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FRANCO CAMBI HISTORIA DA PEDAGOGIA © 1995 Gius. Laterza & Figli Titulo original em italiano: Storia della pedagogia. Os capitulos 2 ¢ 8 e os parigrafos 2, 3 e 4 do Capitulo 4 da Terceira Parte (A época moderna) do presente volume foram escritos por Giuseppe Trebisacce. © 1999 da traducao brasileira: Fundagao Editora da UNESP (FEU) Praca da Sé, 108 1001-900 - Sao Paulo ~ SP (Oxx11) 3242-7171 Fax: (Oxx11) 3242-7172 www.editoraunesp.com.br feu@editora.unesp.br Dados Internacionais de Catalogagao na Publicagao (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Cambi, Franco Historia da pedagogia / Franco Cambi; tradugio de Alvaro Lorencini. - Sao Paulo Fundagio Editora da UNESP (FEU), 1999 ~ (Encyclopaidéia) ‘Titulo original: Storia della pedagogia Bibliografia. ISBN 85-7139-260.9 1, Educagdo - Filosofia - Histéria 2. Educagio - Historia 3. Pedagogia - Historia I. Titulo. Il. Série. 99.3733 CDD-370.9 {indices para catdlogo sistematico 1, Educagdo: Histéria 370.9 2. Pedagogia: Histéria 370.9 Editora afiliada: Er nea> Ao asec fiseU Se CAPITULO IL O ORIENTE E O MEDITERRANEO: MODELOS EDUCATIVOS 1A REVOLUGAO DO NEOLITICO E A EDUCAGAO A pré-historia humana (mesmo que ainda confundida com a historia da natureza, com a geologia, a biologia € a antropologia fisica) inicia-se, como salientou Leroi Gourhan, com a aquisicao da posigio ereta por parte do hominfdeo (ou primata mais evolufdo). Esta posigao faz 0 hominideo descer a terra, torna-o capaz de con- trolar o territério com o olhar e, sobretudo, libera as maos, que se tor- nam independentes da deambulacao e se transformam no instrumento fundamental de miltiplo uso para o homem, modificando radicalmente a sua relacdo com a natureza e preparando o processo da cultura (mesmo que ainda grosseiro e elementar). Inicia-se aqui a complexa evolucio do hominfdeo para o homem, que vai desde 0 Australopithecus (de 5 milhoes a1 milhao de anos atrds), cagador, que lasca a pedra, constr6i abrigos, ao Pitecanthropus (de 2 milhdes a'200 mil anos atras), com um cérebro pouco desenvolvido, que vive da colheita e da caga, se alimenta de modo misto, pule a pedra nas duas faces, é um proto-artesao e conhece o fogo, mas vive imerso numa condigio de fragilidade e de medo (so os “anos ‘ter- 58 FRANCO CAMBI riveis’ da sobrevivéncia”, disse Nougier), ao homem de Neanderthal (de 200 mil a 40 mil anos atrds), que aperfeigoa as armas ¢ desenvolve um culto dos mortos, criando até um gosto estético (visivel nas pinturas), que deve transmitir o seu ainda simples saber técnico (a posse do fogo, o uso das armas, a caga, os rituais etc.), até o Homo sapiens, que ja tem as carac- terfsticas atuais: possui a linguagem, elabora miiltiplas técnicas, educa os seus “filhotes”, vive da caga, € némade, é “artista” (de uma arte natura- , dotado de cultos lista € animalista), esta impregnado de cultura magic € crengas, e vive dentro da “mentalidade primitiva” marcada pela parti- cipagao mistica dos seres e pelo raciocinio concreto, ligado a conceitos- imagens e pré-ldgico, intuitivo e nao-argumentativo. Ja nesta fase, a educagdo dos jovens torna-se 0 instrumento central a sobrevivéncia do grupo ¢ a atividade fundamental para realizar a do ¢ o desenvolvimento da cultura. No filhote dos animais supe- riores ja existe uma disposigdo para acolher esta transmissao, fixada bio- logicamente e marcada pelo jogo-imitagéo. Todos os filhotes brincam com os adultos e nessa relagio se realiza um adestramento, se aprendem técnicas de defesa ¢ de ataque, de controle do territério, de ritualizagao dos instintos, Isso ocorre - e num nivel enormemente mais complexo - também com o homem primitivo, que, através da imitacao, ensina ou aprende o uso das armas, a caga e a colheita,-o uso da linguagem, o culto dos mortos, as técnicas de transformagio e dominio do meio ambiente etc. A cultura, se “nao é um fato individual, mas um fato social”, implica transmissao social dos conhecimentos, portanto educagao, a qual € dele- gada a tarefa de cultivar as jovens geragdes. Ja a cultura primitiva atribui 4 relagio educativa - seja como for que esta se configure - um papel social determinante. Depois desta fase, entra-se (cerca de 8 ou 10 mil anos atrés) na época do Neolitico, na qual se assiste a uma verdadeira ¢ propria revolugdo cul- tural. Nascem as primeiras civilizagoes agricolas: os grupos humanos se tornam sedentérios, cultivam os campos ¢ criam animais, aperfeigoam e enriquecem as técnicas (para fabricar vasos, para tecer, para arar), cria- se uma diyisao do trabalho cada vez mais nitida entre homem e mulher e um dominio sobre a mulher por parte do homem, depois de uma fase que exalta a feminilidade no culto da Grande Mae (findo com o advento do treinamento, visto como “conquista masculina”). Mas nao s6: nasce tam- HISTORIA DA PEDAGOGIA 59 bém uma arte cada vez mais rica € sofisticada, estilizada € simbdlica, com fungao magica e educativa ao mesmo tempo, ligada aos animais € as lutas com as feras; muda