa . Ne m tudo isso
é r e sulta do de c om por ta m e nto inc onsc ie nte , e m bor a gr a nde pa r te o
se j a ; e sse hom e m nã o é r e sponsá ve l pe la pr opulsã o inc onsc ie nte .

O m a l, por ta nto, é be m m a is pr of undo do que o c onc e be m os c ódigos


m or a is. Ele é "a ntivida ". A vida é um a f or ç a pulsa nte e dinâ m ic a ; é
e ne rgia e c onsc iê nc ia que se m a nif e sta m de m uita s m a ne ir a s, Nã o
e xiste o m a l, a m e nos que e xista r e sistê nc ia à vida . Essa r e sistê nc ia é
a m a nif e sta ç ã o da quilo a que c ha m a m os "m a l". O que c r ia o m a l é a
distor ç ã o da e ne rgia e da c onsc iê nc ia .

18. A luz da saúde , a sombr a da doe nç a

LARRY DOSSEY

O poe ta Ga r y Sny de r c om e ntou c e r ta ve z que só a s pe ssoa s que


f osse m c a pa ze s de de sistir do pla ne ta Te r r a e sta r ia m a pta s a tr a ba lha r
pe la sua sobr e vivê nc ia e c ológic a . Com e sse c om e ntá r io, e le e luc idou
um a pe r spe c tiva que é f r e que nte m e nte e sque c ida : e xiste um a liga ç ã o
intr ínse c a e ntr e os opostos, m e sm o os e xtr e m os da m or te ou da
sobr e vivê nc ia pla ne tá r ia s.

Essa m e sm a f or ç a unif ic a dor a a glutina os e xtr e m os da sa úde e da


doe nç a . Existe um a pr of unda r e c ipr oc ida de , um e lo inque br a ntá ve l
e ntr e a he dionde z da doe nç a e o e sple ndor da sa úde . P ode pa r e c e r
e str a nho suge r ir a e xistê nc ia de ta l r e la ç ã o, te ndo e m vista a c r e nç a
ge r a l de que a doe nç a de ve se r e xte r m ina da , de que e la é o a r a uto da
m or te , um a pr e c ur sor a da e xtinç ã o pe ssoa l, Ainda a ssim , e ssa s
c one xõe s e ntr e os "opostos" nã o de ixa m de e xistir. Ela s pe r m a ne c e m
nos nossos ossos, no nosso sa ngue . Ela s sã o pa r te da nossa sa be dor ia
c ole tiva e sobr e vive m , inta c ta s, e m m uita s c ultur a s da Te r r a . Me sm o
na nossa soc ie da de , a inda nã o c onse guim os e xpulsá - la s a pe sa r da s
c a m pa nha s of ic ia is c ontr a dive r sa s doe nç a s e de um a te c nologia
m é dic a que pr om e te um a e ve ntua l e r r a dic a ç ã o da s pr inc ipa is doe nç a s
dos nossos te m pos.

Esque c e m os c om o pe nsa r sobr e a doe nç a . Na ve r da de , te nta m os c om


toda s a s nossa s f or ç a s não pe nsa r ne la — tir a ndo- a da nossa m e nte a té
que c he ga a hor a do c he c k - up a nua l ou a té que c ontr a ím os a lgum tipo
de doe nç a . P a r te de se r sa udá ve l, dize m - nos, é pe nsar sa udá ve l — o
que , pr e sum im os, não inc lui f ic a r r um ina ndo doe nç a s. Esquiva m o- nos
da s m olé stia s, te m os hor r or de ir a os f une r a is de a m igos m or tos ou a o
hospita l visita r a m igos doe nte s, e a té m e sm o de ir a o de ntista , a o
c línic o ge r a l, a o m é dic o da f a m ília , a o pe dia tr a ou a o gine c ologista .

No e nta nto, nã o c onse guim os n ã o pe nsa r na doe nç a . Ela nos e nvia


c onsta nte s le m br e te s, sob a f or m a do r e sf r ia do c om um que
c ontr a ím os ou da doe nç a de um a m igo. A m or te f a z pa r te da e str utur a
soc ia l c ole tiva . P or m a is que te nte m os, nã o c onse guim os e vita r o
c onf r onto c om a doe nç a .

P a r e c e que a nossa sim ple s inc a pa c ida de de nos e sc onde r da doe nç a ,


de tr oc a r pe r m a ne nte m e nte se u a br a ç o pe lo a br a ç o da sa úde , nos diz
a lgo sobr e o r e la c iona m e nto da s dua s: e la s e stã o m iste r iosa m e nte
unida s; c onhe c e r um a é c onhe c e r a outr a ; nã o pode m os te r um a se m
te r a outr a . Assim c om o nã o c onse guim os c onhe c e r o la do de c im a
se m o la do de ba ixo, ou o pr e to se m o br a nc o, pa r e c e que nã o
c onse guim os dividir nossa c onsc iê nc ia de um m odo que e xc lua a
doe nç a e a m or te e m f a vor da sa úde .

De f a to, nã o c onse guim os nos e nvolve r e m ne nhum tipo de c uida do


c om a sa úde se m pe rgunta r a nós m e sm os: "O que e stou te nta ndo
pr e ve nir ?" Me sm o qua ndo o e nvolvim e nto é c om a lgo tã o pr osa ic o
c om o um a va c ina ç ã o, e m a lgum níve l psic ológic o nos de f r onta m os
c om a pe rgunta : "Contra o que e stou m e va c ina ndo?" Me sm o qua ndo
tudo o que f a ze m os é pe r m itir que nos m e ç a m de gr a ç a a pr e ssã o
a r te r ia l num a de ssa s "c a m pa nha s de sa úde " c a da ve z m a is popula r e s,
o m e do subte r r â ne o a inda r onda : "O que a c onte c e r ia se e u ignor a sse a
m inha pr e ssã o a r te r ia l?" Todos os a tos de sa úde tr a ze m e m si e sse
la do e sc ur o e c inze nto, por que nos f a ze m le m br a r a quilo que m a is
que r e m os e vita r : a doe nç a e a m or te sã o ine vitá ve is e , por m a is que
te nte m os, nunc a c onse guir e m os se pa r a r a sa úde da doe nç a ne m a
m or te do na sc im e nto. E nosso f r e ne si de se r sa udá ve is a pe na s
a um e nta a nossa se nsibilida de a os f e nôm e nos da doe nç a e da m or te —
a ssim c om o a luz, no m undo m a te r ia l, se m pr e la nç a som br a s. As dua s
c a m inha m j unta s, a tr a e m - se m utua m e nte e nã o pode m se r
se c c iona da s.

A m a ior ia da s c ultur a s pr é - m ode r na s pa r e c e te r tido um a


c om pr e e nsã o m a is pr of unda da na tur e za inse pa r á ve l da sa úde e da
doe nç a ; se us m itos e r itua is inc or por a m e ssa sa be dor ia . Em m uita s
soc ie da de s te nta va - se v iv e r c om a doe nç a , nã o e s c o n d e r- s e da
doe nç a . P ode - se a rgum e nta r, é c la r o, que e ssa s c ultur a s nã o f ugia m
da doe nç a e da m or te por que nã o tinha m c ondiç õe s de f a zê - lo; e que ,
se tive sse m sido tã o a va nç a da s te c nologic a m e nte qua nto a nossa
soc ie da de , e la s te r ia m ta nto hor r or à doe nç a e à m or te qua nto nós.
Em bor a possa ha ve r a lgum m é r ito ne sse a rgum e nto, o m a is pr ová ve l
é que a s a titude s de m uita s soc ie da de s pr é - m ode r na s dia nte da m or te
e da doe nç a f osse m um a e xpr e ssã o de um m odo orgâ nic o de se r, um a
m a ne ir a de e sta r no m undo na qua l a a c e ita ç ã o da r e a lida de nã o e r a
um a f unç ã o da im potê nc ia , m a s a e xpr e ssã o de um a c om pr e e nsã o
pr of unda do m undo.

A doe nç a pode se r vista c om o se f osse um a c oisa e m si m e sm a , c om


sua s pr ópr ia s ne c e ssida de s — a ne c e ssida de de que f a le m os e
r a c ioc ine m os c om e la , a ne c e ssida de de que a c uide m os e lhe de m os
a te nç ã o. A doe nç a pode se r vista c om o razoáv e l: ba rga nha s pode m
se r c onse guida s, ne góc ios pode m se r f e itos. Essa a titude e stá e m
a gudo c ontr a ste c om o m odo c om o nos ve m os e m bosc a dos e
de r r uba dos, por e xe m plo, pe lo c â nc e r ou pe lo a ta que c a r día c o.

Hoj e e m dia , nosso se nso de liga ç ã o c om a doe nç a pe r de u- se , tr oc a do


que f oi por f or m a s te c nológic a s de inte r ve nç ã o que a c a ba r a m por nos
c usta r gr a nde pa r te do nosso se nso de liga ç ã o c om a sa úde . Nã o
sa be m os c om o sa bor e a r a sa úde por que pe r de m os a s liga ç õe s vita is
e ntr e a sa úde e a doe nç a . Nã o é possíve l substituir um a liga ç ã o
orgâ nic a c om o m undo por a ntibiótic os, c ir urgia s e pr om e ssa s de
im or ta lida de , se m de str uir a lgum a c oisa vita l, um a c oisa que é a
sa úde e m si. Nã o que a s inte r ve nç õe s m ode r na s se j a m "m á s"; o que
oc or r e é que e la s nã o pode m substituir a sa be dor ia do "é a ssim que a s
c oisa s sã o", c om o diz Huston Sm ith, f ilósof o da s r e ligiõe s. A
te c nologia , e m si, nã o é sa be dor ia ; e la nã o ga r a nte a e x pe riê nc ia da
sa úde .

Esta r e m os, nos dia s de hoj e , r e de sc obr indo a orga nic ida de do m undo
c onhe c ida pe los pr im itivos ha bita nte s do pla ne ta ? Ta lve z. Está c la r o
que nã o te m os a s r e sposta s que gosta r ía m os de te r e m r e la ç ã o a o
e nte ndim e nto da sa úde e da doe nç a ; e stá c la r o que a nossa soc ie da de
se c onsom e de r e sse ntim e nto pe la s pr om e ssa s nã o c um pr ida s e pe la
de sum a nida de que pe r c e be na m e dic ina m ode r na . Ma s, na m inha
opiniã o, e ssa r a iva ( de c uj a e xistê nc ia nã o se pode duvida r ) nã o e stá
be m dir igida . É um a r a iva que se dir ige a be r ta m e nte c ontr a o
"siste m a " — m a s um siste m a que é , na r e a lida de , nós m e sm os.
Esta m os de sa ponta dos c om nós m e sm os por te r m os sido iludidos e por
te r m os de ixa do que nos ve nde sse m o e sque c im e nto de a lgo que um
dia c onhe c e m os, de sa ponta dos por te r m os c or ta do nossos la ç os
orgâ nic os c om o m undo e m que vive m os. Esta m os a pr e nde ndo, de
m odo dolor oso e pr of undo, que longe vida de nã o e quiva le a qua lida de
de vida . Esta m os pe r c e be ndo a va c uida de de c onc e itos ta is c om o "o
inte r va lo livr e de doe nç a s". Nã o pode m os ignor a r que a lgo vita l e stá
f a lta ndo à nossa sa úde — a lgo se m o qua l sa úde nã o é sa úde .

O que é e sse "a lgo", e sse e le m e nto f a lta nte ? Ac ho que e sse a lgo é "a
som br a que a doe nç a é ", a som br a que se m pr e a c om pa nha a luz da
sa úde . É a liga ç ã o orgâ nic a que se ntim os c om o m undo, a c onvic ç ã o
de que o m undo nã o pode se r f or ç a do a a c e ita r f or m a s que nã o sã o
pa r te de sua na tur e za . E a disponibilida de pa r a a c e ita r a doe nç a c om
ta nta c onvic ç ã o qua nto a c e ita m os a sa úde , sa be ndo, a o f a zê - lo, que
ne nhum a de ssa s e xpe r iê nc ia s te m se ntido se m a outr a .

É dif íc il a dm itir ne c e ssida de s r e c ípr oc a s ta is c om o a liga ç ã o e ntr e


sa úde e doe nç a , pois nossa c ultur a a c r e dita que pode mos te r a s c oisa s
"de um m odo ou do outr o" — que pode m os te r o la do de c im a se m o
la do de ba ixo, te r o pr e to se m o br a nc o. P o d e m o s te r sa úde se m
doe nç a ou, ta lve z, a té m e sm o na sc im e nto se m m or te . Se r ia só um a
que stã o de te m po, de m a is f undos pa r a pe squisa s, de m a is r e c ur sos
hum a nos. P e dir que ultr a pa sse m os e sse tipo de pe nsa m e nto do tipo
"e /ou" pa r e c e c onvida r a um a f or m a de pe nsa m e nto pr im itiva que nã o
se e nqua dr a r ia no pote nc ia l da é poc a m ode r na .

No e nta nto, nã o f oi só o hom e m pr im itivo que c om pr e e nde u a


na tur e za inse pa r á ve l dos opostos. Essa é um a visã o a que c he ga r a m os
hom e ns e m toda s a s é poc a s da histór ia . Essa é um a sa be dor ia pe r e ne ,
ine r e nte à s tr a diç õe s m ístic a s e poé tic a s de todos os te m pos.

19. A doe nç a c omo "que da" no c or po

ALFRED J. ZIEG LER


O hom e m é um a quim e r a , um a m onstr uosida de c om posta por um
núm e r o inf inito de c ontr a diç õe s. Ele te m m a is de m onstr o que de um
se r r a c iona l — a Na tur e za , c om m uita a r te , c onse guiu disf a r ç a r e ssa
c a r a c te r ístic a a ponto de nos se ntir m os m uito m a is à vonta de c om e le
do que nos se ntir ía m os c om a lgum a biza r r a c r ia tur a do e spa ç o
inte rga lá c tic o. E c om o se o pr ópr io Édipo f osse a Esf inge que e le
e nc ontr ou a c a m inho de Te ba s e que lhe pe rguntou: "O que é o
hom e m ?" É c om o se o c e nta ur o que os gr e gos via m c om o o a nc e str a l
dos m é dic os j á a te sta sse , por sua f or m a quim é r ic a , a ve r da de de que
todo o c onhe c im e nto e sse nc ia l da na tur e za hum a na de ve se r híbr ido.

Ou a c a so nã o é ve r da de que na r a ç a hum a na o a m or pode pe r ve r te r-


se e m ódio e o ódio e m a m or ; que a e f ic iê nc ia tr a z c onsigo o de sle ixo
ou que por tr á s de todo siste m a e or de m nã o br ilha o e spe c tr o da
de sinte gr a ç ã o? Nã o e sta m os se m pr e a nos de f r onta r c om f e nôm e nos
ta is c om o a c r ític a pa r a lisa nte que nos a m e a ç a no a m or m a te r no, a
tr a iç ã o que m a nté m viva a noç ã o de f ide lida de e vic e - ve r sa , a tr iste
sina do a lc oóla tr a de te r sua insa c ia bilida de de r iva da de sua pr ópr ia
sobr ie da de , ou o hipoc ondr ía c o que e spe r a o pior de si m e sm o
sim ple sm e nte por que nã o tole r a sua s pr ópr ia s ne c e ssida de s?

De sde que a c iê nc ia da psic ologia , e ntor pe c ida no e spír ito m a s


r a c iona l e m sua a bor da ge m , pa ssou a e studa r a s c ondiç õe s e
f e nôm e nos e xiste nte s, e la te m r e ve la do um núm e r o c r e sc e nte de ssa s
disc r e pâ nc ia s. Ma s pa r e c e que qua ndo a psic ologia de sc obr e
pola r ida de s — que a e xtr ove r sã o e a intr ove r sã o se m e sc la m e m
qua lque r indivíduo, que um sá dic o e spr e ita e m todo m a soquista e que
o pe nsa m e nto digita l pr e c isa e sta r se m pr e e m gua r da pa r a nã o c a ir na
supe r stiç ã o a na lógic a — se u r e gozij o é inútil. P or m a is ilum ina dor
que possa se r todo e sse c onhe c im e nto dos opostos hum a nos, nossa s
inf or m a ç õe s a té a gor a sã o tr iste m e nte e sc a ssa s. Toda a r ique za de
pola r ida de s hum a na s só pa r e c e tor na r- se visíve l qua ndo, a o ponde r a r
sobr e os e nigm a s da doe nç a , tr ope ç a m os na s m últipla s qua lida de s
hum a na s que de se m pe nha m um pa pe l tã o im por ta nte na gê ne se da
doe nç a . Nova s pola r ida de s e stã o se m pr e e nc ontr a ndo r e a lida de
m a te r ia l —- c om o qua ndo o c onf lito e ntr e a subm issã o e o e stoic o
"Nã o" r e sulta num a a r tr ite r e um á tic a ; ou qua ndo a disc r e pâ nc ia e ntr e
um a na tur e za de pe nde nte e a inte nç ã o se m pr e f r a c a ssa da de r e j e ita r
a de pe ndê nc ia se m a nif e sta num a e sc le r ose m últipla .

Ape sa r do pa dr ã o f unda m e nta lm e nte pola r, a na tur e za hum a na nã o é


sim é tr ic a ; sua s c a r a c te r ístic a s nã o se a r r a nj a m c om o os r a ios de um a
r oda . O hom e m nã o é um a c r ia ç ã o ha r m ônic a ; e le possui um pe r f il
de f inido e im pe r m uta bilida de individua l. Os poe ta s f ize r a m na sc e r
um a f a r tur a de ssa s c a r a c te r ístic a s individua is, e nqua nto os psic ólogos,
c om sua s tipologia s, e m c om pa r a ç ã o c onstr oe m im a ge ns ba sta nte
pobr e s. Existe m os ilum ina dos, os tr a iç oe ir os, os tolos; e xiste m os
hom e ns r e tos que a ge m c e r to e nã o f oge m de ningué m ; os dir e tos, os
dissim ula dos, os r a ste j a nte s e m uitos, m uitos m a is. Sim , pois nã o
im por ta qua is os c ontor nos, nã o im por ta o que c a r a c te r iza um a pe ssoa
c om o m ode la r ou r e volta nte , de sc obr ir e m os se m pr e que e ssa s
c a r a c te r ístic a s sã o a pe na s os a spe c tos dom ina nte s e "sa udá ve is" da s
pola r ida de s, os tr a ç os que , num a ba se r e la tiva m e nte c onsiste nte ,
c om pr e e nde m a pe r sona lida de pr e dom ina nte e pode m se r m a is ou
m e nos c onf iá ve is. Em sua m a ior pa r te , os tr a ç os dom ina nte s a j uda m -
nos a a br ir o nosso c a m inho na vida e a nos a da pta r à s c ir c unstâ nc ia s
r e la tiva s a os nossos obj e tivos.

Esse s m e sm os tr a ç os ta m bé m sã o os la dos supe r e stim a dos e


glor if ic a dos da nossa pe r sona lida de , de ntr o dos qua is j a ze m oc ultos os
tr a ç os e sc ur os e nã o a dm itidos, c om ple ta ndo- nos c om o dic otôm ic a s
quim e r a s. Os tr a ç os e sc ur os se r ia m a s qua lida de s r e c e ssiva s e
de c e pc iona nte s que , e m ge r a l, só pe r c e be m os de m odo inc onsc ie nte e
que se a lte r na m e m ine spe r a da s a pa r iç õe s. De vido a sua
im pr e visibilida de , nós os a c ha m os ir r ita nte s, e spe c ia lm e nte qua ndo
e le s nos c oloc a m e m situa ç õe s e m ba r a ç osa s. E c om f r e quê nc ia sã o
e le s pr ópr ios que que stiona m a im a ge m que a pr e se nta m os pa r a
c onsum o públic o e que a ge m c om o a f onte de dúvida da nossa
ide ntida de . Os tr a ç os r e c e ssivos sã o ta m bé m os la dos m e nos
a da pta dos da nossa pe r sona lida de , que possue m a c ur iosa te ndê nc ia
de "de sc e r " no c or po e , a li, insiste nte s, c la m a r pe la nossa a te nç ã o sob
a f or m a de síndr om e s de doe nç a s. Enqua nto os tr a ç os dom ina nte s e
supe r e stim a dos nos le va m a ve r a nós m e sm os c om o o ponto a lto da
c r ia ç ã o, nossa s inf e r ior ida de s r e c e ssiva s of e r e c e m - nos todos os
m otivos pa r a duvida r de ssa te se .

"A Que da ", a m e ta m or f ose pa r a o sof r im e nto f ísic o, é pr e c e dida por


c e r ta s pr e m oniç õe s. A Na tur e za nã o nos tr a ta de m odo tã o sor r a te ir o
c om o à s ve ze s pode pa r e c e r. Muito a nte s que a situa ç ã o se tor ne sé r ia
do ponto de vista m é dic o, nosso c or a ç ã o é tor tur a do por um ódio que ,
pr of ila tic a m e nte , só gua r da no s e u "c or a ç ã o" o m e lhor pa r a nós.
Muito a nte s que qua lque r m uda nç a m or f ológic a se j a obse r va da na
c oluna ve r te br a l do f utur o c or c unda , e le é a tor m e nta do por
se ntim e ntos de c ulpa . Muito a nte s do pr im e ir o a ta que de a sm a , a
a nsie da de niilista pr e va le c e ; a ve r da de ir a c r ise dia r r e ic a se r ve a pe na s
c om o c ulm ina ç ã o da inc ontinê nc ia psíquic a dia nte de dif ic ulda de s.
Em outr a s pa la vr a s, e nf a r te s oc or r e m se m e nf a r te s ve r da de ir os,
c or c unda s nã o sã o ne c e ssa r ia m e nte de f or m ida de s, a sm á tic os nã o
pr e c isa m m a nif e sta r c onge stã o dos br ônquios e a dia r r e ia nã o
de pe nde da pr e se nç a de m ovim e ntos inte stina is de sc ontr ola dos.

P ode - se a té m e sm o dize r que a Na tur e za a lim e nta a r ic a va r ie da de


de ssa s a dve r sida de s pr e m onitór ia s, e m pr e sta ndo- lhe s a o m e sm o
te m po um a m e dida e spe c ia l de r e a lida de . Ou, e m pa la vr a s
lige ir a m e nte dif e r e nte s, a s pr e m oniç õe s pr é - m ór bida s se intr om e te m
a pe na s o suf ic ie nte pa r a nos m ostr a r onde e sta m os e a té que ponto
e xc e de m os os lim ite s na tur a is da sa úde de a c or do c om um a le i de
inte nsidade , c om gr a us de pr ior ida de . O f a to de que a s pr e m oniç õe s,
de um m odo ou de outr o, e stã o se m pr e pr e se nte s, c om pr ova a
inte nç ã o de pr e ve nç ã o c ontínua da Na tur e za . As pr e m oniç õe s pr é -
m ór bida s pr om ove m a sa úde , pr e c e de m a doe nç a e guia m a s pe ssoa s
que pr e sta m a te nç ã o a e la s a o c a m inho do be m - e sta r f ísic o.

Enqua nto o que c ha m a m os "pr e m oniç õe s" pe r m a ne c e r e m a pe na s


pe r c e ptíve is num e sta do pr é - m ór bido, e la s pode m a m plia r nossa s
c a pa c ida de s a lim ite s j a m a is sonha dos. As pr e m oniç õe s a tua m c om o
um a e spé c ie de "le ve dur a ", m otiva ndo- nos ou le va ndo- nos a e sc a pa r
pa r a a oste nta ç ã o de sa úde e os a tos que a c a r a c te r iza m . De sse m odo,
a s pr e m oniç õe s pr é - m ór bida s nos "c e va m " e e sse pr oc e sso, gr a ç a s à s
inc ontá ve is possibilida de s de r e pr e ssã o e supr e ssã o, pe r m ite - nos
de se nvolve r um a im a ge m e xa ge r a da e inc om um de nós m e sm os.
Em bor a e sse pr oc e sso possa f a c ilm e nte induzir- nos a o e r r o e , a ssim ,
e voc a r a doe nç a , e le ta m bé m nos pr opor c iona o e nte ndim e nto do
pr oc e sso inve r so, ou se j a , de c om o o gê nio f lor e sc e no e str um e da
pr é - m or bide z.

A longo pr a zo, no e nta nto, a sa úde sola pa a si m e sm a pois, c om o


e nsina nossa e xpe r iê nc ia c otidia na , a c a da dia que pa ssa a vida
hum a na m a is e nc ontr a a doe nç a e te r m ina , f ina lm e nte , na m or te .
Te r ía m os de se r te r r ive lm e nte ingê nuos pa r a im a gina r que a Na tur e za
só te m e m m e nte o nosso be m - e sta r ; e la nã o a ge visa ndo m a nte r- nos
num e sta do e te r na m e nte j ove m de sa úde , m a s sim visa ndo a nossa
e xtinç ã o. É c om o se a Na tur e za pr e te nde sse que o nosso m a ior gr a u
possíve l de sa úde f osse o m a ior gr a u possíve l de doe nç a que pode m os
tole r a r. Se o nosso "de sf a ze r " de pe nde do la do r e c e ssivo da divisã o
quim é r ic a que nos é ine r e nte ( e que guia o nosso c om por ta m e nto
ha bitua l pa r a que nã o se j a m os de m a sia do induzidos a o e r r o) e també m
se e sse m e sm o "de sf a ze r " c om de m a sia da r a pide z se pe r ve r te e m
doe nç a f ísic a , e ntã o tor na - se e vide nte que a Na tur e za nã o pla ne j ou
pa r a nós o tipo de be m - e sta r que é e xpr e sso pe la s nossa s noç õe s
c onte m por â ne a s de "sa úde ".

P e lo c ontr á r io, o se r hum a no pa r e c e m e nos c a pa z de s e r sa udá ve l


qua nto m a is a c r e dita que p re c isa se r sa udá ve l. P or e ssa r a zã o, os
e spor te s tor na m - se m a is pe r igosos à m e dida que inc or por a m um
pe nsa m e nto c om pe titivo ir r e f le tido e im pe nsa do. Qua nto m a is
a c ha r m os que pr e c isa m os a dota r um a a titude inf le xíve l e m r e la ç ã o ã
vida e a o vive r, ta nto m a is c e r to que a c ova r dia e o m e do se
a pode r a r ã o de nós, se j a sob a f or m a da dúvida , se j a a tr a vé s da gula
que r e sta ur a a nossa a utoc onf ia nç a . O tipo de sa úde que a Na tur e za
pla ne j ou pa r a nós se c om por ta de m odo se m e lha nte à s c ondiç õe s
m e te or ológic a s: nã o e xiste m á r e a s pe r m a ne nte s de a lta pr e ssã o se m
te m pe sta de s de f r e nte s sobr e posta s. Nã o e xiste sa úde c ontínua se m o
r isc o da m or te . P a r e c e que nã o há sa be dor ia a lgum a e m nos
tor na r m os inde pe nde nte s da Na tur e za ; é m a is sá bio vive r c om o pa r te
inte gr a nte da pa isa ge m e le m e nta l da nossa or ige m .

O se r humano é mais saudáv e l quando e stá doe nte . Na sua f or m a m a is


pur a , a sa úde é insupor tá ve l a longo pr a zo, pois e la c a r r e ga um a
r e sponsa bilida de de m a sia do gr a nde e um a libe r da de e xc e ssiva pa r a
que possa m os supor tá - la ile sos dur a nte um c e r to te m po. O "de sf a ze r "
e sua m a nif e sta ç ã o — a doe nç a — sã o, e m últim a a ná lise ,
ne c e ssá r ios. Nossa s a f liç õe s diá r ia s nã o sã o a pe na s um indíc io da
c ondition humaine , m a s ta m bé m e xpr e ssa m a nossa sa tisf a ç ã o pe lo
f a to de que o nosso be m - e sta r e o nosso pote nc ia l hum a no tê m lim ite s.
As a f liç õe s nos e nr a íza m m e lhor, f ic a m os pr ote gidos e r e sgua r da dos
por e la s c om o se todos os nossos e sf or ç os a ssum isse m um toque de
e sponta ne ida de . Qua ndo se ntim os f a lta de a r de vido à obe sida de , nã o
é pr e c iso que le ve m os a s c oisa s tã o a sé r io j á que pode m os, por a ssim
dize r, a c om pa nha r o r itm o da nossa r e spir a ç ã o a r que j a nte . O
de sc onf or to da a r tr ite a c r e sc e nta um toque de dor a todos os nossos
e m pr e e ndim e ntos e dá le gitim ida de a os nossos pe ndor e s à indolê nc ia .
Um a sinusite , a guda ou c r ônic a , pe r m ite - nos m a nte r o m undo a
distâ nc ia c om a de sc ulpa do "e stou r e sf r ia do", Qua ndo sa be m os o que
pr oc ur a r, e nc ontr a m os e xe m plos da le i da pr e se r va ç ã o do nosso
"de sf a ze r ", be m c om o o se u c or olá r io — a ne c e ssida de de doe nç a —
e m todos os a spe c tos da vida c otidia na . Qua ndo, no de c ur so de um
tr a ta m e nto psic ote r a pê utic o, a s que ixa s ou sintom a s f ísic os
r e tr oc e de m ou de sa pa r e c e m por c om ple to, é possíve l que a s
c ir c unstâ nc ia s e c om por ta m e ntos que de r a m or ige m a os sintom a s
pa r e ç a m se r um a sim ple s disf or ia . Ante s, um pe r siste nte m a l- e sta r
a bdom ina l ( c om ou se m inf e c ç ã o da be xiga ) c om plic a va a r otina
diá r ia de um a dona de c a sa ; a gor a , e la e nf r e nta um a dor inte stina l
e spa sm ódic a ou outr os tipos de dor e s que tor na m sua vida dif íc il. P or
outr o la do, qua ndo os pr oble m a s psíquic os dã o um a guina da pa r a
m e lhor, nã o e xiste ne nhum a ga r a ntia de que e le s nã o ir ã o se
m a nif e sta r ( se é que j á nã o o f ize r a m ) c om o pr oble m a s f ísic os, c om o
"que da no c or po"! P or e xe m plo, qua ndo o sof r im e nto — o "de sf a ze r "
— que a té e ntã o se e xpr e ssa va c om o f or te e f útil pr ote sto soc ia l,
a pr e se nta um a m e lhor a súbita , nã o c a usa r ia sur pr e sa vê - lo
r e a pa r e c e r c om o um dolor oso r e um a tism o.
20. O lado de moníac o da se xualidade

ADOLF G UG G ENB ÜHL- CRAIG


Um a da s gr a nde s ta r e f a s do pr oc e sso de individua ç ã o é e xpe r im e nta r
o la do e sc ur o e de str utivo. I sso pode oc or r e r por m e io da se xua lida de ,
que é um dos m uitos pa lc os possíve is pa r a e ssa e xpe r iê nc ia . É c la r o
que nã o e sta m os dize ndo que a pe ssoa pr e c isa de ixa r- se inunda r por
f a nta sia s de um Ma r quê s de Sa de , ne m que e la de va vive r e ssa s
f a nta sia s. Signif ic a , a nte s, que a s f a nta sia s de sse tipo pode m se r
e nte ndida s c om o a e xpr e ssã o sim bólic a de um pr oc e sso de
individua ç ã o que e stá se de sdobr a ndo no te r r itór io dos de use s se xua is.

Ce r ta ve z, tive c om o pa c ie nte um a m ulhe r m a soquista , um a


a utof la ge la dor a , a que m te nte i a j uda r a nor m a liza r- se . Che gue i a te r
a lgum suc e sso: sua s a tivida de s m a soquista s c e ssa r a m e e la supr im iu
sua s f a nta sia s m a soquista s. Ma s c om e ç ou a sof r e r de um a
ine xplic á ve l dor de c a be ç a que lhe c a usa va gr a nde s pr oble m a s na
vida pr of issiona l. Num a e xpe r iê nc ia visioná r ia — e la e r a um a ne gr a
a f r ic a na , e no se u a m bie nte e ssa s c oisa s nã o e r a m inc om uns —
Moisé s lhe a pa r e c e u e instr uiu- a a c ontinua r c om a s f la ge la ç õe s pois,
se nã o o f ize sse , os e gípc ios a m a ta r ia m . Com ba se ne ssa visã o, e la
de se nvolve u um a te or ia c om ple xa ( pa r c ia lm e nte f unda da nos r itua is
de f la ge la ç ã o dos c r istã os m e xic a nos) que suste nta va que só a tr a vé s
do m a soquism o pode r ia e nf r e nta r e ha r m oniza r o sof r im e nto do
m undo. Ela de ixou- se dom ina r m a is um a ve z pe la s f a nta sia s
m a soquista s; a o f a zê - lo, sua s dor e s de c a be ç a de sa pa r e c e r a m e se u
de se nvolvim e nto psic ológic o pr osse guiu ba sta nte be m . Esse e xe m plo
de stina - se a se r vir a pe na s c om o ilustr a ç ã o, nã o c om o r e c om e nda ç ã o.

O f e nôm e no do sa dom a soquism o se m pr e e stim ulou a c ur iosida de dos


psic ólogos. Com o pode m a dor e o pr a ze r c oinc idir ? O m a soquism o
pa r e c e se r um ta nto c ontr a ditór io pa r a m uitos psic ólogos e
psic a na lista s. Alguns de le s c he ga m a suste nta r que o m a soquista vive
sua s f a nta sia s c om gr a nde r ique za de de ta lhe s e m uita te a tr a lida de
m a s, a o e nc ontr a r o sof r im e nto r e a l, im e dia ta m e nte a ba ndona e sse
c om por ta m e nto. No e nta nto, isso nã o é de todo c or r e to e , a lé m disso,
r e la c iona - se e m pa r te c om c e r tos de svios se xua is. E r a r o que a vida
se xua l r e a l e ste j a ple na m e nte de a c or do c om a s f a nta sia s se xua is.
Sa be m os que e xiste m m uitos m a soquista s que nã o a pe na s busc a m
f or m a s de gr a da nte s de dor c om o ta m bé m a s e xpe r im e nta m c om
pr a ze r.

O m a soquism o de se m pe nhou um pa pe l im por ta nte na I da de Mé dia ,


qua ndo gr upos de f la ge la dor e s pe r c or r ia m c ida de s e a lde ia s. Muitos
sa ntos de dic a va m gr a nde pa r te de se u te m po a a ç oita r- se . Monge s e
f r e ir a s c onside r a va m um a pr á tic a r otine ir a inf ligir dor e hum ilha ç ã o
a si m e sm os. A te nta tiva da m ode r na psiquia tr ia de e nte nde r todo e sse
f e nôm e no c ole tivo c om o um a e xpr e ssã o de se xua lida de pe r ve r sa e
ne ur ótic a nã o m e pa r e c e sa tisf a tór ia . Apr oxim a m o- nos m a is do
f e nôm e no c om o c onc e ito de individua ç ã o. P ois nã o é o sof r im e nto da
nossa vida , e da vida e m ge r a l, um a da s c oisa s m a is dif íc e is de
a c e ita r ? O m undo e stá tã o c he io de sof r im e nto, e todos nós sof r e m os
ta nto no c or po e no e spír ito, que m e sm o os sa ntos tê m dif ic ulda de
pa r a c om pr e e ndê - lo. Um a da s m a is dif íc e is ta r e f a s do pr oc e sso de
individua ç ã o é a c e ita r a tr iste za e a a le gr ia , a dor e o pr a ze r, a ir a de
De us e a gr a ç a de De us. Os opostos — sof r im e nto e a le gr ia , dor e
pr a ze r — e stã o unidos, de m odo sim bólic o, no m a soquism o. Assim a
vida pode se r ve r da de ir a m e nte a c e ita e a té m e sm o a dor pode se r
e xpe r im e nta da c om a le gr ia . O m a soquista , de um m odo a ssom br oso e
f a ntá stic o, e nf r e nta e ha r m oniza os m a ior e s opostos da nossa
e xistê nc ia .

O sa dism o pode se r pa r c ia lm e nte e nte ndido c om o um a e xpr e ssã o do


la do de str utivo do se r hum a no: um a e xpr e ssã o do â m a go, da som br a ,
do a ssa ssino de ntr o de nós. É um tr a ç o e spe c íf ic o do se r hum a no
e nc ontr a r a a le gr ia na de str uiç ã o. Este e nsa io nã o é o luga r pa r a
c onside r a r m os se a de str utivida de pe r te nc e à na tur e za hum a na ou se é
pr oduto de um de se nvolvim e nto f a lho, e m bor a e u a c r e dite que a
pr im e ir a opç ã o é ve r da de ir a . Em todo c a so, a de str utivida de é um
f e nôm e no psic ológic o c om o qua l todo se r hum a no pr e c isa c he ga r a
um a c or do. A a le gr ia de de str uir, de oblite r a r, de tor tur a r, e tc .
ta m bé m é e xpe r im e nta da no m e io se xua l.

O pr a ze r de de str uir os outr os e stá r e la c iona do c om a


a utode str utivida de . P or isso nã o c a usa sur pr e sa que o sa dism o e o
m a soquism o a pa r e ç a m j untos; o m a ta dor a utode str utivo e stá no c e ntr o
da som br a a r que típic a , o c e ntr o de ir r e dutíve l de str utivida de no se r
hum a no.

Outr o c om pone nte do sa dism o é a intoxic a ç ã o c om o pode r. Ca usa


pr a ze r se xua l dom ina r por c om ple to o pa r c e ir o, br inc a r c om e le c om o
o ga to br inc a c om o r a to.

Ainda um outr o a spe c to do sa dism o é de gr a da r o pa r c e ir o à c ondiç ã o


de pur o obj e to. Na s f a nta sia s sá dic a s, a m a r r a r o pa r c e ir o e obse r va r
"f r ia m e nte " sua s r e a ç õe s de se m pe nha um pa pe l im por ta nte . O
pa r c e ir o tor na - se um a sim ple s c oisa c om c uj a s r e a ç õe s o sá dic o
br inc a .

Dur a nte m uito te m po, os te ólogos c r istã os só r e c onhe c ia m a


se xua lida de qua ndo liga da à r e pr oduç ã o. P e r c e bia m o e r otism o c om o
a lgo de m onía c o e sobr e na tur a l, a lgo que pr e c isa va se r c om ba tido ou
ne utr a liza do. Ac r e dito que todos e sse s te ólogos m e die va is e r a m
pe ssoa s inte lige nte s e se nsa ta s, num a busc a hone sta da ve r da de e da
c om pr e e nsã o. Nã o pode m os, por ta nto, de sc a r ta r c om f a c ilida de o f a to
de que e le s pe r c e bia m a se xua lida de c om o de m onía c a . Ele s e sta va m
e xpr e ssa ndo a lgo m uito ve r da de ir o.

A se xua lida de a inda é "de m oniza da " nos nossos dia s. Fr a c a ssa r a m
toda s a s te nta tiva s de tom á - la tota lm e nte inof e nsiva e de a pr e se ntá - la
c om o a lgo "c om ple ta m e nte na tur a l". P a r a o hom e m m ode r no,
a lgum a s f or m a s de se xua lida de c ontinua m a te r a spe c to m a u, pe c a dor
e sinistr o.

Alguns m ovim e ntos de libe r a ç ã o f e m inina te nta m e nte nde r a


se xua lida de c om o um a a r m a polític a usa da pe los hom e ns pa r a
opr im ir a s m ulhe r e s. Com isso, e ssa s m ulhe r e s "de m oniza m " a
se xua lida de e , a o m e sm o te m po, de ixa m im plíc ito que a se xua lida de
pode r ia tor na r- se inof e nsiva a tr a vé s da r e ve r sã o dos pa pé is m a sc ulino
e f e m inino.

Com o outr o e xe m plo de "de m oniza ç ã o", e u gosta r ia de c ita r o suposto


e f e ito da c ha m a da c e na pr im a i. Os se guidor e s de Fr e ud ( e gr a nde
pa r te da opiniã o of ic ia l sob a sua inf luê nc ia ) suste nta m que pode m os
e spe r a r sé r ia s se que la s psic ológic a s na c r ia nç a que te nha
a c ide nta lm e nte pr e se nc ia do o c onta to se xua l de se us pa is. Muitos
de se nvolvim e ntos ne ur ótic os sã o a tr ibuídos a e ssa s e xpe r iê nc ia s de
inf â nc ia .

Um a e xibiç ã o e xplíc ita da s a tivida de s se xua is pa te r na s supe r e stim ula ,


na c r ia nç a , os de se j os inc e stuosos e o c iúm e c om e le s r e la c iona dos.
Com isso inte nsif ic a - se de m odo pe r tur ba dor a situa ç ã o e dipia na .
Fe lizm e nte , é im possíve l pa r a m uitos pa is e xibir sua se xua lida de a os
f ilhos de m odo a be r to e de sinibido. I sso ta m bé m e stá r e la c iona do c om
o ta bu do inc e sto. Os pa is se de f e nde m , instintiva m e nte , c ontr a a
supe r e stim ula ç ã o de sua s pr ópr ia s f a nta sia s e te ndê nc ia s inc e stuosa s.
Re pr im ir um ta bu ta lve z c a use m a is da nos psic ológic os do que
r e c onhe c ê - lo c om r e spe ito. Alguns dos gr a nde s ta bus, c om o o do
inc e sto, e xiste m m a is pa r a nos pr ote ge r do que pa r a nos r e pr im ir.

Enc ontr a m os outr o e xe m plo c onte m por â ne o da se xua lida de e nc a r a da


c om o c oisa sinistr a no r ígido c ontr ole e na e xc lusã o da se xua lida de
e m qua se todos os nossos hospita is. As pe ssoa s a c r e dita m , de um
m odo obsc ur o e m iste r ioso, que a a tivida de se xua l pode r ia pr e j udic a r
os pa c ie nte s. Ma s por que e la s a c r e dita m nisso? Qua is sã o a s r a zõe s
pa r a que nã o se j a pe r m itido a os pa c ie nte s de um hospíc io, por
e xe m plo, te r c onta to se xua l de ntr o da instituiç ã o?

E a inda um outr o e xe m plo de c om o a lgum a s pe ssoa s se c onve nc e m de


que a se xua lida de é a lgo sinistr o. Na Suíç a , m a nte r r e la ç õe s se xua is
c om de f ic ie nte s m e nta is é c onside r a do um a to c r im inoso. A inte nç ã o
de ssa le i e r a pr ote ge r o de f ic ie nte m e nta l c ontr a a busos, m a s se u
e f e ito bá sic o f oi tor na r im possíve l a o de f ic ie nte m e nta l te r um a vida
se xua l. Que e ssa le i de sum a na nã o e nc ontr e r e sistê nc ia popula r
de m onstr a , m a is um a ve z, que um pode r qua se m á gic o é a tr ibuído à
se xua lida de .

Um últim o e xe m plo. Os a tle ta s — os pa r tic ipa nte s de um a Olim pía da ,


por e xe m plo — ge r a lm e nte sã o e str ita m e nte pr oibidos pe los se us
tr e ina dor e s de e nvolve r- se e m qua lque r a tivida de se xua l dur a nte o
pe r íodo da s c om pe tiç õe s. Já a c onte c e u de a tle ta s olím pic os te r e m sido
m a nda dos de volta pa r a c a sa por e nvolve r- se e m a ve ntur a s se xua is
sub- r e ptíc ia s. Ma s sa be m os que , pa r a a lguns a tle ta s, é be né f ic o
m a nte r a tivida de se xua l a nte s de e m pr e e nde r gr a nde s e sf or ç os
f ísic os.

O que e stá a gindo a qui sã o a ntigos pr e c onc e itos. Entr e c e r tos povos
pr im itivos, os hom e ns nã o ousa va m te r c onta to se xua l c om a s
m ulhe r e s a nte s de se guir pa r a a ba ta lha .

O e le m e nto de m onía c o da se xua lida de ta lve z ta m bé m se m ostr e no


f a to de que é m uito dif íc il e xpe r im e nta r e a c e ita r a a tivida de se xua l
a pe na s c om o "pr a ze r " ou c om o um a e xpe r iê nc ia a gr a dá ve l. P ouc a s
pe ssoa s c onse gue m "sim ple sm e nte de sf r uta r " a se xua lida de , c om o
de sf r uta r ia m um a boa r e f e iç ã o. A "te or ia do c opo d' á gua " — a
e xpe r iê nc ia se xua l se r ia o e quiva le nte a sa c ia r a se de — e nc ontr a
m uitos de f e nsor e s, m a s r a r a s sã o a s pe ssoa s que a pr a tic a m por
te m po m a is longo.

E o que pode r ia signif ic a r pa r a a psic ologia que a se xua lida de se m pr e


te nha a lgo sinistr o e m si, m e sm o hoj e , qua ndo a c r e dita m os j á te r- nos
libe r ta do de ssa a titude ? O sinistr o é se m pr e o ininte ligíve l, o
im pr e ssiona nte , o num inoso. Onde que r que a lgo divino a pa r e ç a ,
c om e ç a m os a se ntir m e do. O pr oc e sso de individua ç ã o, que te m um
c a r á te r f or te m e nte r e ligioso, é e xpe r im e nta do c om o num inoso c m
m uitos a spe c tos. Tudo a quilo que se r e la c iona c om a sa lva ç ã o te m ,
e ntr e outr a s c oisa s, um c a r á te r nã o- f a m ilia r ; se m pr e inc lui o supr a -
hum a no.

A "de m oniza ç ã o" da se xua lida de ta lve z se j a c om pr e e nsíve l, da do se u


c a r á te r individua c iona l. Ela nã o é a pe na s um a inof e nsiva a tivida de
biológic a , m a s um sím bolo de a lgo que se r e la c iona c om o signif ic a do
da nossa vida , c om a nossa busc a G a nse io pe lo divino.

A se xua lida de of e r e c e - nos sím bolos pa r a todos os a spe c tos da


individua ç ã o. O c onf r onto c om a s f igur a s dos pa r a é e xpe r im e nta do
no dr a m a do inc e sto O c onf r onto c om a som br a le va a os de str utivos
c om pone nte s sa dom a soquista s do e r otism o. O c onf r onto c om a nossa
pr ópr ia a lm a , c om a anima e o animus, c om o f e m inino e o m a sc ulino,
pode te r um a f or m a se xua l, O a m or por si m e sm o e o a m or pe los
outr os sã o e xpe r im e nta dos c or por a lm e nte na se xua lida de , se j a
a tr a vé s de f a nta sia s ou de a tivida de s. Em ne nhum outr o luga r a uniã o
de todos os opostos, a unio my stic a, o my ste rium c oniunc tionis,
e xpr e ssa - se de m odo m a is im pr e ssiona nte que na lingua ge m do
e r otism o.

Todas as bíblias ou c ânone s sagrados de ram c ausa aos se guinte s e rros:

1. Que o home m te m dois princ ípios e x iste nte s re ais: um c orpo e uma
alma.

2. Que a e ne rgia, c hamada mal, nasc e ape nas do c orpo; e que


a razão, c hamada be m, nasc e ape nas da alma.

3. Que De us c astigará o home m na e te rnidade por se guir suas


e ne rgias.

M as os se guinte s, c ontrários àque le s, são v e rdade iros:

1. O home m não te m um c orpo distinto da sua alma; pois o


c hamado c orpo é a porç ão da alma que é disc e rnida pe los
c inc o se ntidos, os princ ipais c anais da alma ne sta v ida.

2. A e ne rgia é a únic a v ida, e nasc e do c orpo; e a razão é o


limite ou a linha e x te rior da e ne rgia.

3. A e ne rgia é e te rno de le ite .

Willia m Bla ke

Par t e 5

A sombra da realização: o lado escuro do trabalho e do progresso


P ois a r a iz de todos os m a le s é o a m or a o dinhe ir o.

I Timóte o, 6: 10

Nã o e stou ne ste pla ne ta pa r a f a ze r a lgum a c oisa ... As c oisa s que


r e a liza m os sã o e xpr e ssõe s do nosso pr opósito.

Paul Williams

O pr ogr e sso é o nosso pr inc ipa l pr oduto.

Slogan public itário

Nossa te ndê nc ia é e xa lta r o la do lum inoso da indústr ia e m de tr im e nto


do la do e sc ur o da na tur e za , ou e xa lta r o la do lum inoso da na tur e za e m
de tr im e nto do la do e sc ur o da indústr ia . Na r e a lida de , pr e c isa m os
c om pa r a r lum inoso c om lum inoso e e sc ur o c om e sc ur o.

Thomas Be rry

Int r oduç ão

A som br a pe ssoa l da é tic a do tr a ba lho nos Esta dos Unidos te m sido


ba sta nte e xplor a da na lite r a tur a , c a da ve z m a is num e r osa , sobr e o
e str e sse e o de sga ste . A som br a c ole tiva a m e a ç a - nos c om a c a tá str of e
e c ológic a .

Qua se todos nós j á vim os um a pe ssoa a m a da ( ta lve z o pa i ou o a vô)


da r ta nto va lor à pr odutivida de a ponto de sa c r if ic a r a s outr a s c oisa s
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da vida . Qua lque r que se j a a ta r e f a , o tr a ba lha dor c om pulsivo dá se u
sa ngue vita l a o e m pr e e ndim e nto — a s ve ze s c om o sonho de c r ia r
se gur a nç a pa r a sua a pose nta dor ia ou pa r a se us de sc e nde nte s; à s ve ze s
c om o sonho de c ontr ibuir pa r a um m a ior be m - e sta r ge r a l; à s ve ze s
se m sonho a lgum , se ndo a pe na s inc a pa z de vive r pa r a qua lque r outr o
pr opósito, e m qua lque r outr o r itm o. Ma is possuído pe lo e u de m onía c o
do que e nc a nta do pe lo pr oc e sso c r ia tivo, a pe ssoa que tr a ba lha
c om pulsiva m e nte nã o c onse gue solta r sua s pr ópr ia s r é de a s.

O tr a ba lho c om pulsivo e stá se ndo visto c om o um víc io, um


c om por ta m e nto de c om pulsõe s de r e pe tiç ã o, c om o o j ogo ou o c om e r
c om pulsivo. E, e m a lguns c a sos, a s orga niza ç õe s e se us líde r e s
c onta m c om e sse víc io, e ssa som br a do tr a ba lho, e c ontr ibue m pa r a
c r iá - la pe lo pr ópr io m odo c om o ope r a m . Um a c a rga de tr a ba lho
insuste ntá ve l, quota s de ve nda s ir r e a lizá ve is e a lm oç os r e ga dos a
m a r tinis c ontr ibue m pa r a o de se quilíbr io viole nto do e stilo de vida de
toda s a s c la sse s de tr a ba lha dor e s nor te a m e r ic a nos.

O pr e ç o é a lto pa r a todos os e nvolvidos: a f a m ília sof r e c om a


a usê nc ia da pe ssoa ; o tr a ba lha dor e sta f a do sof r e a de te r ior a ç ã o f ísic a
e e m oc iona l c a usa da pe la s e xigê nc ia s de um a vida inj usta ; e a s
e m pr e sa s sof r e m a r ota tivida de de e xe c utivos, um a típic a "c om ic hã o
do sé tim o a no".

Dougla s La Bie r, a utor de M ode rn M adne ss [ A Louc ur a Mode r na ] ,


c ha m a - os "a s ba ixa s da gue r r a do tr a ba lho": a que la s "pe ssoa s
sa udá ve is que se a j usta r a m , c om gr a nde c usto e m oc iona l, a c ondiç õe s
que pode m se r boa s pa r a o pr ogr e sso da c a r r e ir a m a s nã o pa r a o do
e spír ito". Ele suge r e que o suc e sso pe ssoa l de ssa s "ba ixa s do tr a ba lho"
e m ge r a l signif ic a a pe na s um a boa a da pta ç ã o, um a j uste à pe rsona
c ole tiva da orga niza ç ã o, por m e io da r e pr e ssã o da s qua lida de s que
nã o se a de qua m à im a ge m da e m pr e sa . P ois a s e m pr e sa s ta m bé m
tê m um a p e r s o n a que é c r ia da pe la de c la r a ç ã o da "m issã o da
e m pr e sa " — um a f a c ha da bonita pa r a o m undo — e , por ta nto, tê m um
la do e sc ur o e invisíve l que inc lui m íse r os be ne f íc ios a o pe ssoa l, pouc a
tole r â nc ia por fe e dbac k ou c onf lito inte r nos, polític a s e xte r na s c om
de sa str osa s c onse quê nc ia s e c ológic a s ou de sone stida de pa r a c om o
c onsum idor.

No nosso e m pr e go, todos nós j á e nf r e nta m os dolor osos c onf litos de


va lor e s. Às ve ze s se ntim o- nos f or ç a dos a viola r pr inc ípios, a dom ina r
os outr os, a nã o ve r a s ne c e ssida de s pe ssoa is dos e m pr e ga dos, a dize r
"m e ntir a s br a nc a s" e a nos ve nde r de m uita s outr a s m a ne ir a s m iúda s.
Esta a ne dota de a dvoga do — r e f e r indo- se à pe ssoa que c onc or da e m
f a ze r um tr a to m a s, a o m e sm o te m po, busc a um m e io de nã o c um pr i-
lo — be m pode r ia a plic a r- se a qua lque r outr o pr of issiona l. O
a dvoga do que r ia tor na r- se o Núm e r o Um ; e le e nc ontr a o de m ônio que
lhe of e r e c e todo o dinhe ir o e pode r que de se j a r, e m tr oc a de sua
a lm a ; o a dvoga do r e sponde : "Ce r to, m a s qua l é o m a c e te ?"

A pr e ssã o dos a m bie nte s de a lta te nsã o m olda - nos e m f or m a s


r e tor c ida s, le va ndo- nos a f a ze r tr a tos a um gr a nde c usto pa r a nós
m e sm os. O suc e sso le va à inf la ç ã o do e go, e nqua nto que o f r a c a sso
le va a um a dolor osa ve rgonha . Com o o bilioná r io Dona ld Tr um p, um
dia e sta m os voa ndo a lto e , no outr o, no f undo do poç o, Em qua lque r
e m pr e go, de se nvolve m os c e r ta s ha bilida de s e a ptidõe s e nqua nto
de ixa m os outr a s na som br a . Qua ndo c ultiva m os um a a m biç ã o
e xtr ove r tida , um a pe r sona lida de f or te e c om pe titiva c om o a do
ve nde dor, do polític o ou do e m pr e sá r io, nossa intr ove r sã o va i pa r a a
som br a ; e sque c e m os c om o f lor e sc e r longe da s luze s da r iba lta , c om o
r e c e be r os te sour os da solidã o, c om o e nc ontr a r r e c ur sos oc ultos
de ntr o de nós. P or outr o la do, qua ndo de se nvolve m os um a pe rsona
m a is pr iva da , c om o a do a r tista ou do e sc r itor, nossa a m biç ã o e a vide z
pode m ir pa r a a som br a , pa r a nunc a e m e rgir ou um dia e m e rgir de
súbito c om o um f a nta sm a no a r m á r io. Todos nós j á le m os, por
e xe m plo, c a sos de e m pr e sá r ios m or a is e ínte gr os que f or a m f la gr a dos
e m a lgum ne góc io e sc uso, de svia ndo f undos ou sone ga ndo im postos.
De ixa r- se possuir pe la som br a ta lve z se j a o r e sulta do da inc a pa c ida de
de vê - la m a is dir e ta m e nte .

Assim c om o a som br a a s ve ze s se a pode r a de nós e nos f a z da r e sse


gir o de 180 gr a us, e la ta m bé m pode se a pode r a r de um gr upo ou de
um a e m pr e sa . Os va lor e s c onse r va dor e s e m a te r ia lista s da ge r a ç ã o da
De pr e ssã o dos a nos 30 le va r a m a o m ovim e nto da c ontr a c ultur a dos
a nos 60, que e nf a tiza va a r e núnc ia a o c onf or m ism o e a o
m a te r ia lism o, tr a nsf or m a ndo e m he r óis a que le s que r e m a va m c ontr a
a m a r é . Essa te ndê nc ia , por sua ve z, le vou a um outr o sur to de
m a te r ia lism o, c uj os sintom a s ve m os hoj e à nossa volta .

Essa osc ila ç ã o do pê ndulo r e ssurge a gor a de outr a m a ne ir a . Enqua nto


a som br a da a m biç ã o pode se r vista no de sga ste individua l, a som br a
c ultur a l r e ve la - se na e xtinç ã o da e spé c ie . Foi pr e c iso um a c a tá str of e
e c ológic a de im pa c to globa l pa r a nos de spe r ta r pa r a o la do e sc ur o do
c r e sc im e nto e c onôm ic o de se nf r e a do e do a va nç o te c nológic o
ilim ita do, Em The End of Nature [ O Fim da Na tur e za ] , Bill Mc Kibbe n
suge r e que de ixa m os de se r os se nhor e s da s nossa s te c nologia s:
"Enqua nto f or m os guia dos pe lo de se j o de a va nç o m a te r ia l inf inito,
nã o há m e ios de e sta be le c e r lim ite s. Ac ho im pr ová ve l que
de se nvolva m os a e nge nha r ia ge né tic a pa r a e r r a dic a r a s doe nç a s e
de ixe m os de usá - la pa r a f a br ic a r f r a ngos pe r f e ita m e nte ha bilita dos."

Abr indo e sta se ç ã o, Br uc e Sha c kle ton, psic ólogo e c onsultor


orga niza c iona l de Boston, de sc r e ve o e nc ontr o c om a som br a no
a m bie nte de tr a ba lho, ta nto e m te r m os individua is qua nto e m te r m os
e m pr e sa r ia is. Ele e xplor a o m odo c om o a s inte r- r e la ç õe s e ntr e a s
som br a s individua is e e m pr e sa r ia is pode m a j uda r ou dif ic ulta r a
luc r a tivida de .

No Ca pítulo 22, John R. 0' Ne ill, pr e side nte da Esc ola de P sic ologia
P r of issiona l da Ca lif ór nia , a pr e se nta um e xc e r to de se u f utur o livr o,
The Dark Side of Suc c e ss [ O La do Esc ur o do Suc e sso] . ONe ill,
e m pr e sá r io e c onsultor, of e r e c e - nos pista s pa r a c onse guir m os um a
r e a liza ç ã o sa udá ve l, pe r m a ne c e ndo c ie nte s dos a spe c tos da som br a .

Na s á r e a s nã o- e m pr e sa r ia is, c a da pr of issã o ta m bé m te m o se u
obj e tivo de c la r a do, sua m issã o de a j uda r ou de c ur a r, be m c om o o
se u la do oc ulto. No Ca pítulo 23, o a na lista j unguia no Adolf
Gugge nbühl- Cr a ig e xplor a a m bos os la dos da s pr of issõe s de
a ssistê nc ia : o m é dic o he r oic o e o e sc a nda loso c ha r la tã o, o pa dr e
divino e o f a lso pr of e ta , o de dic a do psic ote r a pe uta e o im postor
ignor a nte .

Num e xc e r to de Do W hat You Lov e , The M one y Will Follow [ Fa ç a


a quilo de que gosta , o dinhe ir o vir á j unto] , Ma r sha Sine ta r e xplor a o
m odo c om o nossos de f e itos e im pe r f e iç õe s pe ssoa is a pa r e c e m no
a m bie nte de tr a ba lho e c om o pode m os usá - los va nta j osa m e nte e m
nossa vida c r ia tiva .

No se u livr o W he n Te c hnology Wounds [ Qua ndo a Te c nologia Fe r e ] , a


e sc r itor a Che llis Gle ndinning c onta c a sos de pe ssoa s c om doe nç a s
pr ovoc a da s pe la te c nologia , de sve nda ndo os pe r igos, a nte s invisíve is,
de a va nç os ta is c om o c om puta dor e s, luz f luor e sc e nte , pílula s
a ntic onc e pc iona is, a m ia nto e pe stic ida s. Ne ste e xc e r to, e la que stiona
a ide ia de pr ogr e sso e nqua nto de se nvolvim e nto te c nológic o
de se nf r e a do e a c onse lha - nos a e xa m ina r c om urgê nc ia se u c usto e m
te r m os hum a nos.

P e te r Bishop, pr of e ssor a ustr a lia no, f e c ha e sta se ç ã o c om a visã o de


um a Te r r a una e se u la do da som br a — a m or te . Se u a r tigo,
or igina lm e nte public a do no j or na l j unguia no S p rin g , é um a ode à s
r e giõe s se lva ge ns da Te r r a e nqua nto vítim a s do nosso inc a nsá ve l
pr ogr e sso.

P a r e c e que a té m e sm o nossa s r e a liza ç õe s, pe ssoa is ou c ole tiva s, tê m


o se u la do e sc ur o. E o pr ogr e sso de se nf r e a do e ir r e f le tido tr a z o c a os
e m sua e ste ir a .

21. O e nc ont r o c om a sombr a no t r abalho

B RUCE SHACKLETON

O que nos im pe de de r e a liza r tudo a quilo que c onsc ie nte m e nte


a c r e dita m os te nta r r e a liza r ? Qua l é a na tur e za da que le la do de nós
que sa bota nossos e sf or ç os, nos f a z tr ope ç a r qua ndo va m os e m busc a
de nossa s e spe r a nç a s e a spir a ç õe s c que nã o que r se r e xposto à luz do
suc e sso? Com o a s orga niza ç õe s na s qua is tr a ba lha m os c ontr ibue m
pa r a sola pa r a r e a liza ç ã o dos nossos obj e tivos, e m ve z de nos a j uda r a
a lc a nç á - los?

Em bor a se j a m e nos r e c onhe c ido c om o f a tor- c ha ve na f or m a ç ã o da


som br a do que a f a m ília , a e sc ola ou a igr e j a , o a m bie nte de tr a ba lho
e xe r c e e nor m e inf luê nc ia pa r a que nos c om por te m os de m a ne ir a a
a lc a nç a r a de qua ç ã o, a da pta ç ã o e suc e sso. No tr a ba lho todos te nta m os
a gr a da r nossos c he f e s, c ole ga s e c lie nte s, ge r a lm e nte e sc onde ndo
nossa s por ç õe s de sa gr a dá ve is — nossa a gr e ssã o, a vide z,
c om pe titivida de ou opiniõe s ousa da s — nos m a is pr of undos r e c e ssos
do nosso se r. P a r a m uita s pe ssoa s, o c om pr om e tim e nto psic ológic o e
e spir itua l f ic a visíve l qua ndo, por te r e m la nç a do ta nta s pa r te s de si
m e sm a s na som br a , de sc obr e m te r "ve ndido a a lm a à e m pr e sa ".

É c la r o que pr e c isa m os de um a som br a na qua l e sc onde r nossos


im pulsos ne ga tivos e de str utivos, e a té m e sm o nossa s f r a que za s e
inc a pa c ida de s. Ma s o pe r igo surge qua ndo e sc onde m os c oisa s de m a is
m uito no f undo. Qua ndo a som br a de um a pe ssoa tor na - se
im pe r m e á ve l, inf le xíve l e de nsa , é possíve l que e la se tor ne de str utiva
e a dquir a vida pr ópr ia .

A sombr a do pode r e da c ompe t ê nc ia


Qua ndo c onhe c i Ha r old, hom e m de m e ia - ida de que de z a nos a nte s
tive r a a spir a ç õe s de c he ga r "a o topo", e le e r a vic e - pr e side nte
f ina nc e ir o de um a pe que na e m pr e sa de a lta te c nologia . Dur a nte sua
c a r r e ir a e m orga niza ç õe s m a ior e s, Ha r old a lc a nç a r a um suc e sso
r a zoá ve l; m a s logo que pa ssou dos qua r e nta a nos c om e ç ou a f a ze r
psic ote r a pia c om igo por que se se ntia de pr im ido, de sm otiva do e nã o
via r a zã o pa r a te nta r c onse guir a lgo m a ior. Ele e sta va r e signa do
na que la pe que na e m pr e sa , oc upa ndo um c a rgo que nã o c onstituía
de sa f io à sua c a pa c ida de e pa ssa va gr a nde pa r te do te m po pe nsa ndo
e m a pose nta dor ia .

Ha r old he r da r a da f a m ília um se ntim e nto de ina de qua ç ã o, um c a so


c lá ssic o de pouc a a utoe stim a . Nos e m pr e gos a nte r ior e s tive r a
dif ic ulda de s pa r a lida r c om a a utor ida de pois nã o se se ntia r e a lm e nte
e m pé de igua lda de c om os outr os.

O a tua l c he f e de Ha r old e r a um hom e m de tr a to dif íc il, ge r a lm e nte


a r r oga nte e inse nsíve l, que dir igia a e m pr e sa visa ndo a pe na s a
luc r a tivida de . Nã o a dm itia opiniõe s c ontr á r ia s e à s ve ze s e r a c r ue l
c om se us e m pr e ga dos. Ha r old r e a gia à a gr e ssivida de do "c he f ã o"
c om um a pr e ste za subm issa e ge r a lm e nte a nsiosa . Ele e nc ontr a r a um
c he f e sobr e que m podia pr oj e ta r a som br a de sua vonta de de pode r,
de a r r ogâ nc ia e de c om pe tê nc ia ; pe r to do c he f e e le se se ntia inse gur o
e pouc o à vonta de , o que r e f or ç a va a im a ge m f a m ilia r de si m e sm o.

Dur a nte a lgum te m po isso f oi um a c om bina ç ã o pe r f e ita . Ha r old


c om puse r a um a f a c ha da de hom e m que c um pr e sua obr iga ç ã o; e
na da m a is. Er a a c e ito pe la sua c a pa c ida de e por a poia r o status quo.
Ma s sob e ssa f a c ha da de vá r ios pa pé is, Ha r old oc ulta va sua e ne rgia
c r ia tiva e se u e ntusia sm o e , c om isso, e vita va qua lque r c onf r onto que
pude sse oc a siona r r isc os — e vita ndo ta m bé m e nf r e nta r sua pr ópr ia
c a pa c ida de de pr ogr e dir pr of issiona lm e nte . Tudo o que e le pe r c e bia
e r a m va gos se ntim e ntos de inquie tude e de insa tisf a ç ã o.

E logo a c om por ta c om e ç ou a va za r. Em bor a f osse um hom e m é tic o e


r e ligioso, Ha r old c om e ç ou a r e c or r e r a pe que nos de svios de dinhe ir o
e a um c om por ta m e nto pa ssivo- a gr e ssivo, num e sf or ç o indir e to pa r a
de sc a r r e ga r sua se nsa ç ã o de r a iva , f r ustr a ç ã o e de spr e stígio. Se u
c om por ta m e nto o c hoc ou — nã o se a de qua va à sua a utoim a ge m de
c ida dã o c or r e to — e f ina lm e nte le vou- o a olha r c om m a is
pr of undida de o c usto, e m te r m os pe ssoa is, do se u e stilo de tr a ba lho.

O t r abalho c ompulsivo e a sombr a das or ganizaç õe s

Ta m bé m e nc ontr a m os a som br a no a m bie nte de tr a ba lho qua ndo a s


pe ssoa s põe m de la do sua s ne c e ssida de s pe ssoa is de la ze r, intim ida de
e vida f a m ilia r, tor na ndo- se m á quina s de tr a ba lho e m te m po inte gr a l.
É ine vitá ve l que e sse c om por ta m e nto vic ia do r e sulte num e stilo de
vida a lta m e nte de se quilibr a do e c om pulsivo.

Com o a m a ior ia dos víc ios, o tr a ba lho c om pulsivo pode te r sua s r a íze s
nos pa dr õe s f a m ilia r e s. Em a lguns la r e s, m e ninos e m e nina s sã o
r e c om pe nsa dos a pe na s e m f unç ã o de se u de se m pe nho; se u se nso de
va lor pe ssoa l f ic a tota lm e nte liga do à ide ia de ve nc e r. Em outr os
la r e s, um ge nitor de sse tipo tr a nsm ite e sse pa dr ã o à c r ia nç a , que o
he r da a ssim c om o he r dou a c or dos olhos. E e m c e r tos c a sos é o
f r a c a sso de um pa i inc om pe te nte que inc ita a c r ia nç a a busc a r o
suc e sso, a tor na r- se , na ve r da de , a som br a do pa i.

Se o tr a ba lha dor c om pulsivo tr a ba lha pa r a um a orga niza ç ã o que


e stim ula e sse víc io e na qua l e sse pa dr ã o é a poia do e e nc or a j a do, a
c om bina ç ã o pa r e c e r á pe r f e ita dur a nte a lgum te m po; a som br a do
e m pr e ga do e a som br a da e m pr e sa e sta r ã o a linha da s. Ma s o que
ge r a lm e nte oc or r e é que a lgum a c oisa e m a lgum luga r va i c om e ç a r a
c e de r — o e m pr e ga do c om e ç a a r e ve la r víc ios m últiplos, ta is c om o
á lc ool ou dr oga s, ou c he ga a um e sta do de de sga ste ; a e m pr e sa m uda
se us r um os ou lide r a nç a s — e o la do pe r nic ioso do tr a ba lho
c om pulsivo va i f a ze r e str a gos.

Esse tipo de de dic a ç ã o nã o é o únic o la do do a ve sso da s orga niza ç õe s.


Em bor a um a c or por a ç ã o e m ge r a l de c la r e sua "c ultur a " — a que la s
r e gr a s, r itua is e va lor e s de um a e m pr e sa que a j uda m a s pe ssoa s a
orga niza r sua s a tivida de s —, a s orga niza ç õe s ta m bé m tê m um la do
m e nos visíve l e nã o- de c la r a do; o r e la c iona m e nto da s e m pr e sa s c om
e sse la do oc ulto pode de te r m ina r sua s r e a liza ç õe s f ina nc e ir a s e de
pe ssoa l.

As orga niza ç õe s que ne ga m a ne c e ssida de de um a de qua do


de se nvolvim e nto de r e c ur sos hum a nos e um c ontr ole do e str e sse , por
e xe m plo, pode m tor na r- se c e nsur a dor a s e inse nsíve is a os
e m pr e ga dos. Qua ndo há ê nf a se de m a sia da na luc r a tivida de e pouc o
inte r e sse na s ne c e ssida de s individua is, um a a tm osf e r a de
de sc onf ia nç a pode se de se nvolve r. Alguns e m pr e ga dos se
tr a nsf or m a m nos bode s e xpia tór ios que se r ã o a ta c a dos ou sa c r if ic a dos
no e sf or ç o de r e solve r a dinâ m ic a intr ínse c a da orga niza ç ã o.

P or outr o la do, a s c ultur a s e m pr e sa r ia is que e nc or a j a m um a f or m a


a be r ta de c om unic a ç ã o pode m e sta be le c e r siste m a s de c ontr ole pa r a
os pr oble m a s da som br a individua l e gr upa l, c om r e sulta dos be m
dif e r e nte s. Um a orga niza ç ã o sa udá ve l pode a j uda r a lim ita r a a tua ç ã o
ne ga tiva a tr a vé s da c onstr uç ã o de siste m a s a be r tos de r e tor no,
ha r m oniza ndo va lor e s e pr opósito e a té m e sm o a j uda ndo os
e m pr e ga dos a de se nvolve r sua s c a pa c ida de s m a is pr of unda s.

A m otiva ç ã o do e m pr e ga do ta m bé m e stá pr of unda m e nte liga da a o


c onte údo da som br a . P or e xe m plo, a s pe ssoa s que e stã o subindo ta lve z
pr e c ise m ne ga r sua s qua lida de s m a is c om pa ssiva s, pisa ndo no c a lo
dos outr os pa r a pode r c onquista r a im a ge m da e sc a la da pr of issiona l,
Qua ndo no topo, e la s pr ova ve lm e nte ir ã o ope r a r a pa r tir do la do da
som br a , só pe r m itindo que se u la do hum a no m a is pr of undo se r e ve le
e m c a sa c om a f a m ília , num a m ode r na c isã o do tipo Dr. Je ky ll/Mr.
Hy de . Em c a sos m a is e xtr e m os, de ixa r- se possuir pe la som br a pode
le va r a o m a is f la gr a nte de sr e spe ito pe los outr os, ta nto no la r qua nto
no tr a ba lho.

Os pr oble m a s da som br a individua l e e m pr e sa r ia l ge r a lm e nte sã o


ne glige nc ia dos pe los ge r e nte s e c onsultor e s de r e c ur sos hum a nos.
Se r ia e xtr e m a m e nte pr ove itoso r e c onhe c e r m a is pr onta m e nte o la do
e sc ur o e c oloc á - lo tr a ba lha ndo pa r a nós na r e nova ç ã o individua l,
e m pr e sa r ia l e soc ia l.

22. O lado e sc ur o do suc e sso

JOHN R. O'NEILL
Supõe - se que toda s a s pe ssoa s que r e m te r ê xito; qua nto m a is, m e lhor.
Ma s obse r va m os, r e c e nte m e nte , a lgum a s distor ç õe s pe c ulia r e s na
de f iniç ã o de ê xito, e a gor a tr a ze m os c onosc o a som br a dos r e sulta dos
de ssa tr a nsiç ã o. Em ge r a l, indivíduos e orga niza ç õe s de sf r uta m de um
pe r íodo de ê xito f ulgur a nte que m a is ta r de se e m pa na . O ê xito, a o
c he ga r, pa r e c e tr a ze r e m si um a a nsie da de : Se r á que e le va i dur a r ?
Com o posso obte r a inda m a is? Se r á que e u o m e r e ç o? E se e u o
pe r de r ? P or e ssa r a zã o, o ê xito se tr a nsf or m a r a pida m e nte de j úbilo
e m pr e oc upa ç ã o, de a le gr ia e m f a diga c r ônic a , e m de pr e ssã o ou
num a c r ise pe ssoa l de signif ic a do.

Com o oc or r e e ssa m uda nç a ? Dur a nte os pe r íodos de ê xito, va m o- nos


inf la ndo a té a lc a nç a r o ponto da a r r ogâ nc ia e , de ssa m a ne ir a ,
de ixa m os de e nc ontr a r e de a ssim ila r a som br a , De ixa m os de ouvir e
de obse r va r a nós m e sm os a lé m da s e xtr a va gâ nc ia s f r e né tic a s do e go;
f r a c a ssa m os e m nossa s ta r e f a s de a pr e ndiza do pr of undo; e nossa
ve r da de ir a ide ntida de se distor c e , se e ntor ta e a té se pe r de por
c om ple to.

Conside r e m os o c a so de Ja m e s, um "que r idinho" da Wall Stre e t nos


a nos 80, que pa ssou a odia r se u ne góc io a lta m e nte be m - suc e dido.
Ve nde tudo e r e c e be 130 m ilhõe s de dóla r e s. Tr ê s m e se s m a is ta r de ,
m a r c a um a c onsulta c om igo. Entr a no m e u c onsultór io, br onze a do e
c om a spe c to r e la xa do, o c a be lo loir o de sc or a do pe lo sol e m a is
c om pr ido que de há bito. Anim a do, f a la - m e de se us pa sse ios de ia te
pe lo a lto - m a r, de sua s te m por a da s de e squi e de sua nova f a ze nda .
Fic o m e pe rgunta ndo por que e le e sta r ia pr oc ur a ndo a c onse lha m e nto.

Qua se no f im da se ssã o, e le diz c a sua lm e nte : "Nã o te nho um a únic a


pe ssoa c om que m f a la r da m inha vida , por isso vim f a la r c om voc ê ."
Te nta ndo nã o pa r e c e r sur pr e so c om e ssa r e ve la ç ã o, pe rgunto- lhe
c om o isso se r ia possíve l. Sua r e sposta inc lui histór ia s de tr a iç ã o,
br iga s f a m ilia r e s, um divór c io im ine nte , m e do de r e ta lia ç ã o públic a
se f a la r c om a pe ssoa e r r a da e te r r íve is noite s de sono inquie to.

A substâ nc ia da quilo que Ja m e s tinha e sc ondido é se m e lha nte à


som br a de m uita s pe ssoa s:

•As pa r te s de si m e sm o que nã o c or r e spondia m a o e go ide a l da sua


é poc a . Num a e r a m a c hista , e le a ba ndonou se us a spe c tos r e c e ptivos e
f e m ininos; num a e r a m a te r ia lista , e le pôs de la do se us se ntim e ntos de
c unho e spir itua l.
•As pa r te s de si m e sm o c onside r a da s indigna s por se us pa is ou por
outr os, c uj a a pr ova ç ã o e le busc a va , f or a m e nte r r a da s m a s
c ontinua va m viva s.
•Os sonhos ou a m biç õe s c onside r a dos tolos ou ide a lista s f or a m
e sque c idos c om a va ga pr om e ssa de "ta lve z a lgum dia ..."

Ha via m a is pa r te s de le oc ulta s que visíve is. Esse c onte údo vita l que
ne ga m os c ontr ola a dir e ç ã o da nossa vida , nosso níve l de e ne rgia e
nossa biogr a f ia pe ssoa l. Se c ontinua m os a e nte r r a r e ssa s pa r te s de nós
m e sm os na e sc ur idã o, ine vita ve lm e nte pa ga r e m os c om a m oe da da
nossa a lm a .

P or outr o la do, a s pe ssoa s que sa be m e xplor a r o r ic o pote nc ia l da


som br a , e o usa m pa r a f utur os ê xitos, pr olonga m a vida do suc e sso.
P ode r ía m os c ha m á - la s de "e xplor a dor e s pr of undos". Winston
Chur c hill, Ele a nor Roose ve lt, Flor e nc e Nightinga le , Thom a s Je ff e r son
e Abr a ha m Linc oln sã o f igur a s histór ic a s que a pr e nde r a m c om se us
de sa ponta m e ntos, f r a c a ssos e sof r im e ntos e se guir a m e m f r e nte pa r a
a lc a nç a r m a is um ê xito. Ele s sa bia m c om o luta r c ontr a a a r r ogâ nc ia .

É m uito f r e que nte que líde r e s e m pr e sa r ia s m e inda gue m c om o


suste nta r o a pr e ndiza do e o c r e sc im e nto na s sua s orga niza ç õe s. Sugir o
que o pr im e ir o pr oble m a é e vita r a a r r ogâ nc ia ; isso é f e ito a lte r a ndo-
se a s c ur va s de a pr e ndiza do individua is e orga niza c iona is no m om e nto
e m que e la s a lc a nç a m o obj e tivo de ê xito de se j a do. A gr a m a a lta e
doc e do ê xito é a pa sta ge m da inf la ç ã o e c onté m a s m ina s oc ulta s do
orgulho e da a vide z.

Apr e se nto um a lista sum á r ia pa r a loc a liza r m os os sina is de a r r ogâ nc ia


e m a nda m e nto:

•Somos dotados de tale ntos e spe c iais. Esta m os ve ndo o r osto da nossa
som br a qua ndo de sc obr im os que c om e ç a m os a tom a r c e r tos a r e s de
e go inf la do, ta is c om o a c r e dita r que pode m os f a ze r a va lia ç õe s
inf a líve is a c e r c a dos outr os ou e vita r e r r os hum a nos.
•M atamos o me nsage iro. Esta m os a c a m inho de f utur os sof r im e ntos
qua ndo a c usa m os a pe ssoa que tr a z inf or m a ç õe s c ontr á r ia s à s nossa s
de e xc ê ntr ic a , le r da de e spír ito, inve j osa ou inc a pa z de c a pta r o
pa nor a m a ge r a l. Com e ç a m os a se guir o c ostum e m e die va l de "m a ta r
o m e nsa ge ir o" qua ndo, na qua lida de de líde r e s, nos isola m os e
r e str ingim os c a da ve z m a is o nosso c ír c ulo de c onse lhe ir os
c onf iá ve is.
•Pre c isamos e star no c omando. Qua ndo a a r r ogâ nc ia e stá pr e se nte , o
e go c om e ç a a se a f ir m a r e m de m onstr a ç õe s de a utor ida de ta is c om o
pr e oc upa r- se e m se r c ha m a do de "se nhor ", te r a sse nto e m luga r de
pr e stígio e voz a tiva na s r e uniõe s. A ne c e ssida de de que nossa
im por tâ nc ia se j a c onsta nte m e nte r e c onhe c ida pe los outr os é sina l de
inse gur a nç a r e pr im ida .
•Nossa moral é mais e le v ada que a dos outros. Qua ndo um a pe ssoa ou
gr upo e stá no c a m inho da a r r ogâ nc ia pur ita na , a que le s que pe nsa m
dif e r e nte pode m vir a se r r otula dos c om o e r r a dos, m a us ou inim igos.
I sso ta lve z a livie te m por a r ia m e nte a te nsã o e ntr e o be m e o m a l m a s,
na ve r da de , é a a r r ogâ nc ia ope r a ndo sob o disf a r c e da bonda de .
Qua ndo a a r r ogâ nc ia e stá e m a ç ã o, pa r a m os de a pr e nde r. Nosso e go
inf la do e nc obr e a som br a que , c om sua f úr ia e sc ur a e m iste r iosa ,
a m e a ç a de r r uba r- nos. Ma s, um a ve z que sa iba m os que e la e stá a li,
pode se r útil le m br a r que novos a pr e ndiza dos e stã o c ontidos no
pr ópr io c onte údo da som br a . O e go só se e m pe r tiga por que que m e stá
no c ontr ole é , na ve r da de , a som br a . Qua ndo e nc ontr a m os um a
m a ne ir a de a ba ndona r a s ne c e ssida de s, os pa pé is, os sím bolos e o
c om por ta m e nto pur ita no do e go, e sta m os e m situa ç ã o de pe ne tr a r o
c a os de novos a pr e ndiza dos e c om e ç a r a r e de sc obr ir nova s pa r te s de
nós m e sm os.

De sse m odo, pode m os e nte nde r que c a da ê xito pr e se nte c onté m um a


som br a que ta lve z se tom e de va sta dor a , P a r a de sc obr ir e de f inir os
ê xitos f utur os, pr e c isa m os ir a br indo c a m inho a tr a vé s da som br a , dia
a pós dia . E pa r a isso pr e c isa r e m os nos r e c olhe r a f im de nos r e nova r,
e te r e m os ne c e ssida de de guia s, m e ntor e s, ta lve z a té de te r a pe uta s.

Os "e xplor a dor e s pr of undos" que pr olonga m a vida do suc e sso sa be m


c om o f a ze r e sse tr a ba lho. Com o m e disse o e sc r itor John Ga r dne r há
a lguns a nos: "Le m br e que e nqua nto voc ê e stá e sc a la ndo sua m onta nha
e xiste m outr a s m onta nha s a lé m de la . Fique de olho na m onta nha
se guinte . E use o va le e ntr e e la s pa r a r e nova r- se ."

23. Char lat ãe s, impost or e s e f alsos pr of e t as

ADOLF G UG G ENB ÜHL- CRAIG

"Exe r c e r e i m inha a r te únic a e e xc lusiva m e nte pa r a c ur a r m e us


pa c ie nte s... c om r e tidã o e honr a de z... Em qua lque r c a sa que e u e ntr e ,
se r á pe lo be m do doe nte , no lim ite da s m inha s f or ç a s, m a nte ndo- m e
be m dista nte do m a l, da c or r upç ã o, de te nta r os outr os a o víc io...
Conside r o sa gr a da s a m inha vida e a m inha a r te ."

Essa s f r a se s f or a m tir a da s do Jur a m e nto de Hipóc r a te s. Ao longo dos


sé c ulos, a té nossos dia s, a im a ge m m ode lo do m é dic o ba se ia - se ne sse
j ur a m e nto. O m é dic o é a que le que a j uda de m odo a ltr uísta e
de sinte r e ssa do. Ele se inte r e ssa pe lo doe nte e pe lo sof r im e nto pa r a
se r vi- los. Esse é o a spe c to lum inoso, o la do lum inoso do se u tr a ba lho.

O la do e sc ur o pa r e c e um ta nto dif e r e nte . Ele é m ostr a do, por


e xe m plo, no Doc tor Knoc k de Jule s Rom a ins. O Dr. Knoc k nã o te m
ne nhum de se j o a ltr uísta de c ur a r. Ele usa se us c onhe c im e ntos
m é dic os pa r a obte r luc r o pe ssoa l. Nã o he sita e m f a ze r a doe c e r
pe ssoa s sa udá ve is, Ele é um c ha r la tã o. P or c ha r la tã o nã o e stou m e
r e f e r indo a o indivíduo, m é dic o ou nã o, que te nta a j uda r o doe nte
usa ndo m e ios nã o- or todoxos ou nã o a pr ova dos pe la m e dic ina ; m a s
sim à que le im postor que , no m e lhor dos c a sos, e stá e nga na ndo a si
m e sm o j unto c om se us pa c ie nte s — e , no pior dos c a sos, à que le
im postor que só e nga na os pa c ie nte s. Os c ha r la tã e s a j uda m a si
m e sm os — ga nha ndo pr e stígio e ta m bé m dinhe ir o — m uito m a is do
que a j uda m a os pa c ie nte s que os pr oc ur a m . Ne sse se ntido, sua r e a l
a tivida de m é dic a ta lve z se j a útil, ta lve z se j a pr e j udic ia l, ta lve z nã o
se j a ne m um a c oisa ne m outr a . Ma s e sse s pr a tic a nte s da m e dic ina
nã o e stã o inte r e ssa dos no a spe c to m é dic o de sua a tivida de ; e le s
tr a ír a m o Jur a m e nto e tr a ba lha m a pe na s pa r a si m e sm os.

O c ha r la tã o é a som br a que se m pr e a c om pa nha o m é dic o. E um a


som br a que pode vive r de ntr o de le ou f or a de le . Se us pr ópr ios
pa c ie nte s o pr e ssiona m pa r a que e sque ç a o m ode lo hipoc r á tic o e
im ite a c a r ic a tur a do Dr. Knoc k. Os inúm e r os pr oble m a s de or ige m
de sc onhe c ida que e le pr e c isa tr a ta r e m sua pr á tic a diá r ia , ne nhum
de le s c om um a te r a pia r e c onhe c ida — pr oble m a s ta is c om o f a diga
c r ônic a , c e r tos tipos de dor lom ba r e dor e s na s j unta s, va ga s dor e s
c a r día c a s ou gá str ic a s, dor de c a be ç a c r ônic a , e tc . —, sã o tr a ta dos
por e le c om um a de m onstr a ç ã o pse udoc ie ntíf ic a de k now- how
m é dic o. Em ve z de tr a ze r os c om pone nte s psíquic os à a te nç ã o
da que le s pa c ie nte s c uj o sof r im e nto é pr inc ipa lm e nte psíquic o, por
e xe m plo, o que e le f a z é a j udá - los a tr a nsf or m a r se us pr oble m a s
psíquic os e m pr oble m a s f ísic os. Se os pa c ie nte s m e lhor a m , e le é o
gr a nde c ur a dor ; se pior a m , é por que nã o se guir a m a de qua da m e nte
sua s instr uç õe s.

Aba ndone m os por um m om e nto o pr oble m a da som br a do m é dic o.


P a r a de se nvolve r o te m a pr inc ipa l de ste e nsa io, pr e c isa m os pr im e ir o
a na lisa r o la do e sc ur o do pa dr e ou pa stor. A im a ge m do "hom e m de
De us", a lé m de te r pa ssa do por m uita s tr a nsf or m a ç õe s a o longo da
histór ia , nã o é a m e sm a e m toda s a s r e ligiõe s. O que nos inte r e ssa
a qui é o pa dr e ou pa stor da tr a diç ã o j ude u- c r istã . Espe r a - se que e le ,
c om o m e m br o do c le r o, te nha c e r to r e la c iona m e nto c om o Se nhor,
por m a is inte r m ite nte que se j a . Nã o é ne c e ssá r io que c a da hom e m de
De us te nha r e c e bido individua lm e nte do Se nhor um a m issã o
e spe c íf ic a , c om o os pr of e ta s do Ve lho Te sta m e nto; m a s e spe r a - se que
e le , pe lo m e nos, r e pr e se nte hone sta m e nte De us e Sua vonta de , se j a
e m vir tude de um ge nuíno c onta to c om a divinda de ou c om ba se no
se u c onhe c im e nto e spe c ia l da s Sa gr a da s Esc r itur a s e da sa be dor ia
sa gr a da tr a dic iona l.

O r e ve r so de ssa nobr e im a ge m do "hom e m de De us" é o hipóc r ita , o


hom e m que pr e ga , nã o por te r f é , m a s por que que r inf lue nc ia r os
outr os e e xe r c e r pode r sobr e e le s, A c ongr e ga ç ã o de qua lque r pa stor
e xe r c e gr a nde pr e ssã o sobr e e le pa r a que a j a c om hipoc r isia : A
c om pa nhe ir a ine vitá ve l da f é é a dúvida . Ma s ningué m que r te r
dúvida s a c e r c a do se u pa dr e ou do se u pa stor ; c a da pe ssoa j á te m sua s
pr ópr ia s dúvida s, e e sta s lhe ba sta m . Às ve ze s, o que pode um c lé r igo
f a ze r se nã o r e pr im ir sua s dúvida s e te nta r oc ulta r o m om e ntâ ne o
va zio inte r ior c om pa la vr a s de gr a nde e le va ç ã o? Se e le é f r a c o, e ssa s
oc a siõe s f or m a r ã o um há bito. Espe r a m os que o pa stor ou pa dr e
c onhe ç a o c a m inho pa r a a sa lva ç ã o da a lm a . A som br a de sse hom e m ,
íntim o da divinda de , é o pe que no se nhor todo- pode r oso, o pr e ga dor
que j a m a is se c onf unde c om a s pa la vr a s r e la tiva s a o pr opósito da vida
e da m or te . I de a lm e nte , um hom e m de De us dá te ste m unho do
Se nhor, Ele nã o pode pr ova r a quilo que pr e ga . Espe r a m os de le que
se u c om por ta m e nto, se u te ste m unho, c r ie a ba se que sublinha a
r e tidã o do c a m inho de sa lva ç ã o que e le r e pr e se nta , E im e dia ta m e nte
ve m os a som br a do "hom e m de De us" hipóc r ita que que r a pr e se nta r-
se pa r a o m undo — be m c om o pa r a si m e sm o — m e lhor do que
r e a lm e nte é .

A som br a do f a lso pr of e ta a c om pa nha o pa stor ou o pa dr e dur a nte


toda a sua vida . Às ve ze s e la e m e rge no m undo e xte r ior sob a f or m a
de um se c tá r io de m e nte e str e ita ou de um odia do de m a gogo de ntr o
da orga niza ç ã o da igr e j a . Às ve ze s e la r e side de ntr o de le . As nobr e s
im a ge ns do m é dic o e do c lé r igo e stã o se m pr e a c om pa nha da s pe la s
som br a s do c ha r la tã o e do f a lso pr of e ta .

Em nossos dia s, o psic ote r a pe uta , o a na lista , c onstitui a c onve rgê nc ia


da s im a ge ns e da s pr á tic a s do m é dic o e do c lé r igo, do c ur a dor f ísic o e
do c ur a dor psíquic o, É a ssim que e le tr a z c onsigo um a som br a dupla .

Ve j a m os pr im e ir o os pr oble m a s da som br a que a ta c a m o a na lista


e xte r na m e nte , na sua f a c e ta m é dic a . Com m uita f r e quê nc ia nós,
a na lista s, lida m os c om doe nç a s ( ta is c om o ne ur ose s, doe nç a s
psic ossom á tic a s e psic ose s lim ítr of e s) que tor na m im possíve l o uso
dos m é todos de c ontr ole e xpe r im e nta l ge r a lm e nte r e c onhe c idos.
Com o todos sa be m , é im possíve l m a nte r e sta tístic a s r e f e r e nte s a o
suc e sso ou a o f r a c a sso do tr a ta m e nto nos c a sos de ne ur ose s, por
e xe m plo. O que c onstitui r e m issã o? De te r ior a ç ã o? O a j usta m e nto
soc ia l se r ia um c r ité r io a de qua do? Ou a c a pa c ida de do pa c ie nte de
m a nte r um e m pr e go? Ou o a um e nto e a c uida de ou a dim inuiç ã o e
a lívio dos sintom a s ne ur ótic os? Ou a se nsa ç ã o subj e tiva de be m - e sta r
do pa c ie nte ? Ou o pr ogr e sso f e ito r um o à individua ç ã o? Ma ior c onta to
c om o inc onsc ie nte ? Os c r ité r ios, e m si, e stã o a be r tos a inte r pr e ta ç õe s
inde f inida s qua ndo c om pa r a dos, diga m os, c om a c ur a de um a f r a tur a
onde a r e c upe r a ç ã o f unc iona l of e r e c e um c r ité r io ine quívoc o da
e f ic á c ia do tr a ta m e nto.
Qua isque r que se j a m os c r ité r ios e sc olhidos, os r e sulta dos e sta tístic os
na nossa pr of issã o sã o e xtr e m a m e nte insa tisf a tór ios. É im possíve l
ve r if ic a r se um pa c ie nte f oi tr a ta do pe la psic ote r a pia , pe la m e dic a ç ã o
c om tr a nquiliza nte s ou por c oisa a lgum a . E, a e sse r e spe ito, a s
doe nç a s psic ossom á tic a s sã o tã o m á s qua nto a s ne ur ose s.

Va m os supor que c onc or da m os que a distâ nc ia e ntr e o pa c ie nte e se u


Se lf, se u c onta to pior ou m e lhor c om o inc onsc ie nte , se r ia o c r ité r io
a pr opr ia do pa r a inve stiga r m os a e f ic á c ia da psic ote r a pia . Com o
ir e m os m e dir e ssa distâ nc ia ? Com o f a r e m os um a inve stiga ç ã o
e sta tistic a m e nte vá lida ?

Em outr a s pa la vr a s, qua lque r um que se intitule a na lista ou psic ólogo


pode a le ga r suc e sso qua ndo surge na hor a c e r ta , ou pe r se ve r a o te m po
suf ic ie nte , ou te m a sor te de ga nha r um pa c ie nte c uj a s c ondiç õe s,
m e dida s por e ste ou por a que le c r ité r io, ir ia m m e lhor a r
inde pe nde nte m e nte de tr a ta m e nto. A som br a do c ha r la tã o ou o
a spe c to or ie nta do pa r a a m e dic ina do a na lista pode m , a ssim , se r
a tiva dos c om um a r e la tiva a usê nc ia de c ontr ole .

Ma s a som br a do a na lista ta m bé m é a lim e nta da pe los a spe c tos que e le


te m e m c om um c om o c lé r igo. Os a na lista s j unguia nos nã o
r e pr e se nta m , de c e r to, um a f é e spe c íf ic a . Nã o te m os um a r e ligiã o
orga niza da . No e nta nto r e pr e se nta m os, c om o o c lé r igo, um m odo
de f inido de vida . Nã o r e pr e se nta m os ne nhum a f ilosof ia , m a s
a de r im os a um a psic ologia a r e spe ito da qua l te m os c onvic ç ã o, te ndo
vivido, e m nossa s pr ópr ia s vida s e e m nossa s pr ópr ia s a ná lise s, c e r ta s
e xpe r iê nc ia s que nos c onve nc e r a m e nos de r a m f or m a . Nosso
c onf r onto c om o ir r a c iona l e o inc onsc ie nte m ove u- nos
pr of unda m e nte . Ma s qua isque r que se j a m os nossos in sig h ts, nã o
pode m os pr ová - los c ie ntíf ic a ou e sta tistic a m e nte ; e le s só pode m se r
a f ir m a dos pe lo r e la to hone sto e c onf iá ve l de outr a s pe ssoa s. P a r a a
pe rgunta que tã o f r e que nte m e nte ouç o de e sc ola s m é dic a s
a m e r ic a na s, "Qua is os e studos que tê m sido f e itos?", nã o e xiste
r e sposta . As únic a s pr ova s que pode m os a pr e se nta r sã o a s
e xpe r iê nc ia s pe ssoa is de nós m e sm os e de outr os, j á que a r e a lida de
da psique nã o pode se r pr ova da e sta tístic a ou c a usa lm e nte no se ntido
c ie ntíf ic o usua l. Esta m os a qui e m um a posiç ã o se m e lha nte à do
c lé r igo.

A ne c e ssida de de r e c or r e r a pe na s à e xpe r iê nc ia pe ssoa l de si m e sm o


e de outr os dá m a rge m a dúvida s. E se nós e a s a utor ida de s e m que m
c onf ia m os e stive r m os e nga na dos? Af ina l de c onta s, e xiste m m uita s
pe ssoa s, inc luindo outr os psic ote r a pe uta s da m a ior inte gr ida de , que
suste nta m um a visã o da psic ologia tota lm e nte nã o- j unguia na . Esta r ã o
todos e le s e nga na dos? Esta r ã o todos e le s c e gos?
Som os c a pa ze s de a dm itir, a nós m e sm os e a os outr os, e ssa s dúvida s?
Ou c om pa r tilha m os do pe r igo do c lé r igo que põe de la do sua s dúvida s
inc e ssa nte s e j a m a is a dm ite que e la s e xiste m ?

Alé m disso, c om o o pa stor e o pa dr e , tr a ba lha m os c om a nossa


pr ópr ia psique , c om a nossa pr ópr ia pe ssoa , se m instr um e ntos ne m
m é todos te c nológic os. Nossa s f e r r a m e nta s sã o nós m e sm os, a nossa
hone stida de , a nossa c onf ia bilida de , o nosso c onta to pe ssoa l c om o
inc onsc ie nte e o ir r a c iona l. Sof r e m os um a gr a nde pr e ssã o pa r a
r e pr e se nta r e sse s r e c ur sos c om o m e lhor e s do que e le s sã o e , a ssim ,
c a ir na som br a do psic ote r a pe uta . E a inda e xiste m a is um pa r a le lo
c om o pa stor e o pa dr e . Som os guinda dos a o pa pe l de se r e s
onisc ie nte s. Tr a ba lha m os c om o inc onsc ie nte , c om os sonhos, c om a
a lm a — á r e a s, toda s e la s, na s qua is o tr a nsc e nde nta l se f a z se ntir. E
por isso e spe r a - se de nós que sa iba m os m a is sobr e a s c oisa s pr im e ir a s
e últim a s do que o c om um dos m or ta is. Se som os f r a c os, a c a ba m os
por a c r e dita r que e sta m os m a is be m inf or m a dos sobr e a s que stõe s da
vida e da m or te do que nossos se m e lha nte s. E a ssim nã o a pe na s a s
c la r a s im a ge ns- m ode lo da m e dic ina e do c le r o se e nc ontr a m na
pe ssoa do a na lista , m a s ta m bé m sua s som br a s: o c ha r la tã o e o f a lso
pr of e ta , Va le r ia a pe na de spe r diç a r pa la vr a s c om e le s? Nã o há dúvida
de que e xiste m c ha r la tã e s e f a lsos pr of e ta s e ntr e psic ote r a pe uta s que ,
c onsc ie nte ou inc onsc ie nte m e nte , m a is be ne f ic ia m a si m e sm os do
que a j uda m os se r e s hum a nos a que m suposta m e nte se r ve m .

Nossa te ndê nc ia é a c r e dita r que o pr of issiona l, c ínic o e c ie nte de sua s


a ç õe s, que busc a a pe na s o luc r o pe ssoa l nã o pa ssa de um c r im inoso
que logo é a ssim r e c onhe c ido por se us c ole ga s, e m bor a se m pr e
e nc ontr e nova s vítim a s e ntr e os doe nte s e de sa m pa r a dos. Atr a vé s da s
nossa s a ssoc ia ç õe s pr of issiona is, te nta m os pr ote ge r pa c ie nte s
pote nc ia is c ontr a e sse s nossos c ole ga s da som br a . Qua nto a o outr o
tipo, a que le s que e nga na m m a is a si m e sm os do que a os se us
pa c ie nte s, c om sua ide ntif ic a ç ã o inc onsc ie nte c om a som br a , pode - se
dize r que é um a sim ple s que stã o de m a ior c onsc ie ntiza ç ã o e de
m e lhor f or m a ç ã o pr of issiona l. O f utur o a na lista c onsc ie ntiza - se de
sua som br a dur a nte o de c or r e r de um bom tr e ina m e nto e da a ná lise
de c ontr ole e , de pois disso, nã o é m a is a m e a ç a do por e la .

Ma s a qui te m os um gr a nde e nga no; por c a usa de le , o pr oble m a da


som br a pr of issiona l do psic ote r a pe uta é da m a is f unda m e nta l
im por tâ nc ia . P ois a qui nos de f r onta m os c om a tr a gé dia ine r e nte a o
a na lista . Qua nto m a ior e m a is a m pla se tor na a c r e sc e nte c onsc iê nc ia
do a na lista , ta nto m a ior se tor na o se u inc onsc ie nte . O inc onsc ie nte , e
o pr oble m a c or r e la to de c a ir na som br a , é o gr a nde pr oble m a do
a na lista . Com e c e m os c onside r a ndo a situa ç ã o do ponto de vista da
individua ç ã o. Qua nto m a is individua do se tor na um hom e m , ou se j a ,
qua nto m a is a m plo o dom ínio do inc onsc ie nte a be r to dia nte de le , m a is
pode r osa s tor na m - se a s c onste la ç õe s do inc onsc ie nte , Af ina l, supõe - se
que o pr oc e sso de tom a da de c onsc iê nc ia nos a j uda a o nos e ntr e ga r
a o inc onsc ie nte . P r ogr e dim os na individua ç ã o a pe na s na m e dida e m
que c ontinua m e nte nos a f a sta m os da quilo que j á se tor nou c onsc ie nte
e m e rgulha m os de novo no inc onsc ie nte . Em te r m os pr á tic os, isso
signif ic a que um a pe ssoa que e stá se individua ndo a ge , à s ve ze s,
dir e ta m e nte a pa r tir do inc onsc ie nte — e isso inc lui o psic ote r a pe uta
que e stá e nga j a do na sua a tivida de pr of issiona l. Ma s a gir a pa r tir do
inc onsc ie nte signif ic a c a ir, se m pr e e de novo, na pr ópr ia som br a .

Existe um outr o a spe c to do pr oc e sso de individua ç ã o que se r e f e r e


m a is e spe c if ic a m e nte a o a na lista do que a o nã o- a na lista . Um a da s
ta r e f a s e spe c ia is do a na lista é a j uda r pa c ie nte s e c ole ga s a se
c onsc ie ntiza r, ou se j a , a c onf r onta r os c onte údos c ole tivos e pe ssoa is
no inc onsc ie nte dos outr os. Assim c om o o c onhe c im e nto de De us
de se m pe nha um pa pe l im por ta nte na im a ge m - m ode lo do c lé r igo ou o
c ur a dor a ltr uísta na im a ge m a r que típic a do m é dic o, a ssim ta m bé m no
m ode lo do psic ote r a pe uta e xiste um a f igur a que pode r ía m os de signa r
c om o o guia pa r a o c onsc ie nte , o por ta dor da luz, Ele oc upa , de f a to,
um a posiç ã o c e ntr a l. Ma s e ssa s im a ge ns- m ode lo pr of issiona is,
ine r e nte s a o m é dic o, a o c lé r igo e a o psic ote r a pe uta se m pr e c ontê m
um ir m ã o e sc ur o que é o oposto do ide a l lum inoso e br ilha nte . Assim
a som br a pr of issiona l do psic ote r a pe uta c onté m nã o a pe na s o
c ha r la tã o e o f a lso pr of e ta m a s ta m bé m o alte r e go que ha bita o
inc onsc ie nte — o oposto, e m outr a s pa la vr a s, de tudo a quilo por que
luta c onsc ie nte m e nte o a na lista . De f r onta m o- nos, por ta nto, c om o
pa r a doxo de que o inc onsc ie nte é um a a m e a ç a m a ior a o a na lista do
que a o nã o- a na lista .

Conta r a m - m e c e r ta ve z que a nte s da P r im e ir a Gue r r a Mundia l, a


Ma r inha Br itâ nic a nã o e nsina va se us m a r inhe ir os a na da r,
pr e ssupondo que pe ssoa s que nã o sa bia m na da r te r ia m m e nor e s
c ha nc e s de se a f oga r do que a que la s que sa bia m , um a ve z que f a r ia m
o possíve l pa r a nã o c a ir no m a r. Com pa r a ndo a á gua a o inc onsc ie nte ,
o a na lista é o m a r inhe ir o que sa be na da r.

Um a na lista hone sto pe r c e be r á c om hor r or que , de te m pos e m


te m pos, no se u tr a ba lho diá r io, te m a gido e xa ta m e nte c om o um
c ha r la tã o e f a lso pr of e ta inc onsc ie nte .

O que na r r o a se guir é um a br e ve de sc r iç ã o do m odo c om o ope r a a


som br a do psic ote r a pe uta . A som br a pr oc ur a tr a ta r a pe na s pe ssoa s
r ic a s que pa ga m be m ou pe r sona lida de s f a m osa s que a um e nta r ã o se u
pr e stígio. A som br a , e ntã o, dia gnostic a "sé r ia s te ndê nc ia s à psic ose ".
O c onc e ito de psic ose la te nte de Jung te m , f a c ilm e nte , um e m pr e go
e r r a do ne sse c onte xto. O pe r igo de c ola pso psíquic o im ine nte é
e xa ge r a do pa r a que a som br a possa pa r e c e r um sa lva dor. No de c or r e r
do tr a ta m e nto, o pa c ie nte , e m ve z de se r c onf r onta do c om se us
pr oble m a s, é a dula do e lisonj e a do. Se us pior e s de f e itos de c a r á te r sã o
c onside r a dos inte r e ssa nte s, a té a dm ir á ve is. A m ulhe r a utor itá r ia é
a dula da por que m a nif e sta o "a r qué tipo da r a inha ". A inc a pa c ida de de
a m a r tr a nsf or m a - se e m louvá ve l intr ove r sã o. Ao e goísta que nã o te m
c om pa ixã o pe la m ã e idosa a som br a diz que e le e stá se libe r ta ndo do
animus da m ã e . Em ve z de te nta r a livia r a te nsã o e ntr e um pa c ie nte e
se u pa i, a som br a im e dia ta m e nte de c la r a que "o r e i de ve m or r e r ",
Nã o e xiste a pe r c e pç ã o de que um a na lista c uida doso pode
tr a nsf or m a r pa is a m e a ç a dor e s e m ve lhinhos a m istosos e ge ntis, c uj a s
qua lida de s a m e a ç a dor a s de sa pa r e c e m na m e dida e xa ta e m que o
pa c ie nte se tor na m a is f or te .

Qua lque r tipo de r e m issã o é e nte ndido c om o se ndo obr a do pr ópr io


a na lista ou, pe lo m e nos, a tr ibuído a os pode r e s por e le de spe r ta dos;
qua lque r de te r ior a ç ã o da c ondiç ã o do pa c ie nte de ve - se à sua
inc a pa c ida de ou m á - vonta de de se guir o c a m inho que o a na lista lhe
m ostr a .

O a na lista a pr isiona do na som br a vive , c a da ve z m a is, a tr a vé s da vida


de se us pa c ie nte s. A c onve r sa dos pa c ie nte s é a sua c onve r sa ; a s
a m iza de s, r om a nc e s e a ve ntur a s se xua is dos pa c ie nte s tor na m - se a s
sua s e xpe r iê nc ia s. Ele de ixa por c om ple to de vive r sua pr ópr ia vida .
Se us pa c ie nte s sã o tudo pa r a e le . Os pa c ie nte s vive m , a m a m e sof r e m
pa r a e le . P ode se r que o a na lista viva a pe na s pa r a se us pa c ie nte s,
c om o diz o dita do; m a s c e r ta m e nte e le vive a pe na s a tr a vé s de le s. A
a ná lise e o a na lisa r tor na m - se a pr ópr ia vida do a na lista . E que dize r
da m á xim a de que o pa ga m e nto f e ito pe lo pa c ie nte é pa r te de sua
te r a pia ? Nã o se r ia possíve l que e ssa f osse um a a f ir m a ç ã o da som br a ?
Os honor á r ios nã o sã o, c om c e r te za , pa r te f unda m e nta l da te r a pia ;
e xiste m pa r a que possa m os vive r de c e nte m e nte , à m e dida que
f a ze m os por m e r e c e r.

A som br a m a nté m ve r da de ir a s orgia s c om os c onc e itos de


tr a nsf e r ê nc ia e c ontr a tr a nsf e r ê nc ia . I nve j a m os, por e xe m plo, o
m a r ido da pa c ie nte por que sua inf luê nc ia pa r e c e se r tã o gr a nde
qua nto a nossa . Nã o tole r a m os e ssa usur pa ç ã o do nosso pode r ; e
r e pr e se nta m os o m a r ido c om o a lgué m que se c om por ta de m odo
ve rgonhoso, a tr oz, e tc . E te nta m os a f a sta r nossos pa c ie nte s de se us
a m igos e c onhe c idos. A som br a do a na lista ta m bé m o le va a
de sm e r e c e r os a m or e s a nte r ior e s dos pa c ie nte s e , a o a ssim f a ze r,
supe r va lor iza r- se .

Se m pr e que o sof r im e nto de um pa c ie nte ne ur ótic o a m e a ç a e sm a ga r


o a na lista , sua som br a ta m bé m lhe m ostr a um be lo c a m inho pa r a sa ir
de ssa dif ic ulda de . O sof r im e nto ne ur ótic o nã o é um sof r im e nto r e a l
— a ssim diz o dogm a — e isso nos pe r m ite de ixa r de ve r o f a to de que
o pa c ie nte e stá r e a lm e nte sof r e ndo. Na r e a lida de ta lve z nã o e xista m
c oisa s c om o sof r im e nto ir r e a l ou ina de qua do, m a s a pe na s pr oble m a s
ir r e a is ou ina de qua dos.

Até m e sm o o Se lf é m a l e m pr e ga do pe lo a na lista que e stá m e rgulha do


na som br a . Qua ntos c om por ta m e ntos a gr e ssivos, im or a is e
intole r a nte s nã o sã o, c om f r e quê nc ia , j ustif ic a dos por se r e m
intr ínse c os a o Se lf do pa c ie nte ? O a dulté r io, por e xe m plo, de ixa de se r
e nc a r a do c om o um gr a ve insulto e um a a gr e ssã o a o c ônj uge , e pa ssa
a se r um a libe r ta ç ã o da s nor m a s c ole tiva s e m nom e do Se lf.
Com por ta m e nto inj usto e de sle a l pa r a c om a m igos, c onhe c idos,
e m pr e ga dos e e m pr e ga dor e s, r e j e iç ã o da m or a lida de e dos c ódigos
m or a is: o a na lista m e rgulha do na som br a a j uda e a poia tudo isso
c om o se ndo a r r oj a dos a tos de libe r ta ç ã o e r e de nç ã o, de de sc obe r ta do
Se lf.

O a na lista a pr isiona do na sua som br a c om e ç a , pouc o a pouc o, a


br inc a r de pr of e ta . Ele sa tisf a z a s ne c e ssida de s r e ligiosa s de se us
pa c ie nte s f ingindo sa be dor ia tr a nsc e nde nta l. Assim c om o o c lé r igo
a pr isiona do a sua som br a vê os a tos de De us e m toda pa r te e e m tudo,
ta m bé m o a na lista vê o inc onsc ie nte ope r a ndo e m toda pa r te o te m po
todo. Ca da sonho, c a da a c onte c im e nto, e ve nto, doe nç a , a le gr ia ,
tr iste za , c a da a c ide nte e c a da pr ê m io de lote r ia é e nte ndido c om o
se ndo o inc onsc ie nte e m a ç ã o. Nós, os a na lista s, de sc e m os do nosso
a lta r c om o pe que nos de use s c a pa ze s de de duzir tudo de qua lque r
c oisa . De ixa m os de r e c onhe c e r a m ã o e sc ur a de Moir a , o de stino,
dia nte da qua l a té m e sm o os de use s, o inc onsc ie nte , de ve m se c ur va r.
P a r a nós nã o e xiste tr a gé dia , nã o e xiste o a c ide nte c r ue l e c e go.
Ac r e dita m os que a s pe ssoa s se de sgr a ç a m por que pe r de r a m c onta to
c om o inc onsc ie nte . E c he ga m os a a c r e dita r, e de ixa m os que nossos
pa c ie nte s a c r e dite m , que pode m os e spia r por tr á s dos ba stidor e s dos
e ve ntos do m undo.

P a r a pode r m os c ontinua r a a j uda r o pa c ie nte num a situa ç ã o tr á gic a


da vida , que pe r m a ne c e tr á gic a e m bor a se u c onta to c om o
inc onsc ie nte possa te r m e lhor a do, pr e c isa m os se r c a pa ze s de
e nf r e nta r a nossa pr ópr ia situa ç ã o tr á gic a de vida . Nossa tr a gé dia
e spe c ia l é , a c r e dito, que qua nto m a is te nta m os se r bons te r a pe uta s
que a j uda m a c onsc ie ntiza ç ã o dos pa c ie nte s, ta nto m a is nos tor na m os
vítim a s do la do e sc ur o da nossa lum inosa im a ge m pr of issiona l, da
nossa c e gue ir a — no m ínim o, pa r c ia l — e m r e la ç ã o à nossa som br a .

Num c e r to se ntido, o de stino de qua lque r hom e m que luta por um


obj e tivo qua lque r — e nossos pa c ie nte s ge r a lm e nte sã o de sse tipo —
te m um la do nitida m e nte tr á gic o. Se m pr e e m e rgir á o oposto da quilo
que que r e m os r e a liza r ou da quilo que que r e m os e vita r.

O m é dic o tor na - se um c ha r la tã o e xa ta m e nte por que r e r c ur a r ta nta s


pe ssoa s qua nto possíve l; o "hom e m de De us" tor na - se um hipóc r ita e
um f a lso pr of e ta e xa ta m e nte por e sta r tã o a nsioso pa r a a um e nta r a f é
e ntr e se us se m e lha nte s. Assim ta m bé m o psic ote r a pe uta tor na - se um
f a lso pr of e ta e c ha r la tã o inc onsc ie nte , e m bor a tr a ba lhe noite e dia
te nta ndo tor na r- se c a da ve z m a is c onsc ie nte .

24. Como fazer bom uso de nossos defeitos e imperfeições

M ARSHA SINETAR
As pe ssoa s que sã o e f ic ie nte s e m se u tr a ba lho c onhe c e m se us lim ite s.
Ela s c oloc a m e ssa s lim ita ç õe s a se r viç o de sua s vida s, c onse guindo
inte gr á - la s a o se u m odo e spe c íf ic o de tr a ba lha r. Ela s de sc obr ir a m ,
c or r e ta m e nte , que pr e c isa m da r a te nç ã o a o se u pr ópr io c a r á te r f ísic o
e psic ológic o, à s sua s te ndê nc ia s e m oc iona is e pa dr õe s de
c onc e ntr a ç ã o, e que e ssa s lim ita ç õe s a s a j uda m no tr a ba lho. De f a to,
a c om bina ç ã o de lim ita ç õe s de um a pe ssoa f or m a um c om ple xo de
a tr ibutos c uj o signif ic a do e stá a lé m da c om pr e e nsã o c or r e nte de
qua lque r um — a té m e sm o de la pr ópr ia . Esse c om ple xo é a e ssê nc ia
de sua e xpr e ssã o na vida .

Te nho um pa c ie nte que é um a nda r ilho. De na tur e za inquie ta , e le


pe nsa m e lhor qua ndo c a m inha . Qua ndo a c e itou e sse f a to a r e spe ito de
si m e sm o, os outr os ta m bé m o f ize r a m . De pois de m uitos a nos
tr a ba lha ndo a se u la do, os c ole ga s a gor a e spe r a m que e le c a m inhe
pe la s pa r e de s. É c la r o que sua inte ligê nc ia supe r ior r e nde u m ilhõe s de
dóla r e s pa r a a e m pr e sa e e le a dquir iu o "dir e ito" de c a m inha r ta nto
qua nto de se j a .

Um a outr a pe ssoa , um a c ie ntista , pr e f e r e tr a ba lha r e m isola m e nto


num a e m pr e sa que va lor iza a polític a de por ta s a be r ta s. Ela se m pr e
f e c ha a por ta qua ndo tr a ba lha , e m bor a de iníc io f osse ba sta nte
c r itic a da por f a zê - lo. Cie nte de que pr e c isa va de isola m e nto pa r a
pode r pr oduzir r e sulta dos de qua lida de , e la insistiu e m m a nte r se u
e stilo de tr a ba lho pr e f e r ido. Se us c ole ga s a c a ba r a m por a c e itá - lo.

Essa s pe ssoa s a dota r a m um m odo de tr a ba lha r que ha r m oniza


te ndê nc ia s a nta gônic a s: o de se j o de se c onc e ntr a r v e rsus o de se j o de
c a m inha r ; o de se j o de se a de qua r a um a c or por a ç ã o v e r s u s a
ne c e ssida de de se guir um e stilo de tr a ba lho pe ssoa l.

"Fa ç a bom uso de se us de f e itos" e r a o le m a da gr a nde da m a da


c a nç ã o f r a nc e sa , Edith P ia f . Ta lve z toda a que stã o de c om pr e e nde r e
usa r nossa s lim ita ç õe s gir e e m tor no de sse le m a , Nã o e stou c e r ta se
os tr a ç os que e stou disc utindo a qui sã o "lim ita ç õe s", m a s c e r ta m e nte
e le s pa r e c e m sê - lo qua ndo c onf r onta dos c om o e ste r e ótipo
c om por ta m e nta l c om que os outr os a va lia m o nosso m odo de se r.

P or e xe m plo, e u e um a a m iga e sc r itor a e sta m os se m pr e disc utindo a


nossa "pr e guiç a ". Nós dua s pe r c e be m os, j á há m uitos a nos, que pa r te
do nosso pr oc e sso c r ia tivo inc luía um pe r íodo de c om ple to tor por,
um a e spé c ie de de sc a nso ou inc uba ç ã o de ide ia s. À pr im e ir a vista ,
isso pa r e c e f e io e a té m e sm o "m a u", qua ndo c om pa r a do a o m odo
c om o f om os e nsina dos a tr a ba lha r. A é tic a do tr a ba lho pur ita na da
m inha e duc a ç ã o opõe - se a que um a pe ssoa de sc a nse dur a nte o dia .
Ainda a ssim , de pois de a lguns pr oj e tos c r ia tivos, a c ho que é
e xa ta m e nte isso que pr e c iso f a ze r pa r a pode r se guir pa r a o pr oj e to
se guinte .

Minha a m iga r i e nqua nto m e c onta que f ic a na c a m a o dia todo,


a ssistindo nove la s na te le visã o, e nqua nto inc onsc ie nte m e nte c onstr ói
um novo de pósito de im a ge ns e ide ia s pa r a se us pr óxim os livr os. "Eu
odia va m e ve r a li de ita da . Aquilo e r a c ontr a toda s a s im a ge ns do que
e u de v e ria e sta r f a ze ndo e de c om o e u de v e ria pa r e c e r. Aos olhos da
m inha m e nte e u se ntia que a s pe ssoa s e spe r a va m que e u f osse um a
visã o toda de br a nc o, e ngom a da e im a c ula da , o dia todo, um a Be tty
Cr oc ke r da m á quina de e sc r e ve r, c onstr utiva m e nte pr oduzindo la uda s
lim pa s e im pe c á ve is vinte e qua tr o hor a s por dia , c om o bisc oitos
pe r f e itos sa indo do f or no." Aos pouc os e la f oi pe r c e be ndo que , se nã o
f ize sse um a pa usa pa r a de sc a nso qua ndo de le pr e c isa va , se u pr oj e to
se guinte se r ia m e c â nic o, f or ç a do, nunc a um tr a ba lho or igina l.

Costum o f a ze r longos pa sse ios pe la zona r ur a l onde m or o, ouvindo


m úsic a e nqua nto dir ij o. Se m pr e a m e i a a r quite tur a dos c e le ir os e da s
c a pe la s. Um pa r de dia s a dm ir a ndo e sse s ve lhos e dif íc ios ba tidos pe lo
te m po ou c ir c ula ndo por e str a da s poe ir e nta s ou pe la e sc a r pa da
Rodovia Um na c osta do P a c íf ic o, é pa r a m im um r e pouso e um a
j or na da visua l sim bólic a . Espe lha a r ota e spir itua l e subj e tiva de que
m e u la do c r ia tivo ne c e ssita , e nqua nto r e úno a s e ne rgia s pa r a pr oduzir
um outr o c a pítulo ou a r tigo.

Ne nhum a outr a pa r te da nossa pe r sona lida de r e ve la o nosso


te m pe r a m e nto bá sic o, a nossa m a ne ir a f unda m e nta l de tr a ba lha r m a is
do que o f a z o nosso la do e sc ur o — a pa r te de nós m e sm os que
ilogic a m e nte se de sdobr a no se u pr ópr io te m po e que te m sua s
pr ópr ia s e xigê nc ia s. Estou m e r e f e r indo a os nossos im pulsos
inc ontr olá ve is, a os há bitos que sim ple sm e nte nã o c onse guim os
r om pe r, à s te ndê nc ia s ina c e itá ve is e c ontr a ditór ia s que nos le va m a
c a m inhos opostos a o que pr e te ndía m os se guir. Esse s sã o os im pulsos
a nta gônic os que dã o r ique za e m isté r io à nossa vida . Esse im pulsos,
há bitos e c ontr a diç õe s a té m e sm o supr e m a e ne rgia dinâ m ic a que dá
singula r ida de e dir e ç ã o à nossa vida , Jung de sc r e ve u- o de sse m odo:
Consc ie nte e inc onsc ie nte nã o f a ze m um todo qua ndo um de le s é
supr im ido e f e r ido pe lo outr o, Se e le s pr e c isa m c onte nde r, de ixe m os
que se j a a o m e nos um a luta j usta , c om dir e itos igua is pa r a a m bos os
la dos. Am bos sã o a spe c tos da vida ... e a vida c a ótic a do inc onsc ie nte
de ve r ia te r a c ha nc e de ta m bé m f a zê - lo a se u m odo — ta nto qua nto
pude r m os supor ta r. I sso signif ic a c onf lito a be r to e c ola bor a ç ã o a be r ta
de um a só ve z. Esse , e vide nte m e nte , é o m odo c om o a vida hum a na
de ve r ia se r. E o ve lho j ogo do m a r te lo e da bigor na : e ntr e e le s, o
f e r r o pa c ie nte é f or j a do num todo inde str utíve l, um "indivíduo".

Essa a titude nã o que r dize r que de ve m os c ontinua r a f e r ir a nós


m e sm os ou a ignor a r c om por ta m e ntos vic ia dos e lim ita dor e s. Que r
dize r que de ve m os pa r a r de luta r c ontr a nós m e sm os. O que de ve m os
f a ze r é tom a r um a vista a é r e a e obj e tiva da quilo que c a da
c om por ta m e nto e stá dize ndo sobr e nós, se u signif ic a do no qua dr o
ge r a l da nossa j or na da e m dir e ç ã o a o s e l f . Aqui e stã o a lgum a s
pe rgunta s úte is pa r a ide ntif ic a r m os o va lor pote nc ia l dos nossos "m a us
há bitos":

•Voc ê tinha há bitos de tr a ba lho que supr im iu c om todo o r igor, num a


te nta tiva de a da pta r- se e tor na r- se m a is se m e lha nte a os outr os?
•Voc ê te m a lguns tr a ç os de pe r sona lida de que ( c om o e u e m inha
a m iga e sc r itor a ) de iníc io c om ba te u, pe nsa ndo que e r a m e r r a dos e
te nta ndo m udá - los ou oc ultá - los?
•Voc ê de ixou de te nta r r e a liza r a lgo e m a lgum a s á r e a s "nã o-
signif ic a tiva s" da vida por que um a ve z lhe disse r a m que e la s nã o
e r a m im por ta nte s o suf ic ie nte pa r a m e r e c e r a te nç ã o?
•Existe a lgum a a tivida de "oc iosa " ( c om o dor m ir, a ssistir TV, pe sc a r,
ouvir m úsic a , de va ne a r, e tc .) que dá um vigor r e nova do a o se u
tr a ba lho, m a s que voc ê se nte que nã o de ve r ia e sta r f a ze ndo?

Qua ndo ve m os a nós m e sm os c om o se r e s c onc e bidos pa r a e xpr e ssa r a


tota l c r ia tivida de da nossa vida , pode m os e ntã o c om pr e e nde r nossos
há bitos, nossos de va ne ios, nossa s f a nta sia s, nossos va lor e s e a s
dua lida de s da nossa pe r sona lida de , e usá - los a se r viç o de ssa
e xpr e ssã o. Nã o sã o a pe na s a s nossa s pa la vr a s, tr a ba lhos c
r e la c iona m e ntos que nos de sc r e ve m e nqua nto se r e s individua is. O que
im por ta é a quilo que som os. E ta lve z os a spe c tos c ontr ove r tidos da
nossa pe r sona lida de e ste j a m a dic iona ndo um c e r to m a tiz, um c e r to
tom ou o ím pe to ne c e ssá r io pa r a e ne rgiza r o nosso m ovim e nto e m
dir e ç ã o a o e u e à e xpr e ssã o vita l e c r ia tiva do nosso pr ópr io se r.
25. Quando a tecnologia fere

CHELLIS G LENDINNING

Vive m os num m undo c om um núm e r o c r e sc e nte de te c nologia s que


c onstitue m a m e a ç a à sa úde — e um núm e r o c r e sc e nte de pe ssoa s
c uj a sa úde f oi a f e ta da pe la te c nologia , O de se nvolvim e nto e o uso da
te c nologia hoj e r e pr e se nta m pe r igo nã o só pa r a a pe ssoa individua l
m a s pa r a a pr ópr ia vida : pa r a a e ssê nc ia e sobr e vivê nc ia da s á gua s,
do solo e da a tm osf e r a da Te r r a , pa r a a sua vida , le itor, e pa r a a
m inha , O histor ia dor Le wis Mum f or d c ha m a o nosso te m po de Er a do
P r ogr e sso, na qua l "o m ito da m á quina ... de ta l m odo c a ptur ou a
m e nte m ode r na que ne nhum sa c r if íc io hum a no pa r e c e se r de m a sia do
gr a nde ". 1 Com a inve nç ã o do te le f one , da te le visã o, dos m ísse is, da s
a r m a s nuc le a r e s, dos supe r c om puta dor e s, da s f ibr a s ótic a s e da
supe r c ondutivida de , nosso siste m a soc ia l e nc or a j ou r e pe tida m e nte
te c nologia s que nos c onduze m pa r a m a is e m a is longe da s r a íze s
c om una is e liga da s à na tur e za que por m ilê nios honr a r a m a vida e a s
inte r- r e la ç õe s na c ultur a hum a na . Em se u luga r, os va lor e s que
suste nta m o nosso c onc e ito m ode r no de "pr ogr e sso" c om o
de se nvolvim e nto te c nológic o de se nf r e a do tor na r a m - se o im pe r a tivo
m or a l — e a maldiç ão — da e r a m ode r na .

Ne ste m om e nto c r ític o da Histór ia , por ta nto, e nc ontr a r e ouvir c om


a te nç ã o os sobr e vive nte s da s te c nologia s que a m e a ç a m a sa úde pode
se r vir pa r a nos de spe r ta r pa r a um a ne c e ssida de pr e m e nte : um a
r e visã o a br a nge nte da situa ç ã o da m ode r na soc ie da de te c nológic a . À
luz de ssa ne c e ssida de , a s e xpe r iê nc ia s da que la s pe ssoa s c uj a sa úde
f oi a f e ta da nã o se r e str inge m m a is à r e a lida de pe ssoa l. Re ve la da s,
e ssa s e xpe r iê nc ia s tor na m - se o c a ta lisa dor que a br ir á o nosso c or a ç ã o
c ole tivo à pa ixã o e à sa be dor ia de que pr e c isa m os pa r a f a ze r de ste
um m undo se gur o no qua l possa m os vive r. O que a s pe ssoa s que
supor ta r a m a pr ova ç ã o da s doe nç a s induzida s pe la te c nologia
a pr e nde m sobr e te c nologia , r e la ç õe s hum a na s e signif ic a do da vida é
um a liç ã o c r ític a pa r a todos nós.

A pe rgunta c r uc ia l r e f e r e - se a o c onhe c im e nto. Que m sa be que um a


te c nologia é pe r igosa ? Qua ndo e le s o sa be m ? Com o um a nova
te c nologia é la nç a da pa r a uso públic o? Quã o c om ple tos sã o os e studos
que pe squisa m se u im pa c to pote nc ia l? Quã o inf lue nte s? Em a lguns
c a sos ( ta is c om o o Esc udo Da lkon, o a utom óve l P into e ta nque s de
ga solina c om va za m e ntos) , no iníc io ningué m c onhe c ia r e a lm e nte se u
gr a u de se gur a nç a ou de pe r igo — ningué m , ne m os inve ntor e s, ne m
os f a br ic a nte s, ne m o gove r no, ne m os c onsum idor e s. Ningué m pr e viu
a possibilida de de que e le s pude sse m a pr e se nta r f utur os e f e itos
da nosos; ningué m f e z te ste s e a ná lise s suf ic ie nte s. Em c a sos c om o
e sse s, e m bor a de iníc io ne m o f or ne c e dor ne m o usuá r io c onhe ç a m os
pe r igos da te c nologia , f ina lm e nte , a tr a vé s de um a e xpe r iê nc ia inf e liz,
a lgué m a c a ba de sc obr indo. A de sc obe r ta ge r a lm e nte opõe o
f or ne c e dor de f e nsivo ( que ta lve z nã o que ir a a dm itir sua
r e sponsa bilida de ou inve stir e m m uda nç a de te c nologia ) a o
c onsum idor pr e j udic a do ( que ta lve z busque inde niza ç ã o pe lo
sof r im e nto ou e xij a que a te c nologia of e nsiva se j a ba nida ) .

Em outr os c a sos, os tom a dor e s de de c isã o nos m a is a ltos e sc a lõe s da s


hie r a r quia s gove r na m e nta is, c ie ntíf ic a s e e m pr e sa r ia is c om pr e e nde m
m uito be m os pe r igos, m a s de te r m ina m que o "r isc o" pa r a a vida
individua l va le o "be ne f íc io" pa r a a soc ie da de , pa r a se us pr ópr ios
c ur r íc ulos ou pa r a sua s c onta s ba nc á r ia s. Nã o ve ndo ne nhum a
va nta ge m e m c onf e ssa r c onhe c im e nto do pe r igo, e le s e m ge r a l
e nvolve m sua s te c nologia s no m a ior se gr e do. Na da inf or m a m , ne m
a os tr a ba lha dor e s ne m a o públic o, sobr e os possíve is pr oble m a s e , e m
r e sulta do, o povo usa te c nologia s pe r igosa s se m c onhe c im e nto do se u
r isc o.

O f a to de que o a m ia nto pode c a usa r doe nç a s pulm ona r e s e m or te j á


e r a c onhe c ido nos Esta dos Unidos e m 19182 m a s, a inda a ssim , os
f a br ic a nte s c ontinua r a m a e m pr e ga r tr a ba lha dor e s e m a m bie nte s
inse gur os, e vita ndo toda e qua lque r r e sponsa bilida de a tr a vé s do
pa ga m e nto de a dic iona is de insa lubr ida de e e str a té gia s le ga is. Nos
a nos 50, He a the r Ma ur e r tr a ba lha va na pe que na f á br ic a do pa i
c or ta ndo tubos de a m ia nto. Se u pa i m or r e u de c â nc e r ge ne r a liza do e a
m ã e sof r e de f ibr ose ple ur a l. "Voc ê a c ha ", pe rgunta e la , "que m e u pa i
bota r ia a f a m ília a tr a ba lha r c om e ssa c oisa se soube sse que e la
e sta va nos m a ta ndo?"

Em últim a a ná lise , na da sa be m os sobr e os e f e itos da s te c nologia s


m ode r na s sobr e a nossa sa úde sim ple sm e nte por que a que le s que a s
de se nvolve m e f or ne c e m nã o se inte r e ssa m pe lo a ssunto. As
te c nologia s nã o sã o c r ia da s e e sc olhida s de um m odo a be r to,
c uida doso ou de m oc r á tic o, e nós nã o e xigim os que e la s o se j a m . Sua
e xistê nc ia de ntr o da c om unida de hum a na , de vido a ir r e sponsa bilida de
de que m a s de se nvolve e à inoc ê nc ia de que m a s c onsom e , tor na - se
um de stino que não e sc olhe mos.
Assim , a de sc obe r ta da c one xã o e ntr e o sobr e vive nte de um a doe nç a
e um e ve nto te c nológic o oc or r e num a a tm osf e r a de ignor â nc ia e
inoc ê nc ia .

