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FURTADO, Celso. Prefácio a Nova Economia Política.

Rio de Janeiro, Paz e Terra,


1976

Sumário
Introdução
I. Prefácio a nova Economia Política
Em busca de um quadro teórico mais amplo
Um conceito de acumulação mais abrangente
Divisão social do trabalho e estratificação social
O custo de reprodução da população
Antagonismos sociais e desenvolvimento econômico
Morfologia do excedente
Apropriação do excedente e estrutura de poder
As duas formas básicas de apropriação do excedente
Capitalismo e modo capitalista de produção
A medição do produto social e o sistema de preços
O excedente no quadro das relações econômicas internacionais
Advento das atividades transnacionais
Perfil da acumulação e dependência externa
Atraso na acumulação e revoluções sociais
Anexos
Tábua da matéria sugerida
1. Formações sociais e estruturas de poder
2. As atividades sociais e o produto social
3. O sistema de produção
4. Reprodução da população e estrutura social
5. A apropriação do excedente
6. Acumulação e inovação
7. Relações exteriores
8. O Estado e a coordenação das atividades socioeconômicos
9. O avanço da acumulação e as tensões na fronteira ecológica
10. Tipologia do desenvolvimento econômico no mundo atual

II O Capitalismo Pós-Nacional
Da Coordenação Nacional ao “Laissez-faire” Internacional
As Relações Centro-Periferia
Fim de Um Modelo de Civilização?
III A Nova Ordem Econômica Mundial
IV Conhecimento Econômico da América Latina

“Inclino-me a pensar que a descoberta científica é impossível se não se tem fé em ideias


puramente especulativas e muitas vezes destituídas de toda precisão”. Karl Popper, The
Logico f Scientific Discovery.

Introdução

1930’: Fase de grandes inovações:


i) Ragnar Frisch fundava a econometria em bases sólidas, abrindo uma fase de rápidos
aperfeiçoamentos nos instrumentos e nas técnicas de trabalho do economista;

1
ii) Kuznets: iniciam os esforços deste autor no sentido de ampliar as fontes de material
empírico em que se alimenta a análise econômica;
iii) Keynes (e Kalecki): impulso dado à macroeconomia pelo sistema de hipóteses
formulado;
iv) Von Neumann (1944): construção de uma nova matemática, concebida para ser
aplicada ao comportamento dos agentes econômicos (a teoria dos jogos).

A economia parecia haver descoberto o seu caminho real à semelhança do que ocorrera
com a física quando encontrou na matemática de Newton y Leibniz as asas de que
necessitava para voar.
Se a econometria demonstrou ser um poderoso instrumento auxiliar, as
esperanças postas na economia matemática em grande parte frustraram-se, sendo
modestos os resultados obtidos, se se tem em conta o considerável esforço realizado,
esforço que seguramente absorveu as melhores inteligências atraídas pelos estudos de
economia.

Convém não perder de vista que a economia é uma ciência social. Na medida em que
trata de problemas de curto prazo (a chamada estática econômica e ainda a estática
comparativa) a economia, como ciência especial, pode progredir independentemente de
avanços no conhecimento da sociedade em seu conjunto, ou seja, independentemente de
avanços numa ciência global. Devemos ter em conta que uma “disciplina” como a
economia é simplesmente o estudo de um conjunto de problemas afins, que podem ser
tratados num campo teórico mais ou menos unificado. Ocorre que se esses problemas
são de “curto prazo” a sua abordagem pode apoiar-se em um conhecimento superficial
do comportamento global da sociedade. Desta forma, existe um campo de teorização
para o economista (a estática econômica) que prescinde da existência de uma teoria
social global. Assim uma proposição do tipo “a escassez de um produto perecível tende
a acarretar, numa sociedade de mercado, a brusca elevação de seu preço”, possui um
certo valor explicativo mesmo se formulada sem maiores cautelas. O mesmo não
podemos afirmar com respeito a uma proposição mais complexa, em que está envolvido
o elemento tempo, como a seguinte: “a concorrência leva à concentração do poder
econômico”. As cautelas que necessitamos introduzir para dar algum valor explicativo a
esta última proposição, pressupõem um quadro teórico mais amplo do que o que
correntemente utiliza o economista.
A matéria com que se preocupa o economista são determinados problemas
sociais que foram simplificados expressamente para poderem ser tratados com certos
métodos. Esse processo de simplificação assume, via de regra, a forma de eliminação do
fator tempo. O erro metodológico da chamada “dinâmica econômica” consiste
exatamente em pretender reintroduzir o fator tempo mantendo os problemas com o
mesmo grau de simplificação, como se o tempo existisse em si mesmo,
independentemente, de qualquer conteúdo. Dinamizar significa, necessariamente, tornar
os problemas mais espessos, mais complexos, portanto desdobrar os limites do
“econômico”. O avanço na direção de uma dinâmica econômica passa por uma
compreensão dos processos sociais globais, ou seja, pela construção de um quadro
teórico que permita abordar o estudo do conjunto dos processos sociais. A despeito de
sua vaguidade, o método histórico tem ocasionalmente contribuído para suprir a
ausência desse enfoque global dos processos sociais. Ocorre, entretanto, que a
sofisticação dos métodos de que se utiliza o economista fez-se no sentido de a-
historicidade, abrindo-se assim um fosso entre a visão global derivada da história e a

2
percepção particular dos problemas sobre os quais a análise econômica projeta alguma
luz.

O primeiro ensaio do presente volume constitui uma tentativa para sair desse impasse,
com base numa reconstrução do quadro conceitual de que se utiliza o economista,
reconstrução essa apoiada numa visão global de estruturas sociais historicamente
identificadas. Ao apresenta-lo sob a forma de prefácio e índice de um livro que não
existe, minha intenção é chamar a atenção para a situação atual de carência de uma
teoria geral das formações sociais, que sirva de ponto de partida para o estudo dos
problemas particulares que preocupam os economistas. Não se trata do que
convencionalmente se chama enfoque interdisciplinar, e sim em busca de uma teoria
social global, na qual entronquem a teoria da reprodução da população, a teoria das
decisões intertemporais (acumulação), a teoria da estratificação social e a teoria do
poder. Ao limitar-me a rascunhar o prefácio e a sugerir alguns temas à reflexão,
pretendo expressar a opinião de que o de que mas necessitamos, no momento presente, é
estimular o debate e confrontar opiniões.

3
I Prefácio a Nova Economia Política

Em busca de um quadro teórico mais amplo

A análise econômica corrente, fundada numa concepção funcionalista dos processos


sociais, é reconhecidamente insuficiente para captar aspectos fundamentais dos sistema
econômicos contemporâneos. Os fatos que não consegue explicar, a partir do
conhecimento que tem de um número limitado de variáveis econômicas e de parâmetros
incorporados em uma matriz estrutural, o economista tenta reinserir indiretamente nesta
última, que assim vai ganhando espessura e opacidade. Desta forma, fatos de maior
significação ocorrem ‘no plano das estruturas’, sendo praticamente invisíveis para o
analista econômico.
O trabalho da escola estruturalista latino-americana orientou-se, desde os anos
cinquenta, no sentido de explicitar, desenterrando-se da matriz estrutural, elementos que
permitem demonstrar a especificidade do subdesenvolvimento. Graças a esse trabalho,
foi possível avançar no conhecimento de importantes características das chamadas
economias subdesenvolvidas, e lograr compreender aspectos básicos de seu
comportamento. O progresso assim obtido realizou-se a partir de determinado sistema
de enunciados gerais que poderíamos chamar de tradicional, porque muito próximo da
análise econômica convencional. Tratava-se de ‘transformar parâmetros em variáveis’,
o que muitas vezes é simples decorrência do enriquecimento do fluxo de informação.
Ora, o esforço de teorização dentro desse quadro encontra-se, há bastante tempo,
em fase de rendimento decrescente: o aumento no fluxo de informações tem sido
considerável, em termos relativos, mas sua eficácia no plano explicativo bem modesta.
Há razões para supor que a dificuldade maior para continuar avançando na construção
teórica advém de limitações impostas pelos enunciados gerais que delimitam o
horizonte especulativo. Nosso objetivo é chamar a atenção para algumas dessas
limitações e sugerir pistas tendo em vistas superá-las.

Um conceito de acumulação mais abrangente

As ideias matrizes da economia política clássica, orientadas para a explicação do


progresso das nações, partem da simples evidência de que os níveis de riqueza das
coletividades humanas variam consideravelmente no tempo e no espaço. Por trás da
ideia de riqueza está a da acumulação, que para os economistas assume um dupla forma:
a de um fluxo (formação de capital: investimento), e a de um estoque (capital já
acumulado: capacidade de produção). Mas o conceito de acumulação foi pouco
elaborado pelos economistas, particularmente no que concerne à acumulação-estoque. O
debate entre os clássicos sobre o que era e o que é trabalho produtivo havia permitido
projetar alguma luz sobre assunto. Assim Malthus, que procurava desenvolver ideias
que Adam Smith tomara aos fisiocratas franceses, estatui que somente é produtivo o
trabalho cujo fruto pode ser acumulado, ou seja, que contribui para aumentar a riqueza
do País. Desta forma, a partir do conceito de riqueza era possível introduzir uma
diferença entre serviços que contribuíam para aumentar a capacidade produtiva do
homem ou facilitar a circulação de bens, os quais integram o processo de acumulação, e
serviços pessoais, sistema de repressão etc.1 Na mesma linha de pensamento John Stuart

1
“Trabalho pode... ser distinguido em dois tipos, trabalho produtivo, e serviços pessoais... significando
serviços pessoais aquele tipo de trabalho ou atividade que não realiza-se sobre nenhum objeto que pode
ser valorado e transferido sem a presença da pessoa executando tal serviço, e não pode, assim, ser entrar

4
Mill introduziu uma importante diferença entre utilidade e riqueza: “É essencial a ideia
de riqueza ser suscetível de acumulação”.2 Esse enfoque, que tinha como ponto de
partida a ideia de riqueza, levaria necessariamente ao estudo da acumulação observada
através de seu resultado final. Mas tendeu a prevalecer entre os clássicos mais
influentes (inclusive Marx) e entre os neoclássicos a preocupação com a acumulação-
fluxo, ou seja, com o processo de investimento. Na fase keynesiana, a vitória da linha de
pensamento baseada no estudo dos fluxos foi tão completa que o próprio conceito de
riqueza chegou a ser abandonado.3
Ora, não se necessita de muita argúcia para perceber que ao estudarem os
investimentos os economistas não estão propriamente preocupados com o processo de
acumulação, e sim com um caso particular do mesmo: a acumulação diretamente ligada
ao aumento da capacidade produtiva de um sistema econômico.4 As fronteiras entre esta
e as nada ficamos sabendo sobre a acumulação permanecem na sombra. Pouco ou nada
ficamos sabendo sobre a acumulação global, sobre a estrutura desta e suas variações no
tempo, sobre os fatores que comandam a dinâmica dessa acumulação, e assim por
diante.
Se o investimento é uma forma particular de acumulação, cabe indagar até que
ponto essa forma sofre a concorrência de outras, que relações existem entre as diversas
formas de acumulação, que fatores freiam a acumulação-investimento em benefício de
outras formas.
As relações entre acumulação e progresso técnico, que constituem um dos
pontos centrais da teoria do desenvolvimento, somente podem ser adequadamente
percebidas a partir de uma análise global do processo de acumulação. Quando esta se
localiza no sistema de produção o progresso técnico assume a forma de modificações no
estilo de vida de grupos de população. Em um e outro casos, o progresso técnico é
condição necessária para que a acumulação global tenha continuidade no tempo.
Contudo, no primeiro caso as razões são essencialmente técnicas: a substituição de terra
e/ou mão-de-obra por capital possui um ótimo que decorre do próprio horizonte de
possibilidades tecnológicas. No segundo caso as relações entre acumulação e progresso
técnico são regidas por fatores sociais. Quanto mais concentrada a renda, mais a
acumulação fora do sistema produtivo requer modificações no estilo de vida, ou seja, a
introdução de novos produtos. Os grupos de renda média e baixa podem ampliar o seu
estoque de bens duráveis de forma praticamente indefinida (nos limites estabelecidos
pelo nível médio de renda da população), independentemente da introdução de novos
produtos. Nas chamadas economias subdesenvolvidas observa-se um considerável
atraso relativo na primeira forma de acumulação, o que dá lugar a um perfil particular
de assimilação do fluxo de progresso técnico.
Nosso objetivo, ao fazer esta primeira apresentação do problema, limita-se a
assinalar que o estudo da acumulação ao nível do sistema produtivo (espinha dorsal da

na estimação da riqueza nacional”. T. R. Malthus, Principles of Political Economy (1820), edição de


1951, p. 35.
2
John Stuart Mill, Principles of Political Economy (1842) (edição de 1895) p. 43.
3
Uma das mais flagrantes limitações do modelo Keynesiano consiste exatamente no fato de que nele se
introduz a variável investimento líquido pretendendo ignorar seu efeito sobre o nível da acumulação, ou
seja, sobre o estoque de capital disponível; os discípulos de Keynes procuraram contornar a dificuldade
simplesmente admitindo que, em condições de pleno emprego, o estoque de capital cresce com a mesma
intensidade que o fluxo total de renda, sendo constante a relação produto-capital.
4
Na análise Keynesiana o investimento é essencialmente considerado do ponto de vista da criação do
emprego, sendo colocado no mesmo plano que o aumento do gasto público (financiado com expansão do
crédito) e o aumento que se traduz em saldo na balança de pagamentos em conta corrente. Esse tipo de
enfoque desliga conceitualmente investimento de acumulação.

5
teoria do desenvolvimento econômico) requer uma compreensão do processo global de
acumulação. Ora, os conceitos correntes da análise econômica (investimento, poupança,
consumo etc.), foram concebidos para o estudo da acumulação geradora de um fator de
produção, ou seja, criadora de um instrumento de poder de importância decisiva na
apropriação do produto social. A transposição desses conceitos ao nível
macroeconômico acarreta consideráveis ambiguidades que estão na origem do impasse
em que se encontram, há algum tempo, as teorias do desenvolvimento econômico. É
crescente a evidência de que uma teoria da acumulação global não pode fundar-se nesse
quadro conceitual. Tentaremos demonstrar que o conceito de excedente, cuja ideia
central está nos fisiocratas e nos primeiros clássicos ingleses, constitui um ponto de
partida mais sólido para o estudo da acumulação global.

Divisão social do trabalho e estratificação social

A ideia de excedente surgiu como uma simples evidência aos primeiros estudiosos da
divisão social do trabalho. Assim os fisiocratas, observando a sociedade francesa da
primeira metade do século XVIII, na qual mais de quatro quintas partes da população
trabalhavam na agricultura, compreenderam que o bem-estar de todos dependia da
produtividade do trabalho agrícola. O excedente produzido pela agricultura – a
diferença entre a produção agrícola e o consumo de produtos agrícolas pela população
camponesa, ou seja, o produto líquido na linguagem dos fisiocratas – constituía a base
do desenvolvimento das atividades não agrícolas, tanto urbanas como rurais. A
recíproca não seria verdadeira, pois a massa de trabalhadores agrícolas não dependia
para sobreviver de um excedente originado em outras atividades. Essa assimetria levou
os fisiocratas a considerarem que somente o trabalho agrícola era produtivo dando assim
origem a uma linha de pensamento baseada na diferença entre trabalho produtivo e não
produtivo que se prolonga até hoje nas principais variantes da escola marxista. Não
pretenderam até hoje nas principais variantes da escola marxista. Não pretenderam eles
que o excedente saído dos campos assumia em sua totalidade a forma de transferências
unilaterais, pois tinham consciência de que parte do mesmo era comercializada pelos
próprios camponeses.5 Mas era a parte do excedente que assumia a forma de renda da
terra, de dízimos (pagos ao clero) e de impostos (pagos ao Estado) que principalmente
alimentava os circuitos permitindo o desenvolvimento das atividades artesanais, das
manufaturas e do comércio exterior. Os fisiocratas não deram atenção ao fato de que
certas atividades não agrícolas – produção de instrumentos de trabalho que usava o
agricultor, de equipamentos de transportes etc., – contribuíam para elevar o nível da
produtividade agrícola, portanto para ampliar o excedente agrícola. Mas perceberam
claramente as ligações profundas existentes entre a forma de apropriação do excedente e
a estrutura de classes da sociedade. Assim o abandono progressivo do conceito de
excedente, que ocorre no século XIX, reflete o propósito de fundar uma ciência
econômica pura, ou seja, com validade explicativa independentemente do conhecimento
das estruturas sociais. Ora, como pretender ignorar as estruturas sociais não é mais nem
menos do que aceitar as que existem no presente como imutáveis, explica-se como o
campo de estudo do economista se haja restringido tanto, e que tenham sido eles os
últimos a compreender a própria evolução da economia capitalista.
Partiremos de um dado derivado da abundante informação que devemos à
pesquisa antropológica e histórica: a existência do homem sempre esteve ligada a
formas de divisão do trabalho, ou especialização, ao nível dos sexos, dos grupos sociais
5
Veja-se o prefácio de Michel Luftalla à edição de 1962 do Tableau Ecnomique de François Quesnay. A
primeira edição é de 1758.

6
mais complexos. Também admitiremos como evidente, ou de fácil comprovação, que a
especialização6 acarreta aumento na eficácia do trabalho. Sabemos da antropologia que
em condições de ambientes muito hostis os primeiro passos na direção do aumento na
eficácia do trabalho podem ser apenas suficientes para assegurar a sobrevivência de uma
comunidade.7 As comunidades que sobreviveram nessas condições adversas não
passaram de reduzidas dimensões. Sempre que as condições de ambiente não são tão
desfavoráveis, a maior eficácia do trabalho vai acompanhada de crescimento
demográfico, que se pode considerar como a primeira manifestação de existência de um
excedente social. O crescimento demográfico, por seu lado, cria novas possibilidades de
divisão do trabalho.8
Mas o aumento da eficácia do trabalho, que traz consigo a especialização,
explica cabalmente a existência de um excedente apenas no caso do crescimento
demográfico. Á parte este caso especial, a identificação do excedente requer o estudo do
destino dado ao fruto do incremento da produtividade do trabalho. São as desigualdades
dos níveis de consumo dos membros de uma coletividade que constituem a indicação
irretorquível da existência de um excedente. Portanto, a teoria do excedente constitui a
face econômica da teoria da estratificação social.
Não se trata de retomar o tema rousseauneano das “origens” das desigualdades
entre os homens. Limitamo-nos a constatar que essa desigualdades têm uma longa
história, que praticamente se confunde com a história das distintas culturas de que
temos registros. Tudo indica que, alcançado certo nível de produtividade do trabalho, a
especialização assumiu a forma de uma diferenciação mais complexa, dando origem a
certas funções, que permitiam àqueles que as exerciam estabeleceram relações
assimétricas com os demais membros da comunidade.
As relações sociais engendradas pela especialização ao nível das atividade
produtivas se concretizam em operações de troca, que são por natureza simétricas, ao
passo que a diferenciação funcional fora das atividades produtivas dá origem às relações
assimétricas que estão na base das estruturas hierárquicas. Existe alguma evidência de
estão na base das estruturas hierárquicas. Existe alguma evidência de casos em que a
especialização fora das atividades produtivas, existiu sem acarretar modificações
significativas na estrutura social. Mas se se tem em conta que, entre as formas dessa
especialização que primeiro se manifestam por toda a parte, estão aquelas ligadas à

6
A diferença entre especialização e divisão do trabalho propriamente dita consiste em que no primeiro
caso o trabalhador produz a totalidade de um produto, ao passo que na divisão do trabalho o trabalhador
realiza uma tarefa, que isoladamente não tem significação. Nem sempre é possível traçar a linha divisória,
mas não há dúvida que a divisão do trabalho aprofunda a especialização e aumenta a interdependência
entre os indivíduos. Veremos no lugar oportuno que essa diferenciação é crucial no estudo da evolução
das forças produtivas. Essa diferença, que a antropologia moderna usa amplamente, foi percebida
claramente por Platão e Xeofonte. Cf. R. Guiraud, La main-d’oveure industrielle dans l’ancienne Grèce.
(Paris, 1900), p. 54.
7
Essas comunidades que se aproximam do que no século passado os antropólogos chamaram de
comunismo primitivo, são casos excepcionais ligados a condições ecológicas particulares; caracterizam-se
pela reduzida dimensão demográfica e pela ausência de estratificação social. Cf. Melville J. Herskovits,
Economic Antropology (New York: Alfred A. Knopf, 1960) pp. 400-5.
8
O haver captados as relações entre divisão do trabalho e expansão demográfica constitui uma das
contribuições originais da obra de Emile Durkheim (Cf. La Division du Travail Social, Paris, 1893, p.
289). Contudo a ideia fundamental estava no livro clássico de Adam Smith, que se referiu a “extensão do
mercado” como fator limitante da divisão social do trabalho, porquanto se pode considerar a dimensão
demográfica como um caso especial da “extensão do mercado”. Marx, sob a influência dos estudos
antropológicos publicados na sua época, liga a divisão do trabalho inicialmente a fatores fisiológicos, mas
retoma de imediato a ideia de “extensão da comunidade e aumento da população”. (Cf. O Capital, tomo I,
edição em inglês publicada em Moscou em 1954, p. 351).