todo o ritmo da vida: as coletividades se organizam e surge um “estilo de vida totalmente diferente da existéncia inquieta, ins- tvel, dos predadores paleoliticos”, ligado 4 “economia metédica, regulada de antemio, a longo prazo e em vista de diversas eventualidades” ¢ que agora “gravita em torno da casa e da feitoria, do campo e dos pastos, da colonia e do santuaério”, como bem disse Hauser. E esta civilizagao que percorre toda a Europa, do Mediterraneo ao Baltico, a Russia, ao Atlan- tico, e da qual encontramos tragos em todas as dreas sob a forma de timu- los e templos megaliticos, que remetem a rituais comuns e a estruturas arquitetonicas homogéneas. A revolucado neolitica é também uma revolugao educativa: fixa uma divisio educativa paralela a divisdo do trabalho (entre homem e mulher, entre especialistas do sagrado e da defesa e grupos de produtores); fixa 0 papel-chave da familia na reprodugio das infra-estruturas culturais: pa- pel sexual, papéis sociais, competéncias elementares, introjecao da auto- ridade; produz o incremento dos locais de aprendizagem € de adestra- mento especificos (nas diversas oficinas artesanais ou algo semelhante; nos campos; no adestramento; nos rituais; na arte) que, embora ocorram sempre por imitagdo e segundo processos de participacio ativa no exer- cicio de uma atividade, tendem depois a especializar-se, dando vida a momentos ou locais cada vez mais especfficos para a aprendi pois, sio a linguagem e as técnicas (linguagem magica e técnicas prag- agem. De- miaticas) que regulam — de maneira cada vez mais separada — dois mode- los de educagao. Mas aqui j4 estamos no limiar das sociedades hidraulicas. 2 SOCIEDADES HIDRAULICAS E NOVOS PROBLEMAS EDUCATIVOS J& definimos as grandes sociedades hidrdulicas (nascidas nas plani- cies sulcadas por grandes rios e que prosperam através do controle das Aguas destes rios, os quais permitem um notavel desenvolvimento da agri cultura), mas devemos ainda sublinhar que sao sociedades com forte di- visio do trabalho e com nitida distingdo entre as classes sociais (que ten- 60 FRANCO CAMBI dem a tornar-se castas fechadas); que exigem um forte controle social, tendendo portanto a desenvolver a gestio do poder na dimensio do Es- tado (= governo gerido pelo soberano e pela burocracia administrativa, guerreira, religiosa); que dao corpo a uma tradi is, de mitos, de técnicas, de saberes que, por sua vez, levanta o problema da sua trans- missio/transformacSo/incremento e que é gerada pela estabilidade e pela colaboragéo que marca tais sociedades. O advento das grandes sociedades hidraulicas leva-nos, doravante, para o terreno da histéria: de povos, de Estados, de culturas, de tradig6es. A Pré-Hist6ria, storia, da grande mesmo no aspecto mais evoluido assumido no Neolitico superior, acha- se ultrapassada: as sociedades tendem a caracterizar-se como sociedades quentes endo mais como sociedades frias, marcadas pela mutagio € nao pela repeticio, desordenadas até a entropia, enquanto as outras eram imoveis € aistoricas, fixadas num equilibrio imutavel entre recursos, ne- cessidades ¢ organizagio social. Neste ponto, comega a hist6ria no senti- do préprio, mais dinamica e irrequieta, da qual somos filhos diretos. Tam- bém deve ser lembrado que, ao lado das sociedades hidraulicas, permanecem vivas as formas das sociedades némades ou ex-némades ¢ wibais, que precedem as hidrdulicas, mas que ainda as acompanham ¢ nio sao extintas por aquelas. Sao sociedades organizadas por tribos, com forte espirito étnico, que se formam em ambientes menos hospitaleiros e em grupos mais rarefeitos (como 0s desertos, as estepes ou as ilhas), governadas segundo modelos patiiarcais, dedicadas 4 agricultura nao-extensiva/intensiva ou ao pastoreio, abertas ao comércio. E que se transformam em sociedades co- merciais organizadas em torno do intercambio de mercadorias tao-logo o terreno em que vivem se torna favoravel a esta forma de economia (como acontece no Mediterrfineo com os fenicios e os gregos, mas também com os hebreu As grandes sociedades hidraulicas nascem no Extremo Oriente com a China ea India, as quais, sulcadas por grandes rios, acolhem populagies numerosas € diversas e organizam sua vida de modo unitirio por meio da religiao e do papel do Estado. Sio sociedades ligadas 4 “cultura dos vegetais” (Braudel): o milho, a cevada, a ervilha, 0 sorgo; onde a carne escasseia. Sao sociedades agricolas ligadas ao problema da irtigagao. As- pectos centrais também nas sociedades hidraulicas mais ocidentais: da HISTORIA DA PEDAGOGIA 61 Mesopotamia ¢ do Egito, que se modelam segundo a mesma estrutura das asiaticas e manifestam as mesmas caracteristicas tanto sociais como técnicas e um forte desenvolvimento destes dois aspectos. Na cultura destas sociedades, a natureza aparece divinizada, pensada por meio de uma sé- rie de hierofanias (manifestagées do sagrado) e de cosmogonias (organi- zagaio do cosmos pelo parentesco entre os varios deuses), descrita por meio de narrativas mitolégicas consignadas