O pr oble m a nã o é e xa ta m e nte o f a to de que m uitos de nós — de sde


c ida dã os a té c ie ntista s — nã o r e c onhe c e m os pe r igos. O pr oble m a é
que nã o c onse guim os a dm itir que o nosso vizinho, um m e m br o da
nossa f a m ília ou a té nós m e sm os pode m os e sta r sof r e ndo de doe nç a s
induzida s pe la te c nologia . Te m os ta bus te c nológic os pa r a nos pr ote ge r
de ssa ide ia , te m os r e gr a s e r e str iç õe s inc onsc ie nte s a pr e ndida s
a tr a vé s da soc ia liza ç ã o que m ostr a m nossa pr of unda ne c e ssida de de
e vita r c e r ta s e xpe r iê nc ia s. Existe um ta bu c ontr a de sa f ia r a
te c nologia , e xiste um ta bu c ontr a que stiona r a s instituiç õe s que a
f or ne c e m e e xiste um ta bu c ontr a c onf e ssa r os da nos que e la pr ovoc a .

O soc iólogo Ja c que s Ellul suge r e c om o e sse siste m a de ta bus


f unc iona . No se u Propaganda: The Formation of M e ns Altitude s
[ P r opa ga nda : A For m a ç ã o da s Atitude s do Hom e m ) , Ellul vê a
de te r m ina nte da pe r c e pç ã o públic a c om o se ndo a lgo m a is que um a
doutr ina ç ã o la nç a da sobr e o povo por um a c a ba la de gove r na nte s e
e xe c utivos que se r ve m a si m e sm os. Ele vê e ssa de te r m ina nte c om o
um siste m a de pa r c e r ia s que e nvolve todos os se tor e s da popula ç ã o.

O que te m os na soc ie da de m ode r na é um c onj unto de ta bus


te c nológic os que , pe lo m e nos a c ur to pr a zo, be ne f ic ia m dir e ta m e nte
os c r ia dor e s e disse m ina dor e s de te c nologia s. O que te m os sã o ta bus
que , indir e ta m e nte , sa tisf a ze m a s ne c e ssida de s psíquic a s da popula ç ã o
c om sua s pr om e ssa s de "boa vida ", e xc ita ç ã o e "pr ogr e sso".

26. As regiões selvagens como vítimas do progresso

PETER B ISHOP

Os a nos 60 vir a m a pr im e ir a f otogr a f ia da Te r r a c om o um pla ne ta e ,


e m 1968, e la f oi r e ve la da a se us ha bita nte s por um a tr a nsm issã o
te le visiva dir e ta a pa r tir de um a e spa ç ona ve e m ór bita . A r e spe ito
disso, Me tzne r e sc r e ve : As pr im e ir a s f otogr a f ia s da Te r r a tir a da s do
e spa ç o a ssina la r a m o c om e ç o de um novo c ic lo de inc lusã o tota l: lá
e sta va e la c om o um a j oia ve r de - a zula da no ve ludo ne gr o do e spa ç o
pr of undo, e nvolta nos lum inosos vé us a tm osf é r ic os —a nossa na ve
e spa c ia l, a nossa m ã e , o nosso pla ne ta . O m undo é uno. Agor a
e sta m os todos unidos.1

A a br upta c r ia ç ã o de ssa im a ge m ide a liza da da tota lida de , a f a nta sia


da "Te r r a Tota l", é um a c onte c im e nto únic o pa r a a s c ultur a s
industr ia is. É um a c om ple xa im a ge m holístic a da Te r r a : f ísic a ,
c ultur a l, e spir itua l, sua histór ia e se u f utur o, A "Espa ç ona ve Te r r a ", a
"Te r r a S/A", a "Alde ia Globa l", a "Te r r a Cé lula ", a "Te r r a Tota l", a
"Te r r a Ma ndá lic a " — toda s e ssa s im a ge ns m ostr a m a Te r r a c om o um a
unida de e voluc ioná r ia disc r e ta num im e nso dr a m a c ósm ic o. Ma s a
c onf ia nç a , a e xube r â nc ia e o se nso de r e tidã o inspir a do por e sse
e ve nto im a gístic o obsc ur e c e r a m o pa r a doxo im a gina tivo. P or qua is
r ota s a im a ge m da Te r r a Tota l a dquir iu sua a tua l c oe r ê nc ia m a ssiva ?
Em qua is m om e ntos, dur a nte a e m e rgê nc ia de ssa im a ge m , c onf ia nç a
e e spe r a nç a c oinc idir a m c om a nsie da de e de se spe r o?

A "Te r r a Holístic a " a livia o f a r do de um a im e nsidã o se m f or m a . Essa


e stá ve l im a ge m globa l c oloc a e m f oc o a va stidã o inf inita do e spa ç o.
Futilida de , m onotonia e m e la nc olia sã o os r e sulta dos c onsiste nte s
de ssa im a gina ç ã o a m plia da .

A e c ologia e o hor r or aos inse t os


Um a ve z que o pla ne ta c om o s i s t e m a , e nã o c om o proc e sso
e voluc ioná r io, tor na - se o f oc o pr inc ipa l, tr a nspor ta m o- nos pa r a a
f a nta sia da e c ologia . Surge m dif e r e nte s e spe r a nç a s e m e dos,
m obiliza m - se nova s c oe r ê nc ia s. A pa la vr a "e c ologia " surgiu pe la
pr im e ir a ve z na língua ingle sa e m 1873.2 A e c ologia e nf a tiza o todo e
nã o a s pa r te s, e nf a tiza a s inte r a ç õe s e ntr e orga nism o e a m bie nte .
Ha r m onia , e quilíbr io, inte r de pe ndê nc ia , unida de e tota lida de sã o
c onc e itos utiliza dos pa r a de sc r e ve r siste m a s ide a liza dos. A vida tor na -
se c oe r ê nc ia ; a Te r r a , um a c é lula globa l. A hum a nida de é im a gina da
c om o um a m e r a f or m a de vida e ntr e m uita s outr a s, um se r pla ne tá r io
inse pa r a ve lm e nte e nr e da do num a te ia viva .3

Enqua nto o c a m po da e c ologia e r a inic ia lm e nte f or m a do pe la biologia


e pe la botâ nic a do sé c ulo XI X, no sé c ulo XX e le a m pliou- se e
e nglobou toda s a s disc iplina s de sde a s a r te s a té a s c iê nc ia s soc ia is e
f ísic a s. "O únic o pe nsa m e nto digno do nom e pr e c isa a gor a se r
e c ológic o", e sc r e ve Mum f or d.4 As m e tá f or a s orgâ nic a s e
inspir a c iona is da que le s que pr oc la m a m um a sa gr a da unida de globa l
— "I nte gr ida de é tota lida de , a m a ior be le za é a tota lida de orgâ nic a ..."
— c ontr a sta m c om a lingua ge m sistê m ic a dos pr a gm á tic os holístic os:
"De us... [ é ] o m ovim e nto a bstr a to de um a bússola m ovida pe lo
a m or..." 5 Em a pa r e nte oposiç ã o a a m ba s, e stã o a s im a ge ns da um a
u n i d a d e p ro fa n a . P a r a Ka r l Ma r x, o globo e sta va r e a lm e nte se
tor na ndo unido, m a s pe lo c a pita lism o e pe lo im pe r ia lism o. Do m e sm o
m odo, Ma rga r e t Me a d e sc r e ve que a pr ópr ia hum a nida de "inte r ligou a
popula ç ã o do pla ne ta , a nte s dispe r sa e de sc one xa , num únic o gr upo
inte r c one c ta do, m utua m e nte de pe nde nte e tota lm e nte e m pe r igo".6 A
e uf or ia da "a lde ia globa l" dos a nos 60 pa r e c e ingê nua qua ndo
c om pa r a da à a tua l im a ge m da som br a de um "únic o gr upo tota lm e nte
e m pe r igo".

E m The Fale of the Earth [ O De stino da Te r r a ] , Jona tha n Sc he ll


c om e nta som br ia m e nte que ta lve z tudo o que r e ste de um holoc a usto
a tôm ic o se j a "um a r e públic a de inse tos e o c a pim ".7 Essa é um a
r e f or m ula ç ã o m ode r na de um a ntigo m e do: o m e do de que o r e ino dos
inse tos de sloque o Homo Sapie ns c om o e spé c ie dom ina nte e he r de a
Te r r a . Enqua nto a sobr e vivê nc ia de pá ssa r os e golf inhos pode r ia
of e r e c e r c e r to c onsolo, im a gina r que o dom ínio do pla ne ta pa ssa r ia
a os inse tos, e m e spe c ia l a s f or m iga s e ba r a ta s, pr ovoc a r e pulsa ,
de se spe r o e de sola ç ã o. Os inse tos há m uito sã o a ssoc ia dos a o
de m ônio. Na tr a diç ã o j unguia na , um a m ultidã o de inse tos num sonho
ge r a lm e nte sim boliza um a psic ose la te nte , um a f r a gm e nta ç ã o da
pe r sona lida de bá sic a . Ja m e s Hillm a n suge r e que e le s e voc a m a
a utonom ia r e pr im ida da psique oc ide nta l; inse tos nos sonhos
r e pr e se nta m a m e nte ou inte ligê nc ia na tur a is nos c om ple xos.8

O holism o te m e a f r a gm e nta ç ã o. Ele usa os inse tos pa r a e voc a r


f a nta sia s a gr e ssiva s. O hom ic ídio é um c r im e ; o inse tic ida é um
pr oduto de c onsum o dom é stic o. Os inse tos inspir a m um a te r r or iza do
tir ote io c om a e r ossóis tóxic os. Hillm a n c om e nta : "Assim que o
bic hinho a pa r e c e , c om e ç a o tir ote io." Fa nta sia s c om inse tos toc a m o
m e do de de sinte gr a ç ã o, de poluiç ã o, de pe r da de ide ntida de . Ele s
e xpr e ssa m o m e do que te m os de um siste m a onipote nte e be m -
orga niza do, be m c om o nosso m e do de um a m ultidã o c a ótic a e se m
r osto. As im a ge ns e sc ur a s e spe c íf ic a s da a lie na ç ã o e da e r a industr ia l
— a s m a ssa s, bur oc r a c ia , supe r popula ç ã o, tota lita r ism o — f or a m , a té
c e r to ponto, e xpr e ssa s e m m e tá f or a s e ntom ológic a s: um a c olm e ia
industr ia l, um f or m igue ir o de r e de s viá r ia s ur ba na s. Me sm o a
lingua ge m dos siste m a s de inf or m a ç ã o da biologia m ode r na e da
c ibe r né tic a r e m e te a os inse tos e à sua orga niza ç ã o: units, bits.
5
mic roc hips e , c la r o, "bugs. I m a gina r a Te r r a c om o um a únic a c é lula ,
c om o um a unida de holístic a , e voc a sonhos c om inse tos.

Os inse tos ta m bé m e stã o m itologic a m e nte a ssoc ia dos c om a


c la ssif ic a ç ã o, a inve stiga ç ã o, a a te nç ã o a os de ta lhe s. Ele s sã o
m e nsa ge ir os do m undo subte r r â ne o insistindo que tr oque m os nossa s
glor iosa s a bstr a ç õe s de unida de globa l por um a im a gina ç ã o
f r a gm e nta da m a is liga da a Te r r a . Ma s, na c onc e pç ã o unila te r a l do
holism o, os inse tos e stã o por toda pa r te , c om e ndo e c or r oe ndo a s
ba se s de tudo. As f a nta sia s de unida de globa l tê m sido c a da ve z m a is
sola pa da s por um a se nsa ç ã o pe ne tr a nte de c r ise . Tudo se de sm or ona ,
tudo pa r e c e nos a m e a ç a r : o a r que r e spir a m os, a á gua que be be m os, o
a lim e nto que c om e m os. Existe um a a nsie da de pr of unda m e nte
dive r sif ic a da . O la do re v e rso da unida de globa l r e ve la a f a c e da
f r a gm e nta ç ã o, do pâ nic o e da c r ise — nã o um a únic a gr a nde c r ise no
f utur o, m a s inúm e r a s pe que na s c r ise s, a gor a , por toda pa r te , a c a da
dia . Expe r iê nc ia s de c r ise , inte r ve nç õe s de c r ise , a dm inistr a ç ã o de
c r ise , tr a ta m e nto de c r ise , a c onse lha m e nto de c r ise , tudo isso
c a r a c te r iza a vida na soc ie da de oc ide nta l ne ste f ina i do sé c ulo XX.9

A pr e oc upa ç ã o c om a e c ologia pa r e c e pr om ove r um a a tivida de


inc e ssa nte . Os pr oble m a s sã o se m pr e a pr e se nta dos c om o urge nte s, a
que stã o se m pr e é do tipo o que faze r agora! A c onte m pla ç ã o f oi
substituída por a tivism o. Com o obse r vou um a tivista e c ológic o: "Ante s
e studá va m os a tor da do Ma r do Nor te ; a gor a te nta m os sa lva r a
e spé c ie hum a na ."10

Um a pa le str a de 1898, "A De pe ndê nc ia do Hom e m à Te r r a ",


pr oc la m a va c om r e signa ç ã o que "o hom e m nunc a pode r á de sa ta r os
la ç os que o suj e ita m à na tur e za ".1 1 Lor e n Eise le y e sc r e ve u que "a
de sc obe r ta da te ia da vida , inte r liga da e e m e voluç ã o" e r a a pr inc ipa l
c a usa de "um te r r or inte ir a m e nte novo e m e nos pa lpá ve l",12 E Jung
a le r ta , "P ode r- se - ia f a c ilm e nte c onj e c tur a r que a Te r r a e stá f ic a ndo
pe que na de m a is pa r a nós, que a hum a nida de gosta r ia de e sc a pa r de
sua pr isã o..."13 A hum a nida de pa r e c e e sta r pr e sa na a r m a dilha de
se us pr ópr ios sonhos de unida de . P a vor inj ustif ic a do do c a os, da
f r a gm e nta ç ã o e da pe r da de ide ntida de sã o c om ple m e nta dos por
m e do de f ic a r pr e so na a r m a dilha , suf oc a do e a pr isiona do, A te ia da
vida , a re de e c ológic a , e voc a m e sse s m e dos.

A im e nsa c e le br a ç ã o, a té m e sm o o c ulto, da pa r tic ipa ç ã o ine sc a pá ve l


da hum a nida de na te ia da vida c ontr a diz a a m e a ç a de m or te e
de str uiç ã o sim boliza da pe la a r a nha no se u c e ntr o. A te ia é um sím bolo
a pr opr ia do pa r a o la do da som br a do de c a nta do "r e tor no à Mã e
Te r r a ". A te ia é , nã o a pe na s um a im a ge m holístic a a se r c onte m pla da
e m a dm ir a ç ã o, m a s ta m bé m um la bir into de ntr o do qua l a
hum a nida de c a m ba le ia e m busc a de sua pr ópr ia ide ntida de e
se gur a nç a .
Uma pe r da ime nsa

O holism o pla ne tá r io nã o r e pr e se nta a pe na s um a im a ge m e xe m pla r


de or de m , c om o ta m bé m de im e nsa pe r da . O sim ple s ta m a nho e o
c a r á te r pe r e m ptór io da s f a nta sia s c onte m por â ne a s de pe r da sã o se m
pr e c e de nte s:

Nã o há sobr e vive nte s, nã o há f utur o, nã o há vida a se r e m r e c r ia dos


ne sta m e sm a f or m a . Esta m os olha ndo pa r a a f ina lida de m a is e xtr e m a
que pode se r e sc r ita , vislum br a ndo a e sc ur idã o que nã o c onhe c e r á
outr o r a io de luz. Esta m os e m c onta to c om a r e a lida de da e xtinç ã o.14

Espé c ie s se e xtinguir a m a o longo da histór ia da Te r r a e a e xpe r iê nc ia


da e xtinç ã o de ve te r sido c onsc ie nte m e nte e nf r e nta da por m uitos
povos. Ma s ne nhum a e spé c ie j a m a is f oi f or ç a da a c onte m pla r a nítida
possibilida de de sua pr ópr ia e xtinç ã o. A "e xtinç ã o", a "a niquila ç ã o",
e sm a ga m nossos pode r e s im a gina tivos. Em te r m os psic ológic os, é
dif íc il e nc a r a r c om o sim ple s f a nta sia a pe r spe c tiva da im e dia ta
e xtinç ã o da e spé c ie hum a na .

Em 1848, a pe na s qua tr o a nos de pois que o últim o c a sa i de m e rgulhõe s


giga nte s f oi m or to a pa ula da s e se u únic o ovo e sm a ga do pe la s bota s
de um pe sc a dor f inla ndê s, Ka r l Ma r x e sc r e ve u sobr e a unida de
hum a na e nqua nto "e spé c ie ". Na é poc a , e sse e r a um c onc e ito dif íc il de
se r a pr e e ndido. Tr ê s a nos m a is ta r de , e m 1851, a e xposiç ã o no
P a lá c io de Cr ista l f oi ina ugur a da pe lo P r ínc ipe Albe r to c om e sta s
p a la v r a s: Ningué m que te nha pr e sta do a te nç ã o à s c a r a c te r ístic a s
pe c ulia r e s da e r a pr e se nte duvida r á por um m om e nto que e sta m os
vive ndo e m um pe r íodo da m a is m a r a vilhosa tr a nsiç ã o, que te nde
r a pida m e nte a r e a liza r a que le gr a nde obj e tivo pa r a o qua l, na
ve r da de , toda a Histór ia a ponta — a r e a liza ç ã o da unida de da r a ç a
hum a na . 15

Ce nto e tr inta a nos de pois, pe r c e be m os que a unida de globa l te m se u


la do da som br a na gue r r a globa l e na poluiç ã o globa l. No e nta nto,
e m e rgindo de sob e sse la do e sc ur o, e stá a pe r c e pç ã o de nós m e sm os
e nqua nto um a e spé c ie pa r tic ula r. Hoj e é m uito m a is f á c il a pr e e nde r a
im a ge m de Ka r l Ma r x sobr e um a e spé c ie hum a na . I m a gina r nossa
ide ntida de e nqua nto e spé c ie signif ic a e nf r e nta r a m or te . I m a gina r a
e xistê nc ia e nqua nto e spé c ie e xige que im a gine m os a e xtinç ã o da
e spé c ie ; sã o os dois la dos da m e sm a im a ge m . P a r a o hom e m
oc ide nta l m é dio da é poc a de Ma r x, ta nto a e xtinç ã o do pa c íf ic o
m e rgulhã o giga nte qua nto a im a ge m m a r xista do se r e nqua nto e spé c ie
te r ia m pa r e c ido e str a nha s, a bstr a ta s e r e m ota s. P a r a o hom e m
c onte m por â ne o, e la s pa r e c e m m ode r na s.
Nã o a pe na s a m e m ór ia hum a na c om o ta m bé m o pr ópr io te r r e no da
im a gina ç ã o e stã o hoj e a m e a ç a dos de e xtinç ã o. Ca da um dos níve is de
pe r da im a gina dos — individua lida de , c iviliza ç ã o, e spé c ie hum a na , o
m undo a nim a l e ve ge ta l, a m a tr iz que c r ia e susté m a vida na f or m a
que a c onhe c e m os — e xpr e ssa o m e do da a usê nc ia de um r e f e r e nc ia l
psic ológic o, a m or te da me mória. Atr a vé s de ssa s te r r íve is im a ge ns de
pe r da , som os a tir a dos à a lm a da s c oisa s, à Anima M undi.16

As r e giõe s se lvage ns e a pe r da da be le za

As r e giõe s se lva ge ns tê m sido c ha m a da s "Me c a s da pe r e gr ina ç ã o a o


pa ssa do da nossa e spé c ie ", "r e se r va tór ios da libe r da de hum a na ",
"pa r te s da ge ogr a f ia da e spe r a nç a ".17

A pr e se r va ç ã o da s r e giõe s se lva ge ns te m sido e nf a tiza da por m uita s


r a zõe s — c om o r e púdio a c iviliza ç ã o industr ia l e r e tom o a o
pr im itivism o; r e positór ios de da dos c ie ntíf ic os inc om e nsur á ve is;
c a m pos de tr e ina m e nto pa r a o de se nvolvim e nto da a utoc onf ia nç a e
da s ha bilida de s de sobr e vivê nc ia ; luga r e s que a m plia m o e spír ito de
e quipe ; r e tir os solitá r ios pa r a c onte m pla ç ã o e a dor a ç ã o; c e ntr os de
c ur a onde a te nsã o e a c onf usã o da vida ur ba na pode m se r libe r a da s;
c or r e tivos sa luta r e s a o a ntr opoc e ntr ism o. Ainda a ssim , a pr opr ie da de
bá sic a da s r e giõe s se lva ge ns é e sté tic a .13 O â m a go da s im a ge ns sobr e
a s r e giõe s se lva ge ns e nc e r r a um a a nsie da de f unda m e nta l a r e spe ito
da be le za .

Enqua nto os de f e nsor e s da s r e giõe s se lva ge ns c ontinua m e nte e xa lta m


sua be le za , a a pr e c ia ç ã o c onte m por â ne a nã o se e quipa r a a o de le ite e
a ssom br o que e la e voc a va e m te m pos pa ssa dos. Rousse a u que ixou- se
de que a voluptuosida de da na tur e za o e sm a ga va ; Thor e a u
c onf ide nc iou que "Me us se ntidos nã o tê m de sc a nso"; Muir insistia que
a be le za e r a tã o im por ta nte qua nto o pã o. Em sua pr im e ir a e sc a la da
à s m onta nha s do Him a la ia , Younghusba nd e xc la m ou e m ê xta se : "Ah,
sim ! sim ! Com o isto é e splê ndido! Que e splê ndido! " P a r a nós, e sse s
luga r e s e stã o hoj e toc a dos pe la im pe r m a nê nc ia ; e le s nos f a ze m
le m br a r a pe r da .19 Ma s a im a gina ç ã o da s r e giõe s se lva ge ns a inda dá
um a c oe sã o se nsua l à im a ge m de um a Te r r a holístic a . Ela of e r e c e a
m a is sublim e e xpe r iê nc ia v isual da vida pla ne tá r ia . Atr a vé s do pr a ze r
se nsua l da be le za , ta nto a visã o e c ológic a qua nto a e voluc ioná r ia
m ode r a m a a bstr a ç ã o e xc e ssiva .

Vista do e spa ç o, a im a ge m da Te r r a de spe r ta um a dor indisf a r ç á ve l:


"Envolta num m a nto de nuve ns, e la f lutua , f or m osa , pe lo oc e a no do
e spa ç o. Ca be - nos e sc olhe r e ntr e viola r ou honr a r sua be le za ."20
Enqua nto a e c ologia se oc upa c om o r om pim e nto da s c one xõe s e a
de str uiç ã o da a ntiga ha r m onia f unda m e nta l, a pr e se r va ç ã o da s
r e giõe s se lva ge ns usa c onsta nte m e nte m e tá f or a s de viola ç ã o, e stupr o
e pilha ge m .

Ma s ta lve z o gr a nde pr oble m a dos nossos te m pos se j a m e nos a


a lie na ç ã o da "na tur e za " que a da "be le za ". "Re giã o se lva ge m " tinha ,
or igina lm e nte , c onota ç õe s de de sor de m e c onf usã o. Existe c e r ta
louc ur a no c r e sc im e nto se lva ge m . As va stidõe s "se lva ge ns e
a ssusta dor a s" do Ma ine c hoc a r a m Thor e a u e f or ç a r a m - no a m ode r a r
se u e ntusia sm o a nte r ior. P ouc os pa r tilha r ia m de sua r e a ç ã o hoj e .
Som os m a is ilum ina dos a o pr oc la m a r que e sse s luga r e s nã o
pe r tur ba m m a is ou pe r de m os c onta to c om a lgum pa r a doxo
f unda m e nta l? Os a tivista s da vida se lva ge m e m ge r a l insiste m que se u
obj e tivo é r e e duc a r o Oc ide nte pa r a um a a pr e c ia ç ã o ine quívoc a da
be le za da s r e giõe s se lva ge ns "na tur a is". Esse obj e tivo c a usa
pe r ple xida de , pois é im pr ová ve l que a lgum a c ultur a hum a na te nha
r e a liza do o pa r a doxo de e ngloba r todas a s r e giõe s c onhe c ida s.21

Existe um e sf or ç o c onj unto pa r a e lim ina r o im a giná r io da s r e giõe s


se lva ge ns e r e m ove r qua lque r m e la nc olia a e la s a ssoc ia da . No
pa ssa do, isso f oi c onse guido a tr a vé s da e lim ina ç ã o lite r a l de f lor e sta s,
pâ nta nos e se lva s ou pe lo c ultivo de de se r tos. Hoj e , e ssa e lim ina ç ã o
se dá pe la f a nta sia insiste nte de que a opr e ssã o e o m e do
tr a dic iona lm e nte inspir a dos pe la s r e giõe s se lva ge ns eram
pr e c onc e ituosos e e r r a dos.22

A pr ópr ia ide ia de r e giã o se lva ge m te m sua s or ige ns num a f a nta sia de


opostos: br a vio/dom a do, se lva ge m /c iviliza do, pr of a no/divino,
louc ur a /sa nida de , c a os/or de m , c onf usã o/ha r m onia .23 A im a ge m da s
r e giõe s se lva ge ns se m pr e f oi utiliza da c om o a lgo a tr a vé s do qua l
a lgué m se de f inia e se ide ntif ic a va . Ela se m pr e e nvolve u um outro
lugar e só pode e xistir qua ndo é de sta c a da de a lgum outr o luga r. As
r e giõe s se lva ge ns m a r c a m a s f r onte ir a s da s im a ge ns de e xtr e m os.
Com o a lta r e s ine quívoc os da be le za na tur a l, e la s ta m bé m sã o e ntr a da s
c onte m por â ne a s pa r a o m undo subte r r â ne o, pa r a pa isa ge ns onde
im a gina - se que ta l be le za se j a tota lm e nte a use nte .

Existe o r isc o de que a s f a nta sia s unila te r a is c onf ine m a "be le za


na tur a l" à s á r e a s c ha m a da s se lva ge ns e a e xc lua m da vida c otidia na
na s c ida de s. As r e giõe s se lva ge ns j á e stã o se ndo e m ba la da s pa r a
c onsum o im e dia to. Ela s e stã o r a pida m e nte se tor na ndo um tópic o
f e c ha do: por e xe m plo, a psic ologia a m bie nta l j á de f iniu e e xa ltou a
"e xpe r iê nc ia da s r e giõe s se lva ge ns", que se tom ou f oc o da a te nç ã o de
e duc a dor e s, te r a pe uta s, a ssiste nte s soc ia is, e tc . 24 P r oj e ta r a m - se
m a ne ir a s de a m plia r sua inte nsida de e c a na liza r sua dir e ç ã o. Thor e a u,
pr e sum ive lm e nte , pr e c isa r ia r e e duc a r sua a titude e m r e la ç ã o à s
r e giõe s se lva ge ns do Ma ine . A "e xpe r iê nc ia da s r e giõe s se lva ge ns"
e stá tom a ndo f or m a c om o m a is um outr o ite m de c onsum o
pr ogr a m a do e insta ntâ ne o. As r e giõe s se lva ge ns do m undo e stã o se
tor na ndo os pa r que s da a ve ntur a da s na ç õe s r ic a s ou a s c a te dr a is de
um novo dogm a .

Evita m os o pa r a doxo de r r uba ndo a ntiga s á r vor e s ou e xtir pa ndo


"inde se j á ve is" f a nta sia s oc ide nta is. À m e dida que a s r e giõe s
se lva ge ns se tr a nsf or m a m num luga r unila te r a l de sa lva ç ã o, a s
f a nta sia s do m a l se de sloc a m pa r a a c ida de , pa r a a m á quina , pa r a a
e m pr e sa de m ine r a ç ã o. A va r ie da de de possíve is r e a ç õe s im a gina tiva s
à s r e giõe s se lva ge ns j á e stá se ndo c om pr im ida na m or a lida de
a utoc om pla c e nte do holism o e na unif or m iza ç ã o do a m bie nte
te r a pê utic o do sé c ulo XX.

Vít imas das sombr as?


As r ota s pe la s qua is a im a ge m pla ne tá r ia holístic a c he gou à
c onsc iê nc ia oc ide nta l nã o f or a m , c onse que nte m e nte , livr e s de
som br a . Do c ic lo im a gina tivo e voluc ioná r io surge m im a ge ns da
hum a nida de e sm a ga da sob o f a r do de um a im pie dosa c ontinuida de ou
nulif ic a da num e sta do de se spe r a dor de insa tisf a ç ã o pe la ilim ita da
va stidã o do te m po e do e spa ç o. A im a gina ç ã o e c ológic a e ngloba o
m e do da f r a gm e nta ç ã o, do c a os, do a pr isiona m e nto na te ia da vida ,
c om a pe r da da ide ntida de hum a na . A im a gina ç ã o da s r e giõe s
se lva ge ns é m a tiza da pe la nosta lgia e pe la s f lutua ç õe s do e sta do de
e spír ito que se m pr e a c om pa nha m a s f a nta sia s f or te m e nte lite r a is e
ir r e f le tida s sobr e a be le za . Essa s sã o a lgum a s da s pr of unda s
pa tologia s e spe c íf ic a s dos nossos te m pos, e m bor a e la s c om um e nte
a pa r e ç a m sob a f or m a de sonhos c om inse tos ou de ir r ita nte s
pr e oc upa ç õe s c om a s ba ga te la s da vida c otidia na .

A c onhe c ida a ntr opóloga Ma r y Dougla s c onc lui se u e studo do


a m bie nta lism o c onte m por â ne o le va nta ndo a que stã o "por que os
Esta dos Unidos e stã o m a is a pa ixona da m e nte e nvolvidos do que
qua lque r outr a na ç ã o oc ide nta l no de ba te sobr e os r isc os da
na tur e za ?" 25 Um a posiç ã o no c e ntr o do pode r globa l pe r m itir ia um a
visã o pr ivile gia da da s que stõe s globa is, ou e ssa a lta posiç ã o
e nc or a j a r ia e f or ç a r ia um a im a gina ç ã o globa l? Qua ndo o pode r e a
m a nipula ç ã o sã o globa is, a ssim sã o a s im a ge ns da e spe r a nç a e do
signif ic a do. Ce ná r ios globa is, soluç õe s globa is, pr oble m a s globa is,
todos e le s sã o pa r te da m e sm a f a nta sia e spe c íf ic a .26
Eise le y insiste que a hum a nida de "c e r ta m e nte c a m inhou pe lo f io da
na va lha da e xtinç ã o por a nos se m c onta . À m e dida que de f inia o se u
m undo, ta m bé m c a ía vítim a da s som br a s que e stã o por de tr á s de le ".27
P a r e c e que o pe sa de lo c ontinua r á m ur m ur a ndo e m nossos ouvidos
a inda por m uito te m po. A que stã o im por ta nte nã o se r e f e r e a um e r r o
m e c â nic o a c ide nta i, a um de f e ito té c nic o ou a um mic roc hip
de f e ituoso num a e sta ç ã o de a le r ta nuc le a r. A que stã o f unda m e nta l é
se som os c a pa ze s de supor ta r a inte nsida de c ontínua dos nossos
pr ópr ios pe sa de los. À m e dida que a um e nta a dif ic ulda de de de sc a r tá -
los do nosso c otidia no, e le s se c onge la m num a im a ge m de e sc ur idã o
que é tã o e xe m pla r, de nsa e c oe r e nte qua nto a im a ge m da Te r r a
holístic a .

Uma e c ologia f r agme nt ada

Ba c he la r d c om e ntou c om de sgosto que "[ Os a dultos] de m onstr a m à


c r ia nç a que a Te r r a é r e donda e que gir a e m tor no do Sol. E a pobr e
c r ia nç a sonha dor a pr e c isa ouvir tudo isso! Que a lívio pa r a se us
de va ne ios qua ndo... voc ê volta a e sc a la r a e nc osta da c olina ..."28
Um a im a gina ç ã o e spe c íf ic a e f r a gm e nta da nã o sube stim a , de m odo
a lgum , a a m e a ç a a o pla ne ta ne m r e ve la pr e oc upa ç ã o m e nor c om o
a m bie nte . Ce r ta m e nte que a im a ge m de um a Te r r a holístic a suge r e a
ne c e ssida de urge nte de e str utur a s im a gina tiva s pa r a c onte r, c ozinha r e
dige r ir a s f a nta sia s dos nossos te m pos. Ma s os f r a gm e ntos ta m bé m
c ur a m . As que stõe s c oloc a da s pe la im a gina ç ã o globa l sã o, e m si
m e sm a s, e stilhaç adoras. Ela s c ontinua m e nte f r a gm e nta m o c onf or to
que a lgué m pode r ia e xtr a ir de um holism o pr e m a tur o. Com o j á
vim os, e xiste um a som br a de de str uiç ã o ine r e nte a o holism o
ide a lístic o. P r e c isa m os de sc e r a e ssa s som br a s da Te r r a holístic a , pois
e ssa im a ge m na sc e u a o m e sm o te m po que a im a ge m da nossa pr ópr ia
de str uiç ã o. Eise le y e sc r e ve sobr e "o e sc ur o m ur m úr io que sobe do
a bism o sob nós e que nos a tr a i c om m iste r ioso f a sc ínio". Esse s
m ur m úr ios sã o o m undo c ha m a ndo a a te nç ã o pa r a si m e sm o,
r e sta be le c e ndo a si m e sm o c om o um a r e a lida de psíquic a .29

A história dos trê s pe dre iros ilustra c omo a nossa atitude pode
transformar o nosso trabalho:

Voc ê c onhe c e a história dos trê s pe dre iros? Quando pe rguntaram ao


prime iro pe dre iro o que e stav a c onstruindo, e le re sponde u c om rude za
e se m se que r le v antar os olhos do trabalho: "Estou asse ntando tijolos."
O se gundo re sponde u: "Estou le v antando uma pare de ." M as o te rc e iro
e x c lamou c he io de e ntusiasmo e orgulho: "Estou c onstruindo uma
c ate dral! "
Par t e 6

A sombr a no c aminho: o lado e sc ur o da r e ligião e da e spir it ualidade


Um disc ípulo pe rguntou a um r a bino m uito instr uído por que De us
outr or a c ostum a va f a la r dir e ta m e nte c om o se u povo e nos dia s de
hoj e de ixou de f a zê - lo. O sá bio r e sponde u: "O hom e m nã o c onse gue
m a is se c ur va r o suf ic ie nte pa r a ouvir a voz de De us."

Prov é rbio judaic o

Fa z pa r te da s pr of unde za s do e spír ito r e ligioso te r se se ntido


a ba ndona do, a té m e sm o por De us.

Alfre d North W hite k e ad

P or de tr á s da e sc ur idã o r e pr im ida e da som br a pe ssoa l — a quilo que


f oi de c om posto e e stá se de c om pondo, e a quilo que a inda nã o e xiste
m a s e stá ge r m ina ndo — e xiste a som br a a r que típic a , o pr inc ípio do
nã o- se r, que f oi c ha m a do e de sc r ito c om o o De m ônio, o Ma l, o
P e c a do Or igina l, a Mor te , o Na da .

J ame s Hillman

Um a vida e spir itua l nã o lhe poupa r á o sof r im e nto da som br a .

Sazanne Wagne r

Introdução

Um dos pr opósitos bá sic os da r e ligiã o é , e se m pr e f oi, de f inir a


som br a , c ontr a por o m undo da e sc ur idã o a o m undo da luz, e de sse
m odo pr e c e itua r o c om por ta m e nto m or a l hum a no. Ca da r e ligiã o te m
sua m a ne ir a pa r tic ula r de dividir o todo e m be m e m a l; qua nto m a is
a guda e ssa divisã o, ta nto m a is de f inida a é tic a hum a na . P or isso I sa ía s
br a da , no Ve lho Te sta m e nto: "Ai da que le s que a o m a l c ha m a m be m , e
a o be m , m a l; que m uda m a s tr e va s e m luz e a luz e m tr e va s; que
tor na m doc e o que é a m a rgo, e a m a rgo o que é doc e ! ... P or isso o
f ur or do Se nhor se inf la m a c ontr a o se u povo."

Em ta l unive r so e m pr e to e br a nc o, o c e r to e o e r r a do sã o dois
c a m inhos distintos, um le va ndo a o c é u e o outr o, a o inf e r no. Os que
ve r da de ir a m e nte a c r e dita m e m a lgum a tr a diç ã o dir ia m que se tr a ta
de um a e sc olha do tipo "e /ou". Com o be m c oloc ou o c om positor Bob
Dy la n: "Voc ê te m que se r vir a a lgué m . P ode se r o Dia bo, pode se r o
Se nhor. Ma s voc ê te m que se r vir a a lgué m ."

Alguns de f e nsor e s da r e ligiã o r e c onhe c e m o e lo e ntr e o la do e sc ur o e


o la do c la r o be m c om o a r e la tivida de de c a da um de le s no m undo
hum a no. Ma im ônide s, f ilósof o j ude u do sé c ulo

XI I , disse : "O m a l só é m a l e m r e la ç ã o a a lgum a c oisa ."

A tr a diç ã o j uda ic a ta m bé m pa r e c e r e c onhe c e r o a spe c to e sc ur o e o


a spe c to c la r o de De us — sua na tur e za de ir a e de m ise r ic ór dia —
e nqua nto o De us c r istã o que pr oc la m a : "Eu sou a Luz" e stá pa r a
se m pr e a pa r ta do de se u ir m ã o e sc ur o, o Dia bo, que c onté m a pe na s
som br a .

As f or ç a s gê m e a s do be m e do m a l, da luz e da s tr e va s, a pa r e c e m na
m a ior ia da s tr a diç õe s c om va r ia ç õe s de sse te m a . No ta oísm o c hinê s,
o c onhe c ido sím bolo y in- y ang r e pr e se nta a a lia nç a dos opostos que
f lue m um pa r a o outr o; m a s, a lé m disso, c a da polo c onté m o outr o
num e te r no a br a ç o, inse pa r a ve lm e nte unidos pe la sua pr ópr ia
na tur e za .

Me str e s m ístic os e e soté r ic os, c om o os suf is, a lquim ista s e xa m ã s,


c uj a s tr a diç õe s pe r m a ne c e r a m oc ulta s a té r e c e nte m e nte , suge r e m
que a som br a e o m a l nã o possue m um a r e a lida de e xte r ior obj e tiva ;
pe lo c ontr á r io, sã o e ne rgia s de sloc a da s e inc om pr e e ndida s de ntr o de
nós. Com o disse Jose ph Ca m pbe ll: "Que m é inc a pa z de c om pr e e nde r
um De us, o vê c om o um de m ônio."

Os m ístic os inte r pr e ta m a sa be dor ia sobr e o be m e o m a l nos pla nos


inte r ior e s. Em ve z de pr e c e itos de c om por ta m e nto m or a l, os
e nsina m e ntos sã o vistos c om o f ór m ula s pa r a r e a liza r o tr a ba lho
e spir itua l. Ne sse c onte xto, um a pr á tic a de m e dita ç ã o ou um a
c e r im ônia xa m â nic a visa m a j uda r o indivíduo a ha r m oniza r um a
e ne rgia m a ligna , ta l c om o a r a iva ou a luxúr ia , e de volvê - la a se u
luga r a pr opr ia do no m undo inte r ior.
O poe ta suf i Rum i suge r e e ssa ide ia qua ndo diz: "Se nã o viste o
de m ônio, olha pa r a te u pr ópr io e u." Ma is do que a pr e se nta r o de m ônio
c om o um a ge nte e xte r no inde pe nde nte , os e nsina m e ntos m ístic os
a f ir m a m a r e a lida de da som br a inte r ior. Sua s pr á tic a s intr ospe c tiva s
of e r e c e m um c a m inho pa r a a lc a nç a r m os o pode r de r e dim i- la .

No hinduísm o e no budism o, o m a l e a som br a sã o pe r sonif ic a dos e m


de use s e de m ônios c ontr a os qua is luta m os e a os qua is pe dim os
bê nç ã os. Essa s f or ç a s inte r ior e s, ou rak shasas, sã o vista s c om o pa r te s
da m e nte do m e dita dor, ir a da s divinda de s inte r ior e s que r e pr e se nta m
o c iúm e , a inve j a ou a c obiç a .

Na s tr a diç õe s oc ultista s, que tipic a m e nte se dir ige m a o la do e sc ur o


c om r e spe ito e c a ute la , a som br a tom a - se um a f igur a - c ha ve da qua l a
pe ssoa de pe nde . A m a gia ne gr a , por e xe m plo, inve r te u a pola r ida de
pr e to/br a nc o. Em te r m os j unguia nos, se us pr a tic a nte s sã o possuídos
pe lo a r qué tipo da som br a , Ce r ta m e nte que Anton Le Ve y , c he f e da
I gr e j a Sa ta nista dos Esta dos Unidos, e sua de voç ã o à s tr e va s pode m
se r c om pr e e ndidos sob e ssa luz ( se m tr oc a dilho! ) .

Alguns busc a dor e s e spir itua is vê m se u tr a ba lho de m e ntor e s ou gur us


c om o "tr a ba lho c om a som br a ". O e sc r itor Jose ph Chilton P e a r c e , por
e xe m plo, de sc r e ve se u r e la c iona m e nto c om sua m e str a e m te r m os
psic ológic os:

Se m pr e que e stou pe r to de la [ a gur u] , a lgum a oc ulta pa ne inf a ntil se


solta , a lgum dia br e te e spouc a pa r a f a ze r de m im um tolo dia nte da
únic a pe ssoa a que m m a is que r o im pr e ssiona r, A gur u e xpõe a lgum
outr o f r a gm e nto do m e u se lf— nã o pa r a m e pa r e c e r r idíc ulo, m a s
pa r a tr a ze r luz à m inha e sc ur idã o, à m inha som br a ; a lgo que nã o
c onsigo f a ze r por m im m e sm o e que m e of e ndo qua ndo outr o que nã o
e la f a z por m im .

No e nta nto, pa r a a m a ior ia dos pa r tic ipa nte s da nova e r a , a som br a


te m sido notá ve l pe la sua a usê nc ia . Busc a dor e s sã o le va dos
f r e que nte m e nte a a c r e dita r que , c om o m e str e c e r to ou a pr á tic a
c e r ta , e le s pode m tr a nsc e nde r pa r a níve is m a is e le va dos de
pe r c e pç ã o se m lida r c om se us m a is m e squinhos víc ios ou f e ios a pe gos
e m oc iona is. Com o a f ir m a Ma r c Ba r a sc h, j or na lista do Color a do: "A
e spir itua lida de , do j e ito que f oi r e e m ba la da pa r a a nova e r a , é um
bolo de a m or e luz, que dispe nsa a pe r e gr ina ç ã o, a pe nitê nc ia , a
de r r ota e a que da , a tor tur a e a hum ilda de ."

Re c e nte m e nte , a som br a da e spir itua lida de da nova e r a c om e ç ou a


le va nta r sua f e ia c a be ç a . Muitos gur us e stã o tom ba ndo de se us
pe de sta is e r e ve la ndo sua s f r a que za s ba sta nte hum a na s; m e dita dor e s,
de siludidos c om o ide a l de ilum ina ç ã o e nqua nto pe r f e iç ã o pe ssoa l,
volta r a m - se pa r a a psic ote r a pia a f im de tr a ba lha r o e go ou pa r a um a
e spir itua lida de m a is c e ntr a da na te r r a , m a is num e sf or ç o de r e a viva r
sua hum a nida de do que de tr a nsc e ndê - la .

Muitos m e str e s e spir itua is tr ouxe r a m do Or ie nte se us pr ópr ios


pr oble m a s pe ssoa is nã o r e solvidos — ne c e ssida de de c ontr ola r,
de spr e zo pe la f r a que za , se xua lida de ingê nua , f om e por dinhe ir o — e ,
e m m uitos c a sos, se us gr upos ga nha r a m a f or m a de ssa s f or ç a s. O
psiquia tr a Ja m e s Gor don, a utor de The Golde n Guru: The Strange
J ourne y of Bhagwan Shre e Rajne e sh [ O gur u de our o: A e str a nha
j or na da de Bha gwa n Shr e e Ra j ne e sh] , disse a té suspe ita r de um a
c or r e la ç ã o e ntr e os m e dos e de se j os que f ic a m se m se r
e nc a m inha dos no líde r e spir itua l — sua som br a — e a que le s que sã o
c onsa gr a dos pe lo gr upo c om o a c om posiç ã o do c a r á te r ide a l do se r
hum a no. P or e xe m plo, qua ndo Bha gwa n Shr e e Ra j ne e sh c om e ç ou a
e nsina r, e le c e nsur ou public a m e nte a pom posida de dos sa c e r dote s e a
f om e de pode r dos polític os; e a c a bou c a indo na s m e sm a s a r m a dilha s
que a f ir m a r a de spr e za r.

A m e dida que c om e ç a m os a r e tom a r a s pr oj e ç õe s de sa be dor ia e


he r oísm o que a lc a nç a m os sobr e os outr os e a c onstr uir c om unida de s
ba se a da s na hone stida de e na a c e ita ç ã o dos lim ite s hum a nos, pode m os
de sc obr ir um a vida e spir itua l a utê ntic a . Com e sse s obj e tivo, a P a r te 6
of e r e c e a lgum a s visõe s sur pr e e nde nte s e pr of unda s sobr e o la do
e sc ur o da e spir itua lida de c onte m por â ne a . Ma is do que tr a ta r de
que stõe s histór ic a s ou da s r e ligiõe s dom ina nte s, opta m os por e nf a tiza r
a lguns dos te m a s pr e m e nte s dos dia s de hoj e , num e sf or ç o pa r a da r
um pa sso na nossa j or na da .

No c a pítulo de a be r tur a , o I r m ã o Da vid Ste indl- Ra st, m onge


be ne ditino, c r itic a a tr a diç ã o c r istã por de ixa r de of e r e c e r um a
m a ne ir a de inte gr a r a som br a . Ele c ontr a sta a m e nsa ge m e sse nc ia l de
Je sus ( a qua l, se gundo e le , inc lui a te nsã o e ntr e a luz e a e sc ur idã o)
c om a inte r pr e ta ç ã o dom ina nte no c r istia nism o.

Willia m Ca r l Eic hm a n, pr of e ssor e e studioso dos e nsina m e ntos


e soté r ic os, e xplor a o e nc ontr o c om os de m ônios pe ssoa is dur a nte a
m e dita ç ã o. Ele sublinha dive r sos e stá gios de pr á tic a e of e r e c e sina is
indic a tivos pa r a o pr a tic a nte a o longo do c a m inho.

Num a r tigo public a do na r e vista Common Boundary, Ka ty Butle r,


j or na lista da Ca lif ór nia , de sc r e ve a ba ta lha e m oc iona l e m dive r sa s
c om unida de s budista s dos Esta dos Unidos, r e sulta nte de e xplor a ç ã o
se xua l, disputa s pe lo pode r e m e ntir a s c r ônic a s de m uitos m e str e s
e spir itua is e de se us disc ípulos. Essa e xposiç ã o se m pie guic e a lgum a
j á toc ou a vida de m uitos le itor e s e c e r ta m e nte ir á pe r tur ba r e
de spe r ta r m uitos outr os.

Ainda c om o e xplic a ç ã o de sse s e ve ntos r e c e nte s, o f ilósof o da ioga


Ge org Fe ue r ste in e sc r e ve u um e nsa io pa r a e ste livr o a f im de e xplic a r
o que a c onte c e à som br a do gur u dur a nte o de se nvolvim e nto da
c onsc iê nc ia a o longo do c a m inho or ie nta l de ilum ina ç ã o. Ta lve z nosso
e nte ndim e nto da ilum ina ç ã o c om o de sa pa r e c im e nto da som br a e ste j a
inc or r e to, suge r e Fe ue r ste in; é possíve l que c ontinue a e xistir um a
"som br a - f a nta sm a ", m uito se m e lha nte a o "e go- f a nta sm a ".

W. Br ugh Joy , m é dic o que se tom ou c ur a dor, de sc r e ve a m pla m e nte o


la do e sc ur o do c r e sc im e nto e spir itua l no se u livr o Av alanc he :
He re tic al Re fle c tions on the Dark and the Light [ Ava la nc he : Re f le xõe s
He r é tic a s sobr e a Som br a e a Luz] . No c a pítulo que se le c iona m os, e le
de sc r e ve sua e xpe r iê nc ia pe ssoa l na c om unida de nova e r a de
Findhor n, Esc óc ia , na qua l e le se tom ou o bode e xpia tór io pa r a a r a iva
e o m e do da s pe ssoa s.

Liz Gr e e ne , a na lista j unguia na e a str óloga , de sc r e ve o luga r e o


pr opósito da som br a no m a pa a str a l. E Sa llie Nic hols c onta a histór ia
do Dia bo no ta r ô.

Fina lm e nte , John Ba bbs dá sua visã o m uito pe ssoa l sobr e a c r e sc e nte
obj e ç ã o a o f unda m e nta lism o nova e r a e a o víc io pe ne tr a nte da luz, os
qua is glor if ic a m um a c osm ovisã o que nos de spoj a de pr of undida de .

27. A sombra no cristianismo

IRM ÃO DAVID STEINDL- RAST


Em c ontr a ste c om outr a s tr a diç õe s, os c r istã os nã o tê m se sa ído
pa r tic ula r m e nte be m no c ultivo de um m é todo pr á tic o pa r a inte gr a r a
som br a . Essa é , e m outr a pa r te , a r a zã o de a lguns dos pr oble m a s que
hoj e nos a f lige m . Em se u e ntusia sm o pe la luz divina , a te ologia c r istã
ne m se m pr e f e z j ustiç a à e sc ur idã o divina . I sso te m im plic a ç õe s no
níve l do e sf or ç o m or a l. Se luta s pa r a se r pe r f e ito e pur o, tudo de pe nde
de c he ga r e s à ide ia c e r ta do que signif ic a m pur e za e pe r f e iç ã o
a bsoluta s. Te nde m os a nos de ixa r pr e nde r à ide ia de um a pe r f e iç ã o
e stá tic a que le va a o pe r f e c c ionism o r ígido. A e spe c ula ç ã o a bstr a ta
pode c r ia r um a im a ge m de De us que é a lhe ia a o c or a ç ã o hum a no. No
níve l da doutr ina r e ligiosa , tr a ta - se de um De us tota lm e nte livr e de
toda s a s c oisa s que c onside r a m os e sc ur a s. Entã o te nta m os vive r à
a ltur a dos pa dr õe s de um De us que é pur a m e nte luz e nã o
c onse guim os lida r c om a e sc ur idã o de ntr o de nós. E por nã o
c onse guir m os lida r c om e la , nós a r e pr im im os. P or é m , qua nto m a is a
r e pr im im os, m a is e la vive a sua pr ópr ia vida , pois nã o e stá inte gr a da .
Ante s que o pe r c e ba m os, e sta m os lida ndo c om sé r ios pr oble m a s.

P ode s e sc a pa r de ssa a r m a dilha se volta r e s à e ssê nc ia da tr a diç ã o


c r istã , à ve r da de ir a m e nsa ge m de Je sus. Tu o e nc ontr a s, por e xe m plo,
dize ndo: "P or ta nto, se de pe r f e itos, a ssim c om o vosso pa i c e le ste é
pe r f e ito." Ma s e le tom a c la r o que nã o se tr a ta da pe r f e iç ã o de
r e pr im ir a e sc ur idã o e , sim , da pe r f e iç ã o da tota lida de inte gr a da . É
de sse m odo que Ma te us o c oloc a no Se r m ã o da Monta nha . Je sus f a la
do nosso P a i c e le ste que de ixa o sol br ilha r igua lm e nte sobr e o bom e
o m a u, e f a z a c huva c a ir igua lm e nte sobr e o j usto e o inj usto. Fa la - se
da c huva e do sol, nã o a pe na s do sol. E f a la - se do j usto e do inj usto.
Je sus e nf a tiza o f a to de que De us obvia m e nte pe r m ite a inte r a ç ã o de
som br a e luz. De us a a pr ova . Se a pe r f e iç ã o de De us pe r m ite que a s
te nsõe s tr a ba lhe m pa r a se r e solve r, que m som os nós pa r a insistir
num a pe r f e iç ã o na qua l toda s a s te nsõe s sã o supr im ida s?

Na sua pr ópr ia vida , Je sus c onvive c om a te nsã o e te m de e nf r e nta r a s


tr e va s. E c om o c r istã os ve m os, e m Je sus, c om o De us é . E isso na
ve r da de o que os c r istã os a c r e dita m a r e spe ito de Je sus: ne sse hom e m
que é ple na m e nte hum a no — c om o nós e m toda s a s c oisa s e xc e to na
nossa a lie na ç ã o e na nossa c ulpa —, ne sse se r hum a no pode m os ve r
c om o De us é . E e sse se r hum a no m or r e , br a da ndo: "Me u De us, m e u
De us, por que m e a ba ndona ste ?" Ne sse m om e nto a s tr e va s e nc obr e m
toda a Te r r a , o que é , c la r o, um a de c la r a ç ã o poé tic a e nã o
ne c e ssa r ia m e nte um r e la to histór ic o da quilo que e ntã o a c onte c e u.
Ne sse m om e nto, De us a lc a nç a a m a ior distâ nc ia do pr ópr io se r divino
e e nvolve a s tr e va s da m a is a bsoluta a lie na ç ã o. Se a r e a lida de de
De us pode e nvolve r a que le que br a da "Me u De us, por que m e
a ba ndona ste ?" e que f oi r e a lm e nte a ba ndona do por De us e e stá à
m or te , e ntã o tudo é e nvolvido — a m or te e a vida , be m c om o toda
te nsã o e ntr e e la s. E e sse m om e nto, se gundo o Eva nge lho de Joã o, nã o
é o pr e lúdio à r e ssur r e iç ã o, nã o é a lgo que se r á a nula do pe la
r e ssur r e iç ã o, m a s é a r e ssur r e iç ã o. Je sus disse r a a nte s: "E qua ndo e u
f or le va nta do da te r r a , a tr a ir e i todos os hom e ns a m im ," De a c or do
c om a te ologia do Eva nge lho de Joã o, e sse le va nta r é o se r le va nta do
na c r uz. Sua m or te na c r uz é o m om e nto da sua glór ia . É um a glór ia
a o inve r so. A supr e m a ve rgonha é se r e xe c uta do na c r uz. Ma s a os
olhos da f é , Je sus é "le va nta do". Essa é a r e ssur r e iç ã o. Essa é a
a sc e nsã o. Essa é ta m bé m a e ntr e ga do e spír ito: e le m or r e la nç a ndo
um gr a nde br a do — que r dize r, c om f or ç a , nã o a soluç a r — e e ntr e ga
se u e spír ito. Ne sse m om e nto o m undo todo é pr e e nc hido pe lo e spír ito
divino. O f r a sc o se que br a e a f r a gr â nc ia se e spa lha por toda a c a sa .
É pr of unda m e nte poé tic o. Nã o pode s c om pr e e nde r o Eva nge lho de
Joã o se m a poe sia . Ele é , do c om e ç o a o f im , um poe m a . E c a ím os e m
toda e spé c ie de a r m a dilha por que ge r a lm e nte de ixa m os de lê - lo c om o
um poe m a .

As im plic a ç õe s m or a is disso tudo e stã o pr of unda m e nte e nr a iza da s na


tr a diç ã o c r istã de sde sua s pr im e ir a s a f ir m a ç õe s. Toc a m os a qui o
f undo da tr a diç ã o c r istã . Contudo, e ssa inte gr a ç ã o de luz e e sc ur idã o
nã o te m sido a de qua da m e nte e xplor a da . Esse é o pr oble m a . As
tr a diç õe s ne m se m pr e se de se nvolve m de m odo r e gula r. Tive m os
a pe na s dois m il a nos. Existe m tr a diç õe s m uito m a is a ntiga s. Dê - nos
outr os dois m il a nos e ta lve z a s a lc a nc e m os.

Esta m os, ne ste e xa to m om e nto, num im por ta nte e stá gio de tr a nsiç ã o.
Esta m os c om e ç a ndo a olha r pa r a c e r ta s á r e a s que nã o e nf r e nta m os
há m uito te m po. Essa á r e a da inte gr a ç ã o da som br a é um a de la s.
Ma r tinho Lute r o viu- a e a Re f or m a f oi um pe r íodo no qua l e ssa á r e a
f oi c or a j osa m e nte e nf r e nta da . ( Lá stim a que ta ntos e r r os diplom á tic os,
de a m bos os la dos, te nha m le va do a um c ism a na I gr e j a e nã o a um a
r e nova ç ã o.) Lute r o e nf a tizou um a c onvic ç ã o f unda m e nta l do Novo
Te sta m e nto que a I gr e j a Ca tólic a só a gor a e stá a lc a nç a ndo, a sa be r :
"é pe la gr a ç a que f oste s sa lvos". Essa f oi um a da s pr im e ir a s ve r da de s
da tr a diç ã o c r istã : nã o é por a quilo que f a ze s que ga nha s o a m or de
De us. Nã o é por se r e s tã o br ilha nte e lum inoso, ne m por te r e s te
pur if ic a do de toda a e sc ur idã o que De us te a c e ita . Ele te a c e ita c om o
é s. Nã o por f a ze r e s a lgo, nã o pe la s tua s obr a s, m a s pe la gr a ç a f oste
sa lvo. I sso signif ic a que pe r te nc e s. De us te a c e itou. De us te a br a ç a
c om o é s — som br a e luz, tudo. De us a br a ç a , pe la gr a ç a , E isso j á
a c onte c e u.

Ma s onde se inse r e a ba ta lha m or a l? Todos nós sa be m os que e la


pr e c isa inse r ir- se e m a lgum luga r. Sã o P a ulo, que diz, "É pe la gr a ç a
que f oste s sa lvos" c om ple ta logo de pois: "Exor to- vos, pois... que le ve is
um a vida digna da voc a ç ã o à qua l f oste s c ha m a dos..." Ma s isso é a lgo
tota lm e nte dif e r e nte de te nta r ga nhá - la . Muitos c r istã os luta m pa r a
ga nha r o gr a nde dom . Com o pode s ga nha r um dom ? Estou
sim ple sm e nte dize ndo a quilo que Je sus e nsinou, que P a ulo e nsinou,
que a e ssê nc ia da tr a diç ã o c r istã e nsina .

P a ulo diz: "Me sm o e m c óle r a , nã o pe que is." I sso soa c onte m por â ne o
a os nossos ouvidos. P e c a do é a lie na ç ã o. Nã o de ixe s que a r a iva te
a pa r te dos outr os, m a s ta m pouc o r e pr im a s a tua r a iva . Se nte s r a iva , é
c e r to. Ma s que ... "nã o se ponha o sol sobr e a vossa ir a ". Eis a í
nova m e nte um a de c la r a ç ã o poé tic a . Ela ta lve z signif ique ,
lite r a lm e nte , que de ve s r e c om por te a nte s que a noite c a ia . Esse é um
dos se us m a is c la r os signif ic a dos. Ma s ta m bé m pode signif ic a r que
nã o de ve s nunc a , ne m m e sm o no insta nte e m que se nte s r a iva , de ixa r
o sol se pôr sobr e e ssa som br a . Vê c om que be le za isso f oi e xpr e sso.
Nã o de ixe s o sol se pôr sobr e a tua r a iva . Nã o de ixe s que a tua r a iva
te le ve à a lie na ç ã o.

P osso a pe na s toc a r e sse s a ssuntos, m a s e spe r o que isso pe lo m e nos te


f a ç a se ntir o sa bor e pe r c e be r que , qua ndo te a pr of unda s na tr a diç ã o
c r istã , por c onta pr ópr ia ou nã o, e nc ontr a r á s toda s e ssa s c oisa s. Ela s
lá e stã o. Ma s e ntã o pe rgunta s: "P or que j a m a is ouvim os f a la r disso
tudo? P or que isso nã o f oi de se nvolvido?" Be m , isso a inda nã o f oi
suf ic ie nte m e nte de se nvolvido. Ma s a í e stá . P ode s da r a tua
c ontr ibuiç ã o. Qua ndo f ize r e s c onta to c om a tua tr a diç ã o, e la de ve r á
se r dif e r e nte da quilo que e nc ontr a ste ; c a so c ontr á r io, te r á s
f r a c a ssa do. É tua a r e sponsa bilida de de tor na r a tua tr a diç ã o r e ligiosa
— qua lque r que e la possa se r, c r istã ou nã o — m a is ve r da de ir a m e nte
r e ligiosa no m om e nto e m que f ize r e s c onta to c om e la . Esse é o nosso
gr a nde de sa f io.

28. O encontro com o lado escuro na prática espiritual

WILLIAM CARL EICHM AN


Ao e m pr e e nde r um a pr á tic a e spir itua l, voc ê se de f r onta r á c om se u
la do e sc ur o. Esse é um a xiom a . A busc a e spir itua l é pe r igosa ,
e xa ta m e nte c om o dize m os livr os. Busc a r a ve r da de signif ic a
e xpe r im e nta r a dor e a e sc ur idã o, be m c om o o lum inoso la do br a nc o
da luz. Os pr a tic a nte s de ve m pr e pa r a r- se pa r a lida r c om o la do e sc ur o
da vida .

Esse la do e sc ur o pode a ssum ir m uita s f or m a s. As histór ia s r e ligiosa s o


pe r sonif ic a m e m im a ge ns de de m ônios e de r a ivosos de use s e sc ur os.
Buda , Cr isto, Ma om é e pr a tic a m e nte toda s a s outr a s f igur a s m e nor e s
r e la ta m te r e nf r e nta do a s te nta ç õe s do "Ma ligno", o pr ínc ipe do
m undo — Ma r a , Sa tã , Í blis. A histór ia da te nta ç ã o que oc or r e a nte s da
ilum ina ç ã o é m a is do que a pe na s um outr o m ito do tipo "He r ói de r r ota
o Monstr o" — e la é um a de sc r iç ã o de um pe r igo e spe c íf ic o do
c a m inho e spir itua l. Os m ístic os c r istã os e suf is e xpe r im e nta r a m - no
m a is pe ssoa lm e nte , c om o o orgulho obstina do e os e quívoc os do e go e
a "noite e sc ur a da a lm a ". P a r a o pr a tic a nte m ode r no, a na tur e za
e sc ur a é a inda m a is m ultif a c e ta da ; nosso c om ple xo m undo possui
m uita s f a c e s m á s, e lida r c om o la do e sc ur o nunc a f oi tã o dif íc il
c om o é a gor a .

Hoj e , o la do e sc ur o e stá por toda pa r te . Esta m os c om ple ta m e nte


m e rgulha dos ne le . Ele se m a nif e sta e m todos os notic iá r ios, shows de
te le visã o e j or na is. Ningué m , c r e sc e ndo num a soc ie da de c om o a
nossa , e sc a pa de se r c ondic iona do por e ssa violê nc ia . Ca da um de nós,
de sde o m a is pe r f e ita m e nte c iviliza do a té o c r im inoso e nc a r c e r a do,
hospe da um a c ha ga inte r ior, inf e c c iona da e ne ur ótic a , um a som br a
pa r tic ula r de r a iva , te r r or, luxúr ia e dor. Essa som br a , e sse "la do
e sc ur o", é um a c ópia e m m inia tur a da e sc ur idã o m a ior da soc ie da de ,
que se m a nif e sta e m gue r r a s, opr e ssõe s e f om e . Esta m os c e r c a dos,
por de ntr o e por f or a , pe lo m a l e por sof r im e ntos de todo tipo.

Qua ndo pr a tic a m os m e dita ç ã o e c onte m pla ç ã o, o la do e sc ur o de ntr o


de nós é tr a zido a o lim ia r da c onsc iê nc ia pe lo e f e ito pur if ic a dor e
e ne rgiza dor de sse s e xe r c íc ios. A c a pa c ida de de lida r c om e sse s
im pulsos e sc ur os e m e rge nte s é um a ha bilida de bá sic a que pode se r
dom ina da por qua lque r pr a tic a nte . Exige - se inte gr ida de m or a l, é tic a e
e spir itua l; m a s um a c ur a do c onhe c im e nto pr á tic o ta m bé m é da m a ior
im por tâ nc ia . Se m e studo, nossa c onc e pç ã o do la do e sc ur o te nde a se r
um a r e líquia pr im itiva dos inse tos r a ste j a nte s e do bic ho- pa pã o da
inf â nc ia . Se te nta m os c onf r onta r o nosso la do e sc ur o c om e ssa
pr ogr a m a ç ã o, se r e m os r a pida m e nte pa r a lisa dos. Em ve z disso,
pr e c isa m os r e unir inf or m a ç õe s c onf iá ve is, le r livr os, obse r va r e
a na lisa r a nossa psic ologia pe ssoa l e , c om o te m po, de se nvolve r um a
im a ge m m a is c om ple ta da na tur e za do la do e sc ur o. Um a a titude
e duc a da e m a dur a e m r e la ç ã o a o m a l é um a ne c e ssida de pa r a o
pr a tic a nte .

Com o e studo, c e r ta s c a r a c te r ístic a s do c ha m a do "la do e sc ur o"


tor na m - se e vide nte s. Essa e sc ur idã o nã o é r e a lm e nte um "la do", ou
um a som br a , ou um a m á sc a r a — é um a te ia e m a r a nha da de f or ç a s
c om ple xa s, de pr ogr a m a s e e f e itos que r e pr im im os da c onsc iê nc ia de
m odo que r a r a m e nte ve m os a sua ve r da de ir a na tur e za .

O la do e sc ur o pe ssoa l ve m à tona na m e dita ç ã o pa r a a tor m e nta r e


te nta r o pr a tic a nte . Ele é o "Dia bo" pe ssoa l, o inf e r no pa r tic ula r, que
pr e c isa se r c onf r onta do e tr a nsf or m a do qua ndo bloque ia o c a m inho do
e studa nte e soté r ic o. O la do e sc ur o biológic o, o c osm ológic o e o
c ultur a l sã o a ba se da e xpe r iê nc ia pe ssoa l do m a l; m a s no f im o
pr a tic a nte que luta pa r a r e a liza r o Tr a ba lho pr e c isa , e le m e sm o, f a ze r
f a c e à sua própria e sc ur idã o.

Qua ndo e studa dos, todos e sse s la dos e sc ur os pa r e c e m ope r a r c om o


te ndê nc ia s, pr ogr a m a s ou c om ple xos ne ur ótic os im pe ssoa is. Nã o
e xiste ne nhum a e vidê nc ia ( a m e nos que le ve m os e m c onta os m itos
ou os te xtos r e ligiosos) da e xistê nc ia de um "Dia bo", Se e xiste o m a l
ine r e nte , e le é um a spe c to da pr e da ç ã o na tur a l, de doe nç a s e
a c ide nte s, que a tua m pa r a e vita r a supe r popula ç ã o e f or ta le c e r a
e spé c ie . A doutr ina budista de que o be m e o m a l sã o a spe c tos
ilusór ios e te m por á r ios de um a m e nte e um unive r so pur os e e m
c onsta nte m uta ç ã o, ta lve z se j a a im a ge m do m a l m a is pr óxim a à
ve r da de . Ao e studa r o la do e sc ur o, ve m os que o "m a l" nã o é um
a ge nte todo- pode r oso e c onsc ie nte m e nte vinga tivo de te r m ina do a nos
e xte r m ina r — a o c ontr á r io, o m a l é de se quilíbr io, ignor â nc ia e
a c ide nte . Ar m a do c om e sse c onhe c im e nto, o pr a tic a nte pode libe r ta r-
se do j ugo da supe r stiç ã o. I sso é vita l — c om o f onte pa r a o
ve r da de ir o c onhe c im e nto do m undo, na da é m e nos digno de c onf ia nç a
do que o m ístic o supe r stic ioso.

Hoj e , o la do e sc ur o biológic o a pr e se nta be m m e nos pr oble m a s do que


e m sé c ulos pa ssa dos. A c ultur a m ode r na of e r e c e um a im e nsa
se gur a nç a e os m ir a c ulosos pr odutos da nossa te c nologia e da nossa
m e dic ina a j uda r a m - nos a supe r a r m uitos te r r or e s. I sso nã o que r dize r
que e sta m os r e a lm e nte a sa lvo do la do e sc ur o biológic o. Qua lque r um
pode se r a tr ope la do por um c a r r o ou de se nvolve r um c â nc e r, O
e nve lhe c im e nto e a m or te a inda sã o pa r te da vida , Alé m disso, os
te r r or e s biológic os e c osm ológic os pr e c isa m se r a c e itos c om o o pa no
de f undo da vida . Me dita ç õe s sobr e a m or te , c a dá ve r e s e na sc im e nto
pode m se r úte is pa r a lida r m os c om o la do e sc ur o biológic o, pois
e lim ina m a f a nta sia m ór bida , de spe r ta m - nos pa r a a nossa pr ópr ia
m or ta lida de e nos r e c or da m que a m uta ç ã o — a m or te be m c om o a
vida — é a c onsta nte unive r sa l.

Mor te , e nve lhe c im e nto e a c ide nte pr e c isa m se r a c e itos, m a s de ve m os


r e pe lir o inc e ssa nte c ondic iona m e nto do la do e sc ur o c ultur a l. O
pr im e ir o e stá gio de qua lque r pr á tic a é Ya m a e Niy am a, os de ve r e s e
pr oibiç õe s que m a ntê m o pr a tic a nte livr e de ( m a is) c onta m ina ç ã o
c ultur a l. Os iogue s or ie nta is c lá ssic os, por e xe m plo, sã o m ostr a dos
c om o pa ssa ndo a m a ior pa r te de se u te m po isola dos da s im pur e za s
e spir itua is de sua soc ie da de . Re tir o, j e j uns e r itua is c r ia va m e m tor no
do iogue um m ic r oc lim a , que e r a c onside r a do ne c e ssá r io pa r a o
suc e sso na m e dita ç ã o. I sso tor nou- se dif íc il pa r a o pr a tic a nte
m ode r no. Moste ir os e e r e m ité r ios nã o sã o f á c e is de e nc ontr a r. Nova s
e str a té gia s sã o ne c e ssá r ia s pa r a e sta be le c e r e m a nte r o ne c e ssá r io
"r e f úgio de e quilíbr io m e nta l" num m undo de a lta te nsã o.

Um sina l de e nsina m e nto e soté r ic o a utê ntic o é que e le e stá vivo e se


a da pta a situa ç õe s e m m uta ç ã o. Na f a lta de m oste ir os, de ve m os
a dota r o m é todo de "e sta r ne ste m undo m a s nã o se r de ste m undo".
Re sistir a o zum bido hipnótic o do c e ná r io soc ia l de ve tor na r- se o nosso
n o v o Zhik r, um "le m br e te " de que de ve m os va r r e r de nossa m e nte o
e xc e sso de pr ogr a m a ç ã o c ultur a l. Um a nova pr e c e é ne c e ssá r ia :
"Se nhor, te nde pie da de de nós, pobr e s pe c a dor e s, e nã o nos de ixe is se r
c ontr ola dos pe la im a ge m da te la ." Novos tipos de te m plos pe ssoa is,
r itua is de sa ntif ic a ç ã o e pr á tic a s de pur if ic a ç ã o e stã o e voluindo.
Apa r e lhos de biofe e dbac k , ta nque s de f lutua ç ã o e r e gim e s de c ur a
a lte r na tiva a c e le r a m o r e la xa m e nto e a libe r a ç ã o da s te nsõe s e
suge stõe s da vida c otidia na . Existe m m uita s possibilida de s pa r a o
pr a tic a nte e soté r ic o m ode r no, e o te ste do te m po ir á da r f or m a a
novos m é todos de lida r c om o la do e sc ur o c ultur a l.

No se gundo e stá gio da pr á tic a , no qua l a m e dita ç ã o e e xe r c íc ios sã o


r e a liza dos, surge toda um a nova ba ta lha c ontr a a e sc ur idã o. O "m a l"
pe ssoa l r e pr im ido é libe r a do pe la m e dita ç ã o e de ve se r e xa m ina do e
inte gr a do pe lo pr a tic a nte c om o pa r te ne c e ssá r ia do pr oc e sso de
m e dita ç ã o.

À m e dida que o m a te r ia l e sc ur o r e pr im ido ve m à tona , é pr ová ve l que


o pr a tic a nte te nha visõe s a ssusta dor a s, se ntim e ntos de te r r or, de r a iva ,
r e a ç õe s inc ontr olá ve is do e go e inc ontá ve is outr a s m a nif e sta ç õe s
m e nor e s m a s, a inda a ssim , pe r tur ba dor a s e e m ba r a ç osa s. Essa s
r e a ç õe s de ve m se r e spe r a da s e a de qua da m e nte tr a ba lha da s: ne m
inf la da s a lé m de sua pr opor ç ã o ne m m inim iza da s e e vita da s. Em ve z
disso, de ve - se r e c onhe c e r que e ssa s e r upç õe s do la do e sc ur o pode m
se r de gr a nde a j uda pa r a o a utode se nvolvim e nto. Em últim a a ná lise , a
tr a nsf or m a ç ã o de ssa s visõe s a ssusta dor a s e m e ne rgia psíquic a
utilizá ve l é a únic a m a ne ir a de tr a ba lhá - la s e a s nua nç a s de sse
pr oc e sso de "tr a nsf or m a r c hum bo e m our o" e xigir ã o toda a ha bilida de
do pr a tic a nte .

A pr im e ir a r e a ç ã o a o ve r o m a l pe ssoa l é se ntir im e nsa c ulpa e


ve rgonha e ide ntif ic a r- se c om a som br a , se ntindo- se c om o se
a c a ba sse de se r e xposto c om o a e nc a r na ç ã o do m a l. Essa é um a ide ia
f a lsa , tã o inútil qua nto a s c r e nç a s m e die va is sobr e de m ônios que
c a usa va m doe nç a s. A e sc ur idã o pe ssoa l é um tipo de doe nç a ou da no
c a usa do ba sic a m e nte por pr ogr a m a ç ã o a c ide nta lm e nte c r ue l dur a nte
a inf â nc ia e c om o ta l de ve r ia se r tr a ta do. Todo m undo te m um a
na tur e za e sc ur a ; é um a c ondiç ã o da vida no nosso m undo, nã o um
"pe c a do". O obj e tivo do pr a tic a nte de ve se r c ur a r a doe nç a e tr a ze r a
á r e a f e r ida de volta a ple na ope r a ç ã o. O e studa nte e soté r ic o m ode r no
de ve tr a ta r de sua na tur e za e sc ur a ; r e c r im ina r a si m e sm o e r e volve r-
se na c ulpa a pe na s nã o f a ze m be m a lgum .

Ao c ur a r a na tur e za e sc ur a , im e nsa s qua ntida de s de e ne rgia e


c a pa c ida de pe ssoa is pode m se r r e tom a da s, pois gr a nde pa r te dos
nossos pode r e s e nqua nto se r e s hum a nos pe r m a ne c e he dionda m e nte
pa r a lisa da pe lo la do e sc ur o pe ssoa l. Essa s á r e a s pa r a lisa da s
r e pr e se nta m , na ve r da de , va stos r e se r va tór ios de e ne rgia psíquic a
c onta m ina da e e sta gna da . A m e dida que pr ogr e dim os no c a m inho,
c a da c onf r onta ç ã o c om o "m a l" é um a opor tunida de de
f or ta le c im e nto. I sso é de se j á ve l, pois os de m ônios pe ssoa is
r e pr im idos ta m bé m se f or ta le c e m a té ir r om pe r m os pa r a o De us que
e stá no Ce ntr o.

O pr oc e sso r e a l de c ur a r e tr a nsf or m a r a s e r upç õe s do la do e sc ur o


pode se r ba sta nte c om plic a do. Com o e sse s c om ple xos e sc ur os f or a m
e sc r itos na psique dur a nte a nossa inf â nc ia , a rgum e nta r c om o "la do
e sc ur o" nã o te m e f e ito a lgum . P or outr o la do, r itua is, r e gim e s de
pur if ic a ç ã o, c ur a s, obj e tos de e ne rgia pr ote tor a e e xe r c íc ios e spe c ia is
de m e dita ç ã o e de e m ba sa m e nto pode m se r be né f ic os qua ndo usa dos
na hor a c e r ta e no luga r c e r to. A e ne rgia da na tur e za e sc ur a pr e c isa
se r f r e que nte m e nte libe r a da e e xpr e ssa da e isso de ve se r f e ito
c onsc ie nte m e nte , usa ndo a r te ou r itua l, pa r a e vita r que um f luxo
e xc e ssivo de e ne rgia psíquic a a f e te a f a m ília e os a m igos.

Nos e stá gios f ina is da pr á tic a , o la do e sc ur o biológic o, o c ultur a l e o


pe ssoa l inte gr a r a m - se à psique e a li f unc iona m sua ve m e nte ,
c um pr indo se us pr opósitos de la do e sc ur o. Ne sse e stá gio, o la do
e sc ur o c osm ológic o ve m à tona c om o um a ne gr a m onta nha pa r a
ba r r a r o c a m inho. A m or te r e tor na , a f e a lda de da soc ie da de r e tor na e
o de m ônio pe ssoa l r e tom a , todos da nç a ndo c om o m a r ione te s nos
c or dõe s do niilism o, da f a lta de pr opósito, do sof r im e nto e do
de se spe r o, na na tur e za im pe ssoa l do c osm os. Dia nte da s visõe s de
Bilhõe s de Anos, na da que nós, m ístic os, f a ç a m os im por ta . Nã o e xiste
ne nhum a r e sposta que possa m os c om pr e e nde r, ne nhum pr opósito na
vida que possa m os e nte nde r. Coloc a do f a c e a f a c e c om e ssa
im potê nc ia , o pr a tic a nte nã o te m outr a opç ã o se nã o r e nde r se —
"De sistir do Fa nta sm a ". Ne sse ponto, e sta m os c a da um por si m e sm o
— e nã o é m uito c onf or ta nte sa be r que os livr os dize m que va m os
c ontinua r vivos a pe sa r de tudo.

A luz é inf inita ; a s tr e va s sã o inf inita s. Ta lve z j a m a is ha j a um f im


pa r a a luta c ontr a a e sc ur idã o. I sso nã o de pr im e o ve r da de ir o
pr a tic a nte . Luta r c ontr a a e sc ur idã o é o m e sm o que busc a r a luz.
Ta nto a e sc ur idã o c om o a luz sã o ilusõe s; m a s o que e stá subj a c e nte a
e la s é o Se r, a Bê nç ã o e a Consc iê nc ia . E isso j a m a is de ve r á se r
e sque c ido.

29. O encontro da sombra na América budista

KATY B UTLER
Num a ta r de do ve r ã o de 1982, um a m igo m e u e sta va num a r ua e m
Boulde r, Color a do — sob o lum inoso c é u a zul da s Monta nha s Roc hosa s
—, se gur a ndo um a ga r r a f a de sa que . A be bida , um ge sto de gr a tidã o,
e r a um pr e se nte pa r a Ose l Te ndzín, r e ge nte do Va j r a , o "Ra dia nte
P or ta dor dos Ensina m e ntos", o se gundo e m c om a ndo na c om unida de
Va j r a dha tu, o m a ior r a m o do budism o tibe ta no nos Esta dos Unidos.

Mom e ntos m a is ta r de , m e u a m igo e ntr a va num e sc r itór io e le ga nte ,


c om um m ínim o de m óve is, na s pr oxim ida de s. Te ndzin — a nte s
Thom a s Ric h, de P a ssa ic , Nova Je r se y , c om olhos oc ide nta is, bigode e
ve stindo um be m - ta lha do te r no de e xe c utivo — le va ntou- se da
poltr ona e sor r iu. Me u a m igo a pe r tou- lhe a m ã o, gr a to pe la r a r a
a udiê nc ia pa r tic ula r. Ele a ba ndona r a r e c e nte m e nte um a c om unida de
r e ligiosa e m oc iona lm e nte r e pr e ssor a e m Los Ange le s e um r e tir o de
m e dita ç ã o c onduzido pe lo Re ge nte le vou a o se u c onhe c im e nto um
c a m inho e spir itua l c om m a is a le gr ia e m e nos induç ã o de c ulpa . À
m e dida que a ta r de pa ssa va , os dois f a la r a m de budism o, a m or e
te ologia . Gr a dua lm e nte , o níve l do sa que ia ba ixa ndo de ntr o da
ga r r a f a . Entã o m e u a m igo, um ta nto e m br ia ga do, c r iou c or a ge m e
le va ntou o a ssunto que m a is te m ia : hom osse xua lism o. Houve um
m om e nto de silê nc io. "Le va nte - se ", disse Te ndzin. "Be ij e - m e ."

Me u a m igo obe de c e u. Qua ndo o Re ge nte suge r iu se xo or a l, m e u


a m igo, lige ir a m e nte c onste r na do, r e c usou. "Ac ho que voc ê c onse gue ",
disse o r e ge nte c om a nim a ç ã o. Os dois pa ssa r a m pa r a um sof á , onde
o ta bu de m e u a m igo c ontr a o hom osse xua lism o f oi que br a do.

Qua ndo tudo te r m inou, Te ndzin m e nc ionou de pa ssa ge m que tinha


e nc ontr os se xua is se m e lha nte s vá r ia s ve ze s a o dia . Of e r e c e u um a
c a r ona a o m e u a m igo, a br iu a por ta do e sc r itór io e m a r c hou por e ntr e
gr upos de a ssiste nte s a té um a utom óve l m a c io que r onr ona va a o
c r e púsc ulo, c om um m otor ista e spe r a ndo a o vola nte .

Ma is ta r de m e u a m igo se ntiu- se c onf uso e e m ba r a ç a do c om r e la ç ã o


à que la ta r de , m a s nã o a m a rgo.

— Ele m e induziu a um a e xpe r iê nc ia hom osse xua l, m a s m e sm o a ssim


ta m bé m f oi ge ne r oso. P e di pa r a vê - lo e e le a r r um ou te m po pa r a m im
— c ontou- m e . — Se nti um m isto de e m ba r a ç o e honr a . Nã o a c ho que
Te ndzin te nha a busa do de m im e nã o que r o que m inha e xpe r iê nc ia
se xua l se j a j ulga da por ningué m .

De pois que m e u a m igo m e c ontou e ssa histór ia , m uita s ve ze s


r e pa sse ia na m inha m e nte , c om o um vide ote ipe , busc a ndo pista s
oc ulta s pa r a os e ve ntos poste r ior e s. Note i a f a sc ina ç ã o de m e u a m igo
c om a s pom pa s do pode r e spir itua l e se u m a l- e sta r c om os
j ulga m e ntos m or a is. Obse r ve i a tr a nsf or m a ç ã o a pa r e nte m e nte
r otine ir a de Te ndzin: de um a pla te ia r e ligiosa pa r a um a ta r de de
á lc ool e r e la ç õe s se xua is, e a m a ne ir a c a sua l c om que a dm itiu o víc io
do se xo f r e que nte . Eu e r a f or ç a da a a dm itir que m e u a m igo nã o
sof r e r á a buso, m a s vi ne sse inc ide nte a s se m e nte s do de sa str e que
e sta va por vir.

Cr ise de lide r anç a


Em a br il de 1987, Ose l Te ndzin, Re ge nte de Va j r a , a ssum iu a
lide r a nç a da c om unida de Va j r a dha tu c om a m or te do f a m oso e
m undia lm e nte r e spe ita do m e str e budista tibe ta no Chogy a n Tr ungpa
Rinpoc he .

Me nos de dois a nos de pois, e m de ze m br o de 1988, a m a is pe r igosa


c r ise que j á se a ba te u sobr e um a c om unida de budista a m e r ic a na
ir r om pe u qua ndo os a dm inistr a dor e s Va j r a dha tu inf or m a r a m a se us
m e m br os que o Re ge nte e sta va c onta m ina do c om o vír us da AI DS j á
há c e r c a de tr ê s a nos. Me m br os da j unta dir e tor a Va j r a dha tu
a dm itir a m que , e xc e to por a lguns m e se s de c e liba to, e le nã o tinha
pr ote gido se us pa r c e ir os se xua is ne m tinha lhe s c onta do a ve r da de .
Um dos pa r c e ir os se xua is do Re ge nte , f ilho de a ntigos disc ípulos,
e sta va c onta m ina do, be m c om o um a m oç a que m a is ta r de tive r a
r e la ç õe s c om e sse r a pa z.

Dois m e m br os da j unta dir e tor a Va j r a dha tu sa bia m da doe nç a há


m a is de dois a nos e opta r a m por na da f a ze r. Tr ungpa Rinpoc he
ta m bé m soube r a de la a nte s de sua m or te . Os m e m br os da j unta só
ha via m inf or m a do a sangha ( c om unida de ) a pós te nta r, por tr ê s m e se s,
pe r sua dir o Re ge nte a f a zê - lo e le m e sm o.

— P e nsa ndo que tinha a lguns m e ios e xtr a or diná r ios de pr ote ç ã o,
c ontinue i a vive r c om o se a lgum a c oisa f osse c uida r disso por m im .
— Diz- se que f or a m a s pa la vr a s pr onunc ia da s por Te ndzin dia nte da
a tur dida a sse m ble ia da c om unida de , e m Be r ke le y , e m m e a dos de
de ze m br o.

Essa c r ise de lide r a nç a nã o f oi ne m de longe o únic o de sa str e a a tingir


u m a sangha budista a m e r ic a na . Nos m e us tr e ze a nos de pr á tic a de
m e dita ç ã o budista , vi ve ne r á ve is roshis j a pone se s de quim onos ne gr os
e se us he r de ir os a m e r ic a nos do dharma ( inc luindo o m e u pr ópr io e x-
m e str e ) se r e m de nunc ia dos por m a nte r c a sos c la nde stinos. Outr os
m e str e s budista s — tibe ta nos, j a pone se s e a m e r ic a nos — de svia r a m
dinhe ir o, tor na r a m - se a lc oóla tr a s ou se e ntr e ga r a m a c om por ta m e ntos
e xc ê ntr ic os.

Com o budista a m e r ic a na , a c he i os e sc â nda los de plor á ve is e


pe r tur ba dor e s. Eu nã o via o budism o c om o um c ulto e sim c om o um a
r e ligiã o de 2.500 a nos de vota da a da r f im a o sof r im e nto, nã o a
pr ovoc á - lo. Eu sa bia que os m e str e s e nvolvidos nã o e r a m c ha r la tã e s,
m a s m e ntor e s e spir itua is sinc e r os e pr of unda m e nte tr e ina dos,
de dic a dos à tr a nsm issã o do dharma budista a o Oc ide nte .

Com o j or na lista , note i que a c obe r tur a dos e sc â nda los pe la m ídia
pa r e c ia e nc or a j a r a pr of unda suspe ita do a m e r ic a no le igo e m r e la ç ã o
a todos os im pulsos r e ligiosos. Os m e str e s f or a m m ostr a dos c om o
c ínic os e xplor a dor e s; se us se guidor e s, c om o tolos c r é dulos.

Ma s, te ndo obse r va do e pa r tic ipa do da s c om unida de s budista s por


m a is de um a dé c a da , e u se i que e sse s inf or túnios sã o m a is do que
um a da nç a tr á gic a e ntr e a e xplor a ç ã o e a inge nuida de . Sua s r a íze s
nã o e stã o na vile za individua l, m a s nos e quívoc os c ultur a is e na s
f e r ida s e m oc iona is oc ulta s. E todos os m e m br os da c om unida de ,
m e sm o que inc onsc ie nte m e nte , tê m um pa pe l ne le s.

Qua ndo o budism o f oi tr a zido pa r a o Oc ide nte , um a a ntiga e pr of unda


tr a diç ã o or ie nta l e nc ontr ou a soc ie da de a m e r ic a na , m a is j ove m , m a is
f r a gm e nta da . O novo budism o a m e r ic a no, e ntusia stic a m e nte ,
c onstr uiu sa la s de m e dita ç ã o j a pone sa s f or r a da s c om ta ta m e s de doc e
a r om a e sa ntuá r ios de e stilo tibe ta no c om a lta r e s c obe r tos por tige la s
c e r im onia is de á gua e a r r oz. Te nta ndo c onstr uir nova s c om unida de s,
m e sc la r a m - se e str utur a s que c om bina va m os e le m e ntos da hie r a r quia
e de voç ã o or ie nta is a o individua lism o oc ide nta l. Essa m istur a de
va lor e s c ultur a is a m pla m e nte dive rge nte s f oi c om plic a da pe lo f a to de
que m uitos disc ípulos e spe r a va m e nc ontr a r um sa ntuá r io pa r a a s
f e r ida s de um a inf â nc ia dolor osa e a solidã o de sua pr ópr ia c ultur a .
Ma s qua ndo os e sc â nda los ir r om pe r a m , m uitos se e nc ontr a r a m , c om o
Dor othy a o f ina l do Má gic o de Oz, "de volta a o se u pr ópr io quinta l",
te ndo inc onsc ie nte m e nte r e pe tido pa dr õe s que e spe r a va m te r
a ba ndona do.

Agor a , à m e dida que o la do da som br a f oi surgindo à luz, c e r tos


e le m e ntos c om uns de ntr o da s c om unida de s tor na r a m - se e vide nte s:

•P a dr õe s de ne ga ç ã o, de ve rgonha , de gua r da r se gr e do e de usur pa ç ã o


que f a ze m le m br a r a s f a m ília s a lc oóla tr a s e inc e stuosa s;
•De sa te nç ã o a os pr e c e itos budista s bá sic os c ontr a o uso pr e j udic ia l do
á lc ool e do se xo;
•Um c a sa m e nto doe ntio da hie r a r quia a siá tic a c om a lic e nc iosida de
a m e r ic a na , que distor c e o r e la c iona m e nto e ntr e m e str e e disc ípulo; e
•Um a te ndê nc ia , tã o logo os e sc â nda los sã o r e ve la dos, a tr a nsf or m a r
e m bode s e xpia tór ios os m e str e s c a ídos e m de sgr a ç a ou a ne ga r
c e ga m e nte que a lgum a c oisa te nha m uda do.

Uma linhage m de ne gaç ão


Com o m e m br o do Ce ntr o Ze n de Sa n Fr a nc isc o nos a nos 80, f ique i
c onf usa c om o m e u pr ópr io f r a c a sso — e o f r a c a sso de m e us a m igos
— e m que stiona r o c om por ta m e nto do nosso m e str e , Ric ha r d Ba ke r-
r oshi, qua ndo o m e sm o pa r e c ia de sa f ia r o se nso c om um . De sde e ntã o,
a m igos pr ove nie nte s de la r e s c om pr oble m a s de a lc oolism o disse r a m -
m e que nossa c om unida de r e pr oduzia pa dr õe s de ne ga ç ã o e
pe r m issivida de se m e lha nte s a os de sua s f a m ília s. Qua ndo nosso
m e str e nos de ixa va e spe r a ndo, qua ndo de ixa va de m e dita r e e r a
e xtr a va ga nte c om o dinhe ir o, nós ignor á va m os o f a to ou o
e xplic á va m os c om o pa r te do e nsino. Um a e quipe be m orga niza da de
a ssiste nte s a r r um a va a s c oisa s por tr á s de le , e xa ta m e nte c om o a
e sposa do a lc oóla tr a te nta e nc obr ir o c he que se m f undos do m a r ido ou
pa ga r a f ia nç a pa r a tir á - lo da c a de ia . Essa "pe r m issivida de ", c om o a
c ha m a m os c onse lhe ir os do a lc oolism o, pe r m itia que o
c om por ta m e nto pr e j udic ia l c ontinua sse a c r e sc e r. I sola va o nosso
m e str e da s c onse quê nc ia s de sua s a ç õe s e pr iva va - o da c ha nc e de
a pr e nde r c om se us e r r os. O pr oc e sso ta m bé m nos pr e j udic a va :
ge r a lm e nte ne gá va m os o que e sta va dia nte dos nossos olhos,
se ntía m o- nos im pote nte s e pe r día m os c onta to c om a nossa
e xpe r iê nc ia inte r ior.

P a dr õe s se m e lha nte s f or a m r e c onhe c idos no Ce ntr o Ze n de Los


Ange le s e m 1983, qua ndo se u m e str e , o r e spe ita do Ha kuy u Ta íza n
Ma e zum i- r oshi, inic iou um pr ogr a m a de tr a ta m e nto e a dm itiu se u
a lc oolism o.

— Ér a m os todos c oa lc oóla tr a s — de c la r ou um dos disc ípulos de


Ma e zum i a Sa ndy Bouc he r, histor ia dor a do budism o. — De um m odo
sutil, e nc or a j á va m os se u a lc oolism o por que , qua ndo e sta va bê ba do,
sua hone stida de se a guç a va .

Um pr oc e sso se m e lha nte ta lve z te nha oc or r ido e m Va j r a dha tu nos


a nos 70, qua ndo os disc ípulos te nta r a m c he ga r a um a c or do c om se u
m e str e , Chogy a m Tr ungpa Rinpoc he , um hom e m de ide ia s pr ópr ia s,
um e xila do tibe ta no e duc a do e m Oxf or d, br ilha nte , c om pa ssivo e
a lc oóla tr a .

Tr ungpa Rinpoc he , a dé c im a pr im e ir a e nc a r na ç ã o de Tr ungpa Tulku,


a inda a dole sc e nte e r a o líde r de dive r sos gr a nde s m oste ir os tibe ta nos
qua ndo a inva sã o c hine sa de 1959 se pa r ou- o de sua c ultur a na tiva .
Ansioso por e nc ontr a r o Oc ide nte e m se us pr ópr ios te r m os, tr oc ou a
túnic a por te r nos e xe c utivos, a pa ixonou- se por Sha ke spe a r e e Moza r t e
c a sou- se c om um a ingle sa . Às ve ze s f a zia pa le str a s c om um c opo de
sa que na m ã o.

Tr ungpa Rinpoc he e nsina va que todos os a spe c tos da e xistê nc ia


hum a na — ne ur ose , de se j o, á lc ool, o e sc ur o e o c la r o — de via m se r
e nvolvidos e tr a nsm uta dos. Cha m a va e ssa f e r oz a bor da ge m de "pouc a
sa be dor ia ", r e f e r indo- se a um a pe que na por é m ge nuína tr a diç ã o de
ve ne r a ndos e e xc ê ntr ic os iogue s tibe ta nos — a m a ior ia dos qua is
tr a ba lha va intim a m e nte c om um ou dois disc ípulos.
Os m e str e s budista s — m e sm o a que le s pouc o à vonta de c om se u
c om por ta m e nto — a dm ir a va m Tr ungpa Rinpoc he pe la sua br ilha nte
tr a duç ã o do budism o a os te r m os oc ide nta is. Ca ute loso na im por ta ç ã o
de f or m a s c ultur a is tibe ta na s, e le pr im e ir o e nsinou a se us disc ípulos
a m e r ic a nos um a m e dita ç ã o sim ple s, na posiç ã o se nta da , ba se a da no
ze n. Entã o, gr a dua lm e nte , intr oduziu a s e la bor a da s disc iplina s
tâ ntr ic a s que distingue m o budism o Va j r a dha tu tibe ta no de qua se toda s
a s outr a s e sc ola s budista s. Os disc ípulos c om ple ta va m pr á tic a s
f unda m e nta is, inc luindo 100.000 pr ostr a ç õe s, e f r e que nta va m um
se m iná r io de tr ê s m e se s na s m onta nha s. Disc ípulos a va nç a dos e r a m
c e r im onia lm e nte inic ia dos a pr á tic a s se c r e ta s tibe ta na s de
visua liza ç ã o m e dita tiva . Me str e e disc ípulo pa ssa va m a te r um
r e la c iona m e nto que , por tr a diç ã o, é m a is de voc iona l que qua lque r
outr a c oisa na s outr a s e sc ola s budista s.

Tr ungpa a tr a iu m ilha r e s de pe ssoa s e duc a da s que logo c r ia r a m a


m a ior, m a is c r ia tiva e m e nos c onve nc iona l de toda s a s c om unida de s
budista s nã o- a siá tic a s da Am é r ic a . Entr e se us disc ípulos, e le c onta va
c om os poe ta s Alle n Ginsbe rg e Anne Wa ldm a n, o dr a m a turgo Je a n-
Cla ude va n I ta lie , o e ditor da Shambhala Publk ations Sa m Be r c holz, e
Ric k Fie lds, a utor de um a r e spe ita da histór ia do budism o a m e r ic a no.
Se dia dos pr inc ipa lm e nte e m Boulde r, Color a do, os disc ípulos
c uida va m dos ne góc ios; f unda r a m o I nstituto Na r opa , um a
c onc e itua da unive r sida de budista ; e dita va m um bole tim de
psic ote r a pia c onte m pla tiva e public a va m um j or na l budista bim e nsa l
de a m pla c ir c ula ç ã o, o Vajradhatu Sun.

Ainda a ssim , e ntr e m e a do à disc iplina e à c r ia tivida de ha via um toque


de he donism o. Os disc ípulos de Va j r a dha tu tinha m a r e puta ç ã o de se r
os gr upos m a is se lva ge ns do budism o a m e r ic a no. Em bor a a m a ior ia
da s e sc ola s tâ ntr ic a s tibe ta na s c la r a m e nte de se nc or a j a sse m a
"pa ssa ge m a o a to" da s pa ixõe s e im pulsos, Tr ungpa Rinpoc he nã o o
6
f a zia . Ce r ta ve z, e m br ia ga do e dir igindo e m a lta ve loc ida de , ba te u
c om se u c a r r o e spor te na f a c ha da de um a loj a e f ic ou pa r c ia lm e nte
pa r a lisa do. Dor m ia a be r ta m e nte c om disc ípulos. Em Boulde r, f a zia
pa le str a s br ilha nte s m a s à s ve ze s tã o bê ba do que pr e c isa va se r
r e tir a do do pa lc o ou se gur a do na c a de ir a .

P a r a o disc ípulo Jule s Le vinson, e studioso do Tibe te e c a ndida to a um


doutor a do na Unive r sida de da Virgínia , a s histór ia s "e r a m m uito
pe r tur ba dor a s — que e le be bia m uito, que dor m ia c om todo m undo".
Ao m e sm o te m po, Le vinson e r a gr a to a Tr ungpa . "Eu o a c ha va ge ntil,
de lic a do, pr ovoc a dor e nutr idor — a pe ssoa m a is c om pa ssiva que j á
c onhe c i. Eu só nã o c onse guia j unta r a s c oisa s", diz e le .
Alguns disc ípulos, r e pr isa ndo a dinâ m ic a de sua s f a m ília s a lc oóla tr a s,
r e a gia m a Tr ungpa Rinpoc he ne ga ndo se u víc io da be bida e a tivida de
se xua l e a inda o a j uda ndo. "Eu se r via a Rinpoc he gr a nde s c opos de
gim logo de m a nhã c e do, se voc ê que r f a la r de pe r m issivida de ", disse
um a m ulhe r que vir a se u pr ópr io pa i m or r e r de a lc oolism o.

Outr os r e solvia m sua dissoc ia ç ã o c ognitiva a c r e dita ndo que o m e str e


ha via ultr a pa ssa do a s lim ita ç õe s do c or po hum a no. "Tr ungpa Rinpoc he
disse que , por te r a nature za Vajra ( um a psic of isiologia tr a nsf or m a da
e e sta biliza da pe la ioga ) , e r a im une a os e f e itos f isiológic os usua is do
á lc ool", disse um disc ípulo. "Ac e itá va m os a histór ia de que e r a um a
m a ne ir a de e le c oloc a r ' te r r a ' e m se u siste m a pa r a que pude sse ...
r e la c iona r- se c onosc o. Nunc a oc or r e u a ne nhum dos m e us c onhe c idos
que e le f osse um a lc oóla tr a , j á que e ssa e r a um a doe nç a que só podia
a c onte c e r a o m or ta l c om um . E m uitos de nós é r a m os ignor a nte s —
nossa ide ia do a lc oóla tr a e r a o va ga bundo c a ído na sa r j e ta ."

Um a a tm osf e r a de ne ga ç ã o pe r m e a va a s c om unida de s nos a nos 70 e


iníc io dos 80, e outr os disc ípulos Va j r a dha tu tor na r a m - se a lc oóla tr a s.
"Enc ontr e i um pe que no e a gr a dá ve l ninho onde podia c ontinua r
be be ndo", disse um a ntigo budista Va j r a dha tu, que e sta va e ntr e o
pe que no gr upo de m e m br os Va j r a dha tu que se j untou a os Alc oóla tr a s
Anônim os ( A.A.) no iníc io dos a nos 80. Sua r e c upe r a ç ã o pa r e c ia
a m e a ç a r os outr os. A pr im e ir a m ulhe r a c ur a r- se f oi solic ita da a
de ixa r a dir e tor ia de um a orga niza ç ã o a ssiste nc ia l f unda da por
m e m br os Va j r a dha tu, "Se nti um pr of undo de spr e zo por a lgué m que
tinha de ixa do de be be r e tr a te i- a c om o um c a so de doe nç a m e nta l",
diz a m ulhe r que a e xpulsou — e que logo de pois j untou- se , e la
pr ópr ia , a os A.A.

Qua ndo Tr ungpa Rinpoc he e sta va e m se u le ito de m or te e m 1986, a os


47 a nos de ida de , só um c ír c ulo inte r ior c onhe c ia os sintom a s de sua
doe nç a f ina l. P ouc os c onse guia m a dm itir que se u a m a do e br ilha nte
m e str e e r a um pa c ie nte te r m ina l de a lc oolism o, m e sm o ve ndo- o e m
se u qua r to sof r e ndo de inc ontinê nc ia , c om o e stôm a go dila ta do e a
pe le de sc olor ida , c om a luc ina ç õe s, ve ia s inc ha da s, ga str ite e va r ize s
e sof á gic a s ( um a inc ha ç ã o da s ve ia s do e sôf a go c a usa da qua se que
e xc lusiva m e nte pe la c ir r ose he pá tic a ) .

"Rinpoc he nã o e r a c e r ta m e nte um j oã o- ningué m m a s, c om o qua lque r


outr o a lc oóla tr a que j á vi, be bia se m pa r a r ", diz Vic tor ia Fitc h,
m e m br o de se u sta ff dom é stic o c om a nos de e xpe r iê nc ia c om o
a te nde nte de e nf e r m a ge m . "A ne ga ç ã o e r a visc e r a l", c ontinua e la .
"Obse r ve i que a e xplic a ç ã o pa r a a de m ê nc ia a lc oólic a e r a que e le
e sta va no r e ino da s daik inis ( gua r diã s dos e nsina m e ntos, visua liza da s
e m f or m a f e m inina ) . Qua ndo e le pe dia á lc ool, ningué m tinha
c or a ge m de r e c usa r e m bor a te nta sse m pôr á gua na sua c e r ve j a ou
se r vir- lhe qua ntida de s m e nor e s. Na que la é poc a f ina l de sua vida ... e le
j á nã o c onse guia c a m inha r se m a j uda . Ao m e sm o te m po ha via ne le
um a f or ç a e um a se r e nida de f e nom e na is que nã o se i c om o e xplic a r."

Alguns disc ípulos a gor a se nte m que o Re ge nte Ose l Te ndzin sof r ia de
um a ne ga ç ã o se m e lha nte da s lim ita ç õe s hum a na s, be m c om o de
ignor â nc ia do c om por ta m e nto de víc io.

"Muitos disc ípulos que se se ntir a m ultr a j a dos c om o c om por ta m e nto


do Re ge nte pa r e c e m pe nsa r que e le surgiu do na da ", disse um
disc ípulo. "Ele s nã o e stã o usa ndo se u tr e ina m e nto budista sobr e c a usa
e e f e ito. Ac ho que o Re ge nte c opiou, de um a m a ne ir a m a is e xtr e m a e
f a ta l, um pa dr ã o de ne ga ç ã o e ignor â nc ia e xe m plif ic a do pe la pr ópr ia
a titude de Tr ungpa Rinpoc he e m r e la ç ã o a o á lc ool."

Se gr e dos de f amília
Qua ndo a c r ise ir r om pe u, um a m inor ia pe que na m a s signif ic a tiva de
disc ípulos Va j r a dha tu c om e ç a r a a c uida r da s f e r ida s de ixa da s pe lo
a lc oolism o e pe lo inc e sto de sua s f a m ília s. Em m e a dos dos a nos 80,
c e r c a de 250 m e m br os Va j r a dha tu do pa ís todo — pr inc ipa lm e nte
e sposa s de a lc oóla tr a s — unir a m - se a o Al- Anon, um a orga niza ç ã o
m olda da nos A.A, pa r a f a m ília s de a lc oóla tr a s, e m a is de um a vinte na
de m e m br os da sangha unir a m - se a os A.A. Re f r ige r a nte s pa ssa r a m a
se r se r vidos na s c e r im ônia s Va j r a dha tu e a a tm osf e r a de a lc oolism o
e xc e ssivo dim inuiu.

Ma s os m e m br os do m ovim e nto dos 12 P a ssos e r a m um a m inor ia e


c e r tos pa dr õe s obstina dos pe r sistia m . P or e xe m plo, o pr ópr io Re ge nte
te nta va e vita r qua lque r disc ussã o públic a a c e r c a da c r ise , c r ia ndo
um a a tm osf e r a que f a zia le m br a r a postur a de f e nsiva de um a f a m ília
a lc oóla tr a .

Qua ndo o e ditor Ric k Fie lds pr e pa r ou um pe que no a r tigo pa r a o


Vajradhatu Sun de sc r e ve ndo a c r ise nua e c r ua , f oi pr oibido de
public á - lo. "Te m ha vido disc ussõe s, ta nto e m r e uniõe s da c om unida de
c om o e ntr e pa r tic ula r e s, sobr e a s que stõe s subj a c e nte s que
pe r m itir a m o surgim e nto da a tua l situa ç ã o", dizia o a r tigo pr oibido.
"Essa s que stõe s inc lue m o a buso do pode r e a tr a iç ã o da c onf ia nç a , o
r e la c iona m e nto a de qua do e ntr e m e str e s c om a utor ida de e spir itua l e
se us disc ípulos, pa r tic ula r m e nte no Oc ide nte , e o r e la c iona m e nto
e ntr e a de voç ã o e a inte ligê nc ia c r ític a no c a m inho e spir itua l."

Em luga r do a r tigo, Fie lds public ou um de se nho se m pa la vr a s do


logotipo Va j r a dha tu — o nó da e te r nida de — e stic a do a té o ponto de
r uptur a , sobr e um c or a ç ã o pa r tido. Fie lds m a is um a ve z te ntou
public a r se u a r tigo e f oi de m itido pe lo Re ge nte . Qua ndo a j unta
dir e tor a se r e c usou a lhe da r a poio, e le pe diu de m issã o f or m a lm e nte ,
dize ndo que o e nsina m e nto budista no Oc ide nte "e sta r ia m e lhor
se r vido a longo pr a zo pe la a be r tur a e hone stida de , por m a is dolor osa s
que e sta s pude sse m se r ".

A supr e ssã o de disc ussõe s públic a s r e pe tia ta nto a tr a diç ã o a siá tic a de
sa lva r o pr e stígio qua nto a dinâ m ic a da s f a m ília s a lc oóla tr a s. "Existe
um a se nsa ç ã o de se gr e dos de f a m ília , c oisa s da s qua is voc ê nã o f a la ,
e spe c ia lm e nte c om e str a nhos", diz Le vinson. "Logo de pois que a s
notíc ia s f or a m divulga da s, e sc r e vi pa r a o Re ge nte e disse : Se os
rumore s são v e rdade iros, e ntão [e ssas aç õe s} não pare c e m e star de
ac ordo c om o dharma, mas isso não faz de v oc ê um de mônio. A c oisa
mais importante é o que fare mos agora. Eu re alme nte gostaria que
v oc ê v ie sse c onv e rsar abe rtame nte c onosc o, e m pe que nos grupos, pe lo
me nos e m Boulde r e e m Halifax , c onforme sua saúde pe rmitir. Se v oc ê
pude r faze r isso, nós... talv e z possamos re stabe le c e r alguma c onfianç a.
Minha m a ior lá stim a é que e le nã o f e z isso."

Um c hoque int e r c ult ur al

P or m a is de um a no, o im pa sse m a nte ve Va j r a dha tu no ponto de


r uptur a . Em bor a indir e ta m e nte , Te ndzin r e c onhe c e u de públic o te r
viola do os votos budista s; m a s r e c usou- se a a ssum ir a
r e sponsa bilida de de te r c onta m ina do outr a s pe ssoa s. P e r m a ne c e u e m
r e tir o na Ca lif ór nia c om um pe que no gr upo de disc ípulos de vota dos,
de sa f ia ndo a e xigê nc ia da j unta dir e tor a pa r a que de ixa sse de e nsina r.
Em Boulde r, a lguns disc ípulos c ontr á r ios a o Re ge nte c e nsur a va m - no
de m odo vir ule nto e ir r e a lista por todo o de sa str e , e nqua nto disc ípulos
pr óRe ge nte pr a tic a va m a quilo que pode r ia se r c ha m a do "ne ga ç ã o
de voc iona l ou tr a nsc e nde nta l". Ele e xigia m a pr e se r va ç ã o da
linha ge m de e nsina m e nto budista m e sm o à s c usta s de e vita r e nf r e nta r
o que ha via a c onte c ido. Muitos outr os c a ír a m num e sta do que um
disc ípulo a va nç a do de f iniu c om o "o c e ntr o do c or a ç ã o pa r tido". Em
um a c a r ta a m pla m e nte distr ibuída e m Boulde r, um disc ípulo
e sc r e ve u: "Se a Junta e o Re ge nte nã o c onse guir e m r e solve r sua s
dif e r e nç a s c om c om pa ixã o e inte ligê nc ia , a sangha se e sf a c e la r á ".

A c om unida de c onsultou os la m a s tibe ta nos pa r a r e solve r o im pa sse ,


m a s sua s r e sposta s r e f le tir a m a ê nf a se a siá tic a e m m a nte r o pr e stígio
inta c to, a hie r a r quia e e vita r um c onf lito a be r to. Em bor a nã o e ste j a
c la r o a té que ponto e le c om pr e e nde u a situa ç ã o, um la m a ve ne r á ve l,
o f a le c ido Ka lu Rinpoc he , pr oibiu se us disc ípulos a m e r ic a nos de
c om e nta r o de sa str e de Va j r a dha tu. Outr o, o Ve ne r á ve l Dilgo
Khy e ntse Rinpoc he , pr im e ir o pe diu a o r e ge nte pa r a pe r m a ne c e r e m
r e tir o, m a s e xigiu que os disc ípulos e m Va j r a dha tu r e spe ita sse m sua
a utor ida de .

Essa f oi a gota d' á gua pa r a m uitos disc ípulos. "I sso é um pe sa de lo


vivo pa r a nós", disse Robin Kor nm a n, a ntigo m e str e de m e dita ç ã o
Va j r a dha tu e e studa nte da Unive r sida de de P r inc e ton. "Ma nda r a m - nos
se guir um a pe ssoa que te m os a c e r te za de que e stá pr of unda m e nte
c onf usa ."

Disc ípulos budista s e m outr os c e ntr os ha via m e xpe r im e nta do c hoque s


inte r c ul- tur a is se m e lha nte s. No f ina l dos a nos 70, o disc ípulo ze n
Andr e w Coope r f ic ou pe r tur ba do a o pe r c e be r que se u roshi j a ponê s
"de se nc or a j a va qua lque r e xpr e ssã o de de sa c or do pe ssoa l, dúvida ou
pr oble m a s de ntr o da c om unida de , m e sm o qua ndo e sse s pr oble m a s
e r a m ine ga ve lm e nte r e a is e pote nc ia lm e nte da nosos".

Coope r, a gor a e studa nte de psic ologia , pe nsa va que se u m e str e e r a


hipóc r ita a té que um a m igo que vive r a no Ja pã o lhe disse que os
j a pone se s nã o tê m a m ínim a noç ã o de hipoc r isia , pe lo m e nos nã o no
se ntido que a e nte nde m os no Oc ide nte . "P a r a os j a pone se s, r e pr im ir
os se ntim e ntos pe ssoa is pa r a m a nte r a a pa r ê nc ia de ha r m onia no
gr upo é visto c om o a lgo vir tuoso e nobr e ", e sc r e ve u Coope r num
e nsa io iné dito. "Essa a titude f a z pa r te da e str utur a da s r e la ç õe s soc ia is
j a pone sa s — te m se u luga r ne ssa e str utur a . Ma s qua ndo é im por ta da
sob a ba nde ir a da ilum ina ç ã o e la nç a da sobr e um a c om unida de
a m e r ic a na , o r e sulta do é um biza r r o f a na tism o."

De f e r ê nc ia asiát ic a e lic e nc iosidade oc ide nt al

Os r e sulta dos sã o pa r tic ula r m e nte pr oble m á tic os qua ndo a s


c om unida de s im por ta m tr a diç õe s de voc iona is a siá tic a s se m im por ta r
os c or r e sponde nte s c ontr ole s soc ia is a siá tic os. Chogy a m Tr ungpa , por
e xe m plo, ve io de um a soc ie da de onde o se nso do "se lf " e os c ontr ole s
soc ia is sobr e e sse se lf e r a m m uito dif e r e nte s da que le s do Oc ide nte .
Cr ia do de sde pe que nino no Tibe te Or ie nta l c om o um la m a e nc a r na do,
e le c he f ia va um im e nso m oste ir o da instituiç ã o a os 19 a nos de ida de .
Er a a lvo de gr a nde de voç ã o e de te ntor de gr a nde pode r, m a s sua
libe r da de e r a r igida m e nte lim ita da pe los votos m oná stic os de
c a stida de e a bstinê nc ia , e por sua s obr iga ç õe s pa r a c om se u m oste ir o
e a c om unida de c ir c unda nte .

Os pa dr õe s da c om unida de ba se a va m - se num intr inc a do siste m a de


obr iga ç õe s r e c ípr oc a s. Er a m c la r os e f r e que nte m e nte im plíc itos. O
c om por ta m e nto de qua se todos — se r vo, la m a ou pr opr ie tá r io de
te r r a s — e r a íntim o m a s sutilm e nte c ontr ola do por um de se j o f or te e
f r e que nte m e nte im plíc ito de m a nte r o pr e stígio.
Ma s e sse s c ontr ole s soc ia is nã o e xistia m na soc ie da de à qua l Tr ungpa
Rinpoc he se j untou nos libe r tá r ios a nos 70. O c om por ta m e nto de se us
disc ípulos a m e r ic a nos e r a f r ouxa m e nte gove r na do por r e la ç õe s
c ontr a tua is; por disc ussõe s f r a nc a s e a be r ta s, e m a is por e sc olha
individua l que pe lo c om pa r tilha m e nto de um a é tic a soc ia l e
obr iga ç õe s m útua s. Se us a nc e str a is ha via m vivido no m e sm o va le por
ge r a ç õe s; logo que c he gou a os Esta dos Unidos, e le voa va de um a
c ida de pa r a outr a c om o um a e str e la do ro c k . Enqua nto os Esta dos
Unidos r e m ovia m todos os lim ite s soc ia is a o c om por la m e nto de
Tr ungpa Rinpoc he , se us disc ípulos tor na va m - se se us se r vos
dom é stic os, dir igia m se u a utom óve l e lhe pr e sta va m a de f e r ê nc ia
a pr opr ia da a um f a m a tibe ta no ou a um se nhor f e uda l.

A m e sm a de f e r ê nc ia e r a pr e sta da a se u he r de ir o do d h a rm a , Ose l
Te ndzin. ' ' Sua s r e f e iç õe s da va m oc a siã o a um f r e ne si de toa lha s
e ngom a da s, pr a ta r ia polida , a r r a nj os de m e sa m e tic ulosos e
c or e ogr a f ia s e xa ta s dos se r vidor e s", disse a pr odutor a de TV De bor a h
Me nde lsohn, que a j udou a hospe da r Te ndzin dur a nte se us dois r e tir os
de m e dita ç ã o e m Los Ange le s, m a s que de pois a ba ndonou a
c om unida de . "Qua ndo e le via j a va , a c om pa nha va - o um m a nua l pa r a
or ie nta r se us hospe de ir os nos de ta lhe s dos c uida dos pa r a c om e le ,
inc luindo instr uç õe s sobr e c om o e e m que or de m of e r e c e r- lhe a
toa lha , a r oupa de ba ixo e o r obe qua ndo e le sa ía do c huve ir o."

Essa pa r ódia da de f e r ê nc ia a siá tic a , c om bina da c om a lic e nc iosida de


a m e r ic a na , e m últim a a ná lise pr ovou se r de sa str osa , e nã o a pe na s e m
Va j r a dha tu. Ta m bé m nos c e ntr os ze n, os disc ípulos a dota va m ge stos
a siá tic os de subse r viê nc ia e nqua nto se u m e str e à s ve ze s a gia
"livr e m e nte ": be be ndo, ga sta ndo dinhe ir o, f a ze ndo a va nç os se xua is a
m ulhe r e s ou hom e ns, tudo c om um m ínim o de r e sulta do ne ga tivo. A
de f e r ê nc ia f r e que nte m e nte ia m uito a lé m da que la que te r ia sido
c onc e dida a um m e str e no Ja pã o ou Tibe te .

"A pr e ssã o da c om unida de é m uito im por ta nte pa r a c ontr ola r o


c om por ta m e nto na s c om unida de s tibe ta na s", diz a Dr a . Ba r ba r a Aziz,
soc ioa ntr opóloga m undia lm e nte c onhe c ida da Unive r sida de da Cida de
de Nova Yor k, que pa ssou vinte a nos f a ze ndo pe squisa de c a m po e ntr e
os tibe ta nos no Ne pa l e no Tibe te . "Na soc ie da de tibe ta na , e le s
e spe r a m m a is da pe ssoa que c oloc a m num pe de sta l... Se um
e sc â nda lo de sse s tive sse a c onte c ido no Tibe te , toda a c om unida de
te r ia se se ntido poluída . Ose l Te ndzin ta lve z f osse e xpulso do va le .
De pe nde ndo do gr a u de ultr a j e a c om unida de , sua f a m ília f a r ia
of e r e nda s substa nc ia is a o m oste ir o pa r a r itos de pur if ic a ç ã o e pr e c e s
pa r a inc utir c om pa ixã o na soc ie da de ."

Alé m disso, Aziz suge r e que os tibe ta nos pode r ia m "de m onstr a r todo o
tipo de ir r e ve r ê nc ia a um rinpoc he m a s nã o ir ia m ne c e ssa r ia m e nte
f a ze r o que e le diz. Ve j o m uito m a is disc e r nim e nto e ntr e m e us a m igos
tibe ta nos e ne pa le se s", c onc luiu e la , "do que e ntr e os oc ide nta is".

A ne c e ssidade de disc e r nime nt o

Ne sse c onf uso c onte xto inte r c ultur a l, é m uito f á c il que os la ç os


m e str e - disc ípulo se j a m e quivoc a dos. No iníc io do m e u tr e ina m e nto
ze n, e u m e pr ostr a va f or m a lm e nte dia nte de m e u m e str e qua ndo o
visita va pa r a a s pr á tic a s. Eu te nta va vê - lo c om o um "ilum ina do" e
tinha e spe r a nç a s de pode r, c om o pa ssa r do te m po, inte r na liza r a s
qua lida de s de pe r c e pç ã o, a utoc ontr ole e e ne rgia que a dm ir a va ne le .

I de a liza r o m e str e é pa r te de um a longa e sa udá ve l tr a diç ã o do Tibe te ,


do Ja pã o e da Í ndia , de a c or do c om Ala n Rola nd, psic a na lista e a utor
de I n Se arc h of Se lf in índia and J apan [ Em Busc a de Si Me sm o na
Í ndia e no Ja pã o] . "A ne c e ssida de de te r um a f igur a pa r a r e spe ita r,
ide a liza r e im ita r é um a pa r te c r uc ia l do a utode se nvolvim e nto de
qua lque r pe ssoa . Ma s a s c ultur a s or ie nta is sã o m uito m a is a r tic ula da s
a r e spe ito de ssa ne c e ssida de e a a póia m c ultur a lm e nte ", e xplic ou e le .

Rola nd a c r e dita que os disc ípulos a siá tic os e nc a r a m o r e la c iona m e nto


m e str e - disc ípulo c om m a is sutile za que os a m e r ic a nos — e ste s, e m
ge r a l se e ntr e ga m c om r a pide z e por c om ple to, ou e ntã o
sim ple sm e nte nã o se e ntr e ga m . O disc ípulo a siá tic o pode m ostr a r
de f e r ê nc ia , m a s r e c usa a ve ne r a ç ã o a té te r e studa do c om o m e str e
dur a nte m uitos a nos. Ele pa r e c e te r um "se lf pr iva do" de sc onhe c ido
pa r a m uitos a m e r ic a nos, um s e l f c a pa z de r e se r va r o j ulga m e nto
m e sm o qua ndo se gue e sc r upulosa m e nte a s nor m a s. Qua ndo o m e str e
e r r a , o disc ípulo a siá tic o pode c ontinua r a lhe m ostr a r de f e r ê nc ia
m a s, sile nc iosa m e nte , r e tir a sua a f e iç ã o e se u r e spe ito, Nos Estados
Unidos, frequentemente ocorre o inverso. Alguns discípulos Vajradhatu poderiam
perdoar Osel Tendzin enquanto ser humano, mas não tratá-lo como um líder.
Poucos americanos conseguem mostrar deferência a alguém que não veneram
sem se sentirem hipócritas. Colocados face a face com essa dissociação
cognitiva, eles, ou abandonam a deferência e partem, ou negam seus sentimentos
interiores.

Qua ndo e le s ne ga m sua s pe r c e pç õe s, a r e a lida de tor na - se distor c ida e


um a da nç a m útua de ilusã o se inic ia . "P a r te da c ulpa c a be a o
disc ípulo por que e xc e sso de obe diê nc ia , de voç ã o e a c e ita ç ã o c e ga
e str a ga m um m e str e ", e xplic ou Sua Sa ntida de o Da la i La m a num a
c onf e r ê nc ia e m Ne wpor t Be a c h, Ca lif ór nia , no a no pa ssa do. "P a r te
ta m bé m c a be a o m e str e e spir itua l por que lhe f a lta a inte gr ida de pa r a
se r im une a e sse tipo de vulne r a bilida de ... Re c om e ndo nunc a a dota r a
a titude pa r a c om um m e str e e spir itua l de ve r toda s a s sua s a ç õe s
c om o divina s ou nobr e s. P ode pa r e c e r um pouc o a tr e vido, m a s se
a lgué m te m um m e str e que nã o é qua lif ic a do, que se e ntr e ga a um
c om por ta m e nto ina de qua do ou e r r a do, e ntã o é a pr opr ia do que o
disc ípulo c r itique e sse c om por ta m e nto."

O pont o de mut aç ão
No últim o outono, pa r e c ia que a sangha Va j r a dha tu ir ia se dividir e m
dua s. De pois do longo r e tir o a c onse lha do por Dilgo Khy e ntse
Rinpoc he . Te ndzin a tr e vida m e nte r e a f ir m ou sua a utor ida de . Os que se
r e c usa r a m a a c e ita r sua lide r a nç a e spir itua l f or a m de m itidos de
c om itê s- c ha ve , im pe didos de e nsina r m e dita ç ã o e pr oibidos de tom a r
pa r te e m pr á tic a s a va nç a da s c om o r e sta nte da sua c om unida de . O
c onf lito tom ou- se tã o inte nso que a s dua s f a c ç õe s oposta s e nvia r a m
de le ga ç õe s a o Ne pa l e à Í ndia pa r a im plor a r a os la m a s supe r ior e s que
lhe s de sse m a poio.

Com o r e sposta , Khy e ntse Rinpoc he a c onse lhou Te ndzin a e ntr a r e m


"r e tir o r igor oso" por um a no. Te ndzin obe de c e u, c onse r va ndo um a
a utor ida de nom ina l m a s e f e tiva m e nte a bdic a ndo de se u e nsina m e nto
e pa pe l de lide r a nç a . La m a s tibe ta nos f or a m c onvida dos a e nsina r e m
Boulde r, e Va j r a dha tu voltou a liga r- se a um a tr a diç ã o r e ligiosa
tibe ta na m a is a m pla .

"Este é um ve r da de ir o ponto de m uta ç ã o", disse um a livia do Da vid


Rom e , m e m br o da j unta dir e tor a . "Este é um c a m inho pa r a nos
unir m os e se ntir a unida de f unda m e nta l, e pa r a e nf r e nta r a s que stõe s
que a c r ise tr ouxe à supe r f íc ie . Este nã o é o f im ; na ve r da de , é o
c om e ç o", disse e le .

De pois da que da
Enqua nto Va j r a dha tu luta pa r a le va nta r- se , outr a s s a n g h a s budista s
que pa ssa r a m por c r ise s se m e lha nte s ta m bé m e stã o busc a ndo
m a ne ir a s de c ur a r sua s c om unida de s. Num dos m a is pr om issor e s
e f e itos c ola te r a is, os m e str e s a m e r ic a nos da m e dita ç ã o inte r ior
( v ipassaná) e la bor a r a m r e c e nte m e nte um c ódigo de pa dr õe s é tic os
pa r a os m e str e s e c r ia r a m um a j unta da c om unida de pa r a inspe c ioná -
los.

Em outr a s c om unida de s budista s, no e nta nto, onde os m e str e s sof r e m


sé r ia s a c usa ç õe s de m á c onduta , onda s suc e ssiva s de disc ípulos
disside nte s pa r tir a m . No Ce ntr o Ze n de Sa n Fr a nc isc o, m e u pr ópr io
c e ntr o de pr á tic a , nosso m e str e r e nunc iou sob pr e ssã o. P e dim os a j uda
a c onsultor e s psic ológic os e a pr e nde m os a f a la r m a is hone sta m e nte
uns c om os outr os, e a dota m os f or m a s m a is de m oc r á tic a s pa r a a s
tom a da s de de c isã o. Me sm o a ssim , m uitos disc ípulos pa r tir a m . A sa la
de m e dita ç ã o e sva ziou- se . Am iza de s se r om pe r a m e a lgum a s pe ssoa s
pe r de r a m a e ne rgia pa r a a pr á tic a e spir itua l. Nosso a ntigo m e str e
m udou- se pa r a Sa nta Fé e c ontinua e nsina ndo; m e u m a r ido e e u nos
m uda m os pa r a o subúr bio.

Minha túnic a ne gr a de m e dita ç ã o c ontinua pe ndur a da no f undo do


m e u a r m á r io. Nunc a pe r di a f é nos e nsina m e ntos budista s, m a s
dur a nte a nos nã o soube c om o r e liga r- m e a e le s. Em ve z disso, f iz o
que um a m igo c ha m a va "tr a ba lho de c or r e ç ã o", e xa m ina ndo m inha
histór ia pe ssoa l e a r a iva e o pur ita nism o que e xpr e sse i qua ndo o
e sc â nda lo ir r om pe u. Eu e sta va e ntr e a que le s que e spe r a va m
e nc ontr a r no budism o um sa ntuá r io pa r a m inha s f e r ida s pe ssoa is. Ma s
m inha c ultur a e histór ia f a m ilia r se guir a m - m e a té a m inha
c om unida de budista , c om o um a la ta a m a r r a da a o r a bo de um
c a c hor r o.

Agor a e stou e studa ndo c om outr o m e str e budista e c onsta nte m e nte
le m br o a m im m e sm a de pe r m itir que e le — e e u pr ópr ia — te nha m os
im pe r f e iç õe s. Um a ve z por m ê s, m a is ou m e nos, r e úno- m e c om
outr a s pe ssoa s na c a sa de um a m igo pa r a r e c ita r os pr e c e itos budista s
pa r a os le igos.

Ainda a ssim , a lgo do pa ssa do pe r m a ne c e inc onc luso. Me u a ntigo


m e str e sim ple sm e nte f oi e m bor a qua ndo nã o pôde m a is supor ta r a
r a iva de se us disc ípulos. Le m br o que um m onge c om e ntou na é poc a :
"Os disc ípulos e spe r a m que e le se tr a nsf or m e se m c or r e r r isc os. Nã o
se c onse gue a pr e nde r um novo c a m inho qua ndo se e stá sob a ta que ."

A a m a rgur a de sse c ism a nã o- r e solvido a inda dói, c om o um e stilha ç o


r a sga ndo a pa lm a da m ã o. Um a a m iga m inha , Yvonne Ra nd — m e str a
budista or de na da que a inda pa r tic ipa da c om unida de — disse m e
r e c e nte m e nte : "Ainda e sta m os tr a va ndo a ba ta lha da pa r tida de
Te ndzin. Ac ho que e sse a ssunto nã o va i se e nc e r r a r e nqua nto nã o
e nc ontr a r m os um m e io de e sta r j untos na m e sm a sa la . Enqua nto
houve r m e do de tê - lo por pe r to, a s pe ssoa s nã o c onse guir ã o e nte nde r
o se u pr ópr io pa pe l ne sta situa ç ã o."

Fa lta m - nos r itua is que pe r m itir ia m à s c om unida de s r e c onhe c e r e ssa s


c r ise s e c ur á - la s. Le m br o de te r lido sobr e a Ce r im ônia da Lua Che ia ,
r e a liza da pe los m onge s nos pr im e ir os sé c ulos de pois da m or te de
Buda . Na vé spe r a de c a da lua c he ia e nova na e sta ç ã o da s c huva s, os
m onge s se r e unia m na f lor e sta pa r a um r itua l c ha m a do "c onf issã o
dia nte da c om unida de ". Ali r e c ita va m public a m e nte os pr e c e itos,
a dm itia m se us de f e itos, sua s viola ç õe s da s r e gr a s e qua isque r da nos
que tive sse m c a usa do à s sua s c om unida de s.
Se r e tom á sse m os um r itua l tr a nquilo c om o e sse , ta lve z a lgum br a vo
m e str e c a ído e m de sgr a ç a pude sse a dm itir c om se gur a nç a sua m á
c onduta e a s f e r ida s que o le va r a m a e r r a r. Ta lve z a sangha pude sse
c onf e ssa r se u pr of undo de sa ponta m e nto e se ntim e ntos de tr a iç ã o e
sua pa r tic ipa ç ã o no e r r o. Ta lve z toda a sangha pude sse de sc ulpa r- se
public a m e nte c om os hom e ns e m ulhe r e s que tive sse m sof r ido a busos,
se xua is ou de outr o tipo, e c om pe nsá - los de a lgum m odo.

De pois de um ple no r e c onhe c im e nto e r e pa r a ç ã o, o pe r dã o se r ia


possíve l e o pr oc e sso de c ur a pode r ia c om e ç a r.

30. A sombr a do gur u iluminado

G EORG FEUERSTEIN
Em se u livr o The Lotus and the Robot [ O Lótus e o Robô] , Ar tur
Koe stle r na r r a um inc ide nte oc or r ido qua ndo e le e sta va se nta do a os
pé s da gur u india na Ana nda m a y i a , que é ve ne r a da por de ze na s de
m ilha r e s de hindus c om o um a e nc a r na ç ã o do Divino. Um a m ulhe r
idosa a pr oxim ou- se do e str a do e suplic ou a Ana nda m a y i Ma que
inte r c e de sse por se u f ilho, de sa pa r e c ido e m a ç ã o num r e c e nte
inc ide nte na f r onte ir a . A sa nta ignor ou- a por c om ple to. Qua ndo a
m ulhe r se tor nou histé r ic a , Ana nda m a y i Ma dispe nsou- a c om ba sta nte
a spe r e za , o que f oi um sina l pa r a se us a te nde nte s r a pida m e nte
c onduzir e m a m ulhe r pa r a f or a da sa la .

Koe stle r f ic ou sur pr e so c om a indif e r e nç a de Ana nda m a y i Ma a o


sof r im e nto da que la m ulhe r. Conc luiu que , pe lo m e nos na que le
m om e nto, f a lta va c om pa ixã o à sa nta . Ac hou pe r tur ba dor que um se r
suposta m e nte ilum ina do, m a nif e sta ndo e sponta ne a m e nte a ple nitude
do Divino, pude sse m ostr a r ta nta de sc or te sia e dur e za . Essa histór ia
la nç a luz sobr e o f a to de que m e sm o os se r e s suposta m e nte "pe r f e itos"
pode m c om e te r — e c om e te m — a tos que pa r e c e m c ontr a dize r a
im a ge m ide a liza da que se us se guidor e s f a ze m de le s.

Alguns m e str e s "pe r f e itos" sã o f a m osos por sua s e xplosõe s de r a iva ,


outr os por se u a utor ita r ism o. Em te m pos r e c e nte s, inúm e r os
supe rgur us a le ga da m e nte c e liba tá r ios vir a r a m m a nc he te por c a usa de
r e la ç õe s se xua is c la nde stina s c om sua s se guidor a s. Gê nios e spir itua is
— sa ntos, sá bios e m ístic os — nã o sã o im une s a tr a ç os ne ur ótic os ou a
te r e xpe r iê nc ia s m uito se m e lha nte s a os e sta dos psic ótic os. Na
ve r da de , m e sm o a de ptos a pa r e nte m e nte ilum ina dos pode m se r
suj e itos a c a r a c te r ístic a s de pe r sona lida de que a opiniã o c onse nsua l
a c ha inde se j á ve is.