7
manipulação do poder (chefes guerreiros) e do sobrenatural (sacerdotes curandeiros),
compreende-se a importância que cedo assumiram as relações de tipo hierárquico.9
Interessa-nos que a estratificação social – relações assimétricas entre grupos ou
agentes sociais com repercussões significativas nos níveis de consumo dos membros de
uma coletividade – pressupõe a existência da especialização ao nível das atividades
produtivas, ou seja, de aumento na eficácia do trabalho, mas deve ser considerada como
um processo autônomo, como um dado primário na explicação da existência de um
excedente, que não seja a simples contrapartida do crescimento demográfico.
Admitamos, portanto, existência de dois processos básicos: a divisão social do trabalho
e a estratificação social. O primeiro não é causa suficiente para que exista um excedente
e o segundo não poderia existir na ausência do primeiro. Em síntese: o tema central da
teoria do excedente são as formas inigualitárias de apropriação do fruto do aumento da
produtividade do trabalho.
Do que dissemos no parágrafo anterior decorre que a produtividade do trabalho e
o grau de desigualdade social (o perfil de repartição da renda) determinam em uma dada
sociedade o nível do excedente. Em todas as sociedades que alcançaram certa
complexidade, o produto social é em parte diretamente apropriado por instituições que
integram o sistema de poder, o que tanto pode contribuir para reduzir como para
aumentar as desigualdades sociais, sem que o fundo do problema venha a modificar-se.
A medida das desigualdades sociais pode ser tentada de diversas formas. Para os
fins que temos em vista, admitiremos que a diferença entre o nível de consumo médio
do conjunto de uma população e o nível de consumo do trabalhador manual, em uma
dada sociedade, traduz a amplitude dessas desigualdades. Trata-se de uma simplificação
de problema que nos permite abordar a complexa questão da medição do excedente
global.

O custo de reprodução da população

O nível de vida dos trabalhadores manuais – o setor da população economicamente


ativa que menos se beneficiou da acumulação diretamente destinada a aperfeiçoar o
fator humano – pode ser considerado como representativo do custo básico de
reprodução da população como um todo. Com efeito se toda a população viesse a
alinhar seu nível de vida com o dos trabalhadores manuais, as formas de consumo
ligadas à estratificação social tenderiam a desaparecer.10
Não se trata de considerar se um tal alinhamento é praticável, ou qual seria seu
custo social e que tempo requereria. Tampouco se trata de discutir a viabilidade do
ponto de vista econômico, do ponto de vista econômico, de uma sociedade
perfeitamente igualitária. Trata-se apenas de reconhecer que toda sociedade estabelece
padrões básicos de consumo que asseguram a sobrevivência e reprodução de seus

9
“... é evidente que entre os povos iletrados mais populosos, o excedente é grande o suficiente para
capacitar estes grupos a suportar pessoas em número considerável não engajadas na produção de bens de
subsistência... Qualquer que seja o caso, a quase universal inequidades que parecem marcar a distribuição
do excedente de bens econômicos é flagrante. Esta riqueza excedente, é aparente, vai para grupos aqueles
que governam, e aqueles que comandam técnicas para aplacar e manipular as forças sobrenaturais do
universo”. M. J. Herskovits, op. cit. 413-14.
10
A igualdade dos níveis de consumo não exclui, necessariamente, a diferenciação social, nem mesmo a
existência de uma classe de ociosos. Tampouco exclui a acumulação estritamente destinada a elevar a
produtividade do trabalho, Mas exclui a acumulação que tem por fim reproduzir a estratificação social
fundada na disparidade dos padrões de consumo. Historicamente, está última foi de longe a mais
importante forma de acumulação, a ela subordinando-se as demais.

8
membros, padrões que não são independentes do nível da acumulação realizada no
passado, nem da capacidade da massa trabalhadora para valorizar o próprio trabalho.11
O cálculo do excedente se baseia na comparação entre esse parâmetro que me o
custo de reprodução do conjunto da população, e a produtividade social do trabalho. O
com conceito de custo básico de reprodução da população tem seu ponto de origem na
ideia de salários de subsistência, desenvolvida pelos economistas clássicos, porém cobre
uma superfície mais ampla. Em primeiro lugar, não se trata aqui de massa trabalhadora,
e sim do conjunto da população;12 em segundo deixa-se de lado a referência à
subsistência de evidente ambiguidade. Nas sociedades modernas, como reflexo de uma
situação histórica, a massa dos trabalhadores manuais – aqueles que apresentam o
máximo de mobilidade entre setores – apresenta um padrão de vida para o qual
contribuem um componente monetário e outro de benefícios sociais em sentido amplo:
previdência e assistência, educação, parques de esporte, subsídio habitacional, grau de
acesso a lugares de entretenimento e coisas similares. Esse componente social do nível é
em parte financiado pelo próprio trabalhador mediante sua contribuição para os cofres
públicos. Numa situação limite, mas que existe em muitos países, o trabalhador paga de
impostos mais do que recebe como componente social de seu padrão de vida. Mas em
países com uma legislação social avançada apresenta-se situação inversa: o custo de
reprodução da população se situa acima do trabalhador manual.
Os países de economias chamadas subdesenvolvidas apresentam particularidades
que não podem ser ignoradas no cálculo do custo de reprodução da população. Assim,
em tais países apenas uma parte da massa trabalhadora, em geral urbana, tem acesso a
benefícios sociais de alguma significação. Demais, os salários monetários não constitui
a única forma de remuneração do trabalho, é seu nível é substancialmente maior nas
zonas urbanas. Trata-se, portanto, de estabelecer dois parâmetros: um derivado do nível
de vida da massa trabalhadora urbana e protegida pela legislação social e outros
derivado do nível de vida da massa trabalhadora rural e da urbana não abrigada na
legislação social. Mediante uma adequada ponderação de todos esses fatores define-se o
parâmetro geral que traduz o custo de reprodução do conjunto da população.13
O comportamento no tempo do custo de reprodução da população reflete a
evolução da produtividade do trabalho e a capacidade da massa trabalhadora para

11
Um enfoque “economicista” desse problema poderia ser buscado na ideia de Marshall de “necessidades
básicas e convencionais”. Referindo-se ao fato de que já os primeiros discípulos de Adam Smith
reconheciam que certas coisas eram consideradas “necessárias” à vida em determinadas regiões e não
noutras, em determinado tempo e não noutro, Marshall observa que para cada tipo de atividade
econômica, em qualquer tempo e lugar, existe um nível de salário mais ou menos claramente definido,
que é necessário para o simples sustento das pessoas que tralham nessa atividade; e também existe um
outro nível mais alto de salário necessário para lograr a plena eficiência. Como este segundo nível dos
salários responde ela eficiência do sistema econômico, ele refere-se aos mesmos como sendo um
“consumo produtivo”. Sem satisfazer certas “necessidades convencionais” dos trabalhadores não seria
possível levar o sistema a um alto grau de eficiência. (Cf. Alfred Marshall, Principles of Economics,
oitava edição pp. 56-59. Primeira edição: 1890). O que Marshall está dizendo é que, em determinado
sistema econômico, existe um nível de compressibilidade dos salários o qual deve ser respeitado, e se
pretende evitar pagar um preço maior. Como algumas necessidades são reconhecidas como sendo
“convencionais” fica claro que o nível de vida dos trabalhadores depende das forças sociais que
respondem pela apropriação do produto do trabalho da coletividade.
12
As atividades econômicas permitem à sociedade reproduzir-se como um todo, independentemente das
funções que desemprenha cada um de seus membros. Reproduz-se a população e reproduzem-se as
desigualdades sociais, cada um desses processos absorvendo parte do produto social. A parte da
população que se beneficia do excedente, também tem um custo de reprodução.
13
Fenômeno similar pode apresentar-se ali onde as disparidades regionais são significativas. Neste caso,
uma área representativa, ou uma adequada ponderação de áreas diversas, permitirá calcular o parâmetro
referido.

9
modifica, em benefício próprio, a utilização do produto social. Também neste ponto são
consideráveis as diferenças entre economias capitalistas desenvolvidas e
subdesenvolvidas. Existe evidência estatística de que nas primeiras a distribuição
funcional da renda (relação entre custo da mão-de-obra diretamente empregada na
produção e valor agregado no processo produtivo) têm-se mantido sem modificações
maiores no correr do último século, ao mesmo tempo que aumenta a desigualdade de
remunerações entre grupos de assalariados e se eleva o componente social do padrão de
vida dos trabalhadores manuais.14 Desta forma, o papel do Estado tendeu a ser de
crescente de importância na determinação do custo de reprodução da população. Se o
Estado se limitasse a elevar esse custo, muito possivelmente a redução das
desigualdades seria acompanhada de declínio na taxa de crescimento da produtividade.
Mas, na medida em que o Estado logrou conciliar essa elevação do custo de reprodução
da população com um alto nível de acumulação no sistema produtivo, a maior igualdade
social não afetou o crescimento da produtividade. Obteve-se esse resultado mediante
modificações na estrutura da acumulação em benefício dos serviços públicos, e
ampliação de outros componentes sociais da produção de vida da massa trabalhadora.
Como as disparidades nos padrões de vida de uma população refletem a distribuição da
renda e a estrutura da acumulação, uma política visando a reduzir tais disparidades pode
atuar sobre um ou outro desses dois fatores. Uma modificação direta da distribuição
funcional da renda não poderá deixar de ter influência na capacidade competidora
internacional das empresas de um país capitalista. Como foram países essencialmente
dependentes do comércio exterior os que mais avançaram no sentido de elevar o custo
de reprodução da população, relativamente à produtividade – exemplo dos países
escandinavos –, compreende-se que a linha de força da política social nos países
capitalistas consista em redução das disparidades nos padrões de vida mediante
imposição direta e modificações na estrutura da acumulação realizada fora do sistema
produtivo.
A abordagem deste problema em termos abstratos deixa escapar muito de seus
aspectos mais relevantes. Uma rápida comparação entre as duas economias capitalistas
industrializadas de perfil social mais igualitário – a Suécia e o Japão – põe em evidência
a importância dos fatores históricos na configuração das estruturas sociais produzidas
pelo capitalismo. Na Suécia o custo de reprodução da população é excepcionalmente
elevado, vale dizer o nível de vida da massa da população é alto relativamente à
produtividade média do sistema econômico. Obteve-se esse resultado mediante
ampliação do componente social do padrão de vida. Por essa forma logrou-se manter a
capacidade competidora das empresas no plano internacional, porquanto a relação
salário monetário-produtividade não se modificava no nível da empresa. A modificação
fundamental ocorria na composição do excedente, reduzindo-se a parte orientada para a
acumulação no sistema produtivo. O poder político conseguiu anular grande parte das
desigualdades sociais que tende a engendrar o sistema capitalista em sua forma clássica
europeia.
No Japão, onde a organização da empresa não se funda na concorrência entre
aqueles que a compõem – trabalhadores e empregadores ingressam jovens numa
empresa para aí realizarem uma carreira, à semelhança dos servidores do Estado, e são
remunerados principalmente em função do tempo de serviço – a variante de sistema
capitalista que veio a prevalecer opera no sentido da homogeneização social. Como a
pressão social no sentido de elevar o custo de reprodução da população é fraca, a
diferença entre esse custo e a produtividade social tende a aumentar. Se se combina esse
14
Abundante informação sobre este ponto pode ser encontrada na obra monumental de Jean Marchal e J.
Lecaillon, La répartition du Tevenu national, em quatro volumes. (Paris, 19581-970).

10
fato com a tendência à homogeneização nos padrões de consumo, compreende-se que a
economia japonesa possuía um tão formidável potencial de expansão. Esse potencial foi
utilizado no passado para financiar as aventuras expansionistas da casta militar que
dominava o Estado japonês. Mas ele também pode ser canalizado para a acumulação no
sistema produtivo, como vem acontecendo no período de pós-guerra.
Desta forma, se bem que Suécia e Japão sejam as duas sociedades mais
igualitárias do mundo capitalista desenvolvido, as duas formações sociais refletem
processos históricos essencialmente distintos. Na Suécia, onde prevalece uma vontade
política que reflete o grau elevado de organização da massa trabalhadora, a
homogeneização foi alcançada mediante forte elevação do padrão de consumo da
massa, relativamente à produtividade social. No Japão foi a tradição na organização
social que freou dentro do próprio sistema econômico as tendências engendradas pelo
sistema capitalista às desigualdades sociais. A homogeneização dos padrões de
consumo realiza-se a nível baixo, relativamente à produtividade social. Contudo, o
grande potencial acumulativo da economia japonesa decorre menos do desnível entre
custo de reprodução da população e produtividade social do que do custo relativamente
baixo da estratificação social. Consequentemente, não obstante a extrema pobreza de
sua base de recursos naturais, o Japão é de longe a economia capitalista de maior
potencial de expansão e de maior capacidade competitiva internacional.
A situação da Inglaterra também é ilustrativa da importância dos fatores
históricos. À semelhança da Suécia, esse país elevou consideravelmente o custo de
reprodução da população, relativamente à produtividade social. Mas à diferença da
Suécia, na Inglaterra essa elevação se deve a aumentos do componente salário
monetário, com repercussão direta na capacidade produtiva competitiva internacional
das empresas. Evidentemente uma tal elevação encontra sua explicação no contexto
histórico em que se realizou. A situação privilegiada que desfrutava a Inglaterra no
sistema de divisão internacional do trabalho e como centro imperial, fizeram possível
elevar o custo de reprodução da população (fazendo crescera taxa de salário com
respeito à produtividade)sem que daí resultassem maiores exigências no que diz respeito
à utilização final do excedente, que continuava a ser absorvida em grande parte pelo
processo de estratificação social. Como os recursos produzidos pela situação
internacional privilegiada se traduziam internamente em elevação da produtividade
econômica do trabalho, a capacidade concorrencial das empresas no plano internacional
não era afetada. O desaparecimento subsequente dessa posição privilegiada e a forte
resistência sindical, que impede ou freia toda redução nos salários reais, respondem pela
situação de declínio internacional da economia inglesa no período de pós-guerra. A
diferença entre custo de reprodução da população (inclusive componente social) e
produtividade social é maior na Inglaterra do que na Suécia, posto que neste último país
a sociedade é mais igualitária. Se as empresas inglesas têm uma menor capacidade
competidora, deve-se isto a que na Suécia o excedente se destine em quantidade
relativamente maior a alimentar a acumulação ao nível do sistema produtivo. A
evolução sueca fez-se em condições internacionais menos favoráveis, pois não dispunha
de poder político para impor condições nos mercados em que operava e suas empresas
enfrentavam as limitações decorrentes da estreiteza do mercado interno.
Assim, o estudo da importância relativa do excedente e da destinação final deste,
bem como o das forças sociais que respondem pela apropriação e utilização dos
recursos que o compõem, põem em evidência a grande diversidade das formações
socioeconômicas capitalistas do mundo contemporâneo.
Essas disparidades alcançam uma significação ainda maior no quadro das
chamadas economias subdesenvolvidas. Circunstâncias históricas que foram objeto de

11
outros estudos,15 fizeram em certos países adotassem precocemente uma tecnologia
capital-intense (com respeito à disponibilidade de recursos para acumulação), o que
levou-os a conformarem a própria estrutura econômica de maneira a perpetuar uma
heterogeneidade tecnológica que se manifesta no plano social sob a forma de importante
contingente da população “subempregada”, vale dizer, ocupada em atividades que
desconhecem qualquer aumento de produtividade física. Para que a renda desses
“subempregados” viesse a aumentar seria necessário que se elevassem os preços
relativos do que produzem, à semelhança do que ocorre com os preços dos serviços
pessoais nas economias capitalistas desenvolvidas. Mas, neste último caso, o aumento
dos preços relativos torna-se possível porque as pessoas que consomem os produtos dos
setores em que trabalham os “subempregados” são elas mesmas “subempregadas”, vale
dizer, estão fora da área em que são efetivas as elevações de produtividade. Os que
derivam sua renda pessoal desta última área, podem portanto auferir uma renda de
consumidor, na medida em que adquirem os produtos do trabalho dos
“subempregados”, sempre que suas próprias remunerações traduzem os aumentos de
produtividade dos respectivos setores. Desta forma, mesmo que o salário do trabalhador
manual aumente nas atividades em que cresce a produtividade, pouca ou nenhuma será
a repercussão no nível da massa “subempregada”.
O estudo deste problema requer uma análise da estrutura da acumulação nas
economias subdesenvolvidas, o que por seu lado exige adequado conhecimento do
comportamento global das mesmas. Baste no momento observar que em tais economias
a acumulação fora do sistema produtivo tende a crescer consideravelmente e que o
contingente de população que se ocupa em atividade em que não ocorre uma efetiva
acumulação, mantêm-se elevado. Desta forma a reprodução da população realiza-se, em
grande parte, graças a atividades produtivas que pouca acumulação absorvem do
trabalhador manual se mantenha estagnado, ou cresça com intensidade inferior à do
aumento da produtividade social.
Em síntese: de uma maneira geral o custo de reprodução da população é
homogêneo no espaço16 e tende a aumentar mais que a produtividade social nas
economias capitalistas desenvolvidas, e é heterogêneo no espaço e tende a crescer
menos que a produtividade social nas economias capitalistas subdesenvolvidas. No
primeiro tipo de formação social observa-se historicamente uma tendência ao declínio
relativo do excedente, sem que isso haja implicado em redução no esforço de
acumulação ao nível do sistema produtivo. No segundo, a evidência histórica mostra
aumento da participação do excedente no produto, sem que isso haja implicado em
maior esforço de acumulação ao nível do sistema produtivo. Esta comparação entre o
comportamento no tempo do custo de reprodução da população e o da acumulação ao
nível das atividades produtivas, põe em evidência a ambiguidade do termo
subdesenvolvimento, que insinua a ideia de transitoriedade, ou de logo que exista
necessariamente antes do desenvolvimento.

Antagonismos sociais e desenvolvimento econômico

Que relações existem entre a estratificação social, os sistemas de dominação e as


mudanças que ocorrem em uma sociedade em decorrência da acumulação? Como

15
Veja-se em particular, do Autor, Desenvolvimento e Subdesenvolvimento (Rio, 1961) e Teoria e
Política do Desenvolvimento Econômico (5ª edição, Rio de Janeiro, 1975).
16
Tidas em conta as discrepâncias regionais já referidas. A experiência histórica oferece evidência de que
tais discrepâncias tendem a reduzir-se nas economias desenvolvidas e a aprofundar-se nas
subdesenvolvidas.