em textos que codificam essa visio do mundo ea fixam como sagrada (0s livros sagrados das varias religides desde a India até o Egito); textos depositados nas maos dos grupos sacer- dotais que séo seus guardiaes e seus intérpretes, e que detéin, portanto, as chaves da tradicéo, governam a produgio ideolégica, constroem ou reproduzem a mentalidade coletiva no seu n{vel mais profundo, de con- cepgao do mundo. Ao mesmo tempo, a natureza aparece dominada, com- preendida em seus mecanismos e submetida aos designios do homem, pelo controle técnico que implica, porém, 0 conhecimento do mundo natural para poder domind-lo e transforma-lo. Nao sé as técnicas mais rudimentares de construir vasos ou tecidos, tijolos ¢ utensflios varios, ar- mas ou “objetos belos” (desprovidos de utilidade pratica imediata, como as “pinturas rituais”), mas também as técnicas mais altas da geometria, da matemitica, da teologia, da medicina etc., que vém conotar em pro- fundidade a estrutura ea vida social daqueles povos. inclusive a mentali- dade coletiva, emancipando-a do sagrado € do mito e impelindo-a para um pensamento mais racional (mais rigoroso € valido para todos). A educagao também muda profundamente: 1. ela é, ainda, transmissao da tradigao e aprendizagem por imitagdo, mas tende a tornar-se cada vez mais independente deste modelo e a redefinir-se come processo de aprendizagem e de transforma cdo 20 mesmo tempo; 2. liga-se cada vex mais, a linguagem - primeiro oral, depois escrita-, tornando-se cada vez mais trans- missio de saberes discursivos (ou discursos-saberes) e nado somente de praticas, de processos que sdo apenas, ou sobretudo, operativos; 3. recla- ma uma institucionalizagdo desta aprendizagem num local destinado a transmitir a tradigdo na sua articulacao de saberes diversos: a escola. Ins- titui 0 esta que se torna cada vez mais central até que das sociedades arcaicas se passa aos estados territoriais ¢ a uma rica ¢ articulada divisdo dos saberes que reflete a do trabalho, o qual é cada vez mais especializado € tecnicizado. Sera uma escola diplice (de cultura e de trabalho: liberal € 62 FRANCO CAMBI profissional) que acentuara 0 profundo dualismo préprio das sociedades hidréulicas ou agricolas, ligado ao enrijecimento dos papéis sociais em classes sociais separadas, com alguns aspectos quase de castas. 3 O EXTREMO E O MEDIO ORIENTES © Extremo Oriente € aquela terra dos grandes rios ¢ dos vegetais de que ja falamos, mas € também um terreno polif6nico do sagrado e um conjunto de terras submetidas a agressdo da barbarie (seja dos turcos, dos mong6is ou dos quirguizes) contra a qual € preciso defender-se — assim como das intempéries: as grandes chuvas mongénicas - organizando-se de modo compacto, militar ¢ social sob o governo de um soberano que, geralmente, € deus e rei. As sociedades do Extremo Oriente sao socie- dades complexas mas iméveis, e por varias razdes. Por um influxo cen- tral exercido pelas religides, construfdas como organismos perenes e sen- tidas como tais; pela indisting4o entre humano e divino que as caracteriza €, portanto, pela perenizagdo do humano (visto como invariante). Sao caracteri: icas comuns tanto a China € A {ndia, como ao Japdo e a Indochina/Indonésia. Na China, a estrutura de base fami iar da sociedade, ligada a uma fa- milia como gens e organizada em torno da religiio dos ancestrais, é que provoca esse imobilismo que chegou quase intato até 0 nosso século. A religido confuciana, racionalista € pratica, favoreceu ainda a separagio entre governantes e governados, dando aos funciondrios do Estado uma identidade prépria, enriquecida por religides mais sofisticadas que 0 taoismo (misticismo e religido de salvacio) e o budismo (filosofia e ética), “funciondrios literatos” chamados mandarins: uma casta educada em es- colas especializadas e fortemente intelectualizada. Ao lado dos mandarins, existem camponeses, artesdos © mercadores que jamais atingem o exer- cicio efetivo do poder, nem conseguem elaborar uma cultura organica- mente definida como fez 0 grupo literdrio Embora a China tenha produzido descobertas técnicas notaveis (a comecar pela biissola), estas nao conseguiram fazer decolar uma ciéncia no sentido moderno para contrastar com a cultura de sabedoria ¢ exclu- sivamente literaria dos mandarins. HISTORIA DA PEDAGOGIA A estrutura da sociedade chinesa permanece profundamente tradi- cional: familiar, patriarcal, autoritaria, sacro-burocratica, nutrida de cul- tura literaria ou técnica (mas de natureza exclusivamente pragmiatica). A educagio também € tradicional: dividida em classes, opondo cultura trabalho, organizada em escolas fecha das e separadas para a classe diri- gente (para as quais se compilam livros e se estudam técnicas de apren- dizagem como o exame), nas oficinas para os artesios ou nos campos para os camponeses. A mesma coisa ocorre na India dominada pelas castas sociais incomunicantes ¢ imutiveis ¢ pela religiio védica, ligada a Br ma € aos rituais secretos dos bn manes, do jainismo e do