Que a pe r sona lida de de se r e s ilum ina dos e m ístic os a va nç a dos


pe r m a ne c e qua se inta c ta f ic a e vide nte qua ndo e xa m ina m os biogr a f ia s
e a utobiogr a f ia s de a de ptos, pa ssa dos e pr e se nte s. Todos e le s
m a nif e sta m qua lida de s psic ológic a s e spe c íf ic a s, de te r m ina da s por sua
he r a nç a ge né tic a e pe la histór ia de sua s vida s. Alguns se inc lina m à
pa ssivida de , outr os sã o e spe ta c ula r m e nte dinâ m ic os. Alguns sã o ge ntis
e outr os, f e r oze s. Alguns nã o tê m inte r e sse a lgum e m a pr e nde r, outr os
sã o gr a nde s e studiosos. O que e sse s se r e s ple na m e nte de spe r tos tê m
e m c om um é que nã o se ide ntif ic a m m a is c om o c om ple xo da
pe r sona lida de ( c om o que r que e ste possa c onf igur a r- se ) e , sim , vive m
a ide ntida de do Se lf. A ilum ina ç ã o, por ta nto, c onsiste e m tr a nsc e nde r
o há bito do e go; m a s a ilum ina ç ã o não oblite r a a pe r sona lida de . Ca so
o f ize sse , e sta r ía m os j ustif ic a dos e m igua lá - la à psic ose .

O f a to de a e str utur a bá sic a da pe r sona lida de pe r m a ne c e r


e sse nc ia lm e nte a m e sm a de pois da ilum ina ç ã o le va nta um a que stã o
c r uc ia l: a ilum ina ç ã o ta m bé m de ixa r ia intoc a dos os tr a ç os que , no
indivíduo nã o- ilum ina do, se r ia m c ha m a dos de ne ur ótic os? Ac r e dito
que é a ssim . Se sã o ve r da de ir os m e str e s, pode - se e spe r a r que se u
pr opósito supr e m o se j a a c om unic a ç ã o da r e a lida de tr a nsc e nde nta l.
Ainda a ssim , se u c om por ta m e nto no m undo e xte r ior é se m pr e um a
que stã o de e stilo pe ssoa l.

Os de votos, é c la r o, gosta m de pe nsa r que se u gur u ide a l e stá livr e de


ve le ida de s e que a s a pa r e nte s idiossinc r a sia s de stina m - se a o e nsino.
Ma s um insta nte de r e f le xã o m ostr a que e ssa ide ia ba se ia - se e m
f a nta sia e pr oj e ç ã o.

Alguns m e str e s a le ga r a m que sua c onduta r e f le te o e sta do psíquic o


da que le s c om que m e ntr a r a m e m c onta to; e m outr a s pa la vr a s, que
se us a tos, à s ve ze s c ur iosos, sã o de tona dos pe los disc ípulos. I sso ta lve z
oc or r a por que os a de ptos ilum ina dos sã o c om o c a m a le õe s. Ma s e sse
e spe lha m e nto ta m bé m se gue a s linha s pe ssoa is. P or e xe m plo, a lguns
gur us nã o se nta r ã o sobr e m onte s de lixo, nã o c onsum ir ã o c a r ne
hum a na ( c om o f a zia o m ode r no m e str e tâ ntr ic o Vim a la na nda ) ne m
m e dita r ã o sobr e c a dá ve r e s pa r a instr uir os outr os, e nqua nto pouc os
da que le s que se e ntr e ga m a e ssa s pr á tic a s se inte r e ssa r ia m e m tr e ina r
o inte le c to ou a dquir ir de str e za m usic a l pa r a m e lhor se r vir a o
disc ípulo.

A pe r sona lida de do a de pto é , c om toda a c e r te za , m a is or ie nta da pa r a


a a uto- tr a nsc e ndê nc ia do que pa r a a r e a liza ç ã o pe ssoa l. No e nta nto,
e la nã o se c a r a c te r iza por m a nte r um a tr a j e tór ia de a uto- r e a liza ç ã o.
Uso a qui o te r m o auto- re alizaç ão num se ntido m a is r e str ito do que o
pr e te ndido por Abr a ha m Ma slow: c om o a inte nç ã o pa r a r e a liza r a
tota lida de psíquic a ba se a da na inte gr a ç ã o da som br a . A som br a , e m
te r m os j unguia nos, é o a spe c to e sc ur o da pe r sona lida de , o a gr e ga do
de m a te r ia is r e pr im idos. A som br a individua l e sta ine vita ve lm e nte
liga da à som br a c ole tiva . Essa inte gr a ç ã o nã o é um e ve nto de f initivo,
m a s um pr oc e sso que dur a a vida toda . Ta nto pode oc or r e r a nte s da
ilum ina ç ã o c om o de pois de la . Se a inte gr a ç ã o nã o é um pr ogr a m a
c onsc ie nte da pe r sona lida de a nte s da ilum ina ç ã o, é im pr ová ve l que
e la f or m e pa r te da pe r sona lida de de pois da ilum ina ç ã o de vido à
r e la tiva e sta bilida de da s e str utur a s da pe r sona lida de .

Alguns a de ptos c onte m por â ne os a le ga m que , qua ndo a ilum ina ç ã o


ir r om pe , a som br a é inte ir a m e nte inunda da c om a luz da
supr a c onsc iê nc ia . A im plic a ç ã o se r ia : o se r ilum ina do nã o te m
som br a . I sso é um a a f ir m a ç ã o dif íc il de a c e ita r qua nto à
pe r sona lida de c ondic iona l. A som br a é o pr oduto de pe r m uta s, qua se
inf inita s, de pr oc e ssos inc onsc ie nte s e sse nc ia is à vida hum a na que
c onhe c e m os. Enqua nto a pe r sona lida de e stá vive ndo a vida , um
c onte údo inc onsc ie nte f or m a - se a pe na s por que ningué m c onse gue
e sta r c ontinua m e nte c onsc ie nte de tudo, A e xtir pa ç ã o da ide ntida de do
e go na ilum ina ç ã o nã o te r m ina os pr oc e ssos de a te nç ã o: e la a pe na s
f a z c om que a a te nç ã o de ixe de se f ixa r no e go. Alé m disso, o se r
ilum ina do c ontinua a pe nsa r e a se ntir, o que ine vita ve lm e nte de ixa
um r e síduo inc onsc ie nte m e sm o qua ndo nã o e xiste ne nhum a pe go
inte r ior a e sse s pr oc e ssos. A dif e r e nç a im por ta nte é que e sse r e síduo
nã o é c onside r a do um obstá c ulo à tr a nsc e ndê nc ia do e go
sim ple sm e nte por que e sse é um pr oc e sso c ontínuo na c ondiç ã o
ilum ina da .

Alguns a de ptos r e solve r a m e ssa que stã o a dm itindo que e xiste um e go-
f a nta sm a , um c e ntr o r e sidua l da pe r sona lida de , m e sm o de pois do
de spe r ta r c om o Re a lida de unive r sa l. Se a c e ita m os e ssa pr oposiç ã o,
e ntã o pode m os ta m bé m f a la r da e xistê nc ia de um a som br a - f a nta sm a
ou de um a som br a r e sidua l que pe r m ite a o se r ilum ina do f unc iona r
na s dim e nsõe s da r e a lida de c ondic iona l. No indivíduo nã o- ilum ina do,
e go e som br a a nda m j untos; pode r ía m os postula r um a pola r iza ç ã o
a ná loga e ntr e e go- f a n- ta sm a e som br a - f a nta sm a a pós a ilum ina ç ã o.

Me sm o se a dm itir m os que a ilum ina ç ã o a c la r a e dissipa a som br a ,


pr e c isa m os a inda que stiona r se r ia m e nte se e sse a c la r a m e nto
c or r e sponde à inte gr a ç ã o — a ba se pa r a a a utotr a nsf or m a ç ã o m a is
e le va da . I sso que r dize r que e la e nvolve um a m uda nç a inte nc iona l na
dir e ç ã o da tota lida de psíquic a que pode se r obse r va da pe los outr os.
Qua ndo e xa m ino a vida de a de ptos c onte m por â ne os que a le ga m se r
ilum ina dos, nã o ve j o e vidê nc ia s de que e sse tr a ba lho de inte gr a ç ã o
e ste j a se ndo f e ito. Um a da s pr im e ir a s indic a ç õe s se r ia um a visíve l
disposiç ã o nã o a pe na s pa r a e spe lha r os disc ípulos c om o ta m bé m pa r a
tê - los c om o um e spe lho de se u pr ópr io c r e sc im e nto. Entr e ta nto, e sse
tipo de disposiç ã o pe de um a a be r tur a que é c e r c e a da pe lo e stilo
a utor itá r io a dota do pe la m a ior ia dos gur us.

Os c a m inhos e spir itua is tr a dic iona is sã o, na sua gr a nde m a ior ia ,


e nr a iza dos no ide a l ve r tic a l de libe r ta ç ã o d o c ondic iona m e nto do
c or po- m e nte . P or ta nto, e le s e nf oc a m a quilo que é c onc e bido c om o o
be m últim o — o Se r tr a nsc e nde nta l. Essa unila te r a lida de e spir itua l tir a
de f oc o a psique hum a na : sua s pr e oc upa ç õe s pe ssoa is tor na m - se
insignif ic a nte s e sua s e str utur a s sã o vista s c om o a lgo a se r
r a pida m e nte tr a nsc e ndido, e m ve z de se r tr a nsf or m a do. É c la r o que
todos os m é todos de a uto- tr a nsc e ndê nc ia e nvolve m c e r to gr a u de
a utotr a nsf or m a ç ã o. Ma s, c om o r e gr a , isso nã o a c a r r e ta um f or te
e sf or ç o pa r a tr a ba lha r c om a som br a e r e a liza r a inte gr a ç ã o psíquic a .
I sso ta lve z e xplique por que ta ntos m ístic os e a de ptos sã o a lta m e nte
e xc ê ntr ic os e a utor itá r ios, e pa r e ç a m te r, e m níve l soc ia l,
pe r sona lida de s pouc o inte gr a da s.

Ao c ontr á r io da tr a nsc e ndê nc ia , a inte gr a ç ã o oc or r e no pla no


hor izonta l. Ela a m plia o ide a l de tota lida de à pe r sona lida de
c ondic iona l e à s sua s c one xõe s soc ia is. Ainda a ssim , a inte gr a ç ã o só
f a z se ntido qua ndo a pe r sona lida de c ondic iona l e o m undo c ondic iona l
nã o sã o tr a ta dos c om o opone nte s ir r e vogá ve is da Re a lida de últim a ,
m a s sim va lor iza dos c om o m a nif e sta ç õe s de la .

Te ndo de sc obe r to o Divino na s pr of unde za s de sua pr ópr ia a lm a , o


a de pto pr e c isa e ntã o e nc ontr a r o Divino e m toda s a s f or m a s de vida .
Esta é , na ve r da de , a pr inc ipa l obr iga ç ã o e r e sponsa bilida de do
a de pto. Ou, e m outr a s pa la vr a s, te ndo be bido na f onte da vida , o
a de pto pr e c isa c om ple ta r a obr a e spir itua l e pr a tic a r a c om pa ixã o
c om ba se no r e c onhe c im e nto de que toda s a s c oisa s pa r tic ipa m do
c a m po unive r sa l do Divino.

31. Um herege numa comunidade Nova Era

W. B RUG H JOY
Qua ndo visite i pe la pr im e ir a ve z a c om unida de Findhor n, e m 1975, e u
e sta va a pe na s c om e ç a ndo a e xplor a r a possibilida de de tr e ina r a s
pe ssoa s pa r a se ntir e m a s e ne rgia s que se ir r a dia m do c or po e a se r e m
c a pa ze s, e la s m e sm a s, de tr a nsf e r ir e ne rgia pa r a o c or po de outr a
pe ssoa c om o pr opósito de c ur a f ísic a e e quilíbr io psic ológic o.

A c om unida de Findhor n, na que la é poc a , e r a j ove m e ba sta nte


inf lue nc ia da pe la dinâ m ic a do P a i Divino/Filho Divino. Qua ndo m e
pe dir a m pa r a da r m inha s im pr e ssõe s sobr e o f utur o im e dia to da
c om unida de c om o um todo, e u disse que pr e sse ntia que um a im ine nte
a f luê nc ia de pe ssoa s tr a r ia o pe r igo de que a "a lm a " ina ta da
c om unida de se diluísse , de vido a o se u gr a nde núm e r o e a os a spe c tos
c om e r c ia is que a c om unida de pr e c isa r ia a te nde r. Eu e r a um hóspe de
be m - vindo. A c om unida de a dor ou o que e u f a le i!

Cinc o a nos m a is ta r de , pe dir a m - m e pa r a lhe s dize r m inha s im pr e ssõe s


sobr e o f utur o im e dia to da c om unida de c om o um todo. Essa pa le str a
se guia - se à Conf e r ê nc ia de dua s se m a na s, de pois da qua l c a da
pa r tic ipa nte de ve r ia pa r tic ipa r da vida c om unitá r ia de Findhor n, c om
um a c om pr e e nsã o m a is a pr of unda da . Os pa r tic ipa nte s nã o e r a m
tur ista s ou sim ple s visita nte s. Ele s tinha m sido pr e pa r a dos pa r a
e xpe r im e nta r toda a ga m a da vida da c om unida de , inc luindo a quilo
que or dina r ia m e nte nã o é visto num a pr im e ir a a pr oxim a ç ã o: se u la do
da som br a .

Qua ndo e xpr e sse i a s im pr e ssõe s que se ntia na que le m om e nto, num a
da s r e uniõe s notur na s da c om unida de , a pr e se nte i um qua dr o dif e r e nte
do que a pr e se nta r a c inc o a nos a nte s... e um qua dr o m a is dif íc il.
Disse lhe s que o f utur o pr óxim o se r ia um pe r íodo de c ontr a ç ã o e de
r e str iç ã o de r e c ur sos m a te r ia is. A c om unida de ha via de sf r uta do um a
f a se de c r e sc im e nto e a bundâ nc ia , m a s a gor a a pr oxim a va - se a f a se
de ba ixa da que le c ic lo. É m e lhor voc ê s se pr e pa r a r e m c om
a nte c e dê nc ia , disse lhe s e u.

Fa le i- lhe s sobr e a s c onse qüê nc ia s de se se ntir e m "e spe c ia is";


e xplique i- lhe s que se u c om ba te c ontr a os "m a le s do m undo" nã o
a pe na s c r ia va o "inim igo" c om o ta m bé m r e pr e se nta va um a pr oj e ç ã o
dos a spe c tos m a is e sc ur os da c om unida de sobr e a te la do m undo.
Ne m pr e c iso dize r que o m e u disc ur so nã o a gr a dou e logo c a í na
c a te gor ia de "hóspe de inde se j a do". Eu logo se r ia visto c om o o
r e pr e se nta nte de tudo a quilo que nã o e sta va r e solvido, e m níve l
inc onsc ie nte , na c om unida de . Em outr a s pa la vr a s, e u ir ia c a r r e ga r o
la do da som br a da c om unida de ... e e u sa bia disso!

Qua ndo te nta m os ne ga r a s c oisa s que e x iste m , c oisa s c om o os c ic los


na tur a is do te m po e do e spa ç o, f a z- se ne c e ssá r ia um a e nor m e
e ne rgia . Essa e ne rgia , a ssim , de ixa de e sta r disponíve l c om o f onte
pa r a outr a s a tivida de s. Ne ste c a so, e r a e vide nte que a gr a nde m a ior ia
dos m e m br os da c om unida de ne ga va a e xistê nc ia de qua lque r c oisa
que pude sse a m e a ç a r sua s c r e nç a s e va lor e s e xte r nos. A sa be dor ia de
r e c onhe c e r a e xpa nsã o c a c ontr a ç ã o dos c ic los nã o f a zia pa r te do
siste m a ge r a l de c r e nç a s da c om unida de Findhor n, a ssim c om o nã o
f a z pa r te do pr oc e sso de pe nsa m e nto Nova Er a e m ge r a l. Ape sa r da s
a f ir m a tiva s f e ita s pe la m a ior ia dos pa r tidá r ios da Nova Er a de que
e stã o pr om ove ndo vir tude s ta is c om o o se r viç o a ltr uísta a o m undo,
sua s c r e nç a s de que a Nova Er a é e spe c ia l e inoc e nte sã o, na m inha
opiniã o, r e tr ógr a da s... te nde ndo a o inf a ntil, se nã o a o f e ta l. Esse
ide á r io te nde a gir a r e m tor no de si m e sm o... c onc e ntr a ndo- se , por
e xe m plo, e m im a ge ns que ignor a m a c ontr ibuiç ã o do a spe c to
de str utivo.

No f ina l de ssa e xpe r iê nc ia c om unitá r ia que se se guiu à Conf e r ê nc ia , a


c om unida de Findhor n ha via pr ogr a m a do um a noite de tr oc a de ide ia s
e e ntr e te nim e nto. Qua ndo e u m e dir igia pa r a o sa lã o, o poe ta da
c om unida de a pr oxim ou- se de m im , a gr e ssivo. Eu j á tive r a um r á pido
e nc ontr o c om e le pouc os dia s a nte s, qua ndo m e pe dir a pa r a f a la r a os
se us a lunos e e u de c line i do c onvite . Agor a e le e sta va c he io de r a iva e
f úr ia . P e nse i que e le ia m e a gr e dir m a s, e m ve z disso, sibilou a lgo
sobr e o que ir ia a pr e se nta r no sa lã o na que la noite . Com e c e i a gir a r
e m tor no de m im m e sm o.

A pr im e ir a pa r te do e ntr e te nim e nto da noite c onsistiu de sá tir a s


dive r tida s e a lguns c a ntos. Entã o o poe ta da c om unida de subiu a o
pa lc o. Olhou- m e nos olhos... e e u soube que e u ir ia se r sa c r if ic a do.
Em ve r sos f or te s, c a r r e ga dos de ve ne no e inc e ndia dos por um a
e nf ur e c ida posse e xc lusiva da ve r da de , e le soltou os se ntim e ntos
e sc ur os e a s f or ç a s de str utiva s da c om unida de . O obj e to da sua r a iva
e r a m os a m e r ic a nos e m ge r a l e e u e m pa r tic ula r. Fom os r e tr a ta dos de
ta l m odo que , e m c om pa r a ç ã o, a m a té r ia f e c a l pa r e c e r ia or quíde a s.
Se u a ta que c e ntr ou- se no dinhe ir o e no pode r... o la do e sc ur o de
qua lque r e m pr e e ndim e nto que ve ste a m á sc a r a do be m m a ior e do
se r viç o à hum a nida de . A únic a c oisa e xplic ita m e nte a use nte e r a se xo,
m a s e le o substituiu dize ndo a pa la vr a "f ...", na f or m a substa ntiva ,
a dj e tiva e ve r ba l, c om um a f r e quê nc ia e xtr a or diná r ia .

A f unç ã o dos poe ta s é da r voz a o c ole tivo. Qua ndo o c onte údo de sua
poe sia é r a iva inf a ntil e r e sse ntim e nto r e pr im ido — e c om o é na tur a l
que ta is c oisa s e xista m num a c om unida de que só se vê c om o
m a nif e sta ç ã o de a m or e luz! —, é pr e c iso e nc ontr a r um obj e to pa r a
c a r r e ga r a s f or ç a s inc onsc ie nte s. Atr a vé s do m e c a nism o da pr oj e ç ã o,
a s e ne rgia s de str utiva s pude r a m se r libe r a da s na que la noite se m que
os pa r tic ipa nte s pr e c isa sse m a dm itir que a s f or ç a s do de spr e zo e da
inve j a e sta va m , nã o a pe na s de ntr o do poe ta , m a s ta m bé m de ntr o da
pr ópr ia c om unida de ! Ao pr oj e ta r e sse m a te r ia l sobr e m im e sobr e os
outr os a m e r ic a nos, e le na ve r da de e sta va pr om ove ndo um a c ur a ou
e quilíbr io da s f or ç a s inc onsc ie nte s da c om unida de . No e nta nto, te r ia
sido m e lhor pa r a todos nós se a c om unida de tive sse a va nç a do no
pr oc e sso de a ssum ir o la do e sc ur o de sua na tur e za , m a s nã o f oi a ssim
que a s c oisa s se pa ssa r a m na que la noite . Qua nto a m im , na m e dida
e m que e u a dm itia que sua s a c usa ç õe s tinha m de f a to um a
c ontr a pa r tida e m m im e e u a s a ssum ia c onsc ie nte m e nte , f ui c a pa z de
pe r m a ne c e r a utoc e ntr a do e ta m bé m de ve r que o c onte údo da som br a
da c om unida de , há m uito r e pr im ido, e sta va ir r om pe ndo.
Enqua nto o poe ta c ontinua va se u vulc â nic o de spe j a r de e m oç õe s
e sc ur a s, a c om unida de c om o um todo m ostr a va um a a m pla ga m a de
r e a ç õe s. Alguns gr ita r a m pa r a que e le se c a la sse . Alguns c om e ç a r a m
a c hor a r e a ba ndona r a m o sa lã o. Outr os e sta va m f e lize s por a lgué m
te r tido a c or a ge m de a f ir m a r o que m uitos se ntia m . Alguns
c om e ç a r a m a de f e nde r os a m e r ic a nos e o m odo de vida a m e r ic a no.
Outr os, hum ilha dos e e m ba r a ç a dos, pe dir a m - m e que de f e nde sse a
m im m e sm o e a os m e us c om pa tr iota s, ou que f ize sse a lgum a c oisa .
Enc or a j e i o poe ta a c ontinua r, pe nsa ndo que e le nã o pode r ia te r m uito
m a is a dize r... m a s e le tinha !

Ele c ontinuou por m a is quinze ou vinte m inutos a té que Eile e n Ca ddy ,


um a da s f unda dor a s da c om unida de , pe diu- lhe pa r a pa r a r. Ele pa r ou e
sa iu da sa la qua se e m j úbilo. A c om unida de r e uniu- se a o r e dor dos
orga niza dor e s da r e uniã o pa r a c onsolá - los e c om pa r tilha r um toque de
a m or e de c onf or to.

Eu nunc a e stive r a e nvolvido num a ta que públic o da que la m a gnitude .


Me us r e c ur sos pa r a m e a utoc e ntr a r e tor na r- m e tr a nspa r e nte à s
f or ç a s de a ta que — pa r a se r c a pa z de e nc ontr a r na c onsc iê nc ia
a que le luga r onde nã o e xiste ne c e ssida de de se de f e nde r do c onte údo
do a ta que — e sta va m qua se e sgota dos.

Tor na r- se tr a nspa r e nte à s a c usa ç õe s nã o signif ic a que a lgum a s pa r te s


da pe ssoa nã o se sinta m f e r ida s, hum ilha da s, e nc ole r iza da s e
de f e nsiva s. Signif ic a pe r c e be r a quilo que e stá r e a lm e nte a c onte c e ndo
e nã o f ic a r inc onsc ie nte ou c a ir vítim a de se u pr ópr io m a te r ia l
r e pr im ido! Eu sa bia que a som br a da c om unida de e sta va ir r om pe ndo
e e u e r a o e spe lho. Ta m bé m r e c onhe c i que a s f or ç a s e qua lida de s que
e sta va m se ndo a ta c a da s f a zia m pa r te de m im m e sm o, P a r a m im , e sse
f oi um gr a nde sa lto no a m a dur e c im e nto de m im m e sm o, Eu e sta va
se ndo inic ia do na que la s a r e na s c ole tiva s da c onsc iê nc ia onde a pe ssoa
lida c om a s pr oj e ç õe s inc onsc ie nte s, nã o a pe na s de um indivíduo ou
de um pe que no gr upo, m a s de um a gr a nde c ole tivida de ; ne ste c a so,
toda um a c om unida de .

32. A sombra na Astrologia

LIZ G REENE
Um a da s c oisa s m a is inte r e ssa nte s que voc ê s pode m f a ze r c om um
m a pa a str a l é olhá - lo do ponto de vista da quilo que e stá no e sc ur o e
da quilo que e stá na luz. Eu gosta r ia de disc utir m a is e spe c if ic a m e nte a
f igur a da som br a , por que a som br a e m ge r a l ve ste a m á sc a r a do
pr ópr io se xo da pe ssoa . Nã o a c ho que e ssa se j a um a r e gr a r ígida , m a s
o pr oble m a da som br a nã o é um pr oble m a de a tr a ç ã o ou r e pulsã o
se xua l. O m a is f r e que nte é que e la se r e la c ione c om o dile m a de
a c e ita r a pr ópr ia se xua lida de , a pr ópr ia m a sc ulinida de ou
f e m inilida de . P a r e c e que qua lque r c oisa de um m a pa a str a l pode c a ir
na som br a . Qua lque r ponto do m a pa pode se r a pr opr ia do por e ssa
f igur a , [ Já f a le i sobr e os e le m e ntos a use nte s no m a pa .] Esse s
e le m e ntos a use nte s nã o a pe na s tê m que ve r c om o tipo de pe ssoa s por
que m nos a pa ixona m os. Ele s ta m bé m e stã o liga dos a o la do e sc ur o da
a lm a . Os a spe c tos pla ne tá r ios ta m bé m pode m te r ta nto que ve r c om a
som br a qua nto c om o tipo de pe ssoa que nos f a sc ina no se xo oposto.
P ontos do m a pa , ta is c om o o De sc e nde nte e o Fundo- do- Cé u ( o F,C, o
na dir ou o ponto m a is ba ixo) ta m bé m tê m m uito que ve r c om a s
f a c e ta s da pe r sona lida de que c a e m na som br a .

Vou c om e ç a r m e nc iona ndo a lgum a s c oisa s sobr e o F.C. por que e le é


um ponto ge r a lm e nte ne glige nc ia do na a ná lise do m a pa . O Me io- do-
Cé u ( ou M.C.) na m a ior ia da s ve ze s pa r e c e e sta r liga do a o m odo
c om o que r e m os a pa r e c e r a os olhos do públic o. O ponto oposto, o F.C.
pa r e c e r e le va nte e m te r m os da quilo que nã o que r e m os que o públic o
ve j a . O signo que e stá na ba se do m a pa é a á r e a de e sc ur idã o, o ponto
m a is ba ixo do Sol, e é um dos pontos m a is vulne r á ve is à e ntr a da da
som br a .

Agor a , pe nsa ndo no tipo de pe ssoa s ( ou gr upos de pe ssoa s) que os


ir r ita m ou antagonizam , e no tipo de pe ssoa s ( ou gr upos de pe ssoa s)
que voc ê s ide a liza m , ve j a m qua l o signo que e stá c oloc a do no F.C. do
se u m a pa na ta l e qua is sã o a s qua lida de s e spe c íf ic a s de sse signo. Do
m e sm o m odo, ve j a m qua l o signo que e stá no De sc e nde nte . Existe
um a r e la ç ã o m uito e str a nha e ntr e a quilo que a m a m os e a quilo que
odia m os. Tr a ta - se c om f r e quê nc ia , de um a m e sm a c oisa sob um a
f or m a lige ir a m e nte dif e r e nte . Se voc ê s pe ga r e m e ssa s dua s im a ge ns
do que ide a liza m e do que de spr e za m e a s c oloc a r e m la do a la do,
ta lve z de sc ubr a m que e la s tê m a m e sm a r a iz. E a m e sm a f igur a , m a s
c om um a r oupa ge m dif e r e nte .

P or e xe m plo, se voc ê te m Tour o no Asc e nde nte e é um típic o ta ur ino,


ta lve z voc ê de spr e ze a s pe ssoa s que nã o sã o a be r ta s, que nã o a ge m à s
c la r a s. O ta ur ino ge r a lm e nte de spr e za a que le s que pa r e c e m se r
c he ios de se gr e dos ou m a nipula dor e s, que nã o sã o dir e tos ou que
c om plic a m a s c oisa s e pr ovoc a m c r ise s onde pode r ia ha ve r pa z e
tr a nquilida de . Ma s, a o m e sm o te m po, o ta ur ino se se nte f a sc ina do
pe la s pe ssoa s que tê m um m isté r io a c e r c á - la s, que nã o sã o f á c e is de
e nte nde r e que pa r e c e m te r um a pe r c e pç ã o m á gic a da na tur e za
hum a na . É a m e sm a f igur a . Se voc ê a de te sta , e la é m á , f ugidia e
tr a iç oe ir a ; m a s, se voc ê a a m a , e la é pr of unda , de nsa e f or te . Os dois
la dos e stã o c ontidos no Esc or piã o do De sc e nde nte .
Se te m o Me io- do- Cé u e m Aquá r io, é pr ová ve l que voc ê a pr e se nte a o
m undo a f a c e tole r a nte e hum a nitá r ia do a qua r ia no típic o,
m a r a vilhosa m e nte r a zoá ve l, j usto e pr e oc upa do c om os dir e itos dos
outr os. Voc ê ta lve z ode ie e de spr e ze a que le s e goísta s que se
e ngr a nde c e m à s c usta s do gr upo e que c ha m a m de m a sia da a te nç ã o
pa r a si m e sm os e m soc ie da de . Ta lve z voc ê f ique pr of unda m e nte
ir r ita do c om o e xibic ionista que se c oloc a à f r e nte dos outr os, por que
voc ê a c r e dita que todos sã o e spe c ia is e m e r e c e m os m e sm os dir e itos
e be ne f íc ios. Ainda a ssim , voc ê pode se ntir um a im e nsa a dm ir a ç ã o
pe la pe ssoa c r ia tiva , pe lo a r tista que c onse gue ignor a r todo m undo e
tr a nc a r- se e m se u e stúdio por c inc o a nos pa r a pr oduzir um a gr a nde
pintur a ou um r om a nc e m a gníf ic o. P a r a c r ia r a lgo de sse por te , é
c la r o que e le pr e c isa se r um m e ga lom a nía c o que a c r e dita no im e nso
va lor da sua c r ia ç ã o pa r a o m undo. O a qua r ia no ide a liza o a r tista ,
e m bor a de ixe de pe r c e be r que todo a r tista pr e c isa , ne c e ssa r ia m e nte ,
se r e goc ê ntr ic o e im pla c á ve l qua nto à s e xigê nc ia s e dir e itos dos
outr os. Ma is um a ve z, é a m e sm a f igur a , por é m vista de m a ne ir a s
oposta s.

Outr o e xe m plo se r ia um Asc e nde nte e m Gê m e os, que é f r io, r a c iona l,


inte lige nte e nunc a le va na da de m a sia do a sé r io. O ge m inia no a dor a
br inc a r c om pa la vr a s e ide ia s que , pa r a e le , sã o c om o a s pe lotic a s do
pr e stidigita dor. As inf or m a ç õe s inte r e ssa m a o ge m inia no, que é o
r e pór te r e o obse r va dor da vida . Ele se m pr e le m br a r á a que la ve lha
a ne dota ou pe r c e be r á a pe que na idiossinc r a sia que os outr os de ixa r a m
e sc a pa r. Ma s, se voc ê te m o Asc e nde nte e m Gê m e os, é pr ová ve l que
tudo pa r a voc ê se j a te r r ive lm e nte inte r e ssa nte m a s na da se j a
a pa ixona nte . P a ixã o e inte nsida de pode m se r inc ôm oda s e a té m e sm o
a ssusta dor a s. Voc ê c e r ta m e nte de te sta os f a ná tic os, os pr osé litos que
a c r e dita m e m a lgum a c oisa c om um a tór r ida e m oç ã o, m a s que nã o
que r e m se r inc om oda dos c om f a tos. Ta lve z de spr e ze a s pe ssoa s que
a br e m o c or a ç ã o e m públic o, que se a tir a m à s c oisa s, que
de m onstr a m e m oç õe s viole nta s, se j a por a lgué m ou por um a ide ia .
Um a pe ssoa de m a sia do c om pr om e tida c om um a r e ligiã o ou um a
f ilosof ia pode r e a lm e nte ir r ita r o ge m inia no — a que la c r ia tur a que o
a ga r r a na r ua a os br a dos: "Voc ê P r e c isa Entr a r P a r a A Cie ntologia ! "
ou "Voc ê Já Foi Sa lvo?" ou c oisa s de sse gê ne r o. O ge m inia no f oge
de sse tipo de c oisa por que possui de m a sia da sof istic a ç ã o inte le c tua l
pa r a a c r e dita r que e xista um a únic a ve r da de . Ainda a ssim , e le ta lve z
a dm ir e e m se gr e do a pe ssoa c a pa z de um a ve r da de ir a visã o e spir itua l
e de um ve r da de ir o c om pr om isso, a que la que se a tir a à vida c om
pa ixã o. O ge m inia no ta lve z ide a lize a pe ssoa que te m im a gina ç ã o e
intuiç ã o, se m nunc a pe r c e be r que o m e sm o f ogo inspir a e ssa s dua s
f igur a s.

Se nos ide ntif ic a m os m uito f or te m e nte c om um de te r m ina do c onj unto


de qua lida de s na nossa pr ópr ia na tur e za , qua ndo o oposto ve m à
supe r f íc ie ou a pa r e c e e m outr a pe ssoa , o r e sulta do e m ge r a l é a
r e pulsa . Tr a ta - se de um a pr of unda r e pulsa m or a l, um a ve r da de ir a
a ve r sã o pe lo que a outr a pe ssoa r e pr e se nta . Nã o é a pe na s um
de sinte r e sse ou um de sa gr a do c a sua l. A som br a de spe r ta e m nós um a
r a iva tota lm e nte de spr opor c iona l à situa ç ã o. Voc ê nã o ignor a , pur a e
sim ple sm e nte , o f a ná tic o c om se us pa nf le tos na e squina . Voc ê que r
da r um a pa ula da na c a be ç a de le . P or que e xiste e sse tipo de r a iva e
r e pulsã o? Se voc ê s pe ne tr a r e m pr of unda m e nte nos se ntim e ntos que
e nvolve m o c onf r onto c om a som br a , ve r ã o que a som br a é
vive nc ia da c om o um a te r r íve l a m e a ç a . Re c onhe c e r ou a c e ita r a
som br a e quiva le à m or te . Ce de r, um c e ntím e tr o que se j a , e m
tole r â nc ia ou c om pa ixã o ou va lor, a m e a ç a r á todo o e dif íc io do e go. É
c la r o que qua nto m a is nos e nr ij e c e m os e nos e ntr inc he ir a m os e m
de te r m ina da s postur a s e a utoim a ge ns, ta nto m a is a m e a ç a dor a se
tor na r á a som br a . E isso é pa r tic ula r m e nte dolor oso por que à s ve ze s
som os obr iga dos a r e c onhe c ê - la e , a inda a ssim , f a ze r a e sc olha m or a l
de nã o pa ssá - la a o a to.

Há a lgum te m po f iz o m a pa de um a m ulhe r a qua r ia na c om


Asc e nde nte e m Ca pr ic ór nio. Ela tinha dive r sos a spe c tos f or te s
( pr inc ipa lm e nte tr ígonos e se xtis) de Sa tur no e m se u m a pa na ta l e ,
pa r a e la , e r a te r r ive lm e nte im por ta nte se r a utossuf ic ie nte . Ela tinha
orgulho de sua c a pa c ida de e de sua f or ç a . Cr ia r a dois f ilhos a té a
ida de a dulta , num c a sa m e nto se m a m or c om um m a r ido m uito f r a c o e
que nã o a a j uda va ; c onstr uír a , por si m e sm a , um a be la c a r r e ir a na
á r e a ba nc á r ia . A únic a c oisa que e la j a m a is pode r ia a dm itir pa r a
a lgué m e r a qua lque r se ntim e nto de de sa m pa r o, de c a r ê nc ia ou de
de pe ndê nc ia . Ela pr e f e r ia sof r e r e m a m a rgo silê nc io do que
de m onstr a r qua lque r tipo de c a r ê nc ia que pude sse tor ná - la vulne r á ve l
a os outr os. Ela pr e c isa va de um m a r ido f r a c o, por que um m a r ido
f or te a te r ia f or ç a do a c onf r onta r- se c om sua pr ópr ia som br a . Qua ndo
c om e ç a m os a c onve r sa r sobr e e sse s a ssuntos, e la m e c ontou um
sonho que ha via se r e pe tido dua s ou tr ê s ve ze s e a tinha pe r tur ba do.
Em se u e sc r itór io, tr a ba lha va um a c e r ta m oç a a que m e la de te sta va
pr of unda m e nte . Ela sonhou que e sta va e m c a sa e e ssa m oç a ba tia à
por ta e pe dia pa r a e ntr a r. Ela f ic a va f ur iosa e f e c ha va - lhe a por ta na
cara.

P e di- lhe pa r a m e f a la r sobr e a outr a m ulhe r. Minha c lie nte disse :

— Ai, nã o a gue nto a que la c r ia tur a . Ac ho que e la é odiosa .

— Be m , o que é que voc ê ode ia ne la ? — pe rgunte i- lhe .

Minha c lie nte e ntã o m e c ontou que e ssa m ulhe r, c e r c a de vinte a nos
m a is j ove m que e la , e r a "um a da que la s r e c e pc ionista zinha s idiota s".
P a r e c ia que e ssa m oç a se m a goa va c om f a c ilida de , c hor a va m uito e
se f ingia de de sa m pa r a da pa r a todos os hom e ns do e sc r itór io. Esta va
se m pr e pe dindo a j uda c a le ga va que nã o sa bia f a ze r a s c oisa s, m e sm o
qua ndo sa bia , pa r a que os outr os pr e c isa sse m a j udá - la . Minha c lie nte
c ontinuou usa ndo os a dj e tivos m a is c a r r e ga dos — a m oç a e r a f a lsa ,
tr a iç oe ir a , hor r or osa , noj e nta . Um a da s m a ne ir a s pe la s qua is voc ê s
pode m ve r f a c ilm e nte a dinâ m ic a da pr oj e ç ã o da som br a é pe la
a dj e tiva ç ã o, que é se m pr e e xtr e m a da . Minha c lie nte nã o c onse guia
dize r a pe na s: "Nã o gosto de ssa m ulhe r." E a ssim e la c ontinuou, por
a lgum te m po.

E e ntã o pe rgunte i- lhe :

— Voc ê a c ha que o c om por ta m e nto de ssa m ulhe r pode r ia te r a lgo a


ve r c om voc ê ?
— Cla r o que nã o! — br a dou m inha c lie nte .

Ne ssa a ltur a da inte r pr e ta ç ã o do m a pa a str a l, e la f e z e xa ta m e nte o


que f ize r a no sonho. Ba te u a por ta pa r a nã o de ixa r a som br a e ntr a r.
Logo de pois, m ude i de a ssunto. Er a um a f igur a da som br a e m inha
c lie nte r e a giu a e la de um a m a ne ir a ba sta nte típic a .

Voc ê s vê e m que , e m te r m os de som br a , nã o se tr a ta de a dm itir


de f e itos. É um a que stã o de se r m os sa c udidos a té a s ba se s a o pe r c e be r
que nã o som os c om o a pa r e nta m os se r — nã o a pe na s pa r a os outr os
c om o ta m bé m pa r a nós m e sm os. A som br a nos le m br a que , se a
de ixa r m os e ntr a r, e la pode a ba la r pr of unda m e nte tudo a quilo a que
m a is da m os va lor. Minha c lie nte , c om sua f or te pe r sona lida de
sa tur nina , c onstr uír a sua vida e sua a utoim a ge m sobr e um a orgulhosa
a uto- suf ic iê nc ia . A som br a c ontinua va ba te ndo à sua por ta e e la
c ontinua va se r e c usa ndo a de ixá - la e ntr a r. A r e pulsa ge r a lm e nte
e sc onde um m e do m uito pr of undo: o m e do de ve r m os a niquila do o
"e u" que c onhe c e m os.

Ac ho que , qua nto m a is ve lhos f ic a m os, m a is dif íc il é e nf r e nta r e ssa


a m e a ç a de ve r de str uído tudo a quilo que c onstr uím os na vida . Em bor a
nã o pr e c ise ne c e ssa r ia m e nte signif ic a r de str uiç ã o, e sse é o nosso
m e do. Qua nto m a is c r ista liza da se tor na a nossa pe r sona lida de , qua nto
m a is f or te f ic a o nosso e go e qua nto m a is dur a m e nte luta m os pa r a
obte r a s c oisa s que que r ía m os, ta nto m a is dif íc il se tor na o pr oble m a
todo. Se voc ê se r e pr im iu e ne gou a si m e sm o pa r a pode r c onquista r
a lgum va lor ou a lgum ide a l, m a is dolor osa se r á a c onf r onta ç ã o, pois
de ixa r a som br a e ntr a r ta lve z signif ique o de sm or ona m e nto de um
c a ste lo de c a r ta s.

Assim , voc ê s pode m ve r por que e xiste m e do e r e pulsã o. Nã o se tr a ta


a pe na s de um de sa gr a do f útil. Tr a ta - se de um a a m e a ç a a os va lor e s
e sta be le c idos. Qua nto m a ior o nosso de se quilíbr io, ta nto m a is dur a a
luta pa r a im pe dir a e ntr a da de ssa f igur a . Me sm o que m inha c lie nte
r e c onhe c e sse que sua "hor r or osa " c ole ga de tr a ba lho e r a a im a ge m
pr oj e ta da de a lgo que ha via de ntr o de la m e sm a , nã o te r ia m e
a gr a de c ido por m ostr a r- lhe e ssa ve r da de .

33. O Diabo no Tarô

SALLIE NICHOLS
Che gou a hor a de e nc a r a r o Dia bo. Enqua nto im por ta nte f igur a
a r que típic a , e le pe r te nc e a pr opr ia da m e nte a o c é u, à f ila de c im a do
nosso m a pa do Ta r ô. Ma s e le c a iu... le m br a - se ? Na sua ve r sã o da
histór ia , e le la rgou o e m pr e go e de m itiu- se do c é u. Disse que m e r e c ia
um a opor tunida de m e lhor ; a c ha va que de via te r r e c e bido um a um e nto
e m a is a utor ida de .

Ma s nã o é a ssim que os outr os c onta m a histór ia . De a c or do c om a


m a ior ia dos r e la tos, Sa tã f oi de spe dido. Se u pe c a do, dize m , f oi
a r r ogâ nc ia e orgulho. Tinha um a na tur e za insole nte , a m biç ã o de m a is
e um se nso e xa ge r a do de se u pr ópr io va lor. Contudo, tinha m uito
e nc a nto e c onside r á ve l inf luê nc ia . Se us m é todos e r a m sutis: pe la s
c osta s do Che f e orga niza va a r e be liã o dos a nj os, m a s, a o m e sm o
te m po, lisonj e a va o Me str e .

Tinha inve j a de todo m undo — e spe c ia lm e nte da r a ç a hum a na . Ele


gosta va de ve r a si m e sm o c om o o f ilho f a vor ito. Odia va Adã o e se
r e sse ntia de se u dom ínio sobr e a que le a r r um a dinho Ja r dim do Éde n.
P a r a e le , se gur a nç a c om pla c e nte e r a ( e a inda é ) a ná te m a . P e r f e iç ã o
o f a z a ga r r a r se u a tiç a dor de disc ór dia s. I noc ê nc ia o f a z r e tor c e r- se .
Com o e le gozou a o te nta r Eva e e xplodir o P a r a íso! Te nta ç ã o e r a — e
c ontinuou a se r — a sua e spe c ia lida de . Alguns c he ga m a dize r que f oi
e le que m te ntou o Se nhor a pe r se guir o pobr e Jó. Já que De us é be m ,
dize m , o Se nhor nunc a pode r ia te r la nç a do m ã o de ta ntos tr uque s
dia bólic os a m e nos que Ele tive sse sido le va do a isso por Sa tã . Outr os
a rgum e nta m que , j á que o Se nhor é onisc ie nte e todo- pode r oso, de ve
a r c a r c om toda a r e sponsa bilida de por subm e te r o pobr e Jó a um
inte r r oga tór io tã o r igor oso.

A disc ussã o sobr e que m f oi r e sponsá ve l pe lo sof r im e nto de Jó


pr olonga - se há sé c ulos. Ainda nã o f oi r e solvida e ta lve z nunc a ve nha a
se r. A r a zã o é sim ple s: o Dia bo c onf unde por que e le pr ópr io é
c onf uso. Olhe pa r a a f igur a de le no Ta r ô e voc ê e nte nde r á . Ele se
a pr e se nta c om o um a bsur do c onglom e r a do de pa r te s. Usa os c hif r e s
de um c e r vo, m a s te m a s ga r r a s de um a a ve de r a pina e a s a sa s de
um m or c e go. Re f e r e - se a si m e sm o c om o hom e m , m a s te m se ios de
m ulhe r — ta lve z f osse m a is c or r e to dize r que e le v e s t e se ios de
m ulhe r, pois se us se ios pa r e c e m te r sido c ola dos ou pinta dos sobr e o
se u pe ito. Essa e str a nha c our a ç a pe itor a l of e r e c e pouc a pr ote ç ã o.
Ta lve z se j a usa da c om o um a insígnia pa r a c a m uf la r a c r ue lda de do
se u por ta dor ; m a s, e m níve l sim bólic o, ta lve z indique que Sa tã usa a
inge nuida de e a inoc ê nc ia f e m inina s c om o um disf a r c e pa r a nos
se duzir no nosso j a r dim . E, c om o a histór ia do Éde n de ixa be m c la r o,
é a tr a vé s de ssa nossa inge nuida de inoc e nte ( pe r sonif ic a da por Eva )
que e le a ge .

A r igide z e a r tif ic ia lism o de ssa c our a ç a pe itor a l ta lve z indique m que o


la do f e m inino do Dia bo é m e c â nic o e de sc oor de na do e , a ssim , ne m
se m pr e e stá sob o se u c ontr ole . É signif ic a tivo que se u e lm o dour a do
pe r te nç a a Wota n, um De us que ta m bé m e r a suj e ito a f a niquitos
m ulhe r is e que busc a va vinga nç a qua ndo via sua a utor ida de
a m e a ç a da .

O Dia bo c a r r e ga um a e spa da , m a s e le a se gur a de sc uida da m e nte pe la


lâ m ina , e c om a m ã o e sque r da . É óbvio que se u r e la c iona m e nto c om
a a r m a é tã o inc onsc ie nte que e le se r ia inc a pa z de usá - la de um a
m a ne ir a pr oposita da ; isso signif ic a , sim bolic a m e nte , que se u
r e la c iona m e nto c om o Logos m a sc ulino ta m bé m é ine f ic a z. Ne ssa
ve r sã o do Ta r ô, a e spa da de Sa tã pa r e c e f e r ir a pe na s a e le m e sm o.
Ma s a lâ m ina é a inda m a is pe r igosa por nã o e sta r sob o se u c ontr ole .
O c r im e orga niza do ope r a pe la lógic a . P ode se r de sc obe r to e
c om ba tido de um a m a ne ir a siste m á tic a . Me sm o os c r im e s pa ssiona is
tê m um a c e r ta lógic a e m oc iona l que os tor na m hum a na m e nte
c om pr e e nsíve is e à s ve ze s a té e vitá ve is. Ma s á de str uiç ã o
indisc r im ina da , os a ssa ssina tos a r bitr á r ios na r ua , o louc o que dispa r a
a e sm o do a lto de um pr é dio — c ontr a e sse s nã o te m os ne nhum a
de f e sa . Se ntim os que e ssa s f or ç a s ope r a m num a e sc ur idã o que e stá
a lé m da c om pr e e nsã o hum a na .

O Dia bo é um a f igur a a r que típic a c uj a linha ge m , dir e ta e indir e ta ,


r e m onta à a ntiguida de . Lá e le ge r a lm e nte a pa r e c ia c om o um de m ônio
be stia l, m a is pode r oso e m e nos hum a no que a f igur a m ostr a da no
Ta r o, Com o Se t, De us e gípc io do m a l, e le c ostum a va tom a r a f or m a
de um a c obr a ou de um c r oc odilo. Na a ntiga Me sopotâ m ia , P a zuzu
( um de m ônio do ve nto sudoe ste , por ta dor da m a lá r ia , r e i dos m a us
e spír itos do a r ) inc or por a va a lgum a s da s qua lida de s hoj e a tr ibuída s a
Sa tã . Nosso Dia bo ta lve z ta m bé m te nha he r da do c e r tos a tr ibutos de
Tia m a t, de usa ba bilônic a do c a os, que tom a va a f or m a de um a a ve
c om c hif r e s e ga r r a s. Foi só de pois de surgir a nossa c ultur a j ude u-
c r istã que Sa tã c om e ç ou a a ssum ir c a r a c te r ístic a s m a is hum a na s e a
c onduzir sua s e xe c r á ve is a tivida de s de um a m a ne ir a que o hom e m
pode c om pr e e nde r m a is de im e dia to.

Essa hum a niza ç ã o da im a ge m do Dia bo a o longo dos sé c ulos signif ic a ,


e m níve l sim bólic o, que a gor a e sta m os m a is pr e pa r a dos pa r a vê - lo
c om o um a spe c to da nossa pr ópr ia som br a do que c om o um De us
sobr e na tur a l ou um de m ônio inf e r na l. Ta lve z isso signif ique que
e sta m os pr ontos, a f ina l, pa r a luta r c ontr a o nosso pr ópr io la do
sa tâ nic o. Me sm o hum a no — e a té m e sm o be lo —, e le nã o pe r de u sua s
e nor m e s a sa s de m or c e go. Se há dif e r e nç a , é que e la s se tor na r a m
a inda m a is e sc ur a s e m a ior e s do que a s a sa s do Dia bo no Ta r ô de
Ma r se lha , I sso indic a que o r e la c iona m e nto de Sa tã c om o m or c e go é
pa r tic ula r m e nte im por ta nte e e xige a nossa a te nç ã o e spe c ia l.

O m or c e go é um voa dor notur no. Evita ndo a luz do dia , e le se r e tir a a


c a da m a nhã pa r a um a c a ve r na e sc ur a onde f ic a pe ndur a do de c a be ç a
pa r a ba ixo, a c um ula ndo e ne rgia pa r a sua s e sc a pa da s notur na s. Ele é
um c hupa dor de sa ngue c uj a m or dida e spa lha a pe ste e c uj os
e xc r e m e ntos pr of a na m o a m bie nte . Ele se pr e c ipita r a pida m e nte no
e sc ur o e , de a c or do c om a c r e nç a popula r, te m um pe ndor e spe c ia l
pa r a e nr e da r- se nos c a be los da s pe ssoa s, c a usa ndo um r e buliç o
histé r ic o.

Ta m bé m o Dia bo voa à noite — hor a que a s luze s da c iviliza ç ã o se


e xtingue m e a m e nte r a c iona l a dor m e c e . É ne ssa hor a que os se r e s
hum a nos e stã o de ita dos, inc onsc ie nte s, de spr ote gidos e a be r tos à s
suge stõe s. Na luz do dia , qua ndo a c onsc iê nc ia hum a na e stá de spe r ta e
a c a pa c ida de de dif e r e nc ia ç ã o do hom e m e stá a guç a da , o Dia bo se
r e tir a pa r a os e sc ur os r e c e ssos da psique onde , e le ta m bé m , f ic a
pe ndur a do de c a be ç a pa r a ba ixo, e sc onde ndo sua qua lida de de
c ontr á r io, r e c a r r e ga ndo sua s e ne rgia s e ga nha ndo te m po.
Me ta f or ic a m e nte , o Dia bo suga o nosso sa ngue e c or r ói a nossa
substâ nc ia . Os e f e itos de sua m or dida sã o c onta giosos, c onta m ina ndo
c om unida de s inte ir a s e a té pa íse s. Assim c om o o m or c e go pode
c a usa r um pâ nic o ir r e f le tido num a uditór io lota do a o se pr e c ipita r,
ve loz, sobr e os e spe c ta dor e s, ta m bé m o Dia bo pode voa r à s c e ga s
sobr e um a m ultidã o, e nr e da ndo- se nos c a be los, e m ba r a lha ndo os
pe nsa m e ntos lógic os e pr ovoc a ndo histe r ia de m a ssa .

Nosso ódio a o m or c e go ultr a pa ssa toda lógic a . Assim ta m bé m nosso


m e do do Dia bo — e por m otivos se m e lha nte s. O m or c e go pa r e c e - nos
um a m onstr uosa a be r r a ç ã o da na tur e za — um r a to c om a sa s, a c hia r.
Assim c om o o Dia bo, sua s pa r te s dispa r a ta da s de sa f ia m a s le is
na tur a is. Te nde m os a ve r toda s e ssa s de f or m a ç õe s — o a ntã o, o
c or c unda , o be ze r r o de dua s c a be ç a s — c om o obr a s de a lgum a f or ç a
sinistr a e ir r a c iona l; e e ssa s c r ia tur a s c om o instr um e ntos de ssa f or ç a .
Um m iste r ioso ta le nto c om pa r tilha do pe lo m or c e go e pe lo Dia bo é a
c a pa c ida de de vôo c e go no e sc ur o, I ntuitiva m e nte , te m os m e do de ssa
m a gia ne gr a .

Os c ie ntista s de sc obr ir a m um a m a ne ir a de se pr ote ge r c ontr a os


há bitos pe r igosos e a sque r osos do m or c e go pa r a pode r e m e ntr a r na
c a ve r na de sse s a nim a is e e xa m ina r se us ha bita nte s de um m odo m a is
r a c iona l. Com o r e sulta do, a f or m a pe c ulia r e o c om por ta m e nto
r e pulsivo do m or c e go pa r e c e m a gor a m e nos a ssusta dor e s. De sc obr iu-
se que a té m e sm o o se u m iste r ioso siste m a de r a da r f unc iona de
a c or do c om le is que pode m os c om pr e e nde r. A te c nologia m ode r na
de c odif ic ou a m a gia ne gr a do m or c e go pa r a c r ia r um a pa r e lho
se m e lha nte que pe r m ite , ta m bé m a o hom e m , o vôo c e go.

Ta lve z, c om um tipo se m e lha nte de e xa m e obj e tivo do Dia bo,


pudé sse m os a pr e nde r a nos pr ote ge r c ontr a e le ; e , de sc obr indo de ntr o
de nós m e sm os um a pr ope nsã o à m a gia ne gr a sa tâ nic a , pudé sse m os
a pr e nde r a dom ina r e sse s m e dos ir r a c iona is que pa r a lisa m a vonta de
e tor na m im possíve l e nf r e nta r o Dia bo. Ta lve z na luz te r r íve l de
Hir oshim a , c om se u r e sulta do de hum a nida de r e tor c ida e dila c e r a da ,
pudé sse m os, de pois de ta nto te m po, ve r a f or m a m onstr uosa da nossa
pr ópr ia som br a de m onía c a .

A c a da gue r r a que se suc e de tom a - se m a is e vide nte que nós e o Dia bo


te m os m uita s c a r a c te r ístic a s e m c om um . Alguns dize m que a f unç ã o
da gue r r a é e xa ta m e nte r e ve la r a o hom e m sua e nor m e c a pa c ida de
pa r a o m a l, de um m odo tã o ine sque c íve l que c a da um de nós a c a ba r á
por r e c onhe c e r sua pr ópr ia som br a e sc ur a e luta r c ontr a a s f or ç a s
inc onsc ie nte s de sua na tur e za inte r ior, Ala n Mc Gla sha n vê a gue r r a
e spe c if ic a m e nte c om o "a puniç ã o à de sc r e nç a do hom e m ne ssa s
f or ç a s de ntr o de le m e sm o".1

P a r a doxa lm e nte , à m e dida que a vida c onsc ie nte do hom e m se tor na


m a is "c iviliza da ", sua na tur e za pa ga e a nim a l, c om o se r e ve la na
gue r r a , tor na - se c a da ve z m a is im pla c á ve l. Com e nta ndo isso, Jung diz:

As f or ç a s instintiva s r e pr e sa da s no hom e m c iviliza do sã o


im e nsa m e nte m a is de str utiva s e , por ta nto, m a is pe r igosa s, que os
instintos do hom e m pr im itivo, o qua l, num gr a u m a is m ode r no, e stá
c onsta nte m e nte vive ndo instintos ne ga tivos. Conse que nte m e nte ,
ne nhum a gue r r a do pa ssa do histór ic o pode r iva liza r c om um a gue r r a
e ntr e na ç õe s c iviliza da s, e m sua c olossa l e sc a la de hor r or.2

Jung c ontinua , dize ndo que a im a ge m c lá ssic a do Dia bo c om o m e io-


hom e m , m e io- be sta , "de sc r e ve c om e xa tidã o o la do gr ote sc o e
sinistr o do inc onsc ie nte , pois nunc a r e a lm e nte c he ga m os a luta r
c ontr a e le e , e m c onse quê nc ia , e le pe r m a ne c e u no se u e sta do
se lva ge m or igina l".3

Se e xa m ina m os e sse "hom e m be stia l", a ssim c om o e le é m ostr a do no


Ta r ô, pode m os ve r que ne nhum c om pone nte individua l é , e m si,
dom ina nte . O que o tor na tã o r e pulsivo é o c onglom e r a do se m se ntido
de sua s vá r ia s pa r te s. Essa m onta ge m ir r a c iona l a m e a ç a a pr ópr ia
or de m da s c oisa s, sola pa ndo o e sque m a c ósm ic o sobr e o qua l se
a poia m toda s a s f or m a s de vida . Enf r e nta r e ssa som br a signif ic a r ia
e nf r e nta r o m e do de que nã o a pe na s nós, se r e s hum a nos, m a s ta m bé m
a pr ópr ia Na tur e za te nha e nlouque c ido.

Ma s e ssa e str a nha be sta que vive de ntr o de nós, que pr oj e ta m os sobr e
a f igur a do Dia bo, a f ina l de c onta s, é Lúc if e r, o Anj o da Luz. Ele é
um a nj o — e m bor a um a nj o c a ído — e , c om o ta l, um m e nsa ge ir o de
De us. E pr e c iso que tr a ve m os c onhe c im e nto c om e le .

34. Fundamentalismo Nova Era

JOHN B AB B S
Onte m à noite , c om o te nho f e ito ta nta s e ta nta s ve ze s, f ui a um a
de ssa s m a r a vilhosa s r e uniõe s Nova Er a . E a c ho que nã o a gue nto m a is.
Enj oe i. P r e c iso e sc a pa r da tor tur a de se r m or ta lm e nte a be nç oa do e m
noite s c om o e ssa s. Existe a li a lgum a c oisa a ssusta dor a m e nte ir r e a l
que e u nã o c onsigo ide ntif ic a r dir e ito. Só se i que , de pois, e u que r o
m e sm o é gr ita r um pa la vr ã o sonor o, ir a o bote c o m a is sór dido, be be r
c e r ve j a no ga rga lo e c a ç a r um a de sa j usta da qua lque r.

Na r e uniã o de onte m , um be lo r a pa z f a lou de sua s via ge ns pe lo m undo


visita ndo loc a is sa gr a dos de c ulto — qua tr oc e ntos de le s, a o todo. Ele
j á de u a volta a o m undo 14 ve ze s e m se us 34 a nos de vida , vive ndo
e m m uitos de sse s luga r e s por m e se s, à s ve ze s a nos a f io.

Ele te m um a visã o, sim . Um a visã o de um m undo m a is e m pa z. Um


m undo sa udá ve l e lim po, que nos suste nta a c a da um de nós c om um
tr a ba lho signif ic a tivo, a ssim c om o nós suste nta m os o m undo e uns a os
outr os.

Ele de sc r e ve u c om o e sse s loc a is tê m sido utiliza dos de sde qua tr o ou


c inc o m il a nos a nte s de Cr isto por a ntigos pa gã os e a dor a dor e s da
de usa ; c om o tê m sido utiliza dos c om o c a m pos de pouso inte r e ste la r
por visita nte s da s m a is dista nte s ga lá xia s e c om o c olônia s de a ntiga s
c iviliza ç õe s m uito m a is a va nç a da s que a nossa .

Ele ta m bé m pr of e tizou a c a tá str of e f ina l, de sc r e ve ndo um f utur o


c he io de hor r or, por que pe r m itim os que o he m isf é r io dir e ito do
c é r e br o se a tr of ia sse , r e sulta ndo na pe r da de c one xã o c om e sse s
a ntigos pontos de e ne rgia . Ele de sc r e ve u c om o a s r e ligiõe s pa tr ia r c a is
do m undo se a pr opr ia r a m de sse s loc a is pa r a uso pr ópr io e , a o f a zê - lo,
de str uír a m a s a ntiga s sa be dor ia s e ve r da de s que e sse s loc a is um dia
c ontive r a m .

Ac ho que j á f ui a m a is de c e m de ssa s m a r a vilhosa s r e uniõe s. P e ssoa s


linda s. Sua ve s. Ge ntis. Espir itua is. Visioná r ia s. Fa sc ina nte s. Ma s por
ba ixo de toda e ssa be le za e spr e ita um a e sc ur idã o m a l e m a l ve la da
por be a tíf ic os c ha võe s de doç ur a . De i a e ssa be sta o nom e de
Funda m e nta lism o Nova Er a : a c r e nç a de que e u e stou c e r to, e nqua nto
todo m undo e stá e r r a do, e stúpido ou m a u; a c r e nç a de que e u
r e pr e se nto a e ne rgia da luz e da bonda de , e nqua nto todo m undo é
e nga na do pe la e ne rgia do m a l.
Essa c r e nç a nunc a é de c la r a da . Ela é ve la da m a s, a inda a ssim , a li
e stá . Nunc a pe nse i que e u a inda vir ia a f a la r be m de Je r r y Fa lwe ll
m a s, c om Je r r y , pe lo m e nos voc ê sa be e m que pé e le e stá , voc ê sa be
qua is sã o a s opiniõe s de le . Consigo lida r c om isso. Ele , pe lo m e nos,
te m a c or a ge m de a f ir m a r sua s c r e nç a s. O que é tã o e nlouque c e dor
no Funda m e nta lism o Nova Er a é que se us j ulga m e ntos e m or a liza ç õe s
e stã o e sc ondidos por tr á s da f a c ha da da doutr ina Nova Er a , por tr á s
da c or tina de f um a ç a do "a m a m os a todos" e "som os Um ".

Esse r a pa z a c ha va que a s histór ia s pa gã s, gr e ga s e r om a na s e os m itos


da de usa que de sc r e via m e sse gr a nde m isté r io da vida e r a m
"ve r da de ", a o pa sso que a s histór ia s c r istã s, m uç ulm a na s e j uda ic a s
e r a m m e ntir a s e distor ç õe s da ve r da de "r e a l". E m a is, de sde que
de se nvolve u a s f unç õe s do se u he m isf é r io c e r e br a l dir e ito, e le
c onse guiu "ve r if ic a r " que e sse s loc a is e r a m utiliza dos c om o c a m pos
de pouso e xtr a te r r e str e e c om o c olônia s da s tr ibos pe r dida s da
Atlâ ntida , Le m úr ia e Mu. Com o é que e le c onse guiu? Ah, e le sa be que
é ve r da de por que c a na lizou, é por isso. E f im de pa po.

Dê - m e um te m po... P or f a vor ( nunc a pe nse i que a inda m e ouvir ia


dize ndo isso) : Dê - me alguns fatos! Existe a lgum a sim ple s ve r if ic a ç ã o
m a te r ia l pa r a a s f a nta sm a gór ic a s a f ir m a tiva s que f a ze m os?

182

E por que e sta m os tã o obse ssiva m e nte pr e oc upa dos c om o pa ssa do e


c om o f utur o? Que dif e r e nç a f a z o que a c onte c e u há 5.000 a nos? E
que im por ta a da ta e xa ta e m que os I r m ã os do Espa ç o vã o c he ga r
pa r a nos sa lva r da nossa louc ur a ? Nã o se r ã o e ssa s pr e oc upa ç õe s toda s
sim ple sm e nte m a is um j e ito de e vita r a quilo que e stá dia nte de nós
a qui e a gor a , de e vita r a quilo que f om os c ha m a dos a f a ze r pa r a
lim pa r a s nossa s vida s e a livia r o sof r im e nto que ve m os dia nte de nós?

Se a Nova Er a pr e te nde c om e ç a r a of e r e c e r a lgo substa nc ia l pa r a


r e or de na r a vida na Te r r a , nós, P e te r P a ns, te m os que a te r r issa r na
te r r a f ir m e e c om e ç a r o dur o tr a ba lho de tr a nsf or m a ç ã o — pr im e ir o
na nossa pr ópr ia vida e de pois no m undo dia nte de nós a qui e a gor a ,
nã o e m a lgum pa ssa do dista nte ou e m a lgum inc e r to f utur o.
P a r a f r a se a ndo o sá bio budista : "Que r e s m uda r o m undo? Entã o gua r da
a tua mountain bik e , a r r um a um e m pr e go e c om e ç a a va r r e r a
c a lç a da dia nte da tua por ta ,"

A SOM B RA NA TRADIÇÃO ZEN


Na re fe iç ão ritual, pe gam- se alguns grãos do arroz de Buda e c oloc am-
se na ponta da e spátula para ofe re c e r a todos os e spíritos do mal para
sua satisfaç ão. Os se rv idore s aprox imam- se e tomam os pouc os grãos
da e spátula, ofe re c e ndo- os a uma planta ou animal, de v olv e ndo- os
assim ao c ic lo da v ida. Esse é um c aminho para, c onsc ie nte me nte ,
re c onhe c e r os maus e spíritos ou a sombra, alime ntá- los c om a me lhor
c omida e , ainda assim, não alime ntá- los de mais.

M ais tarde ne sse dia, se algué m c ruza c om um mau e spírito, pode


dize r- lhe : "J á te alime nte i, Não pre c iso te alime ntar nov ame nte ."

Na tradiç ão budista, ac re dita- se que e x iste um re ino de fantasmas


famintos c om um ime nso ape tite e uma garganta e stre ita c omo um
burac o de agulha. Por isso e le s nunc a e stão satisfe itos, c omo a sombra
c om se u v oraz ape tite . Alime ntando- a c om porç õe s pe que nas e
re gulare s, a sombra não pre c isa assumir uma atitude de v oradora.

Sabe mos que não pode mos e liminar o re ino dos fantasmas famintos;
e le s e x iste m, por isso pre c isamos c uidar de le s. E e ntão o e fe ito de se us
que ix ume s se rá me nor. O me smo oc orre c om a sombra.

De a c or do c om a na r r a ç ã o de P e te r Le a vitt 183

Par t e 7

Diabos, demônios e bodes expiatórios: uma psicologia do mal

A te ia da vida é um e m a r a nha do c onf uso de be m e m a l: nossa s


vir tude s se r ia m orgulho, se nossos e r r os nã o a s f ustiga sse m ; nossos
c r im e s se r ia m de se spe r o, se nã o f osse m a lim e nta dos pe la s nossa s
vir tude s.

William Shak e spe are

Nã o há dúvida de que a sa úde m e nta l é ina de qua da e nqua nto doutr ina
f ilosóf ic a , pois os f a tos m a us que e la se r e c usa te r m ina nte m e nte a
e xplic a r sã o um a por ç ã o ge nuína da r e a lida de ; e ta lve z e le s se j a m ,
a f ina l, a m e lhor c ha ve pa r a e nte nde r m os o se ntido da vida e os únic os
que pode r ia m a br ir nossos olhos pa r a os níve is m a is pr of undos da
ve r da de .

William J ame s

A tr iste ve r da de é que a vida hum a na c onsiste num c om ple xo de


opostos inse pa r á ve is — dia e noite , na sc im e nto e m or te , f e lic ida de e
m isé r ia , be m e m a l. Ne m se que r e sta m os c e r tos de que um
pr e va le c e r á sobr e o outr o, de que o be m supe r a r á o m a l ou a a le gr ia
de r r ota r á a dor. A vida é um c a m po de ba ta lha . Ela se m pr e f oi e
se m pr e se r á um c a m po de ba ta lha . E, se a ssim nã o f osse , a e xistê nc ia
c he ga r ia a o f im .

C. G. J ung

Introdução

Enqua nto a som br a pe ssoa l é um de se nvolvim e nto inte ir a m e nte


subj e tivo, a e xpe r iê nc ia da som br a c ole tiva é um a r e a lida de obj e tiva
a que , de m odo ge r a l, da m os o nom e de "m a l". Ao c ontr á r io da
som br a pe ssoa l, que e m ite sina is positivos qua ndo e nvolvida pe lo
e sf or ç o m or a l, a som br a c ole tiva nã o é toc a da por e sf or ç os r a c iona is
e de ixa - nos, por ta nto, c om um a se nsa ç ã o de c om ple ta e a bsoluta
im potê nc ia . Algum a s pe ssoa s e nc ontr a m r e f úgio c ontr a e sse
de se spe r o na f é e na obe diê nc ia a os siste m a s de va lor e s a bsolutos de
r e ligiõe s e ide ologia s, que histor ic a m e nte tê m of e r e c ido pr ote ç ã o
psic ológic a c ontr a a s a m e a ç a s do m a l que inf e sta m o m undo. Na
m e dida e m que e sse s va lor e s instituc iona liza dos vê m e m a poio a os
nossos pr ópr ios va lor e s, é possíve l que nos sinta m os pr ote gidos c ontr a
os e f e itos ne ga tivos do m a l.

O m a l e os pr oble m a s de le de c or r e nte s tê m se c onstituído e m


pr e oc upa ç õe s e spir itua is e inte le c tua is do se r hum a no de sde te m pos
im e m or ia is. O Ze itge ist — o e spír ito da é poc a — de c a da ge r a ç ã o
m a tiza a s pe r c e pç õe s da quilo que é bom e da quilo que é m a u. Entr e
os povos pr im itivos, c uj a s vida s pe r m a ne c e m pr a tic a m e nte im utá ve is
de sde a I da de da P e dr a , o m a l se m pr e f oi a ssoc ia do à e sc ur idã o e à
noite . Dur a nte o dia , o m a l ine xiste ; m a s qua ndo o sol de sa pa r e c e , o
m a l r onda a m e a ç a dor a m e nte na s som br a s. A vida c otidia na dos povos
pr im itivos é pe r m e a da por c r e nç a s supe r stic iosa s a ssoc ia da s c om a
ide ia , lite r a l e sim bólic a , da som br a .

No se u c lá ssic o e nsa io The Double [ O Duplo] , Otto Ra nk pa ssou e m


r e vista a lguns dos m odos pe los qua is a som br a lite r a l que la nç a m os é
sim bolic a m e nte inte r na liza da c om o um a e xpr e ssã o viva do
e nvolvim e nto da a lm a c om o be m e o m a l. Ele e xa m inou a m a ne ir a
c om o os povos pr im itivos r itua liza m e r e gula m se us r e la c iona m e ntos
c om a som br a a tr a vé s de c ostum e s e ta bus.

No a ntigo Egito, o m a l e r a diviniza do c om o o de us Se t, ir m ã o e sc ur o


de Osír is. Se t pe r sonif ic a va o á r ido de se r to e gípc io, f onte de se c a e
f la ge los pa r a a c ultur a hum a na que f lor e sc ia na f é r til pla níc ie do
Nilo. Na m itologia pe r sa , a vida e r a sim boliza da c om o um a ba ta lha
tr a va da e ntr e f or ç a s oposta s: Ahur a - Ma zda e r a a f or ç a da vida ,
por ta dor da luz e da ve r da de , e nqua nto Ahr im a n r e pr e se nta va a f or ç a
do m a l c ole tivo, o se nhor da s tr e va s, da ilusã o, da doe nç a e da m or te .

P or todo o subc ontine nte india no, a tr a dic iona l c ultur a hindu vê o m a l
tr a nspe ssoa l c om o pa r te da e xpr e ssã o c a m bia nte de um a únic a
substâ nc ia divina ou e ne rgia vita l. De a c or do c om He inr ic h Zim m e r,
e studioso do hinduísm o, o m a l é pa r te inte gr a nte do c ic lo ká r m ic o de
c a usa e e f e ito. Os hindus a c r e dita m que nos tor na m os m e r e c e dor e s da
f e lic ida de ou do sof r im e nto e m f unç ã o dos nossos a tos individua is e
da inte nç ã o que e stá por tr á s de sse s a tos. "Em inf indá ve is c ic los, o
be m e o m a l se a lte r na m ", diz um a le nda hindu. "P or isso o sá bio nã o
se a pe ga a o m a l ne m a o be m . O sá bio a na da se a pe ga ."

As noç õe s oc ide nta is sobr e o m a l pode m se r vista s c la r a m e nte na s


pa r á bola s da s e sc r itur a s j uda ic a s e c r istã s e na m itologia gr e ga . Nossa
c ultur a e stá im pr e gna da c om a s im a ge ns dr a m á tic a s do Antigo
Te sta m e nto, a s histór ia s de um povo guia do pe la c onsc iê nc ia e pe lo
diá logo íntim o c om o Cr ia dor, As pa r á bola s de Je sus e a histór ia do
a nj o do m a l, Sa tã , of e r e c e m - nos os sím bolos f unda m e nta is pa r a
c om pr e e nde r m os o m a l hum a no.

A m itologia gr e ga a tr ibui o m a l c ole tivo a os de use s do se u pa nte ã o. Os


gr a nde s e pe que nos de use s do Olim po m ostr a m um a a ssom br osa
e quiva lê nc ia psic ológic a c om o nosso m undo de a r r ogâ nc ia e som br a .
Todos os de use s gr e gos sã o se r e s f a líve is, c a pa ze s ta nto do be m
qua nto do m a l. Ele s sã o f or ç a s a r que típic a s — f e nôm e nos r e a is e
pa lpá ve is que e xiste m invisive lm e nte e ntr e a s pe ssoa s, e m bor a a lé m
da r e la ç ã o hum a na de c a usa e e f e ito. Ne ssa s gr a nde s histór ia s, o m a l
obj e tivo é um a f or ç a pr e e xiste nte c om a qua l os m or ta is pr e c isa m
a j usta r c onta s.

De a c or do c om a m itologia gr e ga , o m a l c he gou a nós a tr a vé s da


c ur iosida de de P a ndor a , A histór ia de sua or ige m m e r e c e se r
r e c onta da :

O gr a nde Ze us, pode r oso se nhor do Olim po e gove r na nte de todos os


outr os de use s, e nf ur e c ido c om o r oubo do f ogo divino, a ssim f a lou a
P r om e te u: "És m a is sá bio que todos nós, a le gr a s- te por te r e s r ouba do
o f ogo e m e e nga na do. I sso tr a r á da nos, a ti e a os hom e ns a inda por
vir. P ois e le s r e c e be r ã o de m im , e m r e ta lia ç ã o pe lo r oubo do f ogo,
um a c oisa m á c om a qua l se r e j ubila r ã o, c e r c a ndo de a m or o se u
pr ópr io sof r im e nto."

P or or de m de Ze us, o de us f e r r e ir o He f e stos m ode lou c om a rgila um a


inoc e nte donze la à im a ge m da be la Af r odite , de usa do a m or. Essa
f igur a f e m inina , que é a a nc e str a l de toda s a s m ulhe r e s m or ta is, f oi
c ha m a da P a ndor a ( "r ic a e m dons") . Foi a dor na da c om os e nc a ntos de
Ate na e r e c e be u qua lida de s divina s. Todos os de use s e de usa s
pa r tic ipa r a m de sua c r ia ç ã o, ta l e r a a ir a dos olím pic os dia nte da
tr a iç ã o de P r om e te u. O pr ópr io Ze us dotou P a ndor a de um a
c ur iosida de insa c iá ve l e de u- lhe um a c a ixa de a rgila c om o a viso de
nunc a a br i- la .

P r om e te u, o de sa f ia dor dos de use s, sa bia que de le s nã o se de ve


a c e ita r pr e se nte s. Ha via a le r ta do se u ir m ã o Epim e te u sobr e o pe r igo
da s of e r e nda s dos de use s. Ma s qua ndo He r m e s, o m e nsa ge ir o dos
de use s, surgiu e lhe of e r e c e u P a ndor a , Epim e te u nã o r e sistiu à sua
be le za . E a ssim P a ndor a vive u e ntr e os m or ta is.

Nã o se pa ssou m uito te m po a té que P a ndor a f osse dom ina da pe la


c ur iosida de . Abr iu a c a ixa e de la a f luír a m todos os m a le s que lá
ha via m sido e nc e r r a dos. Até e ntã o, e sse s m a le s e r a m de sc onhe c idos
pe la hum a nida de . P a ndor a c onse guiu f e c ha r a ta m pa e m te m po de
im pe dir que a Espe r a nç a e sc a pa sse , m a s a Te r r a j á f e r vilha va de
tr iste s m a le s. Com e le s vie r a m a doe nç a e a m or te . Assim c om ple tou-
se a se pa r a ç ã o e ntr e os se r e s hum a nos e os de use s im or ta is.

Às ve ze s ve m os e sse s m a le s no m undo c om a ssusta dor a c la r e za ,


e m bor a outr a s ve ze s se j a m os inc a pa ze s de pe r c e bê - los. Com o
obse r vou o c la ssic ista Ca r l Ke r e ny i a r e spe ito de Epim e te u na histór ia
de P a ndor a , é a na tur e za hum a na que a c e ita a of e r e nda e só m a is
ta r de pe r c e be o m a l. A pe r c e pç ã o do m a l nos é im posta pe lo c onf lito
e xiste nte e ntr e a quilo que e spe r a m os que a vida se j a e a quilo que e la
r e a lm e nte é . Que r e m os se r otim ista s e m r e la ç ã o a o nosso m undo e
ve r a be le za ; c usta - nos, e m uito, ignor a r a m e m ór ia histór ic a do m a l.
Essa disc r e pâ nc ia pode f a c ilm e nte obsc ur e c e r a r e a lida de do m a l. A
inge nuida de ta lve z e xplique a s a bom ina ç õe s que sã o c om e tida s e ntr e
os hom e ns, e m nom e de um a boa c a usa .

A som br a c ole tiva pode tom a r a f or m a de f e nôm e nos de m a ssa , nos


qua is na ç õe s inte ir a s sã o possuída s pe la f or ç a a r que típic a do m a l. I sso
pode se r e xplic a do pe lo pr oc e sso inc onsc ie nte c onhe c ido c om o
7
partic ipation my stique — P or e sse pr oc e sso, o indivíduo ( ou o gr upo)
vinc ula - se e ide ntif ic a - se psic ologic a m e nte c om um obj e to, pe ssoa ou
ide ia , tor na ndo- se inc a pa z de f a ze r um a distinç ã o m or a l e ntr e e le
m e sm o e sua pe r c e pç ã o do obj e to. No c a so da som br a c ole tiva , isso
pode signif ic a r que a s pe ssoa s se ide ntif ic a m c om um a ide ologia ou
c om um líde r que e xpr e ssa os m e dos e inf e r ior ida de s de toda a
soc ie da de . Com f r e quê nc ia e ssa ide ntif ic a ç ã o tom a a f or m a , a níve l
c ole tivo, de f a sc ina ç õe s f a ná tic a s, ta is c om o pe r se guiç ã o r e ligiosa ,
intole r â nc ia r a c ia l, siste m a s de c a sta s, busc a de bode s e xpia tór ios,
c a ç a à s br uxa s ou ódio ge noc ida . Qua ndo um a m inor ia c a r r e ga a
pr oj e ç ã o da quilo que um a soc ie da de r e j e ita , o pote nc ia l pa r a o m a l é
a tiva do. Exe m plos de sse f e nôm e no de m a ssa , na nossa é poc a ,
inc lue m os p o g ro m s c za r ista s na Rússia na vir a da do sé c ulo, a
pe r se guiç ã o na zista a os j ude us, c iga nos e hom osse xua is no holoc a usto
da Se gunda Gue r r a Mundia l, o a ntic om unism o e o m a c a r thism o nos
Esta dos Unidos nos a nos 50, e o siste m a c onstituc iona l do aparthe id na
Áf r ic a do Sul. Nosso sé c ulo te ste m unhou e ssa s psic ose s de m a ssa
pa ssa da s a o a to e m c r ue lda de s que a lc a nç a r a m pr opor ç õe s nunc a
a nte s im a gina da s.

O m a l c ole tivo de sa f ia a c om pr e e nsã o. Essa s f or ç a s e rgue m - se da


m e nte inc onsc ie nte de um núm e r o im e nso de pe ssoa s. Qua ndo
oc or r e m e ssa s e pide m ia s m e nta is, ge r a lm e nte som os im pote nte s pa r a
c om ba te r os f la ge los que a s a c om pa nha m . As pouc a s pe ssoa s que nã o
se de ixa m a pr isiona r por um a partic ipation my stique pode m
f a c ilm e nte tor na r- se , e la s pr ópr ia s, sua s vítim a s. Ba sta le m br a r que o
povo a le m ã o ne ga va a e xistê nc ia dos c a m pos de e xte r m ínio na zista s,
a c e gue ir a do m undo todo dia nte do r e gim e ge noc ida do Khm e r
Ve r m e lho no Ca m boj a ou a ne gligê nc ia globa l dia nte da situa ç ã o
c r ític a do Tibe te na s m ã os dos im pla c á ve is c om unista s c hine se s.

Esse s e f e itos c ole tivos ge r a lm e nte sã o pe r sonif ic a dos por um líde r


polític o — Na pole ã o, Sta lin, Hitle r, P ol P ot ou Sa dda m Husse in, por
e xe m plo — que e ntã o pa ssa m a c a r r e ga r a s pr oj e ç õe s c ole tiva s que
ha via m sido r e pr im ida s na c ultur a c om o um todo, "Nã o a pe na s a
som br a c ole tiva e stá viva ne sse s líde r e s", diz Lilia ne Fr e y Rohn, m a s
"e le s pr ópr ios r e pr e se nta m a som br a c ole tiva , o a dve r sá r io e o m a l."

Em dé c a da s r e c e nte s houve a lguns e xe m plos c or a j osos de te nta tiva s


hum a na s pa r a ne utr a liza r o m a l: o m ode r no sa nto india no Moha nda s
Ga ndhi r e sta ur ou c om suc e sso a dignida de e a inde pe ndê nc ia da índia
a tr a vé s da nã o- violê nc ia , o que ge r ou um m ovim e nto que
vir tua lm e nte libe r tou a s na ç õe s do Te r c e ir o Mundo da c oloniza ç ã o
im pe r ia lista . Ma r tin Luthe r King e o m ovim e nto pe los dir e itos c ivis
nos Esta dos Unidos f ize r a m a va nç a r a c a usa da igua lda de r a c ia l e
c ontinua m a inspir a r povos e na ç õe s a e nf r e nta r a s f or ç a s r e pr e ssiva s
do m a l. As sa nç õe s m undia is hoj e im posta s c ontr a o aparthe id da
Áf r ic a do Sul sã o um r e sulta do dir e to de ssa s c onquista s. Os
m ovim e ntos pe los dir e itos da s m ulhe r e s, da s c r ia nç a s, dos de f ic ie nte s
e dos idosos de sa f ia m a be r ta m e nte a s f or ç a s do m a l inc onsc ie nte na
vida a m e r ic a na . Na Uniã o Sovié tic a , ve m os hoj e um a ssom br oso
e sf or ç o, f e ito por toda a na ç ã o, pa r a se de sve nc ilha r dos gr ilhõe s de
um a ide ologia de str utiva . Te m sido a nim a dor te ste m unha r o r e púdio
dos sovié tic os à s f or ç a s e sc ur a s que gove r na r a m se u siste m a polític o
por m e io sé c ulo.

P a r a e vita r que o de sc uido nos f a ç a r e sva la r pa r a um a ingê nua


inc onsc iê nc ia , pr e c isa m os c onsta nte m e nte de nova s m a ne ir a s de
pe nsa r o m a l. P a r a a m a ior ia da s pe ssoa s, o m a l c ontinua a se r um
tigr e a dor m e c ido, lá f or a , num c a nto e sc ur o da vida . De te m pos e m
te m pos, e le de spe r ta , r uge a m e a ç a dor e — se ne nhum a c oisa te r r íve l
a c onte c e — volta a a dor m e c e r, e m ba la do pe la nossa ne c e ssida de de
ne ga r sua pe r igosa pr e se nç a .

A ne ga ç ã o do m a l é um c om por ta m e nto a pr e ndido. Re pr e se nta o


m á xim o de r e a lida de que pode m os supor ta r. De sde o c om e ç o da vida ,
c a da um de nós te m e xpe r im e nta do o m a l, dir e ta ou indir e ta m e nte ,
a tr a vé s do c om por ta m e nto ine xplic á ve l dos outr os e da s im a ge ns
im pe ssoa is da te le visã o, dos notic iá r ios, do c ine m a , da s histór ia s e
c ontos de f a da . Essa e xposiç ã o e xige que nossa s j ove ns m e nte s
de se nvolva m a lgum a e xplic a ç ã o pa r a a r e a lida de obj e tiva do m a l e
sua a m e a ç a de im ine nte a niquila ç ã o.

Alguns f or a m obr iga dos a pa ssa r por e ssa s e xpe r iê nc ia s sozinhos, se m


o be ne f íc io ou o c onf or to de um a a j uda . As e xpr e ssõe s inf a ntis da
som br a e do m a l ( c om o o bic ho- pa pã o, por e xe m plo) a f a sta m o
pr e sse ntim e nto de pe r igo im e dia to por é m , m a is ta r de , nos de ixa m m a l
a da pta dos pa r a a vida e pr oduze m sintom a s que va r ia m de m e do do
e sc ur o a r e a ç õe s m ór bida s. Existe m pe ssoa s — vítim a s de a buso
inf a ntil, gue r r a e outr os c r im e s — que f or a m pr e m a tur a e
tr a gic a m e nte e xposta s a os a bism os do m a l se m se ntido e j a m a is se
r e c obr a r a m de ssa s e xpe r iê nc ia s. Outr a s sof r e r a m um a doutr ina ç ã o
r e ligiosa e xtr e m a m e nte dogm á tic a qua nto a o m a l no m undo; vive m
c om os e ste r e ótipos de f ogo e e nxof r e , de inf e r no e da na ç ã o, ou c om
um a noç ã o supe r stic iosa sobr e o be m e o m a l.

P a r a o r e sto de nós, a ide ia do m a l e stá se m pr e suj e ita a os pr oc e ssos


de e vita r e de ne ga r, nossos gr a nde s m e c a nism os pa r a lida r c om e ste
a ssunto. Ne ga r que o m a l é um a a f liç ã o pe r m a ne nte da hum a nida de
ta lve z se j a o m a is pe r igoso m odo de pe nsa r. Em Esc ape from Ev il
[ Fugindo do Ma l] , Er ne st Be c ke r suge r e que f oi o nosso sonho
im possíve l de ne ga r o m a ior de todos os m a le s — a m or te — que
a c um ulou o m a l sobr e o m undo: "Com sua luta pa r a e vita r o m a l, o
hom e m tr ouxe m a is m a l a o m undo do que um orga nism o j a m a is
pode r ia f a ze r c om sua s f unç õe s na tur a is. Foi a e nge nhosida de do
hom e m , e nã o a sua na tur e za a nim a l, que tr ouxe a se us se m e lha nte s
e ste a m a rgo de stino te r r e no."

Ne m todos c onc or da m c om a ide ia de que o m a l é um e le m e nto


pe r m a ne nte da c ondiç ã o hum a na . De sde Sa nto Agostinho e xiste a
ide ia de que o m a l na da m a is é que a a usê nc ia do be m — ide ia
c onhe c ida c om o a doutr ina da priv ado bom. Essa ide ia suge r e que o
m a l pode r ia se r e r r a dic a do por boa s a ç õe s. Em A i o n [ Aion] , Jung
c r itic ou e sse pe nsa m e nto, dize ndo: Há um a te ndê nc ia , que e xiste
de sde o pr inc ípio, de da r pr ior ida de a o "be m " e de f a zê - lo c om todos
os m e ios ã nossa disposiç ã o, se j a m e le s a de qua dos ou ina de qua dos... a
te ndê nc ia a se m pr e a um e nta r o bom e dim inuir o m a u. A priv atio boni
ta lve z se j a um a ve r da de m e ta f ísic a . Nã o te nho a m e nor pr e te nsã o de
j ulga r e sse a ssunto. I nsisto a pe na s e m a f ir m a r que , no nosso c a m po
de e xpe r iê nc ia , br a nc o e pr e to, c la r o e e sc ur o, bom e m a u, sã o
opostos e quiva le nte s que se m pr e im plic a m um o outr o.

Num livr o r e c e nte , Banishe d Knowle dge [ O Conhe c im e nto Ba nido] , a


pr olíf ic a e sc r itor a e psic a na lista Alic e Mille r r e tom a a noç ã o
c ontr ove r tida da priv atio boni a o a f ir m a r que a som br a c ole tiva nã o
e xiste e que e ssa s ide ia s sã o, e m si, um a ne ga ç ã o do m a l: A doutrina
junguiana da sombra e a noção de que o mal é o reverso do bem, destinam-se a
negar a realidade do mal. Mas o mal é real, Ele não é inato e, sim, adquirido, e
nunca é o reverso do bem, mas o seu destruidor... Não é verdade que o mal, a
destrutividade e a perversão inevitavelmente fazem parte da existência humana,
não importa o quanto essa ideia é defendida. Mas é verdade que o mal está
sempre envolvido em produzir mais mal e, com ele, um oceano de sofrimento
para milhões de pessoas que poderia ser evitado. Quando a ignorância que surge
da repressão na infância for eliminada e a humanidade despertar, poderemos pôr
um fim à produção de mal.

A hipóte se de tr a ba lho de Ao Enc ontro da Sombra, no e nta nto, é que o


m a l é um e le m e nto pe r m a ne nte da vida , inse pa r á ve l m e nte
e ntr e m e a do c om o la do m e lhor da hum a nida de . Re j e ita r o le ga do de
P a ndor a e xigir ia que de spe j á sse m os o e nxa m e de m a le s de volta na
c a ixa . I sso pa r e c e de todo im possíve l. Em te r m os histór ic os, um a
gr a nde de sgr a ç a r e sultou qua ndo o se r hum a no, involunta r ia m e nte , se
de ixou c e ga r a ple na r e a lida de do m a l c pr ovoc ou m isé r ia s m uito
pior e s do que o m a l que busc a va e r r a dic a r. Ba sta pe nsa r m os na s
Cr uza da s c ontr a os inf ié is dur a nte a I da de Mé dia , ou na Gue r r a do
Vie tnã nos nossos te m pos.

Se r e a lm e nte quise r m os e nf r e nta r o de sa f io do m a l no m undo, c a da


um de nós pr e c isa a ssum ir sua r e sponsa bilida de e m te r m os
individua is. "P r e c isa m os a dm itir e a c e ita r c om o pa r te de nós m e sm os
o m a l e a im undíc ie que pe r te nc e m a c a da um de nós, por se r m os
hum a nos e de se nvolve r m os um e go", diz o a na lista j unguia no Edwa r d
C. W hitm ont. "P r e c isa m os r e c onhe c e r a obj e tivida de a r que típic a do
m a l c om o um a spe c to te r r íve l dota do de f or ç a sa gr a da , que inc lui a
de str uiç ã o e o a podr e c im e nto, e nã o só o c r e sc im e nto e a m a tur a ç ã o.
Entã o pode r e m os nos r e la c iona r c om nossos se m e lha nte s c om o
vítim a s, ta nto qua nto nós, e nã o c om o nossos bode s e xpia tór ios."

Nã o e xiste m doutr ina s inf a líve is; a s te nta tiva s m a is hone sta s pa r a
c he ga r à ve r da de sobr e o m a l e m nossa vida pode m a pe na s pr oduzir
um a pr om e ssa de m a ior c onsc iê nc ia . Ca da ge r a ç ã o te m se u pr ópr io
e nc ontr o c om o e spe c tr o, c a da ve z m a is a ssusta dor, do m a l. Nossos
f ilhos, na sc idos num a é poc a de dogm a s sim plista s e de um pote nc ia l
se m pr e c e de nte s pa r a a de str utivida de hum a na , e xige m e m e r e c e m os
be ne f íc ios de um c onhe c im e nto e quilibr a do e e sc la r e c ido sobr e o
m a l.

A P a r te 7 te nta orga niza r e c om pa r a r a lgum a s ide ia s notá ve is sobr e a


que stã o do m a l do ponto de vista psic ológic o. Existe m m uita s
psic ologia s do m a l; e ste s e nsa ios sã o r e im pr e ssos c om a inte nç ã o de
pr ovoc a r a s pr ópr ia s ide ia s inc om ple ta s do le itor sobr e o m a l.

O Ca pítulo 35, e xtr a ído da a utobiogr a f ia de C. G. Jung, M e morie s,


Dre ams, Re fle c tions [ Me m ór ia s, Sonhos e Re f le xõe s] , f oi e sc r ito no
f ina l de sua vida . Conté m os últim os pe nsa m e ntos de Jung sobr e o
de sa f io do m a l e sobr e a ne c e ssida de de psic ologia e de m a ior
a utoc onhe c im e nto individua l.

O se gundo e nsa io f oi e xtr a ído de Powe r and I nnoc e nc e [O P ode r e a


I noc ê nc ia ] , do psic ólogo Rollo Ma y , que a c r e dita que a inoc ê nc ia
( que e le c ha m a de "pse udoinoc ê nc ia ") pode a gir c om o um a de f e sa
inf a ntil c ontr a a pe r c e pç ã o c r uc ia l do m a l.

No Ca pítulo 37, e xtr a ído de Pe ople of the Lie [ Filhos da Me ntir a ] , o


psiquia tr a e c onhe c ido e sc r itor M. Sc ott P e c k de line ia um a psic ologia
do m a l que inc lui um a de f iniç ã o, de inf luê nc ia c r istã , da s
c a r a c te r ístic a s da s pe ssoa s m á s. "O e str a nho", diz P e c k, "é que a s
pe ssoa s m á s f r e que nte m e nte sã o pe r nic iosa s por que e stã o te nta ndo
de str uir o m a l. O pr oble m a é que e la s e r r a m o loc o do m a l. Em ve z
de de str uir os outr os, e la s de ve r ia m e sta r de str uindo e ssa doe nç a
de ntr o de la s m e sm a s."

Ste phe n A. Dia m ond r e vê dive r sa s psic ologia s do m a l, inc luindo um a


c om pa r a ç ã o c r ític a da s ide ia s a pr e se nta da s por Ma y e P e c k nos dois
c a pítulos pr e c e de nte s. Sua disc ussã o a c e r c a de de m ônios e do
da e m ônic o a c r e sc e nta pr of undida de a o nosso e nte ndim e nto sim plista
do m a l e r e pr e se nta um a va nç o r um o a um a pr ogr e ssiva psic ologia do
m a l.

O Ca pítulo 39, “ A dinâ m ic a bá sic a do m a l hum a no” 1 , r e pr e se nta o


tr a ba lho f ina l do f a le c ido Er ne st Be c ke r. Extr a ído de Esc ape from Ev il
[ Fugindo do Ma l] , e le c om pa r a a s ide ia s psic ológic a s de Otto Ra nk,
Fr e ud e Jung, e dá um a ê nf a se e spe c ia l a o tr a ba lho de Wilhe lm Re ic h.
Be c ke r diz que o be ne f íc io dur a dour o da psic a ná lise é a sua
c ontr ibuiç ã o a o e nte ndim e nto da dinâ m ic a da m isé r ia hum a na .

Em se u a r tigo, "O r e c onhe c im e nto da nossa c isã o inte r ior ", Andr e w
Ba r d Shm ookle r suge r e que só qua ndo inic ia m os a luta inte r ior c ontr a
o m a l é que se tor na possíve l f a ze r m os a s pa ze s c om a som br a . Sua s
obse r va ç õe s sobr e o e studo de Er ik Er ikson a r e spe ito do pr oble m a da
som br a do Ma ha tm a Ga ndhi a c r e sc e nta m um a im por ta nte dim e nsã o
a o diá logo de se nvolvido ne sta se ç ã o. O a r tigo de Sc hm ookle r f oi
e xtr a ído do se u livr o Out of We ak ne ss [ Da Fr a que za ] , Esses ensaios,
embora não sejam um estudo exaustivo da questão do mal, formam uma
provocante mesa-redonda de ideias que deixa espaço para a entrada dos nossos
próprios pensamentos. Puxe sua cadeira. O diálogo continua.

35. O pr oble ma do mal no nosso t e mpo

C. G . Jung
O m ito c r istã o pe r m a ne c e u vivo e ina lte r a do dur a nte um m ilê nio —
a té que os pr im e ir os indíc ios de um a tr a nsf or m a ç ã o da c onsc iê nc ia
c om e ç a r a m a surgir no sé c ulo XI .1 Da í e m dia nte , a um e nta r a m os
sintom a s de inquie ta ç ã o e dúvida a té que , ne ste f ina l do se gundo
m ilê nio, tor na - se e vide nte a im a ge m de um a c a tá str of e unive r sa l que
se inic ia sob a f or m a de um a a m e a ç a à c onsc iê nc ia . Essa a m e a ç a
c onsiste do giga ntism o — e m outr a s pa la vr a s, um a a r r ogâ nc ia da
c onsc iê nc ia — e xpr e sso na a f ir m a ç ã o: "Na da é m a ior que o hom e m e
se us f e itos." P e r de u- se a ide ia do a lé m , a tr a nsc e ndê nc ia do m ito
c r istã o, e c om e la a visã o da tota lida de a se r a lc a nç a da no outr o
m undo.

A luz f oi se guida pe la som br a , o outr o la do do Cr ia dor. Esse


de se nvolvim e nto a lc a nç ou se u a uge no sé c ulo XX. O m undo c r istã o
de f r onta - se a gor a c om o pr inc ípio do m a l, c om a inj ustiç a se m
disf a r c e s, c om a tir a nia , a m e ntir a , a e sc r a vidã o e a opr e ssã o da
c onsc iê nc ia . Sua pr im e ir a ir r upç ã o viole nta surgiu na Ale m a nha .
Aque la e xplosã o de m a l r e ve lou a té que ponto o c r istia nism o ha via
sido m ina do no sé c ulo XX. Dia nte disso, o m a l nã o podia m a is se r
m inim iza do pe lo e uf e m ism o da priv atio boni. O m a l tor nou- se um a
r e a lida de de te r m ina nte . De ixou de se r possíve l de se m ba r a ç a r- se de le
por um a c ir c unloc uç ã o. E a gor a pr e c isa m os a pr e nde r a c onvive r c om
e le , pois e le e stá a qui e a qui pe r m a ne c e r á . Ainda nã o c onse guim os
c onc e be r c om o vive r c om o m a l se m sof r e r te r r íve is c onse quê nc ia s.

De qua lque r m odo, pr e c isa m os de um a nova or ie nta ç ã o, de um a


m e lanoia. Toc a r o m a l a c a r r e ta o gr a ve pe r igo de suc um bir a e le .
P r e c isa m os, por ta nto, de ixa r de suc um bir a qua lque r c oisa , inc lusive
a o be m , Um "be m " a o qua l suc um bim os pe r de se u c a r á te r é tic o. Nã o
que e le c onte nha , e m si, qua lque r m a l, m a s por que suc um bir a e le
pode tr a ze r c onse quê nc ia s noc iva s. Qua lque r f or m a de víc io é noc iva ,
que r se tr a te de na r c ótic os, de á lc ool, de m or f ina ou de ide a lism o.
P r e c isa m os e vita r pe nsa r o be m e o m a l c om o opostos a bsolutos. O
c r ité r io da a ç ã o é tic a nã o pode m a is c onsistir num a sim ple s visã o de
que o be m te m a f or ç a de um im pe r a tivo c a te gór ic o, e nqua nto o
c ha m a do m a l pode se r r e soluta m e nte e vita do. O r e c onhe c im e nto da
r e a lida de do m a l ne c e ssa r ia m e nte tor na r e la tivo o be m — e ta m bé m
o m a l —, c onve r te ndo c a da um de le s na m e ta de de um todo
pa r a doxa l.

Em te r m os pr á tic os, isso que r dize r que o be m e o m a l de ixa r a m de


se r a bsolutos. P r e c isa m os pe r c e be r que be m e m a l r e pr e se nta m um
julgam e nto. Em vista da f a lsida de de todos os j ulga m e ntos hum a nos,
nã o pode m os a c r e dita r que se m pr e j ulga r e m os de m odo c or r e to.
P ode m os, c om m uita f a c ilida de , se r vítim a s de um j ulga m e nto
e quivoc a do. O pr oble m a é tic o só é a f e ta do por e sse pr inc ípio na
m e dida e m que nos se ntim os um ta nto inc e r tos qua nto à s a va lia ç õe s
m or a is. Contudo, pr e c isa m os tom a r de c isõe s é tic a s. A r e la tivida de do
"be m " e do "m a l" nã o signif ic a , de m odo a lgum , que e ssa s c a te gor ia s
se j a m nula s ou que nã o e xista m . O j ulga m e nto m or a l e stá se m pr e
pr e se nte e tr a z c onsigo c onse quê nc ia s psic ológic a s c a r a c te r ístic a s. Já
a f ir m e i dive r sa s ve ze s que , a ssim c om o no pa ssa do, ta m bé m no f utur o
o e r r o que c om e te m os, pe nsa m os ou inte nc iona m os, se vinga r á da
nossa a lm a . Ape na s os c onte údos do j ulga m e nto e stã o suj e itos à s
dif e r e nte s c ondiç õe s de te m po e e spa ç o e , por ta nto, a ssum e m f or m a s
dif e r e nte s. P ois a a va lia ç ã o m or a l é se m pr e ba se a da sobr e a s
a pa r e nte s c e r te za s de um c ódigo m or a l que pr e te nde c onhe c e r c om
e xa tidã o o que é bom e o que é m a u. Ma s, um a ve z que sa iba m os
c om o e ssa ba se é inc e r ta , a de c isã o é tic a tor na - se um a to de c r ia ç ã o
subj e tiva .

Na da pode r á poupa r- nos do tor m e nto da de c isã o é tic a . Contudo, por


m a is dur o que isso possa pa r e c e r, e m a lgum a s c ir c unstâ nc ia s
pr e c isa m os te r a libe r da de de e vita r a quilo que é visto c om o be m
m or a l e f a ze r a quilo que é c onside r a do m a l, se a nossa de c isã o é tic a
a ssim o e xigir. Em outr a s pa la vr a s: não pode mos suc umbir a ne nhum
dos opostos. Um pa dr ã o útil é of e r e c ido pe lo n e t i [ ne m isto, ne m
a quilo] da f ilosof ia hindu. Ne sse c onte xto, e e m c e r tos c a sos, o c ódigo
m or a l é ine vita ve lm e nte a bolido e a e sc olha é tic a é de ixa da a o
indivíduo. Em si, na da e xiste de novo ne ssa ide ia ; a s e sc olha s dif íc e is
j á e r a m c onhe c ida s nos te m pos pr é - psic ológic os, qua ndo e r a m
c ha m a da s "c onf lito de de ve r e s".
Ma s e m ge r a l o indivíduo é de ta l m odo inc onsc ie nte que nã o pe r c e be
sua s pr ópr ia s possibilida de s de de c isã o. Em ve z disso, e le se e nvolve
num a busc a c onsta nte e a nsiosa de r e gr a s e r e gula m e ntos e xte r nos
que possa m or ie ntá - lo na sua pe r ple xida de . Alé m da ina de qua ç ã o
hum a na ge r a l, gr a nde pa r te da c ulpa por e sse e sta do c a be à
e duc a ç ã o, que pr om ulga a s ve lha s ge ne r a liza ç õe s e na da inf or m a
sobr e os se gr e dos da e xpe r iê nc ia pe ssoa l. Assim , f a ze m - se todos os
e sf or ç os pa r a e nsina r c r e nç a s ou c onduta s ide a lístic a s que o indivíduo
c onhe c e no se u c or a ç ã o, m a s à s qua is nã o c onse gue c or r e sponde r, E
e sse s ide a is sã o pr e ga dos por a utor ida de s que sa be m que e la s pr ópr ia s
nunc a c or r e sponde r a m a e sse s a ltos pa dr õe s ne m j a m a is o f a r ã o. E o
que é m a is, o va lor de sse tipo de e nsina m e nto nunc a é que stiona do.

P or ta nto, a pe ssoa que de se j a te r um a r e sposta pa r a o pr oble m a do


m a l, c onf or m e e le se a pr e se nta hoj e , ne c e ssita , e m pr im e ir o luga r, de
autoc onhe c im e nto, ou se j a , do c onhe c im e nto m a is a bsoluto possíve l
da sua pr ópr ia tota lida de . P r e c isa sa be r a f undo qua nto be m pode
f a ze r e de qua ntos c r im e s é c a pa z, e de ve e vita r e nc a r a r um c om o
r e a l e o outr o c om o ilusór io. Am bos sã o e le m e ntos da sua na tur e za e
a m bos e stã o de stina dos a vir à luz ne le , se e le de se j a r — c om o
de ve r ia — vive r se m e nga na r ou iludir a si m e sm o.

Ma s, e m ge r a l, a m a ior ia da s pe ssoa s e stá por de m a is dista nc ia da


de sse níve l de c onsc iê nc ia ; se be m que m uita s pe ssoa s hoj e e m dia
possue m e m si m e sm a s a c a pa c ida de pa r a um a pe r c e pç ã o m a is
pr of unda . Esse a utoc onhe c im e nto é da m a ior im por tâ nc ia , pois
a tr a vé s de le nos a pr oxim a m os da que le e str a to f unda m e nta l, ou
â m a go, da na tur e za hum a na onde se situa m os instintos. Ne ssa
c a m a da pr of unda , e stã o a que le s f a tor e s dinâ m ic os que e xiste m a
priori e que , e m últim a a ná lise , gove r na m a s de c isõe s é tic a s da nossa
c onsc iê nc ia . Ele s c om põe m o inc onsc ie nte e se us c onte údos, a
r e spe ito do qua l nã o c onse guim os e m itir ne nhum j ulga m e nto
de f initivo. Nossa s ide ia s sobr e o inc onsc ie nte e stã o f a da da s a se r
ina de qua da s, pois som os inc a pa ze s de c om pr e e nde r c ognitiva m e nte
sua e ssê nc ia e e sta be le c e r lim ite s r a c iona is pa r a e le . Só pode m os
a lc a nç a r o c onhe c im e nto da na tur e za a tr a vé s de um a c iê nc ia que
a m plie a c onsc iê nc ia ; logo, o a utoc onhe c im e nto a pr of unda do ta m bé m
e xige c iê nc ia , isto é , psic ologia . Ningué m c onstr ói um te le sc ópio ou
m ic r osc ópio c om um e sta la r de de dos e boa vonta de , se m
c onhe c im e nto da óptic a .

Atua lm e nte pr e c isa m os da psic ologia por r a zõe s que e nvolve m a


nossa pr ópr ia e xistê nc ia . Fic a m os pe r ple xos e a tur didos a nte o
f e nôm e no do na zism o ou do bolc he vism o por que na da sa be m os sobr e
o hom e m ou por que de le f a ze m os a pe na s um a im a ge m distor c ida e
de sf oc a da . Se tivé sse m os um c e r to c onhe c im e nto de nós m e sm os, o
c a so se r ia dif e r e nte . Esta m os f a c e a f a c e c om a te r r íve l que stã o do
m a l e ne m se que r sa be m os o que e stá dia nte de nós, m uito m e nos que
r e sposta la nç a r c ontr a e le . E, m e sm o se soubé sse m os, a inda a ssim
nã o c om pr e e nde r ía m os "c om o a s c oisa s c he ga r a m a e sse ponto".
De m onstr a ndo glor iosa inge nuida de , um e sta dista r e c e nte m e nte
va nglor iou- se de nã o possuir "im a gina ç ã o pa r a o m a l". Muito c e r to:
nós nã o possuím os im a gina ç ã o pa r a o m a l, m a s o m a l nos te m e m suas
m ã o s . Alguns nã o que r e m sa be r sobr e o m a l e outr os e stã o
ide ntif ic a dos c om e le . Essa é a situa ç ã o psic ológic a do m undo nos
nossos dia s: a lguns se de nom ina m c r istã os e im a gina m pode r, por um
sim ple s a to de vonta de , c a lc a r o suposto m a l sob se us pé s; outr os
suc um bir a m a o m a l e nã o ve e m m a is o be m . O m a l, hoj e , tor nou- se
um a Gr a nde P otê nc ia . Me ta de da hum a nida de a lim e nta - se e se
f or ta le c e c om um a doutr ina f a br ic a da por e luc ubr a ç õe s hum a na s; a
outr a m e ta de sof r e a f a lta de um m ito a pr opr ia do à situa ç ã o. As
na ç õe s c r istã s c he ga r a m a um tr iste im pa sse ; se u c r istia nism o e stá
a dor m e c ido e nã o c uidou de de se nvolve r se u m ito no de c or r e r dos
sé c ulos.

Nosso m ito e m ude c e u e nã o dá m a is r e sposta s. A c ulpa nã o c a be a


e le , ta l c om o e stá c ontido na s Esc r itur a s, m a s a pe na s a nós m e sm os,
que nã o c ontinua m os a de se nvolvê - lo; a nós m e sm os que , pe lo
c ontr á r io, r e pr im im os qua isque r te nta tiva s ne sse se ntido. A ve r sã o
or igina l do m ito of e r e c e a m plos pontos de pa r tida e possibilida de s de
de se nvolvim e nto. P or e xe m plo, a s pa la vr a s c oloc a da s na boc a de
Je sus: "Se de , por ta nto, a stutos c om o a se r pe nte e c â ndidos c om o
pom ba s." P a r a que pr opósito pr e c isa r ia m os hom e ns da a stúc ia da
se r pe nte ? E qua l a liga ç ã o e ntr e e ssa a stúc ia e a c a ndur a da pom ba ?

A que stã o outr or a c oloc a da pe los gnóstic os, "De onde ve m o m a l?",
nã o r e c e be u ne nhum a r e sposta do m undo c r istã o; e a c a ute losa
suge stã o de Or íge ne s sobr e um a possíve l r e de nç ã o do de m ônio f oi
a c usa da de he r e sia . Hoj e , som os c om pe lidos a e nf r e nta r e ssa que stã o;
m a s e sta m os de m ã os va zia s, e spa nta dos e pe r ple xos, e ne m se que r
pe r c e be m os que ne nhum m ito vir á e m nosso a uxílio, e m bor a
te nha m os tã o urge nte ne c e ssida de de le . Com o r e sulta do da situa ç ã o
polític a e dos a ssusta dor e s, pa r a nã o dize r dia bólic os, tr iunf os da
c iê nc ia , som os a gita dos por tr e m or e s se c r e tos e e sc ur os
pr e sse ntim e ntos; m a s nã o sa be m os o que f a ze r e pouc os sã o os que
pe r c e be r a m que de sta ve z tr a ta - se da alma humana, há m uito
e sque c ida .

Assim c om o o Cr ia dor é um a tota lida de , ta m bé m a sua Cr ia tur a , Se u


f ilho, de ve r ia se r um a tota lida de . Na da pode supr im ir o c onc e ito da
tota lida de divina . Ma s, se m que ningué m o pe r c e be sse , oc or r e u um a
c isã o ne ssa tota lida de ; de la e m e rgiu um r e ino de luz e um r e ino de
tr e va s. Esse r e sulta do j á se pr e f igur a va c la r a m e nte m e sm o a nte s do
a pa r e c im e nto de Cr isto, c om o pode m os obse r va r, inte r alia, na
e xpe r iê nc ia de Jó ou no Livr o de Enoc h, ba sta nte dif undido e que
pe r te nc e a os te m pos im e dia ta m e nte pr é - c r istã os. Ta m bé m no
c r istia nism o e ssa c isã o m e ta f ísic a f oi c la r a m e nte pe r pe tua da ; Sa tã ,
que no Antigo Te sta m e nto a inda pe r te nc ia a o sé quito íntim o de Je ová ,
f or m a va a gor a o oposto dia m e tr a l e e te r no a o m undo divino. A pa r tir
da í, tor nou- se im possíve l e xtir pá - lo. P or ta nto, nã o é de sur pr e e nde r
que logo no iníc io do sé c ulo XI te nha surgido a c r e nç a de que o dia bo,
e nã o De us, ha via c r ia do o m undo. De u- se , a ssim , a tônic a pa r a a
se gunda m e ta de da e r a c r istã , de pois que o m ito da que da dos a nj os j á
e xplic a r a que e sse s a nj os c a ídos ha via m e nsina do a os hom e ns um
pe r igoso c onhe c im e nto da c iê nc ia e da s a r te s. O que e sse s a ntigos
na r r a dor e s te r ia m a dize r sobr e Hir oshim a ?

36. Os perigos da inocência

ROLLO M AY

A pe r c e pç ã o de que a e xistê nc ia hum a na c c om posta de a le gr ia s e de


a f liç õe s é um pr é - r e quisito pa r a a c e ita r m os a r e sponsa bilida de pe la s
c onse quê nc ia s da s nossa s inte nç õe s. Minha s inte nç õe s à s ve ze s pode m
se r m á s — o dr a gã o ou a e sf inge de ntr o de m im e stã o r ugindo e ,
oc a siona lm e nte , se e xpr e ssa m — m a s de vo f a ze r o m e lhor possíve l
pa r a a c e itá - la s c om o pa r te de m im m e sm o e m ve z d e pr oj e tá - la s
sobr e voc ê .

O c r e sc im e nto nã o pode se r um a ba se pa r a a é tic a , pois o


c r e sc im e nto é ta nto o m a l qua nto o be m . A c a da dia que pa ssa ,
c r e sc e m os r um o à e nf e r m ida de e à m or te . Muita s ve ze s o ne ur ótic o
vê isso m e lhor que nós outr os: e le te m e c r e sc e r e m m a tur ida de
por que r e c onhe c e ( de um a m a ne ir a ne ur ótic a , é c la r o) que c a da
pa sso pa r a c im a o le va pa r a m a is pe r to da m or te . O c â nc e r é um
c r e sc im e nto; é um c r e sc im e nto de spr opor c iona do, no qua l a lgum a s
c é lula s se de se nvolve m de m odo se lva ge m . O sol, de m odo ge r a l, f a z
be m pa r a o c or po; m a s qua ndo a pe ssoa te m tube r c ulose , o sol f a z
m uito m a is be m pa r a os t.b. bac illi e , por ta nto, a s r e giõe s a f e ta da s do
c or po pr e c isa m se r pr ote gida s. Se m pr e que de sc obr im os que
pr e c isa m os e quilibr a r um e le m e nto c ontr a outr o, ve r if ic a m os a
ne c e ssida de de outr os c r ité r ios m a is pr of undos que a é tic a
unidim e nsiona l do c r e sc im e nto.

E surge a pe rgunta : Qua l é a r e la ç ã o e ntr e a é tic a a qui suge r ida e o


siste m a é tic o do c r istia nism o a tua l? O c r istia nism o pr e c isa se r
e nc a r a do r e a listic a m e nte , e m te r m os da quilo e m que se tr a nsf or m ou
e nã o nos te r m os ide a is pr opostos por Je sus. A é tic a c r ista e voluiu a
pa r tir do siste m a de j ustiç a m ostr a do no iníc io do Antigo Te sta m e nto,
"olho por olho e de nte por de nte " — ou se j a , um c onc e ito de j ustiç a
a lc a nç a do pe lo e quilíbr io do m a l. A é tic a c r istã e he br a ic a tr a nsf e r iu
o f oc o pa r a a s a titude s inte r ior e s; "Conf or m e um hom e m pe nsa e m
se u c or a ç ã o, a ssim e le é ." A é tic a do a m or a c a bou tor na ndo- se o
c r ité r io f unda m e nta l, a té m e sm o do m a nda m e nto ide a l: "Am a i vossos
inim igos."

Ma s no de c ur so de sse de se nvolvim e nto e sque c e u- se que o a m or pe los


nossos inim igos é um a que stã o de Gr a ç a . É, na s pa la vr a s de Re inhold
Ne ibuhr, "um a im possibilida de possíve l", que nunc a se r á r e a liza da
num se ntido r e a l, e xc e to por um a to de Gr a ç a . Se r ia pr e c iso a Gr a ç a
pa r a que e u a m a sse Hitle r — um a gr a ç a que nã o m e sinto inc lina do a
pe dir ne ste m om e nto. Qua ndo o e le m e nto da Gr a ç a é om itido, o
m a nda m e nto "a m a i vossos inim igos" tor na - se m or a lista : é de f e ndido
c om o um e sta do que a pe ssoa pode a lc a nç a r tr a ba lha ndo o se u pr ópr io
c a r á te r, um r e sulta do de e sf or ç o m or a l. E a í te m os a lgo m uito
dif e r e nte : um a f or m a e xtr e m a m e nte sim plif ic a da e hipóc r ita de
sim ula ç ã o é tic a . Essa f or m a le va à que la s "c a liste nia s" m or a is que se
ba se ia m e m bloque ios da nossa pe r c e pç ã o da r e a lida de e que
im pe de m a s a ç õe s r e a lm e nte va liosa s que pode r ía m os f a ze r pa r a
m e lhor a r o soc ia l. A pe ssoa r e ligiosa m e nte inoc e nte , a que la que nã o
te m a "sa be dor ia da se r pe nte ", pode pr ovoc a r da nos c onside r á ve is
se m sa be r.

Um a outr a c oisa que oc or r e u na e voluç ã o c ultur a l é que a é tic a do


c r istia nism o e m nossos te m pos a liou- se , e spe c ia lm e nte nos últim os
c inc o sé c ulos, a o individua lism o que surgiu na Re na sc e nç a . Tor nou- se ,
c a da ve z m a is, a é tic a do indivíduo isola do, posta do br a va m e nte na
sua situa ç ã o solitá r ia de inte gr ida de f e c ha da e m si m e sm a . A ê nf a se
e r a c oloc a da na f ide lida de à s pr ópr ia s c onvic ç õe s. I sso f oi ve r da de ,
e m e spe c ia l, no pr ote sta ntism o se c tá r io a m e r ic a no, c om a f or te
inf luê nc ia do individua lism o c ultiva do pe la vida nos te r r itór ios de
f r onte ir a . Da í de c or r e a gr a nde ê nf a se , nos Esta dos Unidos, sobr e a
s in c e r id a d e c om que um a pe ssoa vive c onf or m e sua s pr ópr ia s
c onvic ç õe s. I de a liza m os hom e ns c om o Thor e a u, que , supom os, vive u
a ssim . Da í ta m bé m a ê nf a se no de se nvolvim e nto do pr ópr io c a r á te r, o
que , nos Esta dos Unidos, pa r e c e te r se m pr e um a c onota ç ã o m or a l.
Woodr ow Wilson c ha m ou- o "o c a r á te r que tor na a lgué m intole r á ve l
a os outr os", A é tic a e a r e ligiã o tor na r a m - se um a que stã o de
Dom ingo, se ndo que os dia s de se m a na f or a m r e le ga dos a ga nha r
dinhe ir o — o que a pe ssoa se m pr e f a zia de m odo a m a nte r im pe c á ve l
o se u c a r á te r. Tive m os e ntã o a c ur iosa situa ç ã o do hom e m de c a r á te r
im pe c á ve l a dir igir um a f á br ic a que e xplor a va ine sc r upulosa m e nte
se us m ilha r e s de e m pr e ga dos. É inte r e ssa nte nota r que o
f unda m e nta lism o — a que la f or m a de pr ote sta ntism o que m a is
e nf a tiza os há bitos individua lista s de c a r á te r — te nde a se r a se ita
m a is na c iona lista e be lic osa , e ta m bé m a que r e j e ita c om m a ior
vir ulê nc ia qua lque r f or m a de a pr oxim a ç ã o inte r na c iona l c om a China
ou a Rússia .

Nã o pr e c isa m os — na ve r da de , nã o pode m os — a ba ndona r a nossa


pr e oc upa ç ã o c om a inte gr ida de e os va lor e s individua is, Estou
pr opondo que a quilo que ga nha m os, e m te r m os individua is, de sde a
Re na sc e nç a se j a e quilibr a do c om a nossa nova solida r ie da de , c om a
r e sponsa bilida de que volunta r ia m e nte a ssum im os pe los hom e ns e
m ulhe r e s nossos se m e lha nte s. Ne ste s dia s de c om unic a ç ã o de m a ssa ,
nã o pode m os m a is se r indif e r e nte s à s ne c e ssida de s dos nossos
se m e lha nte s; ignor á - los é e xpr e ssa r o nosso ódio, A c om pr e e nsã o,
c om pa r a da a o a m or ide a l é um a possibilida de hum a na —
c om pr e e nsã o pe los nossos inim igos be m c om o pe los nossos a m igos.
Existe m , na c om pr e e nsã o, os c om e ç os da c om pa ixã o, da pie da de e da
c a r ida de .

I sso, pr e ssupondo que a s pote nc ia lida de s hum a na s nã o se r e a liza m


a pe na s por um m ovim e nto a sc e nde nte , m a s ta m bé m por um a um e nto
na á r e a de a ç ã o de sc e nde nte . Com o diz Da nie l Be r r iga n: "Ca da pa sso
pa r a a f r e nte ta m bé m e sc a va a s pr of unde za s pa r a a s qua is, do m e sm o
m odo, se guim os." Nã o de ve m os m a is se ntir que a s vir tude s se r ã o
ga nha s a pe na s por de ixa r m os os víc ios pa r a tr á s; subir a e sc a da , e m
te r m os é tic os, nã o de ve se r de f inido e m f unç ã o da quilo que de ixa m os
pa r a tr á s. Ca so c ontr á r io, a bonda de de ixa de se r o be m e pa ssa a se r
um orgulho a r r oga nte no nosso pr ópr io c a r á te r. Ta m bé m o m a l, se nã o
é e quilibr a do pe la c a pa c ida de pa r a o be m , tor na - se insípido, ba na l,
c ova r de e indif e r e nte . Na ve r da de , a c a da dia nos tor na m os m a is
se nsív e is ta nto a o be m qua nto a o m a l; e e ssa dia lé tic a é e sse nc ia l pa r a
a nossa c r ia tivida de .

Adm itindo c om f r a nque za , nossa c a pa c ida de pa r a o m a l de pe nde de


r om pe r m os a nossa pse udoinoc ê nc ia . Enqua nto pr e se r va r m os o nosso
pe nsa m e nto unidim e nsiona l, pode r e m os e nc obr ir nossos a tos a le ga ndo
inoc ê nc ia . Essa f uga a ntidiluvia na da c onsc iê nc ia nã o é m a is possíve l.
Som os r e sponsá ve is pe la s c onse quê nc ia s dos nossos a tos e ta m bé m
som os r e sponsá ve is por nos c onsc ie ntiza r m os, ta nto qua nto possíve l,
de ssa s c onse quê nc ia s.

Na psic ote r a pia , é m uito dif íc il pa r a a pe ssoa a c e ita r e ssa


pote nc ia lida de a m plia da pa r a o m a l que a c om pa nha a c a pa c ida de
pa r a o be m . Os pa c ie nte s e stã o de m a sia do a c ostum a dos a a ssum ir a
sua pr ópr ia im potê nc ia . Qua lque r pe r c e pç ã o dir e ta de sua f or ç a
de se quilibr a sua or ie nta ç ã o pa r a a vida , e e le s nã o sa be m o que f a ze r
se tive r e m que a dm itir o m a l que e xiste de ntr o de le s.
É um a bê nç ã o c onside r á ve l um a pe ssoa pe r c e be r que te m um la do
ne ga tivo c om o todo m undo, que o da e m ônic o te m pote nc ia lida de s
ta nto pa r a o be m qua nto pa r a o m a l, e que e la nã o pode ne m r e pr im i-
lo ne m vive r se m e le . Ta m bé m é be né f ic o qua ndo a pe ssoa c he ga a
ve r que gr a nde pa r te de sua s r e a liza ç õe s e stá liga da a os pr ópr ios
c onf litos que e sse im pulso da e m ônic o e nge ndr a . Essa é a se de da
e xpe r iê nc ia de que a vida é um a m istur a de be m e de m a l; de que nã o
e xiste o be m p u r o ; e de que , se o m a l nã o e xistisse e nqua nto
pote nc ia lida de , o be m ta m pouc o pode r ia e xistir. A vida c onsiste e m
a lc a nç a r o be m , nã o isola do do m a l, mas ape sar de le .

37. A cura do mal humano

M . SCOTT PECK

O pr oble m a do m a l é , na ve r da de , um m isté r io im e nso. Ele nã o se


subm e te f a c ilm e nte a o r e duc ionism o. Ve r e m os que a lguns a spe c tos do
m a l hum a no pode m se r r e duzidos a um a dim e nsã o que pode se r
m a nipula da pe la inve stiga ç ã o c ie ntíf ic a a de qua da . No e nta nto, a s
pe ç a s de sse que br a - c a be ç a sã o tã o inte r liga da s que sua obse r va ç ã o
isola da é dif íc il e pr ovoc a distor ç õe s. Alé m disso, o ta m a nho de sse
que br a - c a be ç a é tã o im pone nte que nã o pode m os, na ve r da de ,
e spe r a r obte r m a is que sim ple s la m pe j os do qua dr o ge r a l. Do m e sm o
m odo que oc or r e c om qua lque r te nta tiva inic ia l de e xplor a ç ã o
c ie ntíf ic a , te r e m os c om o r e sulta do m a is pe rgunta s que r e sposta s.

O pr oble m a do m a l, por e xe m plo, dif ic ilm e nte pode se r se pa r a do do


pr oble m a da bonda de . Se nã o houve sse bonda de no m undo, ne m
se que r e sta r ía m os a qui disc utindo o pr oble m a do m a l.

É um a c oisa e str a nha . De ze na s de ve ze s os pa c ie nte s ou c onhe c idos


m e pe rgunta m : "Dr. P e c k, por que e xiste o m a l no m undo?" Ma s
ningué m , e m todos e sse s a nos, j a m a is m e pe rguntou: "P or que e xiste o
be m no m undo?" É c om o se a ssum ísse m os de m odo a utom á tic o que
e ste é , pe la sua pr ópr ia na tur e za , um m undo bom que f oi, de a lgum
m odo, c onta m ina do pe lo m a l. Em te r m os dos nossos c onhe c im e ntos
c ie ntíf ic os, é r e a lm e nte m a is f á c il e xplic a r o m a l. As le is na tur a is da
Físic a e xplic a m por que a s c oisa s se de te r ior a m . Ma s j á nã o é tã o
f á c il a ssim c om pr e e nde r por que a vida pr e c isa e voluir pa r a f or m a s
c a da ve z m a is c om ple xa s. O f a to de que a s c r ia nç a s pode m m e ntir,
r ouba r e tr a pa c e a r é um a obse r va ç ã o r otine ir a . Ma s o a dm ir á ve l é
que e la s m uita s ve ze s c r e sc e m e se tom a m a dultos r e a lm e nte
hone stos. A pr e guiç a , m a is que a a tivida de , é a r e gr a ge r a l. Se
pe nsa r m os se r ia m e nte sobr e isso, ta lve z f ize sse m a is se ntido supor
que e ste é , pe la sua pr ópr ia na tur e za , um m undo m a u — que f oi, de
a lgum m odo m iste r ioso, "c onta m ina do" pe la bonda de — do que o
c ontr á r io. O m isté r io da bonda de é a inda m a ior que o m isté r io do m a l.

Da r o nom e c or r e to a a lgum a c oisa c onf e r e - nos um c e r to pode r sobr e


e la . Ao c onhe c e r o se u nom e , c onhe c e m os a lgo sobr e a s dim e nsõe s da
sua f or ç a . Qua ndo te nho um solo f ir m e sobr e o qua l m e a poia r, posso
m e da r o luxo de se r c ur ioso qua nto à sua na tur e za . P osso m e da r o
luxo de m e m ove r na sua dir e ç ã o.

P r im e ir o, é ne c e ssá r io que tr a c e m os a distinç ã o e ntr e o m a l e o


pe c a do c om um . Nã o sã o os pe c a dos, e m si, que c a r a c te r iza m a s
pe ssoa s m á s, e sim a sutile za , a pe r sistê nc ia e a c onsistê nc ia de se us
pe c a dos. I sso oc or r e por que o gr a nde pr oble m a do m a l nã o é o
pe c a do, m a s a r e c usa e m a dm itir o pr ópr io m a l.

As pe ssoa s m á s pode m se r r ic a s ou pobr e s, e duc a da s ou ignor a nte s.


P ouc o e xiste de dr a m á tic o a r e spe ito de la s. Ela s nã o sã o c ha m a da s de
c r im inosa s. Com m uita f r e quê nc ia , tr a ta - se de "c ida dã os r e spe itá ve is"
— pr of e ssor e s de e sc ola s dom inic a is, polic ia is, ba nque ir os ou
m e m br os a tivos da Assoc ia ç ã o de P a is e Me str e s.

Com o isso é possíve l? Com o pode m e la s se r m á s e nã o se r e m


c ha m a da s de c r im inosa s? A c ha ve e stá na pa la vr a "c ha m a da s". Ela s
sã o c r im inosa s na m e dida e m que c om e te m "c r im e s" c ontr a a vida e
a vita lida de . Ma s, e xc e to nos r a r os c a sos e m que a lc a nç a m um gr a u
e xtr a or diná r io de pode r polític o que a s libe r ta da s r e str iç õe s
or diná r ia s — c om o um Hitle r —, se us "c r im e s" sã o tã o sutis e
e nc obe r tos que nã o pode m se r c la r a m e nte c ha m a dos de c r im e s.

P a sse i um bom te m po tr a ba lha ndo e m pr isõe s c om e le m e ntos


de signa dos c om o c r im inosos. Qua se nunc a os se nti c om o pe ssoa s m á s.
É óbvio que e le s sã o pe r nic iosos e ge r a lm e nte o sã o de m odo
r e pe titivo. Ma s e xiste um a c e r ta a le a tor ie da de na sua pe r nic iosida de .
Alé m disso, e m bor a pa r a a s a utor ida de s e le s c ostum e m ne ga r
qua lque r r e sponsa bilida de por sua s m á s a ç õe s, e xiste um a qua lida de
de a be r tur a na sua pe r ve r sida de . Ele s pr ópr ios sã o os pr im e ir os a
m ostr á - la , a le ga ndo que f or a m pe gos e xa ta m e nte por que e r a m
"c r im inosos hone stos". O ve r da de ir o m a l, dir ã o e le s, e stá se m pr e f or a
da c a de ia . É c la r o que e ssa s a f ir m a ç õe s busc a m a a utoj ustif ic a ç ã o;
m a s a c r e dito que , e m ge r a l, sã o c or r e ta s.

Os pr e sidiá r ios qua se se m pr e r e c e be m e ste ou a que le tipo de


dia gnóstic o psiquiá tr ic o pa dr ã o. Esse s dia gnóstic os c obr e m toda a
ga m a dos r ótulos e c or r e sponde m , e m te r m os le igos, a qua lida de s
c om o a louc ur a , a im pulsivida de , a a gr e ssivida de ou a f a lta de
c onsc iê nc ia . Ma s os hom e ns e m ulhe r e s sobr e os qua is f a la r e i— ta is
c om o os pa is de Bobby — nã o possue m e sse s pr oble m a s tã o e vide nte s
e nã o se e nc a ixa m c la r a m e nte nos nossos r ótulos psiquiá tr ic os
r otine ir os. Nã o por que os m a us se j a m sa udá ve is, m a s sim ple sm e nte
por que a inda nã o de se nvolve m os um a de f iniç ã o pa r a a sua doe nç a .

Já que e sta be le ç o um a distinç ã o e ntr e a s pe ssoa s m á s e os c r im inosos


c om uns, é e vide nte que ta m bé m e stou e sta be le c e ndo um a distinç ã o
e ntr e o m a l e nqua nto c a r a c te r ístic a da pe r sona lida de e a s m á s a ç õe s.
Em outr a s pa la vr a s, m á s a ç õe s nã o tor na m m á um a pe ssoa . Ca so
c ontr á r io, se r ía m os todos m a us, pois todos nós pr a tic a m os m á s a ç õe s.

Em te r m os m a is a m plos, pe c a r é de f inido c om o "e r r a r o a lvo". Ou


se j a , pe c a m os toda ve z que de ixa m os de a c e r ta r a m a r c a no c e ntr o do
a lvo. O pe c a do é na da m a is na da m e nos que o f r a c a sso e m se r m os
c ontinua m e nte pe r f e itos. Já que é im possíve l pa r a nós se r
c ontinua m e nte pe r f e itos, som os todos pe c a dor e s. Fa lha m os,
r otine ir a m e nte , e m f a ze r o m e lhor de que som os c a pa ze s e , c om c a da
f r a c a sso, c om e te m os um tipo de c r im e — c ontr a De us, c ontr a nossos
se m e lha nte s ou c ontr a nós m e sm os, se é que nã o a be r ta m e nte c ontr a
a le i.