12
integrar o desenvolvimento econômico no processo de mudança social e relacioná-lo
com os sistemas de decisão e as estruturas de poder? A existência de um excedente
significa em si só que a sociedade se encontra em face a um horizonte de opções: não
poderá limitar a reproduzir-se tal qual é: terá que transformar-se.17 A forma mais
simples dessa transformação é o crescimento demográfico, mas este constitui por si
mesmo um fator autônomo de mudança social. Com efeito: para que o crescimento
demográfico não acarrete declínio na produtividade social é necessário que a
acumulação pré-existente no sistema de produção acompanhe homoteticamente o
aumento da população. Mas o excedente não constitui apenas a base do crescimento do
todo social; a forma como ele é utilizado repercute na estrutura desse todo. A uma dada
taxa de crescimento da produtividade social correspondem teoricamente n perfis de
mudança social: alguns desses perfis retroagem sobre a produtividade de forma positiva,
outros de forma negativa, outros não têm efeito significativo sobre a mesma. A cada um
deles corresponde uma forma de utilização do excedente.
O núcleo central do estudo dos câmbios sociais que chamamos de
desenvolvimento econômico consiste, portanto, no conhecimento dos processos sociais
pelos quais se definem a importância relativa do excedente e a utilização final deste.
Como esses processos são a resultante da interação de forças antagônicas, compreende-
se a importância que tem no estudo desses aspectos da dinâmica social o conhecimento
das diversas formas de antagonismo social.
Desde Marx tem-se privilegiado nesse estudo o processo de luta de classes, vale
dizer, os conflitos sociais que afetam diretamente o custo de reprodução da população, e
portanto, definem o montante relativo do excedente. Este enfoque tem-se revelado de
grande fecundidade no quadro das condições históricas que vêm condicionando, no
correr do último século e meio, o comportamento da classe operária na Europa. Mas
nada nos autoriza, quando não veja uma teoria pré-fabricada, a colocar no mesmo plano
a luta de classes que levou a burguesia participar hegemonicamente do poder na Europa
no século dezoito, e a que vem permitindo à classe operária europeia ter acesso a parte
dos frutos dos aumentos da produtividade social. A burguesia europeia foi, desde o
início, um componente do sistema de dominação social, uma classe que ocupa posições
na frente de luta pela apropriação do excedente. Ainda assim, o conceito de luta de
classes traz em si dois elementos de importância decisiva no estudo da dinâmica social:
a) a ideia de que a definição do nível do excedente e a repartição deste entre
subgrupos dominantes, expressam o resultado de antagonismos; e
b) a ideia de que tais antagonismos aumentam de importância quando os
elementos que deles participam formam grupos estáveis, o que se deve à tomada de
consciência pelos seus membros da existência de interesses específicos comuns.
A observação histórica nos leva a distinguir dois tipos gerais de antagonismos ou
confrontações entre grupos sociais, promotores das transformações que nos interessam:
i) antagonismos que estão ligados principalmente ao custo de reprodução da
população,
ii) e antagonismos principalmente relacionados com a destinação final do
excedente.

17
Não se exclui a possibilidade, no plano teórico, de transformação numa sociedade perfeitamente
igualitária, se bem que a rigor aí não se aplica o conceito de excedente. Em tal sociedade a acumulação
teria como único objeto elevar o custo de reprodução, ou seja o nível de vida do conjunto da população.
Trata-se, neste caso, de decisões sobre a utilização de recursos que envolvem julgamento intertemporal e
não propriamente de geração e utilização de excedente. No conceito de excedente é mais importante o
elemento coação social que a intertemporalidade da decisão sobre a utilização de recursos.

13
Os antagonismos do primeiro tipo modificaram-se qualitativamente com a
emergência do modo capitalista de produção, alcançando papel historicamente
preeminente conforme veremos mais adiante.
Mas, nas economias capitalistas que enveredaram pelo subdesenvolvimento o
papel desse tipo de antagonismo tem sido menos relevante e frequentemente diverso,
ocorrendo que a massa trabalhadora seja mobilizada por líderes populistas a serviço de
grupos que lutam pela apropriação de partes do excedente em benefício próprio. Em
outras palavras, nestes países, com frequência os antagonismos do primeiro tipo são
subordinados aos do segundo. Mas em todas as sociedades os conflitos e lutas em torno
da apropriação do excedente são fator decisivo das transformações sociais,
particularmente daquelas que respondem pela orientação geral do desenvolvimento
econômico. Estes conflitos e lutas incluem desde as guerras internacionais até a simples
concorrência entre firmas, passando pelas diversas formas de arbitragem do Estado
como manipulador do sistema de crédito, de preços, etc... O estudo deste segundo tipo
de confrontação nos permite aprofundar o conhecimento das estruturas internas de
dominação e das relações externas de dependência.
Nem sempre é possível separar, para fins de análise, os dois tipos de
antagonismo social a que nos estamos referindo. A repressão social tendente a reduzir o
custo de reprodução da população (ou a frear o crescimento desse custo) pode beneficiar
certos grupos dominantes em detrimento de outros.
A liberação das importações agrícolas dos nos 40 do século passado foi um
esforço para ampliar o excedente, mediante redução do custo de reprodução da
população, mas também significou ampla transferência de recursos entre os grupos que
se apropriavam desse excedente. No estudo desses antagonismos interessa, em
particular, identificar as motivações dos grupos que pretendem modificar a repartição do
produto social em benefício próprio, pois essas motivações influenciam o processo de
acumulação, tanto com respeito à sua intensidade como a sua composição.

Morfologia do excedente

A partir de ideias como de excedente e a de acumulação torna-se possível construir um


quadro conceitual suficientemente amplo pra abarcar o estudo de todas as formações
sociais. Com efeito: conceitos como lucro ou mais valia somente são aplicáveis a
economia de mercado, e mesmo (no caso da mais valia) a economia em que a realização
de parte do excedente requer a mediação de um fluxo monetário. Nas economia em que
o excedente é apropriado in natura e diretamente utilizado pelos que dele se beneficiam,
os conceitos referidos são de escassa aplicabilidade. Conceitos como lucro e mais valia
referem-se a uma realidade social na qual o excedente foi transformado em capital, o
que ocorre no quadro de formações sociais que requerem prévia identificação. Mas não
apenas as formas “pré-capitalistas” de organização da produção podem ser abarcadas
em uma teoria da mudança social a partir do conceito de excedente. O mesmo podemos
dizer das formas “pós-capitalistas”, tais as chamadas economias centralmente
planificadas, nas quais a dimensão relativa do excedente e também sua destinação
surgem explicitamente como uma resultante da ação direta do Estado.
Outro aspecto importante do conceito de excedente está em que ele permite
superar a dicotomia rígida consumo-investimento (poupança) que está na base de toda a
analise econômica. Ao agregar os gastos de consumo de um indivíduo (o essencial e o
supérfluo), ou de uma coletividade (os dos pobres com os dos ricos) como se se tratasse
de um massa homogênea, a análise econômica corrente projeta uma sombra sobre
aspectos da realidade, cujo conhecimento é essencial para a compreensão das

14
transformações sociais. As opções abertas a uma sociedade – o campo dentro do qual
tomam decisões os que exercem, controlam ou contestam as distintas formas de poder –
somente podem ser percebidas mediante o estudo dos conflitos e interações que estão na
base da formação do excedente e que condicionam sua utilização final.
Em uma sociedade complexa o excedente assume, necessariamente, uma
multiplicidade de formas, as quais variam em função do ângulo adotado para observá-
lo. Se o próprio observador está inserido na sociedade, a visão que ele tem do excedente
não pode deixar de refletir sua posição na estrutural social.
Para fins de análise do processo de acumulação e da estratificação social que o
acompanhe, as principais formam que assume o excedente podem ser resumidas nos
itens seguintes:
a) crescimento da população;
b) desigualdade nos níveis de gasto de consumo corrente da população;
c) desigualdade nos níveis de vida decorrentes da desigualdade dos níveis de
acumulação real (não financeira) realizada pelas pessoas privadas: em habitação,
automóveis, e outros bens duráveis;
d) desigualdade nos gastos que realizam as famílias (com ou sem subsídio do
Estado) a fim de aumentar a eficácia dos novos membros como fator de produção, ou
para dar-lhes acesso a carreiras que desfrutam de posição privilegiada na competição
pela apropriação do excedente;
e) dispêndios públicos, excetuados aqueles que são necessários ao adequado
funcionamento do sistema de produção e/ou que são absorvidos pelo custo de
reprodução da população; e
f) dispêndios privados destinados a ampliar o sistema produtivo.
Se observamos de perto as diversas formas que assume o excedente em uma
sociedade complexa, vemos que
i) algumas delas estão ligadas ao processo de aperfeiçoamento das próprias
faculdades do homem como elemento do sistema de produção, incluindo-se aí as
diversas formas de equipamentos que ampliam e aceleram a capacidade criadora do
indivíduo (d, e);
ii) outras estão ligadas à acumulação de meios de produção criados pelo homem
(e,f);
iii) por último um terceiro grupo de formas de excedente se ligam diretamente à
estratificação social, ou seja, se destinam a assegurar a reprodução, simples ou ampliada
das desigualdades sociais (b,c).
As relações entre os dois primeiro grupos de formas do excedente são evidentes,
pois o desenvolvimento das forças produtivas se traduz tanto em transformação dos
equipamentos e estruturas como em modificação das técnicas que pratica o homem. Já
não são tão claras as relações entre o terceiro grupo e os dois primeiros, pois a
reprodução das desigualdades sociais não constitui consequência necessária da
acumulação ao nível do sistema produtivo. Mas pouca dúvida pode haver de que o
processo de reprodução as desigualdades sociais exerce influência decisiva nas demais
formas de utilização doe excedente. Portanto, a composição do excedente é em grande
parte reflexo do sistema de dominação social, o que significa que sem o conhecimento
da estrutura de poder não podemos avançar no estudo do desenvolvimento das forças
produtivas.

Apropriação do excedente e estrutura de poder

15
Para fins de nossa análise poder é a capacidade que tem um grupo social de forças a
formação de um excedente e/ou dele apropriar-se. Assim, o excedente é, por si mesmo,
a manifestação material da existência de um sistema de poder. Não se trata de indagar a
razão de ser da estratificação social e do sistema de poder. Fizemos referência ao fato de
que a divisão social do trabalho é causa necessária mas não suficiente da estratificação
social (entendida como desníveis no consumo de grupos sociais), a qual tomamos como
um dado imediato da observação antropológica e histórica. Contudo, o estudo das
estruturas de poder, que acompanham toda estratificação social, constitui a principal
fonte de informação sobre o processo de formação e aplicação do excedente. Todo
poder tem uma dimensão política (uso da coação) e outra econômica (formação-
aplicação do excedente), mas as relações entre uma e outra nem sempre são facilmente
perceptíveis, quando as observamos através do espesso quadro institucional que as
disciplina.
Nas sociedades complexas, os pontos de maior relevância ou mais visíveis da
estrutura de poder estão constituídos pelo controle
i) do acesso à terra e outros recursos naturais escassos,
ii) do acesso aos meios de produção produzidos pela coletividade,
iii) do acesso ao crédito,
iv) do acesso às profissões liberais,
v) pelo controle dos órgãos decisórios e repressivos do Estado,
vi) pelo controle de informação e
vii) pelo controle da criatividade.
É esta uma simples enumeração das formas correntes como se exterioriza o
poder. Em todas as culturas existe um segundo plano de controle, que permeia todo o
processo de socialização do indivíduo e assume a forma de um sistema de valores, cujos
principais vetores de transmissão são a religião e a família, graças ao qual o custo social
da repressão pode ser consideravelmente reduzido.
O controle da propriedade da terra por uma minoria é uma forma de poder
extremamente visível. Menos visível é o controle da inovação técnica ou da informação,
que permite a uma empresa criar-se uma renda de produtor, a qual pode no entanto ser
assimilada a um imposto cobrado pelo Estado. Ainda mais visível, como forma de
poder, é o acesso aos diplomas de prestígio ou às relações pessoais que resultam de
haver frequentemente certas escolas. O sistema de preços, que os economistas em geral
apresentam como existindo independentemente dos agentes que tomam as decisões que
dão origem aos mercados é, em realidade, a resultante da ação conjugada de todas as
forças que respondem pela amplitude relativa do excedente e pela forma como este é
finalmente utilizado.
O grande alcance ideológico da ciência econômica, no sentido de contribuir para
facilitar o desenvolvimento das forças produtivas no quadro do capitalismo, radica em
que ela contribui para ocultar o elemento de poder que existe nas decisões econômicas,
assimilando-se a “automatismos” ou “mecanismos”, cujas leis deviam ser “descobertas”
e escrupulosamente respeitadas. Assim, a nova “ordem econômica” fundava sua
legitimidade em bases que não podiam ser mais sólidas.18 A evolução da sociedade
18
A visão atomizada do processo econômico, sob a forma de uma multiplicidade de agentes que se
aglutinam e ocasionalmente separam, foi apresentada formalmente pela primeira vez por Jean-Baptiste
Say, em seu Tratado de Economia Política, cuja primeira edição é de 1803. Adam Smith tinha uma visão
individualista da sociedade, mas partira da ideia de divisão social do trabalho, o que significava partir de
uma percepção do todo social, que se submetia à análise sem perder de vista o objetivo último que era
compreender “as causas da riqueza das nações”. J. B. Say foi o primeiro economista que pretendeu isolar
o “político” do “econômico”, referindo-se já na introdução de seu Tratado a uma pretendida confusão
entre esses dois campos existentes entre os pensadores do século XVIII, e afirmando que “as riquezas são

16
anônima, principal instituição da economia capitalista, nos permite ver com clareza esse
mascaramento do elemento de poder. A corporação era uma antiga instituição,
desenvolvida na Europa ocidental desde o século dezesseis, destinada a dar maior
flexibilidade e eficácia ao Estado. Para fazer a guerra, para estabelecer linhas de
comércio, para colonizar novas terras ou controlar países conquistados os governos
europeus criavam corporações, cujos objetivos eram rigorosamente definidos em lei.
Desta maneira o poder político adquiria maior agilidade e os próprios reis podiam
participar privadamente de rendosos negócios.19 Em 1811, uma simples decisão da
legislatura estadual de New York permitiu que pessoas privadas, sem autorização prévia
do Estado, organizassem corporações, isto é, sociedades anônimas, cujos proprietários
não são ostensivos.20 Como essas instituições eram criadas a partir de um patrimônio,
formou-se a ficção de que esse patrimônio, o capital, tinha plena autonomia como fator
de produção, existindo independentemente das pessoas que o utilizam como
instrumento de poder. Assim, uma instituição que surgira como projeção do poder do
Estado, passou a ser apresentado como elemento do sistema de produção, subordinado
às “leis de mercado”. À semelhança do que ocorre com um camponês que oferece seu
produto em uma feira, as decisões, dessa instituição seriam tomadas a partir de dados
que lhes são fornecidos pelo mercado, nos quais se definem os preços dos serviços dos
fatores e dos produtos que ela mesma produz, mercados esses nos quais ela não teria
interferência. A decisão da instituição passou a ser apresentada como a resultante de um
“cálculo”, a introdução de um elemento de racionalidade na vida social, portanto
estranha ao exercício de qualquer forma de poder. Certo, desde Cournot os economistas
teorizam sobre as “formas de mercados” e desde a época mercantilista têm consciência
de que a empresa monopolista está em condições de impor sua vontade, dentro de certos
limites, a uma clientela. Ao pretender derivar o sistema de preços de um esquema
abstrato de mercado e não de um estudo concreto da estrutura do aparelho produtivo e
das forças que respondem pela apropriação do excedente, a ciência econômica
incapacitou-se para formular uma teoria do lucro, mola central do processo de
acumulação capitalista. Coube a Schumpeter demonstrar que as empresas não são
“peças de um mecanismo” e que é exatamente o elemento de monopólio, que nelas
sempre existe, a razão de ser do dinamismo do sistema. Esse elemento de monopólio

essencialmente independentes da organização política”. Seu ponto de partida seria a identificação dos
agentes individuais que se aglutinam para formar as unidades produtivas. Ele coloca no mesmo plano os
agentes naturais, os capitais e as indústrias (distintas formas que assume o trabalho), dando origem à
tríade de elementos da produção, que posteriormente se transformarão em fatores (Cf. Jean-Baptiste Say,
Traité d’Economie Politique, sétime edição, Paris, 1861, p. 73). A primeira reação contra essa visão
atomística da atividade econômica surge com Friedrich List, cujo Das nationale System der Politichen
Oekonomie teve sua primeira edição publicada em 1841. Ao invés de buscar isolar os “elementos da
produção”, List estuda de uma perspectiva histórica o conjunto de forças produtivas da sociedade, dando
ênfase à interdependência do quadro político nacional. O conceito de forças produtivas por ele
introduzido foi retomado por Marx, vindo a constituir um dos elementos fundamentais da construção
teórica deste último.
19
Exemplo interessante dessa participação dos reis nas companhias de comércio é a Companhia da
Inglaterra, criada em 1713, como decorrência do tratado de Utrecht que abriu aos ingleses a possibilidade
de participar do comércio de escravos na América espanhola. Do capital dessa companhia participaram
privadamente os reis de Inglaterra e de Espanha cada um com vinte e cinco por cento.
20
A sociedade anônima como figura jurídica surgiu pela primeira vez no Código de Comércio francês de
1807. Contudo, somente em 1867 a lei autorizou na França pessoas privadas a organizarem uma
sociedade anônima sem prévia autorização das autoridades competentes. Na Inglaterra a formação de uma
corporação continuou a depender de autorização expressa do rei ou do Parlamento até 1844.

17
consiste no poder que tem a empresa de transformar o contexto social onde atua, mesmo
que aparentemente procure a ele adaptar-se.21
Em todo o sistema econômico podemos distinguir para fins de análise, três
subconjuntos de atividades produtivas.
i) Um primeiro constituído pelas atividades que respondem pelo processo de
reprodução da população;
ii) um segundo por aquelas atividades ligadas ao processo de estratificação, ou
seja, que asseguram a continuidade das desigualdades sociais;
iii) e um terceiro formado pelas atividades que têm como objetivo simplesmente
elevar a produtividade social.

As duas formas básicas de apropriação do excedente

Duas formas básicas de apropriação do excedente parecem haver coexistido desde o


início dos tempos históricos. De um lado está o que poderíamos chamar a forma
autoritária, que consiste na extração de um excedente mediante a coação. De outro lado
apresenta-se a formação mercantil, ou seja, a captação do excedente no quadro de
operações de troca ou intercâmbio. A forma autoritária surge claramente no caso de um
povo, ou um grupo social, que escravizou outro; é menos visível mas não menos real no
caso do controle do acesso à terra arável, à água, ou a outras fontes de recursos naturais;
ainda menos visível no caso de pagamento de um imposto para residir em certo
território, ou na obrigação de se deixar mobilizar para a guerra. Esta forma mercantil é
de natureza distinta: ao surgir no quadro de um intercâmbio, ela está ligada a um
processo de elevação da produtividade. Em si mesmo o intercâmbio não gera um
excedente, mas ao abrir a porta à elevação de produtividade ele cria as condições para
que o excedente venha a formar-se. Convém ter em conta que se trata de elevação da
produtividade econômica, a qual não requer necessariamente câmbios nas técnicas de
produção, decorrendo da simples especialização e/ou do aproveitamento de vantagens
naturais. Certo, o especializar-se na pesca, na caça ou na produção cerâmica, facilita
avanços nas técnicas de produção. Mas independentemente desses avanços, a
especialização, possibilitada pelo intercâmbio, dá origem a aumentos de produtividade.
O intercâmbio cria condições para que um grupo social, que não usa
necessariamente a coação, aproprie-se de uma parte do produto. Existem casos de
operações de troca sem intermediários, mesmo entre povos distintos, mas o que se viu
por toda a parte foi a emergência de grupos sociais, ou povos inteiros, especializados na
intermediação. Distâncias consideráveis puderam assim ser neutralizadas, ampliando-se
o campo da especialização em benefício do aumento da produtividade. Como a ação dos
intermediários requeria por si mesma, um processo autônomo de acumulação –
construção de meios de transporte, instalação de feitorias, imobilização de estoques – a
apropriação do excedente no quadro do intercâmbio se apoiava no controla de recursos
anteriormente apropriados.
O excedente utilizado para apropriar outro excedente é um capital, o que nos
permite afirma que toda formação socioeconômico em que o excedente é

21
Avanço considerável na teoria da repartição da renda (e a fortiori na da apropriação do excedente)
deve-se a Michal Kalecki, que desde os anos 30 chamou a atenção para a relação que existe entre o poder
que exercem as empresas (ele chamou-o de grau de monopólio) e a taxa de lucro, assinalando a
necessidade de abandonar o conceito de livre concorrência na descrição do estado normal da economia
capitalista (Essays in the Tehory of Economic Fluctuations, Londres, 1939). O poder que exercem as
empresas nos mercados lhes permite, mediante a administração dos preços, controlar o custo de mão-de-
obra.