budismo, religies de sal- vaio individual, abertas as classes médias mas incapazes de combater a hierarquizagao da sociedade indiana e de opor barreiras 4 “miséria es- ao espiri- pantosa” das populagoes, a nao ser com a paciéncia, a sublima tual € a negacio do mundo. Mas 0 mesmo efeito de imobilidade ¢ tradicionalismo sera tfpico também do Japiio: uma sociedade maritima e feudal ao mesmo tempo, organizada em rigidas classes sociais ¢ por pro- io A natu- fissdes, ligada a uma religiao naturalista que valoriza a submi reza e 4 ordem social, ¢ durante séculos hegemonizada pelos modelos da civilizagao chinesa (econdmicos, politicos, sociais, culturais) ¢ como aquela também dividida em classes contrapostas, que dera verdadeira e propria Idade Média (em tempos mais recentes: depois de m depois vida a uma 1000 d. C.), a qual mostrou “um Japao extraordinariamente disciplinado, dividido em castas, mantido regularmente sob controle, fastoso e mise- ravel ao mesmo tempo” (Braudel), dividido entre a espada € 0 c1 (a guerra e a beleza ou 0 culto da forma) e produtor de uma cultura aris- Antemo tocratica (poética, narrativa, pictérica), refinada mas repetitiva. Também a educagao, como na China, é dualista ¢ literaria, nao-pragmiatica e de- senvolvida em escolas de cultura desinteressada. O Médio Oriente - que vai desde a Turquia até a Arabia, também ao Norte da Africa -, porém, assiste & coexisténcia de sociedades hidrdulicas, de sociedades némades ou ex-némades, de sociedades comerciais, que no seu pluralismo se influenciam e se contrapéem, encontrando no Mediter- raneo o seu centro de intercambio ¢ o meio de comunicagio (voluntiria ou involuntaria). Se Mesopotamia e Egito se caracterizam como grandes es- tados territoriais, com problemas similares as sociedades do Extremo 64 FRANCO CAMBI Orienté, mas resolvidos de forma dinamica ou menos iméveis (também porque mais expostos as influéncias de outros povos ¢ de outras culturas) ecom solug6es educativas de tipo tradicional (divididas por classes sociais, ligadas ao sagrado e ao primado do saber literario, desenvolvidas em esco- las para aprender o saber literario, mas nao 0 técnico etc.), fenicios e gre- gos representam civilizagées comerciais, ligadas a territ6rios estéreis e desenvolvidas sobre o mar, abertas, portanto, aos intercdmbios inclusive culturais, capazes de operar sinteses entre as culturas diversas com as quais entram em contato; por fim, os hebreus que, ao contrario, esto ainda li- gados as culturas dos:némades, ;patriarcais e pastoris, mas que se renovam através de uma visio religiosa revoluciondria, monoteistae espiritual, cuja diferenga e superioridade deve ser transmitida e defendida: assim, toda a educagio se organizava em torno do fator religioso, entendido como reaquisicao da mensagem hist6rica contida no livro sagrado, a Biblia, pen- sado na sua plenitude e mantido vivo na esperanga individual, familiar social através da constituigdo de uma intensa vida comunitaria de base religiosa, solicitada a reconquistar constantemente a mensagem mais ge- nuina através da obra de estimulo e de dentincia dos profetas. 4 EGITO E MESOPOTAMIA “Os povos que dao vida a histéria ¢ a civilizagao mesopotamica sio essencialmente dois: os sumérios € os semitas” (Moscati). Os primeiros - os sumérios — sao um povo de origem incerta, talvez das montanhas; os segundos — os semitas - vém do deserto e se infiltram na terra “entre os mesclando-se com 0 outro povo. S40 os sumérios — estabele- dois rios” cidos ja no If milénio a. G.— que organizam a vida social da Mesopotamia, fundando cidades, canalizando as 4guas, cultivando gros, cevada, palmaceas e vivendo em paz, sem “politica de poder” e adorando deuses nos templos. No II milénio a. C. entram na regiao outros povos que fun- dam novos estados, entre os quais Mari, Babilénia e Assiria, dando inicio auma nova fase histérica: de dominio, de expansio, de desenvolvimento técnico ¢ cultural. O rei Hamurdbi, por volta de 1700 a. C., constréi um império unitario, “torna-o florido pela economia e organico pela admi- HISTORIA DA PEDAGOGIA 65 nistragio da justica”, através do Codigo de leis que “coordena o direito precedente”, mas renovando-o. Depois também a Babilonia cede ao ata- que de novos povos, mas a Assiria, ao norte, grande poténcia militar, torna-se predominante ¢ inicia uma politica de expansio, na Sfria, na Palestina, até o governo do rei Assurbanipal (ou Sardanapalo), que faz de Ninive a grande capital do império. Gom a queda da Assiria, ¢ Babilénia que ressury mas desenvolvendo também uma politica de paz, para depois ceder, em fe com Nabucodonosor, levando seus soldados até 0 Egito, 538 a. C., sob o ataque dos persas. Desse modo, “a antiga civilizacao mesopotamica declina para sempre”. Na civilizagao assirio-babilénica, tiveram um papel essencial 0 tem- plo € as técnicas. O templo € 0 verdadeiro centro social dessa civilizagio, o lugar onde se condensa a tradicao e onde se acumula o saber, mas € também o lugar onde organizam as competéncias