É c la r o que e xiste m c r im e s de m a ior e de m e nor m a gnitude . Ma s é


um e r r o pe nsa r sobr e o pe c a do ou o m a l c om o um a que stã o de
gr a dua ç ã o. Ta lve z pa r e ç a m e nos odioso logr a r o r ic o do que logr a r o
pobr e , m a s a inda a ssim é um logr o. Aos olhos da le i, e xiste m
dif e r e nç a s e ntr e de f r a uda r um a e m pr e sa , la nç a r um a f a lsa de duç ã o
na de c la r a ç ã o do im posto de r e nda , "c ola r " num a pr ova , dize r à
e sposa que pr e c isa f a ze r hor a e xtr a qua ndo voc ê a e stá tr a indo, ou
dize r a o m a r ido ( ou a voc ê m e sm a ) que nã o te ve te m po de pe ga r sua s
c a m isa s na la va nde r ia qua ndo voc ê pa ssou um a hor a a o te le f one
c onve r sa ndo c om um a a m iga . É e vide nte que a lgum a s c oisa s sã o m a is
pe r doá ve is que a s outr a s — e ta lve z a inda m a is dia nte de c e r ta s
c ir c unstâ nc ia s — m a s pe r m a ne c e o f a to de que sã o, toda s e la s,
m e ntir a s e tr a iç õe s. Se voc ê é e sc r upuloso o suf ic ie nte pa r a nã o te r
f e ito ne nhum a de ssa s c oisa s r e c e nte m e nte , e ntã o pe rgunte - se se
e xiste a lgum a m a ne ir a pe la qua l voc ê te nha m e ntido pa r a si m e sm o.
Ou te nha e nga na do a si m e sm o. Ou te nha sido m e nos do que pode r ia
se r — o que é um a a utotr a iç ã o. Se j a tota lm e nte hone sto c onsigo
m e sm o e voc ê pe r c e be r á que pe c a . Se nã o o pe r c e be , e ntã o voc ê nã o
é tota lm e nte hone sto c onsigo m e sm o — e isso é , e m si, um pe c a do.
Tr a ta - se de um a ve r da de ine sc a pá ve l: som os todos pe c a dor e s.1

Se a s pe ssoa s m á s nã o pode m se r de f inida s pe la ile ga lida de de se us


a tos ne m pe la m a gnitude de se us pe c a dos, e ntã o c om o ir e m os de f ini-
la s? A r e sposta é : pe la c onsistê nc ia de se us pe c a dos. Em bor a sutil, sua
pe r nic iosida de é a dm ir a ve lm e nte c onsiste nte . I sso oc or r e por que
a que le s que "c r uza r a m a linha ' ' se c a r a c te r iza m pe la r e c usa absoluta
e m tole r a r o se nso de sua pr ópr ia na tur e za pe c a dor a . Ma is do que
qua lque r outr a c oisa , o que nos a f a sta do m a l é e xa ta m e nte e sse se nso
da nossa pr ópr ia na tur e za pe c a dor a .

As va r ie da de s da pe r ve r sida de hum a na sã o m últipla s. Com o r e sulta do


de sua r e c usa e m tole r a r o se nso de sua pr ópr ia na tur e za pe c a dor a , os
m a us tom a m - se inc or r igíve is "de vor a dor e s de pe c a dos". Minha
e xpe r iê nc ia m ostr a , por e xe m plo, que e le s sã o pe ssoa s
e spa ntosa m e nte á vida s. Logo, sã o m e squinhos — tã o m e squinhos que
se us "pr e se nte s" pode m se r m or tíf e r os. Em The Road Le ss Trav e le d [ A
Estr a da Me nos P e r c or r ida ] , c om e c e i suge r indo que o pe c a do
f unda m e nta l se r ia a pr e guiç a . De pois, suge r i que ta lve z f osse o
orgulho — pois todos os pe c a dos sã o r e pa r á ve is, e xc e to o pe c a do de
a c r e dita r m os que som os se m pe c a do. Ma s disc utir qua l o m a ior
pe c a do ta lve z se j a , num c e r to níve l, um a que stã o a c a dê m ic a . Todos
os pe c a dos sã o um a tr a iç ã o a o divino e a os nossos se m e lha nte s — e
nos isola m de le s. Com o disse um pr of undo pe nsa dor r e ligioso,
qua lque r pe c a do "pode tr a nsf or m a r- se num inf e r no".2

No e nta nto, um a c a r a c te r ístic a pr e dom ina nte do c om por ta m e nto


da que le s a que m c ha m o m a us é a busc a de um bode e xpia tór io. Já
que e m se us c or a ç õe s se c onside r a m a c im a de c e nsur a , e le s pr e c isa m
e sc oic e a r c ontr a qua lque r um que os c e nsur e . Ele s sa c r if ic a m os
outr os pa r a pr e se r va r sua a utoim a ge m de pe r f e iç ã o. Tom e m os o
sim ple s e xe m plo do ga r oto de se is a nos que pe rgunta a o pa i: "P a pa i,
por que o se nhor c ha m ou a vovó de c a de la ?" O pa i e sbr a ve j a :
"Me nino de boc a suj a , a gor a voc ê va i ve r ! Vou e nsiná - lo a nã o usa r
m a is e ssa s pa la vr a s suj a s. Vou la va r a sua boc a c om sa bã o. Ta lve z
isso o e nsine a nã o dize r suj e ir a e a f ic a r de boc a f e c ha da qua ndo e u
m a ndo." Ar r a sta ndo o m e nino a té o ba nhe ir o, o pa i lhe inf lige a
puniç ã o. Em nom e da "disc iplina c or r e ta ", o m a l f oi c om e tido.

A busc a do bode e xpia tór io a ge a tr a vé s de um m e c a nism o que os


psiquia tr a s c ha m a m de "pr oj e ç ã o". Já que os m a us, no f undo, se
se nte m ise ntos de qua lque r c ulpa , é ine vitá ve l que qua ndo e stã o e m
c onf lito c om o m undo e le s inva r ia ve lm e nte a c he m que a c ulpa do
c onf lito c a be a o m undo. Com o pr e c isa m ne ga r sua pr ópr ia m a lda de ,
e le s pr e c isa m ve r os outr os c om o m a us. Ele s proje tam sua pr ópr ia
m a lda de sobr e o m undo. Nunc a pe nsa m e m si m e sm os c om o m a us;
por outr o la do, c onse que nte m e nte ve e m m uito m a l nos outr os. Aque le
pa i viu a of e nsa e a im pur e za c om o e xiste nte s no f ilho, e a giu pa r a
lim pa r a "suj e ir a " do f ilho. Ma s sa be m os que o pa i é que e r a of e nsivo
e im pur o. O pa i pr oj e tou sua pr ópr ia suj e ir a sobr e o f ilho; e ntã o,
a gr e diu o f ilho e m nom e da boa e duc a ç ã o.

O m a l, por ta nto, f r e que nte m e nte é c om e tido pa r a a c ha r um bode


e xpia tór io e a s pe ssoa s que r otulo c om o m á s sã o c r ônic os busc a dor e s
de bode s e xpia tór ios. Em The Road Le ss Trav e le d, de f ini o m a l "c om o
o e xe r c íc io do pode r polític o — ou se j a , a im posiç ã o da nossa vonta de
sobr e os outr os por c oe r ç ã o a be r ta ou e nc obe r ta — pa r a pode r
e vita r... o c r e sc im e nto e spir itua l". Em outr a s pa la vr a s, a pe ssoa m á
a ta c a os outr os e m ve z de e nf r e nta r se us pr ópr ios f r a c a ssos. O
c r e sc im e nto e spir itua l e xige o r e c onhe c im e nto da nossa ne c e ssida de
de c r e sc e r. Se nã o c onse guim os r e c onhe c ê - la , nã o te m os outr a
e sc olha se nã o te nta r e r r a dic a r a e vidê nc ia da nossa im pe r f e iç ã o.3

O e str a nho é que a s pe ssoa s m á s f r e que nte m e nte sã o pe r nic iosa s


por que e stã o te nta ndo de str uir o m a l. O pr oble m a é que e la s e r r a m o
loc o do m a l. Em ve z de de str uir os outr os, e la s de ve r ia m e sta r
de str uindo e ssa doe nç a de ntr o de la s m e sm a s. Com o a vida m uita s
ve ze s a m e a ç a sua a utoim a ge m de pe r f e iç ã o, e la s e stã o se m pr e
e nvolvida s e m odia r e de str uir a vida — ge r a lm e nte e m nom e do
pur ita nism o. Ma s o pr oble m a ta lve z nã o se j a ta nto que e la s ode ie m a
vida , m a s que e la s não ode ie m a pa r te pe c a dor a de si m e sm a s.

Qua l é a c a usa de sse f r a c a sso e m odia r o pr ópr io m a l, de sse f r a c a sso


e m e sta r de sc onte nte c onsigo m e sm o, que pa r e c e se r o pe c a do c e ntr a l
que e stá na r a iz do c om por ta m e nto de busc a de um bode e xpia tór io
da que le s a que m c ha m o m a us? A c a usa nã o é , a c r e dito e u, f a lta de
c onsc iê nc ia . Existe m pe ssoa s, ta nto na c a de ia qua nto f or a de la , que
pa r e c e m te r um a e xtr e m a f a lta de c onsc iê nc ia ou supe r e go. Os
psiquia tr a s a s c ha m a m de psic opa ta s ou soc iopa ta s. I se nta s de c ulpa ,
e la s nã o a pe na s c om e te m c r im e s c om o f r e que nte m e nte pode m
c om e tê - los c om um a e spé c ie de de sc uida do a ba ndono. Nã o e xiste um
pa dr ã o ou um se ntido na sua c r im ina lida de ; e sta nã o se c a r a c te r iza
pa r tic ula r m e nte pe la busc a de um bode e xpia tór io. I se ntos de
c onsc iê nc ia , na da — inc luindo sua pr ópr ia c r im ina lida de — pa r e c e
inc om oda r ou pr e oc upa r os psic opa ta s. Ele s pa r e c e m e sta r qua se tã o
f e lize s de ntr o da c a de ia qua nto f or a de la . Ele s te nta m e sc onde r se us
c r im e s, m a s se us e sf or ç os pa r a f a zê - lo ge r a lm e nte sã o dé be is,
de sc uida dos e m a l pla ne j a dos. Às ve ze s, r e f e r im o- nos a e le s c om o
"im be c is m or a is", e e xiste qua se um a qua lida de de inoc ê nc ia ne ssa
sua f a lta de pr e oc upa ç ã o e inte r e sse .

Esse nã o é o c a so da que le s a que m c ha m o m a us. Extr e m a m e nte


de dic a dos a pr e se r va r sua a utoim a ge m de pe r f e iç ã o, e le s e stã o
se m pr e e nvolvidos no e sf or ç o de m a nte r a a pa r ê nc ia de pur e za m or a l.
Ele s se pr e oc upa m m uito c om isso. Tê m um a a guda se nsibilida de à s
nor m a s soc ia is e a o que os outr os pode r ia m pe nsa r de le s. Ve ste m - se
be m , nã o se a tr a sa m pa r a o tr a ba lho, pa ga m se us im postos e ,
e xte r ior m e nte , pa r e c e m vive r vida s que e stã o a c im a de qua lque r
c e nsur a .
As pa la vr a s "im a ge m ", "a pa r ê nc ia " e "e xte r ior m e nte " sã o c r uc ia is
pa r a e nte nde r m os a m or a lida de da s pe ssoa s m á s. Em bor a pa r e ç a m
nã o te r ne nhum m otivo pa r a s e r boa s, e la s de se j a m inte nsa m e nte
pa r e c e r boa s. Sua "bonda de " e xiste a o níve l da sim ula ç ã o. Ela é , na
ve r da de , um a m e ntir a . É por isso que e la s sã o os "f ilhos da m e ntir a ".

Na ve r da de , a m e ntir a nã o se de stina ta nto a e nga na r os outr os qua nto


a e nga na r a e la s m e sm a s. Ela s nã o pode m tole r a r, e ne m tole r a r ã o, a
dor da a utoc e nsur a . O de c or o c om o qua l c onduze m sua s vida s é
m a ntido c om o um e spe lho no qua l e la s se ve e m pur ita na m e nte
r e f le tida s. Ma s o a utoe nga no se r ia de sne c e ssá r io se os m a us nã o
tive sse m ne nhum se nso de c e r to e de e r r a do. Só m e ntim os qua ndo
e sta m os te nta ndo e nc obr ir a lgo que sa be m os se r ilíc ito. Algum a f or m a
r udim e nta r de c onsc iê nc ia pr e c isa pr e c e de r o a to de m e ntir, Nã o há
ne c e ssida de de e sc onde r a lgo a m e nos que , pr im e ir o, sinta m os que
a lgo pr e c isa se r e sc ondido.

Che ga m os a gor a a um a e spé c ie de pa r a doxo. Af ir m e i que a s pe ssoa s


m á s se nte m que sã o pe r f e ita s. P or é m , a c r e dito que a o m e sm o te m po
e la s tê m um se ntim e nto nã o- r e c onhe c ido de sua pr ópr ia na tur e za m á .
Na ve r da de , é e xa ta m e nte de sse se ntim e nto que e la s e stã o
f r e ne tic a m e nte te nta ndo e sc a pa r. O c om pone nte e sse nc ia l do m a l nã o
é a a usê nc ia de um se ntim e nto de pe c a do ou im pe r f e iç ã o, m a s a
indisposiç ã o pa r a tole r a r e sse se ntim e nto. A um só te m po, os m a us
pe r c e be m se u pr ópr io m a l e te nta m de se spe r a da m e nte e vita r e ssa
pe r c e pç ã o. Em ve z de te r e m sido a be nç oa dos c om a f a lta de um
se nso de m or a lida de , c om o o psic opa ta , e le s e stã o se m pr e
pr e oc upa dos e m va r r e r a e vidê nc ia de sua m a lda de pa r a de ba ixo do
ta pe te de sua pr ópr ia c onsc iê nc ia . O pr oble m a nã o é um de f e ito de
c onsc iê nc ia , m a s sim o e sf or ç o pa r a ne ga r à c onsc iê nc ia os se us
dir e itos. Tor na m o- nos m a us a o te nta r nos e sc onde r de nós m e sm os. A
pe r ve r sida de da s pe ssoa s m á s nã o é c om e tida de m odo dir e to, m a s de
m odo indir e to c om o pa r te do pr oc e sso de oc ulta ç ã o, O m a l se or igina ,
nã o da a usê nc ia de c ulpa , m a s do e sf or ç o de e sc a pa r à c ulpa .

Ac onte c e c om f r e quê nc ia , por ta nto, que os m a us se j a m r e c onhe c idos


pe los se us pr ópr ios disf a r c e s. A m e ntir a pode se r pe r c e bida a nte s do
de lito que e la se de stina a e sc onde r — a oc ulta ç ã o a nte s do f a to.
Ve m os o sor r iso que e sc onde o ódio, a a titude m e líf lua e untuosa que
m a sc a r a a r a iva , a luva de ve ludo que e nc obr e o punho. P or se r e m os
m a us gr a nde s e spe c ia lista s e m disf a r c e s, ne m se m pr e é possíve l
de sc obr ir a na tur e za e xa ta da sua m a líc ia . O disf a r c e ge r a lm e nte é
im pe ne tr á ve l. Ma s pode m os c a pta r vislum br e s do "e str a nho j ogo de
e sc onde - e sc onde na obsc ur ida de da a lm a , no qua l a a lm a hum a na
f oge de si m e sm a , e vita a si m e sm a , se e sc onde de si m e sm a ".4
E m The Road Le ss Trav e le d, suge r i que a pr e guiç a ou o de se j o de
e sc a pa r a o "sof r im e nto le gítim o" e stá na r a iz de toda s a s doe nç a s
m e nta is. Aqui e sta m os ta m bé m f a la ndo de e vita r e f ugir da dor, Ma s o
que distingue os m a us de nós, pe c a dor e s m e nta lm e nte doe nte s, é o
tipo e spe c íf ic o de dor da qua l e le s e stã o te nta ndo f ugir, Em ge r a l, e le s
nã o sã o pe ssoa s pr e guiç osa s ou que e vita m a dor. Ao c ontr á r io, é
pr ová ve l que e le s se e m pe nhe m m a is do que a m a ior ia da s pe ssoa s no
se u e sf or ç o c ontínuo pa r a obte r e m a nte r um a im a ge m de a lta
r e spe ita bilida de . Ele s ta lve z se subm e ta m volunta r ia m e nte , a té
m e sm o a nsiosa m e nte , a gr a nde s dif ic ulda de s ne ssa sua busc a de
s t a t u s . Existe a pe na s um tipo e spe c íf ic o de dor que e le s nã o
c onse gue m tole r a r : a dor de sua pr ópr ia c onsc iê nc ia , a dor de
pe r c e be r sua na tur e za pe c a dor a e sua im pe r f e iç ã o.

Já que f a r ã o qua se tudo pa r a e vita r a dor e spe c íf ic a que ve m do


a utoe xa m e , e m c ir c unstâ nc ia s nor m a is os m a us se r ia m a s últim a s
pe ssoa s a pr oc ur a r a psic ote r a pia . Os m a us ode ia m a luz — a luz da
bonda de que os de sve nda , a luz do e sc r utínio que os e xpõe , a luz da
ve r da de que pe ne tr a sua sim ula ç ã o. A psic ote r a pia é um pr oc e sso de
la nç a r luz por e xc e lê nc ia . Exc e to pe los m a is tor tuosos m otivos, se r ia
m a is pr ová ve l que um a pe ssoa m á e sc olhe sse qua lque r outr a r ota
c onc e bíve l do que o diva do psiquia tr a . A subm issã o à disc iplina da
a uto- obse r va ç ã o e xigida pe la psic a ná lise pa r e c e - lhe s, na ve r da de , um
suic ídio. A m a is signif ic a tiva r a zã o pe la qua l a c iê nc ia c onhe c e tã o
pouc o sobr e a m a lda de hum a na é que os m a us sã o e xtr e m a m e nte
r e luta nte s e m se de ixa r e xa m ina r.

38. A r e missão dos nossos diabos e de mônios

STEPHEN A. DIAM OND

A pr e oc upa ç ã o c om o inquie ta nte pr oble m a do m a l nã o é novida de


pa r a a psic ologia — e m bor a se j a , c om c e r te za , opor tuna . Fr e ud lutou
c ontr a e sse a ssunto e spinhoso, c om o f ize r a m m uitos outr os psic ólogos
e psiquia tr a s ne ste sé c ulo, inc luindo Jung, Fr om m , Ma y , Me nninge r,
Lif ton e , e m dia s m a is r e c e nte s, M. Sc ott P e c k.

A soluç ã o de Fr e ud tom ou a f or m a de um m a u "instinto da m or te "


( Tha na tos) e m e te r na ba ta lha c ontr a um bom "instinto da vida " ( Er os) ,
c om o m a l se m pr e a dom ina r e sse tr á gic o due lo. Jung, ba se a do na
f ilosof ia de Nie tzsc he , pr e f e r iu "o te r m o som bra a o te r m o m a l, pa r a
pode r dif e r e nc ia r e ntr e o m a l individua l e o m a l na m or a lida de
c ole tiva ". 1 Sua posiç ã o, e nr a iza da na tr a diç ã o de c onsc iê nc ia
individua l do pr ote sta ntism o suíç o, e r a que a m or a lida de soc ia l nã o
pode se r c onside r a da c om o a f onte c a usa dor a do m a l; e la só "se tor na
ne ga tiva [ ou se j a , m á ] qua ndo a pe ssoa tom a se us m a nda m e ntos e
pr oibiç õe s c om o a bsolutos e ignor a se us outr os im pulsos. P or ta nto,
nã o é o c â none c ultur a l e m si, m a s a a titude m or a l do indivíduo que
de ve se r r e sponsa biliza da por a quilo que é pa tológic o, ne ga tivo ou
m a u". 2

Ante c ipa ndo- se a P e c k, Rollo Ma y de f e nde u que nos Esta dos Unidos
pouc o a inda c om pr e e nde m os sobr e a ve r da de ir a na tur e za do m a l e ,
por ta nto, e sta m os tr iste m e nte de spr e pa r a dos pa r a e nf r e ntá - lo. Ma y
le m br a a a dve r tê nc ia de Jung à Eur opa : "O m a l tor nou- se um a
r e a lida de de te r m ina nte , De ixou de se r possíve l de se m ba r a ç a r- se de le
por um a c ir c unloc uç ã o. E a gor a pr e c isa m os a pr e nde r a c onvive r c om
e le , pois e le e stá a qui e a qui pe r m a ne c e r á . Ainda nã o c onse guim os
c onc e be r c om o vive r c om o m a l se m sof r e r sua s te r r íve is
c onse quê nc ia s." 3

Se guindo a linha do te ólogo P a ul Tillic h, se u a ntigo pr of e ssor e a m igo,


Ma y intr oduziu o c onc e ito do da e m ônic o pa r a r iva liza r c om o
c onc e ito do "dia bo", tr a dic iona l sím bolo j ude u- c r istã o do m a l
c ósm ic o. Ma y a f ir m a que o te r m o dia bo é "insa tisf a tór io, pois pr oj e ta
a f or ç a pa r a f or a do se lf e a br e c a m inho pa r a todos os tipos de
pr oj e ç ã o psic ológic a ".4

P e c k, c uj os e sc r itos à s ve ze s sã o c om pa r a dos a os de Ma y , e nf oc a
sobr e tudo o dom ínio e spir itua l- te ológic o; se u a tua l siste m a de c r e nç a
é c onve nc iona lm e nte c r istã o. P e c k e sta be le c e um a distinç ã o e ntr e o
m a l hum ano e o m a l de m oníac o, Ele vê o m a l hum a no c om o um a
"f or m a e spe c íf ic a de doe nç a m e nta l", um a e spé c ie c r ônic a e insidiosa
de "na r c isism o m a ligno", No e nta nto, P e c k a c r e dita que o m a l
de m onía c o se j a de or ige m sobr e na tur a l, um pr oduto dir e to da
"posse ssã o por de m ônios m e nor e s" ou por Sa tã , pa r a a qua l o
e xor c ism o é o tr a ta m e nto ne c e ssá r io.5

Na m inha opiniã o, o c onc e ito j unguia no da som br a e , e m pa r tic ula r, o


m ode lo m e nos c onhe c ido do da e m ônic o de Ma y , a br ir a m o c a m inho
pa r a um a m a is pr ogr e ssiva psic ologia do m a l. Com o o da e m ônic o
c ontr a sta c om a pr e m issa do de m onía c o de P e c k, va le a pe na
e studa r m os o m ode lo de Ma y e m m a is de ta lhe s.

Diabos, de mônios e o dae mônic o

Dia bos e de m ônios há m uito sã o vistos c om o a f onte e a


pe r sonif ic a ç ã o do m a l. Fr e ud suge r e que os povos pr im itivos
pr oj e ta va m sua hostilida de sobr e de m ônios im a giná r ios. Conside r a va ,
a lé m disso, "ba sta nte possíve l que toda a c onc e pç ã o dos de m ônios
de r iva sse da r e la ç ã o, e xtr e m a m e nte im por ta nte , c om os m or tos",
a c r e sc e nta ndo que "na da m ostr a de m odo tã o c onvinc e nte a inf luê nc ia
do luto sobr e a or ige m da c r e nç a nos de m ônios qua nto o f a to de que
os de m ônios e r a m se m pr e c onside r a dos c om o os e spír itos dos m or tos
r e c e nte s". 6

Em te r m os histór ic os, os de m ônios se r vir a m c om o bode s e xpia tór ios e


r e positór ios pa r a todos os tipos de e m oç õe s e im pulsos ina c e itá ve is e
a m e a ç a dor e s, e m e spe c ia l a que le s que e nvolvia m o f a to ine sc a pá ve l
da m or te . Ma s a visã o popula r e unila te r a lm e nte ne ga tiva dos
de m ônios é sim plista e de spr ovida de sof istic a ç ã o psic ológic a . P ois
Fr e ud nos inf or m a que os de m ônios, e m bor a de iníc io te m idos pe los
nossos a nc e str a is, ta m bé m e r a m a ge nte s no pr oc e sso do luto. Um a ve z
c onf r onta dos e inte gr a dos pe la s c a r pide ir a s, e sse s m e sm os de m ônios
m a us e r a m "r e ve r e nc ia dos c om o a nc e str a is e a e le s se a pe la va e m
m om e ntos de a ngústia ".7

Re f e r indo- se à noç ã o m e die va l do "da e m ônic o", Jung e sc r e ve que "os


de m ônios nã o sã o outr a c oisa se ndo intr usos vindos do inc onsc ie nte ,
ir r upç õe s e spontâ ne a s dos c om ple xos inc onsc ie nte s na c ontinuida de
do pr oc e sso c onsc ie nte . Os c om ple xos sã o c om pa r á ve is a de m ônios
que , c a pr ic hosa m e nte , pe r tur ba m nossos pe nsa m e ntos e a ç õe s; por
isso, na a ntiguida de e na I da de Mé dia , os distúr bios ne ur ótic os a gudos
e r a m e nte ndidos c om o posse ssã o".8

De f a to, a nte s da s r e ve la ç õe s f ilosóf ic a s de Re né De sc a r te s no sé c ulo


XVI I , que de pois de r a m or ige m à obj e tivida de c ie ntíf ic a , a c r e dita va -
se que qua lque r de sor de m e m oc iona l ou de se quilíbr io m e nta l e r a
lite r a lm e nte obr a de de m ônios que , na s sua s via ge ns a la da s,
ha bita va m o c or po ( ou o c é r e br o) do de sa f or tuna do doe nte c ontr a a
sua vonta de . Essa s im a ge ns de e ntida de s a la da s inva sor a s, dota da s de
pode r e s sobr e na tur a is, a inda sã o vislum br a da s e m a lguns e uf e m ism os
usa dos pa r a se r e f e r ir à louc ur a ta is c om o "te r m a c a quinhos no sótã o"
e na c e r te za do pa c ie nte pa r a noic o de e sta r se ndo inf lue nc ia do por
a lie níge na s e m disc os voa dor e s.

A a bor da ge m de De sc a r te s — se pa r a ndo m e nte e c or po, suj e ito e


obj e to — c onside r a va "r e a l" a pe na s a que le a spe c to da e xpe r iê nc ia
hum a na que pode se r m e nsur a do ou qua ntif ic a do de m a ne ir a obj e tiva .
Esse a va nç o, sa be m os todos, le vou a o a bj e to a ba ndono dos f e nôm e nos
subj e tivos "ir r a c iona is". Essa se pa r a ç ã o f e ita por De sc a r te s f oi um
de se nvolvim e nto dúbio do pe nsa m e nto hum a no: e la pe r m itiu que a
Re na sc e nç a livr a sse o m undo, c om um a únic a va ssour a da c ie ntíf ic a ,
da supe r stiç ã o, da br uxa r ia , da m a gia e de toda s a s c r ia tur a s m ític a s
— m á s e boa s. No e nta nto, c om o la m e nta Ma y , "a o nos livr a r da s
f a da s, dos e lf os e se m e lha nte s, o que f ize m os f oi e m pobr e c e r a nossa
vida ; e e m pobr e c ê - la nã o é o c a m inho dur a dour o pa r a lim pa r da
supe r stiç ã o a m e nte hum a na ... Nosso m undo tor nou- se de se nc a nta do;
e de ixa - nos nã o só f or a de sintonia c om a na tur e za c om o ta m bé m
c om nós m e sm os".9

A e xplor a ç ã o de Jung, dur a nte toda a sua vida , da s pode r osa s f or ç a s


a r que típic a s do inc onsc ie nte le vou- o a c onc luir que e la s "possue m
um a e ne rgia e spe c íf ic a que c a usa ou c om pe le m odos de f inidos de
c om por ta m e nto ou im pulsos; ou se j a , e m c e r ta s c ir c unstâ nc ia s, e la s
pode m te r um a f or ç a posse ssiva ou obse ssiva ( num inosida de ! ) . Sua
c onc e pç ã o c om o da e m ônic a s e stá , por ta nto, m a is de a c or do c om a
sua na tur e za ".10

Se guindo um a linha se m e lha nte , Ma y le m br a - nos que a m ode r na


p a la v r a d e m ô n i o de r iva da noç ã o gr e ga c lá ssic a do d a i m o n , que
of e r e c e a ba se pa r a o se u m ode lo m itológic o do da e m ônic o: "O
da e m ônic o é qua lque r f unç ã o na tur a l que te nha o pode r de dom ina r
toda a pe ssoa . P or e xe m plo, se xo e e r otism o, r a iva e f úr ia ou o de se j o
de pode r. O da e m ônic o ta nto pode se r c r ia tivo c om o de str utivo, e
ge r a lm e nte é a m bos. Qua ndo e ssa f or ç a se de sc ontr ola e um
e le m e nto usur pa o c ontr ole sobr e a pe r sona lida de c om o um todo,
te m os a ' posse ssã o pe lo daimon' , o nom e tr a dic iona l pa r a a psic ose a o
longo da Histór ia . O da e m ônic o nã o é , e vide nte m e nte , um a e ntida de ;
r e f e r e - se a um a f unç ã o f unda m e nta l e a r que típic a da e xpe r iê nc ia
hum a na — um a r e a lida de e xiste nc ia l."11

De a c or do c om Ma r ie - Louise von Fr a nz, disc ípula de Jung, "na Gr é c ia


pr é - he lê nic a os de m ônios e r a m , c om o no Egito, pa r te de um a
c ole tivida de a nônim a ".12 E a ssim ta m bé m que Ma y c onc e be o
da e m ônic o: c om o um a f or ç a pr im or dia l da na tur e za , e sse nc ia lm e nte
indif e r e nc ia da e im pe ssoa l. P ois, pa r a os gr e gos pr im itivos, o daimon
podia se r m a u ou c r ia tivo, f onte da de str uiç ã o ou da or ie nta ç ã o
e spir itua l, be m se m e lha nte à que le s de m ônios pr im itivos de sc r itos por
Fr e ud. A pa la vr a daimon f oi oc a siona lm e nte utiliza da por P la tã o c om o
sinônim o de the os ( de us) ; e o pode r oso Er os ta m bé m e r a um daimon.

O s d a i m o n s e r a m pote nc ia lm e nte bons e m a us, c onstr utivos e


de str utivos, de pe nde ndo do m odo c om o a pe ssoa se r e la c iona va c om
e le s. No de c or r e r da Histór ia , diz Ma y , dur a nte "a s e r a s he lê nic a e
c r istã , a c isã o dua lista e ntr e o la do bom e o la do m a u do daimon
tor nou- se m a is pr onunc ia da . Te m os hoj e um a popula ç ã o c e le ste
se pa r a da e m dois c a m pos — dia bos e a nj os; os dia bos a o la do do se u
líde r, Sa tã , e os a nj os a lia dos a De us. Em bor a e sse s de se nvolvim e ntos
nunc a f osse m ple na m e nte r a c iona liza dos, de ve te r ha vido na que le s
dia s a e xpe c ta tiva de que , c om e ssa c isã o, f ic a r ia m a is f á c il pa r a o
hom e m e nf r e nta r e ve nc e r o dia bo".13

Os de f e nsor e s c onte m por â ne os de ssa dic otom ia a r tif ic ia l de ixa m de


ve r que j a m a is pode r e m os e spe r a r ve nc e r os c ha m a dos dia bos e
de m ônios de str uindo- os; pr e c isa m os a pr e nde r, e m ve z disso, a
r e c onhe c e r e a ssim ila r a quilo que e le s sim boliza m de ntr o de nós
m e sm os e na nossa vida c otidia na . Os povos pr im itivos logr a r a m
r e a liza r e ssa ta r e f a ; m a s nós, m ode r nos pós- c r istã os — c om os nossos
"de use s" da c iê nc ia e te c nologia e a té m e sm o a s nossa s r e c é m
de sc obe r ta s r e ligiõe s — e sta m os m a l e quipa dos pa r a r e a lizá - la .

O dae mônic o v e rsus o diabo

Atua lm e nte , o dia bo e stá r e duzido a um c onc e ito de svita liza do a o qua l
f a lta o tipo de a utor ida de de que e le um dia de sf r utou. Na ve r da de ,
pa r a m uita s pe ssoa s, Sa tã tor nou- se um sina l — nã o um sím bolo r e a l
— de um siste m a r e ligioso r e j e ita do, nã o- c ie ntíf ic o e supe r stic ioso.

No e nta nto, vive m os e m um a é poc a onde o pr oble m a do m a l pe ssoa l e


c ole tivo surge c om a la r m a nte r e gula r ida de na s m a nc he te s de j or na is
e notic iá r ios de te le visã o. P a r e c e que o m a l e stá por toda pa r te —
c om m a ior visibilida de sob a f or m a da r a iva e f úr ia pa tológic a s, da
hostilida de , da br uta lida de e ntr e a s pe ssoa s e da quilo que c ha m a m os
violê nc ia se m se ntido.

"A violê nc ia ", e sc r e ve u Ma y , "é o da e m ônic o f or a de c ontr ole . É a


posse ssão de moníac a na sua f or m a m a is c r ua . Nossa é poc a é de
tr a nsiç ã o e , ne la , sã o- nos ne ga dos os c a na is nor m a is pa r a utiliza r m os
o da e m ônic o; e e ssa s é poc a s te nde m a se r pe r íodos onde o da e m ônic o
é e xpr e sso sob a sua f or m a m a is de str utiva ."14
Esse s te m pos tur bule ntos f or ç a m - nos a e nf r e nta r f a c e a f a c e a f e ia
r e a lida de do m a l. P or f a lta de um m ito m a is signif ic a tivo, m a is
inte gr a dor e m a is c or r e to psic ologic a m e nte , a lgum a s pe ssoa s se
a pode r a m do de sga sta do sím bolo do dia bo pa r a e xpr e ssa r se u
e nc ontr o pe r tur ba dor c om o la do de str utivo do da e m ônic o. O súbito
r e ssurgim e nto de sse a ntigo sím bolo pode vir a c om pa nha do por um a
m ór bida f a sc ina ç ã o pe lo dia bo e pe la de m onologia , c om o se
e vide nc ia pe la r á pida pr olif e r a ç ã o dos c ultos sa tâ nic os. Do m e u ponto
de vista , a a tua l te ndê nc ia a o sa ta nism o é um e sf or ç o de se spe r a do e
tr a gic a m e nte m a l or ie nta do pa r a e nc ontr a r a lgum se ntido de
signif ic a ç ã o pe ssoa l, pe r te nc e r a a lgum luga r e r e la c iona r- se c om o
dom ínio tr a nspe ssoa l. A busc a de sse s obj e tivos le gítim os a tr a vé s de sse
c om por ta m e nto pe r ve r so — e à s ve ze s f a ta l — r e ve la be m o dile m a
que nos a tor m e nta . O pr oble m a pa r e c e e sta r na c isã o e ntr e o be m e o
m a l pr om ulga da pe la tr a diç ã o r e ligiosa oc ide nta l, um r ígido dua lism o
que c onde na o da e m ônic o a se r m a l, e a pe na s m a l, Essa é e xa ta m e nte
a m e sm a c onc e pç ã o e quivoc a da que e nc ontr a m os no pe nsa m e nto de
P e c k.

O que pr e c isa m os é de um a nova , ou r e nova da , c onc e pç ã o da que le


dom ínio da r e a lida de r e pr e se nta do pe lo dia bo, que pode inc luir o la do
c r ia tivo de ssa f or ç a de m e nta i. P ois o dia bo r e pr e se nta e xa ta m e nte
a quilo que Jung c ha m a r ia c oinc ide ntia opposiíorum. De a c or do c om
Ma y , a pa la vr a dia bo: ve m da pa la vr a gr e ga diabolos; "dia bólic o" é o
te r m o na nossa língua c onte m por â ne a . É inte r e ssa nte nota r que
d i a b o l o s signif ic a lite r a lm e nte , "se pa r a r " ( d ia - b o lle in ) . Agor a , o
f a sc ina nte é que "dia bólic o" é o a ntônim o de "sim bólic o". Sim bólic o
ve m de sy m- bolle in, que signif ic a "unir ". Existe , ne ssa s pa la vr a s, um a
im e nsa im plic a ç ã o c om r e spe ito a um a ontologia do be m e do m a l. O
sim bólic o é a quilo que r e úne , e nla ç a , inte gr a o indivíduo c onsigo
m e sm o e c om se u gr upo; o dia bólic o, por outr o la do, é a quilo que
de sinte gr a e se pa r a . Am bos e sse s a spe c tos e stã o pr e se nte s no
da e m ônic o. 15

A sombr a e o dae mônic o


Em bor a se m e lha nte s, os c onc e itos de som br a e da e m ônic o c ontê m
notá ve is dif e r e nç a s. Em pa r te , Ma y r e ssusc itou o m ode lo da e m ônic o
pa r a ne utr a liza r e c or r igir qua isque r m ovim e ntos na s m ode r na s
psic ologia s de pr of undida de que vise m dogm a tiza r, de sum a niza r,
m e c a niza r ou f a ze r qua lque r uso e quivoc a do da c onc e pç ã o or igina l
j unguia na da som br a , c om sua im e nsa signif ic a ç ã o psic ológic a — e m
e spe c ia l c om r e la ç ã o à na tur e za do m a l hum a no.

Um pe r igo pote nc ia l c om a doutr ina j unguia na da som br a é a te nta ç ã o


de pr oj e ta r o m a l, nã o sobr e a lgum a e ntida de e xte r ior, c om o o dia bo,
m a s sim sobr e um "fragme nto de pe rsonalidade r e la tiva m e nte
a utônom o" 16 no f undo de nós m e sm os — ou se j a , a "som br a ", o
e str a nho ou o "outr o" c om pe nsa tór ios. Assim , e m ve z de dize r, "O
dia bo m e f e z f a ze r isso", a pe ssoa pode r ia c onve nie nte m e nte a le ga r
que "A som br a ( ou o da e m ônic o) m e f e z f a ze r isso". Ma y busc a
m inim iza r e ssa f r a gm e nta dor a pe r da de inte gr ida de , de libe r da de e de
r e sponsa bilida de , a o c onse r va r e m se u m ode lo do da e m ônic o "um
e le m e nto de c isivo, isto é , a e sc olha a f ir m a da pe lo se lf para tr a ba lha r
a f a vor ou c ontr a a inte gr a ç ã o do se lf' .17 O da e m ônic o tor na - se m a u
( isto é , de m onía c o) qua ndo c om e ç a m os a c onside r á - lo m a u, e logo a
r e pr im i- lo, ne gá - lo, dr ogá - lo ou, de qua lque r outr o m odo, te nta r
e xc luí- lo da c onsc iê nc ia . Ao f a ze r a ssim , tom a m os pa r te no proc e sso
do mal e a um e nta m os sine rgic a m e nte a s viole nta s ir r upç õe s de r a iva ,
f úr ia , de str utivida de soc ia l e psic opa tologia s va r ia da s que r e sulta m do
da e m ônic o a r e a f ir m a r a si m e sm o — c om m a is f or ç a que de há bito
— e m sua s f or m a s m a is ne ga tiva s. P or outr o la do, qua ndo opta m os
por inte gr a r c onstr utiva m e nte o da e m ônic o e m nossa pe r sona lida de ,
tom a m os pa r te no proc e sso de me tamorfose c riativ a.

Ja m e s Hillm a n le m br a - nos que o e nc ontr o pe ssoa l de Jung c om o


da e m ônic o c onve nc e u- o da "gr a nde r e sponsa bilida de " la nç a da sobr e
nós pe la s sua s vá r ia s m a nif e sta ç õe s, Com o Jung, Ma y vê a im plíc ita
obr iga ç ã o é tic a e m or a l de e sc olhe r m os c om o m á xim o c uida do a
nossa r e sposta a os im pulsos psic obiológic os ( ge r a lm e nte c e gos e
se r vis) do da e m ônic o e c or a j osa m e nte c um pr ir m os a s e sc olha s
c onsc ie nte s que e ntã o f a ze m os, É f a to be m c onhe c ido que a sa lva ç ã o
de Jung, dur a nte sua qua se e sm a ga dor a inunda ç ã o pe lo inc onsc ie nte ,
de ve u- se a o e nvolvim e nto r e ligioso na "im a gina ç ã o a tiva " e à
obse r va ç ã o e r e gistr o f ié is — e m ve z de r e pr e ssã o ou pa ssa ge m a o
a to — de sua e xpe r iê nc ia subj e tiva . Essa de c isã o e xiste nc ia l
c onsc ie nte , r e a f ir m a da c om pe r sistê nc ia a o longo do te m po,
f ina lm e nte le vou Jung a tor na r- se , c om o diz Hillm a n, um "hom e m
da e m ônic o". 18

De a c or do c om a c onc e pç ã o de Ma y , o da e m ônic o inc lui e inc or por a


os c onc e itos j unguia nos da som br a e do Se lf, be m c om o os a r qué tipos
da anima e do animus. Enqua nto Jung dif e r e nc ia a som br a do Se lf, e a
som br a pe ssoa l da som br a c ole tiva e a r que típic a , Ma y nã o f a z e ssa s
distinç õe s. I sso nos f a z le m br a r um a r e c e nte a dve r tê nc ia de Ma r ie -
Louise von Fr a nz: De ve m os m a nte r um a a titude de c e tic ism o qua nto
à s te nta tiva s de r e la c iona r a lgum a s de ssa s "a lm a s" ou "daim ons" a os
c onc e itos j unguia nos de som br a , anima, animus e S e l f . Se r ia um
gr a nde e r r o — c om o o pr ópr io Jung vá r ia s ve ze s e nf a tizou —
im a gina r que a som br a , a anima ( ou o animus) e o S e lf possa m surgir
se pa r a da m e nte no inc onsc ie nte de um a pe ssoa , be m c r onom e tr a dos e
num a or de m de f inida ... Qua ndo busc a m os a s pe r sonif ic a ç õe s do Se lf
e ntr e os daimons da a ntiguida de , ve m os que c e r tos daimons sã o c om o
um m isto de som br a e Se lf, ou um m isto de animus- anima e S e lf — e ,
na ve r da de , é isso o que e le s sã o. Em outr a s pa la vr a s, e le s
r e pr e se nta m a "outr a " pe r sona lida de inc onsc ie nte , a inda
indif e r e nc ia da , do indivíduo.19

Ape sa r de ssa s dif e r e nç a s, a unif ic a dor a noç ã o j unguia na da som br a


ta m bé m se r ve pa r a r e c onc ilia r a viole nta se pa r a ç ã o que nos é
im posta pe lo c onf lito dos opostos. Enf r e nta r e a ssim ila r a nossa
som br a f or ç a - nos a o r e c onhe c im e nto da tota lida de do se r, que
c onsiste de be m e de m a l, de r a c iona l e de ir r a c iona l, de m a sc ulino e
de f e m inino, be m c om o da s pola r ida de s c onsc ie nte e inc onsc ie nte .
Qua ndo c onside r a m os, la do a la do, os c onc e itos psic ológic os da
som br a e do da e m ônic o, f ic a m os c om a f or te im pr e ssã o de que ta nto
Jung c om o Ma y e stã o te nta ndo tr a nsm itir a s m e sm a s ve r da de s
f unda m e nta is sobr e a e xistê nc ia hum a na . P a r a P e c k, por outr o la do, o
"de m onía c o" é pur a m e nte ne ga tivo, um a f or ç a tã o vil que pr e c isa se r
e xor c iza da , e xpe lida e e xc luída da c onsc iê nc ia ; e la nã o possui
qua lida de s c om pe nsa tór ia s e nã o é digna de r e de nç ã o. Evide nte m e nte ,
e sse nã o é o c a so da som br a j unguia na ou do da e m ônic o.

A psic ote r a pia é um a m a ne ir a de c he ga r m os a um a c or do c om o


da e m ônic o. Qua ndo c or a j osa m e nte da m os voz a os nossos "de m ônios"
inte r ior e s — sim boliza ndo a que la s te ndê nc ia s e m nós que m a is
te m e m os, da s qua is f ugim os e pe la s qua is, por ta nto, som os obc e c a dos
ou a tor m e nta dos — nós os tr a nsm uta m os e m úte is a lia dos sob a f or m a
de um a e ne rgia psíquic a vita l e r e c é m - libe r a da pa r a utiliza r m os e m
a tivida de s c onstr utiva s. Dur a nte e sse pr oc e sso, de sc obr im os o
pa r a doxo pe r c e bido por m uitos a r tista s: a quilo que r e pr im ía m os e de
que f ugía m os, a c a ba se tor na ndo a f onte m a is ple na da vita lida de , da
c r ia tivida de e da a utê ntic a e spir itua lida de .

39. A dinâmic a f undame nt al do mal humano

ERNEST B ECKER

Tom e m os tr ê s pe nsa dor e s tã o díspa r e s qua nto Otto Ra nk, Wilhe lm


Re ic h e Ca r l Jung. Na da e xiste pa r a ide ntif ic á - los e ntr e si, e xc e to o
f a to de que todos os tr ê s dive rgir a m de Fr e ud; c a da qua l tinha o se u
pr ópr io tr a ba lho e o se u pr ópr io e stilo, à s ve ze s no polo oposto dos
outr os dois disside nte s. Existe m dua s pe ssoa s m a is de sse m e lha nte s que
Re ic h e Jung? No e nta nto, sob toda e ssa dispa r ida de , e xiste um a
c onc or dâ nc ia f unda m e nta l sobr e a c a usa e xa ta do m a l nos a ssuntos
hum a nos. Nã o se tr a ta de um a c oinc idê nc ia a dm ir á ve l: é um a sólida
c onquista c ie ntíf ic a que c om pr ova a ve r da de f unda m e nta l da s
de sc obe r ta s de sse s disside nte s.

Já tive m os um a a nte visã o de ssa ve r da de no nosso e xa m e da histór ia


c om Ra nk: a c im a de tudo, o hom e m que r pe r m a ne c e r e pr ospe r a r,
que r de a lgum m odo a lc a nç a r a im or ta lida de . Sa be ndo que é m or ta l, a
c oisa que e le m a is que r é ne ga r a sua m or ta lida de . A m or ta lida de e stá
liga da a o la do na tur a l, a nim a l, da sua e xistê nc ia ; por isso, e le busc a
dista nc ia r- se o m a is possíve l de sse la do a nim a l, de ta l m a ne ir a que
te nta ne gá - lo por c om ple to. Tã o logo a lc a nç ou nova s f or m a s
histór ic a s de pode r, o hom e m voltou- se c ontr a os a nim a is c om os
qua is a nte s se ide ntif ic a va — e de um a m a ne ir a ta nto m a is br uta l,
c om o pode m os c om pr ova r a gor a , pe lo f a to de os a nim a is
r e pr e se nta r e m a quilo que o hom e m m a is te m ia : um a m or te a nônim a e
inglór ia .

Mostr e i, e m outr o e nsa io, que todo o e dif íc io do sobe r bo pe nsa m e nto
de Ra nk f oi c onstr uído sobr e um a únic a pe dr a f unda m e nta l: o m e do
hum a no da vida e da m or te . Nã o é o c a so de r e pe ti- lo a qui, e xc e to
pa r a que nos le m br e m os por que oc ulta m os tã o be m e sse s m otivos
f unda m e nta is. Af ina l de c onta s, f oi pr e c iso o gê nio de Fr e ud e todo o
m ovim e nto psic a na lític o pa r a r e ve la r e doc um e nta r os m e dos gê m e os
da vida e da m or te . A r e sposta é que o hom e m , na ve r da de , nã o vive
a be r ta m e nte e xposto num a pr a te le ir a de c ova r dia e te r r or ; se o
f ize sse , nã o pode r ia c ontinua r m a nte ndo sua a pa r e nte se r e nida de e
im pr udê nc ia . Os m e dos do hom e m e stã o pr of unda m e nte e nte r r a dos
pe la r e pr e ssã o, que dá à vida c otidia na um a f a c ha da tr a nquila ; só
oc a siona lm e nte o de se spe r o se de ixa vislum br a r e , m e sm o a ssim , só
pa r a a lgum a s pe ssoa s. A r e pr e ssã o é , por ta nto, a gr a nde de sc obe r ta da
psic a ná lise ; e la e xplic a c om o o hom e m pode e sc onde r tã o be m , a té
m e sm o de si pr ópr io, sua s m otiva ç õe s bá sic a s. Ma s o hom e m ta m bé m
vive num a dim e nsã o de de spr e oc upa ç ã o, c onf ia nç a , e spe r a nç a e
a le gr ia que lhe dá um a e la stic ida de m uito a lé m do que o pe r m itir ia a
r e pr e ssã o. I sso, c om o vim os c om Ra nk, é r e a liza do pe la e nge nha r ia
sim bólic a da c ultur a , que e stá a se r viç o do hom e m c om o um a ntídoto
pa r a o te r r or, da ndo- lhe um a vida nova e dur á ve l a lé m da que la do
c or po.

Ma is ou m e nos na m e sm a é poc a e m que Ra nk e sc r e via , ta m bé m


Wilhe lm Re ic h ba se ou todo o se u tr a ba lho e m a lgum a s pr oposiç õe s
f unda m e nta is. Em pouc a s e m a r a vilhosa s pá gina s de The M ass
Psy c hology of Fasc ism [ A P sic ologia de Ma ssa do Fa sc ism o] , Re ic h
de snuda a dinâ m ic a da m isé r ia hum a na ne ste pla ne ta : tudo c om e ç a
qua ndo o hom e m te nta se r dif e r e nte da quilo que é , qua ndo te nta ne ga r
sua na tur e za a nim a l. Essa , diz Re ic h, é a c a usa de toda s a s doe nç a s
psíquic a s, do sa dism o e da gue r r a . Os pr inc ípios que or ie nta m a
f or m a ç ã o de toda s a s ide ologia s hum a na s "toc a m a m e sm a m e lodia
m onótona : Não somos animais..."1

Ne sse livr o, Re ic h te nta e xplic a r o f a sc ism o; por que os hom e ns, c om


ta nta doc ilida de , e ntr e ga m se u de stino a o e sta do e a o gr a nde líde r. E
e le o e xplic a da m a ne ir a m a is dir e ta : o polític o pr om e te a r r um a r o
m undo e a lç a r o hom e m a c im a de se u de stino na tur a l e , por isso, os
hom e ns de posita m ne le toda a sua f é . Vim os c om qua nta f a c ilida de o
hom e m pa ssou de um a soc ie da de igua litá r ia pa r a a va ssa la ge m , e
e xa ta m e nte pe la m e sm a r a zã o: por que o pode r c e ntr a l pr om e tia
c onc e de r- lhe im unida de e pr ospe r ida de se m lim ite s.

Esse novo a r r a nj o de se nc a de ou sobr e a hum a nida de um a onda r e gula r


de m isé r ia s que a s soc ie da de s pr im itiva s só c onhe c e r a m
oc a siona lm e nte e . qua se se m pr e , e m m e nor e sc a la . O hom e m te ntou
e vita r os tor m e ntos na tur a is da e xistê nc ia e ntr e ga ndo- se a e str utur a s
que r e pr e se nta va m o pode r da im unida de , m a s só c onse guiu f a ze r c a ir
sobr e a sua pr ópr ia c a be ç a os novos tor m e ntos de se nc a de a dos pe la
sua obe diê nc ia a os polític os. Re ic h c unhou um a e xpr e ssã o e xc e le nte ,
"a r a utos da pr a ga polític a ", pa r a de sc r e ve r todos os polític os. Sã o e le s
que m e nte m a o povo sobr e o r e a l e o possíve l, sã o e le s que a tir a m a
hum a nida de a sonhos im possíve is que c obr a m , da vida r e a l, um c usto
im possíve l. Qua ndo ba se a m os toda a nossa luta pe la vida sobr e um a
m e ntir a de se spe r a da e te nta m os le va r e m f r e nte e ssa m e ntir a —
tor na r o m undo e xa ta m e nte o oposto do que e le é —, tor na m o- nos o
instr um e nto da nossa pr ópr ia de str uiç ã o. A te or ia do supe r- hom e m
a le m ã o — ou qua lque r outr a te or ia de supe r ior ida de gr upa i ou r a c ia l
— "te m sua or ige m na te nta tiva do hom e m de se dissoc ia r do a nim a l".
Ba sta a f ir m a r m os que o nosso gr upo é pur o e bom , que o nosso gr upo
f oi o e sc olhido pa r a um a vida ple na c om a lgum a signif ic a ç ã o e te r na ,
e que a lguns outr os, c om o os j ude us ou os c iga nos, sã o ve r da de ir os
a nim a is que e stã o e str a ga ndo o nosso m undo, c onta m ina ndo a nossa
pur e za e de str uindo a nossa vita lida de c om sua s doe nç a s e f r a que za s.
Entã o c onse guim os um m a nda to pa r a la nç a r um a pr a ga polític a , um a
c a m pa nha pa r a pur if ic a r o m undo. Está tudo a li no M e in Kampf
[ Minha Luta ] de Hitle r, na que la s a ssusta dor a s pá gina s que dize m que
os j ude us e stã o à e spr e ita na s vie la s e sc ur a s, pr ontos pa r a c onta m ina r
c om sua síf ilis a s j ove ns donze la s a le m ã s. Na da m a is pr e c isa se r dito
sobr e a te or ia ge r a l da busc a do bode e xpia tór io na soc ie da de .

Re ic h pe rgunta por que qua se ningué m c onhe c e os nom e s dos


ve r da de ir os be nf e itor e s da hum a nida de , e nqua nto "qua lque r c r ia nç a
c onhe c e os nom e s dos ge ne r a is da pr a ga polític a ". A r e sposta é que :

As c iê nc ia s da na tur e za e stã o c onsta nte m e nte intr oduzindo na


c onsc iê nc ia do hom e m que e le é , f unda m e nta lm e nte , um ve r m e no
unive r so. O "a r a uto da pr a ga polític a " e stá c onsta nte m e nte r e pisa ndo
o f a to de que o hom e m nã o é um a nim a l, m a s sim um "zoon
politik on", ou se j a , um nã o- a nim a l, um de f e nsor de va lor e s, um "se r
m or a l". Ah, qua ntos m a le s f or a m pe r pe tr a dos pe la f ilosof ia pla tônic a
do Esta do! Está ba sta nte c la r o o m otivo pe lo qua l o hom e m se
inte r e ssa m a is pe los polític os que pe los c ie ntista s da na tur e za : o
hom e m nã o que r que lhe r e c or de m o f a to de que e le é ,
f unda m e nta lm e nte , um a nim a l se xua l. Ele não que r se r um animal.2

Apr e se nte i a visã o de Re ic h sobr e a dinâ m ic a do m a l se m ne nhum


or na m e nto té c nic o, por que nã o a c r e dito que isso se j a ne c e ssá r io. Ma s
e xiste um a inf inida de de or na m e ntos na lite r a tur a psic a na lític a pa r a
a que le s que de se j a r e m a c om pa nha r os e la bor a dos f unc iona m e ntos
te ór ic os da psique . O que há de m a r a vilhoso na te or ia psic a na lític a é
que e la tom ou a f ir m a ç õe s sim ple s sobr e a c ondiç ã o hum a na — ta is
c om o a ne ga ç ã o, pe lo hom e m , de sua pr ópr ia a nim a lida de — e
m ostr ou c om o e ssa ne ga ç ã o e sta va e nr a iza da na psique de sde a
pr im e ir a inf â nc ia . É por isso que os psic a na lista s f a la m de obj e tos
"bons" e obj e tos "m a us", de e stá gios "pa r a noic os" de de se nvolvim e nto,
de "ne ga ç õe s", de se gm e ntos "f r a gm e nta dos" da psique que inc lue m
um "e nc la ve da m or te ", e tc .

Na m inha opiniã o, ningué m r e sum iu e sse s c om ple xos f unc iona m e ntos
psíquic os tã o be m qua nto Jung, c om se u e stilo c ie ntíf ic o- poé tic o, a o
f a la r sobr e a "som br a " que e xiste e m c a da psique hum a na . Fa la r da
som br a é um a outr a m a ne ir a de r e f e r ir- se a o se ntim e nto de c r ia tur a
inf e r ior de c a da indivíduo, a c oisa que e le m a is que r ne ga r. Er ic h
Ne um a nn sum a r izou e m pouc a s pa la vr a s a visã o j unguia na : A som br a
é o outr o la do. Ela é a e xpr e ssã o da m inha pr ópr ia im pe r f e iç ã o e da
m inha na tur e za te r r e na ; o ne ga tivo que é inc om pa tíve l c om os va lor e s
a bsolutos [ ou se j a , o hor r or da pa ssa ge m da vida e c onhe c im e nto da
m or te ] . 3

Com o disse Jung, a som br a tr a nsf or m a - se na c oisa e sc ur a de ntr o da


nossa pr ópr ia psique , "um a inf e r ior ida de que e xiste r e a lm e nte ,
m e sm o que se j a a pe na s va ga m e nte suspe ita da ".4 É na tur a l que a
pe ssoa que ir a libe r ta r- se de ssa inf e r ior ida de ; e la que r "sa lta r sobr e a
sua pr ópr ia som br a ". A m a ne ir a m a is dir e ta de f a zê - lo é "pr oc ur a r
c oloc a r tudo que se j a e sc ur o, inf e r ior e c ulpá ve l nos outros". 5

O hom e m nã o se se nte à vonta de c om a c ulpa , e la o e str a ngula ;


lite r a lm e nte , a som br a é la nç a da sobr e a e xistê nc ia do hom e m . Ma is
um a ve z, Ne um a nn a pr e se nta um e xc e le nte sum á r io;

A se nsa ç ã o de c ulpa é a tr ibuída ... à pe r c e pç ã o da som br a . ( ...) Essa


se nsa ç ã o de c ulpa , ba se a da na e xistê nc ia da som br a , é de sc a r r e ga da
do siste m a de um a m e sm a m a ne ir a , ta nto pe lo indivíduo c om o pe la
c ole tivida de — ou se j a , a tr a vé s do f e nôm e no da proje ç ão da sombra.
A som br a , que e stá e m c onf lito c om os va lor e s r e c onhe c idos [ isto é , a
f a c ha da c ultur a l sobr e a a nim a lida de ) nã o é a c e ita c om o um a pa r te
ne ga tiva da pr ópr ia psique da pe ssoa e , por ta nto, é pr oj e ta da — ou
se j a , é tr a nsf e r ida pa r a o m undo e xte r ior e vive nc ia da c om o um
obj e to e xte r ior. Ela é c om ba tida , c a stiga da e e xte r m ina da c om o
"a que le e str a nho lá f or a ", e m ve z de se r tr a ta da c om o um pr oble m a
inte r ior da pr ópr ia pe ssoa .6

E a ssim , c om o c onc lui Ne um a nn, te m os a dinâ m ic a do c lá ssic o e


a ntiquíssim o e xpe die nte de de sc a r r e ga r a c ulpa e a s f or ç a s ne ga tiva s
da psique : um bode e xpia tór io. E e xa ta m e nte e sse se nso f r a gm e nta do
de inf e r ior ida de e a nim a lida de que é pr oj e ta do sobr e o bode
e xpia tór io e sim bolic a m e nte de str uído c om e le . Qua ndo c om pa r a m os
toda s a s e xplic a ç õe s sobr e o e xte r m ínio de j ude us, c iga nos, polone se s
e ta ntos outr os pe los na zista s e a pr e se nta m os toda s a s dive r sa s r a zõe s,
e xiste um a únic a r a zã o que pe ne tr a dir e to o c or a ç ã o e a m e nte de
c a da um de nós: a pr oj e ç ã o da som br a . Nã o é de sur pr e e nde r que
Jung te nha obse r va do — c om m a is gr a vida de a inda que Ra nk ou Re ic h
— que "a pr inc ipa l... na ve r da de , a únic a c oisa e r r a da c om o m undo é
o hom e m ".7

40. O r e c onhe c ime nt o da nossa c isão int e r ior

ANDREW B ARD SCHM OOKLER

O "gr a nde pr oble m a do m a l", diz Sc ott P e c k, "nã o é o pe c a do, m a s a


r e c usa e m a dm itir o pr ópr io m a l".1 Aquilo que nã o c onse guim os
e nf r e nta r de f r e nte nos a ga r r a r á pe la s c osta s, Qua ndo a lc a nç a m os a
ve r da de ir a f or ta le za de a dm itir a nossa c ondiç ã o m or a l im pe r f e ita ,
de ixa m os de se r possuídos por de m ônios.

Um a outr a c om pa r a ç ã o pode se r f e ita c om M oby Dic k . Enqua nto a


busc a do Ca pitã o Aha b pe la ba le ia br a nc a sim boliza o c a m inho da
gue r r a , a histór ia de Jose ph Conr a d, The Se c re t Share r [ O Sóc io
Se c r e to] , of e r e c e um sím bolo do c a m inho da pa z. Assim c om o M oby
Dic k , e sta ta m bé m é a histór ia do c a pitã o de um na vio e o m odo c om o
e le lida c om o se u la do e sc ur o.

Esthe r Ha r ding, psic óloga j unguia na , inte r pr e ta a na r r a tiva de Conr a d


c om o um disc ur so sobr e a som br a . O "sóc io se c r e to" da histór ia é um
e str a nho nu que sobe a bor do do na vio qua ndo o c a pitã o f a z o qua r to
de vigia . Esse e str a nho é um of ic ia l de outr o na vio que m a tou um de
se us hom e ns por e squiva r- se de sua s obr iga ç õe s. Enqua nto o c a pitã o
m a nté m e sc ondido o e str a nho, um a a ur a de m a l- e sta r e pe r igo pa ir a
sobr e o na vio a nc or a do. Num m om e nto c r uc ia l, o pr ópr io c a pitã o
qua se c he ga a c om e te r um a to se m e lha nte a o do se u c om pa nhe ir o
se c r e to. Qua ndo o c a pitã o r e c onhe c e que ta m bé m e le pode r ia
c om e te r um a ssa ssina to, diz Ha r ding, a te nsã o se a livia . "Entã o, e só
e ntã o, o hom e m da som br a e sgue ir a - se pa r a o oc e a no do qua l ha via
sa ído tã o m iste r iosa m e nte , e nos é da do a e nte nde r que a e str a nha
te nsã o que e nc obr ir a o na vio e se u ine xpe r ie nte c a pitã o se dissolve e
e le s na ve ga m de volta pa r a c a sa c om ve ntos f a vor á ve is."2

Enqua nto suste nta m os que todo o m a l e stá lá f or a , o nosso na vio —


c om o o do Ca pitã o Aha b — e stá no c a m inho da de str uiç ã o. Ma s
qua ndo r e c onhe c e m os que ta m bé m a c a pa c ida de pa r a o m a l vive
de ntr o de nós, pode m os f a ze r a s pa ze s c om a nossa som br a e o nosso
na vio pode na ve ga r e m se gur a nç a .

É c la r o que e x iste m a l lá f or a . Te m os inim igos, e e le s nos a m e a ç a m .


Ma s, a ssim c om o a gue r r a oc or r e e m c ic los a tr a vé s dos níve is do
siste m a hum a no, a pa z pode c om e ç a r e m qua lque r ponto do c ic lo.
Alte r a ndo- se a ga linha ou o ovo, a a ve pode c om e ç a r a e voluir pa r a
um a nova e spé c ie . Assim c om o f om os e nlouque c idos pe lo tr a um a
ine sc a pá ve l da f r a gm e nta ç ã o do siste m a m undia l, do m e sm o m odo
qua lque r m ovim e nto nosso e m dir e ç ã o à sa nida de ir á nos a j uda r a
c r ia r um a or de m m undia l m a is ínte gr a . Supe r a r a divisã o no e spír ito
hum a no é um pa sso im por ta nte pa r a tr a nsc e nde r m os a s f r onte ir a s que
divide m o nosso pla ne ta a m e a ç a do. Eis um a histór ia ha ssídic a : O filho
de um rabino foi celebrar os ritos de Shabbat numa cidade vizinha. À sua volta, a
família perguntou:

— Ele s f ize r a m a lgo dif e r e nte do que f a ze m os a qui? — Sim , é c la r o


— r e sponde u o Filho.

— E qua l f oi a liç ã o? — pe rgunta r a m .

— "Am a o te u inim igo c om o a ti m e sm o."

— Ma s isso é o que dize m os a qui. P or que disse ste que e r a dif e r e nte ?
— Ele s m e e nsina r a m a a m a r o inim igo de ntr o de m im m e sm o.

Am a r o inim igo de ntr o de nós m e sm os nã o e lim ina o inim igo lá f or a ,


m a s pode m uda r o nosso r e la c iona m e nto c om e le . Qua ndo o m a l
de ixa de se r de m oniza do, som os f or ç a dos a lida r c om e le e m te r m os
hum a nos. Essa é , a um só te m po, um a ta r e f a e spir itua l
pote nc ia lm e nte dolor osa e um a opor tunida de pa r a a pa z e spir itua l.
Esse é se m pr e o c a m inho da hum ilda de .
8
O c or a ç ã o na s tr e va s é o nosso pr ópr io c or a ç ã o. Existe um c e r to
c onsolo e m de m oniza r a s pe ssoa s m a is m onstr uosa s e pe r nic iosa s
de ntr e nós, c om o se o f a to de e la s se r e m um tipo dif e r e nte de c r ia tur a
tor na sse o se u e xe m plo ir r e le va nte pa r a nós. P or isso um a le m ã o
e sc r e ve u que toda s a s te nta tiva s pa r a c om pr e e nde r o c a r á te r do
na zista He inr ic h Him m le r e sta va m f a da da s a o f r a c a sso, "pois
im plic a m c om pr e e nde r m os um louc o, e m te r m os da e xpe r iê nc ia
hum a na ". 4 Ma is sá bio f oi o j or na lista a le m ã o que le m br ou a se us
c om pa tr iota s: "Sa bía m os que Hitle r e r a um de nós de sde o c om e ç o.
Nã o de ve r e m os e sque c e r isso a gor a ."5 Ele ta m bé m e r a um de nós,
um se r hum a no. Na da nç a dia nte do e spe lho, e nc ontr a m os um a f a lsa
pa z inte r ior a o de m oniza r o inim igo. Ma s r e c onhe c e r que a té m e sm o
um inim igo r e a lm e nte de m onía c o é f e ito da m e sm a substâ nc ia que
nós f a z pa r te do ve r da de ir o c a m inho e m dir e ç ã o à pa z.

Nossa c isã o inte r ior f a z c om que nos a pe gue m os à gue r r a do be m


c ontr a o m a l. Ma s se suste nta m os que o r e c ur so da gue r r a é , e m si, o
m a l, e ntã o som os de sa f ia dos a e nc ontr a r um a nova dinâ m ic a m or a l
que r e pr e se nte a pa z pe la qua l luta m os. Na m e dida e m que a
m or a lida de tom a a f or m a da gue r r a , se r e m os c om pe lidos a e sc olhe r
um la do, a nos ide ntif ic a r c om um a pa r te de nós m e sm os e r e pudia r a
outr a . Esse c a m inho da gue r r a f a z c om que nos e le ve m os a c im a de
nós m e sm os, pr e c a r ia m e nte e quilibr a dos sobr e um a bism o.

No nosso m undo, os "f a ze dor e s da pa z" f r e que nte m e nte c om pa r tilha m


c om os "f a ze dor e s da gue r r a " e sse pa r a digm a f unda m e nta l da
m or a lida de . Nossos m ovim e ntos pa c if ista s de m oniza m os gue r r e ir os
c om o a m a nte s da Bom ba , e nqua nto "nós" som os a s boa s pe ssoa s que
que r e m a pa z: c om o se os gue r r e ir os ta m b é m nã o e stive sse m nos
pr ote ge ndo c ontr a pe r igos m uito r e a is, e c om o se nós, "a m a nte s da
pa z", també m nã o tivé sse m os a nossa pr ópr ia ne c e ssida de de a f ir m a r
a nossa supe r ior ida de sobr e os "inim igos" que e sc olhe m os. O r e c ur so
da gue r r a c ontinua a da r a s c a r ta s, m e sm o sob a ba nde ir a da pa z.

E m Gandhi' s Truth [ A Ve r da de de Ga ndhi] , Er ik Er ikson la nç a luz


sobr e a lguns dos pe r igos do c a m inho e m dir e ç ã o à pa z. Ga ndhi é um
he r ói do m ovim e nto ide ológic o do nosso sé c ulo pa r a tr a nsc e nde r o
siste m a da violê nc ia — e , m uito a pr opr ia da m e nte , m e r e c e toda a
a dm ir a ç ã o que r e c e be ; o livr o de Er ikson é , e m si, um tr ibuto: Ga ndhi,
de ta nga , r e pr e se nta ndo a sim plic ida de do e spír ito; Ga ndhi e nsina ndo-
nos a nã o de m oniza r nossos a dve r sá r ios m a s a a pe la r pa r a o m e lhor
la do de le s; Ga ndhi m ostr a ndo c om o de te r o c ic lo de e sc a la da da
violê nc ia a tr a vé s de um a c or a j osa disposiç ã o pa r a a bsor ve r o golpe
se m de volvê - lo.
Ma s e xiste um la do pr oble m á tic o e m Ga ndhi; Er ikson a e le se r e f e r e
num a c a r ta a be r ta a o Ma ha tm a . Essa dim e nsã o e sc ur a é de r iva da do
e xc e sso de ze lo de Ga ndhi na sua luta por pe r f e iç ã o m or a l. Er ikson
vê , no r e la c iona m e nto de Ga ndhi c onsigo m e sm o, um a e spé c ie de
violê nc ia , E ta m bé m pe r c e be que , da dinâ m ic a de sse e sf or ç o pa r a
tr iunf a r sobr e si m e sm o no r e c ur so da gue r r a , c r e sc e r a m r e la ç õe s
tir â nic a s e e xplor a dor a s e ntr e Ga ndhi e a s pe ssoa s que lhe e r a m m a is
pr óxim a s e m a is vulne r á ve is a e le .6 Er ikson ide ntif ic a , na pr ópr ia luta
de Ga ndhi pe la sa ntida de , a s dif ic ulda de s que nos liga m a o c ic lo da
violê nc ia .

O c a m inho da nã o- violê nc ia ( Saty agraha) , diz Er ikson a Ga ndhi e m


sua c a r ta a be r ta , "te r á pouc a c ha nc e de e nc ontr a r sua r e le vâ nc ia
unive r sa l, a m e nos que a pr e nda m os a a plic á - lo ta m bé m a qua lque r
c oisa m á que possa m os se ntir de ntr o de nós m e sm os e que nos f a ç a
te m e r a sa tisf a ç ã o dos instintos, se m a qua l o hom e m nã o só f e ne c e
e nqua nto se r se nsua l c om o ta m bé m se tr a nsf or m a num a c r ia tur a
dupla m e nte pe r nic iosa ".7 Em luga r de de sta que ne sse a rgum e nto de
Er ikson, f igur a a gue r r a de Ga ndhi c ontr a a sua pr ópr ia se xua lida de ,
um a gue r r a na qua l a pr oj e ç ã o ta m bé m te ve um pa pe l a de se m pe nha r
e que tr ouxe , c om o c onse quê nc ia pa r c ia l, o sof r im e nto de outr a s
pe ssoa s. Va le le m br a r a s r e str iç õe s de Ge orge Or we ll qua nto a o
e xe m plo de Ga ndhi: "Nã o há dúvida de que á lc ool, ta ba c o, e tc . sã o
c oisa s que um sa nto de ve e vita r, m a s a sa ntida de ta m bé m é um a c oisa
que os se r e s hum a nos de ve m e vita r."8 A sa ntida de e nvolve um a
e xtr e m a ide ntif ic a ç ã o c om a pa r te "boa " e nqua nto
ir r e c onc ilia ve lm e nte oposta à pa r te m á . Ela se liga à via da gue r r a :
"Gr a nde pa r te de sse e xc e sso de violê nc ia que distingue o hom e m dos
a nim a is", c ontinua Er ikson, f a la ndo de Ga ndhi, "é c r ia do ne le por
e sse s m é todos de tr e ina m e nto inf a ntil que la nç a m um a pa r te de le
c ontr a a outr a ."9

Ta lve z e xista a inda um a outr a via . A bonda de pode se r c onc e bida


c om o sa úde . A r a iz linguístic a ingle sa de He alth [ sa úde ] e stá liga da a
wh o l e [ tota l, ínte gr o] . P or ta nto, o m a l é doe nç a — que r e m os se r
c ur a dos, tota liza dos e nã o de str uídos no c a m inho do "f a ze dor de
gue r r a ". Ao nos tota liza r m os, e nc ontr a m os o c a m inho pa r a a bonda de
da pa z, pa r a a qua lida de do s h a lo m [ pa z, e m he br a ic o] . E no se u
â m a go, ve m a pa z c om o nosso se r, c r ia tur a s im pe r f e ita s e pe c a dor a s
que som os. Er ic h Ne um a nn f a la da "c or a ge m m or a l de nã o
de se j a r m os se r pior e s ne m me lhore s do que r e a lm e nte som os".10
Essa , diz Ne um a nn, é a pa r te m a is im por ta nte do obj e tivo te r a pê utic o
da s psic ologia s de pr of undida de . E, de m odo se m e lha nte , Er ikson
e sc r e ve u a o Ma ha tm a Ga ndhi suge r indo que se a c r e sc e nta sse a o
c a m inho do S a ty a g r a h a o e nc ontr o te r a pê utic o c onsigo m e sm o,
c onf or m e é e nsina do pe lo m é todo psic a na lític o. Os dois c a m inhos
e stã o r e la c iona dos, diz Er ikson, por que a psic a ná lise e nsina a
"c onf r onta r o inim igo inte r ior de um a m a ne ir a nã o- viole nta ...". 11 O
r e c ur so da gue r r a , que divide , é a qui supla nta do pe lo r e c ur so da
r e c onc ilia ç ã o, que tota liza .

A bonda de r e ina r á no m undo, nã o qua ndo e la tr iunf a r sobr e o m a l,


m a s qua ndo o nosso a m or por e la de ixa r de se e xpr e ssa r e m te r m os
de tr iunf o sobr e o m a l. A pa z, se um dia vie r, nã o se r á f e ita por
pe ssoa s que se f ize r a m sa nta s, m a s por pe ssoa s que a c e ita r a m
hum ilde m e nte sua c ondiç ã o de pe c a dor e s. Na ve r da de , f oi um a sa nta
— Sa nta Te r e sa de Lisie ux — que m e xpr e ssou o que é pr e c iso pa r a
pe r m itir m os que o e spír ito da pa z r e sida e m nossos c or a ç õe s: "Se
e stá s pr e pa r a do pa r a supor ta r se r e na m e nte a pr ova ç ã o de se r e s f onte
de de sgosto pa r a ti m e sm o, e ntã o se r á s um a gr a dá ve l a br igo pa r a
Je sus." 12

Hav e rá dife re nç a e ntre o sim e o não?


Hav e rá dife re nç a e ntre o be m e o mal?
De v e re i te me r o que os outros te me m? Contrasse nso!
O te r e o não te r surge m juntos.
O fác il e o difíc il se c omple me ntam.
O longo e o c urto se c ontrastam.
O alto e o baix o de pe nde m um do outro.
Fre nte e c ostas, uma à outra se se gue m.
La o Tsé

Parte 8

A c r iaç ão do inimigo: nós e e le s no c or po polít ic o

Vive m os num a é poc a e m que nos surge a pe r c e pç ã o de que o povo


que vive no outr o la do da m onta nha nã o é c om posto unic a m e nte por
de m ônios r uivos r e sponsá ve is por todo o m a l que e xiste no nosso la do
da m onta nha .

C. G. J ung

Nossos a m igos nos m ostr a m o que pode m os f a ze r ; nossos inim igos nos
e nsina m o que pr e c isa m os f a ze r.

Goe the
Um inim igo é c om o um te sour o e nc ontr a do na m inha c a sa ,
c onquista do se m tr a ba lho de m inha pa r te ; de vo pr ote gê - lo, pois e le
m e a j uda no m e u c a m inho pa r a a I lum ina ç ã o.

Santi- De v a

Se pudé sse m os le r a histór ia se c r e ta dos nossos inim igos,


de sc obr ir ía m os na vida de c a da hom e m m á goa e sof r im e nto
suf ic ie nte s pa r a de sa r m a r qua lque r tipo de hostilida de .

He nry Wadsworth Longfe llow

Introdução

P or m a is r e pulsiva que possa pa r e c e r a ide ia , pr e c isa m os de inim igos.


A vida hum a na pa r e c e f lor e sc e r c om e le s, pa r e c e de pe nde r de le s. A
P a r te 8 de ste livr o e xplor a a c r ia ç ã o e a f unç ã o dos inim igos, e m
níve l pe ssoa l e c ole tivo, c om e nsa ios que e nf a tiza m os de sa f ios
m or a is, pr á tic os e f ilosóf ic os, la nç a dos pe lo inim igo.

A c r ia ç ã o de um inim igo pa r e c e se r vir a um pr opósito vita l: pode m os,


de um m odo inc onsc ie nte e indolor, a tr ibuir a os nossos inim igos
a que la s qua lida de s que nã o c onse guim os tole r a r e m nós m e sm os.
Qua ndo obse r va da a tr a vé s da s le nte s psic ológic a s, a c r ia ç ã o do
inim igo é um a tr a nsposiç ã o da nossa som br a sobr e pe ssoa s que , por
m otivos e m ge r a l ba sta nte c om ple xos, se a da pta m à im a ge m que
f a ze m os do se r inf e r ior. Ba sta - nos pe nsa r na s pe ssoa s a que m
j ulga m os, por que m se ntim os a ve r sã o ou c ontr a que m m a nte m os
pr e c onc e itos se c r e tos, pa r a que nos de sc ubr a m os na s ga r r a s da nossa
na tur e za m a is e sc ur a .

Em te r m os de pa ís, de r a ç a , de r e ligiã o ou de qua lque r outr a


ide ntida de c ole tiva , pode m os obse r va r que a c r ia ç ã o do inim igo é
r e a liza da e m pr opor ç õe s m ític a s, dr a m á tic a s e m uita s ve ze s tr á gic a s.
Gue r r a s, c r uza da s e pe r se guiç õe s c onstitue m o te r r íve l pa tr im ônio
de ssa f or m a da som br a hum a na , que é , a té c e r to ponto, um le ga do da
nossa he r a nç a tr iba l instintiva . As m a ior e s c r ue lda de s na histór ia da
hum a nida de f or a m pr a tic a da s e m nom e de c a usa s vir tuosa s, qua ndo
a s som br a s de na ç õe s inte ir a s se pr oj e ta r a m sobr e a f a c e de um
inim igo; e , a ssim , um gr upo "dif e r e nte " pode se r tr a nsf or m a do e m
inim igo, e m bode e xpia tór io ou e m inf ie l.

A f unç ã o últim a de gue r r e a r um inim igo é a r e de nç ã o. De a c or do


c om o f ilósof o soc ia l Er ne st Be c ke r : "Se e xiste um a c oisa que a s
tr á gic a s gue r r a s da nossa é poc a nos e nsina r a m é que o inim igo te m
um pa pe l r itua lístic o a de se m pe nha r e , por m e io de le , o m a l é
r e dim ido. Toda s a s gue r r a s, por ta nto, sã o tr a va da s c om o gue r r a s
santas num duplo se ntido — c om o um a r e ve la ç ã o do de stino, um a
pr ova do f a vor divino e c om o um a m a ne ir a de e lim ina r o m a l do
m undo."

A nossa é poc a viu um inc r íve l de spe r díc io de r e c ur sos hum a nos e
m a te r ia is, dissipa dos pa r a m a nte r e m a nda m e nto o j ogo da "c r ia ç ã o
do inim igo" na Gue r r a Fr ia . Já c om pr om e te m os o f utur o dos nossos
f ilhos c om a r m a m e ntos e te c nologia s bé lic a s. Te m os a e spe r a nç a de
pode r a plic a r a s liç õe s da f utilida de de sm onta ndo a s a r m a s de sse
m a quiná r io obsole to.

O m undo pa r e c e e sta r e spe r a ndo por um a nova e r a de c oope r a ç ã o


c onstr utiva , um novo m ilê nio no qua l usa r e m os pa r a r e solve r
pr oble m a s a e ne rgia que hoj e de spe r diç a m os c r ia ndo o inim igo. O
novo inim igo a se r c om ba tido nã o e xige pr oj e ç ã o; te m os a c e sso a e le
sim ple sm e nte r e c onhe c e ndo a s nossa s pr ópr ia s som br a s c ole tiva s e
a ssum indo a nossa r e sponsa bilida de , pois e le a gor a tor nou- se
m a nif e sto sob a f or m a do de sa str e e c ológic o, do e f e ito e stuf a , da
e xtinç ã o de inc ontá ve is e spé c ie s e da pr iva ç ã o e c onôm ic a e
de snutr iç ã o de m uitos povos.

Ma s no m om e nto e m que e ste livr o va i pa r a o pr e lo, um a nova gue r r a


e um novo inim igo e stã o sobr e nós, A pr oj e ç ã o da nossa som br a f oi
r e tir a da de c im a da e x- Uniã o Sovié tic a e de sloc a da pa r a c im a de um
novo a lvo: o I r a que e se u insole nte líde r Sa dda m Husse in, Ma is um a
ve z, nossa s na ç õe s se e ntr e c hoc a m na da nç a da m or te ; m a is um a ve z,
e sta m os na s ga r r a s do a r qué tipo da som br a .

Os e nsa ios da P a r te 8 c ontinua m a disc utir o m a l na m e nta lida de


c ole tiva e , e m pa r tic ula r, de se nvolve m o te m a da som br a no te c ido
soc ia l e polític o da hum a nida de . O e sc r itor e f ilósof o Sa m Ke e n dá o
tom pa r a e sta se ç ã o c om se u e nsa io "O c r ia dor de inim igos", e xtr a ído
d e Fac e s of the Ene my [ As Fa c e s do I nim igo] . Ke e n de sc r e ve o
pr oc e sso de c r ia ç ã o do inim igo e e xplor a a m e nte da que le a que m
c ha m a homo hostilis, o "hom e m hostil", e obse r va que a ve r da de ir a
e spe r a nç a pa r a a sobr e vivê nc ia hum a na e stá e m m uda r m os a m a ne ir a
c om o pe nsa m os o inim igo e a gue r r a .

Fr a n P e a ve y , pr of e ssor a , a tivista e a tr iz, c ontinua ( c om a c ola bor a ç ã o


de My r na Le vy e Cha r le s Va r on) a disc ussã o de sse te m a c om um a
na r r a tiva m uito pe ssoa l, "Nós e e le s", onde r e f le te sobr e a na tur e za do
ódio e do m a l, a s dif ic ulda de s de tr a ba lha r e m pr ol da m uda nç a soc ia l
a ba ndona ndo a a bor da ge m hostil, e a ta r e f a últim a : c om o nã o odia r o
se u inim igo.

A e sc r itor a f e m inista Susa n Gr iff in nos of e r e c e um a nova lingua ge m


pa r a pe nsa r m os a som br a , no se u a r tigo "A m e nte c ha uvinista ",
e xtr a ído de Pornography and Sile nc e [ P or nogr a f ia e Silê nc io] . Ela
c ha m a de por nogr a f ia à m itologia do c ha uvinism o e m ostr a que os
obj e tos do r a c ista , do m isógino e do a ntisse m ita sã o, na ve r da de ,
pa r te s pe r dida s da a lm a . Na nossa c ultur a , diz Gr iff in, ningué m
e sc a pa de pa r tic ipa r da m e nte c ha uvinista .

A poe ta e e nsa ísta Audr e Lor de , que é ne gr a e lé sbic a , e xpõe a


som br a c ultur a l nor te - a m e r ic a na c om o um a f or m a instituc iona liza da
de opr e ssã o, c om e ç a ndo pe la s distor ç õe s c om a s qua is
de se nc a m inha m os nossos f ilhos. Ela e sc r e ve a r e spe ito de um a
"nor m a m ític a " da c ultur a , sobr e a qua l r e side o pode r da soc ie da de , e
de sc r e ve c om o a que le s que se de svia m de sse e ste r e ótipo
hom oge ne iza do tor na m - se m a rgina liza dos. Este a r tigo f oi e xtr a ído de
se u livr o Siste r Outside r [ I r m ã Ma rgina liza da ] .

No Ca pítulo 45, o a na lista j unguia no Je r om e Be r nste in e xa m ina a


na tur e za da s pr oj e ç õe s da som br a que os nor te a m e r ic a nos, os
sovié tic os e se us r e spe c tivos gove r nos la nç a r a m um sobr e o outr o e
c om o e la s e stã o m uda ndo na e r a da Gla snost. "O e spe lho EUA —
URSS", e xtr a ído de se u livr o Powe r and Politic s: The Psy c hology of
lhe Sov ie t- Ame ric an Partne rship [ P ode r e P olític a : A P sic ologia da
Alia nç a Sovié tic oAm e r ic a na ] , m ostr a c om o a s dua s supe r potê nc ia s
pr ova r a m se r bons inim igos dur a nte o pe r íodo da Gue r r a Fr ia : c a da
um a de la s de f e ndia ide a is polític os que e r a m ne ga dos pe lo siste m a de
gove r no da outr a .

O c e le br a do e sc r itor e psic ólogo Robe r t Ja y Lif ton a pr e se nta - nos um


r e tr a to de ge noc ídio e a ssa ssina to e m m a ssa na sua a ná lise do
f unc iona m e nto do la do e sc ur o na m á quina de gue r r a na zista . Em "A
duplic a ç ã o e os m é dic os na zista s", e xtr a ído de The Nazi Doc tors:
M e dic ai Killing and the Psy c hology of Ge noc ide [ Os Mé dic os Na zista s:
Assa ssina to Mé dic o e a P sic ologia do Ge noc ídio] , Lif ton usa os
c onc e itos do duplo e da dissoc ia ç ã o psic ológic a pa r a e xplic a r c om o
pr of issiona is suposta m e nte é tic os f or a m c a pa ze s de c om e te r
ina c r e ditá ve is a tr oc ida de s m é dic a s sobr e os "inim igos" e m Ausc hwitz
e outr os c a m pos de c onc e ntr a ç ã o e , a inda a ssim , nã o se r e m a f e ta dos
f unc iona lm e nte .

Esta be le c e ndo a c one xã o e ntr e a insa nida de e a som br a , o a na lista


j unguia no suíç o Adolf Gugge nbühl- Cr a ig diz que um dos pr inc ipa is
pr oble m a s e m qua lque r soc ie da de é im pe dir que pe ssoa s
ine sc r upulosa s c he gue m a o pode r. O Ca pítulo 47, "P or que os
psic opa ta s nã o gove r na m o m undo?", f oi e xtr a ído de Eros on Crutc he s
[ Er os de Mule ta s] .
O Ca pítulo 48, "Que m sã o os c r im inosos?", utiliza a e la bor a da
m e tá f or a da a lquim ia pa r a c r itic a r a m a ne ir a c om o a c ultur a f a z os
c r im inosos c a r r e ga r e m sua s pa r te s e sc ur a s e indigna s. Ma is do que
pr oc ur a r se r ia m e nte r e a bilita r os e le m e ntos c r im inosos à vida e m
soc ie da de , diz o e sc r itor Je r r y Fj e r ke nsta d, tr a nsf or m a m os a c la sse
c r im inosa e m nossos bode s e xpia tór ios pr ontos pa r a o sa c r if íc io.
"P r e c isa m os de bandidos pa r a que a lgué m , que nã o nós, se j a pe go",
zom ba e le . Este a r tigo f oi or igina lm e nte public a do no j or na l I nroads.

Enc e r r a m os e sta se ç ã o c om a hum or ístic a pa r á bola "De m ônios na


r odovia ", na qua l o a na lista j unguia no Ja m e s Ya nde ll tr a nsf or m a o a to
de dir igir num a e str a da num a ba ta lha m or a l c ontr a o a dve r sá r io na
outr a pista .

Com e sta a m pla va r r e dur a pode m os ve r que som os todos, a um só


te m po, a m igos e inim igos, a lia dos e opone nte s. A e sc olha é nossa .

41. O criador de inimigos

SAM KEEN

PARA CRIAR UM INIM IG O

Com e c e c om um a te la e m br a nc o
e de line ie , num c ontor no ge r a l, a s f or m a s
de hom e ns, m ulhe r e s e c r ia nç a s.
Me rgulhe f undo no poç o inc onsc ie nte de
sua pr ópr ia som br a r e pr im ida
c om um pinc e l la rgo e
sa lpique os e str a nhos c om o m a tiz sinistr o da som br a .

Tr a c e sobr e o r osto do inim igo


a a vide z, o ódio e a ne gligê nc ia que voc ê nã o ousa
a ssum ir c om o se us.

Obsc ur e ç a a doc e individua lida de de c a da r osto.

Apa gue todos os tr a ç os de m il a m or e s, e spe r a nç a s


e m e dos que br inc a m pe lo c a le idosc ópio de
c a da c or a ç ã o f inito.

Re tor ç a o sor r iso a té que e le f or m e um a r c o


de sc e nde nte de c r ue lda de .

Ar r a nque a c a r ne dos ossos a té que só r e ste


o e sque le to a bstr a to da m or te .

Exa ge r e a s f e iç õe s pa r a que o hom e m se m e ta m or f ose ie


e m be sta , ve r m e , inse to.

P r e e nc ha o f undo c om f igur a s m a ligna s


de a ntigos sonhos — dia bos,
de m ônios e gue r r e ir os do m a l.

Qua ndo a sua e stá tua do inim igo e stive r c om ple ta


voc ê se r á c a pa z de m a ta r se m se ntir c ulpa ,
tr uc ida r se m se ntir ve rgonha .

A c oisa que voc ê de str uiu tor nou- se a pe na s


um inim igo de De us, um e stor vo
à sa gr a da dia lé tic a da Histór ia .

No c om e ç o, c r ia m os o inim igo. Ante s da a r m a , ve m a im a ge m .


Pe nsam os e m m a ta r os outr os e e ntã o inve nta m os a a la ba r da ou o
m íssil nuc le a r c om os qua is r e a lm e nte os m a ta m os. A pr opa ga nda
pr e c e de a te c nologia .

P olític os, de e sque r da e de dir e ita , c ontinua m a nã o e nte nde r a s


c oisa s. Ele s a c ha m que o inim igo de sa pa r e c e r á no insta nte e m que
m uda r m os a m a ne ir a c om o nos se r vim os da s nossa s a r m a s. Os
c onse r va dor e s a c r e dita m que o inim igo se a ssusta r á e f ic a r á m a nso se
tive r m os a r m a s m a ior e s e m e lhor e s. Os libe r a is a c r e dita m que o
inim igo se tor na r á nosso a m igo se r e duzir m os nosso a r se na l bé lic o.
Am bos r a c ioc ina m a pa r tir de pr e m issa s r a c iona lista s e otim ista s: nós,
se r e s hum a nos, som os r a c iona is e pr a gm á tic os a nim a is f a br ic a nte s de
f e r r a m e nta s. Ao longo da histór ia , j á pr ogr e dim os ba sta nte e nos
tor na m os o Homo sapie ns ( "hom e m r a c iona l") e o Homo fabe r
( "hom e m f e r r a m e nte ir o") . P or ta nto, pode m os f a ze r a pa z a tr a vé s de
ne goc ia ç õe s r a c iona is e do c ontr ole de a r m a m e ntos.

Só que isso nã o e stá f unc iona ndo. O pr oble m a pa r e c e e sta r, nã o na


nossa r a zã o ou na nossa te c nologia , m a s na inse nsibilida de dos nossos
c or a ç õe s. Ge r a ç ã o a pós ge r a ç ã o, e nc ontr a m os de sc ulpa s pa r a odia r e
de sum a niza r uns a os outr os e se m pr e nos j ustif ic a m os c om a r e tór ic a
polític a que nos pa r e c e m a is a m a dur e c ida . E nos r e c usa m os a a dm itir
o óbvio. Nós, se r e s hum a nos, som os Homo hostilis ( "hom e m hostil") , a
e spé c ie hostil, o a nim a l que f a br ic a inim igos. Som os le va dos a
f a br ic a r um inim igo c om o um bode e xpia tór io pa r a c a r r e ga r o f a r do
da inim iza de que r e pr im im os. Do r e síduo inc onsc ie nte da nossa
hostilida de , c r ia m os um a lvo; dos nossos de m ônios pa r tic ula r e s,
c onj ur a m os um inim igo públic o. E, m a is que tudo, ta lve z a s gue r r a s
e m que nos e nvolve m os se j a m r itua is c om pulsivos, dr a m a s da som br a
nos qua is c ontinua m e nte te nta m os m a ta r a que la s pa r te s de nós
m e sm os que ne ga m os e de spr e za m os.

Nossa m e lhor e spe r a nç a de sobr e vivê nc ia e stá e m m uda r o m odo


c om o pe nsa m os os inim igos e a gue r r a . Em ve z de se r m os
hipnotiza dos pe lo inim igo, pr e c isa m os c om e ç a r a obse r va r os olhos
c om os qua is ve m os o inim igo. Va m os a gor a e xplor a r a m e nte do
Homo hostilis: va m os e xa m ina r e m de ta lhe s a s m a ne ir a s c om o
f a br ic a m os a im a ge m do inim igo, c om o c r ia m os um supe r á vit de m a l,
c om o tr a nsf or m a m os o m undo num c a m po de m a ta nç a . P a r e c e
im pr ová ve l que a lc a nc e m os qua lque r suc e sso no c ontr ole da gue r r a a
m e nos que c he gue m os a c om pr e e nde r a lógic a da pa r a noia polític a e
o pr oc e sso de c r ia ç ã o da pr opa ga nda que j ustif ic a a nossa hostilida de .
P r e c isa m os tom a r c onsc iê nc ia da quilo que Ca r l Jung c ha m ou de "a
som br a ". Os he r óis e líde r e s pa c if ista s do nosso te m po se r ã o a que le s
hom e ns e m ulhe r e s c om c or a ge m pa r a m e rgulha r na s tr e va s no f undo
da psique pe ssoa l e c ole tiva , e e nf r e nta r o inim igo inte r ior. As
psic ologia s de pr of undida de nos pr e se nte a r a m c om a ine gá ve l
sa be dor ia de que o inim igo é c onstr uído a pa r tir de a spe c tos
r e pr im idos do s e l f . P or ta nto, o m a nda m e nto r a dic a l "Am a a te us
inim igos c om o a ti m e sm o" indic a o c a m inho ta nto pa r a o
a utoc onhe c im e nto c om o pa r a a pa z, Na ve r da de , a m a m os ou odia m os
nossos inim igos na m e sm a m e dida e m que a m a m os ou odia m os a nós
m e sm os. Na im a ge m do inim igo, e nc ontr a r e m os o e spe lho no qua l
pode m os ve r a nossa pr ópr ia f a c e c om a m á xim a c la r e za .

Ma s, e spe r e um pouc o! Nã o tã o de pr e ssa ! Um c or o de obj e ç õe s


le va nta - se de ntr e os a de ptos da pr á tic a polític a do pode r : "O que voc ê
que r dize r c om c riar inim igos? Nã o som os nós que f a ze m os o inim igo.
Existe m a gr e ssor e s, im pé r ios do m a l, ba ndidos e m ulhe r e s pe r ve r sa s
no m undo r e a l. E e le s nos de str uir ã o se nós nã o os de str uir m os
pr im e ir o. Existe m vilõe s r e a is — Hitle r, Sta lin, P ol P ot ( líde r do
Khm e r Ve r m e lho c a m boj a no, r e sponsá ve l pe la m or te de dois m ilhõe s
de pe ssoa s do se u pr ópr io povo) . Voc ê nã o pode psic ologiza r os
e ve ntos polític os ne m r e solve r o pr oble m a da gue r r a e studa ndo os
c onhe c im e ntos do inim igo."

Obj e ç ã o c onc e dida . Em pa r te . Me ia s- ve r da de s de na tur e za


psic ológic a ou polític a nã o tê m c ondiç õe s de f a ze r a va nç a r a c a usa da
pa z. De ve m os se r tã o c a ute losos a o psic ologiza r e ve ntos polític os
qua nto a o politiza r e ve ntos psic ológic os. A gue r r a é um pr oble m a
c om ple xo, e nã o é pr ová ve l que se j a r e solvida por qua lque r
a bor da ge m ou disc iplina isola da . P a r a lida r c om e la pr e c isa m os, no
m ínim o, de um a te or ia quântic a da gue r r a — e nã o de a lgum a te or ia
unic a usa l. Assim c om o só e nte nde m os a luz qua ndo a c onside r a m os
c om o onda e pa r tíc ula , só pode r e m os e studa r r e a lm e nte o pr oble m a
da gue r r a ve ndo- a c om o um siste m a que é suste nta do por e ste s pa r e s:
A psique guerreira e A cidade violenta

P a r a noia e P r opa ga nda

A im a gina ç ã o hostil e Os c onf litos ge opolític os e de va lor e s e ntr e os


pa íse s

O pe nsa m e nto c r ia tivo sobr e a gue r r a se m pr e e nvolve r á a


c onside r a ç ã o da psique individua l e da s instituiç õe s soc ia is. A
soc ie da de m olda a psique ; e vic e - ve r sa . P or ta nto, te m os de tr a ba lha r
pa r a c r ia r a lte r na tiva s psic ológic a s e polític a s à gue r r a , m uda ndo a
psique do Homo hostilis e a e str utur a da s r e la ç õe s inte r na c iona is. Ou
se j a , tr a ta - se ta nto de um a he r oic a j or na da no se lf qua nto de um a
nova f or m a de polític a c om pa ssiva . Nã o te m os ne nhum a c ha nc e de
r e duzir a s gue r r a s a nã o se r que obse r ve m os a s r a íze s psic ológic a s da
pa r a noia , da pr oj e ç ã o e da pr opa ga nda ; a nã o se r que de ixe m os de
ignor a r a s c r ué is pr á tic a s de e duc a ç ã o dos j ove ns, a s inj ustiç a s, os
inte r e sse s e spe c ia is da s e lite s no pode r, os histór ic os c onf litos r a c ia is,
e c onôm ic os e r e ligiosos, e a s inte nsa s pr e ssõe s popula c iona is que
sustê m o siste m a da gue r r a .

O pr oble m a da psic ologia m ilita r é c om o c onve r te r o a to de m a ta r e m


pa tr iotism o. De m odo ge r a l, e sse pr oc e sso de de sum a niza r o inim igo
a inda nã o f oi e xa m ina do a te nta m e nte . Qua ndo pr oj e ta m os nossa s
som br a s, siste m a tic a m e nte f ic a m os c e gos pa r a a quilo que e sta m os
f a ze ndo. P a r a pr oduzir ódio e m m a ssa , o c or po polític o pr e c isa
pe r m a ne c e r inc onsc ie nte de sua pr ópr ia pa r a noia , pr oj e ç ã o e
pr opa ga nda . "O inim igo" é , a ssim , c onside r a do tã o r e a l e obj e tivo
qua nto um a r oc ha ou um c ã o r a ivoso. Nossa pr im e ir a ta r e f a é que br a r
e sse ta bu, tor na r c onsc ie nte o inc onsc ie nte do c or po polític o e
e xa m ina r a s m a ne ir a s pe la s qua is c r ia m os o inim igo.

A pa r a noia c onse nsua l — a pa tologia da pe ssoa nor m a l que é m e m br o


de um a soc ie da de que j ustif ic a a gue r r a — f or m a o pa r â m e tr o pe lo
qua l sã o c r ia da s toda s a s im a ge ns do inim igo. Ao e studa r a lógic a da
pa r a noia , pode m os ve r por que c e r tos a r qué tipos do inim igo sã o
ne c e ssa r ia m e nte r e c or r e nte s, nã o im por ta qua is se j a m as
c ir c unstâ nc ia s histór ic a s.

A pa r a noia e nvolve um c om ple xo de m e c a nism os m e nta is,


e m oc iona is e soc ia is; a tr a vé s de le um a pe ssoa , ou um povo, r e ivindic a
pa r a si r e tidã o e pur e za , e a tr ibui hostilida de e m a l a o inim igo. O
pr oc e sso c om e ç a c om um a divisã o e ntr e o se lf "bom ", c om o qua l nos
ide ntif ic a m os c onsc ie nte m e nte e que é c e le br a do pe la m itologia e
pe la m ídia , e o se lf "m a u", que pe r m a ne c e r á inc onsc ie nte na m e dida
e m que pude r se r pr oj e ta do sobr e um inim igo. Atr a vé s de ssa
pr e stidigita ç ã o, f a ze m os c om que a s pa r te s ina c e itá ve is do se lf — sua
a vide z, c r ue lda de , sa dism o, hostilida de , a quilo que Jung c ha m ou de "a
som br a " — de sa pa r e ç a m e só a s r e c onhe c e m os c om o qua lida de s do
inim igo, A pa r a noia r e duz a a nsie da de e a c ulpa a o tr a nsf e r ir pa r a o
outr o toda s a s c a r a c te r ístic a s que a pe ssoa nã o que r r e c onhe c e r e m si
m e sm a . Ela é m a ntida pe la pe r c e pç ã o se le tiva e pe la r e voc a ç ã o. Nós
ve m os e r e c onhe c e m os unic a m e nte os a spe c tos ne ga tivos do inim igo
que suste nta m o e ste r e ótipo que j á c r ia m os. P or isso, a te le visã o
nor te - a m e r ic a na tr a nsm ite pr inc ipa lm e nte a s m á s notíc ia s sobr e os
r ussos, e vic e - ve r sa . Le m br a m o- nos a pe na s da s e vidê nc ia s que
c onf ir m a m os nossos pr e c onc e itos.

A m e lhor ilustr a ç ã o da f e iç ã o pa r a noic a e stá , se m dúvida , na


pr opa ga nda a ntisse m ita . P a r a o a ntisse m ita , o j ude u é a f onte do m a l.
P or tr á s dos inim igos a c ide nta is e histór ic os da Ale m a nha —
I ngla te r r a , Esta dos Unidos, Rússia — se m pr e e ste ve e m bosc a do o
j ude u c onspir a dor, A a m e a ç a e r a sim ple s e oc ulta a um olha r c a sua l,
m a s e vide nte pa r a a que le s que r e a lm e nte a c r e dita va m na supr e m a c ia
a r ia na . De ntr o de ssa lógic a r e tor c ida , f a zia se ntido pa r a os na zista s
de svia r os tr e ns tã o ne c e ssá r ios a o tr a nspor te da s tr opa s a té o front a
f im de le va r os j ude us a os c a m pos de c onc e ntr a ç ã o pa r a a "soluç ã o
f ina l".

Nua nç a s de um a m e sm a visã o pa r a noic a m a tiza m os a ntic om unista s


da e xtr e m a - dir e ita a m e r ic a na e os obc e c a dos a ntic a pita lista s
sovié tic os; a m bos a tr ibue m a o a dve r sá r io m a is pode r, c oe sã o e
suc e sso na s c onspir a ç õe s do que qua lque r um de le s possui. Os que
r e a lm e nte a c r e dita m ne ssa visã o, e m a m bos os la dos, c onside r a m o
m undo um c a m po de ba ta lha no qua l todos os pa íse s a c a ba r ã o se ndo
inc luídos na e sf e r a de inf luê nc ia , ou do c a pita lism o ou do c om unism o.

Um a f unç ã o im por ta nte da m e nte pa r a noic a é e sc a pa r da c ulpa e da


r e sponsa bilida de , e a f ixa r a c e nsur a e m outr a pa r te . Essa inve r sã o
pode c he ga r a te r r íve is e xtr e m os.

Culpa pr oduz c ulpa . Logo, a pe ssoa ou na ç ã o pa r a noic a c r ia r á um


siste m a de ilusã o c om pa r tilha do, um a paranoia à de ux . O "siste m a de
inim igo" e nvolve um pr oc e sso de dois ou m a is inim igos que la nç a m
se u lixo psic ológic o ( inc onsc ie nte ) no quinta l uns dos outr os.
Atr ibuím os a e le s tudo a quilo que de spr e za m os e m nós m e sm os. E
vic e - ve r sa . Já que e sse pr oc e sso de pr oj e ç ã o inc onsc ie nte da som br a
é unive r sa l, os inim igos "pr e c isa m " um do outr o pa r a se livr a r da s
toxina s psic ológic a s a c um ula da s e r e pr im ida s. For m a m os um la ç o de
ódio, um a "sim biose hostil", um siste m a inte gr a do que ga r a nte que
ne nhum de nós se r á c onf r onta do c om a sua pr ópr ia som br a .

No c onf lito e ntr e a U.R.S.S. e os Esta dos Unidos, um pr e c isa do outr o


c om o a lvo de tr a nsf e r ê nc ia s gr upa is. A pr opa ga nda sovié tic a que
m ostr a os Esta dos Unidos c om o um pa ís que a busa dos dir e itos c ivis é ,
c la r a m e nte , o r oto a r ir- se do e sf a r r a pa do. Do m e sm o m odo, nossa s
tir a da s c ontr a o c ontr ole e sta ta l sovié tic o e a a usê nc ia da pr opr ie da de
individua l r e f le te m nossa r a iva inc onsc ie nte c om r e la ç ã o à pe r da r e a l
de libe r da de individua l sob o c a pita lism o c or por a tivo e à nossa
de pe ndê nc ia do gove r no pa r a c uida r de nós do úte r o a o túm ulo —
ne nhum a da s qua is se a de qua à im a ge m que f a ze m os de nós m e sm os
c om o f e r r e nhos individua lista s. Of ic ia lm e nte , ve m os a de pe ndê nc ia
de le s a o Esta do c om o e sc r a vidã o; no e nta nto, a dota m os um gr a nde e
a c e le r a do soc ia lism o gove r na m e nta l, e é e vide nte que te m os
pr of unda s ne c e ssida de s de de pe ndê nc ia que nã o se a de qua m à nossa
im a ge m c onsc ie nte de nós m e sm os c om o "o hom e m de Ma r lbor o".
Qua ndo os sovié tic os ve e m nossa libe r da de de ge r a r luc r os e de
c onsum ir c om o um a f or m a de lic e nc iosida de , e stá c la r o que e le s
a nse ia m por um a m a ior libe r da de pe ssoa l. Ac ha m os que os sovié tic os
tr a nsf or m a m o indivíduo num sim ple s m e io pa r a os obj e tivos do
Esta do. Ele s a c ha m que nós j ustif ic a m os a c obiç a de indivíduos
pode r osos à s c usta s da c om unida de e pe r m itim os o luc r o de um a
m inor ia à s e xpe nsa s da m a ior ia . E e nqua nto tr oc a m os insultos, a m bos
e sta m os a sa lvo da e m ba r a ç osa ta r e f a de obse r va r os sé r ios e r r os e
c r ue lda de s dos nossos pr ópr ios siste m a s.

É ine vitá ve l que a psique pa r a noic a e inf a ntil ve j a o inim igo c om o


possuidor de a lgum a s da s qua lida de s pa r a doxa is dos pa is m a us. A
f ór m ula pa r a de str uir o inim igo c om im punida de m or a l se m pr e a tr ibui
a e le um pode r qua se onipote nte e um c a r á te r m or a l de gr a da do. O
De pa r ta m e nto de De f e sa dos Esta dos Unidos, e m se u c a r a c te r ístic o
e stilo pa r a noic o, r e gula r m e nte de sc obr e a lgum se nã o — pr oble m a s de
bom ba r de ir os, de ta nque s, de m ísse is, de ga stos — que m ostr a que os
sovié tic os e stã o m a is pode r osos que nós e , a o m e sm o te m po, pinta um
r e tr a to do im pla c á ve l a va nç o do c om unism o a te u. O Kr e m lin f a z o
m e sm o j ogo.

P a r a a m e nte pa r a noic a , a pr ópr ia noç ã o de igua lda de é im possíve l.


Um pa r a noic o pr e c isa se r sa dic a m e nte supe r ior e dom ina r os outr os,
ou m a soquista m e nte inf e r ior e se se ntir a m e a ç a do por e le s. Os a dultos
ta lve z se j a m igua is uns a os outr os e c om pa r tilhe m r e sponsa bilida de s
pa r a o be m e pa r a o m a l, m a s, no m undo inf a ntil, o giga nte — os pa is,
o inim igo — de té m o pode r e , por ta nto, é m or a lm e nte de spr e zíve l por
nã o e lim ina r a dor e o m a l pe los qua is só e le é r e sponsá ve l.

O Homo hostilis é inc ur a ve lm e nte dua lista , um m a nique u m or a lista :

Nós som os inoc e nte s. Ele s sã o c ulpa dos.

Nós dize m os a ve r da de — inf or m a m os. Ele s m e nte m — usa m


pr opa ga nda .

Nós a pe na s nos de f e nde m os. Ele s sã o a gr e ssor e s.

Nós te m os um de pa r ta m e nto de de f e sa . Ele s tê m um de pa r ta m e nto de


gue r r a .

Nossos m ísse is e a r m a m e ntos de stina m - se a dissua dir. As a r m a s de le s


de stina m - se a a ta c a r pr im e ir o.

O m a is te r r íve l de todos os pa r a doxos m or a is, o nó gór dio que pr e c isa


se r c or ta do se que r e m os que a Histór ia pr ossiga , é que c r ia m os o m a l
a pa r tir dos nossos ide a is m a is e le va dos e da s nossa s m a is nobr e s
a spir a ç õe s. Ta nto pr e c isa m os se r he r oic os, e sta r a o la do de De us,
e lim ina r o m a l, lim pa r o m undo e ve nc e r a m or te , que ve m os
de str uiç ã o e m or te e m todos a que le s que se posta m no c a m inho do
nosso he r oic o de stino histór ic o. Busc a m os bode s e xpia tór ios e c r ia m os
inim igos a bsolutos, nã o por se r m os intr inse c a m e nte c r ué is m a s por que
o f a to de f oc a liza r m os a nossa r a iva sobr e um a lvo e xte r no e
a tingir m os um e str a nho f a z a nossa tr ibo ou na ç ã o se unir e nos
pe r m ite f a ze r pa r te de um gr upo r e str ito e bom . Cr ia m os um supe r á vit
de m a l por que pr e c isa m os pe r te nc e r a o nosso pr ópr io luga r.

P or que c r ia m os psic ona uta s, e xplor a dor e s da s a ltur a s e da s


pr of unde za s da psique ? P or que dr a m a tiza m os o gue r r e ir o da ba ta lha
inte r ior que luta c ontr a a pa r a noia , a s ilusõe s, a a utoindulgê nc ia , a
c ulpa e a ve rgonha inf a ntis, a indolê nc ia , a c r ue lda de , a hostilida de , o
m e do, a r e pr ova ç ã o, a f a lta de se ntido? P or que a soc ie da de
r e c onhe c e e c e le br a a c or a ge m da que le s que luta m c ontr a a s
te nta ç õe s de m onía c a s do s e l f , que e m pr e e nde m um a gue r r a sa nta
c ontr a tudo o que é m a u, distor c ido, pe r ve r so e of e nsivo no se lf?
Se que r e m os a pa z, c a da um de nós pr e c isa c om e ç a r a de sm itif ic a r o
inim igo; de ixa r de politiza r os e ve ntos psic ológic os; r e a ssum ir sua
som br a ; f a ze r um e studo c om ple xo da s m il m a ne ir a s pe la s qua is
r e pr im im os, ne ga m os e pr oj e ta m os o nosso e goísm o, c r ue lda de ,
a vide z, e tc . sobr e os outr os; e c onsc ie ntiza r- se da m a ne ir a pe la qua l
inc onsc ie nte m e nte c r ia m os um a psique gue r r e ir a e pe r pe tua m os a s
m uita s f or m a s de gue r r a .

42. Nós e eles

FRAN PEAVEY ( c om M YRNA LEVY e CHARLES VARON)

Houve um te m po e m que e u sa bia que r a c ista e r a o dono de


la nc hone te que se r e c usa va a a te nde r ne gr os, be lige r a nte e r a o
ge ne r a l que pla ne j a va gue r r a s e or de na va a m a ta nç a de pe ssoa s
inoc e nte s e poluidor e r a o industr ia l c uj a f á br ic a e m pe sta va o a r, a
á gua e o solo.

No e nta nto, por m a is que e u possa pr ote sta r, um olha r hone sto sobr e
m im m e sm a e m e u r e la c iona m e nto c om o r e sto do m undo r e ve la que
e u ta m bé m sou pa r te do pr oble m a . Já pe r c e bi que , num pr im e ir o
c onta to, de sc onf io m a is dos m e xic a nos que dos br a nc os. P e r c e bo m e u
a pe go a um pa dr ã o de vida que é m a ntido a s c usta s de pe ssoa s m a is
pobr e s — um a situa ç ã o que só pode m e sm o se r pe r pe tua da a tr a vé s da
f or ç a m ilita r. E o pr oble m a da poluiç ã o pa r e c e inc luir o m e u c onsum o
de r e c ur sos e a m inha pr oduç ã o de r e síduos. A linha que m e se pa r a
dos "ba ndidos" é indistinta .

Qua ndo m ilita va pe lo f im da Gue r r a do Vie tnã , e u m e se ntia m a l


qua ndo via um hom e m e m unif or m e m ilita r. Le m br o- m e que e u
pe nsa va : "Com o pode a que le suj e ito se r tã o tolo a ponto de te r e ntr a do
na que le unif or m e ? Com o é que e le c onse gue se r tã o subm isso, tã o
c r é dulo a ponto de te r c a ído na lor ota do gove r no sobr e o Vie tnã ?" Eu
f ic a va f ur iosa por de ntr o qua ndo im a gina va a s c oisa s hor r íve is que
e le pr ova ve lm e nte tinha f e ito na gue r r a .

Vá r ios a nos de pois do f im da gue r r a , um pe que no gr upo de ve te r a nos


da Gue r r a do Vie tnã te ntou r e a liza r um r e tir o na nossa f a ze nda e m
Wa tsonville . Eu c onse nti, e m bor a m e se ntisse a m biva le nte e m
hospe dá - los. Na que le f im de se m a na , ouvi um a dúzia de hom e ns e
m ulhe r e s que tinha m se r vido no Vie tnã . Te ndo de e nf r e nta r o
ostr a c ism o a o volta r pa r a c a sa por c a usa de se u e nvolvim e nto na
gue r r a , e le s e sta va m luta ndo pa r a c he ga r a um a c or do c om sua s
e xpe r iê nc ia s.

Conta r a m a lgum a s da s c oisa s te r r íve is que tinha m f e ito e visto, be m


c om o a lgum a s c oisa s da s qua is se orgulha va m . Explic a r a m por que
ha via m se a lista do no e xé r c ito ou a te ndido à c onvoc a ç ã o: se u a m or
pe los Esta dos Unidos, sua a nsie da de de se r vir, se u de se j o de se r
br a vos e he r oic os. Ele s se ntia m que se us nobr e s m otivos ha via m sido
tr a ídos, de ixa ndo- os c om pouc a c onf ia nç a e m se u pr ópr io j ulga m e nto.
Alguns que stiona va m sua pr ópr ia m a sc ulinida de ou f e m inilida de , e
a té m e sm o sua na tur e za hum a na f unda m e nta l. Ele s se pe rgunta va m se
ha via m sido um a f or ç a positiva ou ne ga tiva , e qua l p signif ic a do do
sa c r if íc io de se us c om pa nhe ir os? Sua a ngústia m e de sa r m ou e nã o
pude m a is c ontinua r a vê - los sim ple sm e nte c om o a ge nte s do m a l.

Com o f oi que c he gue i a e nc a r a r os m ilita r e s c om o m e us inim igos?


Dif a m a r os solda dos ba sta r ia pa r a m e tir a r da s m inha s dif ic ulda de s e
pe r m itir que e u m e divor c ia sse da r e sponsa bilida de por a quilo que
m e u pa ís e sta va f a ze ndo no Vie tnã ? Se r á que m inha r a iva e
pur ita nism o m e im pe dia m de ve r a situa ç ã o na sua ple na
c om ple xida de ? Com o e ssa visã o lim ita da a f e ta r a a m inha m ilitâ nc ia
c ontr a a gue r r a ?

Qua ndo m inha ir m ã c a ç ula e se u m a r ido, um j ove m m ilita r de


c a r r e ir a , m e visita r a m vá r ios a nos de pois, f ui nova m e nte de sa f ia da a
ve r o se r hum a no de ntr o do solda do. Fique i sa be ndo que , f a ze nde ir o
no Esta do de Uta h, e le f or a r e c r uta do c om o f r a nc o- a tir a dor.

Um a noite , qua se no f im de sua visita , c om e ç a m os a c onve r sa r sobr e


se u tr a ba lho. Em bor a ta m bé m tive sse sido tr e ina do no c or po m é dic o
do e xé r c ito, e le a inda podia se r c ha m a do a qua lque r te m po pa r a
tr a ba lha r c om o f r a nc o- a tir a dor. Ele nã o podia m e f a la r m uito sobr e
e ssa pa r te da sua c a r r e ir a — f ize r a m - no j ur a r se gr e do. Nã o e stou
c e r ta se e le te r ia tido vonta de de m e c onta r, m e sm o que pude sse . Ma s
e le c he gou a dize r que o tr a ba lho de um f r a nc o- a tir a dor e nvolvia a
ida a a lgum pa ís e str a nge ir o pa r a "a pa ga r " a lgum líde r e , de pois,
de sa pa r e c e r no m e io da m ultidã o.

Qua ndo lhe dá um a or de m , disse m e e le , o e xé r c ito nã o e spe r a que


voc ê pe nse sobr e e la . Voc ê se se nte só e de sa m pa r a do. Em ve z de
a f r onta r o Exé r c ito e , ta lve z, todo o pa ís, e le optou por nã o c onside r a r
a possibilida de de que c e r ta s or de ns nã o de ve m se r obe de c ida s.

Eu podia ve r que o f a to de se se ntir isola do f a zia c om que lhe


pa r e c e sse im possíve l se guir os se us pa dr õe s m or a is e de sobe de c e r
um a or de m . I nc line i- m e pa r a e le e disse : "Se lhe or de na r e m f a ze r
a lgum a c oisa que voc ê sa be que nã o de ve r ia f a ze r, m e c ha m e
im e dia ta m e nte e e u da r e i um j e ito de a j uda r. Conhe ç o um a inf inida de
de pe ssoa s que a poia m a sua posiç ã o. Voc ê nã o e stá sozinho." Ele e
m inha ir m ã se e ntr e olha r a m e se us olhos se e nc he r a m de lá gr im a s.
Com o a pr e nde m os a que m de ve m os odia r e a que m te m e r ? Dur a nte o
c ur to pe r íodo da m inha vida , os inim igos na c iona is dos Esta dos Unidos
m uda r a m vá r ia s ve ze s. Nossos opone nte s na Se gunda Gue r r a Mundia l,
os j a pone se s e os a le m ã e s, tor na r a m - se nossos a lia dos. Os r ussos
e stive r a m e m voga c om o nossos inim igos por a lgum te m po, e m bor a
dur a nte a lguns pe r íodos a s r e la ç õe s te nha m m e lhor a do um pouc o. Os
vie tc ongue s, c uba nos e c hine se s c um pr ir a m sua ta r e f a c om o nossos
inim igos. Ta ntos pa íse s pa r e c e m c a pa ze s de inc or r e r na nossa ir a
na c iona l — c om o e sc olhe m os de ntr e e le s?

Enqua nto indivíduos, e sc olhe m os nossos inim igos ba se a dos e m


suge stõe s de líde r e s na c iona is? De pr of e ssor e s e líde r e s r e ligiosos? De
j or na is e TV? Odia m os e te m e m os os inim igos dos nossos pa is, c om o
pa r te da ide ntida de f a m ilia r ? Ou os inim igos da nossa c ultur a ,
subc ultur a ou gr upo?

Nossa "m e nta lida de de inim igo" se r ve a os inte r e sse s e c onôm ic os e


polític os de que m ?

Num a c onf e r ê nc ia sobr e ge noc ídio e holoc a usto c onhe c i um a pe ssoa


que m e m ostr ou que nã o e r a ne c e ssá r io odia r nossos opone nte s, ne m
m e sm o na s c ir c unstâ nc ia s m a is e xtr e m a s. Qua ndo e u e sta va no
sa guã o do hote l de pois de um a pa le str a sobr e o holoc a usto na
Ale m a nha , c om e c e i a c onve r sa r c om um a m ulhe r c ha m a da He le n
Wa te r f or d. Qua ndo de sc obr i que e la e r a j udia , sobr e vive nte de
Ausc hwitz, f a le i- lhe de m inha r a iva c ontr a os na zista s. ( I m a gino que
e sta va te nta ndo pr ova r- lhe que e u e sta va do la do dos "m oc inhos".) —
Sa be — r e sponde u- m e —, e u nã o ode io os na zista s.

I sso m e c hoc ou. Com o pode r ia a lgué m te r pa ssa do por um c a m po de


c onc e ntr a ç ã o e nã o odia r os na zista s?

E e ntã o f ique i sa be ndo que He le n de dic a va - se a f a ze r pa le str a s na


c om pa nhia de um a ntigo m e m br o da Juve ntude Hitle r ista ; e le s
f a la va m sobr e c om o é te r r íve l o f a sc ism o, visto por a m bos os la dos.
Fa sc ina da , c onse gui pa ssa r m a is te m po a o la do de He le n e a pr e nde r o
m á xim o possíve l c om e la .

Em 1980, He le n le u um intr iga nte a r tigo num j or na l, no qua l um


hom e m c ha m a do Alf ons He c k de sc r e via a sua e xpe r iê nc ia de c r e sc e r
na Ale m a nha na zista . Qua ndo ga r oto, num a e sc ola c a tólic a , o pa dr e
e ntr a va toda s a s m a nhã s e dizia "He il Hitle r ! ", de pois "Bom dia " e
f ina lm e nte "Em nom e do P a i, do Filho e do Espír ito Sa nto..." Na
m e nte de He c k, Hitle r vinha a nte s de De us. Aos de z a nos de ida de ,
e ntr ou c om o voluntá r io na Juve ntude Hitle r ista e a a dor ou. Foi e m
1944, qua ndo tinha de ze sse is a nos, que He c k de sc obr iu que os na zista s
e sta va m siste m a tic a m e nte e xte r m ina ndo os j ude us. Ele pe nsou: "Nã o
pode se r ve r da de ." Ma s, a os pouc os, ve io a a c r e dita r que se r via a um
a ssa ssino de m a ssa .

A f r a nque za de He c k im pr e ssionou He le n, que pe nsou: "Que r o


c onhe c e r e sse hom e m ." Ela o a c hou a f á ve l, inte lige nte e ge ntil. He le n
j á f a zia pa le str a s sobr e sua s pr ópr ia s e xpe r iê nc ia s do holoc a usto e
pe diu a He c k pa r a c om pa r tilha r o pa lc o no c om pr om isso j á m a r c a do
c om um gr upo de 400 pr of e ssor e s. Ele s a pr e se nta r a m o qua dr o num a
f or m a c r onológic a , f a ze ndo tur nos pa r a c onta r sua s pr ópr ia s histór ia s
do pe r íodo na zista . He le n disse que de ixa r a Fr a nkf ur t e m 1934, c om a
ida de de 25 a nos.

Ela e o m a r ido, um c onta dor que pe r de r a o e m pr e go qua ndo os


na zista s subir a m a o pode r, f ugir a m pa r a , a Hola nda . Lá tr a ba lha r a m
c om a Re sistê nc ia e He le n de u à luz um a f ilha . Em 1940, os na zista s
inva dir a m a Hola nda . He le n e o m a r ido e sc onde r a m - se e m 1942. Dois
a nos m a is ta r de , f or a m de sc obe r tos e e nvia dos pa r a Ausc hwitz. A
f ilha c ontinuou e sc ondida c om a m igos da Re sistê nc ia . O m a r ido de
He le n m or r e u no c a m po de c onc e ntr a ç ã o.

As pr im e ir a s a pr e se nta ç õe s c onj unta s de He c k e He le n c or r e r a m be m


e e le s de c idir a m c ontinua r tr a ba lha ndo e m e quipe . Ce r ta ve z, num a
a sse m ble ia de 800 e studa nte s se c unda r ista s, pe rgunta r a m a He c k: "Se
lhe tive sse m or de na do a tir a r e m a lguns j ude us, ta lve z na pr ópr ia Sr a .
Wa te r f or d, o se nhor te r ia a tir a do?" A pla te ia of e gou. He c k e ngoliu e m
se c o e disse : "Sim . Eu obe de c ia or de ns. Eu te r ia a tir a do." Ma is ta r de ,
e le se de sc ulpou c om He le n, dize ndo que nã o tive r a a inte nç ã o de
pe r tur bá - la . Ela r e sponde u: "Estou f e liz por voc ê te r r e spondido
da que le j e ito. Ca so c ontr á r io, e u nunc a m a is a c r e dita r ia e m voc ê ."

He c k de f r onta - se f r e que nte m e nte c om a a titude do tipo "um a ve z


na zista , se m pr e na zista ". As pe ssoa s lhe dize m : "Voc ê pode te r f e ito
um bonito disc ur so, m a s nã o a c r e dito e m na da disso. Um a ve z que
voc ê a c r e ditou e m a lgo, voc ê nã o pode j ogá - lo f or a ." Ele se m pr e
e xplic a pa c ie nte m e nte que le vou a nos a té pode r a c e ita r o f a to de que
tinha sido e duc a do a c r e dita ndo e m f a lsida de s. He c k ta m bé m é
inc om oda do por ne ona zista s, que lhe te le f ona m no m e io da noite e
a m e a ç a m : "Ainda nã o te pe ga m os, m a s nós va m os te m a ta r, se u
tr a idor."

Com o He le n se se ntia sobr e os na zista s e m Ausc hwitz? "Eu nã o


gosta va de le s. Nã o posso dize r que gosta r ia de tê - los c huta do a té a
m or te — nunc a o f iz. Ac ho que sim ple sm e nte nã o sou um a pe ssoa
vinga tiva ." Muita s ve ze s os j ude us a a c usa m por nã o odia r, por nã o
busc a r vinga nç a . "É im possíve l que voc ê nã o os ode ie ", dize m - lhe .
Na c onf e r ê nc ia sobr e o holoc a usto e ge noc ídio e na s c onve r sa s
subse que nte s c om He le n, te nte i c om pr e e nde r o que lhe ha via
pe r m itido m a nte r- se tã o obj e tiva e e vita r c e nsur a r o povo a le m ã o,
e nqua nto indivíduos, pe lo holoc a usto, por se u sof r im e nto e pe la m or te
do m a r ido.

De sc obr i um a pista e m se u a pa ixona do e studo da Histór ia .

P a r a m uita s pe ssoa s, a únic a e xplic a ç ã o pa r a o holoc a usto é que f oi a


c r ia ç ã o de um louc o. Ma s He le n a c r e dita que e ssa a ná lise se r ve
a pe na s pa r a pr ote ge r a s pe ssoa s da c r e nç a de que um holoc a usto
pude sse a c onte c e r c om e la s m e sm a s. Um a a va lia ç ã o da sa úde m e nta l
de Hitle r, diz He le n, é m e nos im por ta nte que um e xa m e da s f or ç a s
histór ic a s que e sta va m e m a ç ã o e da m a ne ir a c om o Hitle r f oi c a pa z
de m a nipulá - la s.

"Logo que a gue r r a a c a bou", disse m e He le n, "c om e c e i a le r sobr e


tudo o que ha via a c onte c ido de sde 1933, qua ndo m e u m undo se
f e c ha r a . Eu lia e lia . Com o se de se nvolve u o Esta do da s S.S.? Qua l f oi
o pa pe l da I ngla te r r a , da Hungr ia , da I ugoslá via , dos Esta dos Unidos,
da Fr a nç a ? Com o f oi possíve l que o holoc a usto c he ga sse a a c onte c e r ?
Qua l f oi o pr im e ir o pa sso, qua l f oi o se gundo? O que a s pe ssoa s e stã o
busc a ndo qua ndo se une m a m ovim e ntos f a ná tic os? Ac ho que
c ontinua r e i f a ze ndo e ssa s pe rgunta s a té o dia da m inha m or te ."

Aque le s de nós que ba ta lha m os pe la m uda nç a soc ia l te nde m os a ve r


nossos a dve r sá r ios c om o inim igos, a c onside r á - los indignos de
c onf ia nç a , suspe itos e ge r a lm e nte de c a r á te r m or a l m a is ba ixo. Sa ul
Alinsky , um br ilha nte orga niza dor c om unitá r io, a ssim e xplic a a ba se
lógic a pa r a a pola r iza ç ã o: Um a pe ssoa só c onse gue a gir de m odo
de c isivo qua ndo e stá c onve nc ida de que todos os a nj os e stã o do se u
la do e todos os dia bos do outr o la do. Um líde r sof r e pa r a tom a r um a
de c isã o, e le pr e c isa pe sa r os m é r itos e os de m é r itos de um a situa ç ã o
que é 52% positiva e 48% ne ga tiva . Ma s, um a ve z tom a da a de c isã o,
e le pr e c isa a ssum ir que sua c a usa é 100% positiva e a da oposiç ã o
100% ne ga tiva ... Dur a nte nossa c a m pa nha c ontr a o supe r inte nde nte
e sc ola r [ de Chic a go] , m uitos libe r a is a le ga r a m que e le nã o e r a um
hom e m de todo m a u pois, a f ina l de c onta s, ia à igr e j a c om
r e gula r ida de , e r a um bom pa i de f a m ília e f a zia ge ne r osa s
c ontr ibuiç õe s à c a r ida de . I m a gine só, voc ê e stá be m a li no pa lc o do
c onf lito, a c usa ndo f ula no de ta l de se r um ba sta r do r a c ista , e a í dilui o
im pa c to do a ta que c om m e ia dúzia de louva ç õe s? I sso é um a
im be c ilida de polític a .

Ma s a "de m oniza ç ã o" dos nossos a dve r sá r ios te m a ltos c ustos. É um a


e str a té gia que a c e ita e a j uda , im plic ita m e nte , a pe r pe tua r nossa
pe r igosa "m e nta lida de de inim igo".

Em ve z de m e c onc e ntr a r nos 52% de "dia bo" do m e u a dve r sá r io,


pr e f ir o olha r os outr os 48% ; e ntã o vou pa r tir da pr e m issa de que ,
de ntr o de c a da a dve r sá r io, te nho um a lia do. Esse a lia do pode se r
sile nc ioso, he sita nte ou e sta r e sc ondido da m inha vista . Ta lve z se j a
a pe na s o se nso de a m biva lê nc ia da pe ssoa sobr e a lgum a spe c to
que stioná ve l de se u e m pr e go. Ta is dúvida s r a r a m e nte tê m c ha nc e de
f lor e sc e r por c a usa da f or ç a e sm a ga dor a do c onte xto soc ia l a o qua l a
pe ssoa r e sponde . M i n h a c a pa c ida de de se r o a lia do d e l e s ta m bé m
sof r e de ssa s m e sm a s pr e ssõe s. Em 1970, e nqua nto a Gue r r a do Vie tnã
a inda pr osse guia , nosso gr upo pa ssou o ve r ã o e m Long Be a c h,
Ca lif ór nia , orga niza ndo- se c ontr a um a f á br ic a de na pa lm a li
insta la da . Tr a ta va - se de um a pe que na f á br ic a que m istur a va os
pr odutos quím ic os e c oloc a va o na pa lm na s c a ixa s da s m e tr a lha dor a s.
P ouc os m e se s a nte s, um a e xplosã o a c ide nta l ha via e spa lha do pe da ç os
de ge l de na pa lm sobr e a s c a sa s e gr a m a dos pr óxim os. O inc ide nte ,
num se ntido m uito r e a l, tr ouxe r a a gue r r a a té nós. Estim ulou os
m or a dor e s loc a is que se opunha m à gue r r a a r e c onhe c e r a liga ç ã o de
sua c om unida de c om um dos e le m e ntos m a is de spr e zíve is da que la
gue r r a . A pe dido de le s, tr a ba lha m os j unto c om o gr upo loc a l e o
f or ta le c e m os. Juntos, f ize m os um a a pr e se nta ç ã o de s lid e s sobr e o
c om ple xo m ilita r- industr ia l da loc a lida de , se guida de um a e xc ur sã o
a o loc a l pa r a os líde r e s da c om unida de e f ize m os pique te dia nte da
f á br ic a de na pa lm . Ta m bé m nos e nc ontr a m os c om o pr e side nte do
gr upo pr opr ie tá r io da f á br ic a .