18
predominantemente captado no quadro de operações de intercâmbio pertence ao genus
capitalismo.
Formações sociais tão diversas como a do Egito faraônico, a da China imperial e
a do Império incaico tinham um importante traço comum: a paoriação do excedente era
rigorosamente disciplinada por um poder central que monopolizava o suo da coação.22
A utilização das terras estava regulamentada, destinando-se parte delas a assegurar a
reprodução da população e parte a proporcionar um excedente cuja utilização se fazia de
acordo com regras meticulosamente estabelecidas. As condições de segurança
proporcionada pelo controle centralizado do uso do excedente favoreciam o crescimento
demográfico. Esse tipo de formação socioeconômica, chamada imperial permitiu
considerável acumulação de riqueza, parte da qual era utilizada para aumentar a
capacidade do sistema de produção, como no caso das obras de hidráulica agrícola, ou
para facilitar as comunicações. Todavia a maior parte do excedente orientava-se para
obras de prestígio, fonte de legitimação do poder dos beneficiários do sistema.
As duas formas referidas de captação do excedente não somente coexistiram,
como via de regra, foram complementares. O excedente apropriado por via autoritária,
com frequência era particularmente destinado a operações de intercâmbio, o que punha
em marcha um processo de aumento da produtividade e de diversificação dos bens a que
tinha acesso certa coletividade ou grupo social. Por outro lado, a infraestrutura logística
criada pelos impérios com fins de segurança favorecia o desenvolvimento do
intercâmbio, da mesma forma que a urbanização, engendrada pela concentração
geográfica da utilização do excedente (obras públicas, sistema de segurança, despesas
de prestígio, em moradia e outras), abria novas e consideráveis possibilidades a esse
mesmo intercâmbio. Mas, o papel da classe mercantil na utilização final do excedente e
sua influência como foco cultural variaram consideravelmente em função das condições
históricas particulares a cada formação sociopolítica imperial.

Os processos de feudalização parecem ligar-se à desorganização de formações


sociopolíticas imperiais. A apropriação autoritária do excedente passa às mãos de
grupos locais e a utilização deste mesmo excedente tende a efetuar-se na própria região
onde ele é captado. Esse processo de desconcentração da apropriação e utilização do
excedente vai acompanhado de declínio da urbanização e do intercâmbio. Isto não
impede que este último continue a desempenhar um papel, ainda que reduzido, na
transformação do excedente e mesmo no fornecimento de produtos indispensáveis à
reprodução da população.
À predominância de cada uma das duas formas de captação do excedente
corresponde historicamente, um tipo de formação sociopolítica: a imperial e a urbana-
mercantil. O império faraônico com sua interminável falange de burocratas que tudo
controlavam e tudo prescreviam23 e as cidades fenícias são protótipos exemplares dessas
formações sociopolíticas. A integração das duas formas referidas em um sistema de
cultura parece haver sido ensaiada nessa aventura histórica sem par que foi a Grécia

22
Em quase todos os tipos históricos dos chamados sistemas políticos pré-modernos – federações tribais,
feudalismo, patrimonialismo, impérios burocráticos centralizados – prevaleceu a apropriação autoritária
do excedente. As cidades-estados constituem a única exceção. Contudo em todas as partes coexistiram as
duas formas de apropriação.
23
No Egito faraônico todo o país era considerado, e não apenas de forma simbólica, patrimônio do
imperador, cabendo a cada súdito realizar uma tarefa prescrita pelo poder central. Contudo, as relações
mercantis externas eram importantes. No período helênico e no romano as relações comerciais externas
do Egito se ampliaram consideravelmente, sem que isso afetasse a forma interna autoritária de
apropriação do excedente.

19
clássica.24 Algo semelhante ocorrerá na Europa ocidental a partir de começos do
segundo milênio. Com efeito: o fracasso da tentativa de reconstrução imperial carolíngia
frustrou uma evolução no sentido de reconstituição da formação sociopolítica imperial e
abriu o espaço ao desenvolvimento de formações urbano-mercantis, com considerável
autonomia, que desempenhariam por via autoritária (renda da terra, dízimos, impostos)
no quadro do feudalismo.25 Graças ao desenvolvimento das atividades urbanas,
diversificou-se consideravelmente a oferta de bens nas zonas rurais, o que contribuiu
para elevação da produtividade nestas últimas. Por outo lado, a margem de manobra de
que gozaram os patriciados urbanos, matrizes das futuras burguesias, permitiu-lhes
assumir crescente autonomia cultural, que servirá de barreira ao avanço da forma
autoritária de apropriação do excedente na fase subsequente de liquidação do
feudalismo. O estado-nação da Europa moderna será bem mais do que um compromisso
entre dois sistemas de dominação. Em sua base existe uma efetiva integração de dois
sistemas de cultura.26

24
Os autores que observaram a emergência das formações sociopolíticas imperiais estritamente do ponto
de vista da ação de fatores políticos, tendem a considerar o caso das cidades-estados gregas como um
processo histórico frustrado. Assim S. N. Eisentadt em seu livro clássico The Political System of the
Empire da ênfase ao fato de que nessas formações sociopolíticas “A elite dominante continuou atrelada ao
parentesco ou aos limites e estruturas delimitados pela cidade e não desenvolveram a tendência de uma
autonomia das esferas políticas.”. (Edição de The Free Press, New York, 1969, p. 106). O que se observa
nas cidades-estados gregas é uma grande instabilidade social, a qual aumenta toda vez que o excedente
obtido nas atividades mercantis externas cresce. O enriquecimento acarretava a concentração do poder
econômico, a dependência de importações de alimentos, a substituição da agricultura de cereais pela
vinha e a oliva (destinadas à satisfação de necessidades não essenciais e/ou à exportação), a concentração
da propriedade agrícola, a formação de um grupo urbano marginalizado que dependia para sobreviver da
ajuda do estado. Nos estados dórios, onde existia uma importante classe de servos, as tensões sociais eram
contidas dentro de certos limites por temor à subversão vinda de baixo. Nos estados jônios, onde em geral
todos eram cidadãos, as tensões se traduziam em intensa atividade política. O fundo do problema estava
na existência de uma numerosa classe de cidadãos (originários da economia agrícola pré-existente) que
empobrecia em decorrência das transformações trazidas pela expansão das atividades mercantis externas.
O controle do poder político oscilava entre democratas e oligarcas, mas os períodos de reais reformas
eram sucedidas por longas fases de imobilismo político. Aristóteles em sua Política viu claramente que a
solução estava em abandonar a política de ajuda aos marginais e assegurar a todo cidadão um mínimo de
riqueza. Mas como reproduzir essa riqueza sem voltar à economia agrícola que era corroída pelo avanço
do capitalismo? A vivacidade da vida política grega é a contrapartida da incapacidade dos pequenos
estados para encontrarem equilíbrio entre as forças conflitantes de dois sistemas econômicos, que
pretendiam coabitar entre seus estreitos muros. Para informações sobre a economia grega clássica veja-se
Gustavo Glotz, Le travail dans la Grèce ancienne (Paris, 1920).
25
À diferença do que ocorrera na Grécia, na Europa ocidental as cidades que se desenvolvem a partir do
século XI são economias dominadas por um patriarcado mercantil, cujo principais interesses ligavam-se
ao comércio realizado fora da cidade. As atividades artesanais e as agrícolas da periferia da cidade a ela
diretamente ligadas, estacam estritamente regulamentadas a serviço dos consumidores urbanos. Para uma
análise comparativa das estruturas sociais das cidades medievais e das antigas, principalmente gregas e
romanas, veja-se Max Weber, Economia y Sociedade/1922/III, tradução de Eugenio Imaz (México 1944,
pp.326-364)
26
À diferença da cidade antiga, onde as tensões sociais decorriam de uma classe de cidadãos
empobrecidos (o civis proletarius era um cidadão na plenitude de seus direitos mais desclassificado por
motivos de ordem econômica), nas cidades medievas essas tensões refletiam típicos conflitos de
interesses decorrentes da organização da produção e da forma de apropriação do excedente. Tais conflitos
foram mais importantes nas cidades em que os artesãos, progressivamente organizados em corporações,
produziam para comerciantes-exportadores, isto é, quando os artesãos não dispunham de uma clientela
cativa. A partir da segunda metade do século XII assumem alguma importância entre o “povo” e o
“patriarcado”, mas é no quadro das consideráveis dificuldades do século XIV que tais conflitos assumem
grandes proporções. Nas palavras de um historiador, “” (Cf. Guy Antonetti, L’écnomique médiévale,
Paris, 1975, p. 29). Em outras palavras, era modificar a relação de forças no que concerne à apropriação
do excedente, entre comerciantes e artesãos. Convém tem em conta que esses artesãos que se

20
Capitalismo e modo capitalista de produção

O uso de um excedente como instrumento para captação de outro excedente,


decorrência natural das operações de intercâmbio, é a base das formações sociais que
chamamos genericamente de capitalismo. Essa forma de captação do excedente,
conforme já observamos, não surgiu como uma opção histórica ao uso da coação,
porquanto foi o excedente apropriado autoritariamente que, via de regra, alimentou os
canais do intercâmbio. Mas a predominância de uma ou outra forma se traduz
diferentemente no plano da organização social.
Nas formações sociais capitalistas a estrutura de poder se funda no controle do
excedente que permanece incorporado aos processo econômicos, de intercâmbio ou
diretamente produtivos. Portanto, o controle de capital substitui a coação direta, base da
apropriação nas outras formações sociais. Mas se observamos mais de perto uma e outra
forma de organização social, comprovamos sem dificuldades que no capitalismo formas
encobertas de coação desempenham papel fundamental, pois o uso do excedente para
extração de outro excedente, ou seja sua transformação em capital, pressupõe a
imposição de determinadas relações sociais. Destarte, o capitalismo deve ser entendido
como uma formação sociopolítica, ou seja, como uma estrutura de poder que impõe as
relações sociais nas quais o excedente mais facilmente se transforma em capital.27

apresentavam como “povo” eram na verdade subcontratistas que exploravam uma ampla mão de obra
assalariada. A observador da história interessado na gestação da civilização contemporânea não pode
escapar a importância que tiveram esses conflitos. À diferença do que ocorrera no mundo greco-romano,
onde os conflitos sociais urbanos paralizaram os sistemas políticos, na baixa Idade Média tais conflitos
levaram o patriciado urbano a buscar o apoio do estado-nação moderno. Essa evolução no sentido de
conter as pressões sociais a reforças a posição na estrutura de poder dos grupos interessados na expansão
comercial, deu-se inicialmente na Inglaterra em seguida na França, países que estabeleceriam os
paradigmas das estruturas políticas do mundo moderno.
27
Capitalismo é conceito de utilização recente. Segundo Braudel o seu uso não iria além de 1870, “Karl
Marx ignorou-o”. Veja-se Civilisation matérielle et capitalisme (XVe – XVIIIe), tomo 1 (Paris, 1967),
Introdução. A crer em Werner Sombart foi ele o primeiro autor a transformar essa palavra em conceito de
utilização na análise econômica. Veja-se o seu artigo “Capitalism” na Encyclopaedia of the Social
Sciences (The Macmillan Company, 1930). Todavia Sombart integra o capitalismo na história econômica
europeia assinalando o seu surgimento no século XIII. O núcleo central de sua reflexão consiste em uma
caracterização do “espírito do sistema capitalista”, no qual distingue três traços fundamentais:
aquisitividade, concorrência e racionalidade. “O propósito da atividade econômica no capitalismo é a
aquisição, mais precisamente a aquisição em termos de dinheiro” afirma ele. Chama a atenção que
Sombart não haja percebido que esse foi sempre o espírito de toda a atividade mercantil sendo difícil
imaginar que os fenícios eram animados por outro propósito. Por outro lado, o critério de racionalidade é
inerente à existência de empresas, organizações que utilizam meios limitados para alcançar objetivos pré-
estabelecidos. Como imaginar que as sociedades comanditárias por ações dos publicani romanos, que
utilizam dinheiro do público que deviam remunerar, não obedecem a critérios racionais? Max Weber
contribui seguramente mais que qualquer outro autor para a compreensão do fenômeno do capitalismo, ao
ligar sua existência à satisfação das necessidades de um grupo mediante operações lucrativas e por meio
de empresas. O capitalismo se apresentaria de forma distinta nos diversos períodos da história, “mas a
satisfação das necessidades cotidianas baseada em técnicas capitalistas é peculiar do Ocidente, e ainda
neste somente na segunda metade do século XIX torna-se coisa natural”, Veja-se Max Weber, História
econômica geral (primeira edição original de 1923), tradução de Manuel Sanchez Sarto, México, 1961,
pp. 236-8. Portanto, capitalismo é a forma de organização social em que a satisfação das necessidades
humanas é realizada de forma preponderante mediante atividades lucrativas, ou seja, atividades apoiadas
na utilização de um excedente previamente apropriado e transformado em capital. Todavia, Max Weber
pretende ir um pouco mais longe ao afirmar que a existência de capitalismo pressupõe a de trabalho livre,
pois somente assim seria possível “um cálculo racional do capital”. Ora, o cálculo racional do capital é
perfeitamente compatível com formas servis de trabalho. É para evitar esta confusão e ao mesmo tempo

21
Como forma de organização do poder, o capitalismo se manifestou historicamente a
níveis diversos de desenvolvimento das forças produtivas. Mas, enquanto apoiou-se
apenas no intercâmbio, sua capacidade expansiva foi limitada. Veneza constitui, quiçá a
mais complexa estrutura política formada pelo capitalismo mercantil.28 É a partir do
momento em que o capitalismo cria raízes no plano da produção que suas
extraordinárias possibilidades como fator de aceleração da história vêm à luz.
A desconcentração do poder que caracteriza a formação sociopolítica capitalista
produz a ficção de que o “político” e o “econômico” são de natureza distinta, e que a
apropriação do excedente não se funda no exercício de um poder e sim na prestação de
um “serviço”, na eficiência, na aceitação de riscos, e coisas similares. Protegido por
essa cortina ideológica o sistema de poder evoluiu e assumiu formas sofisticadas, em
benefício da autonomia de decisão dos grupos que controlam o processo de acumulação.
A extensão à atividades diretamente produtivas da forma de apropriação do
excedente surgida no quadro do intercâmbio, constitui um salto qualitativo na evolução
do capitalismo. Esse salto traduziu-se na emergência do modo de produção, conforme à
feliz expressão usada por Marx.
As operações de intercâmbio, por si mesmas, não requerem modificações ao
nível da organização da produção. Fizemos referência ao fato de que o excedente
extraído por via autoritária ao nível da produção constituiu tradicionalmente a base das
operações de intercâmbio. Certo: o intercâmbio estimula especialização e em uso mais
intenso dos recursos disponíveis, portanto, aumenta a produtividade social. Por outro
lado, a fazer interdependentes produtores indivíduos, ou grupos de produtores, o
intercâmbio coloca os intermediários em posição de força. Uma vez criada a situação
estrutural de interdependência, os intermediários podem impor condições. O excedente
que eles estão em condições de extrair tende a ser tanto maior quanto menor é a margem
de manobra deixada àqueles que participam do intercâmbio. Era natural, portanto, que
os intermediários se empenhassem, de uma ou outra forma, em reduzir essa margem de
manobra, inclusive mediante o controle direto do sistema de produção.29

assinalar que a predominância do trabalho livre constitui marco decisivo na evolução do capitalismo que
introduzimos a diferença entre “capitalismo” e “modo capitalista de produção”.
28
Em Veneza certos direitos políticos eram privilégios dos comerciantes chamados de extra, ou seja,
aqueles que participavam da captação do excedente mediante transações realizadas no exterior. Cf. Gino
Luzzatto, “Small and Great Merchants in the Italian Cities in the Renaissance”, in Enterprise and Secular
Change, American Economic Association.
29
Esse processo pode ser observado com nitidez na evolução da indústria têxtil lanífera europeia.
Somente em Florença essa indústria chegou a empregar, no século XVI, cerca de 30 mil pessoas. A
primeira parte do trabalho (lavagem e preparação da lã) era realizada a domicílio por mulheres, que
recebiam ínfimo salário. Os artesãos-tecelões, chefes de atelier, trabalhavam em seu próprio domicílio
com um dois companheiros, que com eles residiam, aprendizes e operários temporários. A remuneração
neste caso era por peça. Finalmente outros artesãos, também pagos por peça, realizavam com a ajuda de
operários o trabalho de prensagem e tinturaria. A peça central na organização da produção era o artesão-
tecelão, em torno de quem se articulavam os outros artesãos e trabalhadores para enfrentar a pressão dos
comerciantes que encomendavam a produção para exportação. A massa de mão de obra era assalariada,
mas a quantidade de capital fixo utilizada relativamente pequena. A pressão dos comerciantes fez-se no
sentido de romper os privilégios das corporações de artesãos, o que conseguiram inicialmente deslocando
as atividades produtivas para as zonas rurais. O segundo passo constituiu em reunir os artesãos com seus
auxiliares em um mesmo local o que permitia coordenar o trabalho, ganhar tempo e ensaiar a divisão do
trabalho em tarefas. Uma poesia inglesa do século XVI descreve uma tentativa de organização desse tipo,
com uma oficina de 200 teares e atividades complementares, inclusive de produção de alimentos para os
trabalhos, tudo de propriedade de uma só pessoa. (Cf. W. J. Ashley, Na Introduction to English Economic
History and Theory, Londres, 1893, II, p. 270). A resistência dos artesãos continuava por essa época
considerável, pois o rei da Inglaterra que visitou a oficina continuava por essa época considerável, pois o
rei da Inglaterra que visitou e se mostrou impressionado logo depois proibiu que se repetissem
concentrações desse tipo. Ora, concentrações de trabalhadores do tipo dos ergastérios existiam desde a

22
Os economistas observaram esse processo histórico pelo seu lado externo, como
difusão da economia de mercado, quando em realidade se trata de uma evolução ao
nível das estruturas de poder que controlam a apropriação do excedente. Sismondi, que
teve uma experiência direta como empresário agrícola e observou essas transformações
a fins do século dezoito em regiões tão diversas como a Itália e a Inglaterra, percebeu
que se tratava de uma modificação na relação de forças entre os distintos agentes que
participavam da atividade agrícola. Esta, nos diz ele, tende mais e mas a assemelhar-se a
uma “especulação”, semelhante a uma atividade mercantil. O empresário que arrendava
terras em grande escala podia privar parte da população de sua fonte de subsistência e,
por esse meio, conseguia reduzir o custo da mão-de-obra. Demais, mediante o controle
da oferta podia manipular os preços nas áreas dele tributária. Por último, também se
debilitava em face dele a posição do proprietário de terras, que para arrendar estas devia
escolher entre uns poucos grandes empresários.30 Não há dúvida que essa modificação
na relação de forças em favor da burguesia esteve ligado ao aumento relativo do capital
mercantil no processo geral de acumulação. Mas interessa frisar que foi essa prévia
modificação na relação de forças no plano do sistema de poder que permitiu à burguesia
estender o seu controle às atividades produtivas. Em outras palavras: não foi a evolução
das forças produtivas que trouxe a difusão do modo capitalista de produção; foi a
modificação na posição da força da burguesia, tornada possível pela acumulação de
capital mercantil, que a capacitou para atacar no duplo front da agricultura feudal e d
manufatura artesanal e corporativa e precipitou a evolução das forças produtivas.31
Adam Smith já observara que a agricultura não é um campo propício para
aprofundar a divisão do trabalho.32 As condições impostas pelo meio natural e o caráter
sequencial das tarefas a realizar, fazem com que o aumento da produtividade agrícola
depende fundamentalmente de acumulação prévia e se traduza em redução da mão-de-
obra empregada. A isso se deve que, embora a penetração do modo capitalista de
produção se haja iniciado pela agricultura, seus progressos nesse setor tenham sido
muitos lentos. A situação no setor manufatureiro é distinta. A especialização, base do
trabalho artesanal, pôde ser substituída pela divisão do trabalho, em tarefas, o que

antiguidade. A novidade estava em fazê-las com trabalhadores assalariados, eliminando toda


intermediação no processo de apropriação do excedente entre o comerciante e a massa trabalhadora. A
partir desse momento, a estrutura de poder que está por trás da apropriação do excedente passava a
apoiar-se tão somente no controle do capital. ]
30
Cf. Sismonde de Sismondi, Nouveaux Principles d”Economie Politique (1819, Paris edição de 1971,
pp. 1901-191.).
31
Ao introduzir o conceito de modo de produção capitalista de produção, Marx o ligou à existência do
capital em geral e não do capital utilizado para extrair um excedente ao nível da atividade produtiva,
conforme expusemos no texto. Marx fez da mais-valia a origem do capital, mas como mais-valia
“pressupõe a produção capitalista” a coisa toda parecia a ele “fechar-se em um círculo vicioso”. Para sair
da dificuldade retomou a ideia de Adam Smith de “acumulação prévia”, que chamou de “primitiva”,
“uma acumulação que não resulta do modo capitalista de produção, mas é o seu ponto de partida”. Marx
vê nessa acumulação primitiva “o processo histórico pelo qual o produtor é separado dos meios de
produção”. (O Capital, cit. pp. 711, 713 e 714). Ocorre, entretanto, que a acumulação sem que o produtor
fosse separado dos meios de produção teve uma lona história, alcançando ocasionalmente elevados níveis
e conhecendo períodos de recuo. O problema fundamental consiste, portanto, em identificar as condições
históricas que permitiram à classe mercantil impor essa separação, forçando a classe senhorial e as
corporações de ofício a aceitar novas relações de produção. Trata-se de aprofundar no conhecimento da
história europeia e não de derivar leis gerais da acumulação ou da evolução das relações de produção.
Para uma comparação sugestiva com o caso da China veja-se Immanuel Wallerstein, The Modern World-
System (New York, Academic Press International Edition, 1974, pp. 52-57).
32
“A natureza da agricultura não comporta tantas subdivisões do trabalho, nem uma diferenciação tão
grande de uma atividade para outra, quanto ocorre nas manufaturas.”, The Wealth of Nations (1776),
edição Edwin Cannan (Londrs, 1950, tomo I, p. 7).