técnicas, sobretudo as mais altas ¢ complexas, como escrever, contar, medir, que dio vida a li- astronomi: teratura, 4 matematica, 4 geometria, As quais se acrescenta 1 que estuda 0 céu para fins sobretudo priiticos (elaborar um calendério) e naturalistica, com deuses A religiao mesopotamica é antropomérfic tanto masculinos como femininos, ligada a uma cultura agricola, mas tam- bém estruturada de forma nacional com deuses nacionais como Marduk (Babilonia) e Assur (Assiria), postos numa realidade animada de demé- la. Dada ima eraa funcao social dos sacerdotes nios € que reclama priticas magicas ¢ divinatérias para domina acentr 0, centralis: verdadeira casta de poder, que leva lidade da religi ja e se dedicava a a uma vida separad atividades diferentes dos outros homens, ligadas aos rituais ¢ cultura Eram sobretudo os depositirios da palavra, os conhecedores da técnica da leitura e da eserita, nas duas culturas e linguas que alimentavam a vida do pags (o sumério: lingua culta e de culto; 0 acédico: lingua da vida coti- diana e da comunicagao). Os sacerdotes eram os depositarios da forma- cao escolar (como também da tecnocratica, médica ete.) ligada a um “pro- cesso de ini e conferida com “extrema seriedade”, segundo um sistema gradual: primeiro aprendia-se a lingua oralmente, depois “de for- ma criptogrifica”, por fim na dimensio de escrita comum. A experiéncia escolar formava o escriba © ocorria em ambientes aparelhados para cs- crever sobre tabuletas de argila, sob o controle de um mestre (dubsar), pelo uso de silabarios e segundo uma rigida disciplina. Central na escola 66 FRANCO CAMBI assirio-babilénica era também a matem: , ligada A contabilidade e, tal- vez, ao desenho. O objetivo era formar um técnico (justamente o escriba), mas por uma iniciagao também religiosa que sera laicizada s6 a partir do I milénio. A outra grande civilizagao pré-grega e ligada a uma dimensdo “hi- draulica” foi a do Egito, que teve inicio nas férteis margens do Nilo j4 no I milénio, fundindo grupos étnicos diversos e organizando-se em torno da instituigao politica dos farads, com um localismo religioso, politeista € confuso e uma economia agricola ¢ comercial que constituia a riqueza do pais. O poder politico, apés a conquista do reino do norte por parte de Menés, rei do sul, estruturou-se segundo o principio hierarquico-social que punha no vértice da sociedade o faraé, simbolo da unidade do pais e investido de conotagées divinas, o qual exercia o controle do pais através dos sacerdotes e a burocracia da corte (funciondrios, guerreiros e téc- nicos). Essa estrutura hierarquizada e nutrida por uma religiao arcaizante € sem livros sagrados, sem magistério unitario, sem verdadeiros “sim- bolos de f€” colocava no centro a “vontade do soberano” € atribuia a essa vontade “uma caracteristica diferente da lei no sentido até entao corren- te”, jd que “o farad € 0 detentor € a fonte do proprio conceito do justo, ou seja, a ma’at, conatural ao seu espirito, e portanto o tnico a conhecé- la, a poder interpreté-la e fazer respeitar” (Levi). A historia egipeia deve ser dividida em Antigo Império (do século XXVIII ao século XXII a. C.), que gravita em torno do papel sagrado do faraé; em Médio Império (até o século XVLa. C.), que vé junto ao faraé uma classe de funcionarios ¢ a introdugao do culto de Osiris (“com o qual se admite que a vida humana teria um ciclo de nascimento, morte e renascimento” e se preparava uma religido de salvagio, sublinha Levi), mas também um enfraquecimento do Estado; em Novo Império (até 0 século X a. G.), no qual se redefine a sacralidade do faraé em termos de humanidade e de mortalidade. Essa evolucdo da figura do farad ja nos indica como 0 sagrado, a religiao € 0 templo est4o no préprio centro da vida egipcia e da sua cultura, que via também um crescimento dos conhecimentos técnicos, astrondmicos, geo- métricos, agrondmicos e financeiros. O Egito, “presente do Nilo”, era também, e sobretudo, presente dos deuses. Dentro da religido egipcia foram se definindo uma Cosmologia ¢ uma Cosmogonia tendo ao centro o Deus-Sol (Ra), que “se prestava aos ou- HISTORIA DA PEDAGOGIA 67 tos deuses para engrandecé-los ¢ conferir-Ihes um primado dentro de determinados limites geogrificos ou funcionais” (Wilson), € um articu- lado culto dos mortos, bastante complexo e central na concepgao da vi egipcia, que ia desde o embalsamamento dos cadaveres até a construgio do timulo. Todo o saber — religioso e técnico - era ministrado no tem- plo, pela casta sacerdotal que representava 0 grupo intelectual daquela sociedade hierarquica. O primeiro instrumento do sacerdote-intelectual € a escrita, que no Egito era hieroglifica (relacionada com o cariter pictografico das origens ¢ depois estilizada em ideogramas ligados por homofonia e por polifonia, em seguida por contragées € jungées, até atin- gir um cursivo chamado hierdtico e de uso cotidiano, mais simples, ¢ fi- nalmente o demotico, que era uma forma ainda mais abreviada € se es- crevia sobre folha de