P a ssa m os tr ê s se m a na s nos pr e pa r a ndo pa r a e sse e nc ontr o, e studa ndo


a s e m pr e sa s c ontr ola da s pe lo gr upo e sua situa ç ã o f ina nc e ir a e
inve stiga ndo se ha via a lgum pr oc e sso m ovido c ontr a o pr e side nte ou
sua e m pr e sa . E ta m bé m de sc obr im os o m á xim o possíve l sobr e a sua
vida pe ssoa l: sua f a m ília , sua igr e j a , se u c lube , se us hobbie s.
Estuda m os sua f otogr a f ia , pe nsa ndo na s pe ssoa s que gosta va m de le e
na s pe ssoa s que e le a m a va , te nta ndo c a pta r um a ide ia de sua visã o do
m undo e o c onte xto no qua l e le se inse r ia .

Ta m bé m f a la m os m uito sobr e a r a iva que se ntía m os de le pe lo pa pe l


que de se m pe nha va e m m a ta r e m utila r c r ia nç a s no Vie tnã . Ma s,
e m bor a nossa r a iva de sse a le nto à nossa de te r m ina ç ã o, de c idim os que
m ostr á - la a e le só se r vir ia pa r a c oloc á - lo na de f e nsiva e r e duzir a
nossa e f ic á c ia .

Qua ndo tr ê s de nós o e nc ontr a m os, e le nã o e r a um e str a nho pa r a nós.


Se m c e nsur á - lo pe ssoa lm e nte ne m a ta c a r sua c or por a ç ã o, pe dim os
que e le f e c ha sse a f á br ic a , nã o e ntr a sse e m c onc or r ê nc ia na é poc a de
r e nova ç ã o do c ontr a to c om o gove r no e pe nsa sse na s c onse quê nc ia s
da s ope r a ç õe s de sua e m pr e sa . Disse m os a e le que c onhe c ía m os os
pontos vulne r á ve is de sua c or por a ç ã o ( e la e r a dona de um a c a de ia de
hoté is que pode r ia m se r boic ota dos) e que pr e te ndía m os c ontinua r a
f a ze r um tr a ba lho e str a té gic o pa r a f or ç a r sua e m pr e sa a sa ir do
ne góc io de que im a r pe ssoa s c om na pa lm . Ta m bé m disc utim os os
outr os c ontr a tos bé lic os da e m pr e sa , pois m uda r a pe na s um a pe que na
pa r te da f unç ã o de sua c or por a ç ã o nã o e r a suf ic ie nte ; que r ía m os
le va nta r a que stã o da de pe ndê nc ia e c onôm ic a à f a br ic a ç ã o de
a r m a m e ntos e à gue r r a .

Ac im a de tudo, que r ía m os que e le nos visse c om o pe ssoa s r e a is, nã o


tã o dif e r e nte s de le pr ópr io. Se tivé sse m os a pa r e c ido c om o f ogosos
r a dic a is, é pr ová ve l que e le tive sse posto de la do nossa s
pr e oc upa ç õe s. P r e sum im os que e le pr ópr io j á tinha a lgum a s dúvida s e
vim os que nosso pa pe l e r a da r voz a e ssa s dúvida s. Nosso obj e tivo e r a
intr oduzir, a nós m e sm os e à nossa pe r spe c tiva , no se u c onte xto a f im
de que e le se le m br a sse de nós e c onside r a sse nossa posiç ã o qua ndo
f osse tom a r sua de c isã o.

Qua ndo o c ontr a to c he gou pa r a r e nova ç ã o, dois m e se s m a is ta r de , sua


e m pr e sa nã o e ntr ou na c onc or r ê nc ia .

Tr a ba lha r pe la m uda nç a soc ia l se m de pe nde r do c onc e ito de inim igo


c r ia a lgum a s dif ic ulda de s pr á tic a s. P or e xe m plo, o que f a ze m os c om
toda a que la r a iva que e sta m os a c ostum a dos a de spe j a r c ontr a um
inim igo? É possíve l odia r a ç õe s e polític a s, se m odia r a s pe ssoa s que
a s e xe c uta m ? Ac a so, se ntir e m pa tia por a que le s a c uj a s a ç õe s nos
opom os c r ia um a dissoc ia ç ã o que sola pa a nossa de te r m ina ç ã o?

Nã o m e iludo e m a c r e dita r que tudo va i f unc iona r à s m il m a r a vilha s


se f ic a r m os a m igos dos nossos a dve r sá r ios. Re c onhe ç o que c e r tos
e str a te gista s m ilita r e s e stã o tom a ndo de c isõe s que a um e nta m os r isc os
pa r a todos nós. Se i que a lguns polic ia is vã o e spa nc a r os m a nif e sta nte s
qua ndo os pr e nde r e m . Tr a ta r nossos a dve r sá r ios c om o pote nc ia is
a lia dos nã o pr e c isa f a ze r c om que a c e ite m os ir r e f le tida m e nte sua s
a ç õe s. Nosso de sa f io é e stim ula r a na tur e za hum a na de ntr o de c a da
a dve r sá r io e , a o m e sm o te m po, nos pr e pa r a r m os pa r a toda a ga m a de
r e a ç õe s possíve is. Nosso de sa f io é e nc ontr a r um c a m inho e ntr e o
c inism o e a inge nuida de .

43. A mente chauvinista

SUSAN G RIFFIN
Va m os la nç a r um olha r à que la m e nte que c ha m a r e i de "m e nte
9
c ha uvinista " — que de f iniu e sse se gundo uso da pa la vr a "hum a no"
pa r a e xc luir a s m ulhe r e s — e de c if r a r qua l o signif ic a do que e la
gua r da da im a ge m da m ulhe r, do "ne gr o" ou do "j ude u". É por isso
que e sc r e vo sobr e a por nogr a f ia . P ois a por nogr a f ia é a m itologia
de ssa m e nte ; é , pa r a usa r um a e xpr e ssã o da poe ta Judy Gr a hn, "a
poe sia da opr e ssã o". Atr a vé s de sua s im a ge ns, pode m os de se nha r um a
ge ogr a f ia de ssa m e nte e a té m e sm o pr e dize r pa r a onde se us c a m inhos
nos le va r ã o.

I sso é da m a ior im por tâ nc ia pa r a nós nos dia s de hoj e pois, sob o


f e itiç o de ssa m e nte — da qua l todos pa r tic ipa m os, a té c e r to ponto —,
im a gina m os que os c a m inhos que e la nos a br e sã o da dos pe lo de stino.
E a ssim e nc a r a m os c e r tos c om por ta m e ntos e e ve ntos da nossa
c iviliza ç ã o — ta is c om o o e stupr o ou o Holoc a usto — c om o obr a s do
de stino. Suspe ita m os que e xiste a lgo e sc ur o e sinistr o na a lm a hum a na
que c a usa a violê nc ia a nós m e sm os e a os outr os. Re pr ova m os um a
de c isã o tom a da pe la c ultur a hum a na sobr e nossa s pr ópr ia s na tur e za s
e , a ssim , sobr e a Na tur e za . Ma s, pe lo c ontr á r io, e xa m ina ndo
a te nta m e nte os signif ic a dos da por nogr a f ia , o que de sc obr im os é que
a c ultur a hum a na e stá e m viole nta oposiç ã o a os instintos na tur a is e à
pr ópr ia Na tur e za .

À m e dida que e xplor a r m os a s im a ge ns da m e nte do por nógr a f o


c om e ç a r e m os a de c if r a r a sua ic onogr a f ia . Ve r e m os que o c or po da
m ulhe r na por nogr a f ia — dom ina do, a m a r r a do, sile nc ia do, e spa nc a do
e a té m e sm o a ssa ssina do — é um sím bolo do se ntim e nto na tur a l e da
f or ç a da na tur e za que a m e nte por nogr á f ic a ode ia e te m e . E a c im a de
tudo, ve r e m os que a "m ulhe r " na por nogr a f ia — c om o "o j ude u" no
a ntisse m itism o e "o ne gr o" no r a c ism o — é sim ple sm e nte um a pa r te
pe r dida da a lm a , a que la r e giã o do se r que a m e nte por nogr á f ic a ou
r a c ista gosta r ia de e sque c e r e ne ga r. E, f ina lm e nte , ve r e m os que
c onhe c e r e ssa pa r te pr oibida da m e nte signif ic a te r e ro s ( o a m or
dir igido pa r a a a utor r e a liza ç ã o) .

Ta nto a I gr e j a qua nto a por nogr a f ia e sc olhe r a m um a m e sm a vítim a


sobr e a qua l e m pur r a r e sse c onhe c im e nto ne ga do. Ne ssa s c ultur a s
gê m e a s, um a m ulhe r é um a te la e m br a nc o. A na tur e za de se u
ve r da de ir o se r é a pa ga da , c om o se a sua im a ge m c ultur a l tive sse sido
c uida dosa m e nte pr e pa r a da pa r a a c la r a pr oj e ç ã o de um a im a ge m , e
e la pa ssa a r e pr e se nta r tudo a quilo que o hom e m ne ga e m si m e sm o.
Ma s, c om o ve r e m os a dia nte , a m ulhe r nã o é , e la pr ópr ia , um a vítim a
a c ide nta l. Um c or po de m ulhe r e voc a o a utoc onhe c im e nto que o
hom e m te nta e sque c e r. E por isso e le te m e e sse c or po. Ma s e le nã o
c om pr e e nde e sse pa vor c om o a lgo que pe r te nc e a e le m e sm o, um
m e do da quilo que o c or po f e m inino de spe r ta ne le . P e lo c ontr á r io, e le
f inge pa r a si m e sm o que e la é o m a l. Sua m e nte c onsc ie nte a c r e dita
que e la é o m a l. Com o diz Ka r e n Hor ne y , "Em toda pa r te , o hom e m
luta pa r a livr a r- se de se u pa vor pe la s m ulhe r e s, obj e tif ic a ndo- o". A
por nogr a f ia of e r e c e - nos um e xe m plo c la r o de ssa "obj e tif ic a ç ã o" na s
pa la vr a s do Ma r quê s de Sa de , que nos diz que a m ulhe r é "um a
c r ia tur a m ise r á ve l, se m pr e inf e r ior, m e nos be la que e le , m e nos
e nge nhosa , m e nos sá bia , de f or m a s r e volta nte s, o oposto da quilo que
a gr a da r ia ou de lic ia r ia um hom e m ... um a tir a na ... se m pr e r e pulsiva ,
se m pr e pe r igosa ..."

O por nógr a f o, c om o o hom e m da I gr e j a , ode ia e ne ga um a pa r te de si


m e sm o. Ele r e j e ita se u c onhe c im e nto do m undo f ísic o e de sua
pr ópr ia m a te r ia lida de . Ele r e j e ita o c onhe c im e nto do se u pr ópr io
c or po. Essa é um a pa r te da sua m e nte que e le gosta r ia de e sque c e r,
Ma s e le nã o c onse gue r e j e ita r por c om ple to e sse c onhe c im e nto. Esse
c onhe c im e nto volta a e le a tr a vé s do se u pr ópr io c or po: a tr a vé s do
de se j o. Assim c om o a f a sta um a pa r te de si m e sm o, e le a de se j a .
Aquilo que ode ia e te m e , a quilo que gosta r ia de de te sta r, e le de se j a .
Ele e stá num te r r íve l c onf lito c onsigo m e sm o. Ma s, e m ve z de ve r
e sse c onf lito, e le im a gina que e stá e m luta c ontr a a m ulhe r. Ele
pr oj e ta o se u m e do e o se u de se j o sobr e o c or po da m ulhe r. De ssa
f or m a , o c or po f e m inino — c om o a pr ostituta da Ba bilônia na
ic onogr a f ia da I gr e j a — sim ulta ne a m e nte a tr a i o por nógr a f o e inc ita
a sua r a iva .

No f olhe to, e xiste m dua s f igur a s c onhe c ida s. Um ne gr o m onstr uoso


a m e a ç a um a br a nc a voluptuosa . Se u ve stido te m de c ote pr of undo, a
sa ia é f e ndida pa r a que se ve j a a c oxa , a s m a nga s e sc or r e ga m pa r a
m ostr a r os om br os. Che ia de m e do, e la olha pa r a tr á s e c or r e . O
c or po do hom e m é e nor m e , sim ie sc o. Sob a s pa la vr a s "Conquiste e Dê
Cr ia " e e nc im a ndo um te xto que a le r ta o le itor c ontr a os c a sa m e ntos
inte r- r a c ia is, e ssa s dua s f igur a s pa ssa m a o a to um dr a m a
a ntiquíssim o.

No â m a go da im a gina ç ã o r a c ista , de sc obr im os um a f a nta sia


por nogr á f ic a : o e spe c tr o da m isc ige na ç ã o. Essa im a ge m de um
hom e m e sc ur o viole nta ndo um a m ulhe r c la r a pe r sonif ic a todos os
m e dos r a c ista s. Essa f a nta sia pr e oc upa a sua m e nte . Existe um
a rgum e nto r a c iona l que a le ga que o r a c ista sim ple sm e nte usa a s
im a ge ns por nogr á f ic a s pa r a m a nipula r a m e nte . Ma s e ssa s im a ge ns
pa r e c e m pe r te nc e r a o r a c ista . Ela s sã o pr e dizíve is de um a m a ne ir a
que suge r e um pa pe l m a is intr ínse c o na gê ne se de ssa ide ologia .

Sa be m os que , e m tipo e qua lida de , os sof r im e ntos que a s m ulhe r e s


e xpe r im e nta m num a c ultur a por nogr á f ic a sã o dif e r e nte s dos
sof r im e ntos dos ne gr os num a soc ie da de r a c ista ou dos j ude us sob o
a ntisse m itism o. ( E sa be m os que o ódio à hom osse xua lida de ta m bé m
te m um e f e ito dif e r e nte sobr e a vida da s m ulhe r e s e hom e ns que
e stã o f or a dos pa pé is se xua is tr a dic iona is.) Ma s se olha r m os
a te nta m e nte pa r a o r e tr a to que o r a c ista de se nha de um hom e m ou
m ulhe r de c or, ou pa r a o r e tr a to que o a ntisse m ita de se nha do j ude u,
ou pa r a o r e tr a to que o por nógr a f o de se nha de um a m ulhe r,
c om e ç a r e m os a pe r c e be r que e ssa s f igur a s f a nta sista s a sse m e lha m - se
um a s à s outr a s. P ois e la s sã o c r ia ç õe s de um a únic a m e nte . Cr ia ç õe s
da m e nte c ha uvinista , um a m e nte que pr oj e ta todos os se us m e dos
sobr e um a outr a pe ssoa : um a m e nte que se de f ine por a quilo que
ode ia .

O ne gr o c om o um se r e stúpido, pa ssivo e be stia l. A m ulhe r c om o um


se r a lta m e nte e m oc iona l, ir r e f le tida , m a is pr óxim o da te r r a . Os
j ude us c om o um a r a ç a e sc ur a e a va r e nta . A pr ostituta . A
ninf om a nía c a . A la sc ívia c a r na l da m ulhe r insa c iá ve l. A virge m . A
dóc il e sc r a va . O j ude u e f e m ina do. O j ude u a giota . O a f r ic a no, um
"á vido c om e dor ", libidinoso, a de pto da suj e ir a . A ne gr a c om o luxúr ia :
"Essa s dona s e sc ur inha s, na e sc ola de Vê nus be m ve r sa da s... f a ze m do
a m or um a a r te , e se ga ba m de no be ij o se r tr e ina da s." Fá c il, f á c il. O
j ude u que pr a tic a orgia s se xua is, que pr a tic a o c a niba lism o. O j ude u e
o ne gr o c om e nor m e s m e m br os vir is.

O f a m oso m a te r ia lism o do j ude u, do ne gr o, da m ulhe r, A m ulhe r que


ga sta o sa lá r io do m a r ido e m ve stidos. O ne gr o que dir ige um Ca dilla c
e nqua nto se us f ilhos m or r e m de f om e . O j ude u a giota que ve nde a
pr ópr ia f ilha . "Nã o há na da m a is intole r á ve l que um a m ulhe r r ic a ",
le m os e m Juve na l. ( Num a obr a por nogr á f ic a do sé c ulo XVI I I , o
por nógr a f o e sc r e ve que sua he r oína tinha "um ga r boso c é r e br o
pe que no- burguê s". E, num a nove la por nogr á f ic a c onte m por â ne a , o
he r ói m a ta um a m ulhe r por que e la pr e f e r e "suj e itos que dir ige m
Ca dilla c s".) O a pe tite de vor a dor. O ne gr o que r ouba o e m pr e go do
br a nc o; a m ulhe r que r ouba o e m pr e go do hom e m .

Ve ze s se m c onta , o c ha uvinista de se nha um r e tr a to do outr o que nos


f a z le m br a r a que la pa r te de sua pr ópr ia m e nte que e le gosta r ia de
ne ga r ; a que la pa r te que e le obsc ur e c e u pa r a si m e sm o. O outr o te m
a pe tite e instinto. O outr o te m um c or po. O outr o te m um a vida
e m oc iona l de sc ontr ola da . E na e ste ir a de sse se lf ne ga do, o c ha uvinista
c onstr ói um f a lso se lf c om o qua l se ide ntif ic a .

Se m pr e que e nc ontr a m os a ide ia r a c ista de um outr o se r c om o m a u e


inf e r ior, de sc obr im os um i d e a l r a c ia l, um r e tr a to do se lf c om o
supe r ior, bom e vir tuoso. Esse e r a , c om c e r te za , o c a so do
e sc r a voc r a ta sulista , nos Esta dos Unidos do sé c ulo pa ssa do. O br a nc o
sulista im a gina va - se o he r de ir o da s m e lhor e s tr a diç õe s da c iviliza ç ã o.
Via a si m e sm o c om o o últim o r e positór io da c ultur a . Na sua m e nte ,
e le e r a um a r istoc r a ta . Assim , a vida do sulista pr e e nc hia - se c om sua s
pr e te nsõe s, se u de c or o, sua s boa s- m a ne ir a s e sua s c e r im ônia s de
a sc e nsã o soc ia l.

Assim c om o c onf e r ia qua lida de s inf e r ior e s a os ne gr os e ne gr a s que


e sc r a viza va , e le se a be nç oa va c om supe r ior ida de s. Ele e r a
"c a va lhe ir e sc o" e "m a gnâ nim o", c he io de um a "hone stida de " que
e m a na va da "f la m a do se u olha r f or te e f ir m e ". Ele e r a honr a do,
r e sponsá ve l e , a c im a de tudo, nobr e .

O a ntisse m ita e m oldur a - se na m e sm a pola r ida de . Contr a o r e tr a to que


f a z do j ude u, e le c oloc a a si m e sm o c om o o ide a l, o a r ia no: lour o,
c or a j oso, hone sto, c om m a is f or ç a f ísic a e m or a l.

Ma s e ssa é um a pola r ida de que nos é pr of unda m e nte f a m ilia r, Nós a


a pr e nde m os, qua se a o na sc e r, de nossa s m ã e s e pa is. Be m c e do na
nossa vida , o ide a l de m a sc ulinida de é oposto a o ide a l de
f e m inilida de . Apr e nde m os que um hom e m é m a is inte lige nte e m a is
f or te que um a m ulhe r. E na por nogr a f ia o he r ói m a sc ulino te m um a
pr obida de m or a l intr ínse c a que — c om o o a r ia no de Hitle r — lhe
pe r m ite c om por ta r- se e m r e la ç ã o à s m ulhe r e s de m a ne ir a s que e stã o
f or a da m or a lida de . P ois, de a c or do c om a sua ide ologia , e le é o m a is
va lioso m e m br o da e spé c ie . Com o nos diz o Ma r quê s de Sa de , "a
c a r ne da s m ulhe r e s", c om o a "c a r ne de todos os a nim a is f ê m e a s", é
inf e r ior.

Foi por que o c ha uvinista usou a ide ia de que é supe r ior c om o


j ustif ic a tiva pa r a e sc r a viza r e e xplor a r outr os, a que m de sc r e ve c om o
inf e r ior e s, que c e r tos histor ia dor e s da c ultur a im a gina r a m que a
ide ologia do c ha uvinism o e xiste a pe na s pa r a j ustif ic a r a e xplor a ç ã o,
Ma s e ssa ide ologia te m um a raison a"ê tre intr ínse c a à sua pr ópr ia
m e nte . Explor a ndo e ssa m e nte , de sc obr im os que o c ha uvinista
va lor iza sua s ilusõe s pa r a o se u pr ópr io be m ; a c im a de tudo, a m e nte
c ha uvinista pr e c isa a c r e dita r na s ilusõe s que c r iou. P ois e ssa ilusã o
te m um outr o pr opósito a lé m da e xplor a ç ã o soc ia l. De f a to, a s ilusõe s
da m e nte c ha uvinista na sc e m da m e sm a c ondiç ã o que f a z na sc e r
toda s a s ilusõe s — o de se j o da m e nte de e sc a pa r à ve r da de . O
c ha uvinista nã o pode e nf r e nta r f a c e a f a c e a ve r da de de que o outr o,
que e le de spr e za , é e le m e sm o.

É por isso que é tã o f r e que nte de sc obr ir m os, no pe nsa m e nto


c ha uvinista , um a e spé c ie de ne ga ç ã o histé r ic a à ide ia de que o outr o
ta lve z f osse c om o e le . O c ha uvinista insiste na e xistê nc ia de um a
dif e r e nç a a bsoluta e de f inidor a e ntr e e le e o outr o, Essa insistê nc ia é
ta nto o ponto de pa r tida qua nto a e ssê nc ia de todo o se u pe nsa m e nto.
Ta nto que Hitle r e sc r e ve u a ssim , nos pr im ór dios de se u pr ópr io
a ntisse m itism o: Um dia , qua ndo pa ssa va pe lo c e ntr o da c ida de ,
subita m e nte de pa r e i- m e c om a que la a pa r iç ã o num longo c a f e tã e
tr a nç a s ne gr a s. Me u pr im e ir o pe nsa m e nto f oi: se r á isso um j ude u?...
por é m , qua nto m a is e u olha va a que le e str a nho se m bla nte e o
e xa m ina va pa lm o a pa lm o, m a is a que la pe rgunta tom a va outr a f or m a
no m e u c é r e br o: se r á isso um a le m ã o?... P e la pr im e ir a ve z na m inha
vida , ga ste i a lgum a s m oe da s c om pr a ndo pa nf le tos a ntisse m ita s.

De sse m odo, a o inve nta r um a f igur a dif e r e nte de si m e sm a , a m e nte


c ha uvinista c onstr ói um a a le gor ia do se lf. Ne ssa a le gor ia , o pr ópr io
c ha uvinista r e pr e se nta a a lm a e o c onhe c im e nto da c ultur a . Que m
que r que se j a o obj e to do se u ódio r e pr e se nta o se lf ne ga do, o se lf
na tur a l, o se lf que c onté m o c onhe c im e nto do c or po. Logo, e sse outr o
nã o pode te r a lm a .

44. Os marginalizados da América

AUDRE LORDE
Gr a nde pa r te da histór ia da Eur opa oc ide nta l c ondic iona - nos a ve r a s
dif e r e nç a s hum a na s num a oposiç ã o sim plista um a à outr a :
dom ina nte /subor dina do, bom /m a u, a c im a /a ba ixo, supe r ior /inf e r ior.
Num a soc ie da de onde o be m é de f inido e m te r m os de luc r o e nã o e m
te r m os de ne c e ssida de hum a na , pr e c isa ha ve r se m pr e a lgum gr upo de
pe ssoa s que , a tr a vé s da opr e ssã o siste m a tiza da , possa se r le va do a se
se ntir e xc e de nte , a oc upa r o luga r do inf e r ior de sum a niza do. De ntr o
da nossa soc ie da de , e sse gr upo é c onstituído pe los ne gr os, os
te r c e ir om undista s, os ope r á r ios, os idosos e a s m ulhe r e s.

Na m inha qua lida de de m ulhe r, qua r e nta e nove a nos de ida de , m ã e


de dua s c r ia nç a s ( inc luindo um m e nino) , ne gr a , soc ia lista , f e m inista ,
lé sbic a e m e m br o de um c a sa l inte r- r a c ia l, f r e que nte m e nte de sc ubr o
que f a ç o pa r te de a lgum gr upo de f inido c om o o "outr o", "f or a dos
pa dr õe s", "inf e r ior " ou sim ple sm e nte "e r r a do". É tr a dic iona l, na
soc ie da de a m e r ic a na , e spe r a r que os m e m br os dos gr upos opr im idos
e obj e tif ic a dos e ste nda m - se e f e c he m a br e c ha e ntr e a r e a lida de da
nossa vida e a c onsc iê nc ia do nosso opr e ssor, P ois, pa r a sobr e vive r,
a que le s de nós pa r a que m a opr e ssã o é tã o a m e r ic a na qua nto a apple
pie , se m pr e tive m os ne c e ssida de de obse r va r e nos f a m ilia r iza r c om a
lingua ge m e a s m a ne ir a s do opr e ssor — c he ga ndo à s ve ze s a a dotá -
la s, num a ilusã o de pr ote ç ã o. Se m pr e que se tor na ne c e ssá r io a lgum
sim ula c r o de c om unic a ç ã o, a que le s que se a pr ove ita m da nossa
opr e ssã o nos c onvoc a m pa r a c om pa r tilha r nosso c onhe c im e nto c om
e le s. Em outr a s pa la vr a s, c a be a o opr im ido e nsina r o opr e ssor a ve r
se us pr ópr ios e r r os. Eu sou r e sponsá ve l por e duc a r os pr of e ssor e s que ,
na e sc ola , r e j e ita m a c ultur a dos m e us f ilhos. Espe r a - se que os ne gr os
e te r c e ir om undista s e duque m os br a nc os qua nto à nossa na tur e za
hum a na . Espe r a - se que a s m ulhe r e s e duque m os hom e ns. Espe r a - se
que a s lé sbic a s e gay s e duque m o m undo he te r osse xua l. Os opr e ssor e s
c onse r va m sua s posiç õe s e se e va de m à r e sponsa bilida de por se us
pr ópr ios a tos. Existe um a c onsta nte dr e na ge m de e ne rgia que pode r ia
se r m a is be m utiliza da pa r a r e de f inir m os a nós m e sm os e c onc e be r
c e ná r ios r e a lista s a f im de a lte r a r o pr e se nte e c onstr uir o f utur o.

A r e j e iç ã o instituc iona liza da da dif e r e nç a é um a ne c e ssida de a bsoluta


na nossa e c onom ia ba se a da no luc r o, que pr e c isa dos m a rgina liza dos
c om o e xc e de nte s. Enqua nto m e m br os de ssa e c onom ia , f om os todos
pr ogr a m a dos pa r a r e a gir c om m e do e ódio à s dif e r e nç a s hum a na s que
e xiste m e ntr e nós e a tr a ta r e ssa dif e r e nç a de um a de ntr e tr ê s
m a ne ir a s: — ignorá-la; se isso não nos é possível, temos duas opções:

— c opiá - la , se a j ulga m os dom ina nte ; ou

— de str uí- la , se a j ulga m os subor dina da .

Ma s nã o te m os pa dr õe s pa r a tr a ta r e m pé de igua lda de nossa s


dif e r e nç a s hum a na s. Com o r e sulta do, e la s r e c e be r a m nom e s e r r a dos
e a busa m os de la s a se r viç o da se pa r a ç ã o e da c onf usã o.

É e vide nte que e xiste m e ntr e nós dif e r e nç a s be m r e a is de r a ç a , ida de


e se xo. Ma s nã o sã o e la s que nos se pa r a m . P e lo c ontr á r io, o que nos
se pa r a é a nossa r e c usa e m r e c onhe c e r e ssa s dif e r e nç a s e e m
e xa m ina r a s distor ç õe s r e sulta nte s de da r- lhe s nom e s e r r a dos, be m
c om o o e f e ito disso tudo sobr e o nosso c om por ta m e nto e a s nossa s
e xpe c ta tiva s.

Rac ismo, a c re nç a na supe rioridade ine re nte de uma raç a sobre todas
as de mais e , portanto, no se u dire ito de dominar. "Se x ismo", a c re nç a
na supe rioridade ine re nte de um se x o sobre o outro e , portanto, no se u
dire ito de dominar. "He te rosse x ismo" ( a disc riminaç ão c ontra a
homosse x ualidade ) . "Etarismo" ( a disc riminaç ão c ontra c e rtas faix as
e tárias) . Elitismo. Classismo.

Tr a ta - se , pa r a c a da um de nós, da luta pe r pé tua pa r a a r r a nc a r e ssa s


distor ç õe s do nosso c otidia no a o m e sm o te m po e m que r e c onhe c e m os,
r e ivindic a m os e de f inim os a s dif e r e nç a s sobr e a s qua is e ssa s
distor ç õe s sã o im posta s, P ois todos nós f om os c r ia dos num a soc ie da de
onde e ssa s distor ç õe s e r a m e ndê m ic a s no nosso c otidia no. Com m uita
f r e quê nc ia , de spe nde m os a e ne rgia — da qua l pr e c isa m os pa r a
r e c onhe c e r e e xplor a r a s dif e r e nç a s — pa r a f ingir que e ssa s
dif e r e nç a s sã o ba r r e ir a s intr a nsponíve is ou que e la s sim ple sm e nte nã o
e xiste m . O r e sulta do é um isola m e nto voluntá r io ou c one xõe s f a lsa s e
tr a iç oe ir a s. De qua lque r m odo, nã o de se nvolve m os a s f e r r a m e nta s
que nos pe r m itir ia m utiliza r a dif e r e nç a hum a na c om o um tr a m polim
pa r a um a m uda nç a c r ia tiva na s nossa s vida s. Nã o disc utim os a
dif e r e nç a hum a na ; f a la m os sobr e de svios hum a nos.

Em a lgum luga r, à s m a rge ns da c onsc iê nc ia , e xiste a quilo que c ha m o


norma mític a — e c a da um de nós sa be , de ntr o do c or a ç ã o, que "e u
nã o sou a nor m a ". Nos Esta dos Unidos, e ssa nor m a ge r a lm e nte é
de f inida c om o: pe le br a nc a , c or po e sbe lto, se xo m a sc ulino, j ove m ,
he te r osse xua l, c r istã o e f ina nc e ir a m e nte e stá ve l, É de ntr o de ssa
nor m a m ític a que r e side m a s pom pa s do pode r na nossa soc ie da de .
Aque le s de nós que e sta m os f or a do pode r ge r a lm e nte ide ntif ic a m os
um a ou outr a m a ne ir a pe la qua l som os dif e r e nte s da "nor m a m ític a ",
e a dm itim os que e ssa é a c a usa f unda m e nta l de toda a opr e ssã o —
e sque c e ndo outr a s distor ç õe s da dif e r e nç a hum a na , a lgum a s da s qua is
ta lve z nós m e sm os e ste j a m os pr a tic a ndo. No m ovim e nto f e m inista de
hoj e , e m ge r a l a s m ulhe r e s br a nc a s se c onc e ntr a m na opr e ssã o que
sof r e m e nqua nto m ulhe r e s — ignor a ndo a s dif e r e nç a s de r a ç a , c la sse ,
ida de e opç ã o se xua l. Na e xpr e ssã o "c om unida de de ir m ã os" e xiste
c e r ta pr e te nsã o a um a hom oge ne ida de de e xpe r iê nc ia que na
r e a lida de nã o e xiste .

A m e dida que c a m inha m os pa r a c r ia r um a soc ie da de na qua l c a da um


de nós pode r á f lor e sc e r, a disc r im ina ç ã o e tá r ia é um a outr a
im por ta nte distor ç ã o de r e la c iona m e nto. Ao ignor a r o pa ssa do, som os
e nc or a j a dos a r e pe tir se us e r r os. A "br e c ha e ntr e a s ge r a ç õe s" é um a
da s im por ta nte s f e r r a m e nta s soc ia is e m qua lque r soc ie da de
r e pr e ssor a . Se os m e m br os m a is j ove ns de um a c om unida de ve e m os
m e m br os m a is idosos c om o de spr e zíve is, suspe itos ou e xc e de nte s,
e le s nunc a se r ã o c a pa ze s de se da r a s m ã os e e xa m ina r a s m e m ór ia s
viva s da c om unida de , ne m de f a ze r a pr inc ipa l de toda s a s nossa s
pe rgunta s: "P or quê ?" I sso f a z surgir um a a m né sia histór ic a que nos
obr iga a inve nta r a r oda toda ve z que pr e c isa m os ir c om pr a r pã o.

Ve m o- nos se m pr e obr iga dos a r e pe tir e a r e a pr e nde r a s m e sm a s e


a ntiga s liç õe s, a ssim c om o f ize r a m nossa s m ã e s, por que nã o
tr a nsm itim os a quilo que a pr e nde m os ou, e ntã o, por que som os
inc a pa ze s de ouvir. P or e xe m plo, qua nta s ve ze s tudo isto j á nã o f oi
dito a nte s? Ou se nã o, que m te r ia a c r e dita do que nossa s f ilha s
e sta r ia m , m a is um a ve z, pe r m itindo que se us c or pos f osse m
pr e j udic a dos e sa c r if ic a dos por c inta s, sa ltos a ltos e sa ia s j usta s?

I gnor a r a s dif e r e nç a s r a c ia is e ntr e a s m ulhe r e s, e a s im plic a ç õe s


de ssa s dif e r e nç a s, r e pr e se nta a m a is sé r ia a m e a ç a à m obiliza ç ã o da
f or ç a c onj unta da s m ulhe r e s.

Qua ndo a s m ulhe r e s br a nc a s ignor a m os pr ivilé gios ine r e nte s à sua


pe le br a nc a e de f ine m a m u l h e r a pe na s nos te r m os da sua
e xpe r iê nc ia , e ntã o a s m ulhe r e s de Cor tor na m - se o "outr o", o se r
m a rgina liza do c uj a s e xpe r iê nc ia s e tr a diç õe s sã o por de m a is
"dif e r e nte s" pa r a se r e m c om pr e e ndida s, Um bom e xe m plo é a
m a r c a nte a usê nc ia da e xpe r iê nc ia da s m ulhe r e s de Cor c om o um dos
e xpe die nte s pa r a os e studos sobr e a Mulhe r. As obr a s lite r á r ia s da s
m ulhe r e s de Cor r a r a m e nte sã o inc luída s nos c ur sos de lite r a tur a
f e m inina e qua se nunc a nos de m a is c ur sos de lite r a tur a e m ge r a l,
ne m nos e studos sobr e a Mulhe r c om o um todo. É m uito f r e que nte que
a s de sc ulpa s a pr e se nta da s se j a m : a s obr a s lite r á r ia s da s m ulhe r e s de
Cor só pode m se r e nsina da s por m ulhe r e s de Cor : e ssa s obr a s sã o
e xtr e m a m e nte dif íc e is de se r e m c om pr e e ndida s; ou, a s c la sse s nã o
c onse gue m "c a ptá - la s" por que e ssa s obr a s na sc e m de e xpe r iê nc ia s
"de m a sia do dif e r e nte s". Ouvi e sse s a rgum e ntos de m ulhe r e s br a nc a s
dota da s de gr a nde inte ligê nc ia ( e m outr os a ssuntos) ; m ulhe r e s br a nc a s
que nã o pa r e c e m e nc ontr a r pr oble m a a lgum e m e nsina r e a na lisa r
obr a s na sc ida s da s e xpe r iê nc ia s — de m a sia do dif e r e nte s — de um
Sha ke spe a r e , de um Moliè r e , de um Dostoie vsky ou de um
Ar istóf a ne s. Cla r o que há de ha ve r a lgum a outr a e xplic a ç ã o.

Essa é um a que stã o ba sta nte c om ple xa , m a s a c r e dito que um a da s


r a zõe s pe la s qua is a s m ulhe r e s br a nc a s tê m ta nta dif ic ulda de e m le r
a s obr a s da s m ulhe r e s ne gr a s é a sua r e lutâ nc ia e m ve r a s m ulhe r e s
ne gr a s c om o Mulhe r e s e c om o se r e s dif e r e nte s de la s m e sm a s. O
e studo da lite r a tur a da s m ulhe r e s ne gr a s e xige , e f e tiva m e nte , que
se j a m os vista s c om o pe ssoa s inte gr a is c om toda a nossa c om ple xida de
r e a l — e nqua nto indivíduos, e nqua nto m ulhe r e s, e nqua nto se r e s
hum a nos — e nã o c om o um da que le s e ste r e ótipos, pr oble m á tic os m a s
f a m ilia r e s, que a nossa soc ie da de c oloc a no luga r da im a ge m ge nuína
da s m ulhe r e s ne gr a s. E a c r e dito que isso ta m bé m é ve r da de ir o pa r a
a s obr a s lite r á r ia s de outr a s m ulhe r e s de Cor que nã o a s ne gr a s.

A lite r a tur a de toda s a s m ulhe r e s de Cor r e c r ia a s te xtur a s da s nossa s


vida s e m uita s m ulhe r e s br a nc a s e stã o f a ze ndo o possíve l pa r a ignor a r
a s dif e r e nç a s r e a is. P ois, e nqua nto qua lque r dif e r e nç a e ntr e nós
signif ic a r que um a de nós pr e c isa se r inf e r ior à outr a , o
r e c onhe c im e nto de qua lque r dif e r e nç a se r á r e ple to de c ulpa . P e r m itir
que a s m ulhe r e s de Cor sa ia m de se us e ste r e ótipos é de m a sia do
pr ovoc a dor de c ulpa , pois a m e a ç a a c om pla c ê nc ia da que la s m ulhe r e s
que ve e m a opr e ssã o a pe na s e m te r m os de se xo.

Re c usa r a r e c onhe c e r a dif e r e nç a tor na im possíve l ve r m os os


dif e r e nte s pr oble m a s e a r m a dilha s que nos a m e a ç a m e nqua nto
m ulhe r e s. Num siste m a de pode r pa tr ia r c a l — onde o pr ivilé gio da
pe le br a nc a é im por ta nte — a s a r m a dilha s utiliza da s pa r a ne utr a liza r
a s m ulhe r e s ne gr a s e a s m ulhe r e s br a nc a s nã o sã o a s m e sm a s. P or
e xe m plo, é m uito f á c il pa r a a e str utur a do pode r utiliza r a s m ulhe r e s
ne gr a s c ontr a os hom e ns ne gr os; nã o por que e le s se j a m hom e ns, m a s
por que sã o ne gr os. P or ta nto, a m ulhe r ne gr a pr e c isa se m pr e distinguir
e ntr e a s ne c e ssida de s do opr e ssor e se us pr ópr ios c onf litos le gítim os
no se io da sua c om unida de . Esse pr oble m a nã o a tinge a m ulhe r
br a nc a . As m ulhe r e s ne gr a s e os hom e ns ne gr os c om pa r tilha r a m a
opr e ssã o r a c ista — e a inda a c om pa r tilha m —, e m bor a de m a ne ir a s
dif e r e nte s. A pa r tir da e xpe r iê nc ia c om pa r tilha da de ssa opr e ssã o,
de se nvolve m os e m c onj unto de f e sa s e vulne r a bilida de s m útua s que
nã o oc or r e m na c om unida de br a nc a ( c om e xc e ç ã o do r e la c iona m e nto
e ntr e m ulhe r e s j udia s e hom e ns j ude us) .

P or outr o la do, a s m ulhe r e s br a nc a s e nf r e nta m o pe r igo da se duç ã o


de unir- se a o opr e ssor sob a f a r sa de c om pa r tilha r o pode r. Essa
possibilida de nã o se a pr e se nta pa r a a s m ulhe r e s de Cor. A "pr e nda "
que à s ve ze s nos é of e r e c ida nã o é um c onvite pa r a que nos una m os
a o pode r ; nossa "dive r sida de " r a c ia l é um a r e a lida de visíve l, que tor na
isso ba sta nte c la r o. P a r a a s m ulhe r e s br a nc a s e xiste um a ga m a m a is
va sta de pr e te nsa s e sc olha s e r e c om pe nsa s pe la ide ntif ic a ç ã o c om o
pode r pa tr ia r c a l e sua s f e r r a m e nta s.

10
Hoj e , c om a de r r ota da E.R.A. , c om a r e tr a ç ã o e c onôm ic a e o
c r e sc im e nto do c onse r va dor ism o, tor na - se nova m e nte m a is f á c il pa r a
a m ulhe r br a nc a a c r e dita r na pe r igosa f a nta sia de que , se e la f or
suf ic ie nte m e nte boa , bonita , doc e e quie ta , se soube r e duc a r os f ilhos,
odia r a s pe ssoa s c e r ta s e c a sa r c om o hom e m c e r to, e ntã o e la te r á
pe r m issã o pa r a c oe xistir e m r e la tiva pa z c om o pa tr ia r c a do — pe lo
m e nos a té que a lgum hom e m pr e c ise do e m pr e go que e la oc upa ou
que sur j a o e stupr a dor da vizinha nç a . A ve r da de é que , a m e nos que
viva m os e a m e m os na s tr inc he ir a s, pode se r dif íc il pa r a nós le m br a r
que a gue r r a c ontr a a de sum a niza ç ã o é inc e ssa nte .

45. O espelho EUA - URSS

JEROM E S. B ERNSTEIN
Junto c om o a r qué tipo do bode e xpia tór io e o a r qué tipo do pode r, a
som br a ta lve z se j a a m a is a tiva , e xplosiva e pe r igosa e ne rgia psíquic a
ope r a nte e ntr e os Esta dos Unidos e a Uniã o Sovié tic a , Dur a nte o a tua l
pe r íodo ina udito de r e la xa m e nto da te nsã o e ntr e a Uniã o Sovié tic a e
os Esta dos Unidos, é te nta dor ignor a r a dinâ m ic a da som br a e ntr e a s
dua s supe r potê nc ia s. ( Lite r a lm e nte , "P or que pr oc ur a r pr oble m a s?")
Contudo, um a ve z que a dinâ m ic a da som br a te m um a or ige m
a r que típic a , e la pode c r e sc e r ou m ingua r — m a s nã o de sa pa r e c e r á .
Na ve r da de , de ntr o de um a pe r spe c tiva psic ológic a, e sse s sã o os
te m pos pe r igosos; pois se ignor a r m os a dinâ m ic a da som br a e ntr e os
dois pa íse s, e la pode r e ssurgir — pa r a nossa sur pr e sa — sob a lgum a
outr a f or m a . Ta m bé m é pr ová ve l que e ssa dinâ m ic a da som br a se j a
pr oj e ta da sobr e um novo a lvo, por qua lque r um de sse s pa íse s ou por
a m bos.

Um r á pido olha r histór ic o à s r e spe c tiva s som br a s dos Esta dos Unidos
e da Uniã o Sovié tic a é a lta m e nte r e ve la dor e m te r m os da
psic odinâ m ic a que gove r nou a s r e la ç õe s sovié tic oa m e r ic a na s de 1917
a 1985. Com o ne nhum dos dois la dos c onside r a va sua s a m biç õe s de
pode r ple na m e nte c onsiste nte s c om a ide ologia que a f ir m a va , c a da
um de le s a s ne ga va e , a o f a zê - lo, pr oj e ta va - a s sobr e o outr o. "Nós nã o
que r e m os dom ina r ningué m ; nós pre c isamos e sta be le c e r a lia nç a s,
c onstr uir m ísse is, e spiona r e f a ze r pr e pa r a tivos bé lic os por que e le s
que r e m dom ina r os outr os." Em bor a te nha ha vido — e c ontinue a
ha ve r — pr of unda s dif e r e nç a s ide ológic a s e ntr e os dois pa íse s e
siste m a s, um a f onte pr im á r ia da s pr oj e ç õe s ne ga tiva s de pode r um
sobr e o outr o f oi a inc om pa tibilida de e ntr e os r e spe c tivos im pulsos de
pode r de c a da um de le s c om a sua p r ó p r i a ide ologia , Cada lado
acreditava que o sistema político do outro era a raiz de todas as injustiças sociais
e de todo o mal que existe no mundo. Como resultado, cada um deles
comprometeu-se ideologicamente a eliminar o sistema sócio-político do outro.
Esse ponto de vista colocou-os num conflito imediato com sua autoimagem de
defensores da paz mundial e da liberdade, já que cada lado fazia uso de táticas de
subversão e violência para provocar a extinção do sistema do outro — onde quer
que existisse. (A invasão militar soviética da Checoslováquia em 1968 para
abortar o movimento popular pela liberalização política naquele país: e a
derrubada, engendrada pelos Estados Unidos, do regime democraticamente
eleito de Salvador Allende no Chile em 1973, são apenas dois exemplos.) O gr a u
e m que c a da la do ne ga e m e nte sobr e a sua c um plic ida de e a s
ve r da de ir a s r a zõe s pa r a a s sua s a ç õe s, r e pr e se nta um a e vidê nc ia
prima fac ie de se u se ntim e nto de que a a ç ã o tom a da é inc om pa tíve l
c om sua a utoim a ge m ide ológic a . Ta lve z o e xe m plo a r que típic o de sse
f e nôm e no, nos nossos dia s, se j a o e sc â nda lo I r ã - Contr a s e m 1986-
1987 — os Esta dos Unidos dissim ula da m e nte ve nde r a m a r m a s pa r a o
I r ã e m tr oc a da libe r ta ç ã o de r e f é ns a m e r ic a nos e ile ga lm e nte
usa r a m os f undos obtidos pa r a a poia r os Contr a s na Nic a r á gua ; tudo
isso dia nte de um a c la m or osa polític a of ic ia l de ne ga r- se a ne goc ia r
c om te r r or ista s e na ç õe s te r r or ista s, be m c om o de e m ba r c a r
qua isque r a r m a m e ntos pa r a o I r ã . Nã o a pe na s os f unc ioná r ios do
gove r no m e ntir a m a o povo a m e r ic a no — m e sm o de pois de os f a tos
bá sic os se r e m c onhe c idos —, c om o o pr ópr io pr e side nte [ Rona ld
Re a ga n] a pa r e nte m e nte m e ntiu e m dive r sa s oc a siõe s.

É im por ta nte r e c onhe c e r que , no níve l psic ológic o, a pr oj e ç ã o da


som br a te m m a is que ve r c om a a utoim a ge m dom é stic a do que c om a
na tur e za do inim igo pe r c e bido, e m bor a possa ha ve r m uita s ve r da de s
no c onte údo da pr oj e ç ã o. P or e xe m plo, qua ndo o gove r no
nor te a m e r ic a no ne ga o e nvolvim e nto da CI A e e nc obr e o pa pe l dos
Esta dos Unidos e m m ina r os por tos da Nic a r á gua e m 1984, e o
a f unda m e nto de um c a rgue ir o sovié tic o por um a da que la s m ina s, e ssa
m e ntir a nã o e stá se ndo c onta da pa r a c onsum o dos nic a r a gue nse s ou
dos r ussos ( os qua is, na nossa e r a da vigilâ nc ia por sa té lite e da e sc uta
e le tr ônic a supe r se nsíve l, c e r ta m e nte c onhe c e m a na tur e za e a f onte
do a to) . A m e ntir a é c onta da pa r a pr ote ge r a a utoim a ge m domé stic a,
in te rn a , dos Esta dos Unidos. O m a is pe r igoso, e m e spe c ia l num a
de m oc r a c ia , é que e ssa m e ntir a ta m bé m é c onta da pa r a m a nipula r o
Congr e sso e a opiniã o públic a , f a ze ndo c om que a poie m um a polític a
à qua l, de outr o m odo, se opor ia m . O Tr a ta do do Golf o de Tonkin, de 7
de a gosto de 1964, é um c a so a e vide nc ia r.

Qua ndo os sovié tic os m e nte m sobr e a na tur e za dos f a tos que le va r a m
à inva sã o do Af e ga nistã o e m 1979, por e xe m plo, a m e ntir a de stina - se
à m a nute nç ã o de sua a utoim a ge m dom é stic a , nã o por que a c r e dite m
que os Esta dos Unidos e o r e sto do m undo ir ã o a c r e dita r ne la .

A e sse r e spe ito, o inc ide nte de Gr a na da , e m 1983, r e pr e se ntou um a


opor tunida de pe r dida : ha via una nim ida de e ntr e os dois pa r tidos
polític os e o a poio públic o e m f a vor da inte r ve nç ã o m ilita r dos
Esta dos Unidos e m Gr a na da , ha via um ba ixo r isc o de c onse quê nc ia s
a dve r sa s e m te r m os polític os ou m ilita r e s. Se os Esta dos Unidos
tive sse m sido m a is sinc e r os e m r e la ç ã o à s r a zõe s pr e dom ina nte s pa r a
e ssa inva sã o — se m a le ga r que a r a zã o fu n d a m e n ta l pa r a a
inte r ve nç ã o e r a a a m e a ç a oste nsiva , f e ita por um gove r no de
e sque r da , a os e studa nte s de m e dic ina a m e r ic a nos na que la ilha —,
um a pa r te da nossa som br a pode r ia te r sido a ssum ida e , a ssim ,
r e m ovida da dinâ m ic a que pe r pe tua o c onf lito c om a Uniã o Sovié tic a .
( Nos c ír c ulos of ic ia is de Wa shington, a dm itia - se a be r ta m e nte que a
inte r ve nç ã o m ilita r te r ia oc or r ido c om ou se m a pr e se nç a dos
e studa nte s de m e dic ina . Contudo, a posiç ã o of ic ia l do gove r no e m
de ze m br o de 1984 e r a a de que a inte r ve nç ã o m ilita r f or a dita da
ba sic a m e nte pe la im ine nte a m e a ç a à vida de c ida dã os a m e r ic a nos
[ ou se j a , os e studa nte s de m e dic ina ] .) No e nta nto, se o gove r no dos
Esta dos Unidos e stive sse disposto a a dota r um a postur a m a is a be r ta e
hone sta c om r e la ç ã o à s sua s ve r da de ir a s ne c e ssida de s e a m biç õe s de
pode r, e se e stiv e sse disposto a e nfre ntar os argume ntos de que alguns
aspe c tos de ssa postura de pode r se riam inc ompatív e is c om sua
ide ologia e tradiç ão, um a pa r te signif ic a tiva da som br a do pode r
inc onsc ie nte te r ia sido r e sga ta da , c om o r e sulta do de que os Esta dos
Unidos se se ntir ia m be m m e nos inc lina dos a pr oj e tá - la sobr e a Uniã o
Sovié tic a ; e vic e - ve r sa .

Um a da s pe r igosa s c onse quê nc ia s da pr oj e ç ã o da som br a e ntr e a s


supe r potê nc ia s é que ta nto a Uniã o Sovié tic a qua nto os Esta dos Unidos
tê m sido vistos c om o pa íse s m a is ne ga tivos, pe r igosos e a gr e ssivos do
que r e a lm e nte sã o. A pr oj e ç ã o da som br a distor c e a visã o que c a da
pa ís te m de si m e sm o e im pe de que e le e xa m ine c om disc e r nim e nto
sua s te ndê nc ia s de str utiva s; e ssa s, e m a lguns c a sos, pode m se r tã o
de str utiva s qua nto a que la s pe r c e bida s no a dve r sá r io, ou a té m a is. O
pe r igo da a niquila ç ã o nuc le a r a ssom a nos nossos te m pos; e f la gr a nte s
distor ç õe s na pe r c e pç ã o, ta is c om o um a e xa ge r a da pe r c e pç ã o da
a m e a ç a , sã o e xtr e m a m e nte pe r igosa s por que a um e nta m a
possibilida de de e r r os de c á lc ulo e e quívoc os. Até o a dve nto da
a dm inistr a ç ã o Gor ba c he v na Uniã o Sovié tic a , vive m os um a é poc a e m
que a pr oj e ç ã o da som br a , de a m bos os la dos, e sta va no se u a uge .

Alé m disso, a dinâ m ic a da pr oj e ç ã o m útua da som br a é um pr oc e sso


que r e f or ç a a si m e sm o. Qua nto m a is um la do pr oj e ta c onte údos
ne ga tivos sobr e o outr o, m a is e le pr ópr io te nde r á a inf la r- se ,
f a r isa ic a m e nte , c om o c onte údo "positivo" de sua a utoim a ge m
distor c ida . Ac r e sc e nte - se que c a da la do pr e c isa do outr o c om o o
"ba ndido" que ir á r e c e be r sua pr oj e ç ã o ne ga tiva ; e a ssim c a da um
de le s e spe r a , inc onsc ie nte m e nte , que o outr o c ontinue a se r pe lo
m e nos tã o ne ga tivo qua nto é pe r c e bido. P or ta nto, qua lque r m ovim e nto
pa r a e sc a pa r a o status quo c r ia um de se quilíbr io psíquic o
inc onsc ie nte , que osc ila pa r a um ou outr o la do a f im de tom a r a a ç ã o
a gr e ssiva que ir á r e sta be le c e r o e quilíbr io.

A som br a de um la do se m pr e suspe ita dos m otivos do outr o la do —


e la pr e c isa f a zê - lo, ta nto pa r a a te nde r à s sua s pr ópr ia s ne c e ssida de s
qua nto pe los "f a tos".

De adly Gambits [ Ga m bitos Mor ta is] , livr o de Str obe Ta lbott, of e r e c e


um a visã o m a is de ta lha da da pe r spe c tiva a m e r ic a na sobr e o m odo
c om o a s dua s supe r potê nc ia s inc onsc ie nte m e nte m a nipula r a m a si
m e sm a s e um a à outr a pa r a m a nte r o status quo e m r e la ç ã o à s sua s
pr oj e ç õe s m útua s da som br a . Ne sse livr o, Ta lbott a f ir m a que um
e le m e nto signif ic a tivo e dom ina nte na a dm inistr a ç ã o Re a ga n
a c r e dita va que "... os Esta dos Unidos te r ia m m a is suc e sso na m e sa de
ne goc ia ç õe s c om ga m bitos que le va sse m a um im pa sse diplom á tic o;
de sse m odo, os Esta dos Unidos e sta r ia m m a is livr e s pa r a c a ptur a r e
de se nvolve r nova s pe ç a s na sua m e ta de do ta bule ir o e na sua pr ópr ia
posiç ã o, se ne c e ssá r io, pa r a f a ze r m ovim e ntos m ilita r e s vitor iosos
c ontr a a Uniã o Sovié tic a ".

Um e xe m plo qua se c ôm ic o de sse f e nôm e no é a que stã o dos


pr ogr a m a s de de f e sa c ivil nos dois pa íse s. Qua ndo a s f onte s de
inte ligê nc ia a m e r ic a na s r e por ta r a m , no iníc io da a dm inistr a ç ã o
Re a ga n, que a Uniã o Sovié tic a e sta va c onstr uindo um sólido siste m a
de de f e sa c ivil que se r ia c a pa z de e va c ua r um núm e r o im e nso de
c ivis, a lguns a ltos of ic ia is a m e r ic a nos se c onve nc e r a m de que os
sovié tic os pla ne j a va m a lc a nç a r a "c a pa c ida de pa r a o pr im e ir o
a ta que " c ontr a os Esta dos Unidos e insistir a m num pla ne j a m e nto
e quipa r á ve l no siste m a de de f e sa dos Esta dos Unidos. Or a , ha ve r ia
outr a r a zã o pa r a que os sovié tic os pr e c isa sse m de um siste m a de
de f e sa c ivil tã o e la bor a do se nã o que pla ne j a va m um "pr im e ir o
a ta que " c ontr a os Esta dos Unidos e , por ta nto, se pr e pa r a va m pa r a um
a ta que r e ta lia tór io dos Esta dos Unidos?

Ao m e sm o te m po, c om o os Esta dos Unidos nã o tinha m pr a tic a m e nte


ne nhum pr ogr a m a de de f e sa c ivil e na da e sta va se ndo pla ne j a do
ne ssa á r e a , a lguns a ltos of ic ia is sovié tic os se c onve nc e r a m de que os
Esta dos Unidos pla ne j a va m um "pr im e ir o a ta que " c ontr a a Uniã o
Sovié tic a e insistir a m que o siste m a de de f e sa sovié tic o tom a sse a s
de vida s pr e c a uç õe s. Or a , ha ve r ia outr a r a zã o pa r a que os Esta dos
Unidos de ixa sse m de de se nvolve r um siste m a de de f e sa c ivil pa r a
pr ote ge r sua popula ç ã o se nã o que pla ne j a va m um "pr im e ir o a ta que "
m a c iç o c ontr a a Uniã o Sovié tic a e , por ta nto, nã o pr e c isa va m de
de f e sa a lgum a ? No outono de 1988 e sse a ssunto a inda c ir c ula va e ntr e
a s e quipe s de Gor ba c he v e de Re a ga n.

Ne sse c a so, um a "lógic a " tota lm e nte oposta e c ontr a ditór ia f oi usa da
por a m bos os la dos pa r a j ustif ic a r a pr oj e ç ã o da pr ópr ia som br a sobr e
o outr o. P a ssa r a m - se , na ve r da de , vinte a nos de "pingue - pongue " c om
a s ne goc ia ç õe s sobr e r e duç ã o de a r m a m e ntos e ntr e a s dua s
supe r potê nc ia s.

Do ponto de vista psic ológic o, nã o im por ta que m e stá c e r to e que m


e stá e r r a do. Na m a ior ia dos c a sos, a m bos e stã o c e r tos e a m bos e stã o
e r r a dos. As pr oj e ç õe s da som br a pr oduze m pr of unda s distor ç õe s na
r e a lida de pe r c e bida e , a ssim , a um e nta m a s te nsõe s bé lic a s e ntr e os
a nta gonista s. A m e nos que e ssa s pr oj e ç õe s da som br a se j a m
tr a ba lha da s e r e sga ta da s, qua isque r ne goc ia ç õe s r a c iona is e ntr e os
dois la dos te r ã o a pe na s um va lor m a rgina l e se r ã o de c ur ta dur a ç ã o,
um a ve z que a s que stõe s m a is im por ta nte s c ontinua m invisíve is no
inc onsc ie nte , se m se r e m tr a ba lha da s. A pr oj e ç ã o da som br a é um
f e nôm e no inc onsc ie nte e , por ta nto, qua se nunc a é a f e ta do por
ne goc ia ç õe s sobr e a ssuntos "obj e tivos" ( por e xe m plo, c ontr ole de
a r m a m e ntos) ; m a s pode te r um im pa c to ne ga tivo sobr e e ssa s
ne goc ia ç õe s e ntr e a s supe r potê nc ia s. P or ta nto, é pr e c iso que oc or r a
pr im e ir o um a r e soluç ã o psic ológic a dos a ssuntos da som br a pa r a que ,
de pois, se j a possíve l um a r e soluç ã o polític a tr a nsf or m a dor a de longo
pr a zo. De pois de a nos de á r duo tr a ba lho, a s supe r potê nc ia s f ina lm e nte
pode m ne goc ia r um tr a ta do de r e duç ã o de a r m a m e ntos ( por e xe m plo,
os dois Ac or dos pa r a Lim ita ç ã o de Ar m a s Estr a té gic a s — SALT I e I I
— e o Tr a ta do I NF de 1988) . No e nta nto, se m um a r e soluç ã o
psic ológic a dos a ssuntos da som br a , surge m novos siste m a s de
a r m a m e ntos ( por e xe m plo, o m íssil MX, os m ísse is SS- 20, o
"Midge tm a n" e a te c nologia SDI ) que inva lida m os a c or dos a nte r ior e s
e e xige m que o pr oc e sso e ste j a se m pr e se ndo r e inic ia do.

Um a outr a obse r va ç ã o im por ta nte é de c isiva pa r a o e nte ndim e nto da


na tur e za da pr oj e ç ã o da som br a e da m a ne ir a c om o pode r ía m os lida r
c om sua dinâ m ic a : a té o a dve nto da a dm inistr a ç ã o Gor ba c he v, a
Uniã o Sovié tic a f oi o "ga nc ho" ( r e c e ptor ) ide a l pa r a a pr oj e ç ã o da
som br a na c iona l a m e r ic a na — e vic e - ve r sa , os Esta dos Unidos pa r a a
som br a sovié tic a — pe la r a zã o m e sm a de que a m bos suste nta m
ide ologia s e va lor e s opostos. Os a m e r ic a nos va lor iza m os dir e itos
individua is a c im a dos c ole tivos; os sovié tic os va lor iza m os dir e itos
c ole tivos a c im a dos dir e itos do indivíduo. Os a m e r ic a nos insiste m no
livr e e xe r c íc io da s c onvic ç õe s r e ligiosa s; os sovié tic os sã o
of ic ia lm e nte a te us, e tc . Um a soc ie da de c ole tivista f e c ha da e stá e m
c ontr a posiç ã o a a utoim a ge m a m e r ic a na e , por ta nto, é r e pr im ida na
som br a a m e r ic a na . P or outr o la do, um a soc ie da de a be r ta que c oloc a
se us va lor e s m a is e le va dos nos dir e itos do indivíduo é inc om pa tíve l
c om a a utoim a ge m sovié tic a e é , por ta nto, pa r te da som br a sovié tic a .
Em pa r te , a som br a a m e r ic a na é f a sc ista , r e pr e ssiva e c ole tivista —
c om o te ste m unha m Wa te rga te e o e sc â nda lo I r ã - Contr a s. Em pa r te , a
som br a sovié tic a é c a pita lista e de m oc r á tic a — o sindic a to polonê s
Solida r ie da de e a sua pr e ssã o e m f a vor da de m oc r a tiza ç ã o é um
a spe c to a tivo da som br a sovié tic a .

46. A duplicação e os médicos nazistas

ROB ERT JAY LIFTON

O c om por ta m e nto dos m é dic os na zista s suge r e os pr im ór dios de um a


psic ologia do ge noc ídio. P a r a e sc la r e c e r os pr inc ípios e nvolvidos,
pr im e ir o e nf oc a r e i de m odo siste m á tic o o pa dr ã o psic ológic o da
duplic a ç ã o, que e r a o m e c a nism o globa l da que le s m é dic os pa r a
pa r tic ipa r do m a l. De pois, ta m bé m se r á ne c e ssá r io ide ntif ic a r c e r ta s
te ndê nc ia s no se u c om por ta m e nto, pr om ulga da s e m e sm o e xigida s
pe lo a m bie nte de Ausc hwitz, que f a c ilita va m m uito a duplic a ç ã o.
Nossa e xplor a ç ã o de stina - se a se r vir a dois pr opósitos: pr im e ir o, e la
pode nos of e r e c e r um a nova visã o sobr e os a tos e m otiva ç õe s dos
m é dic os na zista s e dos na zista s e m ge r a l; se gundo, e la pode susc ita r
que stõe s m a is a m pla s sobr e o c om por ta m e nto hum a no, sobr e a s
m a ne ir a s pe la s qua is o se r hum a no, individua l ou c ole tiva m e nte ,
se gue vá r ia s f or m a s de de str utivida de e de m a l, c om ou se m a
pe r c e pç ã o de f a zê - lo. Os dois pr opósitos, num se ntido m uito r e a l, sã o
um só. Se e xiste a lgum a ve r da de nos j ulga m e ntos psic ológic os e
m or a is que f a ze m os sobr e a s c a r a c te r ístic a s e spe c íf ic a s e únic a s do
a ssa ssino de m a ssa na zista , pode r e m os de r iva r de le s a lguns princ ípios
de a plic a ç ã o m a is a m pla — pr inc ípios que se r e f e r e m à e xtr a or diná r ia
a m e a ç a e pote nc ia l pa r a a utoa niquila ç ã o que hoj e a ssom br a a
hum a nida de .

A c ha ve pa r a o e nte ndim e nto da m a ne ir a pe la qua l os m é dic os


na zista s c he ga r a m a f a ze r o tr a ba lho de Ausc hwitz é o pr inc ípio
psic ológic o a que c ha m o "duplic a ç ã o": a divisã o do s e l f e m dua s
tota lida de s f unc iona is, de m odo que um me io- se lf pa ssa a a tua r c om o
u m se lf inte iro. Um m é dic o de Ausc hwitz pode r ia , a tr a vé s da
duplic a ç ã o, nã o a pe na s m a ta r e c ola bor a r na m a ta nç a c om o ta m bé m
orga niza r sile nc iosa m e nte , e m nom e da que le pr oj e to do m a l, toda
um a a utoe str utur a ( ou a utopr oc e sso) a br a nge ndo vir tua lm e nte todos
os a spe c tos do se u c om por ta m e nto.

Conside r e m os, por ta nto, que a duplic a ç ã o f oi o ve íc ulo psic ológic o


pa r a o a c or do f a ustia no do m é dic o na zista c om o a m bie nte dia bólic o:
e m tr oc a de sua c ontr ibuiç ã o pa r a o m a ssa c r e , f or a m - lhe of e r e c idos
vá r ios be ne f íc ios psic ológic os e m a te r ia is pa r a que e le a lc a nç a sse
um a pr ivile gia da a da pta ç ã o. Alé m disso, Ausc hwitz f oi a m a ior
te nta ç ã o f a ustia na j a m a is of e r e c ida a os m é dic os a le m ã e s e m ge r a l: a
te nta ç ã o de se tr a nsf or m a r e m nos te ór ic os e e xe c utor e s de um
e sque m a c ósm ic o de c ur a r a c ia l, por m e io do sa c r if íc io e a ssa ssina to
e m m a ssa .

Som os se m pr e e tic a m e nte r e sponsá ve is pe los a c or dos f a ustia nos —


r e sponsa bilida de que de m odo a lgum é a nula da pe lo f a to de que
gr a nde pa r te da duplic a ç ã o oc or r e f or a da nossa pe r c e pç ã o
c onsc ie nte . Ao e xplor a r a duplic a ç ã o, e nvolvo- m e num a sonda ge m
psic ológic a pa r a la nç a r luz sobr e o m a l. P a r a um m é dic o na zista e m
Ausc hwitz, e nqua nto indivíduo, é pr ová ve l que a duplic a ç ã o
signif ic a sse um a opç ã o pe lo m a l.

De m odo ge r a l, a duplic a ç ã o e nvolve c inc o c a r a c te r ístic a s:

1. Existe um a dia lé tic a e ntr e os dois s e lv e s e m te r m os de


a utonom ia e c one xã o. O m é dic o na zista , e nqua nto
indivíduo, pr e c isa va de se u se lf - Ausc hwitz pa r a se
de se m pe nha r psic ologic a m e nte na que le a m bie nte tã o
oposto a se us pa dr õe s é tic os a nte r ior e s. Ao m e sm o te m po,
e le pr e c isa va do se u se lf a nte r ior pa r a pode r c ontinua r a
ve r a si m e sm o c om o m é dic o hum a nitá r io, c om o m a r ido,
c om o pa i. O se lf - Ausc hwitz pr e c isa va se r a utônom o, m a s
ta m bé m pr e c isa va e sta r liga do a o se lf a nte r ior que lhe de u
or ige m .
2. A duplic a ç ã o se gue um pr inc ípio holístic o. O se lf - Ausc hwitz
"te ve suc e sso" por que e r a a br a nge nte e podia c one c ta r- se
c om todo o a m bie nte de Ausc hwitz; e le tr a zia c oe r ê nc ia e
da va f or m a a vá r ios te m a s e m e c a nism os dos qua is f a la r e i
e m br e ve .

3. A duplic a ç ã o te m um a dim e nsã o vita l/m or ta l. O se lf-


Ausc hwitz e r a pe r c e bido pe lo e xe c utor c om o um a f or m a de
sobr e vivê nc ia psic ológic a num a m bie nte dom ina do pe la
m or te . Em outr a s pa la vr a s, te m os o pa r a doxo de um "se lf
a ssa ssino" se ndo c r ia do e m nom e da quilo que a s pe ssoa s
pe r c e bia m c om o sua pr ópr ia c ur a ou sobr e vivê nc ia .

4. Um a im por ta nte f unç ã o da duplic a ç ã o, do m odo c om o e la


se pr oc e ssou e m Ausc hwitz, é pr ova ve lm e nte a de e vita r a
c ulpa : o se gundo se lf te nde a se r a que le que de se m pe nha o
"tr a ba lho suj o".

5. E, f ina lm e nte , a duplic a ç ã o e nvolve ta nto um a dim e nsã o


inc onsc ie nte — que oc or r e , c om o disse m os, be m f or a da
pe r c e pç ã o c onsc ie nte — qua nto um a m uda nç a signif ic a tiva
na c onsc iê nc ia m or a l.

Essa s c a r a c te r ístic a s e m oldur a m e pe r m e ia m tudo o m a is que se


se gue , e m níve l psic ológic o, na duplic a ç ã o.

P or e xe m plo, o pr inc ípio holístic o dif e r e nc ia a duplic a ç ã o do


tr a dic iona l c onc e ito psic a na lític o de "c isã o". O te r m o c isã o te m
dive r sos signif ic a dos, m a s sua te ndê nc ia é suge r ir o se que str o de um a
por ç ã o do se lf, de m odo que o e le m e nto "c indido" de ixa de r e a gir a o
a m bie nte ( c om o na quilo que c ha m e i "e ntor pe c im e nto psíquic o") ou
e ntã o se de se nte nde , de a lgum m odo, c om o r e sta nte do se lf. Ne sse
se ntido, a c isã o a sse m e lha - se à quilo que P ie r r e Ja ne t ( c onte m por â ne o
de Fr e ud no sé c ulo XI X) or igina lm e nte c ha m a va "dissoc ia ç ã o": o
pr ópr io Fr e ud m ostr ou um a te ndê nc ia a e quipa r a r os dois te r m os. Ma s
e m r e la ç ã o a s f or m a s suste nta da s de a da pta ç ã o te m ha vido um a c e r ta
c onf usã o sobr e c om o e xplic a r a a utonom ia de ssa "pa r te " se pa r a da do
se lf— c om o pe rguntou um pe nsa dor c om e nta ndo o a ssunto, "o que se
c inde na c isã o?"1- 2

P or ta nto, a "c isã o" e a "dissoc ia ç ã o" pode m nos de m onstr a r a lgo sobr e
a supr e ssã o dos se ntim e ntos ( ou o e ntor pe c im e nto psíquic o) nos
m é dic os na zista s c om r e spe ito à pa r te que lhe s c a bia nos
a ssa ssina tos. 3 Ma s, pa r a tr a ç a r se u e nvolvim e nto num a r otina
c ontínua de a ssa ssina tos a o longo de um , dois ou m a is a nos,
pr e c isa m os de um pr inc ípio e xplic a tivo que a br a nj a todo o se lf. ( O
m e sm o pr inc ípio a plic a - se a o distúr bio psiquiá tr ic o suste nta do, e
m inha ê nf a se na duplic a ç ã o é c oe r e nte c om o e nf oque
c onte m por â ne o, c a da ve z m a ior, sobr e a f unç ã o holístic a do se lf.) 4

A duplic a ç ã o é pa r te do pote nc ia l unive r sa l pa r a a quilo que Willia m


Ja m e s c ha m ou o "s e l f dividido": ou se j a , pa r a a s te ndê nc ia s e m
oposiç ã o no se lf. Ja m e s c itou o gr ito de se spe r a do de Alphonse Da ude t,
e sc r itor f r a nc ê s do sé c ulo XI X, "Homo duple x , homo duple x ! ", a o
pe r c e be r sua "hor r íve l dua lida de " — dia nte da m or te do ir m ã o He nr i,
o "pr im e ir o se lf de Da ude t "c hor a va ", e nqua nto se u "se gundo se lf se
r e c osta va e zom be te ir a m e nte a r m a va o pa lc o pa r a uma pe rformanc e
te a tr a l im a giná r ia .5 P a r a Ja m e s e Da ude t, o pote nc ia l pa r a a
duplic a ç ã o é pa r te do se r hum a no e é pr ová ve l que o pr oc e sso oc or r a
e m m om e ntos de pe r igo e xtr e m o e e m r e la ç ã o à m or te .

Ma s e sse "s e l f e m oposiç ã o" pode tor na r- se pe r igosa m e nte


de sc ontr ola do, c om o oc or r e u nos m é dic os na zista s. E qua ndo isso
oc or r e , c onf or m e Otto Ra nk de sc obr iu e m se us e xte nsos e studos sobr e
o "duplo" na lite r a tur a e no f olc lor e , e sse s e l f e m oposiç ã o pode
tor na r- se o usur pa dor que ve m de de ntr o e substituir o se lf or igina l a té
pa ssa r a "f a la r " pe la pe ssoa toda .6 O tr a ba lho de Ra nk ta m bé m suge r e
que o pote nc ia l pa r a um se lf c m oposiç ã o — na ve r da de , o pote nc ia l
pa r a o m a l — é ne c e ssário à psique hum a na : a pe r da da nossa
som br a , da a lm a ou "duplo" signif ic a a m or te .

Em te r m os psic ológic os ge r a is, o pote nc ia l a da pta tivo pa r a a


duplic a ç ã o é pa r te inte gr a nte da psique hum a na e pode , à s ve ze s,
sa lva r a vida : pa r a um solda do e m c om ba te , por e xe m plo, ou pa r a
um a vítim a da br uta lida de , ta l c om o um inte r no e m Ausc hwitz, que
pr e c isa ta m bé m subm e te r- se a um a f or m a de duplic a ç ã o pa r a pode r
sobr e vive r. O "se lf e m oposiç ã o" pode , c la r a m e nte , a m plia r a vida .
Ma s e m c e r ta s situa ç õe s e le pode a dota r o m a l c om e xtr e m a f a lta de
c ontr ole .

A situa ç ã o dos m é dic os na zista s a sse m e lha - se à de um dos e xe m plos


de Ra nk ( e xtr a ído de um f ilm e a le m ã o de 1913: O Estudante de
P raga) : um e studa nte , c a m pe ã o de e sgr im a , a c e ita de um br uxo a
of e r ta de gr a nde r ique za e a c ha nc e de c a sa r c om sua a m a da e m
tr oc a de a lgo que o ve lho br uxo que r r e tir a r do se u qua r to; o que e le
r e tir a é o r e f le xo do e studa nte no e spe lho, um a r e pr e se nta ç ã o
f r e que nte do duplo. Esse duplo a c a ba se tr a nsf or m a ndo num
a ssa ssino, usa ndo a ha bilida de de e sgr im ista do e studa nte num due lo
c om outr o pr e te nde nte de sua a m a da , e m bor a o e studa nte ( se u se lf
or igina l) houve sse pr om e tido a o pa i da m oç a que nã o e ntr a r ia ne sse
due lo. Essa va r ia ç ã o da le nda de Fa usto é c om pa r á ve l a o "a c or do" do
m é dic o na zista c om Ausc hwitz e o r e gim e : pa r a c om e te r os
a ssa ssina tos, e le of e r e c e u um se lf e m oposiç ã o ( o se lf- Ausc hwitz e m
e v oluç ão) — um s e l f que , a o viola r se us pr ópr ios pa dr õe s m or a is
a nte r ior e s, e nc ontr a - se se m ne nhum a r e sistê nc ia e f e tiva e , na
ve r da de , f a z uso de sua s ha bilida de s or igina is ( ne ste c a so, m é dic o-
c ie ntíf ic a s) . 7

Ra nk e nf a tizou o sim bolism o m or ta l do duplo c om o "sintom á tic o da


de sinte gr a ç ã o do tipo de pe r sona lida de m ode r na ". Essa de sinte gr a ç ã o
le va à ne c e ssida de de "a utope r tur ba ç ã o na pr ópr ia im a ge m "8 —
a quilo que e u c ha m a r ia um a lite r a liza da f or m a de im or ta lida de —
e nqua nto c om pa r a da c om a "pe r pe tua ç ã o do s e l f ope r a ndo pa r a
r e f le tir a pe r sona lida de " ( ou se j a , um a c r ia tiva f or m a sim bólic a de
im or ta lida de ) . Ra nk pe nsa va que a le nda de Na r c iso m ostr a va o
pe r igo da via lite r a liza da , e ta m bé m a ne c e ssida de da tr a nsiç ã o pa r a a
via c r ia tiva ( c onf or m e e r a r e pr e se nta da pe lo "a r tista - he r ói") . 9 Ma s o
m ovim e nto na zista e nc or a j a va o se u suposto a r tista - he r ói, o m é dic o, a
pe r m a ne c e r um Na r c iso e sc r a viza do à pr ópr ia im a ge m . Aqui ve m - nos
im e dia ta m e nte à m e nte o Dr. Me nge le ; se u e xtr e m o na r c isism o a
se r viç o de sua busc a por onipotê nc ia e sua pe r sonif ic a ç ã o, a té o ponto
da c a r ic a tur a , da situa ç ã o ge r a l dos m é dic os na zista s e m Ausc hwitz. 10

A duplic a ç ã o pe r m itiu a os m é dic os na zista s e vita r a c ulpa , nã o pe la


e lim ina ç ã o da c onsc iê nc ia , m a s por a quilo que pode se r c ha m a do
transfe rê nc ia da c onsc iê nc ia. As e xigê nc ia s da c onsc iê nc ia f or a m
tr a nsf e r ida s pa r a o se lf - Ausc hwitz, que a inc luiu e m se us pr ópr ios
c r ité r ios de be m ( de ve r, le a lda de a o gr upo, "m e lhor a " da s c ondiç õe s
de Ausc hwitz, e tc .) e a ssim libe r ou o s e l f or igina l de qua lque r
r e sponsa bilida de pe los a tos a li c om e tidos. Ra nk ta m bé m f a lou da
c ulpa "que f or ç a o he r ói a nã o a c e ita r m a is a r e sponsa bilida de por
c e r ta s a ç õe s do se u e go e a c oloc á - la sobr e um outr o e go, um duplo,
que é pe r sonif ic a do pe lo pr ópr io dia bo ou é c r ia do qua ndo e le f a z um
pa c to dia bólic o" — ou se j a , o a c or do f a ustia no dos m é dic os na zista s
que m e nc iona m os a nte s. Ra nk f a lou de um a "pode r osa c onsc iê nc ia de
c ulpa " que inic ia va a tr a nsf e r ê nc ia ;11 m a s, pa r a a m a ior ia dos
m é dic os na zista s, a m a nobr a da duplic a ç ã o pa r e c ia de str uir e sse
se ntim e nto de c ulpa a nte s que e le se de se nvolve sse ou a lc a nç a sse o
lim ia r da c onsc iê nc ia .

Existe um a outr a liga ç ã o ine vitá ve l e ntr e a m or te e a c ulpa . Ra nk


e quipa r a o "se lf e m oposiç ã o" a um a "f or m a de m a l que r e pr e se nta a
pa r te pe r e c íve l e m or a l da pe r sona lida de ".12 O duplo é o m a l na
m e dida e m que r e pr e se nta a pr ópr ia m or te da pe ssoa . O se lf -
Ausc hwitz do m é dic o na zista a ssum ia , de m odo se m e lha nte , a que stã o
da sua pr ópr ia m or te m a s, a o m e sm o te m po, utiliza va se u pr oj e to do
m a l c om o um a m a ne ir a de e vita r a pe r c e pç ã o c onsc ie nte de sua
pr ópr ia "pa r te pe r e c íve l e m or ta l". Ao tr a nsf or m a r e sse tr a ba lho e m
a lgo "a pr opr ia do", e le f a z o "tr a ba lho suj o" pa r a todo o se lf e , de sse
m odo, pr ote ge todo o se lf da pe r c e pç ã o de sua pr ópr ia c ulpa e de sua
pr ópr ia m or te .

Na duplic a ç ã o, um a pa r te do se lf "r e c usa " um a outr a pa r te . O que é


r e pudia do nã o é a r e a lida de e m si — o m é dic o na zista , e nqua nto
indivíduo, tinha c onsc iê nc ia da quilo que e sta va f a ze ndo a tr a vé s de se u
se lf - Ausc hwitz —, m a s sim o se ntido de ssa r e a lida de . O m é dic o
na zista sa bia que f a zia se le ç õe s, m a s nã o inte r pr e ta va a s se le ç õe s
c om o a ssa ssina to. Um níve l da r e c usa , por ta nto, e r a o se lf - Ausc hwitz
a lte r a ndo o se ntido do a ssa ssina to; outr o níve l, e r a o s e l f or igina l
r e p u d ia n d o qualque r c oisa f e ita pe lo se lf - Ausc hwitz. A pa r tir do
m om e nto de sua f or m a ç ã o, o se lf - Ausc hwitz de ta l m odo viola va o
a utoc onc e ito a nte r ior do m é dic o na zista que e xigia um a r e c usa
pe r m a ne nte ou te m por á r ia . A r e c usa e r a , na ve r da de , a e ssê nc ia do
se lf- Ausc hwitz. 13

Duplic aç ão, c isão e mal


A duplic a ç ã o é um pr oc e sso psic ológic o a tivo, um m e io de adaptaç ão
às situaç õe s de e x tre mo pe rigo. É por isso que uso a f or m a a tiva
"duplic a ç ã o", e nqua nto oposta à f or m a pa ssiva m a is usua l, "o duplo".
A a da pta ç ã o e xige um a dissoluç ã o de "c ola psíquic a "14 c om o
a lte r na tiva a um c ola pso r a dic a l do se lf. Em Ausc hwitz, o pa dr ã o f oi
e sta be le c ido sob a s dif ic ulda de s do pe r íodo de tr a nsiç ã o do m é dic o
e nqua nto indivíduo. Ne sse m om e nto, o m é dic o na zista e xpe r im e nta a
sua pr ópr ia a nsie da de qua nto à m or te be m c om o qua nto a os
e quiva le nte s a m or te , ta is c om o o m e do de de sinte gr a ç ã o, se pa r a ç ã o
11
e e sta se . Ele pr e c isa va de um se lf- Ausc hwitz func ional para aliv iar
sua ansie dade , E e sse se lf- Ausc hwitz pre c isav a assumir a he ge monia
numa base c otidiana, re duzindo as e x pre ssõe s do s e l f a nte r ior a
m om e ntos oc a siona is e a c onta tos c om a f a m ília e c om os a m igos
f or a do c a m po. A m a ior ia dos m é dic os na zista s nã o of e r e c e u
r e sistê nc ia a e ssa usur pa ç ã o e nqua nto pe r m a ne c e r a m no c a m po, P e lo
c ontr á r io, e le s a a c olhe r a m c om o o únic o m e io de se de se m pe nha r
e m níve is psic ológic os. Se um a m bie nte é suf ic ie nte m e nte e xtr e m o e
a pe ssoa opta por pe r m a ne c e r ne le , e la ta lve z só se j a c a pa z de f a zê - lo
por m e io da duplic a ç ã o.

No e nta nto, a duplic a ç ã o nã o inc lui a dissoc ia ç ã o r a dic a l e o e sta do de


se pa r a ç ã o suste nta da que c a r a c te r iza m a pe r sona lida de m últipla , ou
"pe r sona lida de dupla ". Na s c ondiç õe s de ssa últim a , os dois se lv e s sã o
m a is pr of unda m e nte distintos e a utônom os, e sua te ndê nc ia é na da
sa be r e m um do outr o ou, se nã o, ve r e m um a o outr o c om o e str a nhos.
Alé m disso, a c r e dita - se que o pa dr ã o pa r a a pe r sona lida de m últipla ou
dupla c om e ç a c e do na inf â nc ia e se solidif ic a e se m a nté m m a is ou
m e nos inde f inida m e nte . Ainda a ssim , no de se nvolvim e nto da
pe r sona lida de m últipla , é pr ová ve l que e xista m inf luê nc ia s ta is c om o
um inte nso tr a um a psíquic o ou f ísic o, um a a tm osf e r a de e xtr e m a
a m biva lê nc ia e um se ve r o c onf lito e c onf usã o c om r e spe ito a
ide ntif ic a ç õe s 15 — todos os qua is ta m bé m pode m se r instr um e nta is na
duplic a ç ã o. Ta m bé m r e le va nte pa r a a m ba s a s c ondiç õe s é o pr inc ípio
de Ja ne t de que "um a ve z ba tiza do" — ou se j a , nom e a do ou
c onf ir m a do por a lgum a a utor ida de — é pr ová ve l que um se lf se tor ne
m a is c la r o e de f inido. Em bor a nunc a tã o e stá ve l c om o o s e l f na
pe r sona lida de m últipla , o se lf - Ausc hwitz m e sm o a ssim subm e te u- se a
um "ba tism o" se m e lha nte qua ndo o m é dic o na zista c onduziu sua s
pr im e ir a s se le ç õe s.

Um e sc r itor r e c e nte e m pr e gou a m e tá f or a da á r vor e pa r a de line a r a


pr of undida de da "c isã o" na e squizof r e nia e na pe r sona lida de m últipla
— um a m e tá f or a que pode r ia se r e xpa ndida pa r a inc luir a duplic a ç ã o.
Na e squizof r e nia , a r a c ha dur a no se lf é "c om o a de sinte gr a ç ã o e
de sm or ona m e nto de um a á r vor e que se de te r ior ou de m odo ge r a l ou,
pe lo m e nos, e m a lgum a pa r te im por ta nte do tr onc o ou na s r a íze s". Na
pe r sona lida de m últipla , a r a c ha dur a é e spe c íf ic a e lim ita da , "c om o
num a á r vor e e sse nc ia lm e nte sa dia que nã o se r a c ha de c im a a
ba ixo". 16 A duplic a ç ã o oc or r e a inda m a is no a lto de um a á r vor e c uj a s
r a íze s, tr onc o e ga lhos m a ior e s a inda nã o sof r e r a m da nos: de um dos
dois r a m os a r tif ic ia lm e nte se pa r a dos br ota m a s c a sc a s e f olha s
m a lc he ir osa s, e isso pe r m ite que o outr o m a nte nha o c r e sc im e nto
nor m a l; e sse s dois r a m os se e ntr e la ç a m o suf ic ie nte pa r a se f undir e m
de novo c a so a s c ondiç õe s e xte r na s f a vor e ç a m e ssa f usã o.

Se r ia a duplic a ç ã o dos m é dic os na zista s um a "de sor de m de c a r á te r "


a ntissoc ia l? Nã o no se ntido c lá ssic o, na m e dida e m que o pr oc e sso
te ndia a se r m a is um a f or m a de a da pta ç ã o do que um pa dr ã o pa r a
toda a vida . Ma s a duplic a ç ã o pode inc luir e le m e ntos c onside r a dos
c a r a c te r ístic os dos da nos "soc iopá tic os" a o c a r á te r ; e sse s inc lue m
um a de sor de m de se ntim e ntos ( a lte r a ç õe s e ntr e o e ntor pe c im e nto e a
r a iva ) , a f uga pa tológic a à se nsa ç ã o de c ulpa e o r e c ur so à violê nc ia
pa r a supe r a r a "de pr e ssã o m a sc a r a da " ( r e la c iona da c om a c ulpa e
e ntor pe c im e nto r e pr im idos) , m a nte ndo um a se nsa ç ã o de vita lida de .17
Do m e sm o m odo, e m a m ba s a s situa ç õe s, um c om por ta m e nto
de str utivo e a té m e sm o a ssa ssino pode e nc obr ir a te m ida
de sinte gr a ç ã o do se lf.

A de sor de m no tipo de duplic a ç ã o que de sc r e vi é m a is c onc e ntr a da e


te m por á r ia , e oc or r e c om o pa r te de um a e str utur a instituc iona l m a is
a m pla , que a e nc or a j a ou a té m e sm o e xige . Ne sse se ntido, o
c om por ta m e nto dos m é dic os na zista s a sse m e lha - se a o de c e r tos
te r r or ista s e m e m br os da Má f ia , de "e squa dr õe s da m or te "
orga niza dos por dita dor e s ou a té m e sm o de gangs de linque nte s. Em
toda s e ssa s situa ç õe s, pr of undos la ç os ide ológic os, f a m ilia r e s, é tnic os
e à s ve ze s e tá r ios, a j uda m a da r f or m a a o c om por ta m e nto c r im inoso.
A duplic a ç ã o pode tr a nsf or m a r- se e m im por ta nte m e c a nism o
psic ológic o pa r a os indivíduos que vive m e m qua lque r subc ultur a
c r im inosa : o c he f e da Má f ia ou do "e squa dr ã o da m or te " que or de na a
sa ngue - f r io ( ou e le pr ópr io e xe c uta ) o a ssa ssina to de um r iva l
e nqua nto pe r m a ne c e um m a r ido e pa i a m or oso, um f r e que nta dor da
igr e j a . A duplic a ç ã o a da pta - se à s c ondiç õe s e xtr e m a s c r ia da s pe la
subc ultur a , m a s inf luê nc ia s a dic iona is, a lgum a s da s qua is pode m
c om e ç a r c e do na vida , se m pr e c ontr ibue m pa r a e sse pr oc e sso.18 Esse
f oi ta m bé m o c a so c om os m é dic os na zista s.

Em sum a , a duplic a ç ã o é um m e io psic ológic o pa r a invoc a r m os a s


pote nc ia lida de s do se lf pa r a o m a l. Esse m a l nã o é ine r e nte a o se lf
ne m a lhe io a e le . Vive r a duplic a ç ã o e f a ze r surgir o m a l é um a
e sc olha m or a l de r e sponsa bilida de da pr ópr ia pe ssoa , qua lque r que
se j a o níve l de c onsc iê nc ia e nvolvido.l9 P or m e io da duplic a ç ã o, os
m é dic os na zista s f ize r a m um a e sc olha f a ustia na pe lo m a l: na ve r da de ,
no pr oc e sso de duplic a ç ã o e stá um a c ha ve c om ple ta pa r a o m a l
hum a no.

47. Por que os psicopatas não governam o mundo?

ADOLF G UG G ENB ÜHL- CRAIG


Va m os e sta be le c e r um a distinç ã o e ntr e a a gr e ssã o e o â m a go — ou
e ssê nc ia — da que le e le m e nto que c ha m a m os a som br a ; e ssa distinç ã o
é f e ita pe los j unguia nos, m a s nã o f ic a be m c la r a na m a ior ia dos
te xtos de psic ologia . Agr e ssã o é a c a pa c ida de de se de sf a ze r do
a dve r sá r io se m se se ntir inc om oda do por um e xc e sso de e sc r úpulos. A
a gr e ssã o é m e nos um de se j o de de r r ota r o opone nte que um de se j o de
ve nc e r. P or e xe m plo, qua ndo um a dvoga do te nta ga nha r um a c a usa
num tr ibuna l, se u de se j o nã o é pr e j udic a r o outr o la do e , sim , ga r a ntir
que e le e se u c lie nte c onsiga m a quilo que de se j a m .

Conf or m e a de f ine a psic ologia j unguia na , a som br a c onsiste e m


dive r sos níve is dif e r e nte s. De f inim os a som br a c om o a que le s
e le m e ntos, se ntim e ntos, e m oç õe s, ide ia s e c r e nç a s c om os qua is nã o
c onse guim os nos ide ntif ic a r ; que e stã o r e pr im idos de vido à e duc a ç ã o,
à c ultur a ou a o siste m a de va lor e s. Em e ssê nc ia , a som br a pode se r
individua l ou c ole tiva ; individua l qua ndo som os nós, pe ssoa lm e nte ,
que r e pr im im os nossos c onte údos psíquic os; c ole tiva , qua ndo toda
um a c ultur a ou subc ultur a e f e tua e ssa r e pr e ssã o. Ce r ta s c onc e pç õe s
de se xua lida de e instinto, por e xe m plo, pode m se r r e le ga da s à
som br a . Num a c e r ta f a m ília , a r a iva ta lve z se j a vista c om o a lgo tã o
c e nsur á ve l que qua ndo a s c r ia nç a s c r e sc e m nã o c onse gue m m ostr á - la
a be r ta m e nte ; sua r a iva só pode r á e xistir no dom ínio da som br a , Um
outr o e xe m plo é a c isã o e ntr e a tole r â nc ia of ic ia l a outr a s
na c iona lida de s ou r a ç a s e o r a c ism o que f lor e sc e se c r e ta m e nte c om o
pa r te da som br a c ole tiva .

Com o pode m os nota r, a som br a é um a que stã o c om ple xa , c om posta


de m uitos e le m e ntos dif e r e nte s. P or se r c om ple xa , e la te m c om o ba se
um â m a go a r que típic o, um pote nc ia l pa r a c om por ta m e nto c om o qua l
pr ova ve lm e nte na sc e m os e que pode r ia se r de signa do c om o o
e le m e nto hom ic ida ou suic ida — a quilo que c onté m a s se m e nte s da
de str uiç ã o. Um ponto a m pla m e nte de ba tido é : isso e xiste ou nã o no
se r hum a no? Os psic ólogos j unguia nos a f ir m a m que a na tur e za
hum a na inc lui um a r qué tipo que é e sse nc ia lm e nte de str utivo, o
instinto do Tha na tos f r e udia no, o instinto de de str uir e se r de str uído.
Tor na - se f á c il c onc luir que a som br a , c om se u â m a go de str utivo e se u
c om pone nte a gr e ssivo, é de im por tâ nc ia vita l pa r a o e nte ndim e nto da
psic opa tia — e spe c ia lm e nte qua ndo e nc a r a m os o psic opa ta c om o um
indivíduo que c om e te a tos c hoc a nte s e a gr e ssivos.

Com o de c la r e i a nte s, pode m os c onside r a r a a gr e ssã o c om o um


quantum, a lgo de que a lgum a s pe ssoa s possue m um a qua ntida de m a ior
de sde o te m po de sua pr im e ir a inf â nc ia . Todos c onhe c e m os pe ssoa s
a gr e ssiva s que c om pe nsa m a a usê nc ia de Er os por um c ódigo m or a l
a lta m e nte dif e r e nc ia do. Explic a ndo de m a ne ir a um ta nto sim plista , a
a gr e ssã o lhe s se r ve pa r a sa ír e m do e sta do de de se j a r o be m e
ingr e ssa r e m no e sta do de vive r e a f ir m a r o que é o be m . P or outr o
la do, o psic opa ta ( ou o psic opa ta - c om pe nsa do) usa a a gr e ssã o pa r a
c onc r e tiza r se us pr ópr ios obj e tivos e goísta s. Um psic opa ta -
c om pe nsa do dota do de um a gr a nde qua ntida de de a gr e ssã o dom ina os
c ole ga s de e sc ola , a f a m ília ou os c om pa nhe ir os de tr a ba lho c om sua
m or a lida de r igor osa e inf le xíve l. Ma s qua ndo a qua ntida de de
a gr e ssã o é pe que na , a histór ia é be m dif e r e nte . Ta nto a pe ssoa c om
a lgum a e xpe r iê nc ia de Er os qua nto o psic opa ta - c om pe nsa do tê m
dif ic ulda de pa r a se a f ir m a r e pa r a a lc a nç a r se us obj e tivos,
inde pe nde nte m e nte de qua is se j a m e ste s.

Me sm o a que le â m a go a r que típic o de som br a ( a quilo que c ha m a m os


e le m e ntos de str utivos a bsolutos de hom ic ídio e suic ídio) nã o te m
r e a lm e nte m uito que ve r c om o pr oble m a r e a l da psic opa tia , a que le
â m a go que todos nós possuím os e c om o qua l nos pr e oc upa m os.
Choc a - nos qua ndo o ve m os e m a ç ã o e m nós m e sm os e nos outr os —
e ssa m a ne ir a suic ida de dir igir que pode m os obse r va r na s e str a da s de
qua lque r pa ís, de m odo m uito e vide nte e m j ove ns m otoc ic lista s a
f le r ta r c om a m or te , te nta ndo a "ine xor á ve l c e if a de ir a ". Em bor a os
e le m e ntos hom ic ida s ge r a lm e nte se j a m m a is pr of undos que os
suic ida s, nós os obse r va m os na s oc a siõe s e m que um m otor ista pa ssa
de r a spã o por um a pe ssoa na f a ixa de pe de str e s ou a va nç a sobr e a s
c r ia nç a s que de sc e m de um ônibus e sc ola r. De m odo ge r a l, é pr e c iso
um a gue r r a pa r a f a ze r surgir o "hom ic ida " e m nós, e e ntã o é
e spa ntoso c om o a que le que c ha m a m os de "hom e m nor m a l", ne m
psic opa ta ne m psic opa ta - c om pe nsa do, c onse gue m a ta r se us
se m e lha nte s e , a o m e sm o te m po, se ntir r e pugnâ nc ia e a ve r sã o por si
m e sm o. Me sm o o pr a ze r substituto que de r iva m os de um r om a nc e
polic ia l ou da br uta lida de de a lguns f ilm e s, pa r e c e nos r e le m br a r
nossa c a r a c te r ístic a s hom ic ida s.

Em bor a os a spe c tos hom ic ida s e suic ida s possa m nos pa r e c e r


m iste r iosos ou a té m e sm o inum a nos, e le s sã o c r uc ia is pa r a nossa s
vida s por que e stã o liga dos a o pote nc ia l c r ia tivo da psique . Em se u
l i v r o M o s e s [ Moisé s] , Le opold Szondi de m onstr a c om o a s pe ssoa s
r e a lm e nte c r ia tiva s ta m bé m possue m um la do de str utivo pr onunc ia do.
Szondi intr oduz se u a rgum e nto c om o c a so de Moisé s, c uj a c ase
history c om e ç a c om o a ssa ssina to de um supe r visor e gípc io e te r m ina
c om e le se tor na ndo o pa i de se u povo, se u líde r e o por ta dor da sua
le i. Som os te nta dos a c onc luir que um a f or te som br a a r que típic a ,
a quilo que c ha m a m os os e le m e ntos hom ic ida s e suic ida s, r e sulta num
a lto gr a u de c r ia tivida de qua ndo é c om bina da c om um se nso,
igua lm e nte pode r oso, de Er os. Esse m e sm o c onf lito, o c onf lito e ntr e o
a m or — pe los nossos se m e lha nte s, pe lo nosso a m bie nte , pe la nossa
psique — e um a pa ixã o hom ic ida pe la de str uiç ã o, im pulsiona a pe ssoa
pa r a a s m a rge ns de sua m oldur a de r e f e r ê nc ia e xiste nc ia l. O
hom ic ida te r ia pr a ze r e m de str uir. Er os e m r e nova r ; da c om bina ç ã o
de sse s dois e le m e ntos, de str uiç ã o e r e nova ç ã o, surgir ia a lgo c r ia tivo,
surgir ia o Cr ia tivo.

Em bor a um a som br a a r que típic a pr onunc ia da nã o se j a c a r a c te r ístic a


ne m de te r m ina nte do psic opa ta , o m e sm o nã o oc or r e c om um a
som br a se m Er os, que pode c a usa r da nos c onside r á ve is. Assim c om o
c e r tos psic opa ta s tê m pr a ze r e m a ba ndona r- se a qua lque r f or m a de
se xua lida de , a que le s que sã o ine quivoc a m e nte psic opá tic os à s ve ze s
nã o he sita m e m vive r o â m a go da som br a , o e le m e nto
hom ic ida /suic ida . Os r e sulta dos e m ge r a l sã o c hoc a nte s e
m onstr uosos: a tos que , na ve r da de , oc or r e m c om m uito m e nos
f r e quê nc ia do que nos f a ze m c r e r m a s que sã o a ponta dos c om o típic os
dos psic opa ta s. Em pr im e ir o luga r, e xiste m pouquíssim os psic opa ta s
"pur os" e é r a r o que e le s te nha m som br a s pa r tic ula r m e nte f or te s, ou
som br a s a r que típic a s. Alé m disso, o de se j o de se a da pta r e de tr iunf a r
no m undo, m e sm o qua ndo se tr a ta de um m undo e str a nho, ge r a lm e nte
m a nté m o psic opa ta e m xe que qua nto a vive r a pr ópr ia som br a .

Já que os psic opa ta s of e r e c e m um c a m po pa r tic ula r m e nte f é r til pa r a


o c ultivo da s nossa s pr oj e ç õe s da som br a , qua ndo nã o nos
c om pa de c e m os de le s nós os odia m os por que ve m os ne le s o nosso
pr ópr io pote nc ia l de str utivo. Na ve r da de , tr a nsf or m a m os e m
de m ônios a que le s psic opa ta s que a tr a ír a m a a te nç ã o pa r a si m e sm os
a tr a vé s de a lgum a a tivida de c r im inosa ou pse udoc r im inosa .
De m oniza m os a que le s que c om e te r a m a ssa ssina to e nos e spa nta m os
a o de sc obr ir c om o e le s pa r e c e m inof e nsivos qua ndo r e a lm e nte os
ve m os. P a r a nós, os inf a m e s tr a pa c e ir os e c a lote ir os pa r e c e m se r
um a e nc a r na ç ã o do dia bo. Gosta m os de le r sobr e a s pe ssoa s que
a lc a nç a m notor ie da de pe la sua a bor da ge m do tipo "tudo ou na da " da
vida , que nã o se de tê m se que r dia nte do hom ic ídio. Nós a s ve m os
c om o instr um e ntos do m a l e da de str uiç ã o; m a s e la s nã o pa ssa m de
se r e s hum a nos invá lidos a os qua is f a lta a lgo e sse nc ia lm e nte hum a no.

Contr a r ia m e nte à c r e nç a popula r, e xiste m c e r ta s va nta ge ns e m se r


um psic opa ta ou psic opa ta - c om pe nsa do. Muitos de le s e nc ontr a m
r e la tiva f a c ilida de e m se a da pta r e m à soc ie da de , de spoj a dos que
e stã o de e sc r úpulos m or a is ou ne ur ótic os. Ele s substitue m a f a lta de
a m or ou de um ve r da de ir o r e la c iona m e nto pe lo a m or a o pode r, a lgo
que pode m a lc a nç a r se m e xc e ssiva dif ic ulda de de vido à a usê nc ia de
r e str iç õe s m or a is ou r e la c iona da s c om Er os. Me sm o um psic opa ta -
c om pe nsa do pode e nc ontr a r e spa ç o, de ntr o de sua r ígida m or a lida de ,
pa r a j ustif ic a r a ir r e str ita busc a de pode r. Nã o nos c a usa m uita
sur pr e sa que os psic opa ta s oc upe m ta nta s da s a lta s posiç õe s na
soc ie da de ; a ssom br oso m e sm o é que nã o e xista m m a is de le s e m ta is
posiç õe s. De ixe - m e a pr e se nta r e ssa ide ia de um m odo lige ir a m e nte
dif e r e nte . Em ge r a l um dos pr inc ipa is pr oble m a s de qua lque r
soc ie da de , de qua lque r a gr e m ia ç ã o polític a ou gr a nde orga niza ç ã o, é
im pe dir que psic opa ta s ine sc r upulosos e soc ia lm e nte a da pta dos vã o
pouc o a pouc o tom a ndo c onta do le m e . Existe m m uitos pa íse s nos
qua is e sse pr oble m a e stá longe de te r sido r e solvido. Existe m c e r tos
pa íse s c uj a orga niza ç ã o polític a e nc or a j a os psic opa ta s a a lc a nç a r
posiç õe s de pode r e a té m e sm o pa íse s onde ape nas psic opa ta s pode m
a lc a nç a r ta is posiç õe s. Nã o é dif íc il im a gina r o e spír ito que gove r na
e ssa s na ç õe s, A Ale m a nha na zista é um bom e xe m plo disso. Toda s a s
f or m a s dita tor ia is de gove r no — se j a m r e gim e s de e sque r da ou de
dir e ita — c e r ta m e nte sã o, a té c e r to ponto, dom ina da s por psic opa ta s.
É pr ová ve l que Sta lin te nha sido um psic opa ta c om um a som br a
pr onunc ia da e um de c idido im pulso de pode r. Tr otsky , de iníc io se u
a m igo, e r a m a is um ide a lista . Ma s obse r ve m os que Sta lin m or r e u de
c a usa s na tur a is e m ida de be m a va nç a da e nqua nto Tr otsky f oi
a ssa ssina do. P a r e c e que há a lgum a ve r da de na e xpr e ssã o: "Os bons
m or r e m j ove ns."

Nossa te ndê nc ia é pe rgunta r c om o pode r e m os, num pa ís de m oc r á tic o,


im pe dir que os psic opa ta s a br a m c a m inho a té o topo. Na Suíç a , por
e xe m plo, o pode r disponíve l na s m a is a lta s posiç õe s a dm inistr a tiva s é
tã o r e duzido que nã o c he ga a a tr a ir os psic opa ta s. P a r e c e - m e m a is
im por ta nte que o povo se j a c a pa z de ve r a tr a vé s de um psic opa ta e
ta m bé m de ve r a tr a vé s de se u pr ópr io la do psic opá tic o. Na m a ior ia
da s de m oc r a c ia s, e ssa c a pa c ida de de se nvolve u- se o suf ic ie nte pa r a
que um psic opa ta pe r igoso ge r a lm e nte se j a de te c ta do qua ndo surge
e m c e na .

Estou c onve nc ido de que qua lque r de m oc r a c ia c uj os c ida dã os se j a m


inc a pa ze s de de te c ta r um psic opa ta se r á de str uída pe los de m a gogos
f a m intos de pode r. Na Suíç a , a r e sistê nc ia a os "gr a nde s hom e ns" e a
pr e f e r ê nc ia por f igur a s polític a s m e díoc r e s pa r e c e r e sulta r de um
de se j o instintivo de im pe dir que psic opa ta s c he gue m a o pode r,
Em bor a e xista m c om c e r te za os "gr a nde s hom e ns", ta lve z m uitos
de le s na da m a is se j a m que psic opa ta s nã o- r e c onhe c idos. P e nsa m os
e m pe r sona ge ns c om o Ale xa ndr e , o Gr a nde , c om o Ge ngis Kha n,
c om o Na pole ã o, c om o o Ka ise r Guilhe r m e I I e m uitos outr os líde r e s
a m a dos ou odia dos do pa ssa do e do pr e se nte . Esse s "gr a nde s"
c r im inosos — e pr e c isa m os inc luir Hitle r e Sta lin e ntr e e le s —
de str uír a m a vida de m ilhõe s de pe ssoa s. "Er otic a m e nte " a tr of ia dos,
e le s c onse guir a m a lc a nç a r o r e c onhe c im e nto e o pode r sobr e
soc ie da de s da s qua is se se ntia m e xc luídos; um pode r que lhe s e r a
ne c e ssá r io pa r a m a nte r a ilusã o de que r e a lm e nte pe r te nc ia m a e la s.
Af or tuna do o pa ís que c or ta a s a sa s de sse s "gr a nde s" hom e ns ( e
m ulhe r e s) .

48. Quem são os criminosos?

JERRY FJERKENSTAD
Ge ntalha, lix o, imundíc ie . Errados, de sv iados: é pre c iso e ndire itá- los.
Patife s, bade rne iros, ladrõe s, v e lhac os. Corruptos, podre s, fe dore ntos.
Ge nte se m re spe ito pe la le i, pe lo c aminho re to e e stre ito, pe lo c aminho
c e rto, o únic o c aminho. Ge nte que não te me De us ne m o home m.
Animais, pe rv e rtidos, c ãe s, me stiç os, c hac ais. Errados, c onfusos,
louc os, insanos, psic opatas. Almas de sv iadas, almas pe rdidas, ingratos.
Carnic e iros, e spanc adore s, assassinos a sangue - frio. Frios c omo ge lo
— e le s roubariam a própria mãe .
Ac r e dita m os que os c r im inosos sã o tudo a quilo que n ó s nã o som os
ne m que r e m os se r, tudo a quilo que r e j e ita m os e te nta m os e lim ina r da
soc ie da de . "Com o a vida se r ia m a r a vilhosa se pudé sse m os nos livr a r
de todos e le s pa r a todo o se m pr e . Essa ge nte que nã o va le na da , se m
e spe r a nç a de m e lhor a r, que só e spe r a a e xe c uç ã o: va m os tr a nc a f iá -
los e j oga r f or a a c ha ve . Ele s e stã o na e str a da e r r a da ." Ma s a e str a da
e r r a da é a Via Ne gativ a, o c a m inho ne ga tivo, a r ota a pa r e nte m e nte
e r r a da — te r m os a lquím ic os pa r a a j or na da da a lm a .

A alquimia e m pouc as palavr as

A a lquim ia é ba sta nte sim ple s. A pe ssoa c om e ç a c om a massa c onfusa


— a substâ nc ia bá sic a , os ingr e die nte s e m e sta do br uto, o c hum bo.
Coloc a - os e m um Vas He rmé tic as, um r e c ipie nte he r m e tic a m e nte
f e c ha do. Ao a plic a r c a lor a e sse r e c ipie nte , um a sé r ie de ope r a ç õe s
se pr oc e ssa sobr e a substâ nc ia , a f im de m uda r a sua na tur e za e
tr a nsf or m á - la em "our o". Essa s ope r a ç õe s pode m inc luir
c onde nsa ç ã o, de stila ç ã o, re pe tido, mortific atio e "o c a sa m e nto do r e i e
da r a inha ". Esse é um pr oc e sso ba sta nte m e ta f ór ic o que nã o é
c onside r a do e soté r ic o por Jung e Hillm a n — pe lo c ontr á r io, é um
pr oc e sso que r e ve la a ve r da de ir a na tur e za da substâ nc ia or igina l. A
massa c onfusa é igua la da à pe dr a f ilosof a l im pe r f e ita da tr a diç ã o
bíblic a . O our o, ou c r ia nç a dour a da , c r ia do no f im do pr oc e sso é
igua la do a o na sc im e nto da a lm a .

Diz- se que todo o pr oc e sso é guia do por He r m e s/Me r c úr io, que e stá
pr e se nte do c om e ç o a o f im , A a lquim ia é um a Ar te He r m é tic a e
He r m e s é o se u de us. He r m e s ta m bé m é o de us dos la dr õe s, dos
c r im inosos e de outr os ha bita nte s do subm undo.

Os c r im inosos sã o a massa c onfusa, um a gr e ga do de c onf usã o. Ele s


sã o, na m e nte da nossa c ultur a , a pe dr a f ilosof a l im pe r f e ita , se m
va lor : na da sólido ou se gur o pode se r c onstr uído sobr e e le s. Rilke
de sc r e ve - os c om o "os ne c e ssita dos", a s pe ssoa s de f e ituosa s, a que la s
que ningué m j a m a is pe r c e be r ia se e la s "nã o c a nta sse m ", nã o
pa ssa sse m a o a to. Rilke diz que "é a qui que se ouve o bom c a nto", e
nã o no oposto, os "c astrati dos c or os de bons m e ninos" que c a nsa m a
pa c iê nc ia a té do pr ópr io De us. É a qui onde tudo c om e ç a . A gr a ç a
divina só pode de sc e r sobr e a quilo que é im pe r f e ito e de se j oso de
r e ivindic a r sua pr ópr ia de stituiç ã o, f e a lda de e inf e r ior ida de .

Dista nc ia m o- nos disso tudo, e sc olhe ndo o c r im inoso c om um pa r a


inc or por a r todos e sse s tr a ç os f e ios e inde se j a dos, e nqua nto
pe r m a ne c e m os "r e tos", bons e r e spe ita dor e s da le i. I sso oc or r e por que
som os, por na tur e za , pe ssoa s boa s? Ou se r á por que te m os m e do de se r
"pe gos"?
O c r im inoso de ba te - se no de sc onhe c ido, f or a do m undo da le i e da
or de m , a lé m da f r onte ir a , no m undo de He r m e s e do inc onsc ie nte . O
c r im inoso é r ude , viole nto e indif e r e nte ... m a s c r uza a f r onte ir a . É
um a f r onte ir a que todos nós pr e c isa m os c r uza r, de a lgum m odo.
Se ba stia n Moor e , te ólogo a lquim ista , se e xpr e ssa da se guinte m a ne ir a :
"Este é o nosso m isté r io últim o: a té m e sm o o nosso m a l, a nossa
te ndê nc ia c ontr a a tota lida de , e xpõe - nos a o a m or de De us. E nos
e xpõe a o a m or de De us de um a m a ne ir a e a um a pr of undida de à s
qua is ne m m e sm o o nosso de se j o de a lc a nç a r a tota lida de c onse guir ia
nos e xpor."

Nossos c r im inosos sã o a que le s que nã o c onse gue m ou nã o que r e m


c r ia r o our o da m a ne ir a que nós de c idim os que é a c or r e ta . Ele s sã o
a que le s que nos ve nde m c oisa s que f ingim os nã o que r e r — c om o
c oc a ína e se xo, c om o a pa r e lhos de som , bic ic le ta s e c a r r os r ouba dos.
Sã o a que le s que se de se spe r a m dia nte de se u f r a c a sso e m f a ze r se u
c a m inho de a c or do c om o "pa dr ã o our o". Ele s f a ze m sua vida
e xplor a ndo os dom ínios oc ultos da na tur e za hum a na que ne ga m os
a tr a vé s da c isã o e da hipoc r isia . Elim ina r todos os c r im inosos nã o
e lim ina r ia e sse s víc ios — os víc ios e xpr e ssa m a lgo e sse nc ia l sobr e a
na tur e za hum a na , a lgo que pr e c isa se r a lquim ic a m e nte tr a ba lha do,
c a pta do e inc or por a do; nã o a pe na s a pr isiona do, a ba ndona do e usa do
c om o bode e xpia tór io.

O sagr ado no pr of ano

Jung a c r e dita va que De us, o De us vivo, só pode r ia se r e nc ontr a do a li


onde m e nos que r e m os olha r, na que le loc a l que m a is te m os r e sistê nc ia
pa r a e xplor a r. Esse De us vivo e stá e ntr e m e a do c om a nossa pr ópr ia
e sc ur idã o e som br a , e stá e ntr e la ç a do c om a s nossa f e r ida s e
c om ple xos, e stá liga do à s nossa s pa tologia s. P or outr o la do, o De us da
Cr e nç a — a que le De us r e m oto, r e tir a do da c r ia ç ã o e da vida
c otidia na — libe r ta - nos da nossa im pe r f e iç ã o, pur if ic a - nos de toda a
c onta m ina ç ã o te r r e na e r e solve os a spe c tos m a is dif íc e is do dile m a
hum a no.

A a lquim ia é um pr oc e sso pa r a e xtr a ir o De us vivo dos a spe c tos m a is


ve na is, m a is c or r uptos da vida . Ma s e sse pr oc e sso nã o pode se r
inic ia do a té que a ve na lida de se j a r e c onhe c ida . Nã o é que pr e c ise m os
c r ia r ve na lida de . Ela j á e xiste — de m odo e xplíc ito e c om a nossa
c um plic ida de . É m a is um a que stã o de r e c onhe c ê - la , de a dm itir sua
e xistê nc ia e m nós m e sm os: na s nossa s pe que na s a ç õe s, f a nta sia s,
ne góc ios se c r e tos, nos nossos m om e ntos oc ultos.

Na ve r da de , e sta m os f a la ndo sobr e a dif e r e nç a e ntr e o e spír ito e a


a lm a . O c a m inho do e spír ito é r e to e a sc e nde nte . O c a m inho da a lm a
é sinuoso, de sc e nde nte e pe r tur ba dor. A e str a da da a lm a é ta m bé m o
c a m inho da inic ia ç ã o à nossa na tur e za hum a na . Nosso pr opósito nã o é
se r m os "bons", ingê nuos e inoc e nte s — m a s sim se r m os r e a is e
c onhe c e r m os a nossa e sc ur idã o, a v ia ne gativ a. I nic ia ç ã o signif ic a
c onhe c e r a quilo de que som os c a pa ze s, nossos lim ite s, nossa s f om e s,
nossos de se j os. A a quisiç ã o de sse c onhe c im e nto im plic a , c om
f r e quê nc ia , um pr oc e sso dolor oso. Ma s som e nte se r e m os c a pa ze s de
r e sponsa bilida de e e sc olha inte lige nte qua ndo e stive r m os c onsc ie nte s
de sse s f a tor e s.

Conside r e m os a histór ia do P r ínc ipe e do Dr a gã o. Um c a sa l j á idoso,


que de se j a um f ilho, c onsulta um a pa r te ir a . Ela os instr ui a volta r
pa r a c a sa e , a nte s de dor m ir, la nç a r a á gua da la va ge m dos pr a tos
de ba ixo da c a m a . Na m a nhã se guinte surgir ia um r a m o c om dois
botõe s, um pr e to e um br a nc o. Ele s de ve r ia m c olhe r a pe na s o botã o
br a nc o... m a s c olhe m a m bos.

Os m e se s pa ssa m e um dia a pa r te ir a é c ha m a da pa r a a j uda r o pa r to


de ssa m ulhe r. A pr im e ir a c oisa que ve m a o m undo é um la ga r to
visc oso; a pa r te ir a , c om a bê nç ã o da m ã e se m ic onsc ie nte , a tir a - o pe la
j a ne la pa r a que se vir e por si m e sm o, e sque c ido e a ba ndona do.
I nsta nte s de pois, na sc e um m e nino bonito e sa udá ve l. Ele c r e sc e
pe r f e ito, tudo o que e le f a z dá c e r to e todos o a m a m . Tor na - se tã o
a dm ir a do que é e sc olhido pa r a c a sa r c om a f ilha do Re i.

Enqua nto isso, o Dr a gã o le vou um a vida f ur tiva , e spiona ndo se u ir m ã o


e se us pa is, r ouba ndo pa r a c om e r e se a que c e r e a nsia ndo por tudo
que nã o possuía . O Dr a gã o é a m a rgo, r a ivoso e vinga tivo.

No dia do c a sa m e nto, o P r ínc ipe pa r te pa r a o c a ste lo. De r e pe nte , sua


c a r r ua ge m é de tida pe lo e nor m e Dr a gã o que bloque ia a e str a da . O
Dr a gã o de c la r a que é o ir m ã o do P r ínc ipe e e xige que o P r ínc ipe
e nc ontr e - lhe um a noiva , c a so c ontr á r io nunc a se c a sa r á c om a f ilha
do Re i. Entã o c om e ç a o dif íc il pr oc e sso de e nc ontr a r um a m ulhe r
disposta a vive r c om o Dr a gã o num a m bie nte e spe c ia l. De pois de
m uitos e m uitos a nos, e la é e nc ontr a da .

O ponto de m uta ç ã o de ssa histór ia é o m om e nto e m que o Dr a gã o


de c la r a sua ide ntida de , sa i da c la nde stinida de e e xige um a noiva que
se j a c a pa z de "a m á - lo" c om o e le é . O Dr a gã o nã o que r m a is vive r
c om o um c r im inoso, um pá r ia . Ma s e le nã o pr opõe m uda r sua
na tur e za de Dr a gã o. P e lo c ontr á r io, e le pr ópr io é a prima maté ria que
se c oloc a num a m bie nte e spe c ia l — um Vas He rmé tic as — pa r a ve r se
oc or r e a lgum a a lquim ia , pa r a ve r se surge a a lm a . Som e nte a tr a vé s
da r e ve la ç ã o de si m e sm o e da e xigê nc ia da quilo que que r ia c que o
Dr a gã o pode r ia se r a m a do e oc upa r um luga r honr oso no m undo. E é
isso que nos r e c usa m os a f a ze r ; ta nto o c r im inoso qua nto nós ( na
nossa qua lida de de busc a dor e s de bode s e xpia tór ios) nos r e c usa m os a
nos r e ve la r a nós m e sm os, a sa ir dos nossos e sc onde r ij os e
r e c onhe c e r a "e str a nha se nsa ç ã o" ( o "de se j o insa no") que nos dom ina .
Com o disse Goe the , e nqua nto "nã o e xpe r im e nta r m os e sse pr oc e sso",
e nqua nto nã o nos r e ve la r m os e sa ir m os do e sc onde r ij o, se r e m os
"a pe na s um hóspe de pe r tur ba do sobr e a te r r a e sc ur a ".

Te m os m e do de se r pe gos, m e do de se r que im a dos ( pe lo óle o) , m e do


do nosso se lf - Dr a gã o a sa ir do e sc onde r ij o, m e do de r e ivindic a r tudo
a quilo de que ne c e ssita o nosso la do m a is f e io. P or isso nós, na
m a ior ia , f ingim os se r tota lm e nte bons. Ma s "se r bom " nã o ba sta .

Qua se todos nós a c r e dita m os e m tr a nsf or m a ç ã o, m or te e


r e na sc im e nto; a c r e dita m os na e m ulsã o de He r m e s/Me r c úr io, m a s nã o
que r e m os nos subm e te r à m or te . Que r e m os nos tr a nsf or m a r se m se r
tr a nsf or m a dos — que r e m os se r r e m ode la dos pa r a um "ne w look " m a s
se m a a gita ç ã o ne m a de sc om pe nsa ç ã o distônic a do e go que um a
tr a nsf or m a ç ã o c om ple ta a c a r r e ta .

A psic ologia do de se nvolvim e nto, e m e spe c ia l a que la de sc r ita por


Robe r t Ke ga n, e xpõe os e stá gios a tr a vé s dos qua is pr e c isa m os e voluir
pa r a que nos se j a possíve l a m a dur e c e r c om o se r e s hum a nos. De
m odo ge r a l, pe r m a ne c e m os f ixa dos nos e stá gios inic ia is por que nunc a
f om os tr e ina dos a r e a liza r os sa c r if íc ios ne c e ssá r ios pa r a a sé r ie de
m or te s e r e na sc im e ntos que c om põe m o pr oc e sso a lquím ic o
r e pr e se nta do pe la psic ologia do de se nvolvim e nto. O r e sulta do é que
nunc a a pr e nde m os a s liç õe s de c a da e stá gio ou ope r a ç ã o.

Enc ar c e r ame nt o: c omo pe ne t r ar no v as he rme tic us

Enc a r c e r a m e nto, a pr isiona m e nto, pe na de m or te , se nte nç a s longa s —


toda s e ssa s e xpr e ssõe s sã o, na ve r da de , ba sta nte a lquím ic a s. O v as
he rme tic us é o r e c ipie nte no qua l é c oloc a da a prima maté ria, a massa
c onfusa. Ele pr e c isa se r m a ntido he r m e tic a m e nte f e c ha do a té que o
pr oc e sso se c om ple te . Fa z- nos le m br a r da c r im inologia : e nc e r r a m os
he r m e tic a m e nte o c r im inoso na pr isã o a té que ( c onf or m e e spe r a m os)
e le pa sse por um a tr a nsf or m a ç ã o. P ode - se dize r que puniç ã o e te r a pia
r e pr e se nta m vá r ia s ope r a ç õe s a lquím ic a s, ta is c om o a de stila ç ã o e a
putr e f a ç ã o.

Ótim o, va m os f a ze r os c r im inosos pa ssa r por um pr oc e sso a lquím ic o


que m uda r á sua na tur e za ; va m os m a ntê - los e nc e r r a dos a té que o
pr oc e sso se c om ple te ! Ma s... nã o r e se r ve m os e sse pr oc e sso dif íc il e
dolor oso a pe na s pa r a os c r im inosos. Todos nós pr e c isa m os de le . Na
ve r da de , m uitos de nós, nã o- c r im inosos, pr e c isa m os de le m a is do que
os c r im inosos. Ma s, um a ve z que nunc a som os pe gos, nosso pr oc e sso
j a m a is se inic ia . Ah, se a o m e nos a lgo nos pe ga sse ! De us sa be que
n ã o nos "e ntre gare mos à justiç a", nã o nos e ntr e ga r e m os a o pr oc e sso
he r m é tic o que ne glige nc ia m os. P a r a se r m os pe gos, pr e c isa m os que
a lgué m se por te de m odo ba ixo c onosc o. Se nã o som os pe gos, nã o
se r e m os c oloc a dos no v as he rme tic us — o e nc a r c e r a m e nto sa gr a do —
e o pr oc e sso a lquím ic o nã o pode r á te r iníc io.

Com o na histór ia do P r ínc ipe e do Dr a gã o ou de Er os e P sique , na da


a c onte c e r á a té que o Dr a gã o, o m onstr o no le ito e nsom br e c ido, se j a
"pe go", sur j a à s c la r a s, se j a visto e c onhe c ido; a í c om e ç a r á o tr a ba lho
ve r da de ir o. Até e sse insta nte , tudo é inc onsc ie nte , de sc onhe c ido,
c e go.

Em r e la ç ã o à c r im ina lida de , nós — os nor m a is — som os v oy e urs,


f a sc ina dos m a s dista nc ia dos. P ouc os de ntr e nós pode m os c onf e ssa r,
c om o Mic k Ja gge r na c a nç ã o Sy mpathy for the De v il [ Com pa ixã o pe lo
Dia bo] , que ina dve r tida m e nte pa r tic ipa m os da s f or ç a s e sc ur a s.
Se ntim os r e lutâ nc ia e m pe ne tr a r na r e giã o onde c om e ç a a ve r da de ir a
na tur e za hum a na . P r e f e r im os um De us a que m possa m os idola tr a r e
a dor a r, e m ve z de um c oc r ia dor que e spe r a que f a ç a m os a nossa
pa r te do tr a ba lho. Nã o que r e m os c e le br a r "o sa c r a m e nto do
a ssa ssina to" e r e c onhe c e r que o nosso c or a ç ã o da s tr e va s, a nossa
te ndê nc ia pa r a o m a l e pa r a nos a f a sta r m os da tota lida de é tã o
e sse nc ia l pa r a a lc a nç a r a gr a ç a , a a lm a e "De us" qua nto nossa
c r e nç a s na tota lida de , na bonda de e na pe r f e iç ã o e nossos e sf or ç os
pa r a a lc a nç á - la s.

O c r im e é c onside r a do ina tur a l, inum a no, um a to c ontr a a na tur e za e


a c ultur a . Com o, e ntã o, usa m os o c r im e c om o um a m e tá f or a pa r a
a lgo ne c e ssá r io e e sse nc ia l? Ar r om ba r, r ouba r, viole nta r o inoc e nte ,
viola r o sa gr a do, e spa nc a r e m utila r, hostiliza r e intim ida r : tudo isso
a sse m e lha - se à quilo que os sonhos te nta m f a ze r a o nosso e go na
c onsc iê nc ia c otidia na . Os sonhos te nta m nos intr oduzir à nossa massa
c o n fu sa , te nta m "r e la tiviza r " o e go. Os sonhos sã o, j unto c om a s
doe nç a s, o pr inc ipa l c a m inho pa r a que a nossa a lm a te nte f a la r
c onosc o. Nossa c ultur a r e c usa qua lque r e nvolvim e nto c om a opus
a lquím ic a dos sonhos e , a ssim , a um e nta a pr oba bilida de do c r im e .
Nossa s de f e sa s c a da ve z m a is c e r r a da s, nossos "or ç a m e ntos pa r a
de f e sa " pe ssoa is, nossa pr e oc upa ç ã o c om os siste m a s de se gur a nç a e
pr ote ç ã o; tudo isso só a um e nta a pr oba bilida de do c r im e . Toda s e ssa s
m e dida s a m plia m a br e c ha , a um e nta m a c isã o e a sse gur a m a
ine vita bilida de da inva sã o. Qua ndo pe r m itim os que os sonhos e ntr e m
e nos a f e te m — e m ve z de sim ple sm e nte inte r pr e tá - los c onf or m e
pa dr õe s a de qua dos à s nossa s noç õe s pr e e xiste nte s —, e le s nos
of e r e c e m o c a m inho pa r a e ntr a r m os no nosso la do e sc ur o e c r im inoso
e tr a nsf or m á - lo e m "our o".

O c r im inoso se nte nc ia do te m um a r ota dif e r e nte . P a r te da sua "c ur a "


( outr a ope r a ç ã o a lquím ic a — c ur tir e c ur a r o c our o é ta m bé m um a
m e tá f or a pa r a a puniç ã o) c onsiste e m a pr e nde r o pa pe l da vítim a ,
c oloc a r- se no se u luga r e tom a r c onsc iê nc ia do c a so todo, nã o
sim ple sm e nte de se m pe nha r ape nas o se u pa pe l, o pa pe l do c r im inoso.
I sso é o que pa r e c e ina tur a l a o c r im inoso, sua opus c ontra naturum.
Ma s isso é o que f e c ha a br e c ha pa r a e le , o que se c inde ne le .

Aume nt ando o c alor

A c ha m a e se u c a lor de se m pe nha m um pa pe l e sse nc ia l e m dive r sa s


ope r a ç õe s a lquím ic a s, ta is c om o a de stila ç ã o e a c alc inatio
12
( se c a ge m ) . A políc ia ta m bé m é c ha m a da "the he at" [ o c a lor ] . Um
c r im inoso que a inda nã o f oi "pe go" e stá se m pr e pr e oc upa do e m e vita r
"o c a lor ". Um c r im inoso que f oi loc a liza do pe la políc ia que r e sc a pa r
ou e nga na r "o c a lor ".

Esta r "no c a lor " — ou se j a , no c io — ta m bé m é um e sta do ve e m e nte


e im pulsivo no qua l a pe ssoa pr e c isa possuir a c oisa de se j a da , e de
im e dia to; qua ndo nã o c onse gue , e la "e nlouque c e ". Um a pe ssoa "no
c a lor " é ir r a c iona l, im pr e visíve l e obstina da . Esta r "no c a lor " ta m bé m
im plic a e xc ita ç ã o, e r e tilida de e inf le xibilida de a té que o de se j o se j a
sa tisf e ito. Se o c r im inoso e stá "no c a lor ", qua l é sua m otiva ç ã o, o que
o im pulsiona ? O c r im inoso e stá disposto a se sa c r if ic a r por a lgum a
c oisa ; o que é e sse a lgo? Qua l é e ssa j oia va liosa que e le pa r e c e
c onhe c e r, m a s pe la qua l ne nhum de nós sa c r if ic a r ia c oisa a lgum a ?
Se r á o pode r, o c ontr ole , a r ique za , c oisa s be la s, m ulhe r e s
c ha m a tiva s, dr oga s? Gr e gor y Ba te son suge r e que o c r im inoso busc a
a lgo e sse nc ia l e m se u c r im e . O que é e sse a lgo? O que o c r im inoso
"im a gina " que va i c onse guir ? Com o que e le que r se a c a sa la r, c om o
que e le que r se e nvolve r, o que e le que r possuir ? Se j a lá o que f or,
r e ze pa r a nã o se e nc ontr a r e ntr e e le e o obj e to do se u de se j o!

Put r e f aç ão, r e pe t iç ão e out r as ope r aç õe s


R e pe titio: se c onside r a r m os a Te r r a c om o um v as he rme tic us, a s
c oisa s que usa m os um a ve z e j oga m os f or a nã o c ontê m ne nhum se nso
d e re p e titio . Todo nosso lixo, nossos r e f ugos tom a m - se a massa
c o n f u s a r e j e ita da ; pr e c isa m os de la pa r a a pr e nde r a honr a r e a
tr a nsf or m a r, nã o pa r a c ontinua r a a c um ula r lixo. De ve m os ta m bé m
que stiona r nossa e te r na ne c e ssida de de te r o "ne w look ", de nunc a
r e pe tir.

De stila ç ã o: é a r e duç ã o da quilo que som os à e ssê nc ia , f e r ve ndo a té


e va por a r todo o de sne c e ssá r io. A m a ior ia de nós te nde a a c um ula r
obj e tos, ide a is e pr oj e tos se m nunc a r e a lizá - los e m uito m e nos
orga nizá - los, se m nunc a de c idir a quilo que é e sse nc ia l e , e ntã o, se gui-
lo.

Putre fac tio: De sba sta m os a quilo que e stá a podr e c ido a r e spe ito de nós
m e sm os, de sc obr indo que os nossos e xc r e m e ntos f e de m . P a r a o
c r im inoso se nte nc ia do, e sse e stá gio signif ic a a lc a nç a r o ponto onde
e le pe r c e be hone sta m e nte c om o sua s a ç õe s pr e j udic a m os outr os. A
m a ior ia dos c r im inosos é indif e r e nte a isso, do m e sm o m odo que
m uitos e m pr e sá r ios, polític os e líde r e s r e ligiosos. Nossa s de f e sa s
m íope s pr e c isa m se de c om por pa r a que possa m os se ntir e m pa tia pe lo
m undo a lé m do nosso pr ópr io e go e sua s ne c e ssida de s im pe r a tiva s.
P a r a o nã o- c r im inoso, a p u tre fa c tio — pe r c e be r o nosso pr ópr io
c he ir o — pode signif ic a r o a ba ndono da via ge m pe r pé tua e m busc a de
de se nvolvim e nto e pe r f e iç ã o.

Conf ina m e nto: o pr oc e sso a lquím ic o é a r r uina do e pr e c isa se r


r e inic ia do se qua lque r c oisa va za r do v as he rme tic us. Em bor a
ba se a da s ne sse s a ntigos pr inc ípios quím ic os, a c iê nc ia , a indústr ia e a
te c nologia m ode r na s tê m um a im e nsa qua ntida de de va za m e ntos —
lixo tóxic o, e m issã o de ga se s r a dioa tivos por usina s nuc le a r e s,
poluiç ã o da s c or r e nte s de á gua subte r r â ne a s. O va za m e nto signif ic a
um a f a lta de inte gr ida de e um pr oc e sso se m a lm a inc a pa z de qua lque r
tr a nsf or m a ç ã o útil.