23
permite aumentar consideravelmente a eficiência.33 Assim, o modo de produção
capitalista ao penetrar no setor manufatureiro, abriu a porta a aumentos de
produtividade física do trabalho (eficiência), provocando a mudança qualitativa do
capitalismo a que fizemos referência. A partir desse momento tanto o processo de
geração do excedente como de sua captação serão profundamente modificados, posto
que o controle das atividades produtivas tende a substituir a propriedade da terra com o
principal elemento da estrutura de poder.
O modo capitalista de produção, se bem o observamos, não é outro coisa senão a
aplicação à organização da produção da forma mercantil de apropriação do excedente.
O intercâmbio, que antes se realizava no nível de produtos acabados, estende-se agora
ao plano da tarefa. Como o produto de uma tarefa nem sempre pode ser individualizado
– o trabalhador se transforma em peça de uma engrenagem coletiva – cria-se uma
extrema rigidez estrutural, ou seja, aumenta consideravelmente o poder dos que
controlam a atividade produtiva. Na análise deste ponto tem-se dado ênfase desde
Sismondi, à privação do trabalhador de instrumentos de trabalho, a fim de reduzi-lo à
condição de assalariado.34 Ocorre, entretanto, que os instrumentos de trabalho também
sofrem profunda transformação, com o avanço na divisão do trabalho. Não foi porque se
visse privado de instrumentos de trabalho que o artesão foi eliminado e sim porque, não
estando orientado para o aumento da eficiência, não podia resistir à concorrência do
modo capitalista de produção. A resistência a este foi oferecida pelas corporações de
ofício, enquanto estas tiveram suficiente poder para impedir a instalação de manufaturas
que utilizam “trabalho livre”. Modificada a relação de forças em benefício da burguesia,
a penetração do modo capitalista de produção fez-se com extraordinária rapidez no setor
manufatureiro.35
Na medida em que o capitalismo se verticalizou, isto é, estendeu-se às atividades
diretamente produtiva, tendeu a aumentar a rigidez estrutural do sistema econômico. A
massa da população já não tem as mesmas garantias de sobrevivência: não lhe resta
opção a vender sua capacidade de trabalho em um mercado extremamente desigual, pois
de um lado estão muitos que disputam meios de subsistência e de outro estão uns pouco
que realizam uma “especulação”. A extrema dependência a que ficou reduzida a massa
da população vis-à-vis de uma pequena minoria privilegiada e o embrutecimento que

33
A significação da divisão do trabalho como fator de elevação de eficiência nas manufaturas foi
percebida claramente, antes de Adam Smith, pelos enciclopedistas franceses, que escreveram em 1751:
“quando uma fábrica é grande, cada operação ocupa um homem diferente... Daí ocorre que cada uma é
executada bem e é completa, e que a obra mais bem-feita ainda é mais barata. Além disso, o gosto e a
maneira se aperfeiçoam necessariamente entre um grande número de trabalhadores.”
34
“O abismo que existe entre o assalariado e qualquer empreendimento nas manufaturas ou no comércio
é tão grande quanto o que o separa do arrendatário. A classe inferior perdeu toda a esperança que a
sustentara nos períodos precedentes da história... no estado de sofrimento e inquietude em que se
encontram mal podem conservar o sentimento de dignidade humana ou o respeito à plena liberdade.”
Sismonde de Sismondi, cit. p. 188.
35
A organização da produção manufatureira com base no trabalho assalariado não constitui apenas uma
prolongação da atividade mercantil. Percebe-se facilmente o alcance dessa transformação quando se tem
em conta que a especialização, que requer longa formação de mão-de-obra, tende a ser substituída por
uma sequencia de tarefas simples, executáveis por qualquer pessoa. Os instrumentos se tornam mais
complexos e exigem muito maior acumulação, ao mesmo tempo que as tarefas realizadas pelo homens se
tornam mais simples, permitindo intercambiar facilmente os trabalhadores. Isto contribuiria
poderosamente para modificar a relação de forças em favor dos que organizam a produção. Max Weber
percebeu o fundo desse problema quando observou que o sentido da divisão social do trabalho, mudou
fundamentalmente quando os comerciantes começaram a controlar a produção; as corporações de ofício
dividiam o trabalho verticalmente, não tanto para que o produto permanecesse mais tempo em suas mãos;
ao passo que os comerciantes controladores da produção buscaram de imediato a especialização técnica,
que permitiria reduzir o tempo de produção. (Cf. História Econômica Goneral, cit., 129).

24
para a grande maioria significava ser reduzido a executor de tarefas elementares, não
passaram despercebidos aos observadores da época. Muitos autores contemporâneos
observaram que a Europa estava recuando mais e mil anos, pois nem mesmo as
garantias que que dera ao trabalhador o Código Justiniano eram cumpridas pela
burguesia triunfante.36 Da ação dessas forças teriam que resultar transformações de não
pequena monta na formação social. Assim, a reunião de grande número de trabalhadores
em um local e a complementaridade das tarefas levou os trabalhadores a se
solidarizarem na defesa de interesses comuns. A consciência de classe que se formam os
trabalhadores na luta contra o desemprego e as formas mais brutais de exploração, viria
a constituir fator decisivo na evolução subsequente da formação social. Esses dados
devem ser tidos em conta no estudo da dinâmica do excedente nas formações sociais
capitalistas que alcançariam os mais altos níveis de acumulação.37
Com a penetração do capitalismo na organização da produção, a massa da
população, anteriormente enquadrada na estrutura agrária e no sistema corporativo –
enquadramento que funcionava como um seguro social – perdeu toda segurança, pois
ficou na total dependência da criação de empregos por parte da pequena minoria que
controle o processo de acumulação. Uma certa leitura dos economistas clássicos,
particularmente de Ricardo, levou muita gente a imaginar que o “mercado de trabalho”

36
A transformação do trabalhador em peça de uma engrenagem, sua total insegurança, sua alienação
impressionariam profundamente muitos observadores da época. Sismondi conforme já observamos, viu o
fenômeno com clareza. Um quarto de século depois dele, mas ainda bem antes de Marx, Tocqueville faz
agudas observações sobre esse ponto. “Já se reconheceu que, quando um operário se ocupa todos os dias
do mesmo detalhe, chega-se mais facilmente, mais rapidamente e com maior economia à produção geral
da obra. (...) Quando um artesão se dedica ser cessar e unicamente à fabricação de um só objeto, acaba
realizando esse trabalho com uma destreza singular. Mas perde, ao mesmo tempo, a faculdade geral de
aplicar seu espírito à direção do trabalho. Torna-se cada dia mais hábil e menos industrioso, e podemos
dizer que, nele, o homem se degrada à medida que o operário se aperfeiçoa”. Alex de Tocqueville, De la
Démocratie em Amérique (1840, Paris, 1963, Union Générale d’Editions, p. 295).
37
Se bem que a penetração do modo capitalista de produção passou a ser fator decisivo na configuração
subsequente das formações sociais, constitui erro imaginar que as novas relações de produção se
desenvolvem no vazio e levaram em todas as partes a resultados idênticos. Mais do que uma classe
assalariada, forma-se uma população de assalariados, com uma complexa estratificação, cuja
conformação varia em função de fatores culturais e históricos. As linhas de solidariedade que aglutinam
os subgrupos dessa população estão longe de obedecer a regras fixas, o que explica uma multiplicidade de
discursos ideológicos. Demais, o marco nacional e mesmo o regional, dentro de um país, tenderam
sempre a prevalecer sobre os cortes engendrados pelas relações de produção. As teorias que antecipam
um avanço da consciência de classe no plano internacional fora repetidamente refutadas no correr do
presente século. A estrutura de classe que de maneira geral veio a predominar na Europa industrializada
tem as suas raízes num processo histórico caracterizado pela coexistência de dois sistema de cultura (o
senhorial e o burguês) que se limitavam mutuamente e abriam espaço à ação individual. O individualismo
europeu, ou melhor, a forma como penetram os critérios de racionalidade na vida pessoal e se
dessacralizam as relações do indivíduo com as instituições públicas, somente encontra explicação se se
tem em conta esse dualismo cultural que se apresenta na própria base da europeia. A importância da
herança cultural na configuração da nova formação social resultante da penetração do modo capitalista de
produção quiçá em nenhuma parte seja tão transparente como no Japão. Na sociedade japonesa essa
mutação social realizou sem modificações nos critérios tradicionais de formação de grupos sociais. A
consciência de integrar um grupo hierárquico que projeta a imagem protetora da família tende a
prevalecer sobre a consciência de pertencer a uma classe constituída de indivíduos com os mesmos
atributos profissionais. Daí que até hoje as organizações sindicais sejam o Japão associação de pessoas
que trabalham numa mesma empresa, à qual os trabalhadores, via de regra, se ligam por toda a vida. Que
a empresa japonesa constitua uma organização em que a unidade de propósito prevalece sobre uma nítida
definição de funções e responsabilidades, e por essa forma alcance grau eminente de eficiência, constitui
clara evidência de que a concepção de racionalidade que Sombart e Max Weber imaginaram ser a
essência mesma do capitalismo está longe de esgotar as possibilidades destes. Sobre os critérios de
formação de grupos sociais no Japão veja-se Chien Nakane, Japanese Society (Londres, 1970).

25
onde os industriais recrutavam mão-de-obra estava condicionado por um “preço de
oferta”, o qual refletia o nível de vida da população que permanecia nas atividades pré-
capitalistas. Ora, essa opção entre integrar-se no “mercado de trabalho” e permanecer
nas atividades pré-capitalistas não existia pelo simples fato de que estas últimas estavam
em processo de rápida desorganização, decorrência de transformações na estrutura de
poder. Com efeito: não foi a evolução as forças produtivas que expulsou as populações
dos campos e desmontou as corporações de ofício, e sim a ascensão da burguesia na
estrutura de poder. Não apenas na Inglaterra ocorreu o processo de “cercamentos” com
expulsão da população dos campos, se bem que seja o caso mais conhecido porque dele
ocupou-se Marx. Numa região tão distante dos centros da Revolução Industrial como
foi a Campania italiana, não foi menos radical a expulsão da massa camponesa de seus
sítios e sua transformação em assalariados, conforme o testemunho de primeira mão que
nos deixou Sismondi. O controle do sistema de produção passava das mãos a classe dos
proprietários, que se instalavam na posição de simples rentistas, para as mãos da
burguesia mercantil. As garantias que a tradição e os costumes asseguravam à massa
trabalhadora desapareceram em face do novo sistema de poder que pretendia derivar das
“leis de mercado” sua legitimidade.
Em síntese: o modo capitalista de produção – ou seja, a forma mercantil de
apropriação do excedente aplicada ao controle direto das atividades produtivas –
resultou ser um sistema de poder muito mais eficaz do que as formas autoritárias de
apropriação do excedente eu até então haviam prevalecido em todas as formações
sociais. Demais, o modo capitalista de produção revelou ser a porta aberta ao
aprofundamento da divisão social do trabalho, e por conseguinte, ao avanço da técnica.
Daí que, consolidado o novo sistema de dominação social, o processo de acumulação se
haja intensificado consideravelmente, dando início ao período de extraordinários
desenvolvimento das forças produtivas conhecido como Revolução Industrial.
A difusão do modo de produção capitalista de produção, a partir das regiões em
que primeiro se firmou sua predominância, se bem que processo relativamente rápido,
fez-se de forma muito irregular, em razão da diversidade dos fatores políticos e culturais
que ofereciam resistência à destruição das estruturas pré-existentes. A criação de um
sistema de intercâmbio internacional facilitou a cooperação com grupos locais
beneficiários de um excedente tradicionalmente apropriado por via autoritária. Daí que a
inserção no novo sistema de divisão internacional do trabalho haja resultado em
reforçamento de estruturas tradicionais em certas regiões, numa época em que estruturas
desse tipo sofriam forte erosão nas áreas onde se firmara a predominância do modo
capitalista de produção. As consequentes disparidades no processo de acumulação
viriam a marcar profundamente a história das formações socioeconômicas capitalistas.

A medição do produto social e o sistema de preços

Conhecida a estrutura técnica do sistema de produção e os preços relativos, a mediação


do produto social não apresenta maiores dificuldades.38 O problema adquire outra

38
A busca de um “padrão invariável” para medir o valor constitui problema que se colocam os
economistas desde a época clássica. Ricardo (bem como os seus discípulos, inclusive Marx) pensou
encontrar esse padrão em unidades de trabalho, mas tropeçou com enormes dificuldades para dar caráter a
essa medida. A teoria subjetiva do valor, surgida nos anos 70 do século passado, constitui em grande
parte um esforço para eludir a questão. Avanço considerável nesse terreno resultou da publicação, em
1960, do livro de Piero Sraffa Production of Commodities by means of Commodities. Esse livro forneceu
os elementos para uma crítica mais profunda e pertinente da economia neoclássica, particularmente de sua
teoria da distribuição da renda fundada na chamada função de produção agregada. Na ausência de um
padrão estável de medida, nos pergunta Sraffa, como saber se as flutuações de algum preço particular

26
dimensão quando pretendemos medir os aumentos da produtividade social e identificar
os “fatores” que respondem por eles. Nas formações socioeconômicas em que
prevalecem formas autoritárias de extração do excedente, as mudanças na produtividade
eram por natureza acidentais, não sendo em si mesmas um objeto a que se propusessem
alcançar os agentes responsáveis pela organização da produção. A situação passa a ser
distinta ali onde se desenvolve o intercâmbio como meio de apropriação do excedente.
Os agentes intermediários ao introduzirem a especialização entre grupos sociais ou
regionais provocam elevações de produtividade, das quais se alimenta o excedente que
extraem. Esse problema se coloca de forma ainda mais contundente quando se firma o
modo capitalista de produção. Neste caso a divisão do trabalho não se limita à
especialização, como no caso do intercâmbio de produtos acabados; ela se instala ao
nível dos processos produtivos e abre a porta a consideráveis incrementos de eficiência.
Mais ainda: modifica-se a natureza do trabalho, o qual deixa progressivamente de ser
individual para ser coletivo. Seja porque o trabalho realiza-se em equipe, seja porque o
trabalhador utiliza equipamento em quantidade crescente (o que
A forma simples de resolver esse problema, que está na base da teoria do valor
dos economistas clássicos, consiste em ignorar a diferença qualitativa entre trabalho
individual e trabalho coletivo: 10 horas produziriam dez vezes mais do que 1 homem.39
Ora, na prática essa comparação nem sempre pode ser feita, pois a diferença de
produtividade que decorre da maior destreza permitida pela especialização em tarefas e
da redução do tempo entre tarefas, nem sempre pode isolar do efeito do maior uso de
instrumentos, que implica em maior acumulação prévia. A solução desse problema, que
somente pode ser encontrada no quadro da teoria da organização, já era conhecida dos
romanos como organizadores militares. Os economistas, murados pela visão
individualista, que está na base das teorias microeconômicas tiveram grande dificuldade
em abordá-lo. As duas brechas pelas quais penetra alguma percepção da natureza desse

derivam das peculiaridades da mercadoria, ou do padrão que mede? Ora, como os meios de produção são
mercadorias, como agrega-los sem antes haver resolvido o problema? Portanto o conceito de capital e a
ideia de produtividade do capital, implícitos na função de produção agregada dos neoclássicos, não tem
fundamento lógico. Em realidade, os preços relativos não são independentes da forma como se distribui a
renda. A chave do movimento dos preços relativos, decorrente de uma alteração na taxa de salário, está na
desigualdade das proporções em que se empregam, nas distintas atividades produtivas, o trabalho e os
meios de produção, que sendo mercadorias obedecem às mesmas condições na formação de seus preços.
Sraffa busca a solução do problema na descoberta de uma “proporção crítica” de trabalho e meios de
produção, representativa do conjunto das atividades produtoras do que ele chama produtos fundamentais,
ou seja aqueles cujo preços relativos afetam os preços dos demais. O preço da mercadoria produzida
dentro dessas proporções seria exatamente compensada por uma modificação inversa na taxa de lucro.
Uma vez conhecida essa mercadoria-padrão pode-se traduzi-la em termos de tempo de trabalho, sempre
que de antemão se fixe a taxa de lucro. Essa quantidade de trabalho que seria o “padrão invariável do
valor” somente seria fixa (como pensava Ricardo) se a relação salário-lucro na distribuição da renda se
mantivesse invariável. Para uma apresentação lúcida das ideias de Sraffa veja-se Maurice Dobb, Theories
of value and distribution since Adam Smith, Cambridge University Press, 1973, capítulo 9.
39
Marx a quem om caráter social do trabalho apareceu com clareza, insiste na ideia trabalhador isolado
quando aborda o problema da definição de “trabalho produtivo”. Sobe este ponto ele é enfático,
sublinhando várias vezes as próprias palavras: “Seja que cem pessoas trabalhem conjuntamente, ou cada
uma por si mesma, o valor do produto do seu trabalho é igual a cem dias de trabalho”... “Assim o trabalho
do produto como produtor de valor sempre permanece sempre o trabalho do indivíduo, mesmo que
assuma a forma de trabalho social. Consequentemente trabalho produtivo – trabalho produtor de valor –
sempre confronta o capital como trabalho do trabalhador isolado, quaisquer que sejam as formas como se
combinem os trabalhadores no processo produtivo.” (Teorias da Mais-Valia, Tomo IV de O Capital,
edição em inglês publicada em Moscou 1969, volume I, pp. 393-394). Compreende-se a insistência se se
tem em conta que Marx tinha em vista derivar a mais-valia absoluta diretamente do número de horas da
jornada de trabalho do trabalhador individual, o que tornava fácil (pelo menos para fins expositivos)
medi-la e dar uma expressão quantitativa ao “trabalho não pago”.