papiro com um calamo embebido em carbono). Esta er: aprendida no templo ou junto a burocracia e preparava para a pro- fissdo de escriba, tanto sacerdotal como laica, mas sempre socialmente prestigiosa e separada em relagio As profis Ses manuais (ela é “mais de- cente”, “de sucesso”), operada segundo priticas inicidticas. A aprendi- gem se fazia por wanscrigéo de hinos, livros sagrados, acompanhada de “exortagées morais” € de “coergées fisicas”. Ao lado da escrita, ensi- nava-se também a aritmética, com sistemas de calculo “desajeitados e tos- cos” (Bowen). No pice da instrucdo egipcia estava a Casa da Vida, que acolhia “a instrugio superior” ¢ funcionava como depésito, por assim di- zer, dos saberes. Ao lado da educagio escolar, havia a familiar (atribuida primeiro a mae, depois ao pai) e a “dos offcios”, que se fazia nas oficinas artesanais € que atingia a maior parte da populacao. Este aprendi: cessidade de nenhum “processo institucionalizado de instrugio” e ado nao tinha ne- 03 pais ou 0s parentes artesiios que ensinam a arte aos filhos”, através do “observar para depois reproduzir 0 processo observado”, como nos lem- bra Manacorda, Os grupos populares sao também exclufdos da gindstica e da misica, reservadas apenas A casta guerreira € colocadas como ades- tramento para a guerra. Tanto na Mesopotimia como no Egito, a educagao aparece nitida- mente articulada segundo modelos de classe (grupos dominantes ¢ pove), jd escandida entre familia ¢ escola, especializada para aceder a profissio intelectual e desenvolvida em torno da aprendizagem da escrita ser: lo 68 FRANCO CAMBI estes os caracteres estruturais de quase toda a tradicio antiga, também grega, helenistica ¢ romana. 5 FEN{CIOS E HEBREUS Entre a Siria e a Palestina, em tempos bem antigos, efetuou-se um assentamento de povos semiticos que, por concepgées religiosas e por organizacées politicas e econdmicas, se contrapunham radicalmente. Des- de a Antigiiidade, a propria Biblia informava sobre essas populagoes, en- tretanto, conhecimentos mais objetivos ¢ menos “parciais” foram pos- siveis apenas com as descobertas da moderna arqueologia, que nos permitiu recuperar de modo mais integral ¢ verdadeiro os diferentes modelos daquelas civilizagoes. A faixa de terra que acolhe as muitas po- pulagées, fenfcias de um lado e hebraicas de outro, mas também cananeus, arameus etc., €um lugar estreito entre o deserto e o mar, contido entre o dominio egipcio e 0 mesopotamico, que acolhe Estados “de reduzida di- mensio” ¢ “substancialmente auténomos”, regidos por monarquias he- reditarias, em luta entre si, que vivem da agricultura e do comércio, com religides “fluidas e mutiveis” ¢ um tanto rudes, que giram em torno dos deuses El e Baal com a esposa Astarte, mas também com “deuses nacio- nais” e até “deuses estrangeiros”. Tal sincretismo é funcional para a vida comercial daqueles povos, seja por terra se ndo co- por mar, espalh lonias fenicias por todo o Mediterraneo (em Chipre, Rodes, Greta, na Sicilia; no norte da Africa, pense-se em Cartago) € tornando présperas as cidades (com 0 comércio da ptrpura ou dos cedros, por exemplo). Aestrutura social é aquela que é tipica do mundo antigo, com “patricios, plebeus, escravos”; na vida familiar, porém, a mulher tem um papel nao- subalterno; estamos diante de uma sociedad “préspera cnquante civil onde a vida é doce para todos, suntuosa para alguns” (Moscati). Quanto A cultura, fundamental foi o desenvolvimento dos conheci- mentos técnicos (de calculo, de escrita, mas também ligados aos proble- mas da navegacio). A descoberta mais significativa dessa cultura foi a do alfabeto, com 22 consoantes (sem as vogais), do qual derivam o alfabeto grego € depois os europeus, e que aconteceu pela necessidade de simpli- ficar e acelerar a comunicagio. HISTORIA DA PEDAGOGIA 69 A primeira produgao do alfabeto ocorre em Biblos (um dos centros da Feni ia), que deu, alias, nome ao livro (biblos em grego), pelas indtstrias de papiro que ali se encontravam. O desenvolvimento dos conhecimentos técnicos encontrava também uma codificagao nas hierarquias sacerdotais — em que estava presente um “chefe”, além dos varios grupos técnicos: guardas, administradores, até barbeiros, além de adivinhos. O aspecto li- terario e teolégico da cultura dos fenicios foi, porém, mais modesto, a parte o mito e 0 culto de Adénis, que circulou depois amplamente no Mediter- raneo, alimentando - como demonstrou Detienne - 0 imaginario antigo de um profundo erotismo e de uma forte sensualidade. Quanto aos pro- cessos educativos, sio aqueles tipicos das sociedades pré-gregas, influen- ciados pelos modelos dos grandes impérios “hidrdulicos” ¢ pelas “socie- dades sem escrita” em que predomina a sacralizacao dos saberes e a organizagio pragmatica das técnicas, e tais processos se desenvolvem so- bretudo na familia, no santudrio ou nas oficinas artesanais. Os processos de formagio coletiva sic confiados ao “bardo”, ao “profeta”, ao “sabio”, trés figuras-guia das comunidades pré-literdrias ¢ que