A impor t ânc ia do sal


O sa l e r a um m a te r ia l ne c e ssá r io a os a lquim ista s. O sa l e stá
f or te m e nte a ssoc ia do à m e m ór ia , pois e le pr e se r va a s c oisa s e a s
m a ntê m e m c ondiç õe s de se r e m inge r ida s e utiliza da s. A m e m ór ia é
um a qua lida de qua se a use nte nos c r im inosos. O tr a ta m e nto dos
c r im inosos pa r e c e f unc iona r m e lhor qua ndo se e xige que e le s
r e f a ç a m se us pa ssos, se us pla nos, sua de c isã o de of e nde r —
c oloc a ndo sa l no r e c ipie nte que é a sua psique ou a lm a . O sa l ta m bé m
é im por ta nte pa r a c a ptur a r "pá ssa r os de c a de ia " — a f ina l de c onta s,
todos nós a pr e nde m os que , pa r a c a ptur a r um pá ssa r o, é pr e c iso pôr
um gr ã o de sa l sobr e sua c a uda .

Ma s e xa m ina r o m odo c om o c oloc a m os o c r im inoso num a e nc r e nc a


nã o signif ic a que o c r im inoso sa ia de ssa e nc r e nc a . I sso im plic a a
r e a liza ç ã o de um a ope r a ç ã o dif e r e nte , e nc ontr a r um novo â ngulo pa r a
ve r o pr oc e sso c om o um todo. I sso ta m bé m se r ia ve r da de ir o na
pe r spe c tiva dos nossos sonhos — se pude r m os ve r o c r im inoso c om o
um a outr a pa r te da nossa pr ópr ia histór ia , c om o a lgué m que pr e c isa
inva dir o nosso e spa ç o pa r tic ula r, a lgué m que pr e c isa le va r e m bor a a s
c oisa s de que nã o pr e c isa m os pa r a vive r, a lgué m que pr e c isa c r ia r a
dor e a pe r da e m nós. Um c a m inho pa r a nos le va r a c uida r do
r e c ipie nte m a ior, o r e c ipie nte a lé m da nossa opus pe ssoa l e pa r tic ula r
— o Vas He rme tic us que é a Te r r a . O c r im inoso r e a liza , a um só
te m po, dua s ta r e f a s: e le pa ssa a o a to o se u dr a m a pe ssoa l e sua s
m e squinha s ne c e ssida de s; e , sim ulta ne a m e nte , de se m pe nha um pa pe l
no dr a m a da a lm a na nossa vida , se r vindo c om o um age nt
prov oc ate ur.

Os c r iminosos c omo e sc r avos e spir it uais t r abalhando nas minas da


nossa ignor ânc ia
O de se j o de e lim ina r o c r im e é , na ve r da de , um a nse io por e lim ina r a
a lm a , a im pe r f e iç ã o e a ne c e ssida de da Gr a ç a . É um e sf or ç o pa r a
c r ia r um m undo dom ina do por c onsultor e s, be ha vior ista s, pe r itos
e m pr e sa r ia is e a ge nte s de r e la ç õe s públic a s. Te r ía m os e ntã o um
f a sc ism o be m a dm inistr a do, m a is ge ntil e sua ve , se m m or tos ( c om o
Noa m Chom sky suge r e r e pe tida m e nte e m se us e sc r itos sobr e o sutil
f a sc ism o a m e r ic a no que , num se ntido lite r a l, é nã o- viole nto) .

P r e c isa m os de ba ndidos pa r a que a lgué m , que nã o nós, se j a pe go.


P r e f e r im os que a lgum de se spe r a do, lã f or a nos c a m pos m ina dos, se j a
o nosso bode e xpia tór io, a c oba ia , o voluntá r io pa r a o sa c r if íc io. Nã o
nos c a usa sur pr e sa que a nossa c ultur a a br a c e a r e ligiã o c r istã de um a
m a ne ir a tã o f unda m e nta l, te ndo e m vista que e la e sposa um a te ologia
que a pr ova que um outr o a lgué m ( Cr isto) r e a lize a s ta r e f a s m a is
c r uc ia is por nós, m or r a pe los nossos pe c a dos. Essa te ologia e vita a
nossa c r uc if ic a ç ã o, a bor ta ndo o tr a ba lho a lquím ic o a nte s que e le se
c om ple te e im pe dindo a tr a nsf or m a ç ã o m a is pr of unda .

Se f or m os c a pa ze s de ve r o m undo do c r im e no níve l do im a giná r io e


nã o só do lite r a l, c om e ç a r e m os a pe r c e be r que pr e c isa m os de
"c r im inosos" pa r a a ssa lta r, viole nta r e m a ta r o nosso e go c otidia no, os
nossos pa dr õe s típic os de pe nsa m e nto e e m oç ã o, que de str oe m a nossa
a lm a e nos pe r m ite m tom a r de c isõe s e c om e te r a tos que r om pe m o
te c ido da c om unida de e os obj e tos e c r ia tur a s do m undo. Esse c r im e
pr e c isa se r c om e tido. E, a lé m disso, o c r im inoso pr e c isa se r pe go
pa r a que possa m os e nf r e nta r o nosso a ta c a nte f a c e a f a c e e nos
e nte nde r m os c om e le . P r e c isa m os ouvir a s r a zõe s que o c r im inoso
te m pa r a nos a ta c a r. Se a pe na s o tr a nc a f ia m os e j oga m os f or a a
c ha ve , se a pe na s o e xe c uta m os ou de ste r r a m os, e ntã o na da te r e m os
ga nho.

Te r ía m os a pe na s sa c r if ic a do um pouc o m a is da hum a nida de . Junto


c om os se r e s hum a nos que m a ta m os, e sta r ía m os m a ta ndo a nossa
opor tunida de de nos tor na r m os m a is hum a nos; e sta r ía m os de sistindo
da nossa c ha nc e de a pr e e nde r um a por ç ã o m a is a m pla do e spe c tr o
tota l da hum a nida de , ta nto sua e sc ur idã o qua nto sua luz. E o pior é que
te r ía m os sa c r if ic a do a Te r r a que nos r ode ia e a a lm a hum a na .
Costum a m os dize r que os a ste c a s e r a m pr im itivos por que f a zia m
sa c r if íc ios hum a nos pa r a a pla c a r se us de use s. Nós a pla c a m os a nossa
c onsc iê nc ia f e c ha ndo os olhos à s pe ssoa s que a tir a m os dos pe nha sc os,
a os c r im inosos que de str uím os, a os pa íse s do Te r c e ir o Mundo que
sa c r if ic a m os à nossa pr ospe r ida de , à s ge r a ç õe s f utur a s que
sa c r if ic a m os pa r a pode r m os te r todos os be ns de c onsum o que hoj e
c obiç a m os.

49. Demônios na rodovia

JAM ES YANDELL

Dua s m a nhã s por se m a na pr e c iso f a ze r um a via ge m na hor a do rush


dur a nte a qua l, a o a pr oxim a r- se de um túne l, a s qua tr o pista s
c onve rge m pa r a dua s. A m uda nç a é a nunc ia da por um a se quê nc ia de
sina is — "DUAS P I STAS À ESQUERDA FECHADAS A 1 KM", "DUAS
P I STAS À ESQUERDA FECHADAS A 500 METROS" e "DUAS
P I STAS À ESQUERDA FECHADAS, PASSE PARA A DI REI TA". A
f usã o f ina l é r e f or ç a da pe la s ba r r e ir a s que e lim ina m a s dua s pista s à
e sque r da e pe la r e a lida de do túne l de dua s pista s que se a pr oxim a .

Qua ndo c om e c e i a f a ze r e ssa via ge m , e u c ostum a va usa r um a da s


dua s pista s à dir e ita , j á que e la s le va va m dir e to a o túne l. Com o a
se gunda de la s tinha o pr oble m a da e ntr a da de tr a f e go la te r a l, e u
ge r a lm e nte f ic a va na pr im e ir a . Se a c a so e stive sse num a da s pista s à
e sque r da , logo que via o pr im e ir o sina l de a viso e u pa ssa va pa r a a
dir e ita pa r a e ntr a r dir e ta m e nte no túne l.

Ne ssa é poc a , m e sm o que tive sse pe nsa do no a ssunto, e u nã o te r ia


visto na da notá ve l na m inha pr onta obe diê nc ia a os sina is. Eu nã o
e sta va e xpe r im e nta ndo um a e sc olha ; e u sim ple sm e nte a c ha va que a s
pe ssoa s obe de c e m a os sina is. Re f le tindo sobr e isso m a is ta r de , ve j o
m inha obe diê nc ia num c onte xto psic ológic o. Eu e r a o c a ç ula da
f a m ília , f ilho de um pr of e ssor, um bom m e nino que nã o c a usa va
pr oble m a s, or ie nta do pa r a f a ze r a c oisa c e r ta e se da r be m na vida .
Fui e duc a do pa r a se r um c ida dã o r e sponsá ve l e r e spe ita dor da le i.
Que br a r a s r e gr a s e sta be le c ida s, e m qua lque r níve l, nã o se r ia o m e u
c a m inho.

O pr oble m a na que la r odovia e r a que , e nqua nto e u pe r m a ne c ia à


dir e ita e spe r a ndo ( c om pa c iê nc ia ou se m e la ) m inha ve z de
a tr a ve ssa r o túne l, e u nota va que a lguns c ida dã os m e nos
c onsc ie nc iosos c ontinua va m pe la s pista s da e sque r da o m a is possíve l
a té se r e m f isic a m e nte f or ç a dos a pa ssa r pa r a a dir e ita — e e ntã o e le s
se a m ontoa va m na minha pista , à minha fre nte . P ior a inda ; à s ve ze s e u
via pe lo r e tr ovisor que a lgum tr a nsgr e ssor psic opa ta , a o a pr oxim a r- se
do ga rga lo, sa ía da m inha pista pa r a a s pista s va zia s da e sque r da ,
pa ssa va por m im a c e le r a do e ga nha va um a pe que na va nta ge m a nte s
de pr e c isa r volta r pa r a a pista da dir e ita .

Fique i sur pr e so c om o que e ssa situa ç ã o de spe r tou e m m im . De iníc io,


e u f ic a va a pe na s c ha te a do c om o e spe tá c ulo de outr a s pe ssoa s que ,
se m o e stor vo de um supe r e go a pr opr ia do, tir a va m pr ove ito de a gir
e r r a do e nqua nto e u a gia c e r to. Ma s f ui f ic a ndo c a da ve z m a is
r e sse ntido c om isso. Minha se nsibilida de de c a ç ula à inj ustiç a f oi
a tiva da . Ele s e sta va m le va ndo va nta ge m a o f a ze r a lgo que m e e r a
pr oibido.

Eu se ntia r a iva , nã o só dos intr om e tidos c om o ta m bé m dos


m otoc ic lista s da P olíc ia Rodoviá r ia ; e u a c ha va que e le s de ve r ia m
im pe dir e sse tipo de c om por ta m e nto e m ve z de f ic a r pa ssa ndo m ulta s
por e xc e sso de ve loc ida de lá a tr á s na r odovia . De sc obr i que e u e r a
e spa ntosa m e nte c om pe titivo. Com f r e quê nc ia , os a gr e ssor e s dir igia m
P or sc he s ou BMW s, ou e ntã o e r a m c owboy s e m pe que na s pic k ups que ,
qua ndo se m c a rga , sã o m uito ve loze s. Em bor a m e u se dã se j a
e spa ç oso e f a ç a 12 quilôm e tr os por litr o, e le de c idida m e nte nã o é
um a na ve e spa c ia l. I nf e r ior iza do e inve j oso, e u f a nta sia va sobr e
pote nte s m otor e s e tur bos. I nc a pa z de c om pe tir dir e ta m e nte , e u
e xpr e ssa va m inha r a iva de um m odo pa ssivo: te nta va im pe dir que os
ba ndidos c or ta sse m na m inha f r e nte . Tor ne i- m e um pe r ito na a r te de
dir igir pa r a - c hoque c om pa r a - c hoque , que nã o de ixa va ne nhum
e spa ç o pa r a intr usos e ntr a r e m . Eu sa bia que e ssa a r te m e c usta va a
m inha e m br e a ge m , m a s a sa tisf a ç ã o de f r ustr a r os a m bic iosos va lia a
pe na .

Eu a inda nã o ha via que stiona do a m or a lida de da situa ç ã o. Esta va


c la r o que a que la s pe ssoa s na s pista s da e sque r da , pa ssa ndo por m im e
se a tr ope la ndo à m inha f r e nte , e r a m ba ndidos. Minha posiç ã o e r a
m or a lm e nte c or r e ta e , se o m undo f osse j usto, os outr os se
c om por ta r ia m c om o e u. O pr oble m a é que o m undo nã o é j usto e os
outr os nã o se c om por ta va m c om o e u. Ou m e lhor, a m a ior pa r te dos
m otor ista s se c om por ta va c om o e u — e u f a zia pa r te da m a ior ia que
r e spe ita a le i —, m a s e sse f a to nã o a pa ga va m e us se ntim e ntos e m
r e la ç ã o a os de m a is. Minha indigna ç ã o e r a j usta : se o m e u c ontr a -
a ta que a c a bou se tor na ndo um ta nto r e pulsivo, e le s m e r e c ia m a inda
pior pe la s sua s tr a nsgr e ssõe s.

Eu pode r ia te r e vita do e sse pr oble m a todo sa indo de z m inutos m a is


c e do, a nte s que o e nga r r a f a m e nto se f or m a sse , m a s ge r a lm e nte e u
sa ía de c a sa no últim o m inuto possíve l, c he io de se nsa ç õe s de c ulpa
por ta lve z c he ga r a tr a sa do à m inha pr im e ir a c onsulta do dia . Eu
que r ia a tr a ve ssa r o túne l e nã o via ne nhum a r a zã o pa r a que os outr os
o a tr a ve ssa sse m a nte s de m im por m e io de tr a pa ç a s. Ta lve z e u
ta m bé m pe nsa sse e m tr a pa c e a r, m a s se ntia um a gr a tif ic a nte
supe r ior ida de m or a l e um a orgulhosa sa tisf a ç ã o c om igo m e sm o por
pe r sistir na vir tude e r e sistir à te nta ç ã o. Ma s, na que la s c ondiç õe s, a
vir tude c usta va c a r o; e u e sta va pe r de ndo — e u e r a um a vítim a
vir tuosa .

Ac ho que a quilo que a c a bou a c onte c e ndo surgiu da c om bina ç ã o


sim ultâ ne a de um a tr a so m a ior c om a r a iva e a inve j a a c um ula da s, o
c ola pso m or a l e um a c e r ta c ur iosida de sobr e a vida na s pista s de a lta
ve loc ida de . Um a a m a nhã pa sse i de libe r a da m e nte pa r a a últim a pista
da e sque r da e lá f ique i ta nto qua nto possíve l. Entã o pa sse i pa r a a
outr a pista , a inda na e sque r da , e lá pe r m a ne c i o m á xim o que m e f oi
possíve l. Fina lm e nte , e ntr e i na m inha pista de se m pr e e a tr a ve sse i o
túne l.

Nã o posso dize r que "m e se nti o m á xim o", ou a lgo igua lm e nte
sim ple s. Eu tinha sobr e puj a do o inim igo, m a s o inim igo a inda e r a o
inim igo. Eu e sta va de sa gr a da ve lm e nte c ie nte de e sta r viola ndo m e us
pr ópr ios pr inc ípios por um ga nho im e dia to; e u sa bia que tinha "m e
ve ndido". Na ve r da de , e u r e a lm e nte pr e f e r ia os c ida dã os be m
c om por ta dos, e m c uj a pista e u a gor a m e insinua va , e que m e
e nc a r a va m c om a m e sm a j usta hostilida de que e u pr ópr io se ntia a inda
na vé spe r a . P or um la do, e u e sta va e m c onf lito c om o m e u novo
status de f or a - da - le i. P or outr o, a se nsa ç ã o de c ulpa nã o e r a tã o m á
a ssim , E a ve r da de é que a tr a ve sse i o túne l be m m a is de pr e ssa .

A pa r tir da í, a c onte c e r a m m uita s c oisa s inte r e ssa nte s. Fiz


e xpe r iê nc ia s de libe r a da s c om a s qua tr o pista s, te sta ndo- a s
psic ologic a m e nte e ve ndo c om o c a da um a de la s f unc iona va , c om o o
m undo pa r e c ia qua ndo visto a pa r tir de c a da pe r spe c tiva . Qua ndo nã o
e stou c onsc ie nte m e nte f a ze ndo e xpe r iê nc ia s, a pr oxim o- m e do
e nga r r a f a m e nto pe la últim a pista da e sque r da por que e la f unc iona
m e lhor ; e la é m a is r á pida . Qua ndo a j o a ssim , tor no- m e m e m br o de
um a m inor ia r e la tiva m e nte pe que na . A m a ior ia dos m otor ista s ne m
se que r e spe r a pe los sina is que m a nda m pa ssa r pa r a a dir e ita ; j á lá
a tr á s, e le s se c oloc a m na s dua s pista s que le va m dir e to a o túne l.
Conhe c e ndo o pe r c ur so, é possíve l que e le s nunc a use m a s pista s da
e sque r da pa r a nã o pr e c isa r e m sa ir de la s a o se a pr oxim a r e m do túne l.
I sso é o que e u c ostum a va f a ze r. Exa m ina ndo a s c oisa s a pa r tir da
m inha nova posiç ã o de supe r ior ida de , isso m e pa r e c e um a
ina c r e ditá ve l r e str iç ã o a m im m e sm o. Com o pode m e xistir ta ntos
c ida dã os de sne c e ssa r ia m e nte bons qua ndo e stá tã o c la r o que é um a
va nta ge m nã o se r bom ?

Na ve r da de , o c om por ta m e nto vir tuoso de ssa m a ior ia m or a l libe r a a s


pista s da e sque r da pa r a que possa m os pr a tic a r nossa s soc iopa tia s. Se
a que la s qua tr o pista s f osse m utiliza da s de m odo unif or m e , nã o f a r ia
se ntido a lgum f ic a r "c ostur a ndo". Os m otor ista s que j á pa ssa r a m pa r a
a dir e ita c r ia m a opor tunida de e a te nta ç ã o pa r a que a va nc e m os o
m a is possíve l pe la e sque r da a nte s de obe de c e r m os os sina is. Som os os
dois la dos de um a m e sm a m oe da : e le s, os a nj os, nós, os de m ônios,
todos c om ple m e nta r e s e inte r de pe nde nte s. P r e c isa m os que e le s se j a m
bons e nos of e r e ç a m a nossa opor tunida de ; e le s pr e c isa m que nós
se j a m os m a us pa r a que possa m nos c e nsur a r, se se ntir e m supe r ior e s e
nos punir e m c om a e xc lusã o.

Qua ndo br inc o de de m ônio e olho à dir e ita pa r a os m otor ista s que
e stou ultr a pa ssa ndo, te nho a c onsc iê nc ia de um a se nsa ç ã o de pe r da ,
pe r c e bo que sa c r if ique i a lgo qua ndo f ugi pa r a a libe r da de do m e u
inte r e sse pr ópr io. Nã o duvido que f oi por isso que le ve i ta nto te m po
pa r a pe r de r m inha vir tude . Le m br o, c om um a c e r ta nosta lgia , a que la
se nsa ç ã o a gr a dá ve l de c om unida de , r e tidã o e a utoe stim a que e u
de sf r uta va qua ndo a inda e r a um a ove lha — a nte s de m e tr a nsf or m a r
num lobo; le m br o c om o e u de spr e za va a que le s a na r quista s
de pr a va dos que pa ssa va m voa ndo à m inha e sque r da . Ma s qua ndo
te nto r e c upe r a r m inha pur e za m or a l na s pista s de ove lha s, le m br o- m e
de um a de sivo que dizia : "A NOSTALGI A NÃO É MAI S O QUE
COSTUMAVA SER." A sa tisf a ç ã o da vir tude nã o pa ga o pr e ç o de
se r m os pa ssa dos pa r a tr á s.

Contudo, o m a is inte r e ssa nte pa r a m im f oi que e ssa situa ç ã o a c a bou


por de ixa r de se r um dile m a m or a l; e la f oi de spoj a da de todo víc io e
vir tude . P e r c e bo que e sse e nga r r a f a m e nto no túne l é a pe na s um luga r
onde qua tr o pista s se e str e ita m e m dua s; sinto que na da e xiste de c e r to
ou de e r r a do, de bom ou de m a u, na f usã o de ssa s qua tr o pista s. Ante s,
qua ndo e xpe r im e nta va e sse e nga r r a f a m e nto c om o um a que stã o é tic a ,
e u e sta va inte r pr e ta ndo, e u e sta va m e pr oj e ta ndo. De f ini a m im
m e sm o c om o a vítim a vir tuosa ; de f ini os m otor ista s que m e
ultr a pa ssa va m c om o "ba ndidos" — a gr e ssivos, e goísta s, se m
se ntim e ntos c om unitá r ios, be m - suc e didos e inve j á ve is. Agor a , qua ndo
os m otor ista s da dir e ita m e la nç a m olha r e s f ur iosos no m om e nto e m
que inva do a pista de le s, posso a va lia r sua r a iva a pa r tir da m e m ór ia
da m inha pr ópr ia e xpe r iê nc ia e , por isso, nã o f ic o c om r a iva qua ndo
e le s te nta m im pe dir que e u e ntr e na sua f r e nte . P e lo c ontr á r io, f ic o
c a lm o e a c ho tudo tr ivia l. Ma s e l e s pa r e c e m ba sta nte e str a nhos,
tr a nsf or m a ndo num j ogo de m or a lida de um a sim ple s f usã o de qua tr o
pista s e m dua s. O m a is dive r tido é que te nto nã o r ir qua ndo e le s
pr ova m a sua vir tude , sua m a sc ulinida de e se u pa tr iotism o obr iga ndo-
m e a e ntr a r a tr á s de le s, por que ta lve z a lguns de le s e ste j a m a r m a dos.

P a r e c e que nã o c onsigo m a is pr oj e ta r a que le f ilm e de gue r r a sobr e


e ssa te la e spe c íf ic a . P r e c isa r e i e nc ontr a r um novo pa lc o onde
distinguir os m oc inhos dos ba ndidos; nã o m e sinto ne m um m oc inho
ne m um ba ndido. P r e c iso de um novo a de sivo: FÁCI L NA FUSÃO.

Se nti raiv a do me u amigo;


e x pre sse i- a, e minha ira morre u.
Se nti raiv a do me u inimigo;
sufoque i- a, e minha ira c re sc e u.
Alime nte i- a c om me us me dos,
c om minhas lagrimas a re gue i.
Env olv ia e m me us se gre dos,
minha v ilania lhe c ante i.
Dia após dia e la floriu
e o pomo de ouro brotou.
E quando a noite tudo c obriu
no me u pomar se e sgue irou
o me u inimigo que o v iu brilhar
e sabia que o pomo e ra me u.
Ao sol da manhã, fe liz fui olhar
me u inimigo que sob a árv ore morre u.

Willia m Bla ke

Parte 9

"t r abalho c om a sombr a": t r aze ndo luz à e sc ur idão at r avé s da


t e r apia, dos mit os e dos sonhos

Os gr a nde s m om e ntos da nossa vida sã o a que le s e m que te m os a


c or a ge m de r e ba tiza r a nossa m a lda de c om o o m e lhor que e m nós
e xiste .

Frie dric h Nie tzsc he

Em m e io à j or na da da m inha vida ,
te ndo pe r dido o c a m inho ve r da de ir o,
e nc ontr e i- m e e m se lva te ne br osa ...
tã o tr iste que , na pr ópr ia m or te ,
nã o pode ha ve r m a ior tr iste za .
Dante

Um a c oisa que e nc ontr a m os nos m itos é que do f undo do a bism o


e le va - se a voz da sa lva ç ã o. O m om e nto ne gr o é a que le no qua l a
ve r da de ir a m e nsa ge m de tr a nsf or m a ç ã o e stá por e m e rgir. No
m om e nto m a is te ne br oso, surge a luz.

J ose ph Campbe ll

O m a l na psique hum a na na sc e do f r a c a sso e m j unta r, e m r e c onc ilia r


a s pe ç a s da nossa e xpe r iê nc ia . Qua ndo e ngloba m os tudo o que som os,
a té m e sm o o nosso m a l, o m a l e m nós é tr a nsf or m a do. Qua ndo a s
dif e r e nte s e ne rgia s viva s do siste m a hum a no se ha r m oniza r e m , a f a c e
sa ngr e nta do m undo de hoj e se tr a nsf or m a r á num a im a ge m da f a c e
de De us.

Andre w Bard Sc hmook le r

Introdução

Assum ir a som br a im plic a c onf r ontá - la e a ssim ila r se us c onte údos


de ntr o de um a utoc onc e ito m a is a m plo. É típic o que e sse s e nc ontr os
de c ur a oc or r a m na m e ia - ida de , no "m e io da j or na da da vida "; m a s os
e nc ontr os c om a som br a pode m oc or r e r se m pr e que se ntim os nossa
vida e sta gna r- se e pe r de r c olor a ç ã o e signif ic a do. O "tr a ba lho c om a
som br a " pode te r iníc io, de m odo e spe c ia l, qua ndo r e c onhe c e m os e
se ntim os os e f e itos c onstr itor e s da ne ga ç ã o; qua ndo c om e ç a m os a
duvida r dos va lor e s pe los qua is vive m os a té a gor a e ve m os que nossa s
ilusõe s sobr e nós m e sm os e o m undo se e stilha ç a m ; qua ndo som os
dom ina dos pe la inve j a , pe lo c iúm e , por im pulsos se xua is ou pe la
a m biç ã o; ou qua ndo se ntim os a supe r f ic ia lida de da s nossa s
c onvic ç õe s.

Sha ke spe a r e c om pr e e nde u a ne c e ssida de do e nc ontr o, c om a som br a .


Em sua s pe ç a s, é f r e que nte que e le de sc r e va a s tr á gic a s
c onse quê nc ia s de ignor a r m os o c ha m a do pa r a e sse tr a ba lho. Na boc a
do a ssa ssino Ma c be th e le c oloc ou pa la vr a s punge nte s que de sc r e ve m
o va zio e a m isé r ia inf ligidos pe la e sc ur idã o nã o- r e dim ida : A vida é
um a som br a a nda nte , na da m a is...

é uma fábula
c ontada por um idiota, c he ia de som e de fúria,
que nada signific a.

Figur a ve r da de ir a m e nte tr á gic a , a vida de Ma c be th pe r de u todo


signif ic a do. É ta r de de m a is pa r a que se f a ç a a lgo a r e spe ito de se u
la do e sc ur o, pois e le pa ssou a o a to sua som br a no hom ic ídio; se u
de stino e stá ir r e voga ve lm e nte se la do. Em lingua ge m m e nos poé tic a ,
pode r ía m os de f inir a tr a gé dia c om o a c onsc ie ntiza ç ã o da som br a
qua ndo j á é de m a sia do ta r de pa r a f a ze r m os a lgo a r e spe ito da s nossa s
dif ic ulda de s.

Ma s, pa r a a m a ior ia de nós, a pe r c e pç ã o da som br a é o que Jung


c ha m ou "um pr oble m a e m ine nte m e nte pr á tic o". Ne sta c ole tâ ne a ,
c ha m a m os de "tr a ba lho c om a som br a " o pr oc e sso c onsc ie nte e
inte nc iona l de a dm itir m os a quilo que ha vía m os opta do por ignor a r ou
r e pr im ir. A te r a pia e xige a r e c upe r a ç ã o de tudo o que ha vía m os
r e j e ita do e m nom e do nosso ide a l do e go, e o e sta be le c im e nto de um a
nova or de m pe ssoa l que e xplique o nosso la do de str utivo.

No e nta nto, o e sta be le c im e nto de ssa nova or de m pode e xigir um


pr oc e sso de c onf r onto e libe r a ç ã o da s ilusõe s pe la s qua is vive m os. O
soc iólogo P hilip Sla te r a ssim o de sc r e ve no se u livr o Eanhwalk : Na
psic ote r a pia , o pa c ie nte nã o volta lite r a lm e nte à inf â nc ia pa r a
de sa pr e nde r o pa dr ã o a utode str utivo que e voluiu a o c r e sc e r, e m bor a
possa e nvolve r- se e m m uita e xpe r im e nta ç ã o r e gr e ssiva pa r a de sf a ze r
e sse a pr e ndiza do ne ga tivo. O e sse nc ia l é que o pa c ie nte se j a c a pa z de
a ba ndona r se u a pe go a e sse c a m inho — se j a c a pa z de dize r a si
m e sm o: "De spe r dic e i n a nos da m inha vida num a busc a dolor osa e
inútil. I sso é tr iste , m a s a gor a te nho a opor tunida de de te nta r um a
nova a bor da ge m ." Essa é um a c oisa dif íc il de se r f e ita . Existe um a
f or te te nta ç ã o de r a c iona liza r nossos de svios e r r a dos c om o pa r te s
ne c e ssá r ia s do nosso de se nvolvim e nto ( "Aque le e r r o m e e nsinou a te r
disc iplina ") ou, se nã o, de ne ga r que pa r tic ipa m os ple na m e nte de sse s
e r r os ( "Ah, m a s isso f oi a nte s de e u m e ilum ina r ") . O a ba ndono de ssa s
dua s e va sõe s de iníc io le va a o de se spe r o; m a s, c om o m ostr a
Ale xa nde r Lowe n, o de se spe r o é a únic a c ur a pa r a a ilusã o. Se m
de se spe r o nã o c onse guim os tr a nsf e r ir a nossa subm issã o à r e a lida de
— é um a e spé c ie de pe r íodo de luto pa r a nossa s f a nta sia s. Algum a s
pe ssoa s nã o sobr e vive m a e sse de se spe r o, m a s ne nhum a m uda nç a
im por ta nte de ntr o de um a pe ssoa pode oc or r e r se m e le .

A individua ç ã o — o pr oc e sso de um a pe ssoa tor na r- se toda e únic a —


te m c om o obj e tivo a br a ç a r sim ulta ne a m e nte a luz e a s tr e va s pa r a
c r ia r um r e la c iona m e nto c onstr utivo e ntr e o e go e o s e l f ( nosso
sím bolo pe ssoa l da tota lida de individua l) , No e nc ontr o te r a pê utic o,
a tr a vé s de um diá logo hone sto e inte r pr e ta ç ã o de sonhos, te m os o
m e io pa r a e nf r e nta r nossa e la bor a da c ha r a da de a pa r ê nc ia s e a c e ita r
que m r e a lm e nte som os.

Essa ta r e f a de a ssum ir a nossa pe r sona lida de inf e r ior e m ge r a l e xige


a pr e se nç a — e é a c e le r a da por e la — de um a te ste m unha , sob a
f or m a de um te r a pe uta ou guia . Esse pr oc e sso é um de spe r ta r gr a dua l
pa r a a som br a , c om o é de sc r ito ne sta pa ssa ge m de Shadow and Ev il in
Fairy Tale s [ A Som br a e o Ma l nos Contos de Fa da s] , de Ma r ie - Louise
von Fr a nz: Se um paciente que nada sabe de psicologia vem para uma sessão
analítica e você tenta lhe explicar que existem certos processos por trás da mente
dos quais as pessoas não estão conscientes, isso, para ele, é a sombra. Portanto,
no primeiro estágio da abordagem ao inconsciente a sombra é simplesmente um
nome "mitológico" para tudo aquilo dentro de mim de que não tenho
conhecimento direto. Só quando começamos a escavar na esfera da sombra da
personalidade, e a investigar os diferentes aspectos, é que aparecerá nos sonhos,
depois de algum tempo, uma personificação do inconsciente, do mesmo sexo que
o sonhador.

À m e dida que se a vulta a pe r c e pç ã o da som br a , a s f igur a s onír ic a s


tor na m - se m a is e vide nte s e sua inte gr a ç ã o m a is im por ta nte . Em
últim a a ná lise , r e la c iona r a som br a pe ssoa l c om a som br a c ole tiva da
pr ópr ia c ultur a é um f e nôm e no na tur a l. O psic a na lista isr a e le nse
Er ic h Ne um a nn de sc r e ve u o e stá gio se guinte do "tr a ba lho c om a
som br a " à m e dida que o pr oc e sso de individua ç ã o pr osse gue : A
dif e r e nc ia ç ã o e ntr e o "m e u" m a l e o m a l ge r a l é um ponto e sse nc ia l
do a utoc onhe c im e nto e de le nã o é pe r m itido e sc a pa r ningué m que se
subm e ta à j or na da da individua ç ã o. Ma s, à m e dida que o pr oc e sso de
individua ç ã o se de sdobr a , sim ulta ne a m e nte de sinte gr a - se o im pulso
a nte r ior do e go r um o à pe r f e iç ã o. A e xa lta ç ã o inf la c ioná r ia do e go
pr e c isa se r sa c r if ic a da e tor na - se ne c e ssá r io que o e go f a ç a um a
e spé c ie de "a c or do de c a va lhe ir os" c om a som br a — um
de se nvolvim e nto dia m e tr a lm e nte oposto a o tr a dic iona l ide a l é tic o do
a bsoluto e da pe r f e iç ã o.

P a r a a pe ssoa pr onta a ir a o e nc ontr o de se us inim igos — inte r nos e


e xte r nos —, o c a m inho e stá se m pr e de sim pe dido. O "tr a ba lho c om a
som br a " ba se ia - se num a to c onf e ssiona l ( e , à s ve ze s, c a tá r tic o) . P a r a
Jung, e ssa é a a tivida de quinte sse nc ia l. "O hom e m m ode r no", a f ir m ou
e le , "pr e c isa r e de sc obr ir um a f onte m a is pr of unda de sua pr ópr ia vida
e spir itua l. P a r a f a zê - lo, e le é obr iga do a luta r c ontr a o m a l, a
c onf r onta r sua som br a , a inte gr a r o de m ônio. Nã o há outr a e sc olha ."

Os c ola bor a dor e s da P a r te 9 m ostr a m e ntusia sm o pe lo


e m pr e e ndim e nto do "tr a ba lho c om a som br a ". Com o um m a nua l
m últiplo pa r a o e nc ontr o c om a som br a , e ste s e nsa ios dã o te ste m unho
da s ha bilida de s do a na lista , da s de sc obe r ta s da lite r a tur a e da
m itologia , da sa be dor ia dos sonhos e da e xpe r iê nc ia de tr a nsf or m a ç ã o
na m e ia - ida de .

No Ca pítulo 50, "A c ur a da som br a ", o a na lista j unguia no e psic ólogo


a r que típic o Ja m e s Hillm a n le m br a - nos que o a m or é o ingr e die nte
im por ta nte ; m a s, suge r e Hillm a n, ta lve z o a m or nã o se j a suf ic ie nte .
Este e nsa io f oi e xtr a ído do se u livr o, public a do e m 1967, I nse arc h:
Psy c hology and Re ligion [ A Busc a I nte r ior : P sic ologia e Re ligiã o] .
"A na r r a tiva da de sc ida a o inf e r no" de She ldon B. Kopp le va - nos a
um a e xc ur sã o guia da a tr a vé s do I nf e r no de Da nte , num ônibus
dir igido por um te r a pe uta . O ponto f ina l de ssa e xc ur sã o é o c e ntr o do
I nf e r no, na pr e se nç a do Re i Sa tã . "Só de pois de a lc a nç a r o pr ópr io
c e ntr o do Ma l, só de pois de e nf r e nta r c a da pe c a do e ve r sua s
c onse quê nc ia s é que Da nte pode te r e spe r a nç a s de pur if ic a r sua
a lm a ." Na te r a pia , o dia bo e stá pr e se nte no nosso sof r im e nto
ne ur ótic o, A e str a da pa r a a a le gr ia pa ssa a tr a vé s dos por tõe s do
I nf e r no. Este e nsa io f oi e xtr a ído de if You M e e t lhe Buddha on the
Road, Kill Him [ Se Enc ontr a r e s o Buda na Estr a da , Ma ta - o] .

Qua ndo c r uza m os um por ta l pa r a o de sc onhe c ido — o que e nvolve


a utoa niquila ç ã o e r e nova ç ã o sim bólic a s —, e ntr a m os na "ba r r iga da
ba le ia ": e ste é o te m a do Ca pítulo 52, por Jose ph Ca m pbe ll. Ele c ha m a
e ssa pa ssa ge m som br ia um "a to de c e ntr a r a vida , de r e nova r a vida ",
e se gue a pista de sse te m a na s dive r sa s c ultur a s a o longo do te m po.
Este e nsa io f oi e xtr a ído da obr a c lá ssic a de sse f a m oso m itologista ,
13
The He ro with a Thousand Fac e s [O He r ói de Mil Fa c e s] .

O Ca pítulo 53, "A utilida de do inútil", de Ga r y Toub, f oi or igina lm e nte


public a do no j or na l Psy c hologic al Pe rspe c tiv e s. Usa ndo pa r á bola s
ta oísta s e psic ologia j unguia na pa r a ilustr a r sua te se , Toub suge r e que
nossa opç ã o por e nvolve r qua lida de s que nã o va lor iza m os f or ç a - nos a
c onf r onta r a s qua lida de s da som br a pe r dida s de ntr o de nós. Ele nos
e xor ta , c om toda a sua vida de , a vive r a singula r ida de da nossa pr ópr ia
vida , a c om pr e e nde r a na tur e za dos opostos na vida , be m c om o a
te nsã o e o e quilíbr io que e le s e xige m e , ta lve z o m a is sutil de tudo, a
e nc ontr a r signif ic a do onde m e nos o e spe r a m os.

A psic óloga j unguia na Ka r e n Signe ll a bor da o "tr a ba lho c om a


som br a " a tr a vé s da nobr e e str a da dos sonhos. Se u e nsa io,
"Tr a ba lha ndo c om os sonhos f e m ininos", e xtr a ído de Wisdom of the
H e a r t [ A Sa be dor ia do Cor a ç ã o] , de m onstr a a a plic a ç ã o da s
ha bilida de s de inte r pr e ta ç ã o de sonhos pa r a ide ntif ic a r e inte gr a r a
pe r sona lida de da som br a . Em bor a e nf oc a ndo som e nte m ulhe r e s,
Signe ll nã o se de ixa lim ita r por ba r r e ir a s de gê ne r o. Sua intr ovisã o
nos sonhos de stina - se a "a j udá - lo( a ) a sua viza r se u c or a ç ã o e m
r e la ç ã o a si m e sm o( a ) e a os outr os".

A c r ise da m e ia - ida de é a f a m osa "noite e sc ur a da a lm a ", qua ndo a


som br a se le va nta pa r a nos e nc ontr a r. Ja nic e Br e wi e Anne Br e nna n,
c onse lhe ir a s da m e ia - ida de , e sc r e ve r a m um r igor oso e studo do
"tr a ba lho c om a som br a " ne ssa f a se da vida : Ce le brate M id- Life
[ Ce le br e a Me ia - ida de ] , do qua l f oi e xtr a ído o tr e c ho a qui
r e pr oduzido. Apoia ndo- se na s ide ia s or ie nta dor a s de Jung, a s a utor a s
e sta be le c e m um a distinç ã o e ntr e os a ssuntos da som br a na pr im e ir a
m e ta de da vida e os te m a s que c om e ç a m a e m e rgir à m e dida que
ingr e ssa m os na sua se gunda m e ta de .

O f a m oso e sc r itor e psic ólogo Da nie l J. Le vinson, no se u e nsa io "P a r a


o hom e m na m e ia ida de ", disc ute o "m ovim e nto da s onda s" de um
hom e m à m e dida que e le a tr a ve ssa e ssa s "á gua s br a nc a s". Tom a r
c onsc iê nc ia da pr ópr ia m or ta lida de e pote nc ia l de str utivo é pa r te
de ssa tr a nsiç ã o; se um hom e m f oge da r e sponsa bilida de de e nf r e nta r
e sse s de sa f ios a o se u e go, e le pode e sta r sa c r if ic a ndo sua f utur a
pr odutivida de . O Ca pítulo 56 f oi e xtr a ído do be st- se lle r de Le vinson,
The Se asons of a M an' s Life [ As Esta ç õe s da Vida de um Hom e m ] .

E e nc e r r a ndo, a a na lista j unguia na Lilia ne Fr e y Rohn diz- nos, e m


"Com o lida r c om o m a l", que o de sa f io de tr a nsf or m a r o m a l é um
pr oble m a m or a l que e xige o m a is a lto e sf or ç o de c onsc iê nc ia . Fa ze r o
tr a ba lho de inte gr a ç ã o da som br a pe ssoa l, diz e la , ta m bé m é e sse nc ia l
pa r a a e sta bilida de da c ultur a . Este e xc e r to f oi or igina lm e nte
public a do no j or na l j unguia no Spring, e m 1965.

Este s e nsa ios m ostr a m o c a m inho a tr a vé s de ssa pa ssa ge m e sc ur a ,


of e r e c e ndo- nos, ne sse s dia s de hoj e , um a m ã o pa r a nos a j uda r e um a
luz pa r a nos guia r.

50. A cura da sombra

JAM ES HILLM AN
A c ur a da som br a é , por um la do, um a que stã o m or a l — ou se j a , o
r e c onhe c im e nto da quilo que r e pr im im os, o m odo c om o e f e tua m os
e ssa s r e pr e ssõe s, a m a ne ir a c om o r a c iona liza m os e e nga na m os a nós
m e sm os, a e spé c ie de obj e tivos que te m os e a s c oisa s que f e r im os ( ou
a té m e sm o m utila m os) e m nom e de sse s obj e tivos. P or outr o la do, a
c ur a da som br a é um a que stã o de a m or. Até onde pode r ia o nosso
a m or e ste nde r- se à s pa r te s que br a da s e a r r uina da s de nós m e sm os, à s
nossa s pa r te s r e pulsiva s e pe r ve r sa s? Qua nta c a r ida de e c om pa ixã o
se ntim os pe la s nossa s pr ópr ia s f r a que za s e doe nç a s? Com o
pode r ía m os c onstr uir um a soc ie da de inte r ior ba se a da no pr inc ípio do
a m or, r e se r va ndo um luga r pa r a todos? E uso a e xpr e ssã o "c ur a da
som br a " pa r a e nf a tiza r a im por tâ nc ia do a m or. Se nos a pr oxim a m os
de nós m e sm os pa r a nos c ur a r e c oloc a m os o "e u" no c e ntr o, isso c om
m uita f r e quê nc ia de ge ne r a no obj e tivo de c ur a r o e go — f ic a r m a is
f or te , tor na r- se m e lhor e c r e sc e r de a c or do c om os obj e tivos do e go,
que e m ge r a l sã o c ópia s m e c â nic a s dos obj e tivos da soc ie da de . Ma s
qua ndo nos a pr oxim a m os de nós m e sm os pa r a c ur a r e ssa s f ir m e s e
intr a tá ve is f r a que za s c ongê nita s de obstina ç ã o, c e gue ir a , m e squinhe z,
c r ue lda de , im postur a e oste nta ç ã o, de f r onta m o- nos c om a
ne c e ssida de de todo um novo m odo de se r ; ne le , o e go pr e c isa se r vir,
ouvir e c oope r a r c om um e xé r c ito de de sa gr a dá ve is f igur a s da
som br a e de sc obr ir a c a pa c ida de de a m a r a té m e sm o o m a is
insignif ic a nte de sse s tr a ç os.

Am a r a si m e sm o nã o é f á c il, pois signif ic a a m a r toda s a s pa r te s de si


m e sm o — inc luindo a som br a , na qua l som os tã o inf e r ior e s e tã o
ina c e itá ve is soc ia lm e nte . Os c uida dos que de dic a m os a e ssa pa r te
hum ilha nte sã o ta m bé m a c ur a . E m a is: c om o a c ur a de pe nde dos
c uida dos, à s ve ze s "c uida r " que r dize r a pe na s "tr a ze r c onsigo". O
pr im e ir o pa sso e sse nc ia l pa r a a r e de nç ã o da som br a é a c a pa c ida de
de tr a zê - la c onosc o ( c om o f ize r a m os pr ote sta nte s pur ita nos, ou os
j ude us no e te r no e xílio, dia a dia c onsc ie nte s de se us pe c a dos, de
a ta la ia c ontr a o Dia bo, e m gua r da pa r a nã o da r um pa sso e m f a lso;
um a longa j or na da e xiste nc ia l c om um f a r do de pe dr a s à s c osta s, se m
ningué m sobr e que m de sc a r r e gá - la s e se m de stino c e r to a o f ina l) .
Ma s e sse tr a ze r c onsigo e c uida r nã o pode m te r um de se nvolvim e nto
pr ogr a m á tic o que f a ç a a que la qua lida de inf e r ior se suj e ita r a os
obj e tivos do e go, pois isso nã o se r ia a m or.

Am a r a som br a pode c om e ç a r c om o tr a zê - la c onsigo, m a s isso a inda


nã o é suf ic ie nte . A qua lque r m om e nto pode ir r om pe r a lgum a outr a
c oisa qua lque r, c om o a que la intr ospe c ç ã o que e sc a r ne c e do pa r a doxo
da nossa pr ópr ia louc ur a — a louc ur a c om um a todos os hom e ns. E
e ntã o ta lve z nos c he gue a a le gr e a c e ita ç ã o do r e j e ita do e do inf e r ior,
um a c om pa nhá - lo e a té m e sm o vivê - lo pa r c ia l. Esse a m or ta lve z le ve
a té m e sm o a um a ide ntif ic a ç ã o c om a som br a , a um a pa ssa ge m a o
a to da som br a , c a indo no se u f a sc ínio. P or ta nto, a dim e nsã o m or a l
nunc a de ve se r a ba ndona da . E a ssim a c ur a é um pa r a doxo que e xige
dois f a tor e s inc om e nsur á ve is: pr im e ir o, o r e c onhe c im e nto m or a l de
que e ssa s pa r te s de m im sã o opr e ssiva s e intole r á ve is, e pr e c isa m
m uda r ; e se gundo, a r isonha a c e ita ç ã o a m or osa que a s a c e ita
e xa ta m e nte c om o e la s sã o, c om a le gr ia e pa r a se m pr e . Luta m os
a r dua m e nte e de sistim os; j ulga m os c om se ve r ida de e a c e ita m os c om
a le gr ia . O m or a lism o oc ide nta l e o a ba ndono or ie nta l; c a da um
c onté m a pe na s um la do da ve r da de .

Ac r e dito que e ssa a titude pa r a doxa l da c onsc iê nc ia e m r e la ç ã o à


som br a e nc ontr a um e xe m plo a r que típic o no m istic ism o r e ligioso
j uda ic o no m istic ism o r e ligioso j uda ic o, onde De us te m dua s f a c e s; a
f a c e da r e tidã o m or a l e da j ustiç a , e a f a c e da m ise r ic ór dia , do
pe r dã o e do a m or. Os e nsina m e ntos c ha ssídic os c ontê m e sse
pa r a doxo; sua s pa r á bola s m ostr a m um a pr of unda pie da de m or a l
c om bina da c om um a e spa ntosa a le gr ia de vive r.
A de sc r iç ã o que Fr e ud f e z do m undo e sc ur o que e nc ontr ou nã o f a z
j ustiç a à psique ; e r a um a de sc r iç ã o de m a sia do r a c iona l. Fr e ud nã o
c a ptou suf ic ie nte m e nte a pa r a doxa l lingua ge m sim bólic a a tr a vé s da
qua l a psique se m a nif e sta . Ele nã o c he gou a pe r c e be r ple na m e nte
que c a da im a ge m , c a da e xpe r iê nc ia , te m um a spe c to pr ospe c tivo be m
c om um a spe c to r e dutivo; um la do positivo be m c om o um la do
ne ga tivo. Ele nã o viu c om o suf ic ie nte c la r e za o pa r a doxo de que o
lixo a podr e c ido ta m bé m é o f e r tiliza nte , que inge nuida de ta m bé m é
inoc ê nc ia , que pe r ve r sida de polim or f a ta m bé m é a le gr ia e libe r da de
f ísic a , que o hom e m m a is f e io é ta m bé m o r e de ntor disf a r ç a do.

Em outr a s pa la vr a s, a s de sc r iç õe s da som br a f e ita s por Fr e ud e Jung


nã o sã o dua s posiç õe s distinta s e c onf lita nte s. P e lo c ontr á r io, a
posiç ã o de Jung de ve se r supe r posta à de Fr e ud, a m plia ndo- a e
a c r e sc e nta ndo- lhe um a dim e nsã o; e e ssa dim e nsã o c onside r a os
m e sm os f a tos e a s m e sm a s de sc obe r ta s, m a s m ostr a que se tr a ta de
sím bolos pa r a doxa is.

51. A narrativa da descida ao inferno

SHELDON B . KOPP
Na é poc a da P á sc oa do Ano de Nosso Se nhor Je sus Cr isto de 1300, o
poe ta f lor e ntino Da nte Alighie r i de sc e u a o I nf e r no.1

Alguns suste nta m que sua na r r a tiva é a pe na s um ve íc ulo pa r a e xpor


os m a le s soc ia is e polític os do se u te m po. Outr os insiste m que Da nte
r e pr e se nta a Hum a nida de , que a pr ópr ia vida hum a na é a j or na da e
que "o I nf e r no é a m or te que há de pr e c e de r o r e na sc im e nto".2
Ta m bé m é possíve l c onside r a r que a j or na da de Da nte oc or r e no
e spa ç o inte r ior, c om o um a de sc ida a os a bism os da sua pr ópr ia a lm a ,
m ostr a ndo que o I nf e r no é a pr ópr ia a lm a pe c a dor a .

Conc or do c om Eliot qua ndo a f ir m a que "o obj e tivo do poe ta é m ostr a r
um a visã o... [ e que ] Da nte , m a is que qua lque r outr o poe ta , c onse guiu
e la bor a r sua f ilosof ia , nã o c om o um a te or ia ... ou c om o um
c om e ntá r io ou r e f le xã o, m a s e m te r m os de a lgo pe rc e bido". 3 Ouse
a br ir se u c or a ç ã o à na r r a tiva de Da nte , e voc ê c e r ta m e nte ve r á tudo
a quilo que e le viu.

A m e io c a m inho de sua vida , Da nte , na vé spe r a da Se xta - Fe ir a Sa nta


de 1300, de sc obr e que se de sviou do Ca m inho Ce r to da vida r e ligiosa
e e m br e nhou- se na Se lva Te ne br osa do Er r o, onde pa ssa um a noite
c he ia de hor r or e s. Com o r a ia r do sol, r e na sc e m - lhe a s e spe r a nç a s e
e le te nta subir a Colina da Ale gr ia Espir itua l, m a s é pe r se guido e te m
se u c a m inho bloque a do pe la s Tr ê s Be sta s da Vida Te r r e na : a pa nte r a
da m a líc ia e da f r a ude , o le ã o da violê nc ia e da a m biç ã o, e a loba da
m e squinhe z.

Ate r r or iza do, e le volta a se e m br e nha r na Se lva e c a i no m a is


pr of undo de se spe r o. Ne sse m om e nto, ve m e m se u a uxílio o Vulto de
Virgílio, e xplic a ndo- lhe que r e pr e se nta a Ra zã o Hum a na e que f oi
e nvia do a f im de c onduzir Da nte pa r a f or a da Se lva Te ne br osa do
Er r o por um outr o c a m inho. Ele le va r á Da nte tã o longe qua nto o
pe r m ite a Ra zã o Hum a na , e de pois o e ntr e ga r á a os c uida dos de outr o
guia : Be a tr iz, a Re ve la ç ã o do Am or Divino. Virgílio c onduz e Da nte o
se gue .

E a ssim e le s inic ia m a de sc ida pa r a os a bism os, pois a pur if ic a ç ã o só


pode r á oc or r e r a tr a vé s do r e c onhe c im e nto do pe c a do. Che ga ndo à s
P or ta s do I nf e r no, Da nte lê um a insc r iç ã o gr a va da na pe dr a :

RENUNCI AI A TODA ESP ERANÇA, VÓS QUE ENTRAI S.4

Cr uza ndo a s P or ta s do I nf e r no, Virgílio e Da nte pe ne tr a m e m um a


a nte ssa la c he ia de c hor os, la m e ntos e gr itos a ltos e de se spe r a dos.
Aqui e stã o a s pr im e ir a s da s a lm a s a tor m e nta da s que Da nte ir á
e nc ontr a r. Sã o os Opor tunista s e os I ndif e r e nte s, a que le s que e m vida
nã o busc a r a m ne m o be m ne m o m a l, "que nã o e r a m le a is a De us
ne m a Sa tã , m a s a pe na s le a is a si m e sm os".5

Aqui, no I nf e r no, se u c a stigo é pe r se guir por toda a Ete r nida de um a


ba nde ir a que nã o c onse gue m a lc a nç a r ; e le s nã o c he ga m a e sta r no
I nf e r no, m a s ta m pouc o e stã o f or a de le .

Aque le s de sgraç ados, jamais nasc idos e jamais mortos, c orriam, nus,
pe rse guidos por um e nx ame de v e spas e mosc ardos que nunc a
de ix av am de os fe rre te ar.

Traziam o rosto c obe rto por sangre ntas bagas de pus e por lágrimas
que lhe s e sc orriam até os pé s, Alime ntando nause ante v é rmina.6

De vido à e sc ur idã o do pe c a do que c om e te r a m , e le s c or r ia m à s c e ga s


na e sc ur idã o. Assim c om o e m vida ha via m pe r se guido c a da
opor tunida de que se a pr e se nta r a , se u c a stigo a gor a é pe r se guir um a
ba nde ir a pa r a todo o se m pr e f ugidia , Fe r r e te a dos pe lo a guilhã o da
c onsc iê nc ia e na m or te a lim e nta ndo os ve r m e s, a ssim c om o e m vida
pr oduzir a m im undíc ie m or a l, e le s sã o punidos de a c or do c om se us
pe c a dos. Essa é a Le i da Re tr ibuiç ã o Sim bólic a , a Le i I m utá ve l do
I nf e r no, A pe na j á e stá im plíc ita e m c a da pe c a do. Volta ndo- se c ontr a
o pe c a dor, o c a stigo o f a z sof r e r da m a ne ir a que e le pr ópr io tr ouxe
pa r a si m e sm o.

Essa de sc ida a os a bism os de sua pr ópr ia a lm a é a j or na da de todo


pe r e gr ino, Na psic ote r a pia , ne nhum pa c ie nte c onse gue r e c obr a r sua
pr ópr ia be le za e inoc ê nc ia se m pr im e ir o de f r onta r- se c om a f e a lda de
e o m a l de ntr o de si m e sm o. Jung diz- nos que nã o "of e nde m os o
dia bo... c ha m a ndo- o de ne ur ose ".7 A m a ne ir a c om o vive m os, a
e xpe r iê nc ia da nossa pr ópr ia a lm a pe c a dor a , a inda é o nosso únic o
I nf e r no.

Um c la r o e xe m plo da a utotor tur a ine r e nte a o c om por ta m e nto


ne ur ótic o pode se r visto na s a titude s do pa c ie nte m a nipula dor. O
m a nipula dor luta pe lo pode r pa r a c ontr ola r outr a s pe ssoa s, pa r a nã o
pr e c isa r se ntir sua pr ópr ia im potê nc ia e pa r a c onse guir e sc a pa r do
m e do de se r m a nipula do pe los outr os. No pa ssa do, e le pr e c isou
c onf ia r nos outr os ( c om o qua ndo e r a c r ia nç a ) e isso r e sultou na
e xpe r iê nc ia de se r usa do pe los outr os, de se r volta do pa r a e sse ou
a que le c a m inho se m ne nhum a c onside r a ç ã o pe lo se u be m - e sta r ou
pe los se us se ntim e ntos. P a r e c ia - lhe que ningué m se im por ta va m uito
c om e le e , a gor a , e le nã o te m se gur a nç a suf ic ie nte a ponto de c onf ia r
que os outr os te r ã o c onside r a ç ã o por e le , a m e nos que e le pr ópr io
tom e a s r é de a s e se ponha no c ontr ole .

Agor a e le que r que os outr os o tr a te m de m odo dif e r e nte , Ma s


de sc obr e — c om o a c onte c e c om todos nós — que nã o pode m os faze r
a lgué m nos a m a r. Voc ê sim ple sm e nte r e ve la que m é e c or r e o r isc o.
Ah, sim , voc ê pode c a usa r um a im pr e ssã o a gr a dá ve l a os outr os, pode
lisonj e á - los e a gr a dá - los. Ou e ntã o intim idá - los, a m e a ç á - los e
a te r r or izá - los, Ma s voc ê nã o c onse gue , se j a pe la a dula ç ã o ou pe la
c oe r ç ã o, obr iga r o a m or. Ta lve z voc ê r e c e ba um a r e c om pe nsa por
bom c om por ta m e nto, Ma s e ntã o e sta r á c onde na do a vive r c om a que la
dolor osa se nsa ç ã o no f undo do pe ito: se a s pe ssoa s soube sse m c om o
r e a lm e nte sou, ningué m ir ia se im por ta r r e a lm e nte c om igo. Ou, se
voc ê c onse guiu a br ir o se u c a m inho tir a niza ndo os outr os, pr e c isa r á
vive r sob o te r r or de um a r e ta lia ç ã o no m om e nto e m que ba ixa r sua
gua r da a m e a ç a dor a .

Ta lve z a m a is poé tic a Re tr ibuiç ã o Sim bólic a pa r a o m a nipula dor se j a


de ixá - lo c om ple ta m e nte a be r to à s m a nipula ç õe s dos outr os. Aque la
pe ssoa que pa r e c e te r sido dom ina da pe la s nossa s lisonj a s é a pe na s
um outr o m a nipula dor ; r e c om pe nsa r- nos por nossa s "of e r e nda s" é a
sua m a ne ir a de c ontr ola r o nosso c om por ta m e nto. E a que le que se
intim ida dia nte da s nossa s a m e a ç a s e stá , c om toda c e r te za , a pe na s
e spe r a ndo o m om e nto de volta r a se pôr de pé . Sua r e ndiç ã o é
te m por á r ia e polític a , se m ne nhum a qua lida de a m or osa de c onf ia nç a
e e ntr e ga .

Com o e xe m plo, Be r tolt Br e c ht c onta a histór ia do c a m ponê s que f oi


a pa nha do no tor ve linho da inva sã o na zista . O solda do na zista c he ga à
sua c a ba na , a r r a nc a - o pa r a f or a e or de na : "De a gor a e m dia nte , e u
e stou no c om a ndo. Vou m or a r na sua c a sa . Voc ê va i m e a lim e nta r e
lustr a r m inha s bota s todos os dia s. Eu vou se r o m e str e e voc ê o
e sc r a vo. Se nã o c onc or da r, e u o m a ta r e i. Voc ê va i se subm e te r a
m im ?" Se m r e sponde r, o c a m ponê s e ntr e ga sua c a ba na e , dia a pós
dia , a lim e nta o inva sor e lustr a - lhe a s bota s. Alguns m e se s m a is ta r de ,
os e xé r c itos a lia dos de libe r ta ç ã o a tr a ve ssa m a a lde ia . Ar r a sta m o
solda do na zista pa r a f or a da c a ba na e , qua ndo e stã o pa r a le vá - lo a té
um c a m po de pr isione ir os, o c a m ponê s c a m inha a té e le , posta - se
orgulhoso à sua f r e nte e , m ir a ndo- o no f undo dos olhos, r e sponde :
"Nã o! "

As m a ior e s vítim a s dos e sc r oque s sã o se m pr e os "la dr õe s se c r e tos"


que e spe r a m obte r a lgum a c oisa a tr oc o de na da . O hum or ista W, C.
Fie lds, pr of undo c onhe c e dor da na tur e za hum a na , c ostum a va dize r : "É
im possíve l logr a r um hom e m hone sto." Só o m a nipula dor tor tuoso nã o
c onse gue r e sistir à te nta ç ã o de a c r e dita r na ilusã o de que é e le que m
e stá no c ontr ole , de que e le pode se sa ir be m .

Qua ndo c om e c e i a c linic a r, le m br o- m e de te r tr a ta do de hom e ns que


"usa va m " pr ostituta s. Ba sta va - lhe s da r a e la s a lgum dinhe ir o e podia m
c ontr olá - la s, m a nipulá - la s, pa r a que f ize sse m tudo o que e le s
que r ia m , Ele s c onse guia m que a pr ostituta nã o a pe na s e xe c uta sse o
m a la ba r ism o se xua l que e le s or de na va m c om o ta m bé m que f osse
ge ntil c om e le s, Se e sse s hom e ns nã o podia m c om pr a r a m or, pe lo
m e nos podia m a lugá - lo. As m ulhe r e s pr e c isa va m do dinhe ir o. Os
hom e ns o tinha m . As m ulhe r e s e r a m obr iga da s a se subm e te r. Os
hom e ns e r a m a r r oga nte s, supe r ior e s, c ontr ola dor e s.

Ma is ta r de , c om e c e i a tr a ta r de a lgum a s pr ostituta s e da nç a r ina s de


strip- te ase , Ela s m e de ixa r a m be m c la r o que os Zé s c om que m
ha via m lida do nã o pa ssa va m de otá r ios. Ba sta va da r- lhe s um pingo de
e xc ita ç ã o se xua l e e le s pa ga va m todo o dinhe ir o que tinha m . Os
hom e ns e r a m tã o f á c e is de se r c ontr ola dos. Sinto a gor a a tota l
inutilida de de te nta r ide ntif ic a r que m c ontr ola e que m é c ontr ola do.
Qua ndo te nto e sta be le c e r um a distinç ã o e ntr e vítim a e a ge nte da
m a nipula ç ã o, nã o c onsigo distinguir e ntr e a f a c a e o que ij o.

Da nte de sc r e ve o I nf e r no c om o um a bism o c ir c ula r, um c one que se


e str e ita de c im a pa r a ba ixo a té o c e ntr o da Te r r a . O la do inte r no é
m a r c a do por sa liê nc ia s c ir c ula r e s, os Cír c ulos da Da na ç ã o. Ao
a pr of unda r- se ne sse "r e ino da noite e te r na ",8 Da nte e Virgílio vã o
e nc ontr a ndo, e m c a da Cír c ulo, a s a lm a s c onde na da s da que le s que
c om e te r a m pe c a dos c a da ve z m a is c r ué is — e c a da gr upo de
pe c a dor e s é a tor m e nta do, por toda a Ete r nida de , c om um c a stigo
ir onic a m e nte r e la c iona do c om se u pe c a do. Os P e c a dor e s Ca r na is, os
Se nsua is, que e m vida tr a ír a m a r a zã o subm e te ndo- se a todos os
a pe tite s e a ba ndona ndo- se à f úr ia se lva ge m de sua s pa ixõe s, sã o
punidos na m e sm a m oe da : f or ç a dos a pe r m a ne c e r num Cír c ulo
pr iva do de luz e va r r ido por toda a Ete r nida de por um a inf e r na l
tor m e nta de f ur or inte nso. Os Gulosos, que se e spoj a r a m e m c om ida s
e be bida s e na da m a is pr oduzir a m se nã o sa liva e de j e tos, no I nf e r no
se e spoj a m num "la m a ç a l pútr ido"9 e nqua nto sã o la c e r a dos e
r e ta lha dos por Cé r be r o, o c r ue l c ã o de tr ê s c a be ç a s que gua r da os
por ta is dos a bism os; e sse s pe c a dor e s sã o, a gor a , la m buza dos pe la
f é tida sa liva do c ã o inf e r na l.

Os Ava r e ntos e os P r ódigos f or a m divididos e m dois gr upos r iva is,


c a da qua l a tir a ndo sobr e o outr o os Va lor e s I lusór ios da Vida Te r r e na
e e ntr e c hoc a ndo- se no c e ntr o; um e xc e sso c a stiga ndo o outr o. Na s
á gua s im unda s do P a nta na l do Estige , os Colé r ic os se dila c e r a m uns
a os outr os. Ar r e be nta ndo- se à tona do lodo, bolha s e m e rge m da s
tum ba s subm e r sa s onde e stã o c onf ina dos os Ra ivosos.

Os He r e ge s, que e m vida ne ga r a m a im or ta lida de , a que le s que


pr of e ssa r a m a doutr ina da m or te da a lm a j unto c om a do c or po,
pe r m a ne c e m pa r a todo o se m pr e e m se pulc r os a be r tos por onde
se r pe nte ia m a s c ha m a s da I r a Divina . No Rio de Sa ngue Fe r ve nte
e stã o os Assa ssinos e os Tir a nos, a que le s que e m vida se e spoj a r a m no
sa ngue a lhe io, e c om e te r a m a tos de violê nc ia c ontr a se us
se m e lha nte s. Os Apr ove ita dor e s e Se dutor e s, que usa r a m os outr os
pa r a se us pr opósitos, a gor a sã o im pe lidos pe los c hic ote s de de m ônios
c hif r udos que os f or ç a m a se guir e m f r e nte , e m r itm o a c e le r a do,
pe r pe tua m e nte , pa r a se r vir a os inf a m e s pr opósitos inf e r na is. Os
Adula dor e s pa ga m por te r a c um ula do f a lsa s lisonj a s sobr e os outr os,
se ndo obr iga dos a vive r pa r a todo o se m pr e e m "um r io de
e xc r e m e ntos, e m c loa c a ta m a nha que do m undo pa r e c ia a únic a
la tr ina ... [ pa r a se m pr e ] c obe r tos de im undíc ie s".10

Os Hipóc r ita s m a r c ha m num a pr oc issã o le nta e inte r m iná ve l. Com o


j ustiç a poé tic a , e le s e stã o c obe r tos c om m a ntos de c hum bo, dour a dos
por f or a e im e nsa m e nte pe sa dos por de ntr o. Os Fa lsá r ios e Moe de ir os
Fa lsos, que e m vida e nga na r a m os se ntidos de se us se m e lha nte s,
a gor a , c om o a de qua da puniç ã o, tê m se us pr ópr ios se ntidos f e r idos
pe la e sc ur idã o e pe la s im undíc ie s, por te r r íve is sons e c he ir os
pe stíf e r os. E a que le s que a tr a iç oa r a m a s pe ssoa s a que m e sta va m
liga dos por la ç os e spe c ia is e stã o no últim o a bism o da c ulpa , o a bism o
da s a lm a s que ne ga r a m o a m or e , por ta nto, ne ga r a m De us. Be m no
c e ntr o da Te r r a , e le s sã o obr iga dos a supor ta r o inf e r na l la go de ge lo
da pe r da do c a lor hum a no.

E no pr ópr io c e ntr o de sse la go e stá Sa tã , o Re i do I nf e r no. O ba te r de


sua s pode r osa s a sa s pr oduz o Ve nto da De pr a va ç ã o, o há lito gé lido do
m a l. Só de pois de a lc a nç a r o pr ópr io c e ntr o do Ma l, só de pois de
e nf r e nta r c a da pe c a do e ve r sua s c onse quê nc ia s, é que Da nte pode te r
e spe r a nç a de pur if ic a r sua a lm a . Só qua ndo e nf r e nta a vida c om o e la
é , pode Da nte e nc ontr a r a sa lva ç ã o.

Na te r a pia , todos os pa c ie nte s c om e ç a m pr ote sta ndo: "Eu que r o se r


bom ." Se nã o sã o bons é por que sã o "ina de qua dos", por que nã o
c onse gue m se c ontr ola r, por que sã o de m a sia do a nsiosos ou sof r e m
im pulsos inc onsc ie nte s. Se r ne ur ótic o é se r c a pa z de a gir m a l se m se
se ntir r e sponsá ve l pe lo que f a z.

O te r a pe uta de ve te nta r a j uda r o pa c ie nte a ve r que e stá e r r a do, ou


se j a , que e stá m e ntindo qua ndo diz que que r se r bom , O que e le
r e a lm e nte que r é se r m a u. A m or a lida de é um a que stã o e m pír ic a .
P ior a inda , o pa c ie nte que r se r m a u, que r te r um a de sc ulpa pa r a a sua
ir r e sponsa bilida de , que r se r c a pa z de dize r ; "Ma s e u nã o c onsigo
e vita r."

Sua únic a sa ída é ve r que a pe r e gr ina ç ã o à Cida de Ce le stia l pr e c isa


se r f e ita a tr a vé s da e str a da que c r uza o I nf e r no. Qua ndo
r e ivindic a m os o m a l e m nós m e sm os, nã o pr e c isa m os m a is te m e r que
e le oc or r a f or a do nosso c ontr ole . P or e xe m plo, um pa c ie nte c he ga
pa r a a te r a pia r e c la m a ndo que nã o se dá be m c om os outr os; a le ga ndo
que , de a lgum m odo, se m pr e diz a c oisa e r r a da e f e r e os se ntim e ntos
a lhe ios. Ale ga ndo que , no f undo, é um suj e ito de c e nte , só que te m
e sse inc ontr olá ve l pr oble m a ne ur ótic o. O que e le nã o que r sa be r é que
sua "hostilida de inc onsc ie nte " nã o é o proble ma e sim a soluç ão. Ele ,
na ve r da de , nã o é um suj e ito de c e nte que que r se r bom ; e le é um
ba sta r do que que r f e r ir os outr os e c ontinua r a pe nsa r que é um
suj e ito de c e nte . Se o te r a pe uta pude r guiá - lo a os a bism os de sua f e ia
a lm a , ta lve z a inda ha j a e spe r a nç a pa r a e le . Se e sse pe r e gr ino
c onse guir pe r c e be r c om o e le pr ópr io é r a ivoso e vinga tivo, e le pode r á
se guir a pista de sua histór ia pe ssoa l e tr a zê - la à luz — e m ve z de se r
c onde na do a r e pisá - la de m odo inc onsc ie nte . Nã o pode m os m uda r
c oisa a lgum a a r e spe ito de nós m e sm os se m a nte s a c e itá - la . Jung
suge r e que "o doe nte nã o pr e c isa a pr e nde r c om o se livr a r de sua
ne ur ose , m a s sim c om o supor tá - la . P ois a doe nç a nã o é um f a r do
supé r f luo e inse nsa to: e la é o doe nte ; o pr ópr io doe nte é o ' outr o' que
e sta m os se m pr e te nta ndo e xpulsa r ".11
Se f ugim os do m a l e m nós m e sm os, c or r e m os um sé r io r isc o. Todo o
m a l é um a vita lida de pote nc ia l que ne c e ssita de tr a nsf or m a ç ã o. Vive r
se m o pote nc ia l c r ia tivo da nossa pr ópr ia de str utivida de e quiva le a se r
um a nj inho de c a r tolina .

De m odo ge r a l, a c r e dito que todos nós som os m a is ou m e nos tã o bons


e tã o m a us qua nto os outr os, Um a m a ior c a pa c ida de pa r a o be m
( c om o a que la que e nc ontr a m os no te r a pe uta ilum ina do) c om bina - se
c om um a c a pa c ida de a m plia da pa r a o m a l a inda m a ior, Qua nto a o
pa c ie nte , "no m e lhor dos c a sos... [ e le ] de ve sa ir da a ná lise c om o e le
r e a lm e nte é , e m ha r m onia c onsigo m e sm o, ne m bom ne m m a u, m a s
c om o um hom e m ve r da de ir a m e nte é , um se r na tur a l".12

Da nte de sc e u a os Abism os do Ma l; pr e c isou pa ssa r um a te m por a da no


I nf e r no a nte s de pode r e le va r- se à ilum ina ç ã o da Luz Divina . Nã o
houve pe c a do que e le nã o tive sse e nc ontr a do de ntr o de si m e sm o. Ele
é tã o bom e tã o m a u qua nto nós. E se voc ê a c r e dita que a lguns
hom e ns sã o m e lhor e s que os outr os, e ntã o e u lhe pe rgunto, e m m e u
nom e e e m nom e de todos os outr os que a c ha m que j a m a is tive m os
um m otivo c om ple ta m e nte p u ro e m toda a nossa vida : "Me sm o que
um hom e m nã o se j a bom , por que de ve r ia se r a ba ndona do?"13

52. A barriga da baleia

JOSEPH CAM PB ELL

A ide ia de que a pa ssa ge m do por ta l m á gic o é um a tr a nsiç ã o pa r a


um a e sf e r a de r e na sc im e nto e stá sim boliza da na unive r sa l im a ge m
ute r ina da "ba r r iga da ba le ia ". O he r ói, e m ve z de c onquista r ou
c onc ilia r o pode r do por ta l m á gic o, é e ngolido pe lo de sc onhe c ido e ,
a pa r e nte m e nte , m or r e .

M ishe - Nahma, o Re i dos Pe ix e s,


proje tou- se , e m sua ira, à tona d’ água,
e sc amas re brilhando à luz do sol,
e sc anc arou a e norme mandíbula
e e ngoliu c anoa e Hiawatha.1

Os e squim ós do Estr e ito de Be hr ing c onta m a le nda do a r diloso he r ói


Ra ve n [ o Cor vo] : um dia , a o se c a r sua s r oupa s na pr a ia , e le viu um a
ba le ia na da ndo c a lm a m e nte pe r to da r e be nta ç ã o. Gr itou: "Da pr óxim a
ve z que subir pa r a r e spir a r, m inha que r ida , a br a a boc a e f e c he os
olhos." Esgue ir ou- se r á pido pa r a de ntr o de sua s r oupa s ne gr a s,
c oloc ou sua m á sc a r a ne gr a , a pa nhou a lgum a s a c ha s de le nha sob o
br a ç o e voou por sobr e a s á gua s. A ba le ia ve io à tona e , c om o e le
ha via suge r ido, a br iu a boc a e f e c hou os olhos. Ra ve n pr e c ipitou- se
pe la m a ndíbula e sc a nc a r a da e f oi- se ga rga nta a de ntr o. A ba le ia ,
e spa nta da , f e c hou de pr e ssa a boc a e m e rgulhou. Ra ve n f ic ou de ntr o
de la e olhou e m volta .2

Os zulus tê m um a le nda sobr e dua s c r ia nç a s e sua m ã e , que f or a m


e ngolida s por um e le f a nte . Qua ndo a m ã e c he gou a o e stôm a go do
e le f a nte , "viu gr a nde s f lor e sta s, la rgos r ios, pla na ltos. De um la do,
ha via m uitos r oc he dos. E m uita s pe ssoa s, que a li c onstr uír a m sua
a lde ia . E m uitos c ã e s, e m uita s c a be ç a s de ga do. Tudo isso ha via
de ntr o do e le f a nte ".3

Finn Ma c Cool, he r ói ir la ndê s, f oi e ngolido por um m onstr o de f or m a


inde f inida — c onhe c ido, no m undo c e lta , c om o p e is t, Cha pe uzinho
Ve r m e lho, a ga r otinha do c onto de f a da s a le m ã o, f oi e ngolida pe lo
lobo. O a m a do he r ói poliné sio, Ma uí, f oi e ngolido por sua ta ta r a vó,
Hine - nui- te - po. E o pa nte ã o dos de use s gr e gos, c om a únic a e xc e ç ã o
de Ze us, f oi e ngolido pe lo pa i, Cr onos.

Hé r c ule s, o he r ói gr e go, a o pa ssa r por Tr óia na sua j or na da de volta à


pá tr ia c om o c intur ã o da r a inha da s Am a zona s, f oi inf or m a do de que a
c ida de e sta va se ndo a ssola da pe lo m onstr o que P osê idon, de us do m a r,
e nvia r a c ontr a e la . A be sta vinha à te r r a e de vor a va os pa ssa nte s na
pla níc ie . O r e i a c a ba r a de a m a r r a r sua be la f ilha He síone nos
r oc he dos j unto a o m a r, c om o um sa c r if íc io pr opic ia tór io. O gr a nde
he r ói a c e itou um pr e ç o pa r a sa lvá - la . Qua ndo o m onstr o e m e rgiu a
supe r f íc ie da s á gua s e e sc a nc a r ou sua e nor m e boc a , Hé r c ule s
m e rgulhou de ntr o de sua ga rga nta , a br iu c a m inho a golpe s de e spa da
pe la sua ba r r iga e o m a tou.

A popula r ida de de sse te m a e nf a tiza o e nsina m e nto de que a pa ssa ge m


do por ta l m á gic o é um a f or m a de a utoa niquila ç ã o. Fic a e vide nte sua
se m e lha nç a c om a a ve ntur a dos Argona uta s nos r oc he dos m óve is da s
Sim ple ga da s. Ma s a qui, e m ve z de sa ir pa r a o e xte r ior e ultr a pa ssa r os
c onf ins do m undo visíve l, o he r ói va i pa r a o inte r ior de a lgo a f im de
r e na sc e r. Se u de sa pa r e c im e nto c or r e sponde à e ntr a da do de voto no
te m plo — onde se r á e stim ula do pe la le m br a nç a de que m e do que é
( ou se j a , pó e c inza s) , a m e nos que se j a im or ta l. O inte r ior do te m plo
— a ba r r iga da ba le ia — e a r e giã o c e le ste a lé m , a c im a e a ba ixo dos
c onf ins do m undo, sã o um a únic a c oisa . É por isso que os a c e ssos e
e ntr a da s dos te m plos sã o f la nque a dos e de f e ndidos por im e nsa s
gá rgula s: dr a gõe s, le õe s, m a ta dor e s de de m ônios c om a e spa da
de se m ba inha da , a nõe s r a nc or osos e tour os a la dos. Ele s sã o os
gua r diõe s do por ta l e sua f unç ã o é a f a sta r os inc a pa ze s de e nc ontr a r
os silê nc ios m a is pr of undos do inte r ior do te m plo. Sã o pe r sonif ic a ç õe s
que nos pr e pa r a m pa r a o a spe c to pe r igoso da P r e se nç a e
c or r e sponde m a os ogr os m itológic os que de lim ita m o m undo
c onve nc iona l, ou à s dua s f ile ir a s de de nte s da ba le ia . Ele s ilustr a m o
f a to de que o de voto, no m om e nto e m que e ntr a no te m plo, pa ssa por
um a m e ta m or f ose . Se u c a r á te r se c ula r f ic a no la do de f or a ; o de voto
o de spe , a ssim c om o a c obr a a ba ndona sua pe le . Um a ve z no inte r ior
do te m plo, pode - se dize r que o de voto m or r e u pa r a a dim e nsã o
te m por a l e r e tor nou a o Úte r o do Mundo, a o Um bigo do Mundo, a o
P a r a íso Te r r e str e . O signif ic a do dos gua r diõe s do te m plo nã o é
a nula do pe lo f a to de que é possíve l a qua lque r pe ssoa , e m te r m os
f ísic os, pa ssa r por e le s; pois, se o intr uso f or inc a pa z de "se ntir " o
sa ntuá r io, e le , pa r a todos os e f e itos, nã o e ntr ou no te m plo. Aque le s
que sã o inc a pa ze s de c om pr e e nde r um de us, o ve e m c om o um
de m ônio e , a ssim , se pr ote ge m de sua a pr oxim a ç ã o. Em te r m os
a le gór ic os, por ta nto, a e ntr a da no te m plo e o m e rgulho do he r ói
a tr a vé s da m a ndíbula da ba le ia sã o a ve ntur a s idê ntic a s; a m ba s
de nota m , e m lingua ge m f igur a da , o a to de c e ntr a r e r e nova r a vida .

"Cr ia tur a a lgum a ", e sc r e ve Ana nda Coom a r a swa m y , "é c a pa z de


a lc a nç a r um gr a u m a is e le va do da na tur e za se m c e ssa r de e xistir."4
De f a to, o c or po f ísic o do he r ói pode se r m a ssa c r a do, de sm e m br a do e
e spa lha do pe la te r r a ou pe los m a r e s — c om o oc or r e no m ito e gípc io
de Osír is, o sa lva dor. Osír is f oi e nc e r r a do num sa r c óf a go e a tir a do a o
Nilo por se u ir m ã o Se t;5 qua ndo r e tor nou de ntr e os m or tos, se u ir m ã o
m a is um a ve z o m a ssa c r ou, c or tou se u c or po e m qua tor ze pe da ç os e
e spa lhou- os sobr e a te r r a . Os He r óis Gê m e os dos índios na va j os
f or a m obr iga dos a ve nc e r, nã o só a s a va la nc he s de pe dr a s, c om o
ta m bé m os j unc os que lhe s r e ta lha va m a pe le , os c a c tos que os
c or ta va m e a s a r e ia s e sc a lda nte s que os suf oc a va m . O he r ói que j á
a ba ndonou o a pe go a o e go e stá e m c ondiç õe s de via j a r pe los
hor izonte s do m undo, de e ntr a r e sa ir de dr a gõe s c om ta nta f a c ilida de
qua nto um r e i a tr a ve ssa os sa lõe s de se u pa lá c io. E a í r e side se u pode r
de sa lva r ; pois sua pa ssa ge m e se u r e tor no de m onstr a m a
pe r m a nê nc ia do I nc r ia do- I m pe r e c íve l e m todos os opostos do m undo
dos f e nôm e nos, e que nã o há na da a te m e r.

E f oi a ssim que , e m todo o m undo, a que le s hom e ns que tê m por


f unç ã o tor na r visíve l na Te r r a o m isté r io da c r ia ç ã o da vida a pa r tir
da m or te do dr a gã o, r e pr e se nta r a m o gr a nde a to sim bólic o sobr e se us
pr ópr ios c or pos e e spa lha r a m sua c a r ne ( c om o o c or po de Osír is)
pa r a r e nova r o m undo. Na Fr ígia , por e xe m plo, e m honr a de Átis —
sa lva dor c r uc if ic a do e r e ssusc ita do — um pinhe ir o e r a de r r uba do no
vigé sim o se gundo dia de m a r ç o e le va do pa r a o sa ntuá r io de Cibe le , a
de usa - m ã e . Ali, c om o se f osse um c a dá ve r, e r a e nvolto e m f a ixa s de
a lgodã o e a dor na do c om gr ina lda s de viole ta s. No m e io do tr onc o
a ta va - se a e f ígie de um r a pa z. No dia se guinte tinha m luga r a s
la m e nta ç õe s c e r im onia is e soa va m a s tr om be ta s. O vigé sim o qua r to
dia de m a r ç o e r a c onhe c ido c om o o Dia do Sa ngue : o sum o sa c e r dote
e xtr a ía sa ngue de se us pr ópr ios br a ç os e o a pr e se nta va c om o
of e r e nda ; os sa c e r dote s gir a va m num a da nç a de de r vixe s a o som de
ta m bor e s, c om e ta s, f la uta s e c ím ba los a té que , a r r e ba ta dos pe lo
ê xta se , f e r ia m o c or po c om f a c a s pa r a e spa rgir c om se u sa ngue o
a lta r e o pinhe ir o; e os noviç os, im ita ndo o de us c uj a m or te e
r e ssur r e iç ã o c e le br a va m , c a str a va m - se e de sf a le c ia m .6

De ntr o de sse m e sm o e spír ito, o r e i da pr ovínc ia indic a m e r idiona l de


Quila c a r e , a o c om ple ta r- se o dé c im o se gundo a no de se u r e ina do, dia
de sole ne s f e stivida de s, f a zia c onstr uir um e str a do de m a de ir a
r e c obe r to por c or tina dos de se da . De pois do ba nho r itua lístic o num a
c iste r na , c om gr a nde c e r im onia l e a o som de m úsic a , o r e i se guia
pa r a o te m plo a f im de pr e sta r a dor a ç ã o à divinda de . De pois subia a o
e str a do e , dia nte de se u povo, tom a va vá r ia s f a c a s e xtr e m a m e nte
a f ia da s e de c e pa va o pr ópr io na r iz, a s or e lha s, os lá bios, os m e m br os
e o m á xim o possíve l de sua c a r ne . Ele ia la nç a ndo os pe da ç os de se u
c or po à sua volta a té que , de ta nto sa ngue pe r dido, se ntia que e sta va
pa r a pe r de r os se ntidos; ne sse m om e nto, sum a r ia m e nte c or ta va a
ga rga nta . 7

53. A utilidade do inútil

G ARY TOUB
Há m a is de dois m il a nos, o f ilósof o ta oísta Chua ng Tsé e sc r e ve u
vá r ia s pa r á bola s e xa lta ndo a s vir tude s dos hom e ns inúte is, f e ios e
de f or m a dos — c or c unda s, a le ij a dos e luná tic os — e da s á r vor e s
nodosa s, r e tor c ida s e se m f r utos. Um a de ssa s pa r á bola s é a se guinte :
Shih, o c a r pinte ir o, via j a va pa r a a pr ovínc ia de Chi. Ao c he ga r a Chu
Yua n, viu um c a r va lho a o la do do a lta r da vila . A á r vor e e r a gr a nde o
ba sta nte pa r a da r som br a a m uitos m ilha r e s de bois e tinha c e nte na s
de pa lm os de c ir c unf e r ê nc ia . Ele va va - se a c im a da s c olina s, c om se us
ga lhos m a is ba ixos a m a is de dois m e tr os do solo. Um a dúzia de se us
ga lhos e r a m gr a nde s o suf ic ie nte pa r a que de le s se c onstr uísse m
ba r c os. De ba ixo de la , ha via um a m ultidã o, c om o num m e r c a do. O
m e str e - c a r pinte ir o nã o voltou a c a be ç a , c ontinuou e m f r e nte se m se
de te r.

Se u a pr e ndiz la nç ou um longo olha r a o c a r va lho, de pois c or r e u a tr á s


de Shih, o c a r pinte ir o, e disse : "Me str e , de sde o dia e m que pe gue i
m e u m a c ha do e o se gui, nunc a vi m a de ir a tã o be la c om o e ssa . Ma s o
se nhor ne m se que r pa r ou pa r a olhá - la . P or quê , m e str e ?"
Shih, o c a r pinte ir o, r e sponde u: "Silê nc io! Ne m m a is um a pa la vr a !
Aque la á r vor e é inútil. Um ba r c o f e ito c om sua m a de ir a a f unda r ia ,
um c a ixã o logo a podr e c e r ia , um a f e r r a m e nta r a c ha r ia , um a por ta
e m pe na r ia e um a viga te r ia c upins. É m a de ir a se m va lor e pa r a na da
se r ve . P or isso a lc a nç ou ida de tã o a va nç a da ."

De pois que Shih, o c a r pinte ir o, voltou pa r a c a sa , o c a r va lho sa gr a do


a pa r e c e u- lhe num sonho e lhe disse : "Com que m e c om pa r a s?
Com pa r a s- m e c om a r vor e s úte is? Existe m c e r e j e ir a s, m a c ie ir a s,
pe r e ir a s, la r a nj e ir a s, lim oe ir os, tor a nj e ir a s e m uita s outr a s á r vor e s
f r utíf e r a s. Logo que se us f r utos a m a dur e c e m , e la s sã o de spoj a da s e
m a ltr a ta da s. Os ga lhos m a ior e s sã o c or ta dos, os m e nor e s a r r a nc a dos.
Sua vida é m a is a m a rga por c a usa de sua utilida de , É por isso que e la s
nã o vive m se u te m po na tur a l de vida ; sã o c or ta da s na pr im a ve r a da
vida , Ela s a tr a e m a a te nç ã o do m undo do c om um dos m or ta is. Assim
se pa ssa c om toda s a s c oisa s. Qua nto a m im , há m uito te nto se r inútil.
Qua se f ui de str uída , dive r sa s ve ze s. Fina lm e nte , sou inútil e isso é
m uito útil pa r a m im . Se e u tive sse sido útil, te r ia c onse guido c r e sc e r
ta nto a ssim ?

"Alé m disso, voc ê e e u som os a m bos c oisa s. Com o pode um a c oisa


j ulga r outr a c oisa ? O que pode um hom e m m or ta l e inútil c om o voc ê
sa be r sobr e um a á r vor e inútil?" Shih, o c a r pinte ir o, de spe r tou e te ntou
c om pr e e nde r o sonho.

Se u a pr e ndiz lhe pe rguntou: "Se a que la á r vor e tinha tã o gr a nde de se j o


de se r inútil, por que ir ia e la se r vir c om o a lta r ?"

Shih, o c a r pinte ir o, disse : "Silê nc io! Ne m m a is um a pa la vr a ! Ela e stá


a pe na s f ingindo se r inútil pa r a nã o se r f e r ida por a que le s que nã o
sa be m que e la 6 inútil. Se nã o tive sse se tr a nsf or m a do num a á r vor e
sa gr a da , e la c e r ta m e nte te r ia sido de r r uba da . Ela se pr ote ge de um a
m a ne ir a dif e r e nte da s c oisa s or diná r ia s. Nã o c onse guir e m os
c om pr e e ndê - la se a j ulga r m os do m odo or diná r io."1
Existe ta m bé m a na r r a tiva de Chua ng Tsé sobr e o c or c unda Shu que ,
a pe sa r de se u c or po e str a nho, c onse guiu c uida r be m de si m e sm o e
vive r m uitos e m uitos a nos a té m or r e r de ve lhic e .

Essa s pa r á bola s ilustr a m a im por tâ nc ia que os ta oísta s a tr ibuía m a o


a pa r e nte m e nte inútil — à que la s c oisa s que a s pe ssoa s e a soc ie da de
e vita m de vido à sua f a lta de utilida de . Ma is a inda , e la s sã o m e tá f or a s
que e nsina m o sá bio a honr a r e a té m e sm o a c ultiva r sua pr ópr ia
inutilida de ( ou qua lida de s inúte is) pa r a pode r vive r um a vida ple na e
na tur a l.

Te m a s e quiva le nte s e xiste m na a lquim ia , nos c ontos de f a da s e nos


nossos sonhos c onte m por â ne os. P or e xe m plo, os a lquim ista s a tr ibuía m
gr a nde im por tâ nc ia à obte nç ã o da prima maté ria, a substâ nc ia que
inic ia o pr oc e sso de tr a nsf or m a ç ã o; no e nta nto, a prima maté ria e r a
de sc r ita c om o ve ne no, ur ina e e xc r e m e ntos — ou se j a , substâ nc ia s
m a te r ia is inúte is, de spr e zíve is e pe r igosa s. Nos c ontos de f a da s, o
inútil é pe r sonif ic a do pe lo "a boba lha do" — um pe r sona ge m e stúpido,
pr e guiç oso e a pa r e nte m e nte de sa f or tuna do, que pa r e c e nã o te r va lor
ne nhum . Ma s na m a ior ia dos c ontos, o a boba lha do tr a nsf or m a - se no
he r ói. Esse te m a ta m bé m a pa r e c e no sim bolism o dos sonhos
c onte m por â ne os. Tom e m os, por e xe m plo, o sonho de Ca r los: Uma
moça está correndo freneticamente por uma varanda no alto de um prédio,
tentando escapar de alguém. De repente, ela tropeça, bate no parapeito e só não
cai porque consegue agarrar-se. Ela está precariamente suspensa, em grande
perigo. Então surge um homem deformado, retardado, de aspecto horrível. Sua
aparência assusta ainda mais a moça. Mas ele estende a mão e a faz subir em
segurança. Logo depois, vejo a mim mesmo num salão imenso onde está
ocorrendo uma espécie de cerimônia religiosa. De um lado do salão, vejo uma
fileira de rapazes de aspecto idêntico, bonitos e bem vestidos; eles estão de pé,
rígidos. Do outro lado, há uma fila de pessoas aleijadas e retardadas, vestindo
trapos. Elas se parecem com o homem que salvou a moça. Eu sei que preciso
escolher um grupo para fazer parte dele. Decido unir-me ao grupo dos aleijados
e, quando tomo essa decisão, eles gritam de alegria e festejam a minha escolha.

Esse sonho é e spa ntosa m e nte se m e lha nte à s na r r a tiva s ta oísta s que
louva m o inútil, um te m a a r que típic o e sse nc ia l pa r a o pr oc e sso de
individua ç ã o.

A r e lat ividade dos opost os


As pa r á bola s r e ve r e nc ia ndo o inútil e xpr e ssa m dua s c a r a c te r ístic a s
bá sic a s do pe nsa m e nto ta oísta : a r e la tivida de dos va lor e s e o pr inc ípio
da pola r ida de . O ta oísm o r e tr a ta o pr inc ípio da pola r ida de pe lo
tr a dic iona l sím bolo c hinê s do y in e do y a ng, que r e pr e se nta o la do
som br io e o la do e nsola r a do de um a m onta nha — e , por e xte nsã o, a
e xistê nc ia de todos os pa r e s de opostos. Com o os dois la dos de um a
m oe da , y in e y a ng, e sc ur o e luz, inútil e útil, sã o polos
c om ple m e nta r e s da na tur e za que nunc a pode m se r se pa r a dos. De
a c or do c om Chua ng Tsé : Aque le s que que r e m te r o c e r to se m o se u
r e c ípr oc o, o e r r a do, ou o bom gove r no se m o se u r e c ípr oc o, o
de sgove r no — e sse s nã o c om pr e e nde m os gr a nde s pr inc ípios do
unive r so ne m a s c ondiç õe s a que toda a c r ia ç ã o e stá suj e ita . De sse
m odo, a lgué m pode r ia f a la r da e xistê nc ia do c é u se m f a la r da
e xistê nc ia da te r r a , ou f a la r do pr inc ípio ne ga tivo se m f a la r do
pr inc ípio positivo — e isso, c la r o, é um a bsur do. Essa s pe ssoa s, se nã o
se r e nde m à a rgum e nta ç ã o, vã o de se r tola s ou ve lha c a s.2

Os ta oísta s pe r c e be r a m que ne nhum c onc e ito ou va lor singula r


pode r ia se r c onside r a do a bsoluto ou supe r ior. Se é be né f ic o se r útil,
e ntã o ta m bé m é be né f ic o se r inútil. A f a c ilida de c om que os opostos
pode m tr oc a r de luga r é m ostr a da na histór ia ta oísta do f a ze nde ir o
c uj o c a va lo f ugiu.

Se u vizinho ve io c om pa de c e r- se do f a ze nde ir o, m a s ouviu: "Que m


sa be o que é bom ou o que é m a u?" Er a ve r da de . No dia se guinte o
c a va lo voltou, tr a ze ndo c onsigo um a m a na da de c a va los se lva ge ns que
c onhe c e r a e m sua s a nda nç a s. O vizinho r e a pa r e c e u, de ssa ve z pa r a
c ongr a tula r- se c om o f a ze nde ir o pe lo se u golpe de sor te . E ouviu a
m e sm a obse r va ç ã o: "Que m sa be o que é bom ou o que é m a u?"
Ve r da de ta m bé m de ssa ve z; no dia se guinte o f ilho do f a ze nde ir o
te ntou m onta r um dos c a va los se lva ge ns e c a iu, que br a ndo a pe r na .
De volta ve m o vizinho, de ssa ve z c om m a is c om pa ixã o, a pe na s pa r a
ouvir pe la te r c e ir a ve z a m e sm a r e sposta : "Que m sa be o que é bom ou
o que é m a u?" E m a is um a ve z e sta va c e r to o f a ze nde ir o pois, no dia
se guinte , os solda dos surgir a m e m busc a de r e c r uta s e , por c a usa da
pe r na que br a da , o f ilho nã o f oi c onvoc a do.3

De a c or do c om os ta oísta s, y a ng e y in, luz e som br a , útil e inútil sã o


a spe c tos dif e r e nte s da tota lida de ; e , no insta nte que e sc olhe m os um
la do e bloque a m os o outr o, pe r tur ba m os o e quilíbr io da na tur e za . Se
que r e m os a lc a nç a r a tota lida de e se guir o c a m inho da na tur e za ,
pr e c isa m os busc a r o dif íc il pr oc e sso de c onte r os opostos.

Int e gr ando a sombr a

Esta ta m bé m f oi um a de sc obe r ta de Jung: a psique hum a na c onsiste


e m luz e tr e va s, e m m a sc ulino e f e m inino e e m inc ontá ve is outr a s
14
sizígia s que c oe xiste m num e sta do f lutua nte de te nsã o psíquic a .
Com o os ta oísta s, Jung a le r tou c ontr a a r e soluç ã o de ssa te nsã o a tr a vé s
da ide ntif ic a ç ã o c om um únic o polo ( por e xe m plo, te nta r a pe na s se r
pr odutivo na vida ) . Jung pe r c e be u que a va lor iza ç ã o e xc e ssiva ou o
supe r de se nvolvim e nto de qua lque r a spe c to singula r da psique é
pe r igosa m e nte unila te r a l e ge r a lm e nte r e sulta va e m doe nç a psíquic a ,
ne ur ose e psic ose . A a lte r na tiva r e c om e nda da por Jung e r a c onf r onta r
os opostos de ntr o de nós m e sm os — a c ondiç ã o sine qua non do
pr oc e sso de individua ç ã o.

Um dos pr inc ipa is c a m inhos pa r a inte gr a r nossos opostos inte r ior e s é


o c onf r onto c onsc ie nte c om a som br a — a pa r te "e sc ur a " da
pe r sona lida de que c onté m a s qua lida de s e a tr ibutos inde se j á ve is que
nos r e c usa m os a "a ssum ir ". Enf r e nta r e a ssum ir e sse s a tr ibutos é um
pr oc e sso dif íc il e dolor oso; isso por que a som br a , e m bor a possa
c onte r e le m e ntos positivos da pe r sona lida de , c onsiste
f unda m e nta lm e nte da s nossa s inf e r ior ida de s — os a spe c tos pr im itivos,
ina da pta dos e inc onve nie nte s da nossa na tur e za que r e pr im im os
de vido a c onside r a ç õe s m or a is, e sté tic a s e soc ioc ultur a is.

Já que ge r a lm e nte e vista c om o de spr e zíve l, vil e inútil, a som br a


c or r e sponde à s im a ge ns ta oísta s da á r vor e r e tor c ida e do f e io
c or c unda . Com o a som br a , ne m um a ne m outr o pa r e c e m te r ne nhum
va lor. P or ta nto, pode r ía m os dize r que e xiste , de ntr o de c a da um de
nós, um a á r vor e r e tor c ida ou um Shu c or c unda .

O e r r ado é c e r t o
Alé m de de sva lor iza r a s c a r a c te r ístic a s da nossa som br a , te nde m os a
ve r nossos pr oble m a s f ísic os e e m oc iona is c om o inúte is. De te sta m os
a quilo que e stá e r r a do c onosc o, se j a um a le ve dor de c a be ç a ou
e stôm a go e m br ulha do, se j a um sé r io c a so de c â nc e r ou de pr e ssã o.
Nã o da m os va lor à s nossa s doe nç a s. Ela s se inte r põe m no nosso
c a m inho e te nta m os e lim iná - la s.

Essa a titude e m r e la ç ã o à doe nç a é um a a titude r e dutiva c a usa i que


r e f le te o m ode lo m é dic o do Oc ide nte . Esse m ode lo pr e sum e que um a
doe nç a é m á ou e r r a da e que , um a ve z r e m ovida sua c a usa , o
pa c ie nte se r e c upe r a r á . Em bor a e ssa a bor da ge m f a c ilite a c ur a , sua
a m pla a plic a ç ã o na c ultur a oc ide nta l c r ia um a a titude
f unda m e nta lm e nte ne ga tiva e m r e la ç ã o a os sintom a s e à s doe nç a s —
a titude e ssa que c or r e sponde a os se ntim e ntos inic ia is do c a r pinte ir o de
Chua ng Tsé e m r e la ç ã o à ve lha á r vor e r e tor c ida .

As pa r á bola s de Chua ng Tsé of e r e c e m - nos um outr o c a m inho pa r a o


e xa m e dos nossos pr oble m a s. Assim c om o o c or c unda a le ij a do e a
á r vor e r e tor c ida se be ne f ic ia m de sua c ondiç ã o, nós pode m os
e nc ontr a r a lgum be m na s nossa s doe nç a s. Na ve r da de , a quilo que e stá
e r r a do c onosc o e m ge r a l e stá a bsoluta m e nte c e r to no se ntido de nos
tr a ze r um signif ic a do ou se r vir a a lgum pr opósito invisíve l.

A e xistê nc ia de a lgo positivo e m nossos sintom a s e pr oble m a s é


f unda m e nta l pa r a a psic ologia f ina lístic a de Jung. A pr oposta de Jung
é a de que nã o de ve m os e nc a r a r nossa s doe nç a s a pe na s de um a
m a ne ir a r e dutiva c a usa i, m a s ta m bé m busc a r sua dir e ç ã o e se u
signif ic a do. De a c or do c om Jung, nossos sintom a s e c om ple xos
ne ur ótic os sã o a r r a nj os e la bor a dos, tr a ç a dos pe lo inc onsc ie nte c om o
pa r te de um a nse io por a utor r e a liza ç ã o. Em Two Essay s on Analy tic at
Psy c hology [ Dois Ensa ios de P sic ologia Ana lític a ] , Jung e sc r e ve u: Eu
m e sm o c onhe c i m a is de um a pe ssoa que de via toda a sua utilida de e
r a zã o de se r a um a ne ur ose , a qua l... forç ou e ssa s pe ssoa s a um m odo
de vida que de se nvolve u sua s va liosa s pote nc ia lida de s.4

O vínc ulo e ntr e a doe nç a e a a utor r e a liza ç ã o f oi de se nvolvido a inda


m a is no livr o de 1970 de Esthe r Ha r ding, The Value and M e aning of
D e p re s s io n [ O Va lor e o Signif ic a do da De pr e ssã o] , onde e la
de m onstr a que os e sta dos de pr e ssivos sã o, e m ge r a l, te nta tiva s
c r ia tiva s do Se lf pa r a im pe lir- nos a um a c om unic a ç ã o m a is pr of unda
c om a nossa tota lida de . Ar nold Minde ll a c ha que isso ta m bé m se
a plic a a os sintom a s som á tic os. Num a r tigo public a do e m Quadrant,
e le a f ir m ou: Qua nto m a is tr a ba lho c om o c or po, m a nte ndo m inha s
hipóte se s num e sta do de suspe nsã o te m por á r ia , m a is a pr e c io e
c om pr e e ndo um a "doe nç a " qua lque r. Qua ndo um a f ilosof ia f ina lístic a
c om bina da c om a c la r a obse r va ç ã o vie r a substituir a s te r a pia s
c a usa is e os m e dos ba se a dos na ignor â nc ia , o c or po de ixa r á de se r
visto c om o um de m ônio doe nte ou ir r a c iona l — o c or po se r á visto
c om o um pr oc e sso, c om sua pr ópr ia lógic a e sua sa be dor ia inte r ior.5

Na s nossa s ne ur ose s e doe nç a s f ísic a s, e stã o e nc a ixa dos va lor e s e


pa dr õe s inc onsc ie nte s e sse nc ia is pa r a a tota lida de . P a r a pode r m os
de sc obr ir se u signif ic a do, pr e c isa m os nos a lia r à s nossa s doe nç a s. I sso
que r dize r que de ve m os pr e sta r a m a is c uida dosa a te nç ã o a os
sintom a s, se m f or m ula r hipóte se s a priori ou te nta r m udá - los. Um
a spe c to f unda m e nta l de ssa a bor da ge m é a ide ia de que o que e stá
a c onte c e ndo é c e r to, de a lgum m odo, e de ve m os a j udá - lo.

Minde ll c om pa r a e sse c a m inho ( o tr a ba lho sobr e os sintom a s e


pr oble m a s) à o p u s a lquím ic a , que c om e ç a c om um c or po im pur o e
inc om ple to ne c e ssita do de tr a nsf or m a ç ã o. O "c or po im pur o", ou prima
m a t é r i a , é e quiva le nte à s nossa s dor e s, distúr bios e pr oble m a s
c otidia nos que pr e c isa m se r a lquim ic a m e nle c ozidos e tr a nsf or m a dos
pa r a que se u signif ic a do se r e ve le . Esse pr oc e sso de c oc ç ã o e nvolve o
"a que c im e nto" da quilo que j á e stá a c onte c e ndo, a tr a vé s de um a
inte nsa f oc a ge m e a m plif ic a ç ã o. Os e xe m plos a se guir ilustr a m c om o
e sse pr oc e sso f unc iona na pr á tic a .

Inut ilidade e individualidade

Alé m de nos e nsina r a va lor iza r nossa s doe nç a s, a s pa r á bola s de


Chua ng Tsé nos dize m que , pa r a de se nvolve r nosso ple no pote nc ia l,
pr e c isa m os nos tor na r inúte is pa r a o m undo. Ca so c ontr á r io,
vive r e m os vida s a m a rga s e insa tisf e ita s, m a ltr a ta dos e de spoj a dos de
pa r te s pr e c iosa s da nossa pe r sona lida de . A se u m odo e xa ge r a do,
Chua ng Tsé e stá nos dize ndo pa r a vive r m os c om o se r e s individua is.

Jung ta m bé m e nf a tizou a im por tâ nc ia de vive r m os a singula r ida de da


nossa vida . O e le m e nto- c ha ve no pr oc e sso de individua ç ã o é o
de se nvolvim e nto da pe r sona lida de pr ópr ia e nqua nto oposta à vida na
c ole tivida de . Jung se ntia um a inquie ta ç ã o e spe c íf ic a a r e spe ito da
situa ç ã o c r ític a do indivíduo na soc ie da de m ode r na ; pois obse r vou
que , no insta nte e m que o indivíduo se a ssoc ia à m a ssa , sua
singula r ida de é dim inuída e obsc ur e c ida . Com o Jola nde Ja c obi indic ou
e m The Way of lndiv iduation [ O Ca m inho da I ndividua ç ã o] : E
de m a sia do gr a nde o núm e r o de pe ssoa s que nã o vive m sua s pr ópr ia s
vida s e ge r a lm e nte qua se na da c onhe c e m de sua ve r da de ir a na tur e za .
Ela s f a ze m um e sf or ç o viole nto pa r a "se a da pta r ", pa r a nã o se
dif e r e nc ia r de ne nhum m odo, pa r a f a ze r e xa ta m e nte a quilo que a s
opiniõe s, r e gr a s, r e gula m e ntos e há bitos do a m bie nte e xige m c om o
se ndo "o c e r to", Ela s sã o e sc r a va s "da quilo que os outr os pe nsa m ",
"da quilo que os outr os f a ze m ", e tc . 6

E é isso que oc or r e , c a da ve z m a is, qua nto m a is te nta m os vive r c om o


m e m br os m é dios da soc ie da de — c a sa ndo, te ndo f ilhos, nos
e sta be le c e ndo e m um a pr of issã o e stá ve l e a ssim por dia nte . Essa s
nor m a s sã o f a ta is, e m e spe c ia l pa r a a que le s c uj os pa dr õe s inte r ior e s
se de svia m tr e m e nda m e nte da m é dia , c om o os a r tista s, os gê nios, os
pa dr e s e a s f r e ir a s.

Qua nto m a is nos a linha m os c om os nossos pr ópr ios c a m inhos


individua is, m e nos som os c a pa ze s de vive r e str ita m e nte se gundo a s
nor m a s e va lor e s c ole tivos. P a r a r e a liza r a nossa tota lida de , é pr e c iso
que nos libe r te m os dos suge stiona m e ntos da psique c ole tiva e do
m undo à nossa volta e que e ste j a m os dispostos a pa r e c e r inúte is ou
e stúpidos. Na s pa la vr a s de La o Tsé : Qua ndo o sá bio supe r ior ouve
f a la r do Ca m inho,

e le O pe rc orre c om muita sinc e ridade .


Quando o sábio me diano ouv e falar do Caminho,
às v e ze s O se gue , às v e ze s O e sque c e .
Quando o sábio infe rior ouv e falar do Caminho,
e le dá sonoras gargalhadas.
E se e le não de r sonoras gargalhadas,
e sse não se ria o Caminho,
( Logo, se busc as o Caminho,
se gue o som das gargalhadas! ) 7

Lie h Tsé le vou a inda m a is longe a ide ia de se r inútil, suge r indo que
nos a bste nha m os de sa c r if ic a r a té m e sm o um únic o f io de c a be lo e m
be ne f íc io do m undo. Só a ssim o m undo e sta r ia e m or de m . I sso, m a is
um a ve z, é um e xa ge r o; Lie h Tsé nã o quis dize r que de ve m os
a ba ndona r o m undo e nos tor na r e r e m ita s. O ve r da de ir o sá bio te m
c om o m e ta se guir sua pr ópr ia na tur e za no m undo. Na s pa la vr a s de
Chua ng Tsé : Só o hom e m pe r f e ito pode tr a nsc e nde r os lim ite s do
hum a no e , a inda a ssim , nã o se r e tir a r do m undo; vive de a c or do c om
a hum a nida de e , a inda a ssim , nã o pr e j udic a r a si m e sm o. Dos
e nsina m e ntos do m undo, e le na da a pr e nde . Ele possui a quilo que o
tor na inde pe nde nte dos outr os.8

Em outr a s pa la vr a s, de ve m os te r c om o m e ta nos tor na r m os nós


m e sm os e tr a ze r m os pa r a o m undo aquilo que somos.

54. Trabalhando com os sonhos femininos

KAREN SIG NELL

"Que m c onhe c e o mal que e spre ita no c oraç ão dos home ns? O Sombra
o c onhe c e ." A f r a se de a be r tur a do popula r pr ogr a m a da r á dio nor te -
a m e r ic a na dos a nos 40, "O Som br a ", e nc e r r a um f undo de ve r da de .
Oc a siona lm e nte vislum br a m os, à e spr e ita nos c a ntos e sc ur os da nossa
pe r c e pç ã o c onsc ie nte , a lguns m isté r ios que sã o pa r te da c ondiç ã o
hum a na . Ve m os e se ntim os a lgum a s c oisa s, soc ia lm e nte ina c e itá ve is,
que te r ía m os pr e f e r ido nã o r e c onhe c e r ne m e xpe r im e nta r. Em ge r a l,
o te r m o "som br a " r e f e r e - se à que la s qua lida de s ne ga tiva s, a toda s a s
c oisa s r uins que nã o se a j usta m a nossa im a ge m c onsc ie nte de nós
m e sm os e que ba nim os da luz da c onsc iê nc ia do e go.

Na sua vida c otidia na , voc ê pode c a pta r um a f uga z pe r c e pç ã o da


e xistê nc ia da sua pr ópr ia som br a qua ndo f oge de c e r tos a ssuntos ou
qua ndo se nte um a va ga se nsa ç ã o de c ulpa , dúvida s a r e spe ito de si
m e sm a , de sc onte nta m e nto ou disc ór dia . Voc ê pode , subita m e nte ,
pe r c e be r va ga s a nsie da de s e se ntim e ntos na que le r ubor de e m ba r a ç o,
na que la inc onve nie nte r isa dinha ne r vosa , na que la e xplosã o de
lá gr im a s, na que la la ba r e da de r a iva . Qua ndo um sonho põe a nu sua
som br a , voc ê pr e c isa te r suf ic ie nte f ir m e za m e nta l pa r a pode r ve nc e r
sua s pr ópr ia s r e sistê nc ia s a f im de c om pr e e nde r a m e nsa ge m de sse
sonho e a c e itá - la no se u c or a ç ã o. Essa é um a e xpe r iê nc ia hum ilha nte
— m a s ta m bé m pode c ur á - la e lhe da r inte gr ida de .

O pr im e ir o sonho m ostr a a utilida de de e nc ontr a r sua pr ópr ia som br a


pe ssoa l; pois, a o a dm itir o se u la do e sc ur o, voc ê pode tom a r m a is
c uida do c onsigo m e sm a e c om os outr os.

Um Rato numa Ratoe ira. Sinto um c he ir o r uim , É um r a to, ou um


c a m undongo, na m inha c ozinha , pr e so na r a toe ir a m a s a inda vivo,
a inda se de ba te ndo. Eu o m a to ou j ogo f or a . De a lgum m odo, dou um
j e ito ne le .

P e g, a m oç a que te ve e sse sonho, pe rguntou a si m e sm a : O que é o


me u r a to — a m inha som br a ? Ra tos sã o ga tunos, e goísta s e f ur tivos. A
pr im e ir a a ssoc ia ç ã o de P e g r e la c ionou- se c om o se u a ntigo na m or a do
e c om o a lívio que e la se ntiu qua ndo soube que e le nã o vir ia à c ida de
c onf or m e pla ne j a r a . De súbito oc or r e u a P e g... e r a a r a toe ir a na qua l
e la se de ixa r a pr e nde r. Em níve l inc onsc ie nte , P e g pla ne j a r a f a ze r
se xo c om e le , e m bor a e stive sse a tua lm e nte e nvolvida num
r e la c iona m e nto m onogâ m ic o c om outr a pe ssoa . Com isso, P e g ha via
r e ve la do a som br a do pa dr ã o duplo que m uita s pe ssoa s possue m a
r e spe ito de se us e nvolvim e ntos a m or osos: tudo pa r e c e tã o inoc e nte e
c om pr e e nsíve l qua ndo e u "tr a io" o m e u pa r c e ir o... e tã o hor r íve l
qua ndo o m e u pa r c e ir o m e "tr a i"! O sonho de P e g c or r igiu e sse
pa dr ã o duplo e disse lhe que e la se r ia um "r a to suj o" se tr a ísse se u
pa r c e ir o a tua l. Assim , a se nsa ç ã o de "r a to na r a toe ir a " ge r a lm e nte
indic a a som br a e m voc ê m e sm a ou e m um a outr a pe ssoa .

Os sonhos tê m inúm e r os signif ic a dos, c om o a s c a m a da s de um a


c e bola ; e todos e le s ve r da de ir os. Voc ê ta lve z se pe rgunte por que o
r a to se de ba tia na r a toe ir a , por que pr e c isa va se r m or to e por que f oi
e nc ontr a do na c ozinha — o luga r onde tom a m os o nosso a lim e nto. P e g
sof r ia , j á há a lgum te m po, de um r e sina do pe r siste nte ; ta lve z o sonho
pude sse lhe dize r o que e sta va e r r a do na sua vida a tua l. Se r ia e sse
sonho um a m e tá f or a poé tic a pa r a o a tua l r e la c iona m e nto de P e g? Ela
pe r c e be u que , na ve r da de , e sta va há a lgum te m po a se de ba te r num a
r a toe ir a ; pe r c e be u ta m bé m que , m a is c e do ou m a is ta r de , pr e c isa r ia
c onve nc e r- se a c om e te r o a to im pla c á ve l — m a s m ise r ic or dioso — de
te r m ina r e sse r e la c iona m e nto. No níve l inc onsc ie nte , e la se ntir a o
de se j o de "tr a ir " por c a usa da r a iva e da insa tisf a ç ã o que o a tua l
pa r c e ir o pr ovoc a va ne la . I sso e r a a lgo que P e g sabia e , a inda a ssim ,
não sa bia . O f or te c onte údo im a gé tic o do sonho tr ouxe isso tudo pa r a
o f oc o c or r e to.

Me sm o que a som br a tr a ga pe r c e pç õe s inde se j á ve is — que nã o som os


tã o pe r f e ita s c om o pe nsa m os se r —, o f a to de e nc ontr á - la ge r a lm e nte
libe r a um a im e nsa qua ntida de de e ne rgia que e sta va r e pr im ida no
inc onsc ie nte . Nos sonhos que te ve a se guir, P e g da nç ou nos pr a dos
r ode a da por be la s pla nta s e m ple na f lor a ç ã o. E, se m dúvida , o
tr a ba lho sobr e a que le sonho — tor na ndo sua som br a m a is c onsc ie nte
— c ontr ibuiu pa r a que se u r e sf r ia do logo f osse c ur a do.

Qua ndo um sonho f a z a nossa som br a e m e rgir ou qua ndo um a m igo


nos m ostr a um de f e ito, nosso im pulso na tur a l é ne ga r e nos de f e nde r
( "Or a , e u nã o sou tã o r uim a ssim ! ” ) , ou a pe na s da s de om br os ( “ Bom ,
é a ssim que e u sou, e da í?” ) ou, se nã o, r e spir a r f undo e te nta r se r
m e lhor do que r e a lm e nte som os. Tudo isso é um e r r o. A som br a
pr e c isa se r r e c onhe c ida e ga nha r se u luga r. Voc ê pr e c isa c onvidá - la
— e sse hóspe de dúbio — pa r a a sua m e sa de j a nta r, c ivilizá - la do
m e lhor m odo que pude r e e xa m ina r tudo a quilo que e la te m a lhe
of e r e c e r. Voc ê nã o pode de ixá - la a r m a ndo e sc â nda los do la do de f or a
da por ta ; nã o pode de ixá - la a nda ndo f ur tiva , c a usa ndo pr oble m a s na
sua vida .

Nossa inte nsa e pr olonga da e xpe r iê nc ia na f a m ília — c om todos os


se us m e m br os c om pe tindo por a te nç ã o e pode r, c om sua s a lia nç a s,
se gr e dos e r e sse ntim e ntos — te m um e f e ito pr of undo sobr e nossa s
e xpe c ta tiva s a r e spe ito de nós m e sm os e da s outr a s pe ssoa s na
soc ie da de . Tr a ta - se , e m ge r a l, de e xpe c ta tiva s inc onsc ie nte s
c om pa r tilha da s pe la f a m ília ; pode m os, por ta nto, f a la r de um
"inc onsc ie nte f a m ilia r " e de um a "som br a f a m ilia r ". Algum a s da s
m a is f or te s se nsa ç õe s da som br a se r e ve la m na s nossa s r e la ç õe s c om
nossos ir m ã os e ir m ã s. P or e xe m plo, c onstr uím os, e m níve l
inc onsc ie nte , um c e r to dir e ito ine r e nte à posiç ã o ( se j a e la be né f ic a ou
de sf a vor á ve l) que oc upa m os na nossa f a m ília ; e e spe r a m os oc upa r
um a posiç ã o se m e lha nte e m outr os a m bie nte s soc ia is. De ixa m o- nos
gove r na r por e ssa s e xpe c ta tiva s, inc onsc ie nte m e nte , por que e la s sã o
f a m ilia r e s.

Os sonhos pode m r e ve la r posiç õe s e a titude s inc onsc ie nte s; e m


pa r tic ula r, a que la s típic a s da or de m que se e sta be le c e e ntr e os f ilhos
de um a f a m ília ; o pr im ogê nito, o do m e io, o c a ç ula , o f ilho únic o, o
ir m ã o gê m e o.

Com o e xe m plo c a r a c te r ístic o, o f ilho m a is ve lho e stá e m posiç ã o de


tr a ze r c onsigo um a f or te inve j a . O m undo m uda pa r a o pr im ogê nito;
e le pa ssa a se ntir- se inj usta m e nte de sloc a do pe los ir m ã os m a is novos,
que pa r e c e m a pode r a r- se de um a pa r te da quilo que e le c onside r a va
c a be r- lhe de ple no dir e ito — o bolo todo. Essa e xpe r iê nc ia c ontr a sta
c om a dos ir m ã os m a is novos; e le s na sc e r a m num m undo onde os
outr os j á e xistia m — c a da um de le s e spe r a a pe na s um a f a tia do bolo.
Em ge r a l, os pa is or de na m que o pr im ogê nito r e pr im a se us
se ntim e ntos ne ga tivos por que os outr os sã o m a is novos que e le . Essa é
um a situa ç ã o c lá ssic a pa r a o pr oble m a da som br a do c iúm e , que e le
pr e c isa r á de te c ta r m a is ta r de .

Às ve ze s a som br a e stá tã o dista nte da c onsc iê nc ia e é tã o a ssusta dor a


que a por ta nã o pode r á se r a be r ta a té que a pe ssoa e ste j a pr onta pa r a
e nf r e ntá - la , Voc ê pode e sta r a br indo a por ta pa r a todo o pâ nta no do
inc onsc ie nte e se r á subm e rgida pe la a nsie da de a r que típic a . Num a
m a r é de e ntusia sm o ( c om o oc or r e nos c ur sos) , voc ê pode r á se r
a r r a sta da pa r a um "va m os pôr tudo a nu e , qua nto m a is pr of undo,
m e lhor "; m a s sua ve r da de ir a vulne r a bilida de pr e c isa se r le va da e m
c onta .

"Ma is pr of undo" ne m se m pr e é m e lhor. Af ina l de c onta s, a s de f e sa s


se r ve m a um pr opósito. Se voc ê , na sua c ur iosida de , a r r a nc a r a c a sc a
de um a f e r ida c e do de m a is, f ic a r á c om um a f e r ida e xposta , O
pr oc e sso na tur a l de c ur a le va te m po, Qua ndo voc ê tive r de se nvolvido
um a "ba nda ge m " pr ote tor a pa r a um a f e r ida pr of unda , e ntã o pode r á
olhá - la c om se gur a nç a .

Um a m ulhe r, Ca r oly n, te ve e ste sonho:

Fantasmas. É c om o e sta r se nta da na pla te ia a ssistindo a um f ilm e . A


c e na se pa ssa num a pr a ia , à noite . Te m um a c r ia nç a m á , sa ngue por
toda pa r te , c or pos r e ta lha dos.

Estou se nta da pe r to de um a por ta a be r ta — a por ta de um a r m á r io —,


e m e a pr e sso a f e c há - la e pa ssa r a c ha ve . Ma s há um a m oç a ,
c ha m a da Ve rité , que e stá se nta da a o m e u la do e que r que e u a br a de
novo a por ta . Disc utim os. P r e c iso tr a va r um a luta c or por a l c om e la
pa r a m a nte r a por ta f e c ha da a c ha ve . De pois f a ze m os a s pa ze s e nos
a br a ç a m os.

Um a voz diz, "Voc ê e stá luta ndo pa r a c onse r va r um se gr e do sobr e


um a m ulhe r ". As pe ssoa s c he ga m à pr a ia . Ali há m or tos, zum bis, que
nos e nc a r a m de um m odo a m e a ç a dor. Atir o sobr e os zum bis um
líquido e spe sso que a ne ste sia a lguns de le s. Ma s os outr os, que nã o
c onsigo a tingir c om a que le líquido, ou f oge m ou c ontinua m a nos
a m e a ç a r ; pa r a e sse s, pr e c iso de a lgum a outr a a r m a .

O pr im e ir o pe nsa m e nto de Ca r oly n f oi que e la pr ópr ia e r a a "c r ia nç a


m á ". Le m br ou- se de outr o sonho, um m ê s a nte s:

[ Sonho a nte r ior ] M amãe não Le mbra de Coisas De sagradáv e is. Minha
m ã e e stá a ssistindo a um f ilm e de te r r or e de svia o r osto, dize ndo
"Nã o le m br o de c oisa s de sa gr a dá ve is". Ma s sua f ilha , obse r va ndo- a ,
sa be que a mãe le mbra! É c om o se a m ba s, m ã e e f ilha , tive sse m um a
va ga le m br a nç a de c oisa s te r r íve is que a c onte c e r a m nos pr im e ir os
a nos de vida da f ilha .

É a ssim que um a c r ia nç a c a pta a pr oj e ç ã o do m a l a r que típic o,


Qua ndo e xiste um se gr e do e sc ur o na f a m ília , um a c r ia nç a se se nte
e r r a da — se nte - se c om o a "c r ia nç a m á ", Ca r oly n disse : "Qua ndo
c om e ç o a pe ga r no sono à noite , os f a nta sm a s a pa r e c e m ."

Qua l é o se gr e do? O sonho dos Fantasmas of e r e c e a lgum a s pista s, A


luta c om Ve r ité ( a "Ve r da de ") — pa r a m a nte r f e c ha da a por ta que
gua r da um te r r íve l se gr e do sobr e um a m ulhe r — pa r e c ia a Ca r oly n,
na é poc a , r e pr e se nta r sua ne c e ssida de inc onsc ie nte de c ontinua r
a c r e dita ndo que sua m ã e e r a boa , pa r a que e la pude sse gua r da r na
m e m ór ia um a "boa m ã e " e se ntir- se se gur a . Na r e a lida de e xte r ior, e la
c ontinua va a obe de c e r a pr oibiç ã o de sua m ã e de nã o f a la r sobr e
c e r tos a ssuntos, m a nte ndo inta c to o "inc onsc ie nte f a m ilia r " — ne sse
c a so, a c a pa c ida de de m a ltr a ta r um a c r ia nç a . Ve r ité luta va pa r a f a ze r
Ca r oly n r e ve la r a ve r da de , m a s Ca r oly n a inda nã o e sta va pr onta .

O que se r ia a que le líquido a ne ste sia nte ? Ca r oly n disse que de via se r
á lc ool, pois e la c ostum a be be r c e r ve j a ou vinho pa r a r e la xa r, Ma s,
a ssim c om o no sonho, o á lc ool só f unc iona de ve z e m qua ndo pa r a
dissipa r a s im a ge ns ( os f a nta sm a s) que a a te r r or iza r a m dur a nte toda a
sua vida . Com o f oi na r r a do no sonho, ne m todos os f a nta sm a s podia m
se r a ne ste sia dos, ou se j a , pe r m a ne c e r no inc onsc ie nte . A ve r da de é
inquie ta , os f a nta sm a s sã o inquie tos; e le s que r e m se r e ve la r pa r a ,
de pois, r e pousa r.

Já que Ve r ité ( a "Ve r da de ") nã o ga nhou a luta no sonho, Ca r oly n nã o


te ntou de sc obr ir m a ior e s de ta lhe s na que la é poc a , Ela nã o e sta va
pr onta . Anos m a is ta r de , qua ndo c onse guiu e nc a r a r a ve r da de ,
Ca r oly n de sc obr iu que f or a f isic a m e nte m a ltr a ta da pe la m ã e qua ndo
a inda e r a um be bê ; que f or a se xua lm e nte m ole sta da pe lo pa i qua ndo
tinha uns qua tr o a nos de ida de ; e que pr ova ve lm e nte e xpe r im e nta r a
e sse s inc ide nte s "c om o no c ine m a ", num e sta do de tr a nse ou num
e sta do dissoc ia do, c om o ge r a lm e nte oc or r e c om a s c r ia nç a s m e nor e s
de c inc o a nos. Os "zum bis" no sonho e r a m a s im a ge ns que a Ca r oly n
c r ia nç a r e tive r a dos pa is. Sua m ã e tom a va tr a nquiliza nte s na que la
é poc a e pa r e c ia e str a nha m e nte a use nte , c om o um zum bi; m a s, à s
ve ze s, m ostr a va um a súbita inte nsida de , c om o se f ustiga da por um a
r a iva inc onsc ie nte . Se u pa i, a o m ole stá - la , nã o se pa r e c e i a o se u e u
ha bitua l; m ostr a r a - se e str a nha m e nte de sliga do e ir r e a l — o m a is
pr ová ve l é que e stive sse , e le pr ópr io, e m a lgum e sta do c om pulsivo
inc onsc ie nte , ta lve z a té r e vive ndo a lgum a buso de que ha via sido
vítim a qua ndo pe que no.
E c om o o sonho se a plic a va à vida de Ca r oly n na é poc a e m que o
te ve ? P or que o sonho surgiu na que le m om e nto de sua vida ? Ca r oly n
pe rguntou a si m e sm a se a sua som br a — que e la tinha m e do de
de ixa r sa ir do "a r m á r io", ne sse m om e nto da sua vida — se r ia o se u
le sbia nism o. Ela se ntia gr a nde a nsie da de a r e spe ito de sua opç ã o
se xua l. A luta de Ca r oly n c om Ve r ité ( c uj o m otivo é pe r m itir ou
im pe dir que e ssa ve r da de se tor ne c onhe c ida ) , na vida r e a l
c e r ta m e nte tr ouxe à tona o pr of undo e spe c tr o inte r ior de um a som br a
a r que típic a a inda m a is a ssusta dor a — que f or a pr oj e ta da sobr e
Ca r oly n e nqua nto be bê f isic a m e nte m a ltr a ta do e c r ia nc inha
se xua lm e nte m ole sta da — e sua pr im e ir a im a ge m de si m e sm a c om o
um a "c r ia nç a m á ", Nã o nos c a usa e spa nto que Ca r oly n luta sse c om
Ve r ité no sonho! E m e nos a inda nos e spa nta que Ca r oly n se
a te r r or iza sse à ide ia de "sa ir do a r m á r io" sob a f or m a de um a lé sbic a ;
pois qua lque r c onde na ç ã o c ultur a l ir ia a tingir e m c he io sua s
pr of unda s f e r ida s pe ssoa is e a r que típic a s.

Ca r oly n r e spe itou o que e sta va im plíc ito no sonho: e la e sta va , na que le
m om e nto, a nsiosa de m a is pa r a pode r e xplor a r a na tur e za e xa ta de
sua s f e r ida s pr im itiva s e c ur á - la s; e sta va a nsiosa de m a is pa r a pode r
a ssum ir a be r ta m e nte sua opç ã o de vida . P r im e ir o, se r ia pr e c iso que
e la dif e r e nc ia sse e ntr e se us m e dos r e a is e se us m e dos a r que típic os.
Ca r oly n disse que sof r ia m uita pr e ssã o da pa r te de si m e sm a e dos
outr os pa r a se a ssum ir a be r ta m e nte , m a s c om e ntou: "Aque le s que se
se nte m invulne r á ve is nã o c onhe c e m a c r ue lda de ." E, a ssim , e la
pr e c isa va c ontinua r a se guir a e str a da por m a is a lgum te m po, a o la do
de sua "boa m ã e " que c ontinua va a nã o que r e r ouvir c oisa s
de sa gr a dá ve is, a nte s de e sta r e m c ondiç õe s de e nf r e nta r a ve r da de
c r ue l dos pr im e ir os a nos de sua e xistê nc ia e de f a ze r f r e nte a toda s
r e a ç õe s a o se u e stilo de vida que pode r ia e spe r a r no m undo de hoj e ,
c om sua va r ie da de de r e j e iç ã o e a c e ita ç ã o.

Em todos e sse s sonhos, a br ir a por ta pa r a a sua pr ópr ia som br a


ne ga tiva , por m a is a ssusta dor a e hum ilha nte que e la possa pa r e c e r —
c onhe c e r se u pr ópr io r a to f ur tivo, o a ze dum e da s r iva lida de s, os
f a nta sm a s de f a m ília e se us pr ópr ios se gr e dos — pode a j udá - la a
sua viza r se u c or a ç ã o e m r e la ç ã o a si m e sm a e a os outr os, e spír itos
ir m a na dos nos c a pr ic hos hum a nos; e ta m bé m a j udá - la a m a nte r a sua
som br a sob a m a is r igor osa vigilâ nc ia , pa r a pr ote ge r a si m e sm a e a os
outr os.

55. A emergência da sombra na meia-idade

JANICE B REWI E ANNE B RENNAN


O ponto de m uta ç ã o que se inic ia c om a tr a nsiç ã o da pr im e ir a pa r a a
se gunda m e ta de da vida , f a z c om que ve nha m à supe r f íc ie a que le s
a spe c tos da psique m a is ou m e nos inc onsc ie nte s e a té e ntã o
ne glige nc ia dos. Ne sse pr oc e sso, a Som br a de se m pe nha se u gr a nde
pa pe l c r ia tivo.

Na é poc a e m que c he ga à m e ia - ida de , um a pe ssoa ge r a lm e nte j á se


e sta be le c e u em pa dr õe s psic ológic os f a m ilia r e s e e stá
c onf or ta ve lm e nte insta la da no se u tr a ba lho e na sua f a m ília . E e is que
de súbito: um a c r ise ! Um be lo dia voc ê a c or da e de sc obr e ,
ine spe r a da m e nte , que nã o é m a is o m e sm o. A a tm osf e r a de dom ínio
pe ssoa l f oi a pique ; o doc e né c ta r da r e a liza ç ã o tom ou- se a m a rgo; os
a ntigos pa dr õe s de a j usta m e nto e de se m pe nho pa ssa m a se r
opr e ssivos. Algué m r oubou sua c a pa c ida de de da r va lor a os se us
obj e tos f a vor itos — tr a ba lho, f ilhos, posse s, posiç õe s de pode r,
r e a liza ç õe s — e a gor a voc ê f ic a a pe rgunta r a si m e sm o: o que
a c onte c e u a noite pa ssa da ? P a r a onde le va r a m m inha c a pa c ida de de
a m a r ? ( Mur r a y Ste in) A Som br a é r e sponsá ve l por e sse r oubo
c hoc a nte . Foi a Som br a que surgiu, qua ndo a pe ssoa na m e ia - ida de
c om e ç a a se ve r de sse m odo tã o a bsoluta m e nte novo. Jung disse que a
pe r c e pç ã o c onsc ie nte da Som br a é um "pr oble m a e m ine nte m e nte
pr á tic o", Nã o se pode tr a nsf or m a r e ssa c r e sc e nte pe r c e pç ã o da pa r te
inf e r ior da pe r sona lida de num a a tivida de inte le c tua l.