27
problema são as ideias de “economias de escala” e de “economias externas”, ideias
essas que continuam em nossos dias acampadas fora do campo principal de teorização
dos economistas.
Se é certo que a diferenciação de tarefas entre os membros de uma sociedade é
importante fator de aumento da produtividade social; não é menos que a partir de certo
ponto no desenvolvimento das forças produtivas os aumentos de produtividade
passaram a apoiar-se essencialmente na divisão intertemporal do trabalho, ou seja, a
acumulação. O que chamamos de progresso técnico tem suas raízes na diferenciação de
funções, como já observaram os enciclopedistas do século dezoito. Os extraordinários
avanços na divisão do trabalho em tarefas, que nos descreve Adam Smith são
evidentemente uma forma de progresso técnico. Mas uma mudança qualitativa ocorre
quando esses avanços passam a apoiar-se principalmente no uso de instrumentos, pois é
a partir desse momento que se afirma a crescente importância da divisão intertemporal
do trabalho. A divisão em tarefas encurta o tempo requerido para produzir um produto e
a divisão intertemporal integra passado e presente nos processos produtivos.40
Com a predominância do modo capitalista de produção o trabalho transforma-se
cabalmente em um processo social, sendo a atividade prévia do todo. Contudo, para fins
de remuneração esse mesmo trabalho é considerado como algo perfeitamente divisível,
cada tarefa possuindo uma existência própria, cada trabalhador como sendo dotado de
uma produtividade específica. Marx percebeu essa dicotomia, quando introduziu a
diferença entre “trabalho abstrato” e “força de trabalho”. O trabalho abstrato seria a
verdadeira fonte do valor, portanto de natureza social.41
Na economia capitalista uma separação arbitrária, trabalho-processo-social e
trabalho-fenômeno-individual é introduzida mediante o sistema de preços. A penetração
do modo capitalista de produção, conforme vimos, privou uma parte da população de
sua fonte tradicional de emprego, deixando-a à mercê dos novos “criadores de
empregos”. Estes fixaram historicamente a taxa de salário tendo em contra a eficiência e
as condições de vida do trabalhador isolado (camponês ou artesão), o que permitia
transformar em excedente a totalidade dos aumentos de produtividade que decorriam da
nova organização social do trabalho. Desta forma, a organização tradicional da
produção, baseada na especialização simples, serviu de base para a fixação da
remuneração de produção, que se assinala por um rápido aumento da produtividade
social. O salário do trabalhador é, portanto, exógeno à organização da produção:
constitui um dado, que o capitalista deve ter em conta. A cesta de bens que corresponde
a esse salário, traduzida em termos monetários, constitui a unidade de base de todos os
cálculos do organizador da produção.
A ideia de que o salário de um trabalhador está ligado à produtividade especifica
desse trabalhador constitui uma das ficções mais curiosas da economia neoclássica. Em
um sistema de produção altamente diversificado, no qual todos os elementos são
interdependentes, a interrupção de uma tarefa, tem efeito sobre o conjunto, sendo

40
Uma das contribuições importantes da obra de Sraffa foi chamar a atenção para o fato de que essa
divisão intertemporal do trabalho não obedece a nenhuma linearidade, o que permitiu demonstrar que não
existe relação monotônica entre intensidade de capital e taxa de lucro. Cf. Production of Commodities by
Means of Commodities, p. 15.
41
O estudo da mercadoria, que aparece no primeiro tomo de O Capital, é certamente uma das
contribuições mais originais da obra de Marx. Aí se põe em evidência a importância na formação social
capitalista de mascarar o caráter social do trabalho e de apresentar a apropriação privada do seu futuro
como regulada por leis naturais. As inferências que ele faz desse ponto são, contudo, de interesse quase
exclusivo para o estudo da ideologia burguesa e a alienação do trabalho. Ao descer à análise econômica,
Marx permanece preso ao esquema ricardiano, tentando relacionar diretamente (produto do trabalho
social) ao esforço individual do trabalhador, medido em horas, conforme comprovamos na nota 39.

28
impossível estabelecer a priori se determinada tarefa é mais importante do que outra.
Raciocínio similar pode ser feito com respeito a um subsistema, ou setor da atividade
econômica, e também com respeito a uma simples empresa, que pode ser paralisada
total ou parcialmente pelo desarranjo de uma máquina. A rigor, a produtividade do
trabalho somente pode ser medida com respeito ao conjunto da força de trabalho de uma
economia.42
A medição do produto do trabalho em um subsetor determinado, seja este
complexo como uma usina de automóveis ou simples como uma barbearia, somete pode
ser feita a partir de um sistema de preços. Como a remuneração do trabalhador se
comporta como fator exógeno, produto das forças que determinam o custo de
reprodução da população, cabe ao sistema de preços desempenhar a função de regulador
da repartição do excedente (excluída a parte apropriada por meios institucionais) em
função da acumulação previamente realizada nas unidades produtivas (perequação da
taxa de lucro).
Se bem que a produtividade seja um fenômeno social, reflexo da evolução do
conjunto das atividades produtividades, o progresso técnico manifesta-se de forma
irregular entre estas atividades. A acumulação vetor desse progresso técnico, assume
diversas formas: em uns casos favorece difusamente todas as atividades, como acontece
com os serviços públicos infraestruturais; outras vezes assume a forma de
aprofundamento da divisão intertemporal do trabalho numa atividade determinada
(elevação da dotação de capital por trabalhador), ou ainda se manifesta principalmente
incorporada à força de trabalho, caso dos serviços altamente especializados. Em razão
da descentralização que caracteriza a organização do processo produtivo capitalista, a
forma irregular como penetra o progresso técnico afeta a apropriação o excedente,
favorecendo uns grupos em detrimento de outros.
Uma inovação técnica pode colocar um produtor em posição privilegiada, da
mesma forma que a construção de uma estrada pode favorecer certa região. Contudo, o
sistema de preços reduz progressivamente as discrepâncias que vão surgindo, pois a
acumulação tende a reduzir-se nas atividades que se tornam ocasionalmente menos
rentáveis.
A tradição econômica ancorada na ideia de “fatores da produção” prepara-se
para pensar em termos de produtividade isolada de cada fator, e de um produto social
que seria a soma final dos “produtos parciais” desses fatores.43 O debate em torno da
“distribuição da renda”, intensificado no último decênio, ao dar ênfase à dicotomia
remuneração do trabalho-remuneração do capital, ou taxa de salário-taxa de lucro, de
alguma maneira enquadra-se nesse enfoque tradicional. Se partimos não da ideia de
fatores mas de forças produtivas organizadas em um sistema social, cuja estrutura só
muito vagamente pode ser descrita numa matriz de input-output, o problema

42
Sempre é possível comparar a produtividade (destreza) de um trabalhador com a de outro que realiza
tarefa similar. Neste caso o padrão de medida foi pré-estabelecido. Esse problema escapa ao analista
microeconômico, pois desde que se admite que os preços estão dados pelo mercado, a produtividade
passa a ser um reflexo dos custos de produção. Mas se temos em conta que os preços relativos não são
independentes da taxa de salário e que não existe relação monotônica entre taxa de lucro e intensidade do
capital, vemos que o problema é bem mais complexo. No texto apenas se procura chamar a atenção para o
fato de que em um sistema todos os elementos são ou podem ser importantes, e que as disparidades dos
agentes (e portanto as produtividades relativas) resultam em grande parte de fatores não-econômicos. Os
diferenciais de salário variam consideravelmente entre os países capitalistas desenvolvidos, o que se deve
a fatores históricos e culturais.
43
Esse enfoque tem a “vantagem” de permitir traduzir o processo de produção sob a forma de uma função
matemática, podendo o arranjo dos fatores ser apresentado elegantemente como um sistema de equações
diferenciais parciais.

29
fundamental passa a ser o do destino final do fluxo de bens e serviços que jorra
continuamente desse sistema de produção, vale dizer, o da apropriação do produto
social.
A ideia de que os trabalhadores vendem livremente a sua força de trabalho, a
ênfase dada aos aspectos contratuais da relação de emprego, são parte de um discurso
ideológico, ligado a certa concepção individualista da sociedade, que se satisfaz com
uma descrição externa da complexa realidade social. O fundamental é que a massa da
população está inserida no sistema social de produção, para o qual é meticulosamente
preparada. Os trabalhadores manuais são em sua quase totalidade filhos de
trabalhadores manuais, nascidos em certos ambientes e condicionados por uma herança
cultural para adotar certas formas de comportamento. A socialização ao nível da família,
da escola, do bairro prepara-os para inserir-se de determinada forma no sistema de
produção. A existência de certo grau de mobilidade social, necessária ao funcionamento
da economia capitalista, não impede que determinado padrão de reprodução social seja
assegurado.
A primeira pergunta que devemos colocar-nos é a seguinte: dentro de que
margens participam da apropriação do produto social os trabalhadores manuais, ou seja,
os indivíduos que por desempenharem as tarefas mais simples, mais facilmente podem
ser substituídos uns pelos outros? A resposta a esta pergunta não ode ser dada em
termos puramente abstratos, ignorando-se os condicionantes históricos e culturais. Nos
países em que o nível de vida da população era relativamente elevado, no momento em
que o modo capitalista de produção veio a predominar, a taxa de salário foi e tendeu a
permanecer elevada. Sem um conhecimento da história e do quadro institucional
dificilmente se poderiam explicar as diferenças na apropriação do produto, no que
respeita à participação da massa trabalhadora, entre países como a Inglaterra e a
Austrália, a Alemanha e o Japão.
Mas esse fundo histórico e cultural cobre apenas uma parte do quadro. Não
menos importante é o estudo da forma de organização da classe trabalhadora e sua
expressão política. A luta dos trabalhadores para elevar os salários reais enfrenta, numa
economia em que os preços são em boa parte administrados pelas empresas, a barreira
inflacionária. As vitórias obtidas ao nível do salário monetário são muitas vezes
anuladas pela elevação do nível geral de preços. Por esta razão, a participação no
controle do Estado tem sido essencial para efetividade à ação das organizações
trabalhadoras em sua luta para elevar o salário real relativamente à produtividade social.
A taxa de lucro que aparece nas discussões sobre repartição da renda é entidade
bem mais ambígua do que a taxa de salário do trabalhador manual. Em primeiro lugar
cabe considerar a parte do produto que é a apropriada pelos rentistas, isto é, pelos
portadores de títulos financeiros de renda fixa, e pelas instituições públicas ou privadas
que estão capacitadas para criar liquidez. A taxa de juros é inicialmente de caráter
institucional, sendo a expressão de uma relação de forças; só secundariamente e a traduz
a ação dos outros fatores, como modificações na oferta de poupança ou no nível da
atividade econômica. Aqueles que podem criar liquidez e/ou administram os ativos
líquidos e semi-líquidos da coletividade (frequentemente captados compulsoriamente),
dispõem de considerável poder. Um banco se assemelha muito mais a um cartório do
que a uma empresa marshalliana. Nas sociedades modernas esse poder é utilizado pelo
Estado para alcançar múltiplos objetivos que não bem ao caso agora discutir. Essa
multiplicidade de objetivos, às vezes contraditórios, respondem pela variedade de taxas
de juros reais que se observa nas economias capitalistas contemporâneas. Também
podem ser consideradas rentistas, para os fins que aqui temos em vista, as pessoas que

30
possuem uma carteira de ações mas não interferem na administração das empresas cujo
capital participam.

Mas a taxa de lucro não se confunde com a taxa bancária de juros, bem com a
taxa de dividendo administrada pelas empresas para satisfazer os pequenos acionistas. A
verdade é que as empresas apropriam-se de parcela importante do produto social, graças
às distintas formas de poder que em graus diversos exercem. O grau de monopólio a
que se referiu Kalecki é um conceito suficientemente amplo para servir de referência
geral. Mas seria simplificar demasiadamente a análise imaginar que as empresas
disputam o produto do que se apropriam apenas aos seus próprios trabalhadores. Na
medida em que “administram” preços elas provocam transferências de renda de tipos
vários. Em certas circunstâncias podem anular uma elevação do salário real, ponto sobre
o qual com razão insistiu Keynes. Como efeito indireto dessa anulação do salário real
(elevação do nível geral de preços) podem reduzir a parcela do excedente de que se
apropriem os portadores de títulos de renda fixa. Também estão em condições de
provocar transferências entre empresas, em função da posição estratégica que ocupa
cada uma, e ocasionalmente de reduzir a parte do excedente de que se apropria o Estado
e outros grupos sociais. A teoria da empresa em abstrato não tem mais valor do que um
exercício de lógica. Importa identificar em cada formação social, capitalista ou não, as
formas que assume a organização da produção e as formas da produção e as formas de
poder subjacentes à ação das empresas.
Se observamos o produto social em seu conjunto, vemos que grande parte do
mesmo se apresenta sob a forma de salários, ordenados e honorários que dão origem a
rendas pessoais superiores ao salário do trabalhador manual. Ter acesso ao excedente
como assalariado ou profissional liberal também significa participar da estrutura de
poder. O analista corrente da distribuição da renda pretende, ainda que de maneira
implícita, que a parte considerável do produto social apropriado por esses grupos
corresponde a “remuneração de um trabalho” ou é contrapartida da “prestação de um
serviços”, como se houvesse alguma razão econômica para que um tabelião ou um
agente de publicidade receba uma remuneração dez vezes maior do que a de um
professor e quiçá trinta vezes maior do que a de um trabalhador manual.44
Por último cabe considerar o Estado, instituição que mediante o instrumento do
crédito, do câmbio e do fisco, ou ainda arbitrando na política de salários e preços, ou
ainda desapropriando, pode a todo instante interferir e modificar a apropriação do
produto social.
A contabilidade social corrente, traduzida sob a forma de um sistema de
“equações de custo” desvia a atenção do conteúdo substantivo do produto social para
fixá-la em algo que não pode ser definido sem de antemão conhecer-se o sistema de
preços relativos. Ora, estes preços não são independentes das relações de forças que
estabelecem os diferenciais de salários, as taxas de juros e outros muitos elementos da
“repartição da renda”. Ao medir o produto ao nível do “custo dos fatores” estamos
traduzindo o resultado do trabalho da coletividade na linguagem de um determinado
sistema de valores, que também é um sistema de dominação social. Assim, se os
alugueis se elevam em termos relativos, porque os proprietários de terrenos urbanos
aumentam o seu poder, modifica-se a estrutura do “custo” do produto social.

44
Os autores que pretendem explicar os diferenciais de salários pela escassez relativa de profissionais,
esquecem de que a oferta de profissionais também é controlada, como no caso dos médicos nos Estados
Unidos. Ali onde não existe tradição corporativa, como no Japão, os diferenciais são consideravelmente
menores.

31
Contudo, o sistema de preços constitui valioso instrumento para medir a
apropriação do excedente. Com efeito: a remuneração dos agentes de publicidade e dos
tabeliães não corresponde à participação deles no custo do produto, se adotarmos um
critério qualquer de interesse social, mas constitui uma indicação válida da participação
dos mesmos agentes na apropriação do produto social. Se o cálculo do custo de
reprodução deve ser feito a partir de dados objetivos, referentes a uma cesta de bens a
que tem acesso o trabalhador manual, a apropriação do excedente deve ser estimada
com base nos preços relativos praticados nos mercados.

O excedente no quadro das relações econômicas internacionais

Quando observamos o conjunto das economias capitalistas, constituído por economias


nacionais que se articulam entre si mediante formas várias de intercâmbio e nas quais se
difundiu em graus diversos o modo capitalista de produção, constatamos considerável
heterogeneidade estrutural, reflexo de disparidades nos graus de acumulação e na fora
assumida pela mesma.
A causa básica dessa heterogeneidade deve ser buscada na forma como se
difundiu o modo capitalista de produção. Já observamos que à penetração do
capitalismo – apropriação doe excedente mediante o intercâmbio – na organização da
produção, resultou da predominância de certo tipo de dominação social, sendo o nível
de acumulação previamente alcançado causa indireta e de ordem geral. A ascensão da
burguesia à posição hegemônica na estrutura de poder – ocorrida paralelamente a
modificações na natureza mesma do sistema de poder, que parcialmente se
descentralizava e disfarçava nos “mecanismos econômicos” – abriu a porta ao
desenvolvimento explosivo das forças produtivas. Sobra afirmar que a burguesia não
teria ascendido à posição hegemônica sem um amplo processo prévio de acumulação.45
Mas acumulação não significa necessariamente desenvolvimento das forças produtivas,
não sendo possível comprovar historicamente que por si mesma, como simples

45
A intensificação do processo de acumulação ocorrido na Europa nesse extraordinário “século XVI” –
período que na linguagem de muitos historiadores contemporâneos se estende do último quartel do século
XV até o segundo do século XVII – durante o qual os europeus reagem ao bloqueio otomano, lançando-se
na aventura transoceânica, é dos temais mais fascinantes com que se depara o estudioso da história.
Sabemos hoje que na Europa Ocidental a pressão demográfica havia alcançado nível considerável (dada a
técnica utilizada) a começos do século XIV. Também sabemos que a Peste Negra (1347-1350) não foi
fenômeno isolado, pois dizimou uma população que vinha atravessando um longo período intermitente de
fomes. Dados mais precisos sobre a Inglaterra indicam que a baixa da população até fins do século XIV
foi de 44 por cento. Na França a baixa demográfica teria sido da ordem de 50 por cento. No último
decênio desse século, os turcos-otomanos ocupam os Balcãs e selam o destino de Constantinopla. Tudo
pronunciava um ocaso para a Europa Ocidental, após o longo período de crescimento demográfico e
prosperidade econômica que se prolongara do século XII até o começo do XIV. Ora, o que veremos é
esse verdadeiro salto que constitui o longo século XVI. À explicação desse período maravilhoso da
aventura humana não serão estranhos dois fatos. O primeiro, de natureza política, já referido na nota 26,
consistiu em que as tensões sociais surgidas nessa época nas zonas urbanas encontraram uma solução
construtiva que levaria à formação do estado-nação. O segundo, de natureza econômica, foi o aumento da
produtividade agrícola que resultou da redução considerável da área cultivada. Se se tem em conta que
entre os séculos XIII e XVIII praticamente não houve na Europa modificações nas técnicas agrícolas,
compreende-se a importância que teve durante esse longo período a relação homem-terras de boa
qualidade, para a formação de um excedente. No período de declínio demográfico que estamos referindo
houve elevação do salário real, mas é provável que o aumento do excedente por trabalhador haja sido
ainda bem maior. Essa maior disponibilidade de recursos para acumular teria permitido aos estados
nacionais emergentes financiar expedições, criar indústrias, enfim abrir o período mercantilista e lançar as
bases que viabilizariam a revolução burguesa.

32
mudança de quantidade em qualidade, ela haja provocado mutação no sistema de
dominação social no sentido do que se conhece como revolução burguesa.46
A ampliação do excedente, nas regiões onde se implantava o modo capitalista de
produção, criou condições para uma grande expansão do intercâmbio com outras
regiões. Desta forma, ao mesmo tempo que adquiria espessura, ou se desenvolvia
verticalmente em certas áreas, o capitalismo aumentava sua capacidade expansiva
horizontal, o que permitia incorporar novas áreas aos seus circuitos comerciais. Os dois
processos de expansão do capitalismo – vertical em certas áreas e horizontal no
conjunto – estavam interligados, condicionando-se mutuamente. Assim a Inglaterra ao
“abandonar” sua agricultura impulsionou as próprias atividades comerciais o que teve
como contrapartida aprofundar a industrialização interna.
Interessa assinalar a forte expansão internacional do capitalismo mercantil, que
decorreu do aumento do excedente nas áreas em que teve lugar a revolução industrial,
não foi acompanhada de uma difusão paralela do modo capitalista de produção. Essa
difusão se faria em função de fatores históricos específicos, como a emigração de
populações europeias, as reações de burguesias locais opulentas que começavam a
perder terreno, a ação deliberada do Estado, ou ainda deslocações nas estruturas de
poder provocadas pela instabilidade da nova economia internacional.47 Em muitas
regiões, pelo menos numa primeira fase, a expansão do intercâmbio externo fez-se sem
modificações de real significação na organização interna da produção, continuando o
excedente a ser apropriado essencialmente por via autoritária. As velhas formas de
dominação social fundadas no controle da terra e mesmo no controle direto da
população (escravidão e formas apenas disfarçadas de servidão) sobreviveram e em
certas regiões puderam mesmo ser reforçadas. Contudo, a crescente importância do
intercâmbio como forma de captação do excedente viria a refletir-se nas estruturas de
poder. E as transformações sociais que trazia consigo a intensificação do intercambio
engendravam um processo de acumulação sob a forma de urbanização e de
modificações no estilo de vida, independentemente de evolução das forças produtivas.