desenvolvem uma agio de transmissao de saberes, de memoria histérica e de “educadores de massa”, como ainda se encontram entre os povos chamados primitivos. Ao longo das margens do Jordao, ao norte da Fenicia, atual Libano, estabele- ceram-se os hebreus: populagdes nomades que viviam do pastoreio, liga- das a uma religiao totalmente diversa daquela dos vizinhos e contempora- neos, monotefsta € que concebe Deus como espirito absolutamente transcendente, nao representavel e nao nominavel (é apenas “aquele que é”); um Deus que fez, porém, um pacto com seu povo (Israel), ao qual revelou a génese do mundo eas tabuas da lei e que o assiste na sua histéria, que & de softimentos impostos por Deus para pdr 2 prova o seu préprio povo, mas também de espera: de um Libertador, de um Messias, de um guia que fara Israel triunfar sobre todos os seus inimigos. Na Biblia esta contida a palavra de Deus ea historia do povo hebreu, eleito, mas cami- ziveis sofrimentos (destrui- nhando sempre por desvios de sua missao e ind cées, deportagées etc.). Do ponto de vista politico, Israel se organiza cada vez mais nitidamente na direcio monarquica (embora mantendo vivas as tribos ¢ seus conflitos recfprocos) com Saul, Davi e Salomao, depois vem a crise: 0 reino se divide (entre reino de Israel € reino de Juda), a religiao declina, para reanimar os hebreus intervém os profetas (Isaias e Jeremias, HISTORIA DA PEDAGOGIA 71 Aescola em Israel organiza-se em torno da interpretagao da Lei den- tro da sinagoga; 4 qual “era anexa uma escola de exegese” que, no perio- do helenistico, se envolveu em sérios contrastes em torno, justamente, da . Aos saduceus (helenizantes) opuseram- helenizacio da cultura hebraic: se os fariseus (antigregos) que remetiam a letra das Escrituras ¢ & tradigio interpretativa, salvaguardada de modo formalista. Assim, além de centro de oragio e de vida religiosa e civil, a sinagoga se torna também lugar de instrugio. A instrugio que ali se professava era religiosa, voltada tanto para a “palavra” quanto para os “costumes”. Os contetidos da instrugdio exam “wechos escolhidos da Tord”, a partir daqueles usados nos oficios religiosos cotidianos. Sé muito mais tarde (no século I d. C.) foi acrescen- tado o estudo da escrita € da aritmética. Nos séculos sucessivos, os hebreus da diaspora fixaram-se, em geral, sobre este modelo de formagio (ins- trucio religiosa), atribuindo também a esta o papel de salvar sua identi- dade cultural e sua tradigio histérica. A figura talvez mais significativa do pensamento hebraico helenizado, que se ocupou também de problemas pedagégicos, foi Filon de Alexandria ou o Judeu (25 a. C.- 50 d. C.), que tentou conjugar hebraismo e plato- artes libe- nismo, desenvolvendo alguns aspectos educativos: valorizou fAncia como tis como instrumentos da virtude; artes a aprender desde a ir “estudos preliminares” para a aquisigio da madura “sapiénc arquétipa divina”. Se o platonismo de Filon permaneceu estranho a cul- .que é “luz tura hebraica, seu pensamento foi, porém, central para a formagaio da cultura crista, até mesmo pedagégica, justamente pelo seu aspecto de mediador entre Escrituras e tradigho helenistica. 6 O “MILAGRE GREGO” No Ambito das civilizagées do mundo médio-oriental e mediterraneo, a Grécia ocupa um papel e tem uma lentidade politica e cultural de ni- tida originalidade € de altissimo relevo. Alguns estudiosos chegaram a falar até de “milagre grego” para sublinhar a nitida diferenga entre mundo grego e mundo mediterraneo em geral e a mudanga de rota que se opera -na Grécia - no Ambito da organizagio social e politica e na visio da cultura: mudanga que se realiza em diregio da laicizagdo, da racionalizacdo 2 FRAD 9 CAMBL © da universalizagdo. Embora mesclada de elementos provenientes do mundo oriental (mitos dos quais se nutre a cosmogonia grega: de Urano, de Gea etc.; religides ora nacionais ora de salvagao individual; concep- ces politicas estatais © monarquicas) € de outros ligados ao mundo me- diterréneo (comuns sobretudo As técnica s, das quais os gregos operam uma sintese original sublinhando os aspectos tedricos), os diversos ele- cos tendem cada vex mais a mentos mitico-religiosos ¢ técnico-pragmat se tornar instrumentos nas maos do homem para compreender ¢ dominat mundo natural e humano em que vive, tendendo portanto a laicizar-se, a fugir das praticas de tipo magico e esotérico (de iniciados € de carater sagrado) professadas por grupos sociais separados do resto da sociedade (os sacerdotes) € a tornar-se, pelo contririo, conhecimento préprio da mente que cada homem deve (ou pode) reconhecer como sua natureza mais especifica, conhecimento que deve ser criticado, renovado, aumen- tado, além de demonstrado na sua verdade € no seu rigor. Desse modo, no centro da cultura grega coloca-se a racionalidade, ou seja, aquele uso rigoroso da mente que se desenvolve na direcio légica (que demonstra) € critica (que discute abertamente cada solucio) ¢ que organiza cada Ambito da experiéncia humana, submetendo-o