Na m e ia - ida de , e sse gr a nde de sc onhe c ido — e ssa Som br a — te m um a


"pe r sona lida de pr ópr ia " suf ic ie nte m e nte de se nvolvida pa r a e nvolve r a
tota lida de da c onsc iê nc ia do e go, se m e ngoli- la de im e dia to. Ma s,
ne sse m e sm o pe r íodo da vida , a pe r sona lida de do e go e stá a r r isc a da a
f e c ha r- se sobr e si m e sm a e f ic a r im obiliza da e xa ta m e nte por c a usa
de ssa f or ç a . E e ntã o é a Som br a ( a s pa r te s inc onsc ie nte s da
pe r sona lida de que o e go c onsc ie nte te ndia a r e j e ita r ou ignor a r ) que
c om e ç a a e m e rgir c om o um a e spé c ie de "pe r sona lida de núm e r o
dois". Se r á e la um a a m iga ou um a inim iga ? Essa é a pe rgunta da
m e ia - ida de . Re sponde r a e ssa pe rgunta gua r da ndo f ide lida de a o m e u
Eu ( a im a ge m singula r de De us que f ui c ha m a do a se r ) à m e dida que
vou luta ndo c om a Som br a e m c a da situa ç ã o r e a l onde a pe rgunta se
a pr e se nta , é a e spir itua lida de da m e ia - ida de , A e spir itua lida de da
m e ia - ida de é vivida no pa lc o da vida , nã o na pla te ia . Nosso pa pe l é
de se m pe nha r a inte gr a ç ã o e a sa ntida de ; a qui nã o pode m os se r m e r os
e spe c ta dor e s.

Esse s e nc ontr os c om a Som br a nunc a sã o um a ssunto f á c il ou sim ple s.


Contudo, a pa la vr a S o m b r a pode a br a nge r todos os tipo de
e xpe r iê nc ia s nova s e ine xpr im íve is do Si- m e sm o que sã o tota lm e nte
individua is. Te nta r c a pta r num a únic a pa la vr a e ssa s e xpe r iê nc ia s tã o
c om ple xa s e sutis ir á , ne c e ssa r ia m e nte , r e duzi- la s. Ma s a posse de
um a pa la vr a pa r a de f ini- la s c oloc a e ssa s e xpe r iê nc ia s, à s ve ze s
a ssusta dor a s e se m pr e pe r tur ba dor a s, de ntr o do hor izonte da
e xpe r iê nc ia hum a na ; pois, c om m uita f r e quê nc ia , é inf inita m e nte
c onf or ta dor pa r a nós sa be r que tive m os a lgum a s e xpe r iê nc ia s da
Som br a e nã o que e sta m os a pe na s "pe r de ndo a r a zã o".

As e xpe r iê nc ia s da Som br a , no e nta nto, ne c e ssa r ia m e nte vã o a lé m da


pa la vr a ; e , a ssim , a pa la vr a pode se r um a e spé c ie de "c olc ha de
r e ta lhos" num a psic ologia da se gunda m e ta de da vida .

A j or na da pa r a o inc onsc ie nte — e nc ontr a r, c a tiva r e inte gr a r a


Som br a — nã o pode se r e m pr e e ndida c om le via nda de . E ne m pode
se r e m pr e e ndida a té que o de se nvolvim e nto do e go e ste j a
suf ic ie nte m e nte f or te e a c onsc iê nc ia r e a lm e nte va lor iza da e
c onf ia nte . Eis o gr a nde pa r a doxo, a gr a nde ir onia . P ois som e nte
qua ndo a c r e dita m os na nossa c onsc iê nc ia de ta l m odo que qua se a
ve m os c om o tudo o que e xiste é que pode r e m os c he ga r a ve r, a
r e spe ita r e a va lor iza r a Som br a pe lo pe r igo e pe lo te sour o ne la
c ontidos. A c a da e nc ontr o c om a Som br a , a c onsc iê nc ia pr e c isa
a f e r r a r- se a si m e sm a e subm e te r- se a pe na s qua ndo suf ic ie nte m e nte
c onve nc ida . A da nç a de supor ta r a s te nsõe s dos opostos é se m pr e
intr ic a da e o obj e tivo é se m pr e a a m plia ç ã o da c onsc iê nc ia ,
inte gr a ndo a quilo que a nte s e r a inc onsc ie nte e ta lve z visto c om o m a u.
Esse pr oc e sso nunc a se f a z dir e ta m e nte . Ele a c onte c e a tr a vé s de um
inte r m e diá r io. Os opostos se une m e m um te r c e ir o, um f ilho de
a m bos, um sím bolo de tr a nsc e ndê nc ia . O le ã o e o c or de ir o se une m
no Re ino: o pr e to e o br a nc o se une m no c inza . A inte gr a ç ã o da
Som br a e o c onse que nte c r e sc im e nto da c onsc iê nc ia e xigir ã o te m po.
O pr oc e sso a c onte c e r á e m e stá gios.

E e is, pr e c isa m e nte , a r e a lida de e o signif ic a do da Som br a : c a da um


de nós pode r ia c onc e be r e c om e te r qua lque r a tr oc ida de ou a lc a nç a r a
m a ior gr a nde za de que a hum a nida de é c a pa z; a Som br a é o r e sto de
que m som os. P a r a c a da vir tude que a dota m os, se u oposto pr e c isou
pe r m a ne c e r se m de se nvolvim e nto, inc onsc ie nte . Em bor a te nha m os o
dir e ito de c onside r a r o a ssa ssino, o la dr ã o, o a dúlte r o, o te r r or ista , a
pr ostituta , o bla sf e m a dor, o tr a f ic a nte de dr oga s, o e xtor sioná r io ou o
r a c ista que e xiste m de ntr o de nós c om o sinistr os e m a us, nã o te m os o
dir e ito de c onside r á - los c om o a bsoluta m e nte nã o- e xiste nte s de ntr o de
nós. Nã o pode m os ne ga r e ssa possibilida de ; nã o pode m os "e sque c e r o
nosso r a bo". Nã o pode m os ousa r e sque c e r que possuím os, c om o disse
o Cr isto, um a "ba ixe za " inte r ior a ssim c om o possuím os nossa s
ba ixe za s e xte r ior e s: f oi e ssa "ba ixe za " ( j unto c om toda s a s outr a s
pa r te s pr im itiva s, inf e r ior e s e nã o- de se nvolvida s de c a da um de nós)
que ne glige nc ia m os e m f a vor da s nossa s pa r te s supe r ior e s, vir tuosa s,
c a pa ze s e ha bilidosa s. Foi a ne gligê nc ia , a supr e ssã o e a r e pr e ssã o
de ssa s "ba ixe za s" que tor nou possíve l o c ultivo de se us opostos.
Nã o é de a dm ir a r que m uita s ne ur ose s sé r ia s sur j a m no iníc io do
e nta r de c e r da vida . É um a e spé c ie de se gunda pube r da de , um outr o
pe r íodo de te m pe sta de e te nsã o; nã o é inf r e que nte que se j a
a c om pa nha do por te m pe sta de s de pa ixã o — a "ida de c r ític a ". Ma s os
pr oble m a s que se pr oduze m ne ssa ida de nã o pode m se r r e solvidos
pe lo ve lho r e c e ituá r io: os ponte ir os do r e lógio nã o pode m se r
a tr a sa dos. Aquilo que o j ove m e nc ontr ou — e pr e c isa e nc ontr a r —
f or a de si m e sm o, o hom e m ( e a m ulhe r ) no e nta r de c e r da vida
pr e c isa e nc ontr a r de ntr o de si m e sm o. ( Jung: Two Essay s in Analy tic al
Psy c hology ) A primeira metade da vida destina-se ao crescimento e
diferenciação da Sombra. Toda a segunda metade da vida destina-se à
integração, cada vez maior, da Sombra.

56. Para o homem na meia-idade

DANIEL J. LEVINSON
Na Tr a nsiç ã o da Me ia - ida de e à m e dida que r e vê sua vida e c onside r a
c om o da r- lhe um signif ic a do m a ior, um hom e m pr e c isa c he ga r a um
a c or do, de um a m a ne ir a tota lm e nte nova , c om a de str uiç ã o e a
c r ia ç ã o e nqua nto a spe c tos f unda m e nta is da vida . O c r e sc e nte
r e c onhe c im e nto de sua pr ópr ia m or ta lida de tor na - o m a is c onsc ie nte
da de str uiç ã o e nqua nto pr oc e sso unive r sa l. Sa be ndo que sua pr ópr ia
m or te nã o e stá m uito dista nte , e le a nse ia por a f ir m a r a vida pa r a si
m e sm o e pa r a a s ge r a ç õe s vindour a s. Ele que r se r m a is c r ia tivo. O
im pulso c r ia tivo nã o signif ic a a pe na s "f a ze r " a lgo. Signif ic a tr a ze r
a lgo à vida , f a ze r na sc e r, ge r a r vida . Um a c a nç ã o ou um qua dr o, a té
m e sm o um a c olhe r ou um br inque do, qua ndo f e itos de ntr o de um
e spír ito de c r ia ç ã o a ssum e m um a e xistê nc ia inde pe nde nte . Na m e nte
de se u c r ia dor, e le s tê m um se r pr ópr io e e nr ique c e r ã o a vida
da que le s que lhe s e stã o liga dos.

De sse m odo, a m bos os la dos da pola r ida de De str uiç ã o/Cr ia ç ã o se


inte nsif ic a m na m e ia ida de , A a guda se nsa ç ã o de sua pr ópr ia
de str uiç ã o f ina l inte nsif ic a , num hom e m , o de se j o de c r ia r. Se u
c r e sc e nte de se j o de se r c r ia tivo é a c om pa nha do por um a m a ior
pe r c e pç ã o da s f or ç a s de str utiva s que e xiste m na na tur e za , na vida
hum a na e m ge r a l e ne le m e sm o.

P a r a o hom e m disposto a olha r, a m or te e a de str uiç ã o e stã o por toda


pa r te . Na na tur e za , um a e spé c ie se a lim e nta de outr a s e spé c ie s que ,
por sua ve z, se r ve m de a lim e nto pa r a outr a s, A e voluç ã o ge ológic a da
Te r r a e nvolve um pr oc e sso de de str uiç ã o e tr a nsf or m a ç ã o. P a r a que
a lgo se j a c onstr uído, a lgo pr e c isa se r de se str utur a do e r e e str utur a do.

Ne nhum hom e m c he ga a os qua r e nta a nos se m a lgum a e xpe r iê nc ia da


de str utivida de hum a na . Outr a s pe ssoa s, inc luindo a que la s m a is
c he ga da s a e le , de um m odo ou de outr o pr e j udic a r a m sua
a utoe stim a , e stor va r a m se u de se nvolvim e nto, im pe dir a m - no de
busc a r e e nc ontr a r a quilo que e le m a is que r ia . Do m e sm o m odo, e le
pr ópr io oc a siona lm e nte c a usou gr a nde sof r im e nto a os outr os, a té
m e sm o a se us e nte s que r idos.

Ao r e a va lia r sua vida dur a nte a Tr a nsiç ã o da Me ia - ida de , um hom e m


pr e c isa c he ga r a um a nova c om pr e e nsã o de sua s que ixa s c ontr a os
outr os pe los da nos r e a is ou im a giná r ios que lhe c a usa r a m . Dur a nte
a lgum te m po e le ta lve z f ique tota lm e nte im obiliza do pe la r a iva
im pote nte que se nte e m r e la ç ã o a os pa is, à m ulhe r, a os m e ntor e s,
a m igos e e nte s que r idos que , c om o e le a gor a pe r c e be , c a usa r a m - lhe
sé r ios f e r im e ntos. E, o que é a inda m a is dif íc il, e le pr e c isa c he ga r a
um a c or do c om sua s c ulpa s — sua s que ixa s c ontr a si m e sm o —, pe los
e f e itos de str utivos que te ve sobr e os outr os e sobr e si m e sm o, Ele
pr e c isa pe rgunta r- se : "Com o f oi que f a lhe i e m m inha s
r e sponsa bilida de s de hom e m a dulto pa r a c om m e us e nte s que r idos e
pa r a os e m pr e e ndim e ntos que a f e ta m m uita s pe ssoa s? Com o f oi que
tr a í a m im m e sm o e de str uí m inha s pr ópr ia s possibilida de s? Com o
posso vive r c om a c ulpa e o r e m or so?"

Sua ta r e f a r e la tiva a o de se nvolvim e nto é c om pr e e nde r m a is


pr of unda m e nte o luga r da de str utivida de , na sua pr ópr ia vida e nos
a ssuntos hum a nos e m ge r a l. Gr a nde pa r te do tr a ba lho, ne ssa ta r e f a , é
inc onsc ie nte . I m plic a , a c im a de tudo, r e tr a ba lha r os se ntim e ntos e
e xpe r iê nc ia s dolor osa s. Alguns hom e ns a r tic ula m sua nova pe r c e pç ã o
c onsc ie nte e m pa la vr a s, outr os nos pa dr õe s e sté tic os da m úsic a , da
pintur a ou da poe sia . Ma s a m a ior ia dos hom e ns sim ple sm e nte vive
e ssa pe r c e pç ã o e m sua s vida s c otidia na s. De qua lque r m odo, um
hom e m pr e c isa c he ga r a um a c or do c om sua s que ixa s e sua s c ulpa s
— a visã o que e le te m de si m e sm o c om o vítim a e c om o vilã o da
histór ia c ontínua da de sum a nida de do hom e m pa r a c om o hom e m ,
Qua ndo e stá e xc e ssiva m e nte opr im ido pe la s sua s que ixa s ou c ulpa s,
e le se r á inc a pa z de supe r á - la s. Qua ndo f or ç a do a m a nte r a ilusã o de
que a de str utivida de nã o e xiste , e le se r á pr e j udic a do na sua
c a pa c ida de de c r ia r, de a m a r e de a f ir m a r a vida .

É ne c e ssá r io que um hom e m r e c onhe ç a e a ssum a a r e sponsa bilida de


pe la sua pr ópr ia c a pa c ida de de str utiva . Me sm o se m inte nç õe s hostis,
e le à s ve ze s a ge de um a m a ne ir a que a c a r r e ta c onse quê nc ia s da nosa s
pa r a os outr os. Enqua nto pa i, e le pode e duc a r os f ilhos c om a s
m e lhor e s inte nç õe s e os pior e s e f e itos. Enqua nto na m or a do, e le se nte
que se u a m or e sf r iou de r e pe nte e se a f a sta ; o c a sa m e nto de ixa de te r
se ntido m a s, m e sm o a ssim , a m ulhe r se nte - se a ba ndona da e tr a ída .
Enqua nto c he f e , e le te m a obr iga ç ã o de r e ba ixa r um f unc ioná r io
digno m a s inc om pe te nte e , c om isso, a f e ta a a utoe stim a e a s
pe r spe c tiva s f utur a s de ssa pe ssoa . Ne nhum a to pode se r tota lm e nte
be nigno na s sua s c onse quê nc ia s. P a r a que te nha m os o pode r de f a ze r
gr a nde be m , pr e c isa m os supor ta r o f a r do de sa be r que c a usa r e m os
a lgum m a l — no f im , ta lve z, m a is m a l do que be m .

Já é ba sta nte dif íc il r e c onhe c e r que pode m os se r involunta r ia m e nte


de str utivos. E o m a is dolor oso de tudo é a c e ita r que se ntim os de se j os
de str utivos e m r e la ç ã o a os outr os, a té m e sm o a os nossos e nte s
que r idos. Existe m m om e ntos e m que um hom e m se nte ódio e a ve r sã o
pe los se us f a m ilia r e s, m om e ntos e m que gosta r ia de a ba ndoná - los ou
a gr e di- los, m om e ntos e m que os a c ha intole r a ve lm e nte c r ué is,
of e nsivos, m e squinhos, c ontr ola dor e s. Ele m uita s ve ze s se nte um a
inte nsa r a iva ou a m a rgur a , se m sa be r o que a pr ovoc ou ou c ontr a
que m e la se dir ige . E e le , na ve r da de , c a usou sof r im e nto a os e nte s
que r idos de pr opósito — c om a pior da s inte nç õe s e , e m a lguns c a sos,
c om a pior da s c onse quê nc ia s.

Os hom e ns de qua r e nta a nos dif e r e m , de um m odo be m a m plo, e m


sua disposiç ã o pa r a r e c onhe c e r e a ssum ir r e sponsa bilida de pe la sua
pr ópr ia de str utivida de . Uns nã o tê m a m ínim a c onsc iê nc ia de que
c a usa r a m sof r im e nto a os outr os ou de que pode r ia m de se j a r f a zê - lo.
Alguns se nte m ta nta c ulpa pe lo sof r im e nto r e a l ou im a giná r io que
inf ligir a m , que nã o e stã o livr e s pa r a c onside r a r os pr oble m a s da
de str utivida de de um a m a ne ir a m e nos pa ssiona l e c oloc á - la num a
pe r spe c tiva m a is a m pla . Outr os tê m a lgum a c om pr e e nsã o do f a to de
que o se r hum a no pode se ntir ta nto a m or qua nto ódio por a lgué m ; e
a lgum a pe r c e pç ã o c onsc ie nte de sua pr ópr ia a m biva lê nc ia a o a va lia r
se us r e la c iona m e ntos. Em c a da um de sse s c a sos, a ta r e f a liga da a o
de se nvolvim e nto é da r m a is um pa sso e m dir e ç ã o a m a ior
a utoc onhe c im e nto e r e sponsa bilida de por si m e sm o.

Na m e ia - ida de , a té m e sm o o hom e m m a is a m a dur e c ido ou instr uído


te m m uito a a pr e nde r e m r e la ç ã o a o f unc iona m e nto da de str utivida de
e m si m e sm o e na soc ie da de . Ele pr e c isa a pr e nde r sobr e a he r a nç a de
r a iva — c ontr a os outr os e c ontr a si m e sm o — que tr a z de ntr o de si
de sde a inf â nc ia . Ta m bé m pr e c isa a pr e nde r sobr e a s r a iva s
a c um ula da s a o longo de sua vida a dulta , de se nvolve ndo e a m plia ndo
a s f onte s da inf â nc ia . E e le pr e c isa c oloc a r e ssa s f or ç a s de str utiva s
inte r ior e s de ntr o do c onte xto m a is a m plo da c ontinuida de de sua vida
a dulta , f a ze ndo c om que e la s se e ntr e c ho - que m c om a s f or ç a s que
c r ia m e a f ir m a m a vida , e de sc obr indo novos c a m inhos pa r a inte gr á -
la s e m m e io à j or na da da vida a dulta .

O a pr e ndiza do a que a c a bo de m e r e f e r ir nã o é pur a m e nte c onsc ie nte


ou inte le c tua l. Ele nã o pode se r a dquir ido sim ple sm e nte le ndo a lguns
livr os, a ssistindo a a lguns c ur sos ou f a ze ndo a lgum a psic ote r a pia —
e m bor a todos e sse s c a m inhos possa m c ontr ibuir pa r a um pr oc e sso de
de se nvolvim e nto a longo pr a zo. O pr inc ipa l a pr e ndiza do oc or r e de ntr o
do te c ido da nossa vida . Dur a nte a Tr a nsiç ã o da Me ia - ida de , m uita s
ve ze s a pr e nde m os a tr a vé s de pe r íodos de inte nso sof r im e nto,
c onf usã o, r a iva c ontr a os outr os e c ontr a nós m e sm os, e m á goa pe la s
opor tunida de s pe r dida s e pe la s pa r te s pe r dida s de nós m e sm os.

Um possíve l f r uto do tr a ba lho de um hom e m sobr e e ssa pola r ida de é o


"se nso tr á gic o da vida ". O se nso tr á gic o de r iva da pe r c e pç ã o de que
a s gr a nde s de sgr a ç a s e f r a c a ssos nã o se a ba te r a m sobr e nós vindos de
um a f onte e xte r ior ; m a s sã o, e m gr a nde pa r te , o r e sulta do dos nossos
pr ópr ios e tr á gic os de f e itos. Um a histór ia tr á gic a nã o é a pe na s um a
histór ia tr iste . Na histór ia tr iste , o he r ói m or r e , f r a c a ssa e m se u
e m pr e e ndim e nto ou é r e j e ita do pe la a m a da ; o de sf e c ho inf e liz é
pr ovoc a do por inim igos, c ondiç õe s a dve r sa s, a za r ou a lgum a
ine spe r a da de f ic iê nc ia do he r ói.

A histór ia tr á gic a te m um c a r á te r dif e r e nte . Se u he r ói, dota do de


e xtr a or diná r ia vir tude e ha bilida de , e stá e nvolvido num a nobr e busc a .
Ele é de r r ota do ne ssa busc a . A de r r ota de ve - se , e m pa r te , à s
f or m idá ve is dif ic ulda de s e xte r na s; m a s e la de r iva pr inc ipa lm e nte de
um de f e ito inte r no do he r ói, de um a qua lida de de c a r á te r que é pa r te
intr ínse c a do e m pe nho he r oic o. O de f e ito, e m ge r a l, e nvolve hy bris
( a r r ogâ nc ia , inf la ç ã o do e go, onipotê nc ia ) e de str utivida de . A nobr e za
e o de f e ito sã o os dois la dos da m e sm a m oe da he r oic a . Ma s a tr a gé dia
ge nuína nã o te r m ina sim ple sm e nte na de r r ota . Em bor a o he r ói nã o
a lc a nc e sua s a spir a ç õe s inic ia is, e m últim a a ná lise e le é vitor ioso: e le
se c onf r onta c om sua s pr of unda s f a lha s inte r ior e s, a c e ita - a s c om o
pa r te de si m e sm o e da hum a nida de , e é tr a nsf or m a do, a té c e r to
ponto, num a pe ssoa m a is nobr e . A tr a nsf or m a ç ã o pe ssoa l te m m a is
va lor que a de r r ota e o sof r im e nto te r r e nos.

57. Como lidar com o mal

LILIANE FREY- ROHN


Em bor a se j a possíve l que o m a l se j a tr a nsf or m a do e m be m , nã o
de ve m os e sque c e r que e ssa tr a nsf or m a ç ã o é a pe na s um a
possibilida de . As vir tude s hum a na s m a is e le va da s sã o invoc a da s
qua ndo o hom e m se c onf r onta c om o m a l. O pr oble m a m a is sutil da
psic ologia do m a l é c omo de ve m os lida r c om e sse a dve r sá r io — e sse
num inoso e pe r igoso opone nte na nossa psique — pa r a nã o se r m os
de str uídos por e le .

P ode r ía m os tr a ç a r um a m plo c ír c ulo e m volta do m a l e a f ir m a r que


e le pr e c isa se r sublim a do ou r e pr im ido. Ou se nã o, c om o suge r iu
Nie tzsc he , pode r ía m os nos a lia r a o m a l — a o la do r e ve r so da
m or a lida de — e a j uda r a vonta de c e ga a a lc a nç a r sua r e a liza ç ã o.
Essa s dua s te nta tiva s de soluc iona r o pr oble m a do m a l ( a s pr im e ir a s
que oc or r e m a qua lque r pe ssoa ) tê m obj e tivos dia m e tr a lm e nte
opostos. O psic ólogo que se gue o pr im e ir o m é todo te m c om o obj e tivo
a nula r a e f ic á c ia do m a l, r e c onc ilia ndo o indivíduo c om a m or a lida de
c ole tiva ou f a ze ndo c om que e le lim ite se us pr ópr ios de se j os de
a utode se nvolvim e nto. Em se us últim os e sc r itos, Fr e ud c ha m ou
a te nç ã o pa r a o e f e ito c ur a dor da "e duc a ç ã o pa r a a r e a lida de " e do
tr e ina m e nto do inte le c to.1 Fr e ud te ntou a lc a nç a r e sse s dois f ins
a tr a vé s do f or ta le c im e nto de Logos ( a r a zã o) c ontr a os pode r e s de
Ana nke ( o de stino ne f a sto) . Nie tzsc he a dotou a posiç ã o oposta , o
se gundo m é todo. Em c ontr a posiç ã o a o pe ssim ism o de Fr e ud,
Nie tzsc he pr oc la m ou um a a f ir m a ç ã o dionisía c a do m undo e um
a pa ixona do amor fati.2 Glor if ic ou, nã o a pe na s o supe r- hom e m c om o
ta m bé m o m a l da be sta subum a na , da "be sta lour a ". Essa s dua s
te nta tiva s de soluç ã o sã o unila te r a is e pr ovoc a m um a dissoc ia ç ã o
e ntr e o be m c onsc ie nte e o m a l inc onsc ie nte . P ois, c om o te nta m os
de m onstr a r, o "e xc e sso de m or a lida de " f or ta le c e o m a l no m undo
inte r ior, e a "pouc a m or a lida de " pr om ove um a dissoc ia ç ã o e ntr e o
be m e o m a l.

A r e spe ito de sse ponto, e u gosta r ia de m e r e f e r ir nova m e nte a


Willia m Ja m e s, que — e m c oe r ê nc ia c om sua s ide ia s sobr e a f unç ã o
do m a l — via sa úde e spir itua l na inte gr ida de da pe r sona lida de
hum a na que f or m a va um todo ha r m onioso.3 A ba se de um a
pe r sona lida de r e ligiosa m e nte e stá ve l nã o se r ia a pe r f e iç ã o m or a l,
m a s a pr om oç ã o da a titude c om ple m e nta r que ha via sido r e j e ita da .
Ja m e s a c ha va que o se gr e do m a is pr of undo pa r a a c onquista do be m e
do m a l e sta va na a c e ita ç ã o inc ondic iona l dos dita m e s do se lf
inc onsc ie nte . 4 Em bor a nã o m e nospr e za sse o pe r igo de nos c oloc a r m os
à m e r c ê da voz inte r ior — j á que nunc a pode m os te r c e r te za se e la é
a voz de De us ou a voz do Dia bo —, Ja m e s suste nta va que a r e ndiç ã o
do indivíduo a o tr a nspe ssoa l e a o inc onsc ie nte se r ia o únic o c a m inho
pa r a a sa lva ç ã o.

Com o m ostr a m a s pe squisa s de Jung, lida r c om o m a l a c a ba por se


tor na r um se gr e do individua l que só pode se r de sc r ito e m linha s
ge r a is. A e xpe r iê nc ia te m c onsta nte m e nte de m onstr a do que nã o e xiste
ne nhum a ga r a ntia de que a pe ssoa possa e nf r e nta r o de sa f io e que
ta m pouc o e xiste m qua isque r c r ité r ios obj e tivos pa r a a quilo que é
"c e r to" e m c a da situa ç ã o. A e xpe r iê nc ia da som br a a r que típic a le va
a o "de sc onhe c ido" a bsoluto, onde e sta m os e xpostos a pe r igos
im pr e vistos. Ela e quiva le a um a e xpe r iê nc ia da pr ópr ia im a ge m de
De us, e m todo a sua sublim ida de e pr of unde za , e m todo o se u be m e o
se u m a l. Essa e xpe r iê nc ia tr a nsf or m a o hom e m c om o um todo; nã o
a pe na s a sua e go- pe r sona lida de , m a s ta m bé m o se u a dve r sá r io
inte r ior.

Che ga r a um a c or do c om o inc onsc ie nte se m pr e a c a r r e ta o r isc o de


que possa m os da r de m a sia do c r é dito a o Dia bo. Na ve r da de , e sta m os
c onf ia ndo de m a is no Dia bo qua ndo de ixa m os de ve r que o c onf r onto
c om o a r qué tipo pode r e sulta r ta nto e m e r r o e c or r upç ã o qua nto e m
or ie nta ç ã o e ve r da de . Um a m e nsa ge m do inc onsc ie nte nã o de ve , e o
ipso, se r igua la da à voz de De us. De ve m os se m pr e que stiona r se o
a utor da m e nsa ge m é De us ou o Dia bo. Esse e nc ontr o ta nto pode r á
r e sulta r num a dissoluç ã o da pe r sona lida de qua nto num a or ie nta ç ã o a
r e spe ito do c a m inho da sa be dor ia . P or ta nto, a sim ple s r e ndiç ã o à s
f or ç a s do inc onsc ie nte ou a f é c e ga ne ssa s f or ç a s sã o tã o
insa tisf a tór ia s qua nto a obstina da r e sistê nc ia a o "de sc onhe c ido".
Assim c om o um a a titude de c onf ia nç a a bsoluta ta lve z se j a e xpr e ssã o
de inf a ntilida de , um a a titude de r e sistê nc ia c r ític a pode se r um a
m e dida de a utopr ote ç ã o. Nã o só na a r te da m e dic ina m a s ta m bé m na
psic ologia , a c a ute la é um f a tor im por ta nte na "dosa ge m " do ve ne no.
Tudo de pe nde da m a ne ir a "c om o" lida m os c om o a dve r sá r io. Um a
a pr oxim a ç ã o e xc e ssiva do num inoso — nã o im por ta se e le surge
c om o be m ou c om o m a l — a c a r r e ta , ine vita ve lm e nte , o r isc o de um a
inf la ç ã o do e go e de se r m os e sm a ga dos pe los pode r e s da luz ou da s
tr e va s.

P ode m os ve r e m The De v il' s Elix ir [ O Elixir do Dia bo] , de E, T. W.


Hof m a nn, 5 os e xtr e m os a que o hom e m pode se r le va do pe la
posse ssã o de m onía c a . Hof m a nn de sc r e ve c om o o m onge Me da r dus
f oi possuído pe lo "m a na " de Sa nto Antônio e , de pois, e m
c om pe nsa ç ã o, c a iu vítim a do pr of a no Antic r isto. I ne br ia do por sua
pr ópr ia e loquê nc ia e se duzido pe lo se u de se j o de pode r, o m onge f oi
te nta do a a um e nta r sua s f or ç a s tom a ndo um gole da ga r r a f a do Dia bo.
Ao be be r o Elixir, e le a dquir iu o se gr e do do r e j uve ne sc im e nto m a s,
a o m e sm o te m po, c a iu e m pode r do Dia bo. Foi dom ina do pe la â nsia
de a m or e pe la s c oisa s de ste m undo, que o a tr a ír a m pa r a a de str uiç ã o.
Com o r e sulta do de sse e ntr e la ç a m e nto c om o outr o la do de sua
pe r sona lida de , sua a lm a dividiu- se e m dois siste m a s a utônom os: a
a lm a c or pór e a e a a lm a e spir itua l. Hof m a nn de se nvolve a se guir, de
um a m a ne ir a im pr e ssiona nte , o pr oble m a da quilo que e le c ha m a o
"duplo" — ou se j a , a pa r te da a lm a que , e m bor a dissoc ia da do e go,
a inda a ssim é sua íntim a c om pa nhe ir a . I gua lm e nte im pr e ssiona nte é o
m é todo que e le suge r e pa r a r e unir a s dua s pa r te s da a lm a . Esse
pr oc e sso c om e ç a c om o r e tor no de Me da r dus pa r a a solidã o do
m oste ir o. Ali a pe nitê nc ia , a r e f le xã o e o r e m or so a c la r a m se us
se ntidos e ne voa dos; e a o pe r c e be r, pe la pr im e ir a ve z, que a bonda de
m or a l na na tur e za é de pe nde nte do m a l, e le e nc ontr a a pa z e a
libe r ta ç ã o de se us im pulsos c om pulsivos. Essa r e la tiviza ç ã o do be m e
do m a l, que de pe ndia de um a pa r c ia l a c e ita ç ã o do a dve r sá r io pa gã o,
ta m bé m signif ic ou um a m uda nç a na sua c onsc iê nc ia c r ista . Ma s a
a lm a c or pór e a é m uito va ga r osa pa r a c om pr e e nde r a quilo que a a lm a
e spir itua l j á c om pr e e nde u; e , por isso, o pr oble m a r e ssurge , e c om
m a ior inte nsida de . Assim c om o a c onte c e u c om Fa usto, a ssim ta m bé m
c om Me da r dus: é a pe na s na r e giã o c r e pusc ula r e ntr e a vida e a m or te
que e le e nc ontr a a tã o a nsia da r e c onc ilia ç ã o de e spír ito e na tur e za ;
e ntã o e le e xpe r im e nta a r e c onc ilia ç ã o c om o um r a io pur o de a m or
e te r no.

Eu gosta r ia , a gor a , de m e nc iona r o pr oble m a m a is im por ta nte de lida r


c om a som br a . Com o Jung se m pr e e nf a tizou, a som br a c "o pr oble m a
m or a l par e x c e lle nc e ". I sso se a plic a à som br a pe ssoa l e ta m bé m à
som br a a r que típic a : tr a ta - se de um a r e a lida de que de sa f ia os m a is
a ltos e sf or ç os da c onsc iê nc ia . A c onsc iê nc ia da som br a é de c isiva
pa r a a e sta bilida de , nã o a pe na s da vida individua l c om o ta m bé m , e m
gr a nde m e dida , da vida c ole tiva . Esta r c onsc ie nte s do m a l signif ic a
e sta r dolor osa m e nte c onsc ie nte s da quilo que f a ze m os e da quilo que
nos a c onte c e . "Se r e a lm e nte sa be s o que f a ze s, é s a be nç oa do; m a s, se
nã o sa be s, é s um m a ldito e um tr a nsgr e ssor da le i."6 Essa s sã o
pa la vr a s a póc r if a s de Je sus. Ele a s te r ia dito a um j ude u que viu
tr a ba lha ndo no dia do Sá ba do.

Tor na r- se c onsc ie nte da som br a ta lve z pa r e ç a um a e xigê nc ia


r e la tiva m e nte sim ple s. Ma s, na r e a lida de , é um de sa f io m or a l
e xtr e m a m e nte dif íc il de se r e nf r e nta do. Essa ta r e f a e xige , a nte s de
m a is na da , o r e c onhe c im e nto do m a l individua l — ou se j a , dos
va lor e s c ontr a ditór ios que o e go ha via r e j e ita do — e o sim ultâ ne o
r e c onhe c im e nto dos va lor e s c onsc ie nte s do be m individua l. Em outr a s
pa la vr a s, tor na r c onsc ie nte o c onf lito inc onsc ie nte . I sso pode
signif ic a r :

a)que um ponto de vista m or a l, a nte s ba se a do na tr a diç ã o, a gor a é


suple m e nta do por um a r e f le xã o subj e tiva ; ou
b)que os dir e itos do e go e stã o r e c e be ndo a m e sm a a utor ida de que os
dir e itos do "vós"; ou
c)que os dir e itos do instinto sã o r e c onhe c idos j unta m e nte c om os
dir e itos da r a zã o.

Tor na r- se c onsc ie nte do c onf lito é a lgo que é vive nc ia do c om o um a


c olisã o, qua se ir r e c onc iliá ve l, de im pulsos inc om pa tíve is; c om o um a
gue r r a c ivil de ntr o de nós m e sm os. O c onflito c onsc ie nte e ntre o be m
e o mal toma o lugar de uma dissoc iaç ão inc onsc ie nte . Como re sultado,
a re gulaç ão instintiv a inc onsc ie nte é suple me ntada pe lo c ontrole
c onsc ie nte . Ga nha m os a c a pa c ida de de a va lia r c om m a is e xa tidã o o
e f e ito que c a usa m os sobr e os outr os, be m c om o de r e c onhe c e r nossa s
pr oj e ç õe s da som br a e ta lve z m e sm o de r e c olhê - la s. E, f ina lm e nte ,
som os f or ç a dos a c onside r a r a r e visã o da s nossa s opiniõe s sobr e o
be m e o m a l. P e r c e be m os que o se gr e do de um m e lhor a j usta m e nto a
r e a lida de de pe nde , c om m uita f r e quê nc ia , da nossa c a pa c ida de de
de sistir "de que r e r se r bons" e de pe r m itir a o m a l um c e r to dir e ito de
vive r. Com o Jung obse r vou c or r e ta m e nte , pa r e c e que "a s
de sva nta ge ns do be m m e nor " sã o e quilibr a da s pe la s "va nta ge ns do
m a l m e nor ".7 Contr a r ia ndo a opiniã o ge r a l de que a c onsc iê nc ia da
som br a f a z c om que o m a l se a glutine e de sse m odo o f or ta le c e ,
r e pe tida s ve ze s e nc ontr a m os que o oposto é a ve r da de : o
c onhe c im e nto da som br a pe ssoa l é a e xigê nc ia ne c e ssá r ia pa r a
qua lque r a ç ã o r e sponsá ve l e , c onse que nte m e nte , pa r a a r e duç ã o da s
tr e va s m or a is no m undo. I sso ta m bé m se a plic a , de m a ne ir a a inda
m a is a m pla , à som br a c ole tiva , à f igur a a r que típic a do a dve r sá r io,
que c or r e sponde a o c onse nso c ole tivo de c a da é poc a . A c onsc iê nc ia
da som br a c ole tiva é e sse nc ia l, nã o a pe na s pa r a a a utor r e a liza ç ã o
individua l m a s ta m bé m pa r a a tr a nsf or m a ç ã o dos im pulsos c r ia tivos
de ntr o do c ole tivo, dos qua is de pe nde a pr e se r va ç ã o da vida individua l
e da vida c ole tiva , O indivíduo nã o pode de sliga r- se da s c one xõe s c om
a soc ie da de ; re sponsabilidade por si me smo se mpre inc lui
re sponsabilidade pe lo todo. P ode m os a té a r r isc a r e sta a f ir m a ç ã o:
Qua lque r que se j a a c onsc iê nc ia pe la qua l o indivíduo luta e que é
c a pa z de tr a nsm itir, e la be ne f ic ia o c ole tivo. Ao c he ga r a um a c or do
c om o a dve r sá r io a r que típic o, o indivíduo tor na - se c a pa z de pe r c e be r
os pr oble m a s m or a is c ole tivos e de pr e ve r os va lor e s que ir ã o
e m e rgir.

Ma s a pe r c e pç ã o c onsc ie nte do c onf lito m or a l nã o é o ba sta nte . Lida r


c om a som br a e xige um a e sc olha e ntr e dois opostos m utua m e nte
e xc lusivos e ta m bé m sua pe r c e pç ã o na vida c onsc ie nte . Existe m tr ê s
c a m inhos pe los qua is o indivíduo pode te nta r soluc iona r e sse
pr oble m a . Ele pode r á r e nunc ia r a um la do e m f a vor do outr o; pode r á
e va dir- se por c om ple to a o c onf lito; ou pode r á busc a r um a soluç ã o que
sa tisf a ç a a a m bos os la dos. As dua s pr im e ir a s a lte r na tiva s dispe nsa m
m a ior e s c om e ntá r ios. A te r c e ir a pa r e c e , a pr inc ípio, im possíve l.
Com o pode r ia m opostos c ontr a ditór ios — c om o o be m e o m a l — se r
r e c onc ilia dos? De a c or do c om a s r e gr a s da lógic a , te rtium non datur.
P or ta nto, a r e c onc ilia ç ã o dos opostos só pode r ia se r a lc a nç a da pe la
sua "tr a nsc e ndê nc ia "; ou se j a , a lç a r o pr oble m a num níve l m a is
e le va do, onde a s c ontr a diç õe s sã o r e solvida s. Qua ndo a pe ssoa
c onse gue de sliga r- se da ide ntif ic a ç ã o c om um ou outr o dos opostos, é
f r e que nte que e la de sc ubr a , c he ia de a ssom br o, que a na tur e za
inte r vé m e m se u a uxílio. Tudo de pe nde da a titude da pe ssoa . Qua nto
m a is e la c onse guir m a nte r- se livr e de pr inc ípios r ígidos e qua nto m a is
disponíve l e stive r pa r a sa c r if ic a r a vonta de do se u pr ópr io e go,
m a ior e s sã o a s sua s c ha nc e s de se r e m oc iona lm e nte e nvolvida por
a lgo m a ior que e la m e sm a . Ela e ntã o e xpe r im e nta r á um a libe r ta ç ã o
inte r ior, um a c ondiç ã o — pa r a usa r a f r a se de Nie tzsc he — "a lé m do
be m e do m a l". Em te r m os psic ológic os, o sa c r if íc io da vonta de do
e go a c r e sc e nta e ne rgia a o inc onsc ie nte e le va a um a a tiva ç ã o de se us
sím bolos. Esse pr oc e sso c or r e sponde à e xpe r iê nc ia r e ligiosa , na qua l
a r e ssur r e iç ã o se gue - se à c r uc if ic a ç ã o e a vonta de do e go tor na - se
una c om a vonta de de De us. Ta nto do ponto de vista psic ológic o
qua nto do r e ligioso, a a c e ita ç ã o do sa c r if íc io é o sine qua non da
sa lva ç ã o. Os sím bolos, ta nto do be m qua nto do m a l, sof r e m um a
tr a nsf or m a ç ã o. De us pe r de pa r te da sua bonda de ; o m a l pe r de pa r te
da sua m a lda de . À m e dida que c r e sc e m a s dúvida s sobr e a "luz" da
c onsc iê nc ia , a s "tr e va s" da a lm a pa r e c e m m e nos e sc ur a s. Um novo
sím bolo e m e rge e , ne le , os opostos pode m se r r e c onc ilia dos. Te nho
e m m e nte , ne ste insta nte , os sím bolos da Cr uz, do Tai Chi e da Flor de
Our o. Em níve l individua l, a e m e rgê nc ia de sse s sím bolos ge r a lm e nte
a c a r r e ta um a nova c om pr e e nsã o do c onf lito, um a ne utr a liza ç ã o dos
opostos e um a tr a nsf or m a ç ã o da im a ge m de De us. Esse pr oc e sso
se m pr e te m um e f e ito libe r ta dor sobr e a a lm a ; a pe r sona lida de
c onsc ie nte e o a dve r sá r io inte r ior pa r e c e m , a m bos, tr a nsf or m a dos.
Que r e sse pr oc e sso nos a tinj a sob a f or m a de um a doe nç a , de um
distúr bio f ísic o, de um va zio inte r ior ou da dila c e r a nte inva sã o do
nosso íntim o por um a e xigê nc ia im or a l, no f im o m a l pode pr ova r que
é um m e io de c ur a , r e c onc ilia ndo a pe ssoa c om o â m a go do se u se r,
c om o s e l f , a im a ge m da divinda de . A pe ssoa que a lc a nç a r e ssa
r e c onc ilia ç ã o nã o a pe na s se se ntir á a be r ta a o c r ia tivo; e la ta m bé m
se ntir á m a is um a ve z a te nsã o dos opostos — a gor a , por é m , de um a
m a ne ir a positiva — e , de sse m odo, f ina lm e nte ir á r e c upe r a r se us
pode r e s de de c isã o e a ç ã o.

Cobre o te u c orpo de ungue ntos


e põe de públic o as luas c hagas,
pois isso é parte da c ura.
Ao te mortific are s assim, tornas- te
mais mise ric ordioso e mais sábio.
M e smo que por ora não haja nada
de e rrado c ontigo, talv e z logo te torne s
o home m que fe z de ssa atitude
um c omportame nto tão c omum.
Rum i
Par t e 10

Assumindo nosso lado e sc ur o at r avé s da int r ovisão, da ar t e e do


r it ual
Se um c a m inho houve r pa r a se r m os m e lhor e s, e le e sta r á e m um olha r
m a is ple no a o que é pior.

Thomas Hardy

E, a ssim , a pe ssoa que "c om e u" a pr ópr ia som br a dif unde a c a lm a e


m ostr a m a is tr iste za que r a iva . Se os a ntigos e sta va m c e r tos a o dize r
que a s tr e va s c ontê m inte ligê nc ia , e a té m e sm o inf or m a ç õe s, a pe ssoa
que "c om e u" um a pa r te de sua som br a te m m a is e ne rgia e ta m bé m é
m a is inte lige nte .
Robe rt Bly

Essa noite sonhe i,


a h, doc e ilusã o,
que ha via a be lha s e m m e u c or a ç ã o
a tr a nsf or m a r e m m e l o que e r r e i.
Antonio M ac hado

Se de spe r ta s a quilo que e stá de ntr o de ti, o que de spe r ta s te sa lva r á .


Se nã o de spe r ta s o que e stá de ntr o de ti, o que nã o de spe r ta s te
de str uir á .
J e sus

Introdução

O obj e tivo do "tr a ba lho c om a som br a " — inte gr a r o la do e sc ur o —


nã o pode se r a lc a nç a do c om a lgum m é todo sim ple s ou c om
m a la ba r ism os m e nta is. P e lo c ontr á r io, é um a ba ta lha c om ple xa e
c ontínua que e xige um gr a nde c om pr om isso, vigilâ nc ia e o a poio
a m or oso de outr os que via j a m por um a r ota se m e lha nte .

Assum ir a som br a nã o que r dize r a lc a nç a r a ilum ina ç ã o por ba nir o


la do e sc ur o, c om o e nsina m a lgum a s tr a diç õe s or ie nta is. E ne m que r
dize r a lc a nç a r a e sc ur idã o por se guir o la do e sc ur o, c om o e nsina m
a lguns pr a tic a nte s da m a gia ne gr a ou do sa ta nism o.

Na ve r da de , a ssum ir a som br a im plic a um a pr of unda m e nto e um a


a m plia ç ã o da c onsc iê nc ia , um a inc lusã o pr ogr e ssiva de tudo a quilo
que f oi r e j e ita do. A a na lista Ba r ba r a Ha nna h c onta que Jung
c ostum a va dize r que a nossa c onsc iê nc ia é c om o um ba r c o a f lutua r
sobr e a supe r f íc ie do inc onsc ie nte .
Ca da por ç ã o da som br a que pe r c e be m os te m se u pe so; e nossa
c onsc iê nc ia a f unda na m e dida e xa ta e m que c oloc a m os c a da por ç ã o
da som br a de ntr o do nosso ba r c o. P ode m os dize r, por ta nto, que a
gr a nde a r te no tr a to c om a som br a c onsiste e m c a r r e ga r m os
c or r e ta m e nte o nosso ba r c o; se pe ga m os pouc a c a rga , f lutua m os pa r a
longe da r e a lida de e nos tor na m os um a m a c ia nuve m br a nc a , se m
substâ nc ia a lgum a , no c é u; se c a r r e ga m os de m a is o ba r c o, pode m os
f a zê - lo ir a pique .

De sse m odo, o "tr a ba lho c om a som br a " e stá se m pr e nos f or ç a ndo a


a dota r um outr o ponto de vista , r e sponde ndo à vida c om nossos tr a ç os
nã o- de se nvolvidos e c om o nosso la do instintivo, e vive ndo a quilo que
Jung c ha m ou "a te nsã o dos opostos" — c onte ndo o be m e o m a l, o
c e r to e o e r r a do, a luz e a s tr e va s, e m nosso pr ópr io c or a ç ã o.

"Lida r c om a som br a " signif ic a e spr e ita r nos c a ntos e sc ur os da nossa


m e nte , onde ve rgonha s se c r e ta s pe r m a ne c e m oc ulta s e voze s
viole nta s sã o sile nc ia da s. "Lida r c om a som br a " signif ic a pe dir a nós
m e sm os pa r a e xa m ina r, de pe r to e c om hone stida de , o que e xiste
num a c e r ta pe ssoa que nos ir r ita ou nos r e pe le ; o que e xiste num c e r to
gr upo r a c ia l ou r e ligioso que nos hor r or iza ou nos c a tiva ; e o que
e xiste na pe ssoa a m a da que nos e nc a nta e nos le va a ide a lizá - la .
"Lida r c om a som br a " signif ic a f ir m a r um "a c or do de c a va lhe ir os"
c om o nosso se lf a f im de nos e nvolve r m os num diá logo inte r ior que
pode r á , e m a lgum ponto a o longo da e str a da , r e sulta r num a a utê ntic a
a utoa c e ita ç ã o e num a ve r da de ir a c om pa ixã o pe los outr os.

Em c a r ta pe ssoa l e sc r ita e m 1937, Jung diz que lida r c om a som br a


"c onsiste unic a m e nte num a a titude . Em pr im e ir o luga r, a pe ssoa
pr e c isa a c e ita r e le va r e m c onta , c om se r ie da de , a e xistê nc ia da
som br a . Em se gundo, é ne c e ssá r io que a pe ssoa se inf or m e sobr e sua s
qua lida de s e inte nç õe s. E, e m te r c e ir o luga r, longa s e dif íc e is
ne goc ia ç õe s se r ã o ine vitá ve is".

O sim ple s f a to de da r o pr im e ir o pe que no pa sso — r e c onhe c e r a s


tr e va s que e xiste m de ntr o de c a da c or a ç ã o hum a no — ta lve z nos tor ne
m a is m ode r a dos e hum ilde s. Esse pa sso pode se r inic ia do pe la tr a iç ã o
de um a pe ssoa que a m a m os, pe la m e ntir a de um a m igo e m que m
c onf ia m os, pe la im postur a de um m e str e que r e spe ita m os, ou por um
e stupr o ou a ssa lto c om e tidos por um e str a nho qua lque r. Em qua lque r
de sse s c a sos, o e nc ontr o c om a som br a r ouba - nos a inoc ê nc ia .

Se o e spe lho gir a r e pude r m os obse r va r e sse s c om por ta m e ntos e m nós


m e sm os, r e c onhe c e ndo a ve r da de m a is pr of unda de que o a m a nte e o
m e ntir oso, o sa nto e o pe c a dor vive m e m c a da um de nós, ta lve z
f ique m os c hoc a dos e pa r a lisa dos a o ve r a br e c ha que e xiste e ntr e
a quilo que som os e a quilo que pe nsá va m os se r.

Se pe r m itir m os que e ssa ve r da de nos pe ne tr e e m pr of undida de , ta lve z


de ixe m os de a gir c om o o hom e m da f á bula : e le pe r de u a c ha ve de
c a sa na e sc ur idã o dia nte da por ta m a s insiste e m pr oc ur á - la e m volta
do poste , por que a li a luz é m e lhor. Ta lve z a pr e nda m os, va ga r osa e
ine xor a ve lm e nte , que a c ha ve e stá no e sc ur o; ta lve z a pr e nda m os que ,
se pude r m os a c e ita r pr e c isa m e nte a quilo que m a is de spr e za m os e m
nós m e sm os ou nos outr os, e la pode r á le va r- nos à tota lida de .

Com o a Be la a c e ita ndo a Fe r a , nossa be le za se a pr of unda à m e dida


que r e spe ita m os a nossa be sta lida de . O poe ta Ra ine r Ma r ia Rilke
pe r c e be u- o qua ndo a f ir m ou te m e r que , se se us de m ônios o
a ba ndona sse m , se us a nj os f ugir ia m .

E a ssim c om e ç a m os, ta lve z c om tim ide z, a da r o se gundo pa sso de


Jung — de sc obr ir a s qua lida de s da nossa pr ópr ia som br a , obse r va ndo
a te nta m e nte nossa s r e a ç õe s à s outr a s pe ssoa s e a dm itindo que e la s
nã o sã o o "outr o" ou o "inim igo" e , sim , que um im pulso de ntr o de nós
f a z c om que a s ve j a m os sob e ssa f or m a ne ga tiva . De sse m odo,
pode m os a pr e nde r a c ha m a r de volta nossa s pr oj e ç õe s e a r e c upe r a r
a e ne rgia e a f or ç a que , c om o diz Robe r t Bly , pe r te nc e m a o nosso
te sour o.

15
Em The Spe c trum of Consc iousne ss [ O Espe c tr o da Consc iê nc ia ] , o
f ilósof o tr a nspe ssoa l Ke n Wilbe r e xplor a a pr oj e ç ã o de qua lida de s
ne ga tiva s sobr e os outr os. No Ca pítulo 58, e le de sc r e ve c om o a ssum ir
r e sponsa bilida de por e la s a o r e c onhe c e r que "a som br a nã o é um
a ssunto e ntr e voc ê e os outr os, m a s um a ssunto e ntr e voc ê e voc ê ".

No Ca pítulo 59, e xtr a ído de A Little Book on the Human Shadow [ Um


P e que no Livr o sobr e a Som br a Hum a na ] , o poe ta Robe r t Bly suge r e
que , pa r a pode r m os "c om e r a som br a ", pr e c isa m os f a ze r m a is do que
ide ntif ic á - la ; pr e c isa m os pe dir a os outr os que nos de volva m nossos
tr a ç os r e pr im idos, be m c om o usa r a c r ia tivida de pa r a inte gr á - los.

O psic ólogo e e sc r itor Na tha nie l Br a nde n, que popula r izou a e xpr e ssã o
disowne d se lf [ o "e u" r e pr im ido] , c onta - nos a histór ia de a lguns
pa c ie nte s que r e tom a r a m os se ntim e ntos inf a ntis de dor e e ne rgia .

Os psic ólogos Ha l Stone e Sidr a Winke lm a n a plic a m o P r oc e sso do


Diá logo c om a Voz pa r a inte gr a r e ne rgia s r e pr im ida s, ta is c om o a
se nsua lida de e os se ntim e ntos de m onía c os. Ne ste e xc e r to de
Embrac ing Our Se lv e s [ Abr a ç a ndo Nossos Eus] , o c a sa l ilustr a o se u
m é todo c onta ndo a lgum a s histór ia s de pa c ie nte s.
Num e xc e r to de He aling ík e Shame Thaí Binds You [ Cur a ndo a
Ve rgonha que o I m obiliza ] , o f a m oso e sc r itor, c onf e r e nc ista e líde r de
c ur sos John Br a dsha w e xplor a a voz inte r ior que nos c a usa ve rgonha e
nos c r itic a . Com o disse a a na lista j unguia na Gilda Fr a ntz: "A ve rgonha
é o osso que pr e c isa m os r oe r a té o f im pa r a inte gr a r m os todo o
c om ple xo da som br a ."

Abr indo um a c ur ta sé r ie de e nsa ios sobr e a im a gina ç ã o a tiva , a


a na lista Ba r ba r a Ha nna h of e r e c e um a intr oduç ã o ge r a l à pr á tic a , ta l
c om o lhe f oi e nsina da por Jung. Voc ê va i le r a lguns c onse lhos pr á tic os
sobr e a m a ne ir a de usa r a e ne rgia c r ia tiva pa r a a ssum ir a som br a .

Em dois e nsa ios e sc r itos e spe c ia lm e nte pa r a e ste livr o, Linda


Ja c obson, um a a r tista de Los Ange le s, e nsina um a pr á tic a que usa a
visua liza ç ã o a f im de e voc a r im a ge ns pa r a de se nha r a som br a ; e a
psic ote r a pe uta e r om a nc ista De e na Me tzge r e xplor a o a to de e sc r e ve r
sobr e o outro c om o um a f or m a a uto- r e ve la dor a de "tr a ba lho c om a
som br a ".

Me sm o c om todo o gr a nde e sf or ç o pa r a a ssum ir a som br a ,


e nvolve ndo pr olonga da s ne goc ia ç õe s inte r ior e s, a inda a ssim o
r e sulta do é inc e r to. Nã o c onhe c e m os ne nhum se r hum a no c om ple to
ou pe r f e ito que te nha tor na do c onsc ie nte s toda a ve rgonha , a a vide z, a
inve j a , a r a iva , o r a c ism o e a s te ndê nc ia s de c onstr uir o inim igo. Nã o
e xiste ne nhum se r hum a no que te nha pa r a do de pr oj e ta r sobr e os
outr os sua s e sc ur a s inf e r ior ida de s ou se us lum inosos a nse ios he r oic os.

O que sa be m os é que , à m e dida que va m os tr a ze ndo a luz c a da


c a m a da da som br a , à m e dida que va m os e nf r e nta ndo c a da m e do e
r e tom a ndo c a da a ve r sã o, de sc obr im os pr ogr e ssiva m e nte outr a e m a is
outr a pe pita de our o e nte r r a da no pó. O pr oc e sso de "m ine r a ç ã o" nos
e sc ur os r e c e ssos da psique hum a na é inf indá ve l. Ma s num c e r to
insta nte , e m a lgum e str a nho ponto de m uta ç ã o, a s qua lida de s que
a nte s nos pa r e c ia m tã o a tr a e nte s e tã o c he ia s de luz sã o la nç a da s na
e sc ur idã o — e a s qua lida de s que a nte s nos pa r e c ia m pe r ve r sa s ou
f r a c a s pa ssa m a se r, de a lgum m odo, a tr a e nte s. Qua ndo a
se nsua lida de e a m a líc ia f e m inina de um a m ulhe r e stã o na som br a , a s
m u lh e r e s s e x y pa r e c e m - lhe e spa lha f a tosa s e m a nipula dor a s; m a s
qua ndo sua pr ópr ia se nsua lida de é de spe r ta da , a que la s m e sm a s
m ulhe r e s lhe pa r e c e m c om o ir m ã s.

Do m e sm o m odo, um hom e m te m hor r or da s gr a nde s e m pr e sa s por


c a usa de sua ga nâ nc ia , c om pe titivida de e va lor e s or ie nta dos pa r a
obj e tivos; m a s, qua ndo a lc a nç a o suc e sso, e le nã o ir á j ulga r tã o
a pr e ssa da m e nte se us ir m ã os m a is m a te r ia lista s. Em c a da c a so, nossa
ide ntida de se e xpa nde pa r a inc luir a que la s c a r a c te r ístic a s que ha via m
sido e xila da s sobr e os outr os.

Ne ssa gue r r a e ntr e os opostos, e xiste a pe na s um únic o c a m po de


ba ta lha : o c or a ç ã o hum a no. E, de a lgum m odo, a o a c e ita r c om
pa ssiva m e nte o la do e sc ur o da r e a lida de , nos tor na m os os por ta dor e s
da luz. Abr im o- nos pa r a o outr o — pa r a o e str a nho, o f r a c o, o
pe c a dor, o de spr e za do — e a pe na s pe lo a to de inc luí- lo nós o
tr a nsm uta m os. Ao f a zê - lo, c a m inha m os e m dir e ç ã o à tota lida de .

58. Assumindo r e sponsabilidade pe la pr ópr ia sombr a

KEN WILB ER

Assim c om o a pr oj e ç ã o de e moç õe s ne ga tiva s, ta m bé m a pr oj e ç ã o de


qualidade s ne ga tiva s é m uito c om um na nossa soc ie da de , pois c a ím os
na ilusã o de e quipa r a r "ne ga tivo" a "inde se j á ve l". De sse m odo, e m
ve z de a c e ita r nossos tr a ç os ne ga tivos e inte gr á - los, nós os a lie na m os
e pr oj e ta m os, ve ndo- os e m toda s a s outr a s pe ssoa s e xc e to e m nós
m e sm os. Ma s e le s, c om o se m pr e , c ontinua m a nos pe r te nc e r. P or
e xe m plo, num gr upo de de z ga r ota s, nove gosta m de Jill; m a s a
dé c im a , Be tty , nã o a supor ta pois a c onside r a um a hipóc r ita . E Be tty
ode ia a hipoc r isia . Ela f a z de tudo pa r a c onve nc e r a s outr a s
a m iguinha s da suposta hipoc r isia de Jill; m a s ne nhum a de la s se de ixa
c onve nc e r, e isso a e nf ur e c e a inda m a is. Ta lve z se j a e vide nte que
Be tty ode ia Jill a pe na s por nã o te r c onsc iê nc ia de sua s pr ópr ia s
te ndê nc ia s à hipoc r isia ; no insta nte e m que pr oj e ta e ssa s te ndê nc ia s
sobr e Jill, o c onf lito e ntr e Be tty e Be tty tr a nsf or m a - se num c onf lito
e ntr e Be tty e Jill. Está c la r o que Jill na da te m que ve r c om e sse
c onf lito — e la sim ple sm e nte se r ve c om o um inde se j a do e spe lho pa r a
o ódio de Be tty por si m e sm a .

Todos nós te m os pontos c e gos — te ndê nc ia s e tr a ç os que


sim ple sm e nte r e c usa m os a dm itir c om o se ndo nossos, que nos
r e c usa m os a a c e ita r e que , por ta nto, a r r e m e ssa m os sobr e o m e io
a m bie nte , onde la nç a m os m ã o de todo o nosso f a lso m or a lism o pa r a ,
e nf ur e c idos e indigna dos, luta r c ontr a e le s, se m pe r c e be r que o nosso
pr ópr io ide a lism o nos c e ga a nte o f a to de que a ba ta lha é tr a va da no
nosso íntim o e de que o inim igo e stá m uito m a is pr óxim o de nós. E a
únic a c oisa ne c e ssá r ia pa r a que e sse s a spe c tos se j a m inte gr a dos é
tr a ta r a nós m e sm os c om a m e sm a bonda de e c om pr e e nsã o que
dispe nsa m os a os nossos a m igos. Com o Jung, c om a m a ior e loquê nc ia ,
a f ir m a : A a c e ita ç ã o de si m e sm o é a e ssê nc ia do pr oble m a m or a l e a
e pítom e de toda um a visã o de vida . Alim e nta r os f a m intos, pe r doa r
um insulto, a m a r o inim igo e m nom e de Cr isto — toda s e ssa s, se m
dúvida a lgum a , sã o gr a nde s vir tude s. Aquilo que f a ç o a o m e nor dos
m e us ir m ã os, e u o f a ç o a Cr isto. Ma s o que a c onte c e se e u de sc obr ir
que o m e nor de ntr e e le s, o m a is pobr e de ntr e os m e ndigos, o m a is
im pude nte de ntr e os pe c a dor e s, o pr ópr io inim igo, todos e le s e stã o
de ntr o de m im e que e u, e u m e sm o, pr e c iso da s e sm ola s da m inha
pr ópr ia bonda de , que e u m e sm o sou o inim igo que pr e c isa se r a m a do
— o que a c onte c e e ntã o?1

As c onse quê nc ia s sã o se m pr e dupla s: pr im e ir o, c he ga m os a a c r e dita r


que som os tota lm e nte ise ntos da qua lida de que e sta m os pr oj e ta ndo e ,
por ta nto, que e la nã o e stá à nossa disposiç ã o — nã o a gim os sobr e e la ,
nã o a utiliza m os e nã o a sa tisf a ze m os de m odo a lgum , o que pr ovoc a
e m nós um e sta do c r ônic o de f r ustr a ç ã o e de te nsã o. Se gundo, ve m os
e ssa s qua lida de s c om o e xiste nte s no m e io a m bie nte , onde e la s
a ssum e m pr opor ç õe s im pr e ssiona nte s ou a te r r a dor a s, de m odo que
a c a ba m os por nos f ustiga r c om a nossa pr ópr ia e ne rgia .

No Níve l do Ego, a pr oj e ç ã o é ide ntif ic a da c om e xtr e m a f a c ilida de :


se um a pe ssoa ou c oisa no a m bie nte nos informa, pr ova ve lm e nte nã o
e sta m os pr oj e ta ndo; por outr o la do, se e la nos afe ta, o m a is pr ová ve l é
que se j a m os um a vítim a da s nossa s pr ópr ia s pr oj e ç õe s. P or e xe m plo,
ta lve z Jill f osse r e a lm e nte um a hipóc r ita , m a s se r ia e ssa um a r a zã o
vá lida pa r a Be tty odiá - la ? Ce r ta m e nte que nã o. Be tty nã o e r a a pe na s
inform ada de que Jill e r a hipóc r ita , e la e r a f or te m e nte afe tada pe la
hipoc r isia de Jill; e sse é um sina l c e r to de que o ódio de Be tty por Jill
se r ia a pe na s a pr oj e ç ã o ou o e xtr a va sa m e nto do de spr e zo por si
m e sm a . E, do m e sm o m odo, qua ndo Ja c k a inda se pe rgunta va se ir ia
ou nã o lim pa r a ga r a ge m e sua m ulhe r lhe pe rguntou c om o e sta va
indo a lim pe za , e le se e xc e de u na r e a ç ã o. Se Ja c k r e a lm e nte nã o
tive sse de se j a do lim pa r a ga r a ge m , se f osse r e a lm e nte inoc e nte
da que le im pulso, te r ia r e spondido a pe na s que ha via m uda do de ide ia .
Ma s nã o f oi isso que e le f e z; e le gr itou pa r a e la : "Olha só e l a m e
m a nda ndo lim pa r o r a io da ga r a ge m ! " Ja c k pr oj e tou se u pr ópr io
de se j o e , e m se guida , e xpe r im e ntou- o sob a f or m a de um a pr e ssã o;
de sse m odo, a inoc e nte pe rgunta da e sposa nã o a pe na s o informou
c om o ta m bé m o a f e t o u f or te m e nte : e le se se ntiu inde vida m e nte
pr e ssiona do. E e ssa é a dif e r e nç a c r uc ia l: a quilo que ve j o nos outr os
e stá m a is ou m e nos c or r e to se a pe na s m e informa; m a s, se m e afe ta
f or te m e nte e m te r m os de e m oç ã o, e ntã o tr a ta - se , se m dúvida , de um a
pr oj e ç ã o. Assim , qua ndo nos a pe ga m os de m a ne ir a oste nsiva a
a lgué m ( ou a a lgum a c oisa ) , e sta m os a br a ç a ndo a som br a ; e qua ndo
e vita m os ou odia m os a lgué m num níve l f or te m e nte e m oc iona l,
e sta m os tr a va ndo um c om ba te c om a som br a — ne sse c a so, o Qua r to
16
Dua lism o- Re pr e ssã o- P r oj e ç ã o oc or r e u do m odo m a is de f initivo.

O a to de de sf a ze r um a pr oj e ç ã o r e pr e se nta um m ovim e nto ou


tr a nsiç ã o "de sc e nde nte " a o longo do e spe c tr o da c onsc iê nc ia ( da
Som br a pa r a o Níve l do Ego) pois, a o r e c upe r a r a spe c tos de nós
m e sm os que ha vía m os a lie na do, e sta m os a m plia ndo nossa á r e a de
ide ntif ic a ç ã o. E o pr im e ir o pa sso, o pa sso f unda m e nta l, c onsiste
se m pr e e m pe r c e be r m os que a s c oisa s que j ulgá va m os que o m e io
a m bie nte f a zia pa r a nós de m a ne ir a m e c â nic a sã o, na ve r da de , c oisas
que e stamos faze ndo para nós me smos — c oisas pe tas quais somos
re sponsáv e is.

De sse m odo, qua ndo sinto a nsie da de , ge r a lm e nte a le go que sou um a


vítim a inde f e sa de ssa te nsã o e que a s pe ssoa s ou situa ç õe s no m e io
a m bie nte e stã o faze ndo c om que e u m e sinta a nsioso. Me u pr im e ir o
pa sso se r á tor na r- m e ple na m e nte c onsc ie nte de ssa a nsie da de , f ic a r
e m c onta to c om e la , e str e m e c e r e se ntir c a la f r ios e a r que j a r — se ntir
re alme nte toda e ssa ansie dade , c onvidá - la a e ntr a r, e xpr e ssá - la — e
a ssim pe r c e be r que e u sou o r e sponsá ve l, que e u e stou c r ia ndo a
te nsã o, que e u e stou bloque a ndo a m inha e xc ita ç ã o e , por c a usa disso,
e stou se ntindo a nsie da de . Eu e stou f a ze ndo isso pa r a m im m e sm o;
logo, e ssa a nsie da de é um a ssum o e ntr e e u o e u, nã o e ntr e e u e o
m e io a m bie nte . Essa m uda nç a da m inha a titude signif ic a que , onde
a nte s e u a lie na va a m inha e xc ita ç ã o, se pa r a va - m e de la e a le ga va se r
sua v ítima, e u a gor a e stou assumindo a re sponsabilidade por aquilo que
e stou faze ndo a mim me smo.

Se o pr im e ir o pa sso pa r a "c ur a r " a s pr oj e ç õe s da som br a c onsiste e m


a ssum ir a r e sponsa bilida de pe la s nossa s pr oj e ç õe s, e ntã o o se gundo
pa sso c onsistir á sim ple sm e nte e m re v e r te r a dir e ç ã o da s nossa s
pr oj e ç õe s e f a ze r a os outr os, c om toda a ge ntile za , a quilo que a té
a gor a e stive m os f a ze ndo a nós m e sm os c om toda a c r ue lda de . P or
e xe m plo, "O m undo m e r e j e ita " tr a nsf or m a - se e m "Eu r e j e ito, pe lo
m e nos ne ste insta nte , todo e sse m a ldito m undo! " A f r a se "Me us pa is
que r e m que e u e stude " tr a nsf or m a - se e m "Eu que r o e studa r ! " A f r a se
"Minha pobr e m ã e zinha pr e c isa de m im " tr a nsf or m a - se e m "Eu que r o
f ic a r pr óxim o de m inha m ã e ! " A f r a se "Te nho m e do de se r
a ba ndona do por todos" tr a nsf or m a - se e m "Da ne m - se todos, nã o dou
bola pa r a ningué m ! " A f r a se "Todo m undo m e olha de m a ne ir a
c r ític a " tr a nsf or m a - se e m "Eu te nho inte r e sse e m da r um a opiniã o
c r ític a sobr e todo m undo".

Logo volta r e m os a disc utir e sse s dois pa ssos f unda m e nta is da


r e sponsa bilida de e da r e ve r sã o; va m os a gor a f a ze r um a pa usa pa r a
obse r va r que , e m todos e sse s c a sos de pr oj e ç ã o da som br a , te nta m os
"ne ur otic a m e nte " tor na r a c e itá ve l nossa a utoim a ge m a tr a vé s do
pr oc e sso de tom á - la ine xa ta . Todos os a spe c tos da nossa a utoim a ge m
( do nosso e go) que sã o inc om pa tíve is c om a quilo que à pr im e ir a vista
a c r e dita m os se r o m e lhor pa r a nós m e sm os, ou todos os a spe c tos que
a lie na m os nos m om e ntos de te nsã o, nos im pa sse s ou gr a nde s dile m a s
— todo e sse pote nc ia l de a utode se nvolvim e nto é a ba ndona do. O
r e sulta do é que e str e ita m os a nossa ide ntida de a té que e la se tor na
a pe na s um a f r a ç ã o do nosso e go: a pe rsona distor c ida e e m pobr e c ida .
E a ssim , de um só golpe , som os c onde na dos a se r e te r na m e nte
a ssom br a dos pe la nossa pr ópr ia Som br a — e ssa Som br a à qua l, hoj e ,
nos r e c usa m os a c onc e de r o be ne f íc io de um m ínim o da nossa
a te nç ã o c onsc ie nte . Ma s a Som br a se m pr e te m a últim a pa la vr a ; pois
e la f or ç a a e ntr a da , na nossa c onsc iê nc ia , da a nsie da de , da c ulpa , do
m e do e da de pr e ssã o. A Som br a tr a nsf or m a - se num sintom a e a ga r r a -
se a nós c om o o va m pir o a suga r o sa ngue de sua pr e sa .

Em lingua ge m um ta nto f igur a da , pode m os dize r que c indim os a


c onc órdia disc ors da psique e m num e r osa s pola r ida de s, c ontr á r ios e
opostos — a os qua is, por c onve niê nc ia , nos r e f e r im os c ole tiva m e nte
c om o o Qua r to Dua lism o ( ou se j a , a c isã o e ntr e a p e rso n a e a
Som br a ) . Em c a da um de sse s c a sos, a ssoc ia m o- nos c om a pe na s "um a
m e ta de " da dua lida de e la nç a m os o oposto de ssa m e ta de , r e j e ita do e
ge r a lm e nte de spr e za do, pa r a o m undo c r e pusc ula r da Som br a .
P or ta nto, a Som br a e xiste pr e c isa m e nte c om o o oposto da quilo que
nós, e nqua nto pe rsona, e m níve l c onsc ie nte a c r e dita m os e pe nsa m os
se r.

Logo, se voc ê quise r sa be r c om e xa tidã o c om o a sua Som br a vê o


m undo, ba sta que voc ê — a título de e xpe r iê nc ia pe ssoa l — assuma
e x atame nte o oposto daquilo que de se ja, gosta, se nte , que r, pre te nde
ou ac re dita no nív e l c onsc ie nte . Atr a vé s de ssa e xpe r iê nc ia voc ê
pode r á c onsc ie nte m e nte f a ze r c onta to c om os se us opostos, e xpr e ssá -
los, tr a ba lhá - los e , e m últim a a ná lise , r e tom á - los, P ois, a f ina l de
c onta s, ou voc ê a ssum e se us opostos ou e le s a ssum ir ã o voc ê — a
Som br a se m pr e te m a últim a pa la vr a . E e sta é a liç ã o que
a pr e nde m os ( se é que a lgo a pr e nde m os) c om c a da e xe m plo de ste
c a pítulo: pode m os sa bia m e nte tomar c onsc iê nc ia dos nossos opostos...
c a so c ontr á r io, se r e m os f or ç a dos a nos pre c av e r c ontra e le s.

Ma s, a te nç ã o: tr a ba lha r os opostos, e sta r c onsc ie nte da Som br a e


e ve ntua lm e nte r e tom á - la , nã o im plic a ne c e ssa r ia m e nte uma aç ão
sobr e e le s! P a r e c e que qua se todos nós se ntim os a m a ior r e lutâ nc ia
e m c onf r onta r nossos opostos, por m e do de se r m os subj uga dos por
e le s. No e nta nto, a s c oisa s se pa ssa m e xa ta m e nte do m odo inve r so: só
a c a ba m os por se guir os dita m e s da Som br a , c ontr a a nossa vonta de ,
qua ndo a nossa Som br a é inc onsc ie nte .

P a r a pode r m os tom a r um a de c isã o vá lida ou f a ze r um a e sc olha


se gur a , pr e c isa m os e sta r ple na m e nte c onsc ie nte s da s "dua s m e ta de s",
de a m bos os la dos, dos dois polos opostos; se m pr e que um de le s é
inc onsc ie nte , o m a is pr ová ve l é que a nossa de c isã o nã o se j a sá bia .
Em toda s a s á r e a s da vida psíquic a , c om o de m onstr a m todos os
e xe m plos de ste c a pítulo, pr e c isa m os c onf r onta r nossos opostos e
r e tom á - los — e isso nã o im plic a , ne c e ssa r ia m e nte , a gir sobr e e le s...
só im plic a e star c onsc ie nte de le s.

À m e dida que va m os pr ogr e ssiva m e nte e nf r e nta ndo nossos opostos,


tor na - se c a da ve z m a is e vide nte — e nunc a se r á de m a is insistir ne ssa
te c la — que , j á que a Som br a é um a f a c e ta r e a l e inte gr a nte do e go,
todos os "sintom a s" e de sc onf or tos que e la pa r e c e e sta r nos inf ligindo
sã o, na r e a lida de , sintom a s e de sc onf or tos que e sta m os inf ligindo a
nós m e sm os; por m a is que , no níve l c onsc ie nte , possa m os pr ote sta r
que se tr a ta do c ontr á r io. E quase c omo se , por e x e mplo, e u e stiv e sse
de libe rada e dolorosame nte me be lisc ando, mas fingindo que não
e slav a me be lisc ando! Qua isque r que se j a m os m e us sintom a s ne sse
níve l — c ulpa , m e do, a nsie da de , de pr e ssã o — todos e le s, a r igor, sã o
o r e sulta do do m e u a to de be lisc a r "m e nta lm e nte " a m im m e sm o. A
im plic a ç ã o dir e ta , por m a is inc r íve l que pa r e ç a , é que e u que ro que
e sse sintoma doloroso, qualque r que se ja a sua nature za, e ste ja
pre se nte e m mim... tanto quanto que ro que e le de sapare ç a!

Assim , o pr im e ir o oposto que voc ê pode te nta r c onf r onta r é e sse


de se j o se c r e to e e nsom br e c ido de m a nte r e c onse r va r se us sintom a s;
e sse de se j o inc onsc ie nte de be lisc a r a si m e sm o. Voc ê m e pe r m itir ia
a insolê nc ia de suge r ir que , qua nto m a is r idíc ula e ssa ide ia lhe
pa r e c e r, m a is e ssa r e a ç ã o indic a r á o qua nto voc ê e stá f or a de c onta to
c om a sua pr ópr ia Som br a , c om a que le se u la do que e stá be lisc a ndo
voc ê ?

Logo, se pe rgunto: "Com o posso m e livr a r de sse sintom a ?", e stou


c om e te ndo um e r r o c r a sso, pois a pe rgunta im plic a que nã o sou e u
que e stou pr oduzindo o sintom a ! Se r ia o e quiva le nte a pe rgunta r :
"Com o posso pa r a r de m e be lisc a r ?" Enqua nto e stou pe rgunta ndo
c om o pa r a r de m e be lisc a r ou e nqua nto e stou te ntando pa r a r de m e
be lisc a r, f ic a m a is do que e vide nte que e u a inda nã o pe r c e bi que sou
e u me smo que e stou m e be lisc a ndo! Com isso a dor pe r m a ne c e , ou a té
m e sm o a um e nta . P ois, se e u pe r c e be r c la r a m e nte que e stou m e
be lisc a ndo, nã o vou pe rgunta r c om o pa r a r — e u vou pa r a r de
im e dia to! Fa la ndo c om toda a f r a nque za , a r a zã o pe la qua l o sintom a
nã o de sa pa r e c e é que voc ê e stá te nta ndo f a ze - lo de sa pa r e c e r. Foi por
e sse m otivo que Fr e de r ic k S. P e r ls a f ir m ou que , e nqua nto
c om ba te r m os um sintom a , e le se a gr a va r á . A m uda nç a de libe r a da nã o
f unc iona , pois e xc luí a Som br a .

De sse m odo, o pr oble m a não é livr a r- se de a lgum sintom a e , sim ,


te nta r a um e ntá - lo, de m odo de libe r a do e c onsc ie nte , pa r a pode r se nti-
lo ple na m e nte , de m odo de libe r a do e c onsc ie nte ! Se voc ê e stá
de pr im ido, te nte f ic a r m a is de pr im ido. Se voc ê e stá te nso, f ique m a is
te nso a inda . Se voc ê se nte c ulpa , a um e nte sua s se nsa ç õe s de
c onhe c e ndo pe la pr im e ir a ve z a nossa Som br a e a té m e sm o nos
sintoniza ndo c om e la ; ou se j a , e sta m os f a ze ndo de m odo c onsc ie nte
a quilo que a té e ntã o f a zía m os de m odo inc onsc ie nte . Qua ndo voc ê , a
título de e xpe r iê nc ia pe ssoa l, invoc ou c onsc ie nte m e nte toda s a s pa r te s
de si m e sm o num e sf or ç o a tivo e de libe r a do de pr oduzir se us sintom a s
a tua is, na ve r da de o que voc ê f e z f oi juntar sua pe rsona e sua Sombra.
Voc ê f e z c onta to c om os se us opostos e se a linhou c om e le s,
c onsc ie nte m e nte ; e m sum a , voc ê r e de sc obr iu a sua Som br a .

P or ta nto, voc ê de ve a m plia r de m odo de libe r a do e c onsc ie nte


qua lque r um dos se us sintom a s a tua is a té a lc a nç a r o ponto e m que
pe r c e be , c onsc ie nte m e nte , que é v o c ê que m os e stá pr oduzindo e
que m se m pr e os pr oduziu; a c onse quê nc ia de sse pr oc e sso é que , pe la
pr im e ir a ve z e de um a m a ne ir a e spontâ ne a , voc ê e stá livr e pa r a
de ixa r de pr oduzi- los. Qua ndo voc ê c onse guir se se ntir mais c ulpa do,
va i lhe oc or r e r que voc ê ta m bé m c onse gue se se ntir me nos c ulpa do —
m a s de um a m a ne ir a a dm ir a ve lm e nte e spontâ ne a . Se voc ê é livr e
pa r a se se ntir de pr im ido, voc ê ta m bé m é livr e pa r a nã o se se ntir
de pr im ido. Me u pa i tinha um m é todo insta ntâ ne o pa r a c ur a r soluç os:
e le of e r e c ia um a nota de vinte dóla r e s e m tr oc a de m a is um , e um
únic o, soluç o. Do m e sm o m odo, a nsie da de c onse ntida de ixa de se r
a nsie da de ; o m é todo m a is f á c il pa r a e lim ina r a te nsã o de um a pe ssoa
é de sa f iá - la a f ic a r o m a is te nsa que lhe f or possíve l. Em todos os
c a sos, a a de sã o c onsc ie nte a um sintom a livr a - nos de sse sintom a .

Ma s nã o f ique pr e oc upa do e m ve r se o sintom a de sa pa r e c e ou nã o —


e le de sa pa r e c e r á , m a s nã o se pr e oc upe c om e le . Tr a ba lha r os opostos
a pe na s pa r a te nta r a pa ga r um sintom a signif ic a da r a e sse tr a ba lho
um a r a zã o de se r m e squinha . Em outr a s pa la vr a s, voc ê nã o pode
tr a ba lha r se us opostos só c om "m e ta de " do c or a ç ã o e de pois
a ve r igua r, c he io de a nsie da de , se o sintom a de sa pa r e c e u ou se
c ontinua pr e se nte . Se voc ê se ouvir dize ndo; "Bom , e u te nte i f a ze r
e sse sintom a se a gr a va r. Só que e le a inda nã o de sa pa r e c e u, m a s e u
que r o, que r o m e sm o, que e le de sa pa r e ç a ! ", pode e sta r c e r to de que
voc ê nã o e sta be le c e u ne nhum c onta to c om a Som br a ; voc ê e stá
a pe na s e xpr e ssa ndo, da boc a pa r a f or a , a lgum a s f r a se s de e f e ito pa r a
a pla c a r os de use s e de m ônios, Voc ê pr e c isa se tr a nsf or m a r ne sse s
de m ônios a té o ponto de pode r, c om de libe r a ç ã o e pr opósito, c om toda
a f or ç a da sua a te nç ã o c onsc ie nte , pr oduzir se us sintom a s a a ga r r a r-
se a e le s.

Ao f a ze r c onta to c om m e us sintom a s e te nta r de libe r a da m e nte m e


ide ntif ic a r c om e le s, de vo m a nte r e m m e nte que qua lque r sintom a —
se te m um núc le o e m oc iona l — é a f or m a visíve l de um a Som br a que
c onté m nã o a pe na s a qua lida de oposta c om o ta m bé m a dire ç ão
oposta . Assim , se m e sinto te r r ive lm e nte m a goa do e m or ta lm e nte
f e r ido "por c a usa de " a lgo que Fula no m e disse , e e sse a lgo m e la nç ou
e m pr of unda a gonia — e m bor a , e m níve l c onsc ie nte , e u sinta a pe na s
boa vonta de e m r e la ç ã o a Fula no —, m e u pr im e ir o pa sso se r á
pe r c e be r que e u e stou f a ze ndo isso pa r a m im m e sm o, que ,
lite r a lm e nte , e u e stou f e r indo a m im m e sm o. Ao a ssum ir a
r e sponsa bilida de pe la s m inha s pr ópr ia s e m oç õe s, tom o- m e c a pa z de
r e ve r te r a dir e ç ã o da pr oj e ç ã o e de pe r c e be r que a que la se nsa ç ã o de
e sta r f e r ido e r a , pr e c isa m e nte , o m e u pr ópr io de se j o de f e r ir Fula no.
A f r a se "Eu m e sinto f e r ido por Fula no" tr a nsf or m a - se , a f ina l e m uito
c or r e ta m e nte , e m "Eu que r o f e r ir Fula no". Bom , isso nã o que r dize r
que e u vou a té lá e spa nc a r Fula no — a pe r c e pç ã o c onsc ie nte da
m inha r a iva é suf ic ie nte pa r a inte gr á - la ( e m bor a e u ta lve z e spa nque
um tr a ve sse ir o, e m luga r do Fula no) . A que stã o é que o m e u sintom a
de a gonia r e f le te nã o a pe na s a qua lida de oposta c om o ta m bé m a
dir e ç ã o oposta . Logo, a lé m de a ssum ir a r e sponsa bilida de pe la m inha
r a iva ( que é a qua lida de oposta à m inha boa vonta de c onsc ie nte e m
r e la ç ã o a Fula no) , pr e c iso tam bé m a ssum ir a r e sponsa bilida de pe lo
f a to de que e ssa r a iva pa r te de mim na dire ç ão de Fula no ( ou se j a , o
oposto da m inha dir e ç ã o c onsc ie nte ) .

Num c e r to se ntido, por ta nto, prime iro pr e c isa m os pe r c e be r — no c a so


da s e m oç õe s pr oj e ta da s — que a quilo que pe nsá va m os que o
a m bie nte e sta va f a ze ndo pa r a nós é , na ve r da de , a lgo que e sta m os
f a ze ndo pa r a nós m e sm os ( e sta m os, lite r a lm e nte , nos be lisc a ndo) ; e
de pois pr e c isa m os pe r c e be r que se tr a ta , na ve r da de , do nosso próprio
de se jo disfarç ado de be lisc ar os outros! E e ntã o pode r e m os substituir
— de a c or do c om a s nossa s pr ópr ia s pr oj e ç õe s — o "de se j o de
be lisc a r os outr os" pe lo de se j o de a m a r os outr os, de odia r os outr os,
de toc a r os outr os, de de ixa r os outr os te nsos, de possuir os outr os, de
olha r pa r a os outr os, de m a ta r os outr os, de f a ze r c onta to c om os
outr os, de e sm a ga r os outr os, de c ontr ola r os outr os, de r e j e ita r os
outr os, de da r a os outr os, de tir a r dos outr os, de br inc a r c om os outr os,
de dom ina r os outr os, de e nga na r os outr os, de e le va r os outr os.
P r e e nc ha voc ê m e sm o os e spa ç os va zios, ou m e lhor, de ixe que a sua
Som br a se e nc a r r e gue disso.

Ve j a be m , e sse s e g u n d o pa sso — r e ve r te r a dir e ç ã o — é


a bsoluta m e nte e sse nc ia l. Se a e m oç ã o nã o f or ple na m e nte
de sc a r r e ga da na dir e ç ã o c or r e ta , c om m uita r a pide z voc ê ir á
e sc or r e ga r de volta a o há bito de vir a r a que la e m oç ã o c ontr a voc ê
m e sm o. Assim , qua ndo voc ê f a z c onta to c om um a e m oç ã o ( o ódio,
por e xe m plo) , a o pe r c e be r que e stá volta ndo o ódio c ontr a si m e sm o,
a tir e - o na dir e ç ã o oposta ! Vir e - o pa r a o outr o la do! A e sc olha a gor a
lhe pe r te nc e : be lisc a r ou se r be lisc a do, olha r ou se r olha do, r e j e ita r
ou se r r e j e ita do.

Re c upe r a r a s pr oj e ç õe s que la nç a m os sobr e os outr os é um pr oc e sso


um pouc o m a is sim ple s — se be m que nã o ne c e ssa r ia m e nte m a is f á c il
— qua ndo se tr a ta de qua lida de s, de tr a ç os ou ide ia s pr oj e ta da s, pois
e la s, e m si, nã o e nvolve m um a dir e ç ã o ( pe lo m e nos nã o um a dir e ç ã o
tã o pr onunc ia da e tã o m óve l qua nto a da s e m oç õe s) . Na r e a lida de ,
tr a ç os positivos ou ne ga tivos ( ta is c om o sa be dor ia , c or a ge m ,
a gr e ssivida de , pe r ve r sida de , m e squinhe z e a ssim por dia nte ) pa r e c e m
se r, e m te r m os r e la tivos, m uito m a is e stá tic os. Só te m os de nos
pr e oc upa r, por ta nto, c om a qua lida de e m si; nã o c om a sua dir e ç ã o. É
e vide nte que , um a ve z pr oj e ta da s e ssa s qua lida de s, é possíve l que
r e a j a m os a e la s de um a m a ne ir a viole nta m e nte e m oc iona l —
pode m os a té m e sm o pr oj e ta r e ssa s e m oç õe s r e a tiva s, de pois r e a gir a
e la s e , a ssim , e ntr a r no ve r tiginoso c ír c ulo vic ioso dos e m ba te s c om a
som br a . E ta m bé m é possíve l que ne nhum a qua lida de ou ide ia se j a
pr oj e ta da a m e nos que c onte nha um a c a rga e m oc iona l. De qua lque r
m a ne ir a , se m pr e pode r e m os a lc a nç a r um a c onside r á ve l r e inte gr a ç ã o
se sim ple sm e nte le va r m os e m c onta , por si m e sm a s, a s qua lida de s
pr oj e ta da s.

Com o se m pr e , os tr a ç os pr oj e ta dos - — a ssim c om o a s e m oç õe s


pr oj e ta da s — se r ã o todos os a spe c tos "vistos" nos outr os que nã o só
nos inf or m a m c om o ta m bé m nos a f e ta m c om c e r ta violê nc ia . Em
ge r a l, tr a ta - se da s qua lida de s, de te stá ve is pa r a nós, que im a gina m os
que outr a s pe ssoa s possue m ; da s qua lida de s que e sta m os se m pr e
dispostos a de nunc ia r e c onde na r c om a m a ior violê nc ia . Nã o im por ta
se e sta m os a pe na s la nç a ndo nossa s c onde na ç õe s c ontr a a m e squinhe z
do nosso pr ópr io c or a ç ã o e sc ur o e e spe r a m os c om isso e xor c izá - lo.
Às ve ze s, a s qua lida de s pr oj e ta da s sã o a lgum a s de nossa s pr ópr ia s
vir tude s e , ne sse c a so, a f e r r a m o- nos à pe ssoa sobr e que m
de posita m os a s nossa s "c oisa s boa s" e , e m ge r a l, te nta m os f e br ilm e nte
c onse r va r e m onopoliza r e ssa pe ssoa . Essa "f e br e " é pr ovoc a da ,
na tur a lm e nte , pe lo im pe r ioso de se j o de nos a f e r r a r m os a e sse s
a spe c tos de nós m e sm os.

Em últim a a ná lise , a s pr oj e ç õe s surge m e m todos os sa bor e s. De


qua lque r m odo, a s qua lida de s pr oj e ta da s — a ssim c om o a s e m oç õe s
pr oj e ta da s — se r ã o se m pr e o oposto da quilo que , e m níve l c onsc ie nte ,
im a gina m os possuir. Ma s ( a o c ontr á r io da s e m oç õe s) os tr a ç os,
qua lida de s e ide ia s nã o possue m , e m si, um a dir e ç ã o; logo, sua
inte gr a ç ã o é dir e ta . No pr im e ir o pa sso do tr a ba lho c om se us opostos,
voc ê c he ga r á a pe r c e be r que a s c oisa s que a m a ou de spr e za nos
outr os sã o a pe na s a s qua lida de s da sua pr ópr ia Som br a . Nã o se tr a ta
de um a ssunto e ntr e voc ê e os outr os, m a s de um a ssunto e ntr e voc ê e
voc ê . Ao tr a ba lha r se us opostos, voc ê ir á toc a r a sua Som br a ; e a o
c om pr e e nde r que e stá be lisc a ndo a si m e sm o, voc ê ir á "pa r a r de se
be lisc a r ". Com o os tr a ç os pr oj e ta dos nã o e nvolve m ne nhum a dir e ç ã o,
sua inte gr a ç ã o nã o e xigir á o se gundo pa sso — a r e ve r sã o.

E a ssim é que , a o lida r c om os nossos opostos e a o c onc e de r dir e itos


igua is à Som br a , f ina lm e nte e ste nde m os nossa ide ntida de ( e , por ta nto,
nossa r e sponsa bilida de ) a todos os a spe c tos da psique ; de ixa m os de
se r a pe na s a pe rsona distor c ida e e m pobr e c ida . E, de ssa m a ne ir a , a
c isã o e ntr e a pe rsona e a Som br a é "inte gr a da e c ur a da ".

59. "Comer" a sombra

ROB ERT B LY

Se r ia a pr opr ia do pe rgunta r : "Na pr á tic a , c om o se f a z pa r a c om e r a


som br a , pa r a tom a r de volta um a pr oj e ç ã o?"

No níve l do c otidia no, pode m os f a ze r a lgum a s suge stõe s: tom e os


se ntidos do olf a to, do pa la da r, do ta to e da a udiç ã o m a is a guç a dos;
que br e se us há bitos; visite tr ibos pr im itiva s; toque m úsic a ; c r ie
a ssusta dor a s im a ge ns de a rgila ; toque os ta m bor e s; isole - se por um
m ê s; ve j a a si m e sm o c om o um gê nio do c r im e . Um a m ulhe r pode r ia
te nta r tr a nsf or m a r- se num pa tr ia r c a de ve z e m qua ndo, só pa r a ve r se
gosta de sse pa pe l... m a s m a nte ndo o e spír ito e spor tivo. Um hom e m
pode r ia te nta r tr a nsf or m a r- se num a f e itic e ir a de ve z e m qua ndo, só
pa r a ve r c om o se se nte ne sse pa pe l... m a s m a nte ndo o e spír ito
e spor tivo. Esse hom e m ir ia ga rga lha r c om o um a f e itic e ir a e c onta r
histór ia s de f a da s e a que la m ulhe r ir ia ga rga lha r c om o um giga nte e
c onta r histór ia s de f a da s.

Qua ndo um hom e m de sc obr e qua l a m ulhe r ( ou qua is a s m ulhe r e s)


que e stá de posse da "sua " f e itic e ir a , e le va i a té e la , c um pr im e nta - a
c or dia lm e nte e diz: "Que r o a m inha f e itic e ir a de volta . Entr e gue - a
pa r a m im ." Um e str a nho sor r iso surgir á no r osto de ssa m ulhe r ; ta lve z
e la de volva a f e itic e ir a de sse hom e m , ta lve z nã o. Se e la a de volve r, o
hom e m pe dir á lic e nç a , se volta r á pa r a a e sque r da , de c a r a pa r a a
pa r e de , e c om e r á a f e itic e ir a , Um a m ulhe r pode r ia ir a té sua m ã e
c om um pe dido se m e lha nte , pois é m uito f r e que nte que a s m ã e s
gua r de m a f e itic e ir a da s f ilha s c om o um a f or m a de pode r. Um a
m ulhe r pode r ia ir a té se u pa i e dize r : "O se nhor e stá c om o m e u
giga nte . Eu o que r o de volta ." Ou ta lve z e ssa m ulhe r pr oc ur e um
a ntigo pr of e ssor ou um e x- m a r ido ( ou o a tua l) e lhe diga : "Voc ê e stá
c om o m e u pa tr ia r c a ne ga tivo. Eu o que r o de volta ." Esse s e nc ontr os
ge r a lm e nte sã o m uito úte is, m e sm o qua ndo a pe ssoa que e stá c om a
f e itic e ir a ( ou c om o giga nte ou o a nã o) j á m or r e u.
Existe m m uita s outr a s m a ne ir a s de "c om e r " a som br a — ou de
r e c upe r a r nossa s pr oj e ç õe s, ou de r e duzir o ta m a nho da sa c ola que
a r r a sta m os a tr á s de nós — e nós, todos nós, c onhe c e m os de ze na s e
de ze na s de la s. Que r o m e nc iona r o uso da lingua ge m c uida dosa ; por
lingua ge m c uida dosa e nte ndo a que la lingua ge m que é a c ur a da e te m
um a ba se f ísic a . O uso c onsc ie nte da lingua ge m pa r e c e se r o m é todo
m a is pr ove itoso pa r a r e c upe r a r m os a substâ nc ia da som br a e spa lha da
pe lo m undo. A e ne rgia que ir r a dia m os f ic a f lutua ndo à nossa volta ,
a lé m da psique ; e um a da s m a ne ir a s de tr a zê - la pa r a de ntr o da psique
é puxá - la pe la c or da da lingua ge m . Ce r tos tipos de lingua ge m sã o
c om o um a r e de de pe sc a r ; pr e c isa m os usa r e ssa r e de de um m odo
a tivo; pr e c isa m os la nç a r a r e de no oc e a no do m undo. Se que r o de
volta a m inha f e itic e ir a , e sc r e vo sobr e e la ; se que r o de volta o m e u
guia e spir itua l, e sc r e vo sobr e e le , e m ve z de se nti- lo de um m odo
pa ssivo num a outr a pe ssoa . A lingua ge m c onté m a substâ nc ia
r e c onstituída da som br a de todos os nossos a nc e str a is, c om o de ixa m
be m c la r o pe r c e be r I sa a c Ba she vis Singe r ou Sha ke spe a r e . Se num
de te r m ina do m om e nto a lingua ge m nã o pa r e c e r o ide a i, ta lve z a
pintur a ou a e sc ultur a possa m se r o ide a l, ou se nã o c r ia r im a ge ns c om
a qua r e la . Qua ndo pinta m os a f e itic e ir a c om um a inte nç ã o c onsc ie nte ,
logo de sc obr im os e m que c a sa e la e stá m or a ndo. De sse m odo, o
quinto e stá gio e nvolve a tivida de e im a gina ç ã o, e nvolve c a ç a r e
pe rgunta r. "Se m pr e gr ite por a quilo que voc ê que r."

As pe ssoa s pa ssiva s e m r e la ç ã o a o m a te r ia l que pr oj e ta m c ontr ibue m


pa r a o pe r igo da gue r r a nuc le a r, por que c a da pa r c e la de e ne rgia que
de ixa m os de e nvolve r a tiva m e nte c om a lingua ge m ou a a r te f ic a
f lutua ndo na a tm osf e r a que e nc obr e os Esta dos Unidos... e Rona ld
Re a ga n pode usá - la . Ele possui um giga nte sc o "a spir a dor " de e ne rgia .
Ningué m te m o dir e ito de f a ze r c om que voc ê se sinta c ulpa do por
nã o se r dono de um j or na l ou por nã o c r ia r a r te , m a s a ve r da de é que
e ssa s a tivida de s a j uda m o m undo todo. O que disse Bla ke ? —
"Ne nhum hom e m que nã o se j a um a r tista pode se r um c r istã o." Com
isso, e le que r dize r que um hom e m que se r e c usa a tr a ta r a sua
pr ópr ia vida de um m odo a tivo — usa ndo a lingua ge m , a m úsic a , a
e sc ultur a , a pintur a ou o de se nho — é um a la ga r ta ve stida e m
r oupa ge ns c r istã s, nã o um se r hum a no. O pr ópr io Bla ke e nvolve u a
substâ nc ia da sua som br a c om tr ê s disc iplina s: pintur a , m úsic a e
lingua ge m . Ele pr ópr io ilustr ou e m usic ou se us poe m a s. Em volta
de le , nã o ha via ne nhum a e ne rgia que os polític os pude sse m usa r e m
sua s pr oj e ç õe s sobr e os outr os pa íse s. Um a da s c oisa s que pr e c isa m os
f a ze r, c om o c ida dã os a m e r ic a nos, é r e a liza r um bom tr a ba lho de
c om e r a nossa som br a , e m te r m os individua is; de sse m odo, te r e m os a
c e r te za de que nã o e sta m os libe r a ndo um a e ne rgia que pode r ia se r
suga da pe los polític os pa r a uso c ontr a a Rússia , c ontr a a China ou
c ontr a os pa íse s sul- a m e r ic a nos.
60. Retomando o eu reprimido

NATHANIEL B RANDEN

Com o um a pe ssoa c he ga a o e stá gio de de sc one c ta r- se da sua pr ópr ia


e xpe r iê nc ia e m oc iona l, de se r inc a pa z de se ntir o que a s c oisa s
signif ic a m pa r a e la ?

P a r a c om e ç a r, m uitos pa is e nsinam os f ilhos a r e pr im ir se us


se ntim e ntos. Se o ga r otinho c a i e se m a c huc a , o pa i lhe diz c om

se ve r ida de : Hom e m nã o c hor a .” Se a ga r otinha e xpr e ssa r a iva pe lo
ir m ã o ou de m onstr a a ntipa tia por a lgum pa r e nte m a is ve lho, a m ã e
lhe diz: "Ma s que c oisa m a is f e ia ! Nã o a c r e dito que a m inha
m e nininha e ste j a se ntindo isso." Se a c r ia nç a e ntr a e m c a sa a os pulos,
c he ia de a le gr ia e e xc ita ç ã o, o pa i, ir r ita do a r e pr e e nde : "Que r a ios
e stá a c onte c e ndo c om voc ê ? P a r a que todo e sse ba r ulhã o?" P a is
e m oc iona lm e nte dista nte s e inibidos tê m a te ndê nc ia de pr oduzir
f ilhos e m oc iona lm e nte dista nte s e inibidos — nã o a pe na s pe la
c om unic a ç ã o a be r ta e ntr e o c a sa l m a s ta m bé m pe lo e xe m plo que
of e r e c e m a os f ilhos; o c om por ta m e nto dos pa is inf or m a pa r a a
c r ia nç a a s c oisa s que sã o "a de qua da s", "a pr opr ia da s", "soc ia lm e nte
a c e itá ve is". Qua ndo os pa is a c e ita m os e nsina m e ntos da r e ligiã o, é
m uito m a is pr ová ve l que c onta m ine m se us f ilhos c om a noç ã o
de sa str osa de que e xiste m c oisa s ta is c om o "m a us pe nsa m e ntos" ou
"e m oç õe s m á s" — e a ssim f a ze m c om que a c r ia nç a sinta um te r r or
m or a l de e nf r e nta r a sua pr ópr ia vida inte r ior.

E a ssim um a c r ia nç a pode se r le va da a c onc luir que se us se ntim e ntos


sã o pote nc ia lm e nte pe r igosos, que à s ve ze s é a c onse lhá ve l ne gá - los,
que e le s pr e c isa m se r "c ontr ola dos".

O r e sulta do f ina l de sse e sf or ç o e m "c ontr ola r " é que a c r ia nç a


a pr e nde a r e p r i m i r se us se ntim e ntos; ou se j a , e la de ixa de
e xpe r im e ntá - los. Com o a s e m oç õe s sã o um a e xpe r iê nc ia
psic ossom á tic a ( um e sta do m e nta l e f ísic o) , a a gr e ssã o à s e m oç õe s
ta m bé m oc or r e e m dois níve is. No níve l psic ológic o, a c r ia nç a de ixa
de a dm itir ou de r e c onhe c e r os se ntim e ntos inde se j a dos; e la , c om
m uita r a pide z, de svia de le s sua pe r c e pç ã o c onsc ie nte , No níve l f ísic o,
e la c r ia te nsã o e m se u c or po, induz te nsõe s m usc ula r e s que tê m o
e f e ito de pa r c ia lm e nte a ne ste sia - la e e ntor pe c ê - la pa r a que nã o sinta
c om ta nta inte nsida de o se u pr ópr io e sta do inte r ior — c om o no c a so
da c r ia nç a que e nr ij e c e os m úsc ulos da f a c e e do pe ito e c or ta a
r e spir a ç ã o pa r a pode r a pa ga r o c onhe c im e nto de que e stá f e r ida . É
de sne c e ssá r io dize r que e sse pr oc e sso nã o oc or r e por um a de c isã o
c onsc ie nte e c a lc ula da ; a té c e r to ponto, e le é subc onsc ie nte . Ma s o
pr oc e sso de a utoa lie na ç ã o se inic iou; a o ne ga r se us se ntim e ntos, a o
inva lida r se us pr ópr ios j ulga m e ntos e a va lia ç õe s, a o r e pudia r sua
pr ópr ia e xpe r iê nc ia , a c r ia nç a a pr e nde u a r e pr im ir pa r te s da sua
pe r sona lida de . ( Fique e nte ndido que o pr oc e sso de a pr e ndiza do pa r a
r e gula r o c om por ta m e nto de um a m a ne ir a r a c iona l é , de todo, um a
outr a que stã o. Esta m os f a la ndo, a qui, da c e nsura e ne gaç ão da
e x pe riê nc ia inte rior.) Ma s a inda há o que dize r sobr e o m odo c om o a
r e pr e ssã o e m oc iona l se de se nvolve .

P a r a a m a ior ia da s c r ia nç a s, os pr im e ir os a nos de vida c ontê m m uita s


e xpe r iê nc ia s a ssusta dor a s e dolor osa s. Ta lve z um a c r ia nç a te nha pa is
que nunc a r e sponde m à sua ne c e ssida de de se r toc a da , a br a ç a da e
a c a r ic ia da ; pa is que c onsta nte m e nte gr ita m c om e la ou um c om o
outr o; pa is que , de m odo de libe r a do, de spe r ta m ne la o m e do e a c ulpa
c om o f or m a de e xe r c e r o c ontr ole ; pa is que osc ila m e ntr e um a
e xc e ssiva solic itude e um dista nc ia m e nto inse nsíve l; pa is que a
suj e ita m a m e ntir a s e zom ba r ia s; pa is ne glige nte s e indif e r e nte s; pa is
que c ontinua m e nte a c r itic a m e c e nsur a m ; pa is que a e sm a ga m c om
im posiç õe s de sc onc e r ta nte s e c ontr a ditór ia s; pa is que a pr e se nta m
e xpe c ta tiva s e e xigê nc ia s que nã o le va m e m c onta os c onhe c im e ntos,
a s ne c e ssida de s ou os inte r e sse s da c r ia nç a ; pa is que a suj e ita m à
violê nc ia f ísic a ; ou pa is que c onsiste nte m e nte de se nc or a j a m os
e sf or ç os do f ilho pa r a a e sponta ne ida de e a a utoa f ir m a ç ã o.

A c r ia nç a nã o te m um c onhe c im e nto c onc e itua l de sua s ne c e ssida de s


ne m c onhe c im e ntos suf ic ie nte s pa r a c om pr e e nde r o c om por ta m e nto
dos pa is. Ma s, à s ve ze s, o m e do e a dor da c r ia nç a pode m se r
e xpe r im e nta dos c om o a lgo opr e ssivo que a tor na inc a pa c ita da . P a r a
pr ote ge r a si m e sm a e se r c a pa z de m a nte r sua s f unç õe s — pa r a
sobr e vive r, é o que e la pode pe nsa r —, a c r ia nç a ge r a lm e nte se nte
( de um a m a ne ir a nã o- ve r ba liza da e de sa m pa r a da ) que pr e c isa
e sc a pa r de se u e sta do inte r ior pois o c onta to c om sua s e m oç õe s
tor nou- se intole r á ve l. E a ssim e la ne ga se us se ntim e ntos. Ela nã o
pe r m ite que o m e do e a dor se j a m e xpe r im e nta dos e e xpr e ssa dos e ,
de sse m odo, de sc a r r e ga dos. O m e do e a dor se c onge la m de ntr o de
se u c or po, e ntr inc he ir a dos a tr á s de um a pa r e de de te nsã o m usc ula r e
f isiológic a ; ina ugur a - se um pa dr ã o de r e a ç õe s c uj a te ndê nc ia é
a pa r e c e r se m pr e que a c r ia nç a f or a m e a ç a da por um se ntim e nto que
nã o que r e xpe r im e nta r.

Nã o sã o a pe na s os se ntim e ntos ne ga tivos da c r ia nç a que f ic a m


bloque a dos. A r e pr e ssã o e ste nde - se a por ç õe s c a da ve z m a ior e s de
sua c a pa c ida de e m oc iona l. P or e xe m plo, qua ndo um a pe ssoa r e c e be
um a ne sté sic o e m pr e pa r a ç ã o pa r a um a c ir urgia , nã o é a pe na s a sua
c a pa c ida de de se ntir a dor que é suspe nsa ; sua c a pa c ida de de se ntir o
pr a ze r ta m bé m de sa pa r e c e — pois o que f ic a bloque a do é a sua
c a pa c ida de de se ntir a se nsaç ão. O m e sm o pr inc ípio a plic a - se à
r e pr e ssã o da s e m oç õe s.

P r e c isa m os r e c onhe c e r, é c la r o, que e xiste m gr a dua ç õe s na r e pr e ssã o


e m oc iona l; e m a lgum a s pe ssoa s, e la é m uito m a is pr of unda e
pe ne tr a nte que e m outr a s. Ma s a ve r da de que se a plic a a todos nós é
que a r e duç ã o da c a pa c ida de de se ntir dor c or r e sponde à r e duç ã o da
c a pa c ida de de se ntir pr a ze r.

Nã o é dif íc il e sta be le c e r que o hom e m m é dio c a r r e ga c onsigo o f a r do


de um a e nor m e qua ntida de de dor nã o- r e c onhe c ida c nã o-
de sc a r r e ga da — nã o a pe na s dor que a pa r e c e no pr e se nte , m a s dor
que surge nos pr im e ir os a nos de sua vida .

Um dia , qua ndo disc utia e sse f e nôm e no c om a lguns c ole ga s, f ui


de sa f ia do por um j ove m psiquia tr a : e le a c ha va que e u e sta va
e xa ge r a ndo a m a gnitude de sse pr oble m a na s pe ssoa s e m ge r a l.
P e rgunte i- lhe se e sta r ia disposto a pa r tic ipa r de um a de m onstr a ç ã o.
Er a um r a pa z inte lige nte e m bor a ba sta nte tím ido; f a la va de va ga r, de
um a m a ne ir a r e tic e nte , c om o se duvida sse que os pr e se nte s
e stive sse m r e a lm e nte inte r e ssa dos na sua opiniã o. Ele de c la r ou que
te r ia o m a ior pr a ze r e m pa r tic ipa r da e xpe r iê nc ia , m a s a visou- m e
que , se m inha ide ia e r a e xplor a r sua inf â nc ia , e u f ic a r ia de sa ponta do
e nã o a lc a nç a r ia m e u obj e tivo, m e sm o que m inha te se f osse vá lida no
ge r a l, por que e le te ve um a inf â nc ia e xc e pc iona lm e nte f e liz. Se us
pa is, e xplic ou- nos, se m pr e f or a m e xtr a or dina r ia m e nte se nsíve is à s
sua s ne c e ssida de s e , ta lve z por isso, e le nã o f osse um a boa c oba ia
pa r a a m inha de m onstr a ç ã o; nã o se r ia m e lhor a r r a nj a r outr o
voluntá r io? Re spondi que gosta r ia de f a ze r a e xpe r iê nc ia c om e le ; e le
r iu e m e c onvidou a ir e m f r e nte .

Explique i que que r ia que e le f ize sse um a pr á tic a que e u ha via


de se nvolvido pa r a uso c om m e us pa c ie nte s na te r a pia . P e di- lhe pa r a
se r e c osta r na c a de ir a , r e la xa r o c or po, de ixa r os br a ç os e m r e pouso
e f e c ha r os olhos.

— Agor a — disse lhe — que r o que r voc ê a c e ite e sta situa ç ã o: Voc ê
e stá de ita do num le ito de hospita l e e stá m or r e ndo. Voc ê te m a ida de
que voc ê te m hoj e . Voc ê nã o se nte dor f ísic a , m a s sa be que e m
pouc a s hor a s sua vida c he ga r á a o f im . Agor a , na sua im a gina ç ã o,
le va nte os olhos e ve j a sua m ã e pa r a da a o la do da c a m a . Olhe pa r a o
r osto de la . Existe m uita c oisa que nã o f oi dita e ntr e voc ê e e la . Sinta a
pr e se nç a de toda s a s c oisa s que nã o f or a m dita s e ntr e voc ê s — toda s
a s c oisa s que voc ê nunc a disse a e la , todos os pe nsa m e ntos e
se ntim e ntos que voc ê nunc a lhe e xpr e ssou. Se e xiste um m om e nto
pa r a f a ze r c onta to c om sua m ã e , é a gor a . Se e xiste um m om e nto pa r a
que e la ouç a voc ê , é a gor a . Fa le c om e la . Conte - lhe o que que r lhe
c onta r.

A m e dida que e u f a la va , os punhos do r a pa z se c e r r a r a m , o sa ngue


a f luiu- lhe a o r osto e podia - se ve r a te nsã o m usc ula r e m volta de se us
olhos e da te sta num a te nta tiva de c onte r a s lá gr im a s. Qua ndo e le
f a lou, f oi num a voz be m m a is j ove m e m uito m a is inte nsa , e sua s
pa la vr a s f or a m c r e sc e ndo, num la m e nto: — Qua ndo e u f a la va c om
voc ê , por que v oc ê nunc a me ouv ia?.,. Por que v oc ê nunc a pre stav a
ate nç ão e m mim?

Ne sse ponto im pe di- o de c ontinua r, e m bor a e stive sse e vide nte que e le
tinha m uito m a is a dize r. Eu nã o de se j a va le va r a de m onstr a ç ã o m a is
longe por que isso signif ic a r ia inva dir sua pr iva c ida de . Aque la nã o e r a
a oc a siã o pa r a f a ze r psic ote r a pia e e u nã o tinha sido solic ita do a f a zê -
la ; m a s te r ia sido inte r e ssa nte suge r ir a e sse r a pa z a possíve l r e la ç ã o
e ntr e a f r ustr a ç ã o de sua ne c e ssida de de se r ouvido e nqua nto c r ia nç a
e a pe r sona lida de e xtr e m a m e nte r e se r va da e nqua nto a dulto. De pois
de a lguns insta nte s, e le a br iu os olhos, sa c udiu a c a be ç a , pa r e c e ndo
e spa nta do e um pouc o e m ba r a ç a do, e la nç ou- m e um olha r c uj a
e xpr e ssã o a dm itia a de nota .

Eu gosta r ia de m e nc iona r que o uso ple no de ssa té c nic a r e que r que o


pa c ie nte se j a c onf r onta do c om am bos os pa is, um a pós o outr o. Às
ve ze s, ta m bé m lhe pe dim os pa r a im a gina r a pr e se nç a de um a m ã e
( ou pa i) ide a l — e m c ontr a ste c om se us ve r da de ir os pa is — e pe dir-
lhe qua lque r c oisa que de se j e . I sso pode se r m uito útil pa r a c oloc a r o
pa c ie nte e m c onta to c om ne c e ssida de s f r ustr a da s da inf â nc ia ,
ne c e ssida de s que te nha m sido ne ga da s e r e pr im ida s. ( Alé m disso,
ge r a lm e nte usa m os e sse pr oc e sso f a ze ndo o pa c ie nte de ita r- se no
c hã o c om a s pe r na s e ste ndida s e os br a ç os a be r tos, por que de sc obr iu-
se que a im possibilida de de de f e sa f ísic a le va a o e nf r a que c im e nto da s
de f e sa s psic ológic a s.) Voltando ao jovem psiquiatra, quero chamar a atenção
para o fato de que, em nível consciente, ele não havia de modo algum mentido a
respeito de sua infância. Estava evidente que ele fora sincero ao dizer que sua
infância havia sido feliz; mas, ao reprimir a dor da infância, ele reprimira
algumas de suas necessidades legítimas e alguns sentimentos importantes e,
assim, reprimira uma parte de si mesmo. A consequência para ele, como adulto,
era não apenas o dano emocional, mas também um dano mental — já que
qualquer tentativa que ele pudesse fazer para relacionar seu passado com o seu
presente, ou para entender sua personalidade reticente, seria prejudicada por
julgamentos distorcidos; e, mais ainda, seus julgamentos distorcidos iriam
necessariamente bloquear sua eficiência atual nos relacionamentos humanos.

Ao r e pr im ir le m br a nç a s, a va lia ç õe s, se ntim e ntos, f r ustr a ç õe s, a nse ios


e ne c e ssida de s signif ic a tiva s, um a pe ssoa e stá ne ga ndo a si m e sm a
a c e sso a da dos da m a ior im por tâ nc ia ; qua ndo te nta pe nsa r sobr e sua
vida e sobr e se us pr oble m a s, e la e stá c onde na da a luta r na e sc ur idã o
— por que f a lta m - lhe a lgum a s inf or m a ç õe s bá sic a s. Alé m disso, a
ne c e ssida de de prote ge r sua r e pr e ssã o e mante r sua s de f e sa s ope r a no
níve l subc onsc ie nte pa r a c onse r va r sua m e nte longe da s r ota s
"pe r igosa s" de pe nsa m e nto — r ota s de pe nsa m e nto que pode r ia m
le va r a o "de spe r ta r " ou à r e a tiva ç ã o do te m ido m a te r ia l subm e r so. É
qua se ine vitá ve l que a distor ç ã o e a r a c iona liza ç ã o ve nha m a oc or r e r.

Às ve ze s um pa c ie nte m ostr a um a c onside r á ve l r e sistê nc ia e m


tr a ba lha r c om e ssa té c nic a ; e le r e c e ia m e rgulha r ne la por c om ple to.
Ma s a sim ple s obse r va ç ã o da m a ne ir a c om o o pa c ie nte r e siste pode
se r, e m si m e sm a , r e ve la dor a .

Le m br o de um a ve z e m que f ui c onvida do a de m onstr a r e ssa té c nic a


num a se ssã o de te r a pia de gr upo c onduzida por um c ole ga . De iníc io,
a m ulhe r c om que m e u e sta va tr a ba lha ndo dir igiu- se a o se u pa i c om
um a voz de sinte r e ssa da e im pe ssoa l; e la e sta va ba sta nte dissoc ia da do
signif ic a do e m oc iona l de sua s pr ópr ia s pa la vr a s. Sua s de f e sa s
c om e ç a r a m a se dissolve r gr a dua lm e nte , à m e dida que e u a
pr e ssiona va c om pe rgunta s do tipo: "Ma s c om o se se nte um a m e nina
de c inc o a nos qua ndo o pa pa i a tr a ta de sse j e ito?" À m e dida que e u
m e a pr of unda va e m sua s e m oç õe s, e la c om e ç ou a c hor a r ; podia - se
ve r o sof r im e nto e a r a iva e m se u r osto. Ma s no insta nte e m que
pa r e c ia pr onta pa r a se solta r por c om ple to, e la de súbito voltou à
f or m a de tr a ta m e nto m a is im pe ssoa l, e vide nte m e nte a ssusta da c om
a quilo que e sta va se ntindo, e disse e m tom de a utoc e nsur a : "No f undo,
é boba ge m m inha f ic a r c e nsur a ndo voc ê . Voc ê nã o podia e vita r...
tinha se us pr ópr ios pr oble m a s e só nã o sa bia c om o lida r c om um a
c r ia nç a ." Qua ndo lhe e xplique i que nã o se tr a ta va , de m odo a lgum , de
qua lque r "c e nsur a "; que tudo o que im por ta va e r a sa be r m os o que
ha via a c onte c ido e o que e la se ntir a a r e spe ito, e la f ic ou m a is
tr a nquila e voltou a se a pr of unda r e m sua s e m oç õe s. Fa lou c om m a is
vigor sobr e o que lhe a c onte c e r a e sobr e o que f or a le va da a se ntir ;
m a s se m pr e que e la pa r e c ia pr e ste s a e xplodir num a c e sso de r a iva ,
e r a c om o se a lgum m e c a nism o de "de sliga m e nto" f osse a tiva do — sua
voz im pe ssoa l r e tor na va e e la volta va a a pr e se nta r "de sc ulpa s" pa r a
j ustif ic a r o tr a ta m e nto que ha via r e c e bido. Ela a inda nã o e sta va
pr onta pa r a a ba ndona r sua s de f e sa s.

P a r a e ssa m ulhe r, te r ia sido insupor ta ve lm e nte a m e a ç a dor da r- se a o


luxo de e xpe r im e nta r a ple nitude da sua r a iva . I sso f a r ia c om que e la
se se ntisse c ulpa da por a br iga r ta nta r a iva c ontr a os pa is. Fa r ia c om
que e la se ntisse que , se os pa is vie sse m a sa be r de se us se ntim e ntos,
e la os pe r de r ia pa r a se m pr e . E, m a is a inda , c a so se pe r m itisse se guir
sua r a iva a té o f undo de sua s e m oç õe s, e la pr e c isa r ia e nf r e nta r a
e nor m ida de da dor e da s f r ustr a ç ã o que lá e xistia m — e e ssa m ulhe r
a inda nã o e sta va pr e pa r a da pa r a e sse c onf r onto, nã o só por que a dor
e r a tã o tor tur a nte m a s ta m bé m por que e la se r ia obr iga da a e nf r e nta r
a ple na r e a lida de de sua solidão, a ple na r e a lida de de que nunc a te ve
os pa is que que r ia ou de que pr e c isa va , ne m e nqua nto c r ia nç a e ne m
a gor a , e nunc a os te r ia .

Le m br o de um outr o c a so e m que , num c e r to m om e nto de ssa pr á tic a ,


o bloque io do pa c ie nte f oi m a is e loque nte do que qua isque r pa la vr a s.
Esse bloque io oc or r e u um m ê s de pois que o pa c ie nte — um hom e m de
vinte e pouc os a nos — c om e ç ou a f a ze r te r a pia de gr upo. Em te r m os
f ísic os, e le f oi um a da s pe ssoa s m a is te nsa s e r ígida s c om que m
j a m a is tr a ba lhe i. Que ixa va - se pr inc ipa lm e nte de um a a bsoluta
inc a pa c ida de de se ntim e ntos e de nã o sa be r o que que r ia da vida ou
qua l c a r r e ir a se guir. Disse m e que e r a inc a pa z de c hor a r. Qua ndo
c om e ç a m os a pr á tic a , e le f a lou do pa i c om um a voz sua ve e tím ida ,
de sc r e ve ndo o m e do que se m pr e se ntir a dia nte do dista nc ia m e nto e da
se ve r ida de inf le xíve l do pa i. Suge r i que à s ve ze s e r a possíve l que um
r a pa z se ntisse r a iva de um pa i tã o c r ue l. Se u c or po todo tr e m e u e e le
gr itou: — Nã o posso f a la r disso!

— O que a c onte c e r ia — pe rgunte i- lhe — se voc ê disse sse a o se u pa i


que se nte r a iva de le ?
Com o r osto subita m e nte c obe r to de lá gr im a s, e le gr itou:

— Te nho m e do de le ! Te nho m e do do que e le va i f a ze r c om igo! Ele


va i m e m a ta r !

Se u pa i m or r e r a há c e r c a de vinte a nos, qua ndo m e u pa c ie nte tinha


se is a nos de ida de !

Na s se m a na s que se se guir a m , nã o volte i a lhe pe dir pa r a e xe c uta r


e ssa pr á tic a . Em ge r a l, e u a pe na s de ixa va que e le obse r va sse
e nqua nto e u tr a ba lha va c om os outr os m e m br os do gr upo. Ma s a gor a
e le c hor a va e m qua se toda s a s se ssõe s, à m e dida que obse r va va os
outr os pa c ie nte s a e nf r e nta r, um a um , a s e xpe r iê nc ia s tr a um á tic a s de
se us te m pos de inf â nc ia . Ca da ve z m a is, e le tor nou- se c a pa z de
le m br a r e de f a la r sobr e os a c onte c im e ntos de sua inf â nc ia — e de
f a zê - lo c om e nvolvim e nto e m oc iona l. Com o pa ssa r da s se m a na s,
podia - se obse r va r o c r e sc e nte r e la xa m e nto do se u c or po, a gr a dua l
dissoluç ã o da s te nsõe s e o de spe r ta r de sua c a pa c ida de de se ntir, À
m e dida que se pe r m itia e xpe r im e nta r a s ne c e ssida de s e a s f r ustr a ç õe s
que ha via r e pr im ido, e le de sc obr ia de ntr o de si de se j os, r e a ç õe s e
a spir a ç õe s que a té e ntã o lhe e r a m de sc onhe c idos. P ouc os m e se s
de pois r e na sc e u sua pa ixã o, há m uito r e pr im ida , por um a de te r m ina da
c a r r e ir a .

61. Diálogo com o eu demoníaco

HAL STONE e SIDRA WINKELM AN


Qua ndo e sta m os a pr e nde ndo a lida r c om a s e ne rgia s de m onía c a s, um
pr inc ípio bá sic o de ve se r se guido: a m a ne ir a de tr a ba lha r c om a s
e ne rgia s instintiva s r e pr im ida s que se tor na r a m de m onía c a s é e spe rar
um pouc o ante s de c ome ç ar o trabalho c om e las. P r im e ir o, é e sse nc ia l
que tr a ba lhe m os dur a nte um c onside r á ve l pe r íodo de te m po c om os
"e us" pr im á r ios que te m e m a s e ne rgia s de m onía c a s e se opõe m a
e la s. Os "e us" pr im á r ios tê m e sta do nos pr ote ge ndo c ontr a a s e ne rgia s
de m onía c a s de sde a pr im e ir a inf â nc ia , por que e le s pe r c e be m c om o
e la s sã o pe r igosa s. As e ne rgia s de m onía c a s c ontinua r ã o a se r
pe r igosa s a té o m om e nto e m que o e go c onsc ie nte f or c a pa z de lida r
c om e la s tã o be m qua nto lida c om os "e us" m a is c ontr ola dos e
r a c iona is. Ta m bé m é f unda m e nta l que o te r a pe uta e vite de ixa r- se
se duzir pe lo pa c ie nte que pe de : "Que r o tr a ba lha r c om o m e u la do
de m onía c o." Nã o pode m os nos intr om e te r c om e ssa s e ne rgia s!

Tr a ta - se de um pa r a doxo, be m o pe r c e be m os, a f ir m a r que a c ha ve


pa r a e xplor a r a s e ne rgia s de m onía c a s é nã o e xplor á - la s; m a s e ssa
a bor da ge m m a nté m o tr a ba lho se gur o e e nr a iza do. De pois do tr a ba lho
inic ia l de pr e pa r a ç ã o c om os "e us" pr im á r ios, no m om e nto a de qua do
o m e dia dor e o pa c ie nte c om e ç a m a e xplor a r a lgum a s de ssa s e ne rgia s
instintiva s r e pr im ida s. O pa pe l da c r ia nç a vulne r á ve l nã o de ve se r
m e nospr e za do; e sse "e u" ge r a lm e nte te m e a e xpr e ssã o da s e ne rgia s
de m onía c a s, ou por te r m e do de se r a ba ndona do ou por im a gina r
a lgum a r e ta lia ç ã o c a ta str óf ic a .

Alé m dos "e us" pr im á r ios e da c r ia nç a vulne r á ve l, m uita s outr a s


pa r te s da pe r sona lida de f or a m c ondic iona da s pe la soc ie da de a ne ga r
a s e ne rgia s de m onía c a s, inc luindo a voz r a c iona l, a voz obe die nte e a
voz e spir itua l. Com tã o sólida e be m - de se nvolvida ba r r ic a da de "e us"
a e nf r e nta r, nã o c a usa sur pr e sa que a s e ne rgia s de m onía c a s
c onstitua m um dos siste m a s psíquic os m a is pr of unda m e nte ne ga dos
que e nc ontr a r e m os na e voluç ã o da c onsc iê nc ia !

Qua nto m a is e ne rgia inve stim os e m m a nte r a pr isiona da s e ssa s


e ne rgia s, ta nto m a is nos dr e na m os, e m te r m os f ísic os e psíquic os. Os
bosquím a nos a f r ic a nos tê m um pr ové r bio: nunc a a dor m e ç a no se lf,
pois isso que r dize r que há um a nim a l de gr a nde por te na s
pr oxim ida de s. A pr im e ir a ve z que ouvim os e sse pr ové r bio, c onta do
por La ur e ns va n de r P ost, f ic a m os e spa nta dos c om sua s im plic a ç õe s
psic ológic a s. Com a m a ior f r e quê nc ia , a e xa ustã o e a f a diga sã o o
r e sulta do de f or te s instintos ( a nim a is) que e stã o se ndo r e pr im idos.

Tr a ba lha m os c om um a m ulhe r pa r a que m o pr ové r bio dos


bosquím a nos pr ovou se r lite r a lm e nte ve r da de ir o. Ela de sc obr iu que
ha via r e pr im ido sua r a iva de um m odo tã o c om ple to que , qua ndo se
ir r ita va pr of unda m e nte c om o m a r ido, nã o se ntia r a iva m a s um sono
ir r e sistíve l. Qua ndo viu que a sonolê nc ia e r a um substitutivo pa r a a
a gr e ssã o na tur a l, e la c om e ç ou a busc a r a r a iva e sc ondida por a que la
im e nsa se nsa ç ã o de f a diga . Tã o logo e ssa m ulhe r se tom ou c onsc ie nte
da voz de sua r a iva e de sc obr iu o que e la que r ia , a sonolê nc ia
de sa pa r e c e u.

Qua ndo o le ã o de ntr o de nós que r r ugir m a s, e m ve z disso, a c a br a


solta um ba lido, pr e c isa m os pa ga r por e ssa substituiç ã o de um m odo
ou de outr o. O pa ga m e nto se m pr e va r ia : pa r a a lguns, se r á
e xpe r im e nta do - c om o de pr e ssã o, pe r da de e ne rgia e de e ntusia sm o ou
um a inc onsc iê nc ia c a da ve z m a ior. P a r a outr os, pode se r um
c om por ta m e nto inc ontr olá ve l e a pa r e nte m e nte ir r a c iona l, que ta lve z
c oloque e m r isc o a vida , a f or tuna , a pr of issã o ou o c a sa m e nto. Na
sua f or m a m a is e xtr e m a , o pr e ç o se r ia um c ola pso f ísic o que pode
le va r à doe nç a ou m e sm o à m or te .

Num níve l m a is a m plo, m a is pla ne tá r io, a r e pr e ssã o da s e ne rgia s


de m onía c a s c ontr ibui pa r a a dor e pa r a a s tr e va s no m undo. Ma s a
e sc ur idã o do nosso m undo nã o se r á ilum ina da pe lo a m or, a m e nos que
o a m or se j a e xpr e ssã o de um e go c onsc ie nte , c a pa z de ta m bé m
e ngloba r e ssa s e ne rgia s de m onía c a s.

Qua ndo um a nim a l é m a ntido tr a nc a do num a j a ula por m uitos a nos,


e le se tor na r á se lva ge m , Se a por ta da j a ula f or a be r ta de um m odo
de sc uida do, o a nim a l sa ir á num a e xplosã o de f úr ia . Esse
c om por ta m e nto f a r á se u tr a ta dor c onc luir, c om m uita r a zã o, que o
a nim a l é pe r igoso por na tur e za . Ma s nã o é ne c e ssa r ia m e nte a ssim . O
pe r igo que o a nim a l r e pr e se nta é , pe lo m e nos e m pa r te , r e sulta do do
longo a pr isiona m e nto.

O m e sm o oc or r e c om a nossa vida instintiva — a que le s "e us" que


te m e m o instinto a j uda m a e nc e r r a r nossa s e ne rgia s instintiva s num a
j a ula , onde e la s f ina lm e nte se tor na r ã o de m onía c a s. De te m pos e m
te m pos e ssa s e ne rgia s ir r om pe m de um a m a ne ir a br uta l. O "tr a ta dor
dos instintos" de ntr o de nós nos inf or m a que e ssa br uta lida de é um a
pr ova de que os a nim a is de ntr o de nós sã o m a us. Se de r m os ouvidos
a o tr a ta dor, f or ç a r e m os os nossos a nim a is — a nossa na tur e za
instintiva — a volta r pa r a de ntr o da j a ula .

É pr e c iso um a gr a nde c or a ge m pa r a pe r m itir que a voz do de m onía c o


se e xpr e sse , pois m uito da quilo que e la te m a dize r é ina c e itá ve l pa r a
os nossos va lor e s tr a dic iona is. Som os de sa f ia dos a pe r m itir que e ssa
e ne rgia se e xpr e sse , a o m e sm o te m po e m que r e spe ita m os a que la
pa r te de nós que te m m e do. O m e do que o pr ote tor /c ontr ola dor se nte
pe lo de m onía c o é le gítim o, pois e ste possui um e nor m e pote nc ia l pa r a
a de str uiç ã o. A c a pa c ida de de de str uir do de m onía c o é dir e ta m e nte
pr opor c iona l a o te m po e à f or ç a c om que f oi ne ga do.

P a r tic ipa r de um a se ssã o de Diá logo c om a Voz, e nvolve ndo a s


e ne rgia s de m onía c a s, é um ve r da de ir o a to de e sc olha . Esta s sã o
a lgum a s suge stõe s pa r a a br ir um Diá logo c om a Voz c om a s e ne rgia s
de m onía c a s:

•P osso f a la r c om a que la pa r te de Sue que gosta r ia de se r c a pa z de


f a ze r o que que r, se m pr e que que r ?
•P osso f a la r c om a Ruth nã o- boa zinha ?
•P osso f a la r c om a pa r te de Ra lph que gosta r ia de dom ina r o m undo?
•P osso f a la r c om a pa r te de Lor na que gosta r ia de se r um a pr ostituta ?
•Se r á que e u pode r ia f a la r c om a pa r te de voc ê que gosta r ia de se r
todo- pode r osa ?
•Eu pode r ia f a la r c om a pa r te de voc ê que se nte vonta de de m a ta r a s
pe ssoa s inse nsíve is?

Essa s sã o suge stõe s pa r a te r a c e sso a os pa dr õe s de e ne rgia r e pr im ida


que , e m ge r a l, e stã o r e la c iona dos c om e ne rgia s instintiva s r e pr im ida s.
Sã o voze s dif íc e is, pa r a a gr a nde m a ior ia da s pe ssoa s. Os m e dia dor e s
pr e c isa m se r f le xíve is e a te ntos o suf ic ie nte pa r a c ha m a r pe lo "e u"
que c a da pa c ie nte possa de ixa r e m e rgir c om um c e r to c onf or to. O
m odo c om o a voz é c onvida da a se e xpr e ssa r pr e c isa se r f or te o
suf ic ie nte pa r a e voc a r a s e ne rgia s r e pr im ida s, m a s nã o tã o f or te que
a m e a c e o pr ote tor /c ontr ola dor do pa c ie nte .