As situações que vimos de referir origem a perfis de acumulação marcados por


considerável atraso relativo no desenvolvimento das forças produtivas, vale dizer da
forma de acumulação que constitui o vetor do progresso técnico no sistema de
produção. Os incrementos de excedente permitidos pela inserção nos novos circuitos
comerciais alimentaram novas formas de consumo de grupos privilegiados conduzindo
ao que posteriormente se chamaria de processo de modernização.48 Consideremos o

46
Antes da penetração do capitalismo na organização da produção manufatureira, o processo geral de
acumulação era extremamente lento, sendo imperceptível quando observado do ângulo de uma geração,
tanto mais que, em razão da curta expectativa de vida, as gerações se sucediam com rapidez. Contudo,
ocorria que a acumulação se intensificasse ocasionalmente numa região particular como decorrência da
abertura de novas linhas de comércio de descoberta de novas fontes de metais preciosos e fatores
similares. Essa acumulação assumia em grande parte a forma de entesouramento e de investimentos
produtivos. Assim, a descoberta do ouro no Brasil a começos do século XVIII permitiu que se
intensificasse a acumulação em Portugal, a qual assumiu quase exclusivamente a forma de edificações de
monumentos, construções urbanas e coisas similares. O efeito dessa rápida acumulação na evolução das
forças produtivas foi nulo.
47
Esse problema é geralmente estudado sob o ângulo do atraso no processo de industrialização. Veja-se
neste livro o ensaio O Capitalismo Pós-Nacional.
48
O conceito de modernização implica a noção de homogeneização, ou seja, de semelhança crescente
com respeito a um padrão de sociedade aceito implicitamente como modelo. Na linguagem de um
sociólogo, entende-se por modernização “the process of social change whereby less developed societies
acquire caracteristcs common to more developed societies”. David Lerner, “Modernization: Social
Aspects”, in International Encyclopedia of Social Sciences, direção de D. L. Sills (New York, 1968) 10:

33
caso clássico de um excedente criado mediante a exportação de produtos agrícolas, isto
é, como decorrência de inserção no intercâmbio internacional sem prévia penetração do
modo capitalista de produção. Esse excedente era parcialmente apropriado do exterior
mas também beneficiava grupos locais, proprietários de terra ou intermediários
comerciais ou financeiros. O enfoque corrente do economista leva-o a pensar que era, as
elevações de renda dos grupos locais beneficiários que causavam transformações do
consumo abrindo a porta à assimilação pelas classes dominantes de novos padrões de
vida. Como sempre ocorre o processo histórico era mais complexo e a linha de
causalidade difícil de identificar. A rápida expansão do intercâmbio tinha seu elemento
motor nos aumentos de produtividade física que estavam ocorrendo nas áreas em que
penetrava o modo de produção capitalista. E eram os novos produtos surgidos das
transformações nas formas de produzir que serviam de ponta de lança para abrir as
novas linhas de comércio. Desse contato entre uma cultura orientada para a expansão e
a inovação e outras orientadas para a tradição, surgiu um forte efeito de dominação da
primeira sobre as segundas, que tenderam a aspirar a reproduzir os padrões de consumo
da primeira. A explicação para esse processo pode ser buscada em muitos lados, mas
qualquer que ela seja não poderá deixar de ter em conta que a cultura que primeiro que
ela seja não poderá deixar de ter em conta que a cultura que primeiro se apoiou no modo
capitalista de produção instalou-se num mais rápido processo de acumulação, o que
significava inter alia poder impor pela força o intercâmbio e com ele os seus produtos.
Em síntese: a formação de um sistema de divisão internacional do trabalho não foi
apenas uma questão de abertura de novas linhas de comércio, mas também, e de
maneira principal, a imposição de padrões de cultura, os quais condicionariam
subsequentemente o processo de acumulação, pois a industrialização nessas regiões se
realizaria para “substituir” importações.

Fizemos referência ao fato de que as economias nacionais que constituem o


sistema capitalista apresentam disparidades estruturais, ligadas aos distintos níveis de
acumulação que apresentam e também à forma que assumiu a acumulação ali onde o
processo de dominação cultural antecedeu à penetração do modo capitalista de
produção. Compreende-se, portanto, que o custo de reprodução, ou seja, o nível de vida
da massa da população variara consideravelmente, mais ainda do que o nível de
acumulação. Exclui-se, portanto, a possibilidade de introduzir uma cesta de bens capaz
de servir como unidade de medida do custo de reprodução da população em escala
internacional.49 Cada sociedade nacional, a partir de seu próprio sistema de dominação
interna, estabelece o seu custo de reprodução. Com respeito ao conjunto das formações

386. Evidentemente a ideia de desenvolvimento social comporta mais de uma ambiguidade, se


pretendermos ir um pouco mais longe do que nos permite o funcionalismo com seus conceitos de
diferenciação, especialização e integração. Interessa reter que na modernização existem relações
assimétricas, que dificilmente se explicam fora de um quadro estrutural de dominação-dependência.
49
A doutrina do “intercâmbio desigual” está construído sobre a hipótese simplificadora de que é possível
dispor dessa medida comum. Para obtê-la volta-se a idea ricardiana de medir o valor a partir de unidades
físicas de trabalho individual e rompe-se o quadro ricardiano de imobilidade internacional de fatores,
admitindo-se a mobilidade do capital. A isso se acrescenta a ideia de que o trabalho individual onde quer
que seja realizado tem a mesma capacidade produtora de valor, portanto que ele é uma realidade que pode
ser entendida em todos os seus aspectos fora do contexto social. Marx, que se manteve tão perto de
Ricardo toda vez que se tratava de medir o valor, preveniu-se contra esta última simplificação insistindo
em que a medida do valor era quantidade de trabalho “socialmente necessária” para produzir o bem. As
teses fundamentais da doutrina do intercâmbio desigual encontram-se em A. Emmanuel, L’échange
inégal, segunda edição, Paris, 1975. Uma análise de pontos controvertidos do livro de Emmanuel, cuja
primeira edição apareceu em 1969, encontra-se em S. Amin, L’échange inégal et la loi de la valeus
(Paris, 1967).

34
socioeconômicas capitalistas não tem sentido definir o custo de reprodução da
população. Contudo, existe um excedente que corresponde especificamente às
atividades econômicas internacionais.
O intercâmbio de produto entre países tem como fundamento último as
vantagens da divisão social do trabalho, a diversidade na base de recursos naturais e os
obstáculos que se criam à mobilidade de mão de obra. A essas causas primárias
adicionou-se a crescente disparidade nos níveis de acumulação entre países, que
caracteriza o desenvolvimento da economia capitalista, fato de influência decisiva na
composição atual do intercâmbio internacional. Como a razão de ser todo intercâmbio é
o aumento da produtividade, cabe inferir que às transações internacionais corresponde a
formação de ume excedente e/ou a elevação do nível de vida da massa da população em
algum ou na totalidade dos países que participam do referido intercâmbio. Deste ponto
de vista, o intercâmbio entre países não é distinto do que existe entre grupos sociais ou
regiões de um mesmo país. A diferença surge quando observamos o efeito da elevação
de produtividade no custo de reprodução da população, pois a economia internacional se
apresenta a este respeito como um sistema de compartimentos estanques, e também na
dinâmica da apropriação do excedente. Ainda que minorados, estes fenômenos também
se apresentam internamente nas chamadas economias subdesenvolvidas, em razão de
sua heterogeneidade estrutural.
O excedente criado dentro de um país em decorrência do intercâmbio
internacional varia em função da pressão que se exerce nesse país para elevar o custo de
reprodução da população em face de aumentos na produtividade. Ora, esses aumentos
de produtividade somente se concretizam depois que se estabelecem os preços relativos
internacionais. As força responsáveis por estes preços determinam, em última instância,
os incrementos relativos de produtividade nas economias que participam do
intercâmbio. Quando a pressão no sentido de elevar o custo de reprodução é maior, a
margem de manobra na fixação dos preços internacionais é menor. Em outras palavras:
nas economias em que o custo de reprodução reage lentamente em face de incrementos
na produtividade, o intercâmbio externo engendra potencialmente um maior excedente.
Sintetizando: o intercâmbio externo permitindo aprofundar a divisão social do
trabalho e utilizar mais cabalmente a base de recursos naturais, põe e macha um
processo de elevação da produtividade nas economias que dele participam. Parte do
fruto desse incremento de produtividade tende a ser absorvida pela elevação do custo de
reprodução ou uma ou várias das referidas economias. O remanescente dá origem a um
excedente que é repartido em função das forças que comandam os preços nos chamados
mercados internacionais. Esse excedente intertemporal somente pode ser medido após
haver sido apropriado dentro de cada país. Como a unidade de medida em cada país é
diversa (o custo de reprodução refere-se especificamente a uma formação
socioeconômica), não tem sentido somar os excedentes criados em vários países pelo
intercâmbio externo. A evolução dos termos de intercâmbio é apenas uma indicação de
que determinado país está melhorando ou piorando sua posição na apropriação do
excedente internacional. Como a mesma cesta de bens tem uma significação econômica
diversa em dois países, os benefícios do intercâmbio externo somente podem ser
medidos dentro de cada economia isoladamente.

Advento das atividades transnacionais

As chamadas empresas transnacionais constituem importante inovação na organização


das relações entre formações socioeconômicas, particularmente no que respeita às
técnicas de transferência internacional do excedente. Dizem-se transnacionais as

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atividades econômicas que estão organizando, ao nível da produção, num espaço que
compreende vários países, obedecendo a uma unidade de comando. Essas atividades são
em geral diversificadas, mas se estruturam em torno de um ou mais núcleos em que o
grupo ocupa uma posição forte no plano tecnológico. Uma vantagem tecnológica –
compreendida no sentido amplo que inclui técnicas de comercialização e de controle da
informação – significa poder criar-se uma renda de produtor a qual, à igualdade de
outros fatores, cresce em função da dimensão e do número dos mercados em que atua o
grupo.
As atividades internacionais propriamente ditas são de natureza mercantil:
referem-se ao intercâmbio de produtos que permite a extração de um excedente no
quadro de operações de mercado. Na atividade transnacional o processo produtivo é
organizado de forma a utilizar recursos que permanecem integrados em distintas
economias nacionais. Os chamados “investimentos diretos estrangeiros” constituem
evidentemente uma fase intermediária entre as atividades inter e as transnacionais. No
investimento direto a atividade produtiva é comandada de fora, mas permanece
integrada no sistema produtivo local. A mudança fundamental dá-se quando a própria
atividade produtiva é dividida em “processos” que se localizam em distintos países. A
empresa cuja descentralização internacional se limita a processos simples, como a
embalagem ou mesmo a montagem de um produto, pratica uma primeira forma de
transnacionalização. Nas formas superiores os recursos de diversos países são
integrados na produção de um bem ou serviço que se destina ele mesmo a diversos
mercados nacionais. Trabalho especializado e não especializado são separados em
função de sua abundância relativa nos países em questão e a tecnologia é utilizada para
facilitar a combinação de equipamento altamente sofisticado com a mão de obra não
especializada.
A atividade transnacional é um aprofundamento da divisão do trabalho no
sentido de que ela substitui operações internacionais mercantis, ao nível de produtos,
por outras, ao nível de recursos produtivos, que obedecem a uma unidade de comando.
Sua principal significação está em que ela contribui para reforçar o poder dos grupos
que controlam a produção, ao mesmo tempo que permite planejar a produção num
espaço plurinacional. Do ponto de vista de um país que participa de uma atividade
transnacional, esta significa basicamente a exportação do “serviço de um fator”,
digamos de mão de obra não especializada, cujo preço se define no mercado interno de
trabalho. Ora, esta mão de obra, no quadro da atividade transnacional, substitui outra em
um país de custo de reprodução mais elevado, se se toma como ponto de referência o
produto final obtido. A organização transnacional da produção pode, ocasionalmente,
aumentar os custos de transportes e mesmo reduzir a produtividade física do trabalho
em certos processos, sem que isso a impeça de acrescentar à capacidade do grupo. Mais
ainda, ela permite reduzir a pressão no sentido de elevação do custo de reprodução nos
países em que a classe trabalhadora alcançou mais alto grau de organização. Portanto, as
atividades transnacionais constituem um meio de manter elevado excedente ali onde
fatores endógenos pressionam no sentido de aumento relativo do nível de vida da massa
da população. Tudo indica que a transnacionalização da produção tende a transforma-se
em fator decisivo na luta pela preservação dos sistemas de dominação social fundados
no modo capitalista de produção, particularmente nos países que mais avançaram no
processo de acumulação.
Vamos admitir que conforme as tendência atuais, continuem a ampliar-se em
termos absolutos e relativos as atividades transnacionais. A mão de obra tenderá
portanto, a ser utilizada de preferência ali onde e menor a pressão no sentido de
elevação do custo de reprodução. Em consequência, o horizonte de possibilidades de

36
combinação de recursos produtivos se amplia, a divisão social do trabalho aprofunda-se
e a produtividade aumenta. Tudo isso contribui para reforçar o sistema de dominação e
portanto para ampliar o excedente. Concomitantemente, acelera-se a difusão
internacional do modo capitalista de produção. Se em consequência dessa evolução
toma corpo uma solidariedade efetiva entre os trabalhadores das diversas economias
nacionais em que se inserem as atividades referidas, poder-se-á falar da emergência de
uma formação socioeconômica transnacional, ainda que estruturalmente heterogênea.
Os espaços econômicos plurinacionais atualmente existentes, como o mercado comum
europeu, constituem uma pré-figuração dessas novas formações socioeconômicas.
Contudo, em razão das rigidezes estruturais, particularmente dos obstáculos criados à
mobilidade da mão de obra, o mais provável é que os efeitos da transnacionalização se
façam sentir principalmente no sentido de uma difusão mais rápida dos sistemas de
cultura dominantes e do reforçamento das respectivas estruturas de poder.

Perfil da acumulação e dependência externa

A difusão do modo capitalista de produção constitui, certamente, um dos aspectos


menos estudados da historia contemporânea. Essa difusão realizou-se no quadro de um
sistema de divisão internacional do trabalho, o que significa que foi sempre precedida
de expansão do capitalismo mercantil e de criação ou reforçamento de vínculos
externos. Contudo, as formas que ela assumiu não podem ser compreendidas
independentemente do conhecimento de fatores que são específicos de cada sub-região:
vínculos externos pré-existentes, herança cultural e sistemas internos de poder, relação
entre população e certos recursos naturais, etc., fatores que marcam as novas formações
sociais capitalistas. Algumas vezes o capitalismo mercantil imposto pelo sistema de
divisão internacional do trabalho pode expandir-se apoiado num excedente extraído
autoritariamente, inclusive mediante formas de escravidão, o que contribui para um
atraso subsequente na penetração do modo capitalista de produção. Outras vezes, como
ocorreu ali onde se implementaram enclaves mineiros ou agrícolas, a penetração do
modo capitalista de produção ficou circunscrita a certas áreas, sem maiores reflexos na
forma de organização da produção nas regiões circundantes.
Se a expansão do capitalismo mercantil internacional antecedeu, de maneira
geral, à penetração do modo capitalista de produção, não é menos certo que foi graças a
essa penetração que se criou o considerável excedente que alimentou a subsequente
expansão da economia internacional. A resistência oferecida, sob várias formas, pelas
populações locais, à mudança no modo de produção não é assunto que haja preocupado
os economistas. Contudo, aí estão aspectos fundamentais da história social
contemporânea, essenciais para a explicação da diversidade que assumem as formações
sociais capitalistas atuais. É dessa ótica que cabe estudar o colonialismo do século
dezenove, sempre ligado a uma ofensiva de aculturação e de desorganização das
estruturas sociais dos povos submetidos. O mesmo se pode dizer com respeito à
ascensão do latifundismo na América Latina, no período que se sucede à consolidação
dos novos estados nacionais. Do ponto de vista das populações, a mudança do modo de
produção significava frequentemente a introdução de um elemento de insegurança com
a ruptura ou diluição de vínculos de solidariedade comunitários e familiares. Mas sem
essa ruptura não era possível obter a rígida disciplina do trabalho que buscavam os
novos organizadores da produção. Nas regiões onde a população continuava em grane
parte enquadrada num sistema tradicional de cultura, como era o caso do México, foi o
necessário privá-la da terra, meio de subsistência milenar, para fazê-la aceitar a nova
disciplina social. Em outras palavras, a repressão à “vagabundagem”, o recrutamento

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militar, o extermínio direto dos índios e o acaparamento de terras públicas foram
amplamente utilizados com o mesmo objetivo. O latifundismo latino-americano do
século dezenove é, portanto, a expressão do poder de grupos ligados ao capitalismo
internacional em expansão.

Dessa forma, a penetração do modo capitalista de produção resultava da ação de


forças sociais empenhadas em criar ou ampliar um excedente. A maior produtividade
física do trabalho e a possível redução do custo de reprodução da população se
somavam às vantagens comparativas proporcionadas pela especialização no intercâmbio
externo. Nenhuma relação existia, portanto, entre o desenvolvimento prévio das forças
produtivas e a nova forma de organizar a produção. A evolução do nível do sistema de
dominação constitui a chave para compreender a difusão do modo capitalista de
produção e as formas particulares que assumirão as formações sociais. Graças ao
excedente retido localmente, as formas de vida de uma parte da população se iam
modernizando, o que criava uma expectativa de progresso, portanto a necessidade de
prosseguir com o esforço de implantação da nova ordem social.
O fato de que a difusão do modo capitalista de produção seja o resultado de uma
ação internacional, constitui dado capital para a explicação das disparidades que hoje
existem entre formações sociais capitalistas. As novas estruturas de produção que
surgiam no quadro da divisão internacional do trabalho se subordinavam ao mercado
internacional, cujos preços relativos definiam o montante dos excedentes ao nível das
economias nacionais, conforme observamos anteriormente. Os mercados internos
desses países passavam a depender indiretamente das atividades de exportação. Essa
vinculação particular com o exterior – a demanda externa comandava o nível da renda
monetária, a composição do dispêndio da população, etc. – constitui o ponto de partida
do que se viria a chamar posteriormente de “dependência externa”.
A penetração do modo capitalista de produção no quadro da divisão
internacional do trabalho teve consequências de considerável importância no que
respeita a orientação do processo acumulativo. A modernização a que fizemos
referência implicava em transformações muito mais rápidas dos padrões de consumo do
que das formas de produzir, ou seja, traduzia um atraso relativo no desenvolvimento das
forças produtivas. A rápida urbanização e assimilação de formas de consumir em que os
bens duráveis têm crescente participação, condicionariam o perfil da acumulação em
detrimento dos recursos disponíveis para desenvolver o sistema de produção.

Atraso na acumulação e revoluções sociais

Se, ao contrário repetidamente feitas a partir dos primeiros economistas clássicos, a


aceleração no desenvolvimento das forças produtivas, que acompanhou a penetração no
desenvolvimento as forças produtivas, que acompanhou a penetração do modo
capitalista de produção, não conduziu a uma crise geral do sistema, a experiência do
último meio século vem demonstrando que o atraso nesse desenvolvimento, provocado
pela dependência externa, cria tensões na estrutura de dominação interna e
ocasionalmente provoca revoluções sociais. Nas economias em que o modo capitalista
de produção penetrou no quadro da dependência externa, o fenômeno da insegurança
social, apresenta-se sobremaneira agravado. Este problema tem sido amplamente
estudado sob os títulos de subemprego, desemprego disfarçado e marginalidade social,
e é geral o consenso de que se trata de uma característica estrutural das chamadas
economias subdesenvolvidas. Se a essa insegurança se adicionam crescentes

38
desigualdades sociais, compreende-se a necessidade de sistema de repressão cada vez
mais custosos e os riscos da eclosão revolucionária.
A fragilidade das estruturas de dominação das formações capitalistas
dependentes vem sendo atestada pelas repetidas rupturas nos sistemas de poder,
ocorridas no último meio século. Em alguns casos essas rupturas foram acompanhadas
de transformações profundas nas estruturas sociais, em muitos outros limitam-se a
provocar uma maior participação do Estado no controle no sistema de produção. Mas, a
regra tem sido o crescimento relativo da forma autoritária de apropriação do excedente,
que tende a fazer-se hegemônica. Parece fora de dúvidas, por conseguinte, que tais
rupturas estão ligadas à firma irregular que assumiu a difusão do modo capitalista de
produção, às desigualdade no nível e na forma da acumulação e às relações de
dependência decorrentes. As transformações sociais nos países em que mais se
desenvolveram as forças produtivas têm sido consideráveis, mas não assumiram formas
revolucionárias. Daí que as revoluções sociais do último meio século estejam marcadas
por um elemento de ambiguidade. Elas se legitimam na luta contra as desigualdades
sociais e o estado de insegurança e miséria em que se encontram grandes massas de
populações. Os novos sistemas de poder nascem, portanto, com um compromisso
histórico que é “desenvolver o país”, eliminar o atraso no desenvolvimento das forças
produtivas. Manifesta-se, em consequência, uma tendência implacável para reproduzir
os métodos comprovados de organização da produção capitalista, matriz de um processo
de estratificação social e de condicionamento mental, portanto de formas de
desigualdade que se autolegitimam. A preeminência da apropriação autoritária do
excedente tem levado à hipertrofia do Estado, com reflexos igualmente significativos na
estratificação social. Os resultados obtidos na luta pela eliminação do atraso na
acumulação e a insegurança social, têm sido notáveis. Contudo, na medida em que
avança o desenvolvimento das forças produtivas, os apelos a formas mercantis de
apropriação do excedente vêm aumentando. As formas de estratificação adotados no
esforço para acelerar a acumulação tendem a engendrar um comportamento social que
faz a eficiência depender de relações mercantis. A planificação centralizada, tão
eficiente para acelerar a acumulação ao nível do sistema produtivo e para copiar a
inovação, mostra-se inapta para fomentar a criatividade. Tudo se passa como se as
transformações sociais introduzidas revolucionariamente cumprissem, essencialmente,
um papel histórico, corretivo, das desigualdades internacionais na acumulação que
acompanharam a difusão do capitalismo.50

50
A Revolução Cultural Chinesa constitui, certamente, o caso mais importante de tomada de consciência
do fundo desse problema e de busca de uma alternativa. Pode-se argumentar que os dados do problema na
China foram desde o início diversos, pois insistir em instalar nesse país uma civilização material baseada
no consumo intensivo de recursos não renováveis à exemplo do que existe atualmente nos países
industrializados tanto capitalistas como socialistas, é próximo do fisicamente irrealizável. Por essa via o
atraso no processo de acumulação tenderia a perpetuar-se. A opção real que se apresenta aos chineses é
criar um estilo novo de desenvolvimento ou aceitar uma situação definitiva de atraso. A partir do
momento em que se rejeita a exemplaridade do modelo, que se dá as costas à modernização, as
comparações entre níveis de desenvolvimento já não tem sentido ou terão que ser feitas noutras bases.
Mas, qualquer que seja o tipo de desenvolvimento, permanece de pé o problema da disciplina social
requerida para alcançar o esforço de acumulação programado. Não basta abandonar as formas de
disciplina social engendrada pelo modo capitalista de produção e transplantadas para as economias
socialistas, com o regime de empresa de organização hierárquica. Algo terá que ser posto em seu lugar, se
se pretende continuar com a acumulação, na expressão feliz de um dirigente político de Usina de
Geradores de Shangai, no magnífico documentário de Joris Ivens e Marceline Loridan, alguma coisa deve
substituir a matraca e o dinheiro, e essa alguma coisa seria o “pensamento do Presidente Mao”.
Permanece portanto de pé o problema da estabilidade dessas formas de organização social, que se apoiam
quase exclusivamente na unidade de proposito dos seus membros atuais unidos por um forte carisma.