a wma re- construgio 4 luz da teoria, ou de um saber organico estruturado segundo principios € posto como valor em si mesmo. A racionalidade grega, de fato, tem este duplo aspecto: é regra universal na reconstrugdo da expe- rigncia, pela sua interpretagao; ¢ € um valor em s um fim a desejar por si mesmo, que realiza o aspecto mais alto do homem: sua vocagao a “vida contemplativa”. Sao esses aspectos — comuns a racionalidade — que dife- renciam nitidamente 0 mundo grego, nao porque outras civilizagges ig afirmam na sua plenitude e como norem tais aspectos, m: porque nao o: fim tltimo de toda ai » humana. Nesse sentido, podemos dizer que a Razao (0 Logos) é uma descoberta dos gregos. Tudo isso explica também a universalidade da sua cultura: sua posi- cdo na direcdo de uma humanidade que, em si, nio é nem grega nem egipcia, nem de outro grupo local, mas propria do homem em geral, como sujeito do “género humano” que, nao por acaso, é uma nocio que chega a matur do justamente no curso da filosofia grega, j4 no seu setor mais arcaico. Mas a uniyersalidade € propria também dos conhecimentos, de todos os conhecimentos, que devem vir a constituir-se em razao de uma HISTORIA DA PEDAGOGIA 73 mente nem histérica nem local, mas justamente universal, que represen- tea “livre universalidade humana’, posta como esséncia da subjetividade. Esse cardter de universalidade posto em esséncia pela racionalidade, que por sua vez é efeito de um processo de laicizacdo, investe cada ambito da cultura grega: 0 centifico (basta pensar na geometria que é redefinida de forma cognoscitiva pura, sem dependéncia ou interferéncia com a praxis da mensuragio pratica); o literario (basta pensar na wagédia ¢ em como ela encarna aspectos cruciais € permanentes da “condi na”: a relago com o destino-vontade dos deuses com Esquilo; a rela com as leis, a infragao do tabu com Sofocles; a desolagao diante do fim do mundo com Euripedes, em As iroianas); os filoséficos (falando de uma ética ou de uma estética universal, como de uma cosmologia valida para todos, de uma politica eficaz para todos os povos, de uma gnoseologia propria do homem enquanto homem). O “milagre grego” foi possivel por pelo menos duas condicées: a polis grega eo dinamismo da psicologia do homem grego, ligado por sua vez As condigées de vida (pobreza do ambiente originario, expansao comer- cial, abertura ao conhecimento/assimilagéo das outras culturas, coloni- zacao). A pélis, em particular, apresenta-se como uma cidade-Estado ex- tremamente carregada de fermentos, enquanto alimentada por tensdes ¢ conflitos, mas também por aberturas para 0 novo € por mudanga dos pré- prios equilibrios sociais, aspectos ignorados no mundo antigo. O homem grego, enfim, € bem representado tanto pela curiosidade € pela astitcia de Ulisses como pelo idealismo, pelo puro theorein de Platao ou pelo enciclopedismo de Aristételes ¢ pela paixdo ética dos tragicos ou de Epicuro, que coloca com vigor o tema do significado da vida: um homem aherto, carregado de tensdes, que confia na biissola do conhecimento para resolver os problemas da natureza e do proprio homem. Essas sdo as condig6es-chave para compreender a “virada” que se opera no mundo antigo com a civilizagéo grega: virada que investe em particular sobre a cultura, tornando-a mais auténoma, mais enciclopédica (articulada sobre todos os saberes € vista como sua reunido organica), mais propriamente humana (basta pensar na nogio de paidéia, de “forma- io humana” por meio de atividades mais préprias do homem, culturais portanto), mais abertamente teorética e submetida ao regulador da theoria (aspecto que a torna mais independente da tradigdo e a contrapoe a ela). 74 FRANCO CAMBI Sera entio esse modelo que permanecerd no centro da histéria ocidental € alimentara o mundo moderno. Também em pedagogia a Grécia ope- ‘a uma série de inovagoes que marcarao o destino desse saber no Oci- a edu- dente, como ja o salientamos. Em primeiro lugar, essa passagem cagio (como praxis ¢ como tradigao) A pedagogia (como teoria € como construgio de modelos auténomos € inovadores em relacio A tradigio) Depois, a construgio de um grande ideal de formagio humana com a paidéia: repita-se, 0 homem s6 € tal por meio do comércio fntimo com a cultura, que deve estrutura-lo como sujeito € torna-lo individuo-pes E ainda: a idéia dos studia humanitatis ligados a centralidade da literatura 0a € da histéria, dos saberes do homem ¢ pelo homem, que devem ser também 0 eixo cultural da escola e dos proprios programas de estudo Como também a divisao da formagao € da escola em dois ambitos: desin- teressada, cultural, de carater te6rico e contemplativo, por um lado; téc- nica, pragmitica, de cardter aplicativo, por outro, realizada nas oficinas e destinada ao aprendizado. Sao alguns dos principios que virao a estruturar durante dois mil a 2.500 anos os modelos e as agéncias de formagio proprios da tradigio ocidental ¢ que terao uma dimensio de “longa duragio”.

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