Se nsualidade
Dur a nte a nos, Sa ndr a f oi a tor m e nta da pe lo pe sa de lo r e c or r e nte de se r
c a ç a da por a nim a is se lva ge ns, e spe c ia lm e nte f e linos. Ela c om e ç ou a
f a ze r te r a pia e , num a se ssã o inic ia l de diá logo, o m e dia dor pe diu pa r a
f a la r c om sua na tur e za f e lina .

VOZ FELI NA:

Ela nã o m e c onhe c e ou, e ntã o, nã o gosta de m im .

MEDI ADOR:

P or que nã o?

VOZ FELI NA:

Ela te m m e do do que pode a c onte c e r se e u e stive r por pe r to.

MEDI ADOR:

Bom , va m os im a gina r que voc ê e stá por pe r to o te m po todo. O que


voc ê f a z? O que a c onte c e ?

VOZ FELI NA:

Ah, e u vou m e e m be le za r toda . Vou tom a r ba nhos be m que nte s, o


te m po todo — ba nhos que nte s c om m uita e spum a , c om bolinha s
c he ir osa s na á gua . Vou c om e r qua ndo quise r, nã o qua ndo os outr os
quise r e m . E nunc a , nunc a vou c ozinha r pa r a ningué m . A nã o se r que
e u te nha vonta de . E, ne sse c a so, o hom e m que e stive r c om igo va i
f ic a r a o m e u la do e nqua nto e u e stive r c ozinha ndo, E e u vou que r e r
que e le f a ç a a m or c om igo o te m po todo. É, isso ta m bé m . Eu vou f a ze r
a m or o te m po todo. Se m pa r a r. Vou usa r m uitos óle os e xótic os e
m a ssa ge a r todo o m e u c or po.

A e duc a ç ã o de Sa ndr a a ha via c ondic iona do a ide ntif ic a r- se c om a


im a ge m da "da m a ". No se u c a sa m e nto, e la se ide ntif ic a va c om o
pa pe l da boa m ã e e da f ilha obe die nte . Sua na tur e za se nsua l de
Af r odite há m uito ha via sido e r r a dic a da de sua pe r c e pç ã o c onsc ie nte .
Ela nã o se da va o luxo de se r e goísta , se nsua l ou a utoindulge nte .
Fe lizm e nte pa r a Sa ndr a , se u inc onsc ie nte m a nte ve a pr e ssã o. Sua
na tur e za f e lina a pa r e c ia - lhe r e pe tida m e nte nos pe sa de los, c a ç a ndo- a
sob a f or m a do de m ônio a gr e ssivo e m que ha via se tor na do. Algum a s
noite s de pois da se ssã o de diá logo, e la te ve e ste sonho: Ma is um a ve z,
e stou c a m inha ndo pe la r ua . Tudo pa r e c e m uito f a m ilia r. Te nho
c onsc iê nc ia , m a is um a ve z, da r e a ç ã o de m e do e da se nsa ç ã o de e sta r
se ndo se guida . Se i que o f e lino e stá a tr á s de m im . Com e ç o a c or r e r. E
e ntã o pa r o. Estou c a nsa da de c or r e r. Volto- m e pa r a e nf r e nta r o m e u
pe r se guidor. É um le ã o. Ele a va nç a pa r a c im a de m im , m a s de
r e pe nte e sta c a e c om e ç a a la m be r o m e u r osto. P or que e u se ntia
ta nto m e do a nte s...?

Já que Sa ndr a pa ssa r a toda a sua vida se ide ntif ic a ndo c om um a


psic ologia de "da m a ", de "m oç a obe die nte ", nã o é de a dm ir a r que
se us instintos na tur a is houve sse m sido ne ga dos. Te ndo sido r e j e ita dos,
e sta va m a gor a e nf ur e c idos; c om o e la se r e c usa va a da r- lhe s a te nç ã o,
e le s a dquir ir a m m a is pode r e a utor ida de . I sso f a zia c om que f osse
a inda m a is dif íc il e a ssusta dor pa r a Sa ndr a e nf r e ntá - los e ouvir sua s
e xigê nc ia s.

O m a is a dm ir á ve l e m r e la ç ã o a todo e sse pr oc e sso é que , qua ndo


te m os a c or a ge m de olha r pa r a a s nossa s pa r te s r e pr im ida s, e la s
m uda m . O le ã o e nf ur e c ido la m be o nosso r osto. Ele nã o pr e c isa
dom ina r a nossa pe r sona lida de ; e le só pr e c isa se r r e spe ita do, ouvido,
te r pe r m issã o pa r a se e xpr e ssa r.

A voz de moníac a
John pe nsa va se r ia m e nte e m m uda r de pr of issã o de pois de pr a tic a r
a dvoc a c ia dur a nte doze a nos. Logo de pois do r om pim e nto ( ba sta nte
de sa gr a dá ve l) de se u c a sa m e nto, e le e nvolve u- se num pr oc e sso
e spir itua l que o f e z se ntir que de ve r ia de sistir da a dvoc a c ia . Se u "e u"
e spir itua l, c om o a poio de um m e str e e spir itua l c om que m John se
e nvolve r a , disse lhe que e le pr e c isa va de m a is te m po livr e pa r a
de se nvolve r o e spír ito. Sua s m e dita ç õe s inspir a r a m dive r sa s
e xpe r iê nc ia s pr of unda s, m a s e le se ntia um a dúvida inte r ior sobr e um a
m uda nç a de vida tã o r a dic a l. Alguns de se us a m igos c om e nta r a m que
e le se tor na r a de m a sia do unila te r a l e , por isso, e le pr oc ur ou a j uda
pa r a e nc ontr a r m a is e quilíbr io na vida .

De pois de um pe r íodo inic ia l de disc ussã o, o te r a pe uta de John pe diu


pa r a f a la r c om sua voz e spir itua l, Essa voz f a lou longa m e nte sobr e o
pr oc e sso e spir itua l de John, o qua nto e le ha via m uda do e sua
ne c e ssida de de te m po livr e pa r a se de vota r a busc a s inte r ior e s. A voz
e r a ba sta nte positiva , e stim ula va John e a ponta va um a c la r a dir e ç ã o
pa r a a sua vida . O te r a pe uta pe rguntou a John se ha ve r ia a
possibilida de de f a la r c om a lgum a outr a voz, que f osse o oposto do
"e u" e spir itua l. A voz que e m e rgiu f oi a do pode r, um a e ne rgia a que
John se r e f e r ia c om o o se u la do de m onía c o.

TERAP EUTA ( PARA A VOZ DEMONÍ ACA) :

O que voc ê a c ha da de c isã o de John de de sistir da a dvoc a c ia ?

VOZ DEMONÍ ACA:

Sinto- m e of e ndido, nã o a c e ito e ssa de c isã o. Aque le f ilho da m ã e m e


r e j e itou dur a nte toda a sua vida . E a gor a e le pa r te pa r a a sua
via ge nzinha e spir itua l e e u de sç o pa r a o f undo da Te r r a .

TERAP EUTA:

P or que voc ê e stá tã o f ur ioso c om o la do e spir itua l do John? Esse la do


te m a lgum a s ide ia s boa s e e stá a j uda ndo ba sta nte o John.

VOZ DEMONÍ ACA:

Estou f ur ioso por que f ui de ixa do de f or a . As c oisa s onde e u nã o e ntr o


sã o um a dr oga . O c a sa m e nto do John nã o de u e m na da por que e u nã o
f a zia pa r te de le . Estou f e liz da vida que a m ulhe r de le te nha f e ito
a que la c e na . Ele be m que m e r e c ia . Ele se m pr e f oi o a nj o e e la e r a a
c a de la . I sso a c onte c ia por que e u e sta va e nte r r a do lá no f undo. Só digo
um a c oisa : o sa ngue de John é pur a sa c a r ina .

TERAP EUTA:

Voc ê se m pr e se ntiu ta nta r a iva a ssim do John?

VOZ DEMONÍ ACA:

Voc ê e stá por f or a , he in? Eu e stou f ur ioso por que o John m e ignor a .
Ele é o Miste r P e r f e iç ã o. Enqua nto e le c ontinua r te nta ndo ba nc a r o
Je sus Cr isto, e u vou f a ze r de tudo pa r a de r r otá - lo. Tudo o que e u
que r o é se r r e c onhe c ido.

TERAP EUTA:

O que signif ic a r ia pa r a o John r e c onhe c e r voc ê ? Que r o dize r, de um a


m a ne ir a be m pr á tic a . O que signif ic a e sse r e c onhe c im e nto?

VOZ DEMONÍ ACA:


Ne ste e xa to m om e nto, e le a c ha que e u nã o e xisto — que e u nã o sou
r e a l. Ante s de pa r tir pa r a e sse ne góc io e spir itua l, e le só m e r e j e ita va
e pr onto. Ma s a gor a e nsina r a m pa r a e le que e u pr e c iso se r
tr a nsm uta do. Com o é que voc ê ir ia se se ntir, se c a da ve z que voc ê se
e xpr e ssa sse , a lgué m te nta sse tr a nsm uta r voc ê e m a lgo m e lhor ou
m a is e le va do? É insulta nte !

TERAP EUTA:

Be m , e u a inda nã o te nho c e r te za do que isto ir ia signif ic a r num níve l


be m pr á tic o.

VOZ DEMONÍ ACA:

Eu nã o gosto da pa ssivida de de John c om a m ulhe r de le . Ela c ontr ola


tudo o que se r e f e r e a os f ilhos. Ele a c ha que , se f or ge ntil, tudo va i
m e lhor a r. Be m , nã o e stá m e lhor a ndo. Está pior a ndo. E a nte s que e le
a ssine o a c or do de pa r tilha dos be ns, e u sugir o que e le m e ouç a . O
Miste r P e r f e iç ã o e stá da ndo pa r a e la de z ve ze s m a is do que de via . Eu
ta m bé m nã o gosto de a lgum a s da s pe ssoa s de ste gr upo. Eu gosta r ia
que o John m e ouvisse , m e le va sse a sé r io, r e spe ita sse a quilo que e u
te nho pa r a dize r.

A voz de m onía c a de John e r a c om o um a nim a l e nj a ula do — c he ia da


f or ç a e e ne rgia r e sulta nte s de toda um a vida de r e j e iç ã o. O
c a sa m e nto de John a c a bou e m de sa str e , e m pa r te por que e le f or ç ou a
e sposa a c a r r e ga r o la do de m onía c o de le . Já que John e r a inc a pa z de
m ostr a r sua r a iva , ne ga tivida de ou e goísm o, tor nou- se ne c e ssá r io que
e la e xpr e ssa sse e ssa s qua lida de s. E qua nto m a is a e sposa se
ide ntif ic a va c om e sse s pa dr õe s, m a is pr of unda m e nte o pr ópr io John
se de sloc a va pa r a um a ide ntif ic a ç ã o c om se us "e us" pa c íf ic os e
a m or osos. Logo tor nou- se e vide nte pa r a todos que a e sposa e r a o
de m ônio e John o "bom r a pa z". Com o é f r e que nte que nossos
c om pa nhe ir os e pa r c e ir os viva m os nossos "e us" r e pr im idos de ssa
m e sm a m a ne ir a !

John ha via se de sloc a do c om de m a sia da f a c ilida de pa r a a via


e spir itua l. Esse e r a um c a m inho na tur a l pa r a que e le e xpr e ssa sse sua
na tur e za a m or osa e positiva . I nf e lizm e nte , sua pe r c e pç ã o c onsc ie nte
e sta va ide ntif ic a da c om e ssa s e ne rgia s e spir itua is. E, a lé m disso, a s
voze s e spir itua is e sta va m ide ntif ic a da s c om o se u tipo de "bom r a pa z"
a nte r ior, que e xc luía toda s a s e xpr e ssõe s de pode r, de r a iva , de
ne ga tivida de e de e goísm o, Nã o é de e spa nta r que e ssa voz e stive sse
e nf ur e c ida !

É pr e c iso m uita c or a ge m pa r a e nf r e nta r nossos pa dr õe s de m onía c os


r e pr im idos. As e ne rgia s de sse s "e us" vive r a m e m isola m e nto por a nos,
c om o le pr osos e sc or r a ç a dos pe la soc ie da de nor m a l, Qua ndo
e nc ontr a m os pe ssoa s que inc or por a m e ssa s qua lida de s, nós, se
possíve l, a s e vita m os. Aos nossos olhos, e la s sã o c onde ná ve is. Com o é
f á c il — e , no e nta nto, c om o é dif íc il — da r o pr óxim o pa sso e
r e c onhe c e r que a s pe ssoa s que nã o c onse guim os supor ta r sã o c la r os
r e f le xos da que la s pa r te s r e j e ita da s de nós m e sm os.

62. Como domar a ve r gonhosa voz int e r ior

JOHN B RADSHAW

Na m inha qua lida de de pe ssoa que a nte s e r a "e nve rgonha da " ( ba se a da
nos se ntim e ntos de ve rgonha ) , pr e c iso tr a ba lha r m uito pa r a a lc a nç a r
um a a utoa c e ita ç ã o tota l. P a r te do tr a ba lho de a utoa c e ita ç ã o e nvolve a
inte gr a ç ã o dos se ntim e ntos, ne c e ssida de s e de se j os liga dos à
ve rgonha . A m a ior ia da s pe ssoa s "e nve rgonha da s" se nte m ve rgonha
qua ndo pr e c isa m de a j uda , qua ndo e stã o f ur iosa s, tr iste s, m e dr osa s ou
a le gr e s, e qua ndo sã o se xua is ou a f ir m a tiva s. Essa s pa r te s e sse nc ia is
de nós f or a m a r r a nc a da s.

Te nta m os a gir c om o se nã o f ôsse m os c a r e nte s. Fingim os nã o se ntir


a quilo que se ntim os. Le m br o de toda s a s ve ze s que disse "e u e stou
be m " qua ndo e sta va tr iste ou sof r e ndo. O que f a ze m os é , ou
e ntor pe c e r nossa se xua lida de e a gir de m odo m uito pur ita no, ou usa r a
se xua lida de pa r a e vita r todos os outr os se ntim e ntos e ne c e ssida de s.
Em todos os c a sos, pe r de m os pa r te s vita is de nós m e sm os. E m uito
c om um que e ssa s pa r te s r e pr im ida s a pa r e ç a m nos nossos sonhos e na s
nossa s pr oj e ç õe s. I sso é ve r da de , e m e spe c ia l c om r e spe ito à nossa
se xua lida de e instintos na tur a is.

Jung c ha m ou e sse s a spe c tos r e pr im idos de nós m e sm os o "la do da


som br a ". Se m inte gr a r m os a nossa som br a , nã o c onse guim os a lc a nç a r
a tota lida de .

A voz int e r ior

A c onve r sa inte r ior ne ga tiva é a que le diá logo inte r ior que Robe r t
Fir e stone c ha m a a "voz inte r ior ". Outr os e studiosos tê m de sc r ito a voz
inte r ior de m a ne ir a s dif e r e nte s. Er ic Be r ne r e f e r e - se a e la c om o um
c onj unto de r e gistr os pa r e nta is se m e lha nte s a f ita s c a sse te ; a
e stim a tiva de a lguns é que e xiste m 25.000 hor a s de f ita s gr a va da s na
c a be ç a de um a pe ssoa nor m a l. Fr itz P e r ls e a e sc ola da Ge sta lt
c ha m a m - na s de "voze s pa r e nta is intr oj e ta da s". Aa r on Be c k c ha m a - a s
de "pe nsa m e ntos a utom á tic os". Com o que r que a s c ha m e m os, todos
nós te m os a lgum a s voze s na nossa c a be ç a . As pe ssoa s
"e nve rgonha da s", e m e spe c ia l, tê m um pr e dom ínio de voze s
ne ga tiva s, ve rgonhosa s e a utode pr e c ia tiva s.

A c oisa f unda m e nta l que a voz diz a um a pe ssoa "e nve rgonha da " é
que e la nã o é digna de se r a m a da , nã o te m va lor e é m á . A voz
suste nta a im a ge m da c r ia nç a m á . A voz pode se r e xpe r im e nta da ,
c onsc ie nte m e nte , c om o um pe nsa m e nto. Na m a ior ia dos c a sos, e la é
pa r c ia lm e nte c onsc ie nte ou tota lm e nte inc onsc ie nte . A m a ior ia da s
pe ssoa s nã o pe r c e be a a tivida de ha bitua l da voz. Nós a pe r c e be m os
e m c e r ta s situa ç õe s e str e ssa nte s, qua ndo nos e xpom os e a nossa
ve rgonha é a tiva da . De pois de c om e te r um e r r o, a pe ssoa c ha m a a si
m e sm a de "tola , de e stúpida " ou diz: "Lá vou e u de novo. Ma s e u sou
m e sm o um pa lha ç o de sa j e ita do." Ante s de um a im por ta nte e ntr e vista
de e m pr e go, a voz a tor m e nta voc ê c om pe nsa m e ntos do tipo: "O que
f a z voc ê pe nsa r que pode a ssum ir a r e sponsa bilida de de um c a rgo
c om o e sse ? Alé m disso, olha c om o voc ê e stá ne r voso. Ele s vã o
pe r c e be r a pilha de ne r vos que voc ê é ."

Livr a r- se r e a lm e nte da s voze s é um a ta r e f a da m a ior dif ic ulda de ,


de vido à r uptur a or igina l da ponte inte r pe ssoa l e do e lo de f a nta sia
da li r e sulta nte . Qua nto m a is um a c r ia nç a é a ba ndona da e qua nto m a is
se ve r a m e nte e la é a ba ndona da ( ne glige nc ia da , a busa da , c onf undida ) ,
ta nto m a is e la c r ia um a ilusã o de c one xã o c om os pa is. Essa ilusã o é o
que Robe r t Fir e stone c ha m a o "Elo de Fa nta sia ".

P a r a pode r c r ia r o e lo de f a nta sia , a c r ia nç a pr e c isa ide a liza r se us


pa is e tor na r- se "m á ". O pr opósito de sse s la ç os de f a nta sia é a
sobr e vivê nc ia . A c r ia nç a de pe nde de se spe r a da m e nte de se us pa is.
Ele s nã o pode m se r m a us. Se e le s f or e m m a us ou se e stive r e m f a r tos
de la , e la nã o c onse guir á sobr e vive r. Assim , o e lo de f a nta sia ( que os
tor na bons e a tor na m á ) é c om o um a m ir a ge m no de se r to. Ele dá à
c r ia nç a a ilusã o de que e xiste c a r inho e a poio na sua vida . Anos m a is
ta r de , qua ndo a c r ia nç a de ixa os pa is, o e lo de f a nta sia e stá
e sta be le c ido no se u íntim o, Ele é m a ntido por m e io da voz. Aquilo que
um dia f oi e xte r ior à c r ia nç a — os gr itos dos pa is, a voz que
c e nsur a va e punia — a gor a f oi inte r ior iza do ne la . P or e ssa r a zã o, o
pr oc e sso de c onf r onta r e de m uda r a voz inte r ior ge r a m uita
a nsie da de . Ma s, c om o suge r e Fir e stone : "Nã o há m uda nç a te r a pê utic a
pr of unda se m o a c om pa nha m e nto de ssa a nsie da de ."

A voz é c onstituída , na sua m a ior pa r te , pe la s "e nve rgonha da s"


de f e sa s c e r r a da s dos pr im e ir os r e sponsá ve is pe la c r ia nç a . Do m e sm o
m odo que nã o c onse gue m a c e ita r sua s pr ópr ia s f r a que za s, de se j os,
se ntim e ntos, vulne r a bilida de e de pe ndê nc ia , os pa is "e nve rgonha dos"
nã o c onse gue m a c e ita r a s c a r ê nc ia s, se ntim e ntos, f r a que za s,
vulne r a bilida de e de pe ndê nc ia de se us f ilhos. Fir e stone e sc r e ve que a
voz é o r e sulta do do "de se j o pr of unda m e nte r e pr im ido dos pa is de
de str uir toda a viva c ida de e e sponta ne ida de da c r ia nç a se m pr e que
e la inva de sua s de f e sa s".

Robe r t Fir e stone r e a lizou um tr a ba lho pione ir o na ide ntif ic a ç ã o da s


or ige ns e da de str utivida de da voz. Ele de se nvolve u a lguns m e ios
pode r osos pa r a que e sse s pe nsa m e ntos hostis f osse m tr a zidos à
pe r c e pç ã o c onsc ie nte do pa c ie nte . Ele e sc r e ve que o "pr oc e sso de
f or m ula r e ve r ba liza r pe nsa m e ntos ne ga tivos a ge no se ntido de r e duzir
o e f e ito de str utivo da voz sobr e o c om por ta m e nto do pa c ie nte ".

Na te r a pia da voz, os pa c ie nte s a pr e nde m a e x te r n a liz a r se us


pe nsa m e ntos c r ític os inte r ior e s. Ao a gir a ssim , e le s e xpõe m os
a ta que s que c om e te m c ontr a si m e sm os e , e m últim a a ná lise ,
de se nvolve m c a m inhos pa r a tr a nsf or m a r sua a titude ne ga tiva num a
visã o m a is obj e tiva e ise nta de j ulga m e nto. À m e dida que a voz é
e xte r na liza da a tr a vé s da ve r ba liza ç ã o, se ntim e ntos inte nsos sã o
libe r a dos e isso r e sulta num a pode r osa c a ta r se e m oc iona l, c om a
intr ovisã o que a a c om pa nha .

O diár io das r e aç õe s e moc ionais


O pr im e ir o m é todo que e u gosta r ia de suge r ir de r iva dir e ta m e nte do
tr a ba lho inic ia l de Fir e stone , qua ndo e le te stou o a c iona m e nto do
pr oc e sso da voz c r itic a obse ssiva . Esse m é todo e nvolve a m a nute nç ã o
de um diá r io da s nossa s r e a ç õe s e m oc iona is de f e nsiva s. Se us e f e itos
sã o m e lhor e s qua ndo voc ê e stá e nvolvido e m a lgum gr upo de
c om pa r tilha m e nto de r e sulta dos; m a s ta m bé m pode se r f e ito
sim ple sm e nte no c onte xto da sua vida inte r pe ssoa l c otidia na .

Toda noite , a nte s de se r e c olhe r, r e f lita sobr e os a c onte c im e ntos do


dia . Em qua is oc a siõe s voc ê f ic ou pe r tur ba do? Em qua is oc a siõe s
voc ê r e a giu e m oc iona lm e nte ? Qua l f oi o c onte xto? Que m e sta va lá ? O
que lhe f oi dito? Com o a quilo que lhe f oi dito se c om pa r a c om o que
voc ê diz pa r a si m e sm o?

P or e xe m plo, no dia 16 de de ze m br o, m inha m ulhe r e e u


c onve r sá va m os sobr e a r e de c or a ç ã o da nossa c a sa . Num c e r to
m om e nto da c onve r sa , se nti que o tom da m inha voz f ic a va m a is a lto
e inte nso. Logo e u e sta va f a ze ndo um c om íc io sobr e toda s a s te nsõe s
que o m e u tr a ba lho m e pr ovoc a . Ouvi a m im m e sm o be r r a ndo: "E nã o
e spe r e que e u vá supe r visiona r a r e f or m a da c a sa ! Ma l te nho te m po
pa r a c uida r da s m inha s obr iga ç õe s pr inc ipa is." Ma is ta r de , r e gistr e i
e ssa e xplosã o no m e u diá r io. Use i a se guinte f or m a : D ata: Qua r ta -
f e ir a , 16 de de ze m br o, 20:45 hs.
Conte údo: Disc ussã o da r e de c or a ç ã o de um qua r to da nossa c a sa .

Re aç ão e moc ional: Qua ndo e la disse , "Vou pr e c isa r que voc ê m e dê


um a m ã ozinha ", r e spondi num tom de a gita ç ã o c r e sc e nte , "E nã o
e spe r e que e u vá supe r visiona r, e tc ."

Voz inte rior: Voc ê é um pé ssim o m a r ido. Voc ê nã o sa be c onse r ta r


c oisa a lgum a . Voc ê é pa té tic o. Sua c a sa e stá c a indo a os pe da ç os. Que
hipóc r ita ! Um hom e m de ve r da de sa be c onstr uir, sa be c onse r ta r a s
c oisa s. Um bom pa i tom a c onta da sua c a sa .

É da m a ior im por tâ nc ia que de dique m os te m po à s voze s. Re c om e ndo


que voc ê f ique num a posiç ã o r e la xa da , qua ndo tudo e stive r quie to à
sua volta . Dê um te m po pa r a r e a lm e nte ouvir a quilo que voc ê e stá
dize ndo pa r a si m e sm o. Anote e de pois le ia - o e m voz a lta . Se j a
e spontâ ne o c om r e spe ito à e xpr e ssã o da s voze s. No m om e nto e m que
c om e ç a a le r e m voz a lta , ta lve z voc ê se sur pr e e nda c om a
ve e m ê nc ia a utom á tic a que o dom ina r á .

No se u gr upo de tr a ba lho, Fir e stone e nc or a j a va c a da um a e xpr e ssa r


se us se ntim e ntos e m voz a lta e c om e m oç ã o. Ele dizia , "Fa le m a is
a lto" ou "Solte , solte de ve r da de ". P ois e u e nc or a j o voc ê a f a ze r o
m e sm o. Solte e sponta ne a m e nte tudo a quilo que lhe vie r à m e nte .
Diga - o na te r c e ir a pe ssoa : voc ê ... De ixe - se e ntr a r na volta ge m
e m oc iona l a c iona da pe la voz.

Re sponde ndo à voz


Um a ve z te ndo e xpr e ssa do a voz, voc ê pode c om e ç a r a r e sponde r à
voz. Voc ê ir á de sa f ia r, ta nto o c onte údo qua nto os dita m e s da voz. No
r e gistr o do m e u diá r io, r e spondi que sou um bom m a r ido e que de i à
m inha f a m ília um la r m a r a vilhoso. Minha m a sc ulinida de nã o de pe nde
do que que r que e u f a ç a . Eu tr a ba lho dur o e posso m e da r o luxo de
pa ga r a lgué m pa r a c onse r ta r m inha c a sa . Me sm o que soube sse
r e f or m a r por ta s e j a ne la s, a inda a ssim e u c ontr a ta r ia a lgué m , Te nho
c oisa s m e lhor e s e m que oc upa r m e u te m po. Muitos hom e ns
f a ntá stic os sã o c a r pinte ir os e c onstr utor e s. Outr os, nã o.

Re pito e sse diá logo no dia se guinte . Eu se m pr e dou um a r e sposta ,


ta nto e m níve l e m oc iona l qua nto e m níve l lógic o. Fire stone
re c ome nda que a pe ssoa aja, ou c onsc ie nte me nte não obe de c e ndo à
v oz, ou opondo- se dire tame nte a e la. Ne sse c a so que c ite i c om o
e xe m plo, c ha m e i um c a r pinte ir o c onhe c ido, disse lhe e xa ta m e nte o
que que r ia e de ixe i- o sozinho. Fui j oga r golf e , se ntindo- m e m uito
c onte nte por e sta r e m c ondiç õe s de pode r c ontr a ta r a lgué m pa r a
c onse r ta r m inha c a sa .
Se guindo a pist a do c r ít ic o int e r ior

Um se gundo m odo de e xpor a s voze s ve rgonhosa s ve m da psic ote r a pia


da Ge sta lt. De i- lhe um nom e sim ple s: Se guir a Pista do Crític o
I nte rior. Um diá logo inte r ior, a utoc r ític o, e stá se m pr e e m a nda m e nto
na s pe ssoa s "e nve rgonha da s". Esse j ogo te m sido c ha m a do de "o j ogo
da a utotor tur a ". Na m a ior ia dos c a sos, e le é tã o ha bitua l que se tor na
inc onsc ie nte . A pr á tic a que sugir o a se guir o a j uda r á a tor na r- se m a is
c onsc ie nte e lhe da r á f e r r a m e nta s pa r a um a m a ior inte gr a ç ã o e
a utoa c e ita ç ã o. Apr e ndi e ssa pr á tic a no livr o Aware ne ss [ P e r c e pç ã o
Consc ie nte ] , de John O. Ste ve ns.

Se nte - se c onf or ta ve lm e nte e f e c he os olhos... a gor a im a gine que voc ê


e stá olha ndo pa r a si m e sm o, se nta do à sua f r e nte . For m e a lgum tipo
de im a ge m visua l de si m e sm o se nta do a li à sua f r e nte , ta lve z c om o
se e stive sse r e f le tido num e spe lho. Com o se se nta e ssa im a ge m ? O
que e ssa im a ge m de voc ê m e sm o e stá ve stindo? Que tipo de
e xpr e ssã o f a c ia l voc ê vê ?

Agor a , e m silê nc io, c r itique e ssa im a ge m de si m e sm o c om o se


e stive sse f a la ndo c om um a outr a pe ssoa . ( Se e stá f a ze ndo e ssa
e xpe r iê nc ia sozinho, f a le e m voz a lta .) Diga a si m e sm o a quilo que
de ve r ia f a ze r e a quilo que nã o de ve r ia . Com e c e c a da f r a se c om a s
pa la vr a s: "Voc ê de ve r ia ...", "Voc ê nã o de ve r ia ..." ou um a e xpr e ssã o
e quiva le nte . Fa ç a um a longa lista de c r ític a s. Ouç a a sua voz à
m e dida que va i se c r itic a ndo.

Agor a im a gine que voc ê tr oc a de luga r c om e ssa im a ge m . Tor ne - se


e ssa im a ge m de si m e sm o e , e m silê nc io, r e sponda a e ssa s c r ític a s. O
que voc ê diz e m r e sposta à que le s c om e ntá r ios c r ític os? E o que o tom
de sua voz e xpr e ssa ? Com o voc ê se se nte a o r e sponde r a e ssa s
c r ític a s?

Agor a tr oque os pa pé is e tor ne - se nova m e nte o c r ític o. Ao da r


c ontinuida de a e sse diá logo inte r ior, e ste j a c onsc ie nte da quilo que diz
e ta m bé m do m odo c om o o diz, sua s pa la vr a s, se u tom de voz e a ssim
por dia nte . Fa ç a um a pa usa de ve z e m qua ndo pa r a sim ple sm e nte
ouvir e se ntir a s sua s pr ópr ia s pa la vr a s.

Tr oque de pa pé is se m pr e que quise r, m a s m a nte nha o diá logo e m


a nda m e nto. Obse r ve todos os de ta lhe s da quilo que e stá a c onte c e ndo
de ntr o de voc ê à m e dida que f a z isso. Obse r ve c om o voc ê se se nte ,
f isic a m e nte , e m c a da pa pe l. Voc ê ide ntif ic a a lgum a pe ssoa c onhe c ida
na que la voz que o c r itic a dize ndo, "Voc ê nã o de ve r ia ..."? O que m a is
voc ê pe r c e be ne ssa inte r a ç ã o? Continue e sse diá logo sile nc ioso
dur a nte m a is a lguns m inutos. Voc ê obse r va a lgum a m uda nç a no
de c or r e r do diá logo?

Agor a , se nte - se c a lm a m e nte e r e ve j a e sse diá logo. É pr ová ve l que


voc ê e xpe r im e nte a lgum tipo de c isã o ou c onf lito, a lgum a divisã o
e ntr e um a pa r te pode r osa , c r ític a e a utor itá r ia que e xige um a
m uda nç a , e um a outr a pa r te m e nos pode r osa que se de sc ulpa , se
e va de e a pr e se nta j ustif ic a tiva s. É c om o se voc ê e stive sse dividido
e m pa i e f ilho. O pa i ( ou "c he f ã o") se m pr e te nta ndo obte r o c ontr ole
pa r a tr a nsf or m a r voc ê e m a lgo "m e lhor " — e a c r ia nç a ( ou "vítim a ")
se m pr e f ugindo de ssa s te nta tiva s de m uda nç a . Ao ouvir a voz que o
c r itic a va e lhe f a zia e xigê nc ia s, ta lve z voc ê a te nha r e c onhe c ido
c om o a voz de um de se us pa is. Ou ta lve z e la te nha soa do c om o a voz
de a lgum a outr a pe ssoa que lhe f a z e xigê nc ia s; por e xe m plo, o m a r ido
ou a e sposa , se u c he f e ou a lgum a outr a f igur a de a utor ida de que o
c ontr ola .

Essa voz c r ític a pode se r a tiva da e m qua lque r situa ç ã o onde voc ê
e ste j a vulne r á ve l ou e xposto. Um a ve z a tiva da e ssa voz, um a e spir a l
de ve rgonha é posta e m m ovim e nto. E, um a ve z e m m ovim e nto, e ssa
e spir a l te m f or ç a pr ópr ia . Ela é im pe r a tiva pa r a a e xte r na liza ç ã o do
diá logo inte r ior, j á que é um dos pr inc ipa is c a m inhos e m que voc ê
m a nté m a nã o- a c e ita ç ã o e a divisã o de si m e sm o. Esta pr á tic a a j uda
a tr a ze r à c onsc iê nc ia o diá logo c r ític o. Esse é o pr im e ir o pa sso pa r a
a e xte r na liza ç ã o da voz.

O se gundo pa sso é tom a r c a da um a da s m e nsa ge ns c r ític a s e tr a duzi-


la s pa r a um c om por ta m e nto c onc r e to e spe c íf ic o. Em ve z de "Voc ê é
e goísta ", diga : "Nã o que r o la va r a louç a ." Em ve z de "Voc ê é bur r o",
diga : "Eu nã o e nte ndo á lge br a ." Ca da a f ir m a ç ã o c r ític a é um a
ge ne r a liza ç ã o. Com o ta l, é ine xa ta . Existe m a lguns m om e ntos e m que
todos nós te m os vonta de de f a ze r a s c oisa s a o nosso m odo. Existe m
á r e a s na vida na s qua is todos nós nos se ntim os c onf usos. Ma s. a o
tr a duzir e ssa s ge ne r a liza ç õe s ( j ulga m e ntos, c ondiç õe s ou va lor e s) e m
c om por ta m e ntos c onc r e tos e spe c íf ic os, voc ê pode r á ve r um a im a ge m
r e a l de si m e sm o e a c e ita r- se de um a m a ne ir a m a is e quilibr a da e
inte gr a da .

O te r c e ir o pa sso é tom a r e ssa s ge ne r a liza ç õe s ( j ulga m e ntos,


c ondiç õe s ou va lor e s) e f a ze r a f ir m a ç õe s positiva s que a s
c ontr a diga m . P or e xe m plo, e m ve z de dize r, "Eu sou e goísta ", a f ir m e :
"Eu sou a ltr uísta ." É im por ta nte ve r ba liza r e ssa s a f ir m a ç õe s e ouvir a
si m e sm o pr onunc ia ndo- a s. Re c om e ndo que voc ê pr oc ur e a lgué m —
um m e m br o do se u gr upo de a poio, se u m e lhor a m igo, se u m a r ido ou
m ulhe r — e ve r ba lize pa r a e ssa pe ssoa a a utoa f ir m a ç ã o positiva .
Tom e c uida do pa r a nã o pr oc ur a r um a pe ssoa "e nve rgonha da ".
63. Aprendendo a imaginação ativa

B ARB ARA HANNAH

Le m br o- m e da histór ia que um a sá bia se nhor a m e c ontou: dur a nte


um a longa e xc ur sã o por pa íse s que se m pr e sonhou visita r, e la f oi
obr iga da a c om pa r tilha r o qua r to c om um a m ulhe r que lhe e r a
c om ple ta m e nte inc om pa tíve l. De iníc io, e la se ntiu que isso ir ia
ine vita ve lm e nte e str a ga r a via ge m . Ma s logo pe r c e be u que ir ia
de spe r diç a r um dos m om e ntos m a is inte r e ssa nte s e a gr a dá ve is de sua
vida se pe r m itisse que sua a ve r sã o por a que la m ulhe r e str a ga sse sua
via ge m . P or ta nto, e la se de c idiu a a c e ita r a sua c om pa nhe ir a
inc om pa tíve l e se de sligou dos se ntim e ntos ne ga tivos e da pr ópr ia
m ulhe r, a o m e sm o te m po que c ontinua va se ndo a m istosa e ge ntil pa r a
c om e la . Essa té c nic a f unc ionou à s m il m a r a vilha s e a sá bia se nhor a
c onse guiu de sf r uta r im e nsa m e nte a e xc ur sã o.

Oc or r e e xa ta m e nte o m e sm o c om os e le m e ntos do inc onsc ie nte que


nos c a usa m a ve r sã o e que se ntim os que nos sã o inc om pa tíve is. Se nos
da m os o luxo de se ntir r a iva de sse s e le m e ntos, e str a ga m os a nossa
via ge m a tr a vé s da vida . Se f or m os c a pa ze s de a c e itá - los pe lo que sã o
e tr a tá - los be m , de sc obr ir e m os c om m uita f r e quê nc ia que e le s, a f ina l
de c onta s, nã o sã o a ssim tã o m a us; e pe lo m e nos livr a m o- nos de
sof r e r sua hostilida de .

No c onf r onto c om o inc onsc ie nte , a pr im e ir a f igur a que e nc ontr a m os


ge r a lm e nte é a som br a pe ssoa l. Já que na sua m a ior pa r te e la c onsiste
na quilo que r e j e ita m os e m nós m e sm os; ge r a lm e nte e la nos é tã o
inc om pa tíve l qua nto a c om pa nhe ir a de via ge m da que la se nhor a . Se
hostiliza r m os o inc onsc ie nte , e le se tor na r á c a da ve z m a is
insupor tá ve l; m a s, se f or m os a m istosos — r e c onhe c e ndo o se u dir e ito
de se r c om o é —, o inc onsc ie nte pa ssa r á por um a a dm ir á ve l
tr a nsf or m a ç ã o.

Um a ve z, qua ndo sonhe i c om um a som br a que m e e r a e spe c ia lm e nte


odiosa m a s que , por e xpe r iê nc ia a nte r ior, e u e r a c a pa z de a c e ita r,
Jung m e disse : "Agor a o se u inc onsc ie nte e stá m e nos br ilha nte , m a s
m uito a m plo. Voc ê sa be que , e m bor a se ndo um a m ulhe r
ine ga ve lm e nte hone sta , voc ê ta m bé m pode se r de sone sta . Ta lve z se j a
de sa gr a dá ve l m a s, na ve r da de , é um ga nho im e nso." Qua nto m a is
a va nç a m os, m a is pe r c e be m os que c a da a la rga m e nto da c onsc iê nc ia
é , na ve r da de , o ga nho m a ior que pode m os a lc a nç a r. Qua se toda s a s
nossa s dif ic ulda de s na vida de ve m - se a o f a to de que a nossa
c onsc iê nc ia é por de m a is e str e ita pa r a e nc ontr á - la s e c om pr e e ndê -
la s; e na da nos a j uda m a is no pr oc e sso de c om pr e e nde r m os e ssa s
dif ic ulda de s do que a pr e nde r m os a e ntr a r e m c onta to c om e la s na
im a gina ç ã o a tiva .

De ntr e os usos da im a gina ç ã o a tiva , o m a ior de le s é c oloc a r- nos e m


ha r m onia c om o Ta o — e a ssim a s c oisa s c e r ta s, nã o a s e r r a da s,
a c onte c e m à nossa volta . Ta lve z f a la r do Ta o c hinê s possa tr a ze r um
toque de e xotism o a um a c oisa que , na ve r da de , na da m a is é que a
sim ple s e xpe r iê nc ia c otidia na ; m a s, a inda a ssim , e nc ontr a m os o
m e sm o signif ic a do na nossa lingua ge m m a is c oloquia l: "Esta m a nhã
e le le va ntou da c a m a pe lo la do e r r a do" ( ou, c om o dize m os suíç os,
"c om o pé e sque r do") . Essa e xpr e ssã o de sc r e ve m uito be m um a
c ondiç ã o psic ológic a na qua l nã o le va nta m os e m ha r m onia c om o
nosso inc onsc ie nte . Som os m a l- hum or a dos e de sa gr a dá ve is e — a ssim
c om o a noite se gue - se a o dia — se gue - se que te m os um e f e ito
de sinte gr a dor sobr e o nosso a m bie nte .

Todos nós j á e xpe r im e nta m os o f a to de que a s nossa s inte nç õe s


c onsc ie nte s e stã o se m pr e se ndo f r ustr a da s por opone nte s
de sc onhe c idos — ou r e la tiva m e nte de sc onhe c idos — no nosso
inc onsc ie nte . Ta lve z a de f iniç ã o m a is sim ple s da im a gina ç ã o a tiva
se j a dize r que e la nos dá a opor tunida de de inic ia r ne goc ia ç õe s c om
e ssa s f or ç a s ( ou f igur a s) no nosso inc onsc ie nte e , c om o te m po,
c he ga r a um a c or do c om e la s. Ne sse a spe c to, a im a gina ç ã o a tiva
dif e r e dos sonhos, pois ne le s nã o e xe r c e m os ne nhum c ontr ole sobr e o
nosso c om por ta m e nto. Na m a ior ia dos c a sos na a ná lise pr á tic a , é
c la r o, os sonhos sã o suf ic ie nte s pa r a r e sta be le c e r um e quilíbr io e ntr e
o c onsc ie nte e o inc onsc ie nte . Som e nte e m a lguns c a sos a lgo m a is é
e xigido. Ma s, a nte s de pr osse guir m os, e u gosta r ia de a pr e se nta r um a
br e ve de sc r iç ã o da s té c nic a s que pode m se r utiliza da s na im a gina ç ã o
a tiva .

A pr im e ir a c oisa é e sta r só e , na m e dida do possíve l, livr e de qua lque r


inte r r upç ã o. A pe ssoa de ve se nta r- se e c onc e ntr a r- se e m ve r ou ouvir
qua lque r c oisa que e m e r j a do inc onsc ie nte . Qua ndo e ssa "im a ge m "
f or a lc a nç a da — e e m ge r a l isso e stá longe de se r f á c il —, de ve - se
e vita r que e la volte a a f unda r no inc onsc ie nte de se nha ndo, pinta ndo
ou e sc r e ve ndo a quilo que f oi visto ou ouvido. Às ve ze s é possíve l
e xpr e ssá - la m e lhor a tr a vé s do m ovim e nto ou da da nç a . Algum a s
pe ssoa s nã o c onse gue m e ntr a r e m c onta to c om o inc onsc ie nte de
m odo dir e to. Um a a bor da ge m indir e ta que m uita s ve ze s r e ve la m uito
be m o inc onsc ie nte , c onsiste e m e sc r e ve r histór ia s sobr e ,
a pa r e nte m e nte , outr a s pe ssoa s. Essa s histór ia s se m pr e r e ve la m
a que la s por ç õe s da psique do pr ópr io e sc r itor da s qua is e le ( a ) e stá
c om ple ta m e nte inc onsc ie nte .

Em qua lque r dos c a sos, o obj e tivo é e ntr a r e m c onta to c om o


inc onsc ie nte ; e sse c onta to dá a o inc onsc ie nte a oportunidade de se
e x p re s s a r, de um m odo ou de outr o. ( As pe ssoa s que e stã o
c onve nc ida s de que o inc onsc ie nte nã o te m vida pr ópr ia , nã o de ve m
se que r te nta r e sta pr á tic a .) P a r a da r e ssa opor tunida de a o
inc onsc ie nte é ne c e ssá r io, qua se se m pr e , supe r a r um gr a u va r iá ve l de
"lim ita ç ã o c onsc ie nte " e pe r m itir que a s f a nta sia s, que e stã o se m pr e
m a is ou m e nos pr e se nte s no inc onsc ie nte , ve nha m à c onsc iê nc ia .
( Jung c e r ta ve z m e disse que a c r e dita va que o sonho pr osse gue
c ontinua m e nte no inc onsc ie nte , m a s e m ge r a l pr e c isa do sono e da
c om ple ta suspe nsã o da a te nç ã o à s c oisa s de f or a pa r a pode r r e gistr a r-
se na c onsc iê nc ia .) De m odo ge r a l, o pr im e ir o pa sso na im a gina ç ã o
a tiva é a pr e nde r a , diga m os a ssim , ve r ou ouvir o sonho e m e sta do de
vigília .

Em outr os tr a ba lhos se us, Jung inc lui o m ovim e nto e a m úsic a e ntr e os
c a m inhos a tr a vé s dos qua is é possíve l a lc a nç a r m os e ssa s f a nta sia s.
Ele suge r e que o m ovim e nto — e m bor a possa se r da m a ior a j uda pa r a
dissolve r a lim ita ç ã o da c onsc iê nc ia — tr a z c onsigo a dif ic ulda de do
pr ópr io r e gistr o dos m ovim e ntos e m si; e que , se nã o houve r ne nhum
r e gistr o e xte r ior, é im pr e ssiona nte a r a pide z c om que a s c oisa s que
surge m do inc onsc ie nte de sa pa r e c e m da m e nte c onsc ie nte .

Jung suge r e que os m ovim e ntos libe r a dor e s se j a m r e pe tidos a té se


f ixa r e m r e a lm e nte na m e m ór ia ; m a s, m e sm o a ssim , m inha
e xpe r iê nc ia de m onstr a que ta m bé m é a c onse lhá ve l de se nha r o pa dr ã o
c r ia do pe la da nç a ( ou m ovim e nto) ou e sc r e ve r a lgum a s pa la vr a s
de sc r itiva s pa r a e vita r que e sse pa dr ã o de sa pa r e ç a por c om ple to no
pr a zo de a lguns dia s.

Existe a inda um a outr a té c nic a pa r a lida r c om o inc onsc ie nte a tr a vé s


da im a gina ç ã o a tiva , a qua l se m pr e c onside r e i de e xtr e m a a j uda : a
c onve r sa ç ã o c om os c onte údos do inc onsc ie nte que pare c e m
pe rsonific ados.

É c la r o que é da m a ior im por tâ nc ia sa be r c om que m e sta m os f a la ndo,


e m ve z de im a gina r que qua lque r voz e stá pr of e r indo pa la vr a s
inspir a da s pe lo Espír ito Sa nto! Com a visua liza ç ã o, isso se tor na
r e la tiva m e nte f á c il. Ma s isso ta m bé m é possíve l, qua ndo nã o e xiste
visua liza ç ã o, pois a pe ssoa pode a pr e nde r a ide ntif ic a r a s voze s ou o
m odo de f a la r e a ssim e vita c om e te r e r r os. Alé m disso, e ssa s f igur a s
sã o pa r a doxa is; e la s tê m la dos positivos e la dos ne ga tivos, e um
ge r a lm e nte inte r r om pe o outr o. Ne sse c a so, voc ê pode j ulga r m e lhor
a tr a vé s do que é dito.

Existe um a r e gr a m uito im por ta nte que se m pr e de ve r ia se r obse r va da


e m qua lque r té c nic a de im a gina ç ã o a tiva . Qua ndo a pr a tic a m os,
pr e c isa m os da r toda a nossa a te nç ã o c onsc ie nte à s c oisa s que dize m os
ou f a ze m os — ta nta a te nç ã o ( ou a inda m a is) do que da r ía m os a
a lgum a situa ç ã o im por ta nte da vida e xte r ior. I sso im pe dir á que e la
c ontinue se ndo um a f a nta sia pa ssiva . Ma s de pois de te r m os f e ito ( ou
dito) tudo o que que r ía m os, pr e c isa m os se r c a pa ze s de de ixa r a nossa
m e nte "e m br a nc o" pa r a pode r m os ouvir ( ou ve r ) a s c oisa s que o
inc onsc ie nte que r nos dize r ( ou f a ze r ) .

A té c nic a — ta nto pa r a o m é todo visua l qua nto pa r a o a uditivo —


c onsiste , pr im e ir o de tudo, e m se r m os c a pa ze s de de ixa r que a s c oisa s
a c onte ç a m . Ma s nã o de ve m os pe r m itir que a s im a ge ns se
tr a nsf or m e m c om o um c a le idosc ópio. Va m os supor que a pr im e ir a
im a ge m se j a um pá ssa r o; de ixa da a si m e sm a , c om a r a pide z do
r e lâ m pa go e la pode se tr a nsf or m a r num le ã o, num na vio e m a lto- m a r,
na c e na de um a ba ta lha ou e m qua lque r outr a c oisa . A té c nic a
c onsiste e m f ixa r nossa a te nç ã o sobr e a pr im e ir a im a ge m e nã o
de ixa r o pá ssa r o e sc a pa r a té que e le te nha e xplic a do por que
a pa r e c e u, qua l a m e nsa ge m que e le nos tr a z do inc onsc ie nte e o que
e le que r sa be r de nós. Eis a í a ne c e ssida de de e ntr a r m os, nós m e sm os,
na c e na ou na c onve r sa ç ã o. Se om itir m os e sse e stá gio de pois de
a pr e nde r a de ixa r que a s c oisa s a c onte ç a m , a f a nta sia pode r á m uda r
( c om o de sc r e vi a c im a ) ou e ntã o, m e sm o que a pr im e ir a im a ge m se
m a nte nha , e la te r á a pa ssivida de visua l do c ine m a ou a pa ssivida de
a uditiva do r á dio. Se r c a pa z de de ixa r que a s c oisa s a c onte ç a m é um
pa sso e xtr e m a m e nte ne c e ssá r io m a s, se nos e ntr e ga m os a e le por um
te m po e xc e ssivo, logo se tor na pr e j udic ia l, Todo o pr opósito da
im a gina ç ã o a tiva é f a ze r c om que c he gue m os a um a c or do c om o
nosso inc onsc ie nte ; pa r a isso, pr e c isa m os nos e nte nde r c om o
inc onsc ie nte e só o c onse guir e m os se e stive r m os f ir m e m e nte
e nr a iza dos e m nós m e sm os.

64. Como desenhar a sombra

LINDA JACOB SON

Um a im e nsa f igur a e sc ur a surge no m e u idílic o j a r dim . Ela m e


a te r r or iza . P e r c e bo, tr ê m ula , que e stou à sua m e r c ê . Estou e m se u
pode r. É m e u pa i, o hom e m que m e e stupr ou r e pe tida s ve ze s qua ndo
e u e r a m e nina . De se nho um a im a ge m de sse hom e m libidinoso na
sole ir a da por ta , pr e ste s a m e de vor a r, a m e nos que e u c um pr a sua s
or de ns. De pois de se nho a som br a de ssa f igur a — da que le que
a ssom br ou m inha e xistê nc ia e la nç ou um sudá r io sobr e a m inha vida .

Um a da s m inha s a luna s, N. R., pa ssou por e ssa e xpe r iê nc ia dur a nte


um a visua liza ç ã o guia da pa r a de se nha r a som br a . As visua liza ç õe s sã o
pr oj e ta da s de m odo a que a s im a ge ns ir r om pa m e sponta ne a m e nte do
inc onsc ie nte — f onte de m uita obr a de a r te .
Ao e xplor a r a s té c nic a s de im a gina ç ã o a tiva de Jung, voc ê pode usa r
a s im a ge ns que "vê " dur a nte a visua liza ç ã o guia da pa r a te r a c e sso à s
pa r te s de si m e sm o que e sta va m f e c ha da s à pe r c e pç ã o c onsc ie nte .
Essa s im a ge ns inc lue m pe r sona ge ns im a giná r ia s, pe r sona lida de s
onír ic a s ou pe ssoa s da vida c otidia na que sim boliza m a que la s pa r te s
de voc ê m e sm o que o f a ze m se ntir- se c onstr a ngido ou que pa r e c e m
r e pulsiva s. Ela s tê m c om o c a r a c te r ístic a pa r e c e r o oposto da sua
a utoim a ge m . Ela s r e pr e se nta m todas a s qua lida de s — nã o a pe na s a s
ne ga tiva s — que f om os c ondic iona dos a a c r e dita r que de va m
pe r m a ne c e r se m se r e xpr e ssa da s.

Ao tor na r e ssa s im a ge ns c onsc ie nte s a tr a vé s do de se nho, voc ê pode


visua liza r m e lhor sua s pa r te s r e pr im ida s; pr im e ir o voc ê a s vê de ntr o
de um a outr a pe ssoa , na se gur a nç a e obj e tivida de de um a im a ge m
sobr e um a f olha de pa pe l. Qua ndo c onse guir r e c onhe c e r e ssa s
qua lida de s da som br a , voc ê ta m bé m c onse guir á inc or por a r qua lida de s
oc ulta s m a is positiva s — ta is c om o a f or ç a , a se xua lida de , a
a f ir m a ç ã o de si m e sm o, a ge ntile za — e , a ssim , e xpa ndir o se u se nso
do "e u".

Ante s de f a ze r e ssa visua liza ç ã o, c r ie um a m bie nte de a poio a tr a vé s


de um sim ple s r itua l c om ve la s, f lor e s ou m úsic a . De pois f e c he os
olhos, a c om pa nhe o r itm o de sua r e spir a ç ã o e diga a si m e sm o:

Voc ê e stá num be lo j a r dim , ou num loc a l onde j á e ste ve a nte s, ou


num luga r c om ple ta m e nte im a giná r io. Ao c a m inha r, voc ê se nte a
te xtur a da s pe dr a s na tr ilha sob se us pé s. Voc ê obse r va a s c or e s
lum inosa s da s f lor e s e da f olha ge m , o lím pido c é u a zul, a s sua ve s
nuve ns br a nc a s e o le ve toque da br isa . A te m pe r a tur a e stá f r ia ou
que nte ? Obse r ve outr os de ta lhe s se nsor ia is.
Agor a , de ixe - se se ntir o sa gr a do de sse luga r, sua se gur a nç a e sua
e ne rgia . Um a luz r a dia nte o pr e e nc he ; voc ê é um se r hum a no ple no.
A se guir, voc ê vê um a pe ssoa que é e xa ta m e nte a que la que voc ê nã o
que r ve r. ( P a usa ) Ela se a pr oxim a de voc ê , a tr a i toda a sua a te nç ã o e
o de ixa te r r ive lm e nte pe r tur ba do. Voc ê ne m m e sm o sa be por quê .
Essa pe ssoa é , de toda s a s m a ne ir a s, o se u oposto. É e la um a f igur a
onír ic a , a lgué m que voc ê c onhe c e , ou um a c om bina ç ã o de dive r sos
pe r sona ge ns? Qua l é o se u a spe c to? Qua is a s c or e s e os hum or e s que a
c e r c a m ? Voc ê se nte r a iva , m e do, e spa nto? Ódio ou r e spe ito? Am or ou
r e pugnâ nc ia ?
O que e xiste ne la que lhe de sa gr a da ? Qua ndo e la f a la , qua l o som da
sua voz? O que e la diz? Ela é c r ític a ? Egoísta ? Cr ue l? Tím ida ? Se nsua l?
Ar r oga nte ?
De dique a lgum te m po pa r a se ntir ple na m e nte e ssa f igur a de som br a .
De ixe sua s se nsa ç õe s pe ne tr a r e m c a da c é lula de se u c or po, pa r a que
e sse se r f ique be m c la r o na sua m e nte . ( P a usa )
Entã o, c om os olhos f e c ha dos, c om e c e a de se nha r e ssa se nsa ç ã o.
Qua ndo e stive r pr onto, a br a le nta m e nte os olhos e c ontinue a de se nha r
por uns quinze m inutos.

De pois da visua liza ç ã o guia da , voc ê pode c r ia r os de se nhos da sua


e xpe r iê nc ia c om m a te r ia is de uso r á pido e f á c il ( c om o óle o ou giz) .
Se j a e spontâ ne o. De ixe que a s im a ge ns ve nha m à supe r f íc ie se m
"c e nsur a r " sua visã o inte r ior. Te nte c onse r va r a se nsa ç ã o da
visua liza ç ã o e nqua nto de se nha — nã o se inte r e ssa ndo pe la s
pr e oc upa ç õe s f or m a is da a r te ne m j ulga ndo a qua lida de da obr a , m a s
a pe na s busc a ndo a e xpr e ssã o e m oc iona l.

Voc ê pode de se nha r à m oda a bstr a ta ou f igur a tiva , de ixa ndo que a s
im a ge ns m ude m à m e dida que voc ê de se nha . Nã o é ne c e ssá r io que
voc ê c om pr e e nda o signif ic a do da im a ge m . O sim ple s a to de
de se nha r j á é um a te r a pia , por que voc ê a gor a te m um a im a ge m
c onsc ie nte da sua som br a c om a qua l tr a ba lha r.

Se surgir a lgum a im a ge m a ssusta dor a , ta l c om o um a vítim a de a buso


se xua l ou um tir a no e nf ur e c ido, te nte c ontinua r de se nha ndo. A dor
pode of e r e c e r um a da s m a ior e s opor tunida de s de r e nova ç ã o e pode
se r utiliza da c om o e ne rgia c r ia tiva e m e sta do br uto.

A pa r tir de sse de se nho inic ia l, voc ê pode r á de se nvolve r um a sé r ie de


im a ge ns da sua som br a . A im a ge m e a s c or e s ta lve z m ude m e
a ssum a m m uita s f or m a s, r e f le tindo o pr oc e sso de c ur a .

Com o m uitos dos m e us a lunos, N. R. de sc obr iu que a c onf r onta ç ã o


c om o la do da som br a de se u pa i e de sua c r ia nç a inte r ior br uta liza da
le vou- a a um a c r e sc e nte pe r c e pç ã o de se u pr ópr io vigor e
a utoc onf ia nç a . Aqui e stã o a lgum a s outr a s pr á tic a s pa r a tr a ba lha r c om
a som br a :

•Fa ç a um de se nho que inte gr e sua som br a a o r e sta nte da sua pe rsona.
•Ela bor e um diá logo e sc r ito c om o de se nho de sua som br a , pa r a
de sc obr ir o que e la pr e c isa .
•Fa ç a um de se nho de si m e sm o a pa r tir do ponto de vista da som br a .

Voc ê ta m bé m pode r á de sc obr ir que de se nha r a som br a é um a


e xpe r iê nc ia c r ia tiva de r ique za inf inita .

65. Escrevendo sobre o outro

DEENA M ETZG ER
A som br a — a que la e sc ur idã o que nos pe r te nc e e da qua l nã o
c onse guim os e sc a pa r, m a s que te m os ta nta dif ic ulda de e m e nc ontr a r
de vido à sua na tur e za f ugidia — é o r e f le xo de nós m e sm os que
oc or r e qua ndo nã o há luz. P or ta nto, pa r a e nc ontr a r a som br a ,
pr e c isa m os e sta r dispostos a c a m inha r pa r a de ntr o da s tr e va s, pois a li
e la vive , a f im de f a ze r m os um a pa r c e r ia c om o de sc onhe c ido. Se nã o
nos de sloc a m os na sua dir e ç ã o, c or r e m os o r isc o de que a som br a
ve nha a té nós num e nc ontr o que se r á f ur tivo e viole nto; m a s, se
c a m inha m os na sua dir e ç ã o, dom ina - nos o m e do de se r e ngolidos por
e la . Na s tr e va s, se ntim o- nos c om o se nós m e sm os fôsse mos a s tr e va s.

Com o, e ntã o, e nc ontr a r a som br a ? Re c onhe c e ndo que e xiste m pa r te s


de nós m e sm os que c onside r a m os a bsoluta m e nte e str a nha s e a lhe ia s,
da s qua is te m os hor r or, que de sde nha m os ou ne ga m os; e a dm itindo
que e ssa s pa r te s, por m a is hor r íve is que se j a m , a inda sã o nós
m e sm os. Adm itir que e xiste um a pa r te do se lf que , a um só te m po, nos
é e str a nha e f a m ilia r, signif ic a pe ne tr a r num dos gr a nde s m isté r ios da
psique . Esse a to, e m si, tor na - se um a of e r ta de pa z que e nc or a j a a
som br a a e m e rgir.

Todos sa be m os que a som br a se a longa à m e dida que o dia c a i, que a o


c r e púsc ulo a som br a e stá no a uge da sua e xte nsã o. Existe um
m om e nto, no a to de e sc r e ve r, que se a sse m e lha a e sse c r e púsc ulo;
a que le m om e nto e m que j á dim inuiu a luz do m e io- dia do sol da
r a zã o. Num m om e nto de sse s, é pr ová ve l que a som br a a te nda a um
c ha m a do pa r a se m a nif e sta r, pois a gor a e la e stá na situa ç ã o de
e nf r e nta r a que la luz que , de outr o m odo, a a niquila r ia , a que la luz que
e la e vita , r e c usa ndo- se a a pa r e c e r e ta lve z se r e tr a indo a inda m a is.

Com e ssa s ide ia s e m m e nte , f or m ule i um a sé r ie de pe rgunta s, um


e xe r c íc io de im a gina ç ã o, pa r a e nvolve r a som br a a tr a vé s do a to de
e sc r e ve r e de se nvolve r pe r sona ge ns e histór ia s. Com o e ssa s pe rgunta s
e xpõe m o se lf e a som br a a igua l r isc o, de sc obr i que e la s pe r sua de m a
som br a a se r e ve la r.

A pr im e ir a pe rgunta c om e ç a a de f inir o te r r itór io onde vive a som br a ,


onde r e c onhe c e m os que a som br a é um a c ontinuida de de nós m e sm os,
é a quilo e m que nos tr a nsf or m a m os qua ndo c r uza m os o por ta l. A
som br a é a nossa outr a f a c e .

Qua is sã o a s qua lida de s ou a tr ibutos nos outr os que voc ê c onside r a


m e nos se m e lha nte s a os se us? Te nte le m br a r- se de a lgum a oc a siã o e m
que se ntiu ódio. Existe a lgué m que ta lve z ode ie voc ê ? De ntr e os
pr e c onc e itos que voc ê te m , qua is os m a is obstina dos? Qua l o gr upo
c om que m voc ê se nte m e nos a f inida de ? Qua is a s pe ssoa s c uj a
c om pa nhia lhe é m a is dolor osa , por que e la s o de ixa m r e volta do, o
of e nde m , o a te r r or iza m ou o e nr a ive c e m , ou e stã o a ba ixo de voc ê , ou
sã o gr ote sc a s? Em que c ir c unstâ nc ia s voc ê se se ntir ia hum ilha do
de m a is pa r a c ontinua r a vive r ? Qua l hor r or de ntr o de si m e sm o voc ê
a c ha r ia insupor tá ve l?

Qua ndo e xa m ina m os nossa s r e sposta s, ve m os que a lgum a s a ve r sõe s


ba se ia m - se e m pr inc ípios m or a is ou é tic os; m a s outr a s c ontê m um a
c a rga de r e pugnâ nc ia , de de spr e zo, de ódio, de r e pulsa , de ná use a —
e sta s vive m no dom ínio da som br a . A pa r tir de ssa s qua lida de s,
pe r m ita que um pe r sona ge m se a pr e se nte , a lgué m c om um nom e ,
um a pe r sona lida de e um a histór ia . I nic ie um diá logo c om e sse
pe r sona ge m , pe r m itindo a intim ida de , a c onf ia nç a e a r e ve la ç ã o a té
que voc ê sa iba tudo sobr e e le — onde vive , c om o é a sua c a sa , o que
e le c om e no a lm oç o, o que e le pe nsa , o que e le te m e , o que e le que r,
o que e le sonha . P r oc ur e se r tã o ve r da de ir o e c om unic a tivo c om o
voc ê que r que a som br a se j a .

E e is um outr o ponto de e ntr a da pa r a e nc ontr a r e sse pe r sona ge m


inte r ior : im a gine que sua vida e stá a m e a ç a da e que pa r a pode r
e sc a pa r de ssa a m e a ç a , voc ê pr e c isa c r ia r um a outr a ide ntida de , um
disf a r c e .

Esse disf a r c e pr e c isa se r pe r f e ito, um a ide ntida de tã o se m e lha nte a


voc ê m e sm o m a s, a inda a ssim , tã o dif e r e nte que voc ê c onse gue e sta r
pe r f e ita m e nte disf a r ç a do e nqua nto vive a vida de sse outr o. À m e dida
que va i a dota ndo e ssa vida , e la m ostr a r á qua lida de s tota lm e nte
a lhe ia s a voc ê m a s, a inda a ssim , a de qua da s e f a m ilia r e s. Que m é
e sse pe r sona ge m e m que m voc ê se tr a nsf or m ou pa r a pode r se
disf a r ç a r e , a ssim , sa lva r a sua vida ? I m a gine que voc ê é invisíve l e
siga todos os m om e ntos do dia ou da se m a na de sse pe r sona ge m ,
obse r va ndo- o a sós e c om os outr os. O que e sse outr o pe nsa qua ndo
e stá c om insônia à s tr ê s da m a dr uga da ? Qua is os se gr e dos, a s m á goa s
e os de ta lhe s que voc ê f ic ou c onhe c e ndo? Qua l a pa r te e sse nc ia l do
se u se lf que é c obe r ta por e ssa m á sc a r a ?

Fique c e r to de um a c oisa : se voc ê f or e sc r upuloso e ge ntil, a som br a


ir á e m e rgir. P or ta nto, que stione e obse r ve tudo, te nha c ur iosida de por
tudo e a c e ite tudo a quilo que vê e que ve m a c onhe c e r. Te nha o
m á xim o c uida do pa r a nã o e m itir j ulga m e ntos ou de ixa r que se us
pr e c onc e itos e m e dos c onta m ine m ou de str ua m a s r e ve la ç õe s que
vie r e m a oc or r e r.

Qua ndo im a gina r que j á c onhe c e tudo, que j á sa be ta nto — ou a té


m a is — sobr e a som br a qua nto sa be sobr e voc ê m e sm o, im a gine que
e sse pe r sona ge m é o se u ir m ã o/ir m ã , na sc ido do m e sm o pa i e da
m e sm a m ã e . De sc r e va se u r e la c iona m e nto c om e sse ir m ã o.
"Le m br e " se us pr im e ir os a nos j untos; de sc r e va um m om e nto e m que
voc ê s se ntir a m gr a nde a f inida de um pe lo outr o. Qua ndo f oi que voc ê s
c om e ç a r a m a se a f a sta r, a se guir vida s tã o dif e r e nte s? Conte um a
histór ia que r e ve le o m om e nto da dif e r e nc ia ç ã o. I m a gine sua m ã e e
se u pa i olha ndo pa r a e sse s dois f ilhos e le m br a ndo de c a da um de le s,
f a la ndo de sua s se m e lha nç a s e dif e r e nç a s.

E, f ina lm e nte , pe r m ita que e sse ir m ã o/outr o/inim igo/disf a r c e olhe


pa r a voc ê . De ixe que e sse pe r sona ge m se e xpr e sse c om a voz de le
pr ópr io, pa r a c r ia r um r e tr a to de voc ê . Em que voc ê se tor na qua ndo
visto a pa r tir de ssa pe r spe c tiva ? Já que o outr o de se nvolve u um a voz,
c onve r se m um c om ou outr o. O que c a da um de voc ê s que r sa be r ?

À m e dida que voc ê tr a z e sse ir m ã o, e sse outr o, e ssa som br a , pa r a


de ntr o da sua vida — pa r a a f a m ília , por a ssim dize r —, de ixe que sua
im a gina ç ã o e sua histór ia r e a l de vida se f unda m , Fique a te nto à
ne c e ssida de de se r lite r a l, pois é m uito f r e que nte que a lite r a lida de
e ste j a e nc obr indo um c onhe c im e nto m a is pr of undo. P or outr o la do,
nã o pe r m ita que a im a gina ç ã o de svie a sua a te nç ã o ou a f a ste voc ê
dos c a m inhos onde a som br a é , de f a to, a sua f a m ília , o se u outr o, o
se u "e u".

Esse "e u" da som br a nã o é se pa r a do de voc ê ; e le é m e nos se pa r a do de


voc ê que um ir m ã o. Essa é a som br a que voc ê la nç a , a som br a que
e stá se m pr e c om voc ê . Exa m ine o r e tr a to de ssa "pe ssoa " e obse r ve a
vida que e la e stá vive ndo, ta nto e xte r ior c om o inte r ior m e nte .
Em ba r que ne ssa ir onia : a que le c om que m voc ê c r iou um a ilha de vida
e m c om um e c om pr e e nsã o m útua , é o outr o a bsoluto — e o outr o
a bsoluto é a que le c om que m voc ê se e nte nde à pe r f e iç ã o. I m a gine a
si m e sm o vive ndo a vida do outr o.

E, pa r a e nc e r r a r, im a gine a m or te do "e u" da som br a . Conside r a ndo a


vida que e le le vou, c om o m or r e o "e u" da som br a ?

A som br a , é c la r o, nunc a m or r e ; se m pr e la nç a m os um a som br a . Ma s


o m odo c om o nos r e la c iona m os c om e la , e e la c onosc o, de pe nde do
c onhe c im e nto que te m os de la . Um a ve z que a c onhe c e m os,
ine vita ve lm e nte pe r de m os um a inoc ê nc ia que j a m a is se r á
r e c upe r a da . Essa inoc ê nc ia é substituída pe lo c onhe c im e nto da
c om ple xida de da nossa na tur e za . Às ve ze s te m os sor te , e e sse
c onhe c im e nto pr ovoc a e m nós um a ge ntile za e tole r â nc ia pe los outr os
— e ta lve z a té por nós m e sm os.

No f im , o que pe r m a ne c e é a quilo que só pode m os c he ga r a c onhe c e r


qua ndo e sta m os a sós, nus e c om a luz à s nossa s c osta s.
Entro no bosque e me aquie to.
M inha agitaç ão se de sv ane c e ,
c omo os c írc ulos de uma pe dra n' água.
M e us fardos e stão onde os de ix e i,
adorme c idos c omo o gado no c urral.

Aquilo que me te me surge e ntão


e v iv e , por um instante , no me u olhar.
O que e le te me e m mim. me abandona
e o me do de mim o abandona.
Ele c anta, e e u ouç o o se u c antar.

Aquilo que te mo surge e ntão,


e v iv o, por um instante , e m se u olhar.
O que te mo ne le o abandona
e o me do de le me abandona.
Ele c anta, e ouç o o se u c antar.
We nde ll Be r r y

Epílogo

JEREM IAH AB RAM S

Se o louc o pe r sistisse na sua louc ur a ,


e le se tor na r ia sá bio.
William Blak e

Sou um a utodida ta por na tur e za . Va lor izo o a pr e ndiza do pe la


e xpe r iê nc ia . Muita s ve ze s, qua ndo f ixo m e u pe nsa m e nto e m inha
a te nç ã o num a ssunto, a s sinc r onic ida de s oc or r e m . Algum e ve nto
signif ic a tivo — m a s nã o c a usa lm e nte r e la c iona do — a c onte c e na
m inha e xpe r iê nc ia e xte r ior ou à s pe ssoa s que c onhe ç o. Sinto- m e ,
se m pr e , r e nova do e c onf or ta do por e ssa r e sposta tã o im e dia ta . Esse s
e ve ntos m e tr a ze m a c onf ir m a ç ã o da quilo que é r e a l e ve r da de ir o.

Na é poc a e m que f a zia m e u tr e ina m e nto c om o te r a pe uta , pe r c e bi que


a s c oisa s que pr e ndia m a m inha a te nç ã o a pa r e c ia m , ine vita ve lm e nte ,
no m e u c onsultór io — se m pr e na que le m e sm o dia ! Qua ndo c om e c e i a
pr a tic a r, isso e r a tã o de sc onc e r ta nte que e u c ostum a va de sc a r ta r e ssa s
c oinc idê nc ia s c om o sim ple s pr odutos da m inha pe r c e pç ã o se le tiva
( c om o o ba te dor de c a r te ir a s que a nda pe la s r ua s olha ndo a pe na s pa r a
os bolsos) . Ma s a pe r sistê nc ia de sse s e ve ntos a o longo do te m po f e z
c om que e u pa ssa sse a c onf ia r ne le s.
Hoj e , por e xe m plo, e nqua nto r e digia e ste Epílogo, te le f onou- m e um a
m oç a , ba sta nte pe r tur ba da c om um sonho que te ve onte m . Ela que r ia
a m inha a j uda . Com o e u a na liso sonhos, f ic a m os a lgum te m po a o
te le f one tr a ba lha ndo c om e sse sonho. Este é o f r a gm e nto que m a is se
de sta c a : No sonho, e la e stá de br uç a da sobr e o tr a ba lho qua ndo se nte
dor e s a guda s no m e io da s c osta s. Ela se le va nta e se volta ... e vê um a
m ulhe r de c a be los ne gr os a tir a ndo- lhe da r dos!

Ali e sta va a sua som br a , sim boliza da por um a pe ssoa do m e sm o se xo


e da c or oposta ( a sonha dor a é lour a ) , que se a pr oxim a da sonha dor a
pe la s c osta s — pe lo inc onsc ie nte ( e m te r m os sim bólic os, a quilo que
e stá a tr á s de nós, que e stá f or a do a lc a nc e da nossa visã o c onsc ie nte )
— e a tr a nsf or m a no a lvo dos dolor osos da r dos da pe r c e pç ã o
c onsc ie nte .

Ac e r te i na m osc a ! A f oc a liza ç ã o pode tr a ze r a som br a pa r a de ntr o do


nosso hor izonte im e dia to. Qua ndo pr e sta m os a te nç ã o à pa r te
r e pr im ida de nós m e sm os, e la ve m à vida , e la r e sponde .

Dur a nte a pr e pa r a ç ã o de Ao Enc ontro da Sombra, e sse pr oc e sso


tr a nsf or m ou- se , pa r a m im , num diá logo vivo e c onsc ie nte . Esse
pr oc e sso c onf ir m ou, de m a ne ir a be m m a is a m pla , m uita s da s m inha s
obse r va ç õe s pe ssoa is e e xpe r iê nc ia s c om a som br a . E, o que é m a is
im por ta nte pa r a m im , f or ç ou- m e a r e a liza r o "tr a ba lho c om a
som br a " e m m im m e sm o. P a sse i m a is de um a no e spr e ita ndo a f a c e
e sc ur a da s c oisa s e r e volve ndo e ssa s ide ia s, a té que e la s se tor na r a m
r e a is pa r a m im . Me u sono te m sido pontilha do por sonhos c om a
som br a , por e nc ontr os e str a nhos c om hom e ns m iste r iosos, por
e m ba te s notur nos e por de sc obe r ta s f e ita s a o la do dos m a is
im pr ová ve is c om pa nhe ir os. Hoj e , c onhe ç o pe ssoa lm e nte e sse s e f e itos
e r e c onhe ç o c om m a is f a c ilida de a s im pe r f e iç õe s da m inha a lm a .
Hoj e , de dic o c a da ve z m e nos e ne rgia à s m inha s a titude s e a pa r ê nc ia s
de a nte s.

Ca da um de nós c onté m o pote nc ia l pa r a se r de str utivo e c r ia tivo. O


r e c onhe c im e nto dos inim igos som br ios de ntr o de nós é , na ve r da de ,
um a to c onf e ssiona l, o iníc io da tr a nsf or m a ç ã o psic ológic a . Ne nhum
dos nossos a spe c tos pode r á se r tr a nsf or m a do a m e nos que , pr im e ir o, o
a c e ite m os e o dote m os de r e a lida de . O "tr a ba lho c om a som br a " é a
f a se de inic ia ç ã o pa r a f a ze r m os de nós m e sm os um a tota lida de .

Ma s, e m bor a m uito se f a le sobr e a tota lida de , o f a to é que ne nhum de


nós pode r á r e a lm e nte c onte r o todo, pe lo m e nos de um m odo
c onsc ie nte . Nã o c onse guim os e sta r c onsc ie nte s de toda s a s c oisa s
dur a nte todo o te m po. A f r a gm e nta ç ã o é pa r te ine r e nte do nosso
c onhe c im e nto.
Te nta r c onhe c e r a som br a e quiva le a que r e r c onhe c e r os m isté r ios da
c r ia ç ã o: nosso c onhe c im e nto se r á , se m pr e , inc om ple to. P ode m os,
qua ndo m uito, se r vir a um pr inc ípio da r e a lida de , a spir a r a um a vida
se m hipoc r isia e c ontinua r na busc a c onsc ie nc iosa dos níve is m a is
pr of undos da ve r da de . Com f r e quê nc ia , isso ir á e xigir de nós um a
dose de louc ur a — o louc o e m nós —, pa r a se r m os c a pa ze s de
r e c upe r a r a s c oisa s que f or a m r e pr im ida s ou ne ga da s e , de pois,
e nc ontr a r ne la s um signif ic a do pe ssoa l. Na disposiç ã o pa r a nos
tor na r m os louc os, e nc ontr a m os a sa be dor ia .

Ac r e dito que o hum or ism o r e a liza m ila gr e s qua ndo se tr a ta de a j uda r


os outr os a ve r sua s som br a s. Qua lque r c om e dia nte de r e spe ito sa be ,
de m a ne ir a intuitiva , que o hum or ism o libe r a a que le s de sc onc e r ta nte s
e pote nc ia lm e nte pe r igosos c onte údos da som br a , se m c a usa r da nos.
O hum or ism o pode de sa ta r nossos m e dos e e m oç õe s r e pr im ida s; pode
dissolve r o e m ba r a ç o e a ve rgonha que ta lve z sinta m os pe la s nossa s
f r a que za s. Atr a vé s do hum or ism o, pode m os c he ga r a o ba ixo- ve ntr e
da s c oisa s e e nxe rga r a quilo que e sta m os nos r e c usa ndo a a dm itir,
Qua ndo nã o te m os se nso de hum or é pr ová ve l que te nha m os pouc a
liga ç ã o c om a nossa som br a , que te nha m os um a f or te ne c e ssida de de
se r vir a o j ogo da s a pa r ê nc ia s. Na ga rga lha da , solta m os e libe r ta m os a
e ne rgia da que le s pontos inte r ior e s e m c uj a a r m a dilha e sta m os pr e sos,
onde nos e sc onde m os c he ios de m e do. "Se a ge nte nã o pode da r um a
boa ga rga lha da ", c om o diz a que la m úsic a c ountry, "a louc ur a tom a
c onta do luga r."

Me u tr a ba lho tor na - se m a is a gr a dá ve l e e f ic a z qua ndo c onsigo r ir


j unto c om os outr os, m e sm o sobr e os a ssuntos m a is sé r ios. Eu pr oc ur o
a que le "toque " de ina de qua ç ã o. Esse é o te r r itór io que m a is va le os
r isc os que c or r e m os pa r a e nc ontr a r. P ois é ne le , à s m a rge ns da
pe r c e pç ã o c onsc ie nte , que pode m os de sc obr ir o "Gr a nde Ca m inho" do
ze n, o c a m inho onde o signif ic a do pr of undo da s c oisa s nã o é
pe r tur ba do pe la te ndê nc ia da m e nte c onsc ie nte de e sta be le c e r
distinç õe s. "Contr a por a quilo de que gosta s à quilo de que nã o gosta s",
diz Se ngsta m , te r c e ir o pa tr ia r c a ze n, "é a doe nç a da m e nte ."

Me u de se j o, c a r o le itor e le itor a , é que e sta se le ç ã o de e nsa ios e


ide ia s possa tr a ze r a o se u hor izonte um a pe r c e pç ã o c a da ve z m a ior da
som br a onipr e se nte na sua vida . Ela vir á c om m uita f a c ilida de . Sugir o
que voc ê le ia a lgum a s pá gina s, sa ia pa r a a vida e olhe à sua volta . As
bê nç ã os do "tr a ba lho c om a som br a " ir ã o be ne f ic ia r voc ê e o m undo.

O "tr a ba lho c om a som br a " é um bom r e m é dio! Ele nos le va a um a


pr á tic a que e u c ha m o a busc a de uma v ida se m hipoc risia e outr os
ta lve z c ha m e m v iv e r c om inte gridade . P a r a tr a ze r à tona e de sa f ia r o
m e u pr ópr io "e u" hipóc r ita ( a m inha som br a ) , a va lio m e us a tos
que stioná ve is c om e sta pe rgunta : "Qua ndo no m e u le ito de m or te , e
pr e ste s a ir a o e nc ontr o do m e u Cr ia dor, se r á que a inda se r e i c a pa z de
dize r que f iz o m e lhor que pude ?" Com o disse Ga ndhi: "Os únic os
de m ônios do m undo s3o a que le s que vive m e m nossos c or a ç õe s, É a li
que a ba ta lha de ve se r tr a va da ."

P o d e m o s e s c o l h e r se r um a pe ssoa a que m possa m os r e spe ita r,


pode m os e sc olhe r um c om por ta m e nto signif ic a tivo e do qua l nã o
pr e c isa r e m os nos a r r e pe nde r. I sso é possíve l, m a s som e nte a s
e sc olha s sã o c la r a s se a s f a ze m os c om toda a c onsc iê nc ia . Um a
pe r c e pç ã o c onsc ie nte da som br a pode dissolve r o pode r inc onsc ie nte
da som br a sobr e nossa s e sc olha s.

Esta é um a opor tunida de de our o pa r a pe r c e be r m os a som br a : o our o


e stá na pe r c e pç ã o c onsc ie nte da e sc olha , que se tom a possíve l pe la
m e dia ç ã o da te nsã o e ntr e a nossa som br a e o nosso e go. Se te m os
e sc olha sobr e que m som os ne ste m undo, se gue - se que pode m os
a ssum ir r e sponsa bilida de pe lo tipo de m undo que c r ia m os.

I r às tre v as c om uma luz,


signific a c onhe c e r a luz.
Para c onhe c e r as tre v as, c aminhe na e sc uridão.
Caminhe se m v e r, e de sc ubra que també m as tre v as
flore sc e m e c antam,
e são trilhadas por e sc uros pé s e por e sc uras asas.
We nde ll Be r r y

Notas

Capít ulo 12 — Downing

1. C. G. Jung: "Sy m bols of the Mothe r a nd Re bir th", Colle c te d


Work s, vol. 5, pá g. 259 ( Nova Yor k: P a nthe on, 1959) ; e Two
Essay s on Analy tic al Psy c hology, e m Colle c te d Work s vol.
7, pá gs. 38 e 75.

2. C. G. Jung: "Conc e m ing Re bir th", Colle c te d Work s, vol. 9.1,


pá g. 131.

3. Otto Ra nk; The D ouble ( Cha pe i Hillr Unive r sity of Nor th


Ca r olina P r e ss, 1971) e Be y ond Psy c hology ( Nova Yor k:
Dove r, 1941) .

Capít ulo 16 — Conge r

1. C. G. Jung: Sy mbols of Transformation: An Analy sis of the


Pre lude to a Case of Sc hizophre nia, se gunda e diç ã o, tr a d.
R.F.C. Hull, Bollinge n Se r ie s XX, vol. 5 ( P r inc e ton, N.J.:
P r inc e ton Unive r sity P r e ss, 1956) , pá g. 71.

2. C. G. Jung: Analy tic al Psy c hology : I ts The ory and Prac tic e
( Nova Yor k: Vinta ge , 1968) , pá g. 23. ( I tá lic o nosso ) .

3. W. Re ic h: The Func iion ofthe Orgasm , tr a d. The odor e P.


Wolf e ( Nova Yor k: Me r idia n, 1970) , pá g. 241.

4. W. Re ic h: Ethe r, God, and De v il, tr a d. Ma r y Boy d Higgins e


The r e se P ol ( Nova Yor k: Fa r r a r, Str a us & Gir oux, 1973) ,
pá g. 91.

5. C. G. Jung: The Struc ture and Dy namic s of the Psy c he , 2ª


e d. tr a d. R.F.C. Hull, Bollinge n Se r ie s XX, vol. 8 ( P r inc e ton,
N.J.: P r inc e ton Unive r sity P r e ss, 1969) , pá g. 215.

6. C. G. Jung: The Arc he ty pe s and the Colle c tiv e Unc onsc ious,
tr a d. R.F.C. Hull, org. Sir He r be r t Re a d, Mic ha e l For dha m e
Ge r a r d Adle r, Bollinge n Se r ie s XX, vol. 9 ( P r inc e ton, N.J.:
P r inc e ton Unive r sity P r e ss, 1980) , pá g. 284.

7. W. Re ic h: The M ass Psy c hology of Fasc ism, tr a d. Vinc e nt R.


Ca r f a gno ( Nova Yor k: Fa r r a r, Str a us & Gir oux, 1970) , pá g.
si.

8. Ha ns Chr istia n Ande r se n: "The Sha dow", e m Hans Christian


Ande rse n; Eighty Fai- ry - Tale s ( Nova Yor k: P a nthe on P r e ss,
1982) , pá g. 193. Ve r ta m bé m Otto Ra nk: The Double : A
Psy c hoanaly iic Study, tr a d. e org. Ha r r y Tuc ke r Jr. ( Nova
Yor k: Me r idia n, 1971) , pá gs. 10/11.

9. W. Re ic h: The M ass Psy c hology of Fasc ism, pá g. xi.

10. C. G. Jung: Two Essay s on Analy tic al Psy c hology, 2 1 e d.


tr a d, R.F.C. Hull, Bollinge n Se r ie s XX, vol. 7 ( P r inc e ton,
N.J.: P r inc e ton Unive r sity P r e ss, 1972) , pá g. 192.

11. W. Re ic h: The M ass Psy c hology of Fasc ism, pá g. xi.

Capít ulo 25 — G le ndinning


1. Le wis Mum f or d: M y Work s and Day s: A Pe rsonal Chronic le
( Nova Yor k: Ha r c our t Br a c e Jova novic h, 1979) , pá g. 14.

2. P a ul Br ode ur : Outrage ous M isc onduc t: The Asbe stos


I ndustry on Trial ( Nova Yor k: P a nthe on, 1985) , pá g. 14.
Capít ula 26 — B ishop

1. R , M e tzn e r : M aps of Consc iousne ss ( Nova Yor k: Collie r


Ma c m illa n, 1979) , pá g. 2.

2. Ve r B. E. Fe m ow; "Applie d Ec ology ", e m Sc ie nc e 17 ( 1903)


e V. M. Spa lding: "The Rise a nd P r ogr e ss of Ec ology ", e m
Sc ie nc e 17 ( 1903) .

3. P or e xe m plo, A. Chisholm : Philosophe rs of lhe Earth;


Conv e rsariam- with Ec ologists ( Londr e s: Sidgwic k a nd
Ja c kson, 1972) .

4. Cita do e m A. Chisholm : Philosophe rs of the Earth. Ve r


ta m bé m G. Se ssions: "Ec o- philosophy , Utopia s, Educ a tion",
e m The J ournal of Env ironme ntal Educ ation 15, nº 1 ( outono
de 1983) .

5. As c ita ç õe s sã o de Robinson Je ff e r s e Buc km inste r Fui le r,


e m R. Buc km inste r Fulle r : Earth I nc . ( Nova Yor k: Anc hor
P r e ss, 1973) , pá g. 69.

6. Cita do e m M. Dougla s e A. Wilda vsky : Risk and Culture : An


Essay on the Se le c tion of Te c hnic al and Env ironme ntal
D ange rs ( Be r ke le y ; Unive r sity of Ca lif or nia P r e ss, 1982) ,
pá g. 64. Ele s suge r e m que há pouc a dif e r e nç a e ntr e a
m a ne ir a c om o a soc ie da de industr ia l vê a s que stõe s
a m bie nta is e a c osm o visã o "m á gic a " da s soc ie da de s
pr im itiva s. Sobr e a unida de pr of a na , ve r ta m bé m B.
W e i s b e r g : Be y ond Re pair: The Ec ology of Capitalism
( Boston: Be a c on P r e ss, 1971) .

7. J. Sc he ll: The Fale of The Earth ( Londr e s: P ic a dor, 1982) ,


pá gs. 62/65.

8. J. Hillm a n, e m "Going Bugs" ( um a de sua s pa le str a s sobr e


"Os Anim a is nos Sonhos", no I nstituto de Hum a nida de s e
Cultur a de Da lla s e m 1982) , ta m bé m f a z r e f e r ê nc ia a o O
Se nhor das M osc as, a o c or o dos inse tos no F a u s to e à
M e tamorfose de Ka f ka .

9. Ve r R. Sa r de Uo: "The Suff e r ing Body of The City ", e m


Spring, 1983, pá gs. 145/164.

10. Conf . o e c ologista Dr. N. Moor e e m Chisholm :


Philosophe rs. Ve r ta m bé m I . Ba r bour : Earth M ighl Be Fair;
Re fle tions on Ethic s, Re ligion, and Ec ology ( Nova Yor k:
P r e ntic e - Ha ll, 1972) , P á gs. 56 e 153. Dougla s ( e m Risk and
Cu l t u re , pá g. 131) r e la c iona dir e ta m e nte a f or m a de
orga niza ç ã o dos gr upos a tivista s a m bie nta is c om sua s
im a ge ns de de sa str e .

11. L. Ga llone de c : "Ma n' s De pe nde nc e on the Ea r th", e m


Popular Sc ie nc e M onthly 53 ( m a io de 1898) ; lido no
Congr e sso da s Soc ie da de s Cie ntíf ic a s, Fr a nç a .

12. L. Eise le y : The Star Throwe r ( Londr e s: Wildwood House ,


1978) , pá g. 179.

13. C. G. Jung: Colle c te d Work s, tr a d. R.F.C. Hull, Bollinge n


Se r ie s XX, vol. 10 ( P r inc c ton, N.J.: P r inc e ton Unive r sity
P r e ss, 1970) , se ç ã o 615.

14. H. B. Hough, e m D. Day, The D oomsday Book of Animais


( Londr e s: Ebur y P r e ss, 1981) , pá g. 10.

15. J. e P. P hilips: Vic torians at Home and Away ( Londr e s:


Cr oom He lm , 1978) , pá g. 18. O na c iona lism o do sé c ulo
XI X of e r e c ia im a ge ns ide a liza da s de unif ic a ç ã o, c oe r ê nc ia
e ide ntida de que c ontr a dizia m a inte nsa f r a gm e nta ç ã o e
c onf lito inte r nos. Atr a vé s de im a ge ns im pe r ia is ( por
e xe m plo, do Or ie nte ) te ntou- se c a te gor iza r e c ontr ola r o
pla ne ta .

16. J. Hillm a n: "Anim a Mundi", e m Spring 1982, pá gs. 71/93.


ve r ta m bé m R. Sa r de llo: "Ta king the Side of Things", e m
Spring 1984, pá gs. 127/135.

17. Ve r o a br a nge nte Wilde rne ss and the Ame ric an M ind de R.
Na sh ( Ne w Ha ve n, Conn.: Ya le Unive r sity P r e ss, 1973) .

18. Ve r a s r e f le xõe s de A. P or tm a a n sobr e a be le za na


na tur e za , e m "W ha t Living For m Me a ns to Us". e m Spring
1 9 8 2 , pá gs. 27/38. Ta m bé m J. Hilbna n: "Na tur a l Be a uty
without Na tur e ", e m Spring J 985, pá gs. 50/55.

19. Ve r A. Zie gle r : "Rousse a uia n Optim ism , Na tur a l Distr e ss,
a nd Dr e a m Re se a r c h", e m Spring 1976, pá gs. 54/65;
Eise le y : Star Throwe r, pág, 231; Na sh: Wilde rne ss, pá g. 165;
F. Younghusba nd: Wonde rs of the Himalay as, 1924
( Cha ndiga r h; Abhíshe k P ublic a tíons, 1977) .

20. S. La r se n: The Shaman' s Doorway ( Nova Yor k: Ha r pe r &


Row, 1977) , pá g. 169.

21. A c e le br a ç ã o de um a inte r pr e ta ç ã o ge ne r a liza da , e sté tic a e


r e a lístic a da pa isa ge m na tur a l pe los oc ide nta is a m a nte s da s
r e giõe s se lva ge ns é qua se únic a . Em bor a o Extr e m o
Or ie nte ta m bé m te nha um a longa tr a diç ã o de a pr e c ia ç ã o
e sté tic a da pa isa ge m , e la f oi a lta m e nte ide a liza da e
f or m a liza da . A m a ior ia da s c ultur a s tr a dic iona is se m pr e
r e ve r e nc iou loc a is ge ogr á f ic os e spe c ífic os ( e nã o v istas)
a tr a vé s de histór ia s sa gr a da s a e le s a ssoc ia da s — ve r M.
E lia d e : Sac re d and Profane ( Nova Yor k: Ha r e our t, Br a c e
a nd Wor ld, 1959) . As c ultur a s tr a dic iona is ge r a lm e nte vê e m
os loc a is sa gr a dos c om um m isto de r e ve r ê nc ia , a ssom br o,
c a ute la e m e do, Do m e sm o m odo, a s te r r a s de sc onhe c ida s
a lé m de se u pr ópr io te r r itór io sã o tr a ta da s c om ba sta nte
c ir c unspe c ç ã o. Num e nsa io a nte r ior ( "Ge ogr a phy of
I m a gina tion; Tibe t", e m Spring 1984, pá gs. 195/209) , disc uti
a s c onse quê nc ia s da te nta tiva oc ide nta l de r e m ove r o
pa r a doxo im a gina tivo de sua s f a nta sia s sobr e o Tibe te .

22. Ve r o im por ta nte e nsa io de L. W hite Jr.: "The Histor ic a l


Roots of Our Ec ologic a l Cr isis", e m The Env ironme ntal
H andbook , org, G. de Be ll ( Nova Yor k: Ba lla ntine Books,
1970) . P a r a um a a ná lise m e nos unila te r a l que m ostr a um a
c om ple xida de be m m a ior na postur a oc ide nta l e n r e la ç ã o à
na tur e za , ve r K. Thom a s: M an and the Natural World:
Changing Attitude s in England, 1500- 1800 ( Londr e s: Alle n
La ne , 1983) . Ve r ta m bé m S. Fox: J ohn M uir And His Le gac y
( Boston: Little Br own & Co., 1981) , c a p. 11. Ve r ta m bé m Yi
Fu- tua n: "Disc r e pa nc ie s Be twe e n Envir onm e nta l Attitude s
a nd Be ha viour : Exa m ple s f r om Eur ope a nd China ", pa r a
um a te nta tiva de ir a lé m dos te xtos c lá ssic os e c or r igir a
r e if ic a ç ã o ingê nua da s pr á tic a s e c ológic a s or ie nta is —
c ita do e m P. English e R. Ma y f ie ld: M an, Spac e and
Env ironme nt ( Nova Yor k; Oxf or d Unive r sity P r e ss, 1972) .

23. Ve r Na sh: Wilde rne ss, Ta m bé m K. Thom a s: Natural World.

24. P or e xe m plo, R. Ka pla n: "Som e P sy c hologic a l Be ne f its of


a n Outdoor Cha lle nge P r ogr a m ", e m Env ironme nt and
Be hav iour, n- 6 ( 1974) : J, Swa n: "Sa c r e d P la c e s I n Na tur e ",
e m The J ournal of Env ironme ntal Educ ation 15, n- 4 ( 1983) ;
e W. Ha m m it: "Cognitive Dim e nsions of Wilde r ne ss
Solir ude ", e m Env ironme nt and Be hav iour, n 2 14 ( 1982) .

25. Dougla s: Risk and Culture , pá g. 151.


26. I bid., pá gs. 131/140, pa r a um a disc ussã o de ssa r e la ç ã o
e ntr e os m e dos globa is e a s e str a té gia s globa is. Um
e xe m plo ponde r a do de ssa a bor da ge m é R. Higgins: The
Sc v e nth Ene my : The Human Fac tor in the Global Crisis
( Londr e s: Hodde r a nd Sloughlon, 1978) . Ke r n, por e xe m plo,
r e la c iona a e m e rgê nc ia do c onc e ito de "e spa ç o a be r to"
c om a a sc e nsã o do im pe r ia lism o, a e xplor a ç ã o e o dom ínio
do pla ne ta pe lo Oc ide nte no sé c ulo XI X ( Culture oflime and
Spac e , pá g. 164) .

27. Eise le y : The Star Throwe r, pá g. 262.

28. G. Ba c he la r d: The Poe tic s of Re v e rie ( Boston: Be a c on


P r e ss, 1971) , pá g. 127.

29. E i s e l e y : The Star Throwe r, pá g. 262. Esse s e sc ur os


m ur m úr ios do a m bie nte e da na tur e za ta m bé m e stã o
suj e itos à m a nipula ç ã o polític a ; de ve m os nos inda ga r por
que e xiste m f lutua ç õe s nos f oc os de inte r e sse — um a no é a
poluiç ã o, no outr o a c r ise e ne rgé tic a , a supe r popula ç ã o, a
gue r r a nuc le a r e a ssim por dia nte .

Capít ulo 33 — Nic hols

1. A. Ma c Gla sha n: The Sav age and Be autiful Country


( Londr e s: Cha tto a nd Windus Ltd., 1967) .

2. C, G. Jung: Psy c hologic al Re fle c tions; org. Jola nde Ja c obi


( P r inc e ton, N.J.: P r inc e ton Unive r sity P r e ss, 1970) .

3. I bid.

Capít ulo 35 — Jung

1. C. G. Jung; A ion, e m Colle c te d Work s, tr a d. R.F.C. Hull, Bollinge n


Se r ie s XX, vol. 9, I I ( P r inc e ton, N.J.: P r inc e ton Unive r sity P r e ss,
1980) , pá g. 82 e se gs.

Capít ulo 37 — Pe c k
1. Ta lve z a m a ior be le za ( e m bor a tã o usa da e a busa da ) da
doutr ina c r istã se j a a sua c om pr e e nsiva a bor da ge m do
pe c a do. Tr a ta - se de um a a bor da ge m de dua s f a c e ta s. P or
um la do, e la a f ir m a a nossa na tur e za hum a na pe c a dor a .
P or ta nto, qua lque r c r istã o ge nuíno c onside r a r á a si m e sm o
c om o um pe c a dor. O f a to de que m uitos "c r istã os" só de
nom e e a be r ta m e nte de votos nã o se c onside r e m , no f undo
do c or a ç ã o, c om o pe c a dor e s, nã o de ve se r visto c om o um
f r a c a sso da doutr ina m a s a pe na s c om o um f r a c a sso do
indivíduo de c om e ç a r a vive r à a ltur a de la . Adia nte
f a la r e m os m a is sobr e a pe ssoa m á sob um disf a r c e c r istã o.
P or outr o la do, a doutr ina c r istã ta m bé m a f ir m a que nossos
pe c a dos sã o pe r doa dos — pe lo m e nos na m e dida e m que
se ntir m os a r r e pe ndim e nto por e le s. P e r c e be ndo ple na m e nte
a e xte nsã o da nossa na tur e za pe c a dor a , é pr ová ve l que nos
se ntísse m os qua se e sm a ga dos pe lo de sa m pa r o se a o m e sm o
te m po nã o a c r e ditá sse m os na m e r c ê e na na tur e za
m ise r ic or diosa do De us c r istã o. P or ta nto, a I gr e j a ta m bé m
a f ir m a que f ic a r insistindo inc e ssa nte m e nte sobr e c a da um
dos m e nor e s pe c a dos que possa m os te r c om e tido ( um
pr oc e sso c onhe c ido c om o "e xc e sso de e sc r úpulos") é , e m
si, um pe c a do. Já que De us nos pe r doa , de ixa r de pe r doa r a
nós m e sm os e quiva le a c oloc a r m o- nos a c im a de De us —
logo, c om e te r o pe c a do do orgulho num a f or m a pe r ve r tida ,

2. Ge r a ld Va nn: The Pain of Christ and lhe Sorrow of God


( Spr ingf ie ld, I I I .: Te m ple Ga te P ublishe r s, c opy right Aquin
P r e ss, 1947) , pá gs. 54- 55.

3. Er ne st Be c ke r, e m sua últim a obr a , Esc ape from Ev il


( Ma c m illa n, 1965) , indic ou o pa pe l e sse nc ia l da busc a do
bode e xpia tór io na gê ne se da m a lda de hum a na . Ac r e dito
que e le se e quivoc ou a o f oc a r e xc lusiva m e nte o m e do da
m or te c om o o únic o m otivo pa r a e ssa busc a do bode
e xpia tór io. Na ve r da de , a c r e dito que o m e do da a utoc r ític a
é o m otivo m a is f or te . Em bor a Be c ke r nã o o te nha
m e nc iona do, e le pode r ia te r e quipa r a do o m e do da
a utoc r ític a a o m e do da m or te . A a utoc r ític a é um c ha m a do
pa r a um a m uda nç a de pe r sona lida de . Tã o logo e u c r itic o
um a pa r te de m im m e sm o, inc or r o na obr iga ç ã o de
tr a nsf or m a r e ssa pa r te . Ma s o pr oc e sso de m uda nç a de
pe r sona lida de é dolor oso. É c om o um a m or te . O a ntigo
pa dr ã o de pe r sona lida de pr e c isa m or r e r pa r a que um novo
pa dr ã o tom e o se u luga r. As pe ssoa s m á s e stã o pa to
logic a m e nte a pe ga da s a o status quo de sua s pe r sona lida de s,
a s qua is, e m se u na r c isism o, ve e m c om o se ndo pe r f e ita s.
Ac ho ba sta nte possíve l que a pe ssoa m á c onside r e qua lque r
m uda nç a , por m e nor que se j a , no se u a m a do "e u" c om o
um a a niquila ç ã o tota l. Ne sse se ntido, a a m e a ç a da
a utoc r ític a pode pa r e c e r à pe ssoa m á um sinônim o de
a m e a ç a de e xtinç ã o.

4. Be be r : Good and Ev il, pá g. 111, Já que o m otivo pr im á r io


do m a l é o disf a r c e , um dos loc a is e m que é m a is pr ová ve l
e nc ontr a r m os pe ssoa s m á s é de ntr o da igr e j a . Na nossa
c ultur a , e xistir ia m odo m e lhor pa r a e sc onde r de si m e sm o
— e ta m bé m dos outr os — o pr ópr io m a l do que se r um
diá c ono ou a lgum a outr a f or m a a lta m e nte visíve l de
c r istã o? Na índia , suponho que os m a us de m onstr a r ia m um a
te ndê nc ia se m e lha nte a se r "bons" hindus ou "bons"
m uç ulm a nos. Nã o pr e te ndo c om isso im plic a r que os m a us
sã o m a is do que um a pe que na m inor ia e ntr e a s pe ssoa s
r e ligiosa s, ne m que os m otivos r e ligiosos da m a ior ia da s
pe ssoa s se j a m e spúr ios. Que r o dize r a pe na s que a s pe ssoa s
m á s te nde m a gr a vita r pa r a a s a tivida de s pie dosa s, e m
busc a do disf a r c e e da oc ulta ç ã o que a li pode m obte r.

Capít ulo 38 — Diamond

1. Lilia ne Fr e y Rohn: "Evil f r om the P sy c hologic a l P oint of


Vie w", e m E v i l ( Eva nston, 111.: Nor thwe ste r n Unive r sity
P r e ss, 1967) , pá g. 167.

2. I bid., pá g. 160.

3. Ca r I Jung: M e morie s, Dre ams, Re fle c tions ( Nova Yor k:


P inion Books, 1961) , pá g. 153.

4. Rollo Ma y : "Re f le c tions a nd Com m e nta r y ", e m Cle m e nt


Re e ve s: The Psy c hology of Rollo M ay : A Stttdy in Ex iste ntial
The ory andPsy c liote rapy ( Sã o Fr a nc isc o: Josse y - Ba ss,
1977) , pá g, 304.

5. M. Sc ott P e c k: Pe ople ofthe Lie : The Hope for He aling


Httman Ev il ( Nova Yor k: Sim on a nd Sc huste r, 1983) , pá gs.
67, 78 e 183. ( P a r a um a c r ític a do livr o de P e c k, ve r
Ste phe n Dia m ond: "The P sy c hology of Evil", e m The San
Franc isc o J ung lnstilute Library J ournal 9, n5 1, 1990, pá gs.
5/26.

6. Sigm und Fr e ud: "Tote m a nd Ta boo", e m The Basic Writings


of Sigmund Fre ud ( Nova Yor k: Ra ndom House , 1938) , pá g.
848.

7. I bid.

8. Ca r l Jung: "P sy c hologíc a l Ty pe s", e m The Colle c te d Work s


ofC. G. J ung, vol. 6 ( P r inc e ton, N.J.: P r inc e ton
Unive r sity P r e ss, 1971) , pá g. 109,

9. Rollo Ma y : M an' s Se arc hfor Himse lf ( Nova Yor k: W. W.


Nor ton, 1953) , pá gs. 72/73.

10. Ca r l Jung: M e morie s, Dre ams, Re fle c tions, pá g. 347.

11. Rollo Ma y : Lov e and Will ( Nova Yor k: W. W. Nor ton, 1969) ,
pá g. 121.

12. Ma r ie - Louise von Fr a nz: "Da im ons a nd the I nne r


Com pa nions", e m Parábola 6, nº 4, 1981, pá g. 36.

13. Rollo Ma y : Lov e and Will, pá gs. 136/137.

14. I bid., pá g. 129.

15. I bid., pá g, 137.

16. Ca r l Jung: M e morie s, Dre ams, Re fle c tions, pá g. 387.

17. Rollo Ma y : "Re f le c tions a nd Com m e nta r y ", pá g. 305.

18. Ja m e s Hillm a n: He aling Fic tion ( Nova Yor k: Sta tion Hill
P r e ss, 1983) , pá g. 68.

19. Ma r ie - Louise von Fr a nz; "Da im ons a nd the I nne r


Com pa nions", pá g, 39.

Capít ulo 39 — B e c ke r

1. Wilhe lm Re ic h: The M ass Psy c hology of Fasc ism; 1933


( Nova Yor k: Fa r r a r, Str a us, 1970) , pá gs. 334 e se gs.

2. I bid., pá g. 339.

3. Er ic h Ne um a nn: De pth Psy c hology and a Ne w Ethic


( Londr e s: Hodde r & Stoughton, 1969) , pá g. 40.

4. Ca r l Jung: "Af te r the Ca ta str ophe ", e m Colle c te d Work s,


vol. 10 ( P r inc e ton, N.J.: Bol- lingc n, 1970) , pá g. 203.

5. I bid.

6. Er ic h Ne um a nn: De pth Psy c hology and a Ne w Ethic , pá g.


50.
7. Ca r l Jung: "Af te r the Ca ta str ophe ", pá g. 216.

Capít ulo 40 — Sc hmookle r

1. M. Sc olt P e c k: Pe ople ofthe Lie : The Hope for He aling


Human Ev il ( Nova Yor k; Sim on a nd Sc huste r, 1983) , pá g.
69.

2. M. Esthe r Ha r ding: The "I " and the "Not- I ": A Sttidy in the
De v e hpme nl ofConsc ious- ne ss ( P r inc e ton, N.J.:

P r inc e ton Unive r sity P r e ss, 1965) , pá g. 91.

3. Cita do e m Tarry town Le tte r, a br il de 1983, pá g. 16.

4. Cita do e m Robe r t G. C. Wa ite : The Psy c hopathic God:


AdolfHitle r ( Nova Yor k: Ba sic Books, 1977) , pá g. xvii.

5. I bid.

6. Ve r Er ic k Er ikson: Gandlu $ Truth: On the Origins of M ilitam


No n - v i o l e n c e ( Nova Yor k: W. W. Nor ton, 1969) . É
inte r e ssa nte nota r que a lgo se m e lha nte pode se r e nc ontr a do
na vida de Le o Tolstoy . Nos últim os a nos de sua vida ,
qua ndo e xor ta va o m undo a busc a r a pe r f e iç ã o do a m or e
da pa z c r istã os, pa r e c e que Tolstoy tir a niza va c r ue lm e nte a
e sposa e se u pe ssoa l dom é stic o.

7. Er ik Er ikson: Ghandhi' s Truth, pá g. 251,

8. Ge orge Or we ll: Colle c te d Essay s ( Londr e s: He ine m a nn,


1966) , P á g. 456.

9. Er ik Er ikson: Ghandius Trulh, pá g. 234.

10. Er ic h Ne um a nn: De pth Psy c hology and a Ne w Ethic


( Londr e s: Hodde r & Sthoughton, 1969) , pá g. 111.

11. Er ik Er ikson: Gandhi' s Truth, pá g. 433.

12. Cita do e m M. Sc ott P e c k: Pe ople of the Lie , pá g. 11.

Capít ulo 46 — Lif t on


1. P a ul W. P r uy se r : "W ha t Splits in Splitting?", e m Bulle tin of
the M e nninge r Clinic 39, 1975, pá gs. 1/46.

2. Me la nie Kle in: "Note s on Som e Sc hizoid Me c ha nism s", c m


I nte rnational J ournal of Psy c hoanaly sis 27, 1946, pá gs.
99/110: e Otto F. Ke m be rg: "The Sy ndr om e ", e m Borde rline
Conditions and Pathologic al Narc issism ( Nova Yor k: Ja son
Ar onson, 1973) , pá gs. 3/47.

3. He nr y V. Dic ks: Lic e nse dM assM urde r: A Soc io-


Psy c hotogic alStudy ofSome SS Kille rs ( Nova Yor k: Ba sic
Books, 1972) .

4. Ve r, por e xe m plo, Er ik H. Er ikson: I de ntity : Youth And Crisis


( Nova Yor k: W. W. Nor ton, 1968) ; He inz Kohut: The
Re storation ofthe Se i/( Nova Yor k; I nte r na tiona l Unive r sitie s
P r e ss, 1977) ; He nr y Guntr ip: Psy c hoanaly tic The ory,
The rapy and the Se lf ( Nova Yor k: Ba sic Books, 1971) ; c
Robe r t Ja y Lif ton: The Brok e n Conne c tion: On De ath and
the Continuity of Life , 1979 ( Nova Yor k: Ba sic Books, 1983) .

5. Willia m Ja m e s: The Varie tie s of Re ligious Ex pe ríe nc e : A


Study in Human Nature , 1902 ( Nova Yor k: Colhe r, 1961) ,
pá g. 144.

6. Os dois pr inc ipa is e studos de Ra nJc sobr e e sse f e nôm e no


sã o The Double : A Psy c hoanaly tic Study, 1925 {Cha pe i Hill:
Unive r sity of Nor th Ca r olina P r e ss, 1971) , e "The Double
a s I m m or ta l Se lf , e m Be y ond Psy c hology, 1941 {Nova
Yor k: Dove r, 1958) , pá gs. 62/101.

7. Ra n k: The Double , pá gs. 3/9 e Ra nk: Be y ond Psy c hology,


pá gs. 67/79. Sobr e "De r Stude nt von P r a g", ve r Sie gf r ie d
Kr a c a ue r : From Catigari to Hitle r: A Psy c hologic al History
ofthe Ge rman Pilm ( P r inc e ton, N.J.: P r inc e ton Unive r sity
P r e ss, 1947) , pá gs. 28/30. Ra nk a ssistiu "O Estuda nte de
P r a ga " dur a nte um a r e tr ospe c tiva e m m e a dos dos a nos 20 e
e sse f oi o pr im e ir o e stím ulo pa r a sua pr e oc upa ç ã o de toda
a vida c om o te m a do duplo. Ra nk obse r vou que o a utor do
r ote ir o, Ha nns He inz Ewe r s, ba se a r a - se na "Histór ia do
Re f le xo P e r dido" de Hoff m a nn. ( Ve r E. T. A.

Hoff m a nn: "Stor y of the Lost Re f le c tion", e m J. M. Cohe n ( org.) :


Eigltt Tale s of Hoffmann ( Londr e s, 1952) .

8. Ra nk: Be y ond Psy c hology, pá g. 98.

9. Em se u tr a ba lho inic ia l, Ra nk se guia Fr e ud liga ndo a le nda


de Na r c iso a o c onc e ito de "na r c isism o", ou se j a , a libido
dir igida pa r a o pr ópr io se lf da pe ssoa . Ma s Ra nk da va a
im pr e ssã o de f a zê - lo c om r e lutâ nc ia , se m pr e e nf a tiza ndo
que a m or te e a im or ta lida de e spr e ita m por tr á s do
na r c isism o. Em sua a da pta ç ã o poste r ior, e le de f e nde u
vigor osa m e nte o te m a da m or te c om o o pr im e ir o e m a is
f unda m e nta l na le nda de Na r c iso e f a lou c om c e r to de sdé m
de "a lguns psic ólogos m ode r nos que a le ga m te r e nc ontr a do
ne le um sím bolo do pr inc ípio do a m or a si m e sm o". ( Ve r
Ra nk: Be y ond Psy c hology, pá gs. 97/101.) Ne ssa é poc a e le
j á ha via r om pido c om Fr e ud e e sta be le c ido sua pr ópr ia
posiç ã o inte le c tua l.

10. Ra nk: The Double , pág. 76. ll.I bid.

12. Ra nk: Be y ond Psy c hology, pá g. 82.

13. Mic ha e l Fr a nz Ba sc h f a la de um a inte r f e r ê nc ia na "uniã o do


a f e to c om a pe r c e pç ã o se nsor ia l se m , c ontudo, c r ia r um
bloque io e ntr e a pe r c e pç ã o se nsor ia l e a c onsc iê nc ia ". Ve r
M. F. Ba sc h: "The P e r c e ption of Re a lity a nd the Disa vowa !
of Me a ning", e m Annual of Psy c hoanaly sis, vol. 11 ( Nova
Yor k: I nte r na tiona l Unive r sitie s P r e ss, 1982) , pá g. 147.
Ne sse se ntido, a r e j e iç ã o a sse m e lha - se a o e ntor pe c im e nto
psíquic o, na m e dida e m que a lte r a a v a lê n c ia ou c a rga
e m oc iona l do pr oc e sso sim bólic o.

14. Ra lph D, Allison: "W he n the P sy c hic Glue Díssolve s", e m


Hy pnos- Ny tt, de ze m br o de 1977.

15. As dua s pr im e ir a s inf luê nc ia s sã o de sc r ita s e m Ge orge B.


Gr e a ve s: "Multiple P e r sona lity : 165 Ye a r s Af te r Ma r y
Re y nolds", e m J ournal ofNe rv ous and M e ntal Dise ase
168,1977, pá gs. 577/596. Fr e ud e nf a tizou a te r c e ir a e m The
Ego and the I d, e m Standard Edition oftlte Work s of Sigmund
F re u d ; Ja m e s Str a c he y ( org,) , 1923 ( Londr e s: Hoga r th
P r e ss, 1955) , vol. XIX, pá gs. 30/31.

16. Ma rga r e tta K. Bowe r s e outr os: "The or y of Multiple


P e r sona lity ", e m I nte rnational J ournal of Clinic al and
Ex pe rime ntal Hy pnosis 19, 1971, pá g. 60.

17. Ve r Lif ton: Brok e n Conne c tion, pá gs. 407/409; e Cha r le s H.


King: "The Ego a nd the I nte gr a tion of Viole nc e in
Hom ic ida l Youth", e m . Ame ric an J ournal of
Orthopsy c hiatry 45, 1975, pá g. 142.

18. Robe r t W. Rie be r usa o te r m o "pse udopsic opa tia " pa r a


a quilo que de sc r e ve c om o "c om por ta m e nto c r im inoso
c onj unto se le tivo" de ntr o dos tipos de subc ultur a a qui
m e n c io n a d o s. Ve r R. W. Rie be r : The Psy c hopathy of
Ev e ry day Life ( m a nusc r ito iné dito) .

19. Ja m e s S. Gr otste in f a la do de se nvolvim e nto de "um se r


se pa r a do que vive de ntr o de um a pe ssoa , o qua l f oi pr é -
c onsc ie nte m e nte dividido e te m um a e xistê nc ia c om
m otiva ç ã o inde pe nde nte , pr ogr a m a se pa r a do, e tc .," e a
pa r tir do qua l pode m e m a na r "o m a l, o sa dism o e a
de str utivida de " ou a té m e sm o "a posse ssã o de m onía c a ". A
e sse a spe c to do se lf e le c ha m a "pa r a sita da m e nte " Ç' mind
p a r a s i t e ", e xpr e ssã o de Colin Wilson) e a tr ibui se u
de se nvolvim e nto à que le s e le m e ntos do s e l f que f or a m
a r tif ic ia lm e nte supr im idos e r e j e ita dos no iníc io da vida .
( Ve r J. S. Gr otste in: "The Soul in Tor m e nt: An Olde r a nd
Ne we r Vie w of P sy c hopa thology ", e m Bulle iin of the
National Counc il of Catholic Psy c hohgists 25, 1979) , pá gs.
36/52,

Capít ulo 51 — Kopp

1. Da nte Alighie r i: The I nfe rno, tr a d. John Cía r di ( Nova Yor k e


Tor onto: The Ne w Am e r ic a n Libr a r y , A Me ntor Cia ssic ,
1954) .

2. Fr a nc is Fe rgusson: Dante s' s Dre am ofthe M ind: A M ode rn


Re ading of the Purgatório ( P r inc e ton, N.J.: P r inc e ton
Unive r sity P r e ss, 1953) , pá g. 5.

3. T. S. Eliot: "Da nte ", e m The Sac re d Wood: Essay s on Poe try
and Critic ism {Nova Yor k: Ba r ne s a nd Noble , 1960; e
Londr e s: Me thue n & Co., Ltd., Unive r sity P a pe r ba c ks) , pá g.
170 e se gs.

4. Da nte Alighie r i: The I nfe rno, pá g. 42.

5. I bid., pá g. 43.

6. I bid., pá g. 43 e se gs.

7. C, G. Jung: Wirk lic hk e it de r Se e le ( Zur ique : Asc he r, 1934) ,


pá g. 52. Cita do e m Psy c hologic al Re fle c tions: An Anthology
of the V/rítings of C. G. J ung; Jola nde Ja c obi, org, ( Nova
Yor k; Ha r pe r a nd Row, Ha r pe r Tor c hbooks, The Bollinge n
Libr a r y , 1961) , pá g. 75,

8. Da nte Alighie r i; The I nfe rno, pá g. 54.


9. I bid., pá g. 66.

10. I bid., pá g. 161.

11. C. G. Jung: "Ve r suc h e ine r Da r ste llung de r psy c ho-


a na ly tisc he n The or ie ", e m J ahrbuc h für psy c hoanaly tisc he
und psy c hopathologisc he Forsc hunge n {Le ipzig e Vie na :
De utic ke V, 1913) , pá g. 106. Cita do e m Psy c hologic al
Re fle c tions, pá g, 75.

12. C. G. Jungr "Zur ge ge nwa r tige n La ge de r P sy c hothe r a pie ",


e m Ze ntralblatt für Psy c hothe rapie and ihre Gre nzge ble te ,
VI I ( 1934) 2, pá g. 12 e se gs. Cita do e m Psy c hologic al
Re fle c tions.

13. La o Tsé : Tao Te King ( Ha r m ondswor th, Middle se x,


I ngla te r r a : P e nguin Books, Ltd., P e nguin Cla ssic s, 1963) ,
pá g. 123.

Capít ulo 52 — Campbe ll

1. A. W. Longf e llow: The Song of Hiawatha, V I I I . As


a ve ntur a s a tr ibuída s por Longf e llow a o c he f e ir oquê s
Hia wa tha na ve r da de pe r te nc e m a Ma na bozho, he r ói da
c ultur a a lgonquim . Hia wa tha f oi um pe r sona ge m histór ic o
r e a l do sé c ulo XVI .

2. Le o Fr obe nius: Daí Ze italte r de s Sonne ngotte s {Be r lim ,


1904) , pá g. 85.

3. He r tr y Ca lla wa y : Nurse Tale s and Tradítíons ofthe Zuius


( Londr e s, 1868) , pá g. 331.

4. Ana nda K. Coom a r a swa m y : "Akim c a nna : Se lf - Na ughting",


e m Ne w I ndian Antiquary, vol. 3 ( Bom ba im , 1940) , pá g. 6,
nota 14; c ita ndo e disc utindo Sã o Tom á s de Aquino e a
Summa The ologic a, I , 63, 3.

5. O sa r c óf a go e o e squif e sã o a lte r na tiva s pa r a a ba r r iga da


ba le ia . Com pa r e - se Moisé s no c e stinho de j unc o.

6. Sir Ja m e s G. Fr a ze r : The Golde n Bough ( e diç ã o e m um


volum e ) ; pá gs. 347/349. Copy right 1922 de The Ma c m illa n
Com pa ny , a qui r e pr oduzido c om sua pe r m issã o.

7. Dua r te Ba r bosa : A De sc ription ofthe Coasls o/East Áfric a


andM alabar in the Be ginning ofthe Six te e nth Ce ntury
( Londr e s: Ha kluy t Soc ie ty , 1866) , pá g. 172; c ita do por
Fr a ze r, op. c it. pá gs. 274- 275. Re pr oduzido c om pe r m issã o
dos e ditor e s The Ma c m illa n Com pa ny . Esse é o sa c r if íc io
que o Re i Minos se r e c usou a f a ze r qua ndo oc ultou de
P osê idon o tour o. Conf or m e f oi m ostr a do por Fr a ze r, o
r e gic ídio r itua l e r a um a tr a diç ã o ge ne r a liza da no m undo
a ntigo. "Na índia Me r idiona l", e sc r e ve e le , "o r e ina do e a
vida do r e i te r m ina va m c om a r e voluç ã o do pla ne ta Júpite r
e m tom o do Sol. Na Gr é c ia , por outr o la do, o de stino do r e i
pa r e c ia f ic a r pe nde nte de um a a va lia ç ã o a o f im de c a da
c ic lo de oito a nos... Ta lve z nã o f osse pr e c ipita do supoim os
que o tr ibuto de se te r a pa ze s e se te donze la s, que os
a te nie nse s e r a m obr iga dos a f a ze r a Minos a c a da oito a nos,
e sta va r e la c iona do c om a r e nova ç ã o do pode r do r e i por
m a is um c ic lo oc tona l" ( ibid., pá g, 280) . O sa c r if íc io do
tour o, e xigido do Re i Minos, im plic a va que o pr ópr io Minos
se r ia sa c r if ic a do a o f ina l de se u r e ina do de oito a nos, de
a c or do c om o pa dr ã o da tr a diç ã o he r da da . Ma s pa r e c e que
Minos of e r e c e u, c om o substitutos de si m e sm o, os r a pa ze s e
donze la s a te nie nse s. Ta lve z te nha sido por e ssa r a zã o que o
divino Minos tr a nsf or m ou- se no m onstr o Minota ur o: o r e i do
a uto- sa c r if íc io, o tir a no pa r a sitá r io; e o e sta do hie r á tic o ( o
e sta do sa c e r dota l, onde c a da hom e m de se m pe nha se u
pa pe l) no im pé r io m e r c a ntil ( onde c a da hom e m c uida
a pe na s de si m e sm o) . Ta is pr á tic a s de substituiç ã o pa r e c e m
te r- se ge ne r a liza do por todo o m undo a ntigo a o f ina l do
gr a nde pe r íodo dos pr im e ir os e sta dos hie r á tic os, dur a nte o
I I I e o I I m ilê nios a nte s de Cr isto.

Capit ulo 53 — Toub

1. Chua ng Tsé : Chuang Tse , org. G. F. Fe ng e J. English ( Nova


Yor k: Vinta ge Books, 1974) , pá gs. 80/82.

2. Chua ng Tsé : Chuang Tzu, tr a d. H, Gile s ( Londr e s: Unwin


P a pe r ba c ks, 1980) , pá g. 164.

3. H. Sm ith: The Re ligíons of M an ( Nova Yor k: Ha r pe r & Row,


1958) , pá g. 212.

4. C. G. Jung: Two Essay s on Anaiy tic al Psy c hology ( P r inc e ton,


N.J.: P r inc e ton Unive r sily P r e ss, 1966) , pá g. 68.

5. A. Minde ll: "Som a tic Consc iousne ss", e m Q u a d r a m 14


( 1/1981) , pá gs. 71/73.
6. J. Ja c obi: The Way oflndiv iduation ( Nova Yor k: Ha r c our t,
Br a c e & Wor ld, 1967) , pá g. 82.

7. La o Tsé : Tao Te King, org. G. F. Fe ng e J. English ( Nova


Yor k: Vinta ge Books, 1972) , c a p. 41.

8. Chua ng Tsé : Chuang Tzu, tr a d. H. Gile s ( Londr e s: Unwin


P a pe r ba c ks, 1980) , pá gs. 263/264.

Capít ulo 57 — Fr e yRohn

1. Sigm und Fr e ud: The Future of an I llusion, tr a d. W. D.


Robson- Sc ott, e m I nte rnational Psy c ho- Anaiy tic al Library,
vol. 15 ( Londr e s: The Hoga r th P r e ss, Ltd., 1949) , pá g. 86.

2. Fr ie dr ic h Nie tzsc he : The Case of Wagne r, e m Se ie c te d


Aphorisms in Work s, vol. VI I I , pá g. 59.

3. Willia m Ja m e s, pá g. 176.

4. Willia m Ja m e s, pá g. 488, nota : "As pe ssoa s [ na sc ida s e


r e na sc ida s] nã o se e va de m a o m a l; e la s o e xa lta m na
a le gr ia r e ligiosa m a is e le va da ."

5. H o f f m a n : The De v ils Elix ir, tr a d. a nônim o ( Edinburgo,


1824) .

6. Code Be za e , c om r e la ç ã o a Luc a s 6:4.

7. C. G. Jung: M y ste rium Coniunc tionis, e m Colle c le d Work s,


tr a d. R. F. C. HuU, Bollinge n Se r ie s XX, vol. 14 ( P r inc e ton,
N.J.: P r inc e ton Unive r sity P r e ss, 1963) , pá g. 428.

Capít ulo 58 — Wilbe r

1 . C. G. Jung: M ode m M an in Se ac k of a Soul ( Londr e s: Ha r c our t


Br a c e Jova novic h, 1955) , pá gs. 271- 272.

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ZTEGLER, Alf r e d J.: Arc he ty pal M e dic ine . Da lla s, Spr ing
P ublic a tions, 1983.
AO ENCONTRO DA SOM B RA

Connie Zwe ig e J e re miah Abrams ( orgs.)

O se r humano não se torna iluminado ao imaginar figuras de luz, mas


ao c onsc ie ntizar- se da e sc uridão.

CG. JUNG

Se ntim e ntos e c om por ta m e ntos pr oibidos surge m da pa r te m a is e sc ur a


e ne ga da de nós m e sm os — a nossa som br a pe ssoa l. Todo o m undo
te m um a som br a que c om e ç a a se de se nvolve r na inf â nc ia c om o
r e sulta do da r e pr e ssã o ou ne ga ç ã o de se ntim e ntos inde se j á ve is.
Enc ontr a m os c om a nossa som br a qua ndo se ntim os um a ine xplic á ve l
a ve r sã o por a lgué m , qua ndo de sc obr im os um tr a ç o ina c e itá ve l e há
m uito te m po e sc ondido de ntr o de nós, ou qua ndo nos se ntim os
dom ina dos pe la r a iva , pe lo c iúm e ou pe la ve rgonha .

A som br a , no e nta nto, nã o é a pe na s um pr oble m a individua l. Gr upos e


na ç õe s tê m um a som br a c ole tiva , que pode le va r a a ç õe s pe r igosa s,
c om o r a c ism o... bode s e xpia tór ios... c r ia ç ã o de inim igos... e a gue r r a .

Ao Enc ontro da Sombra é um a c ole tâ ne a de 65 a r tigos que of e r e c e m


um va sto pa nor a m a do la do e sc ur o da na tur e za hum a na , ta l c om o e ste
se m a nif e sta no se io da f a m ília , nos r e la c iona m e ntos íntim os, na
se xua lida de , no tr a ba lho, na e spir itua lida de , na Nova Er a , na polític a ,
na psic ote r a pia e na c r ia tivida de .

Este livr o ta m bé m a pr e se nta instr um e ntos pa r a o de se nvolvim e nto


pe ssoa l na f or m a de e xe r c íc ios que nos possibilita m : a lc a nç a r um a
a utoa c e ita ç ã o m a is a utê ntic a e c om ple ta ; tr a nsf or m a r a s e m oç õe s
ne ga tiva s que e m e rge m na vida diá r ia ; libe r a r a c ulpa e a ve rgonha
a ssoc ia da s c om a ne ga tivida de ; r e c onhe c e r a s pr oj e ç õe s que c olor e m
nossa s opiniõe s a r e spe ito dos outr os; e quilibr a r nossos
r e la c iona m e ntos a tr a vé s de um a a ute ntic ida de m a is pr of unda e usa r a
e sc r ita , o de se nho e os sonhos pa r a r e inte gr a r a s pa r te s f r a gm e nta da s
de nós m e sm os.

Em bor a se j a m os le va dos a pe nsa r que a som br a c onte nha a pe na s


e sc ur idã o, c onf or m e a f ir m a Jung sua e ssê nc ia é "pur o our o".

EDI TORA CULTRI X

Notas

[←1]
O Complexo de Bode Expiatório, Editora Cultrix, São Paulo, 1991.
[←2]
Ba by , a pr e ndi a te a m a r... a nte s de dize r... a nte s de
dize r o te u nom e .
[←3]
Che ga pr a c á , nã o ta m os br inc a ndo, te m m uita c oisa
pr a sa c udir.
[←4]
Em inglês, formou-se recentemente um neologismo para
retratar essa condição: workaholíc, por analogia com alcoholic, e que
não tem correspondente em português (N. T.),
[←5]
A pa la vr a ingle sa b u g s signif ic a inse to, bic hinho, e
ta m bé m um de f e ito ou pr oble m a num c om puta dor ou num a
m á quina qua lque r ( N. T.) .
[←6]
A passagem ao ato [acting out] é a expressão da tensão
emocional através do comportamento direto, numa situação que
pode nada ter que ver com a origem da tensão; aplica-se usualmente
ao comportamento impulsivo, agressivo ou, em termos gerais,
antissocial. No domínio da psicanálise, a passagem ao ato é a
conversão em ação de impulsos reprimidos que emergem no nível
consciente durante a análise. O comportamento manifesto é
frequentemente simbólico de um padrão de comportamento anterior.
Por exemplo, a transferência é uma passagem ao ato simbólica da
anterior vinculação emocional (edipiana) do paciente à mãe (ou pai).
Na grande maioria dos casos, a passagem ao ato reflete o desejo
veemente de se desembaraçar de uma ansiedade neurótica. O
psicodrama é uma das técnicas de terapia de grupo que encoraja os
pacientes a "representar" seus problemas e fantasias. (Cf. "Dicionário
Técnico de Psicologia", A. Cabral e E. Nick, Editora Pensamento,
São Paulo.)
[←7]
Expressão criada pelo psicólogo e filósofo social Lucien Lévy
Bruhl e universalmente adotada (N.T.).
[←8]
Esta expressão remete a outro livro de Joseph Conrad, Heart
on Darkness, no qual inspirou-se o filme Apocalypse Now. (N.T.)
[←9]
A palavra inglesa human [humano] tem como raiz o latim
homo [homem]. Embora signifique a espécie humana em geral, os
movimentos feministas acham que ela pode ser usada para excluir a
mulher (o "segundo uso" aqui mencionado) e, portanto, defendem
que seja substituída por "alguma palavra melhor" que ainda não foi
encontrada. Na língua portuguesa, continuamos a usar "o homem"
quando nos referimos à raça humana, à humanidade em geral.
Neste artigo em particular, mantendo a intenção da autora, "mulher"
significa mulher e "homem" significa homem. (N.T.)
[←10]
Equal Rights Ame ndme nt, pr oposta de Em e nda pe la
I gua lda de de Dir e itos na Constituiç ã o dos Esta dos Unidos.
( N.T.)
[←11]
Estase (do grego stásis, "parada") significa a redução ou
estagnação do fluxo normal dos fluidos do corpo, implicando a
retenção, no organismo, de matérias de consistência diversa, tais
como urina, sangue, fezes, etc. (N.T.)
[←12]
Na gíria da língua inglesa, "the heat" significa a pressão ou
intensificação do cumprimento da lei, exercida pela polícia contra os
marginais, geralmente sob a forma de buscas, batidas, prisões, etc.
(N.T.)
[←13]
Publicado pela Editora Cultrix, São Paulo.
[←14]
Conjunções ou oposições planetárias. (N.T.)
[←15]
Publicado pela Editora Cultrix, São Paulo.
[←16]
Em capítulo anterior de seu livro, Ken Wilber desenvolve a
tese da evolução do espectro da consciência. Em termos
extremamente simplificados, haveria um Primeiro Dualismo (o
"pecado original", a cisão ilusória entre sujeito e objeto, a
separação entre o agente conhecedor e o objeto conhecido); um
Segundo Dualismo (por temer a extinção final e não compreender
a unidade entre a vida e a morte, o homem desmembra essa
unidade); um Terceiro Dualismo (ao fugir da morte, o homem
prende-se à permanência da "imagem de si mesmo", o ego); e um
Quarto Dualismo (na tentativa de tornar aceitável a imagem de si
mesmo, o homem cria a persona e a sombra). Como cada um
desses dualismos c acompanhado de uma repressão e de uma
projeção, fica explicado o termo "Quarto Dualismo-Repressão-
Projeção". (N.T.)

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