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Anexos – Tábua da matéria sugerida

1. Formações sociais e estruturas de poder


2. As atividades sociais e o produto social
3. O sistema de produção
4. Reprodução da população e estrutura social
5. A apropriação do excedente
6. Acumulação e inovação
7. Relações exteriores
8. O Estado e a coordenação das atividades socioeconômicos
9. O avanço da acumulação e as tensões na fronteira ecológica
10. Tipologia do desenvolvimento econômico no mundo atual

1. Formações sociais e estruturas de poder

Formas históricas do processo de socialização do homem. Os grupos sociais.


A organização social e as normas disciplinadoras do comportamento individual.
Os objetivos sociais. As formas de integração social. Interiorização pelo indivíduo pelo
indivíduo dos objetivos sociais.
Formas de organização social orientadas para o aumento da eficiência do
trabalho individual. A produção dos meios de subsistência como atividade coletiva. A
divisão social do trabalho e a emergência de um horizonte de opções sociais. O
desenvolvimento da cultura, soma das formas de comportamento transmitidas pelo
processo de socialização do indivíduo. O consumo como ato coletivo e como ato
individual. A propriedade privada individual.
Diferenciação de atividades sociais. Assimetria das relações e/ou dos membros
da comunidade com os indivíduos que exercem o poder e/ou manipulam o sobre-
natural. Criação do excedente social. Emergência e institucionalização das
desigualdades no acesso do trabalho social. Reprodução do sistema de dominação
social. Codificação e sacralização das normas reguladoras do comportamento
individual. As formas básicas de apropriação do excedente: a autoritária e a mercantil.
As formações sociais como formas históricas de organização social. Grupos
informais e formais. Separação entre funções de discussão-controle e execução. As
estruturas hierárquicas. O uso da violência como forme de integração social. A
experiência militar e sua significação na evolução dos sistemas de dominação social.
Estabilidade e legitimação dos sistemas de dominação social. Base patrimonial e
hereditária do poder. As ideologias como fator de integração social e legitimação do
poder.
A ascensão política da burguesia mercantil europeia. O controle das atividades
produtivas pelo capital mercantil. Preeminência da apropriação mercantil do excedente.
O modo capitalista de produção como generalização da apropriação mercantil do
excedente às atividades produtivas. Consequência de sua penetração na agricultura:
instabilidade de emprego, expulsão de população do campo, barateamento da mão de
obra. Penetração nas atividades manufatureiras e abertura de um novo horizonte de
possibilidades à acumulação.
Evolução dos sistemas de dominação social na fase de aceleração da
acumulação. Importância crescente do controle da informação e da criatividade. A
Inteligentsia, vetor da ideologia dominante e desestabilizador social. Os avanços na
burocratização e seus efeitos secundários.

40
2. As atividades sociais e o produto social

As atividades sociais como expressão das diferenciações de funções dos membros de


uma sociedade. As decisões dos agentes individuais concebidas no seu contexto social.
A separação entre meios e fins numa sociedade individualista-competitiva. A
racionalidade econômica. A microeconomia como construção ideológica da cultura na
fase predominante individualista.
Tipologia das atividades sociais:
a) Atividades produtivas dos indivíduos destinadas a satisfazer diretamente suas
necessidades, próprias e de seus dependentes;
b) Atividades produtivas dos indivíduos isolados ou em grupos destinados ao
intercâmbio;
c) Atividades ligadas ao processo de socialização;
d) Atividades ideológicas ligadas ao processo de integração social;
e) Atividades ligadas aos processos de controle e repressão social.
Identificação das necessidades básicas dos membros de uma sociedade. Os
condicionantes fisiológicos. Necessidades de alimentação, vestimenta e habitação. A
atividade cultural como participação ativa.
As necessidades derivadas do horizonte de expectativas do indivíduo,
decorrência de sua inserção numa estrutura social dada. A influência das desigualdades
dos níveis de consumo na criação de novas necessidades.
O processo de criação de novas necessidades numa sociedade inigualitária em
expansão. O papel da moda e da obsolescência dos produtos de consumo. A vida
cultural como forma passiva de consumo. A criação artística para o consumo.
A difusão social de novas necessidades como vetor da ideologia da classe
dominante.

A Tipologia das atividades sociais visa a abranger o conjunto dos membros da


sociedade. Com efeito: a produção econômica não pode ser entendida se a
consideramos isoladamente do sistema de valores que está na base de integração social
e permite que o sistema de poder alcance a eficácia necessária para se manter. A
atividade realizada no quadro familiar deve ser considerada, tanto quando ela se liga
diretamente à produção-agricultura de subsistência, artesanato de auto consumo – como
quando ela se integra no processo de socialização, treinamento profissional, etc. A
população sub-empregada, ou reconhecida como desempregada, não deve ser
considerada apenas como um custo social, porquanto ela desempenha um papel na
mobilidade da mão-de-obra e na definição do custo de reprodução da população,
portanto na determinação da dimensão relativa do excedente.

O produto social: entidade que não pode ser definida independentemente da


estrutura social, portanto do custo de reprodução da população, da aplicação do
excedente, do sistema de preços que reflete.
Atividades sociais incluídas e não incluídas no produto social. Dificuldades que
se apresentam à medição de certas dessas atividades. As atividades que dão lugar à
criação de um fluxo monetário. (Na prática dos países capitalistas adota-se o critério de
incluir no produto, demais das atividades que dão origem a pagamentos em moeda,
aquelas às quais se pode imputar por analogia um valor monetário, como a produção
agrícola para autoconsumo. Esquemas alternativos: inclusão do trabalho realizado no
quadro familiar pelas mulheres, exclusão dos gastos no sistema de repressão social, etc.
A medição do produção social funda-se no custo de reprodução da população e em

41
decisões arbitrárias, que refletem o sistema de valores dos grupos que se apropriam do
excedente.)

O custo de reprodução da população. O excedente social como expressão última


das desigualdades nos padrões de consumo de uma formação social.

A estimativa do nível de vida básico da população. O salário básico individual e


seu complemento coletivo.

A apropriação do excedente como expressão do sistema de dominação social. A


estratificação social. Principais instrumentos econômicos do sistema de dominação
social: orientação da inovação tecnológica, controle da criação de empregos,
manipulação do nível geral de preços.

3. O sistema de produção

A produção como um processo social ligado a reprodução da população e aos objetivos


da vida social. Os recursos utilizados e sua dimensão intertemporal. A organização do
sistema de produção como reflexo do nível alcançado pela acumulação e da estrutura
social. Relações entre o sistema de valores dominantes, a composição do produto social,
o perfil da acumulação global e o desenvolvimento das forças produtivas.
A estrutura do sistema de produção. A matriz insumo-produto. A distribuição da
força de trabalho. Espessura temporal da acumulação. Coeficientes técnicos e grau de
rigidez da estrutura produtiva.

A divisão intertemporal do trabalho e a diferenciação do sistema de produção


entre setores destinados à produção de bens finais de consumo, e à produção de bens
intermediários. A crescente importância, entre estes últimos, dos equipamentos.
Equipamentos destinados a produzir outros equipamentos. A combinação trabalho
presente e trabalho passado nas distintas fases do processo produtivo de cada produto. O
progresso técnico e o campo de variação dessa combinação. A função de produção
como delimitação de um horizonte de possibilidades técnicas ao nível da empresa.
Interdependência das atividades econômicas. Economias externas e de
aglomeração. A produtividade como fenômeno social, relativo ao conjunto do sistema
produtivo. Do especulador mercantil ao empresário da produção. O sistema de preços e
a eficiência na rentabilidade relativa das empresas. Os investimentos públicos e seus
efeitos indiretos na rentabilidade das empresas. A racionalidade do empresário. Seu
horizonte de percepção e os custos não assumidos. Seu acesso aos recursos sociais.
A organização social dentro da empresa. Trabalho manual e trabalho
especializado. A estrutura de direção. O controle financeiro da empresa. Dos grupos
informais de trabalhadores à organização sindical. O controle dos sindicatos pelo
Estado.
A organização da produção agrícola. Importância dos fatores ecológicos e do
regime fundiário. O grau de penetração do modo capitalista de produção e as formas de
criação de emprego. A tecnificação da agricultura e sua crescente dependência de
insumos industriais. As estruturas agrárias e sua importância na determinação do custo
de reprodução da população.

4. Reprodução da população e estrutura social

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O enquadramento dos trabalhadores manuais no sistema de produção. A escravidão e as
diversas formas de servidão. Subemprego e emprego periódico como fatores
contingentes. Os obstáculos à mobilidade social vertical.
“Normalização”, “racionalização”, “organização científica do trabalho” como
método de disciplina social. As técnicas de remuneração e de incitação.
A significação da luta de classes nas formações sociais em que predomina o
modo capitalista de produção. Seus efeitos na intensidade da acumulação e na
orientação do progresso técnico. O poder sindical e a incompressibilidade dos salários
nominais. Nível de emprego, inflação e salários reais.

A luta de classes no plano ideológico. O trabalho não pago das mulheres. Caráter
conservador da família em condições de instabilidade de emprego. Controle da
informação, manipulação da opinião pública.
A participação dos trabalhadores manuais no produto social. A distribuição da
renda e suas relações com a estrutura patrimonial.
Relação entre o salário básico e a produtividade social, e sua significação para a
competitividade internacional das empresas.
O consumo coletivo e sua significação na redução das desigualdades dos padrões
de consumo.

5. A apropriação do excedente

A matriz institucional do sistema de dominação social. O regime de propriedade em


geral. O sistema fundiário. O direito sucessório. A propriedade imobiliária. Sistema de
patentes. Propriedade intelectual.
O controle do sistema de decisões. Definição e interpretação dos “interesses
coletivos”. Os objetivos sociais: prioridades nos investimentos, orientação da educação,
condicionamento da criatividade, arbitragem da inovação na moda e no valor comercial
dos frutos da criação artística. Papel da propaganda e do controle da informação.
O sistema de preços na apropriação do excedente. As formas de mercado.
Concorrência de preços, mediante inovação de produtos. Discriminação de preços e
renda do produtor. Empresas dependentes e empresas líderes. A administração de
preços

O poder burocrático na apropriação doe excedente. O aumento relativo das


burocracias públicas e privada como decorrência da crescente complexidade da
organização social.
As profissões liberais e os remanescentes do poder corporativo. O controle do
acesso a essas profissões. Relações pessoais, cooptação, estratificação.
A transformação de excedente em capital. As distintas formas de capital
financeiro. Os mercados de títulos. A concentração do capital financeiro.
Os intermediários financeiros e a criação de liquidez. Os Bancos como centros
privilegiados na estrutura do poder econômico. A tutela do capital financeiro sobre as
empresas.
Repartição do excedente entre consumo corrente, acumulação improdutiva e
acumulação reprodutiva. Sus reflexos na estrutura social, na intensidade da acumulação
e na orientação do progresso técnico assimilado.

6. Acumulação e inovação

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Modo de produção capitalista e aceleração da acumulação.
A acumulação pública diretamente ligada à reprodução da estrutura social:
investimentos no processo de socialização, de repressão, de legitimação do poder.
A acumulação privada ligada à reprodução social: investimentos em habitações,
gastos em bens duráveis e na formação profissional.
A acumulação nas atividades produtivas (adicional à simples reposição da
acumulação já existente) como resultado de decisões intertemporais na utilização do
excedente. Alongamento dos processos produtivos, verticalização na divisão do trabalho
(aumento da composição organiza do capital, elevação do coeficiente de capital) e os
avanços na produtividade social decorrentes de inovações nas técnicas de produção,
economias de escala, economia de complementaridade, etc.
A inovação ao nível dos produtos finais e a acumulação. Acumulação-difusão de
produtos já conhecidos e acumulação – introdução-de-novos-produtos. Relações entre
intensidade e o perfil da acumulação, e a reprodução da formação socioeconômica.

7. Relações exteriores

A aceleração de acumulação e a formação do sistema de divisão internacional do


trabalho.
As “vantagens comparativas” e a formação das economias periféricas. A difusão
irregular do modo capitalista de produção e a expansão do intercâmbio internacional
com base na captação autoritária do excedente nos países periféricos. As consequentes
disparidades no processo de acumulação e a dependência.
A difusão cultural e a introdução de novos padrões de consumo. A emergência
de novos grupos dominantes com acesso ao excedente criado no quadro do intercâmbio
externo. Condições históricas que permitiriam à burguesia local, em certos países,
liberar-se da dominação externa. As disparidades internacionais nos níveis de
acumulação no sistema produtivo e sua irreversibilidade.
Captação internacional do excedente. Os preços internacionais. Os mercados de
câmbio e os fluxos financeiros internacionais como instrumentos de pressão na captação
do excedente.
Integração de atividades produtivas e de comercialização em espaços
multinacionais e a emergência da economia transnacional. Crescimento relativo dos
excedentes nos distintos países. O controle da técnica e da informação como principais
instrumentos de captação do excedente internacional.
A criação de liquidez internacional. A grande empresa transnacional e suas
relações com os estados nacionais. O mercado financeiro internacional.

8. O Estado e a coordenação das atividades socioeconômicos

A concentração no Estado das diversas formas autoritárias de captação do excedente. A


importância crescente do sistema impositivo.
Complexidade das atividades do Estado. Coação e controle social. Modificação
e codificação de normas disciplinadoras do comportamento social dos indivíduos.
O crescente papel do Estado no processo de socialização dos indivíduos,
mediante o controle das instituições de ensino e dos meios de comunicação audiovisual.
A participação do Estado no processo de acumulação, tanto destinada a
reproduzir a estrutura social como a aumentar a produtividade.
A especificidade do Estado nas chamadas economias de mercado, ou seja,
aquelas em que o excedente é principalmente apropriado mediante o intercâmbio. O

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controle da criação de liquidez, dos fluxos financeiros e das relações com o exterior. O
controle do nível da demanda efetiva e a regulação da criação de empregos. A
coordenação das decisões de investimento a longo prazo visando a aumentar a
produtividade social e a reduzir a instabilidade.
O Estado nas economias centralmente planificadas. Predominância da forma
autoritária de apropriação do excedente. Ordenação em um “plano” dos objetivos
sociais. A importância das formas burocráticas de poder.

9. O avanço da acumulação e as tensões na fronteira ecológica

O aumento da eficiência como contrapartida de um maior consumo de energia.


A irreversibilidade da degradação da energia. Criação de entropia e
desorganização dos ecossistemas.
A aceleração da acumulação em condições de apropriação privada dos recursos
naturais. Socialização dos danos causados no plano ecológico. Comprometimento das
opções futuras.
Recursos renováveis e não renováveis. A ótica dos interesses privados e a
aceleração do uso e o latifundismo-minifundismo. As explorações minerais predatórias
no quadro do sistema de divisão internacional do trabalho.
A urbanização como um complexo de formas de acumulação produtivas e
improdutivas. Consequências no plano ecológico.

10. Tipologia do desenvolvimento econômico no mundo atual

O desenvolvimento concebido como processo de diferenciação de um sistema produtivo


que se traduz em aumento da produtividade social. Essa diferenciação resulta do
aprofundamento da divisão social do trabalho. Na sua dupla dimensão – diferenciação
de tarefas e intertemporalidade – a divisão do trabalho é o vetor do progresso técnico.
Todo o desenvolvimento possui um conteúdo, uma dimensão substantiva, instilados
pelos objetivos da vida social, vale dizer, pelos grupos sociais que se apropriam do
excedente e exercem as opções implícitas na utilização deste. Portanto, não cabe falar
de desenvolvimento sem referência a certo tipo de formação socioeconômica.
A eclosão do modo capitalista de produção, a aceleração da acumulação, a
formação do sistema de divisão internacional do trabalho e o amplo processo de difusão
cultural que este provocou, se traduziram em grandes disparidades geográficas na
intensidade e na orientação da acumulação. Em consequência surgiram duas formações
socioeconômicas capitalistas típicas: as economias subdesenvolvidas, dependentes ou
periféricas, e as economias desenvolvidas, dominantes ou centrais.
Nos países em que houve atraso no processo de acumulação, a modernização e a
aculturação carreadas pela dependência externa engendraram crescentes desigualdades
sociais e aumentaram os custos do controle social. Essa situação de fundo,
ocasionalmente coadjuvada pela interveniência de fatores políticos externos, levou a
ruptura nos sistema de poder, e à ascensão de grupos portadores de um projeto de
reconstrução social, acarretando modificações profundas no processo de apropriação
doe excedente. Contudo, a evolução subsequente conduziu a crescente divergência
subsequente conduziu a crescente divergência na forma de estruturação do poder e de
disciplina social, o que não seria sem consequências para a orientação da acumulação.
Em um extremo temos formações sociais em que o sistema da empresa hierarquizada
foi conservado e noutro formação sociais em que a disciplina no trabalho se apoia de
preferência na interiorização pelo indivíduo dos objetivos sociais. Em síntese podemos

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identificar no mundo atual dois tipos de formação socioeconômica criados pelo
capitalismo na fase de aceleração da acumulação, e dois tipos de formação
socioeconômica resultante de revoluções sociais, ocorridas em áreas caracterizadas pelo
atraso no processo de acumulação, e inspiradas nas ideologias igualitárias surgidas nas
lutas de classe dos países mais avançados no processo de acumulação. A cada uma
dessas quatro formações socioeconômicas correspondem tipos diversos de
desenvolvimento. Um modelo teórico que pretenda reduzi-los a denominadores comuns
não poderá ir muito além da descrição dos aspectos técnicos das atividades econômicas.

II. O capitalismo Pós-Nacional: da coordenação nacional ao “laissez-faire”


internacional

A divisão internacional do trabalho e os sistemas econômicos nacionais


As consequências do segundo conflito mundial
A coordenação oligopolista e financeira
A unificação do espaço econômico
As novas formas de instabilidade
A propagação das ondas de instabilidade
A elevação do preço do petróleo
As relações centro-periferia
As disparidades no processo de acumulação
A industrialização periférica
A apropriação do excedente na periferia
Fim de um modelo de civilização?
Visão global do sistema na fase atual
Os planos de condensação do poder
Agravação das tensões e novas relações centro-periferia
Convergência na busca de novo projeto de civilização

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III. A nova ordem mundial

Duas ordens de problemas

A relação de forças

Agenda para o futuro

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IV. Conhecimento econômico da América Latina

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