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ANO 11 / NÚMERO 130 R$ 14,90

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QUEBRA-CABEÇA GEOPOLÍTICO A DEBANDADA DA UNASUL ENTREVISTA MARTINHO DA VILA
O QUE QUEREM IDEOLOGIA E NÃO HÁ NEGROS
OS RUSSOS? POLÍTICA EXTERNA NA FOTO OFICIAL
POR NIKOLAI KOZHANOV POR LEANDRO GAVIÃO POR GUILHERME HENRIQUE

LE MONDE

diplomatique
BRASIL
2 Le Monde Diplomatique Brasil MAIO 2018

1968-2018

Maio, uma
esperança no
oceano
POR SERGE HALIMI*

© Samuel Casal

N
a vida de um povo, é um mo- ções mais midiatizadas foram também já pretendia “fazer da universidade que “os jovens franceses tenham von-
mento precioso. Levanta-se a as que tinham dado mais errado. Fale- uma empresa rentável”3 e garantir a tade de se tornar bilionários”.
tampa das leis sociais. De re- cido em outubro passado, o dirigente reprodução social. Macron tinha previsto comemorar
pente, a resignação e os costu- estudantil Jacques Sauvageot encar- Tais lembranças relativizam o no- Maio de 68. Tal festa teria um sentido,
mes se tornam assunto de reflexão, de- nava, ao contrário, uma das faces lu- vo discurso dominante que gostaria mas contra o “velho mundo” que ele
pois são questionados. O “rio das minosas e, por conseguinte, irrecupe- de constituir a oposição entre um pro- representa. Este velho mundo que, cin-
cidades cinza e sem esperança de ráveis do movimento de Maio. Ele gressismo cultural matinê de Maio de quenta anos depois, ainda se lembra do
oceano”1 encontra outros, se ilumina; tinha visto nesse movimento o “pro- 68 – que encarnariam Emmanuel Ma- seu medo e pretende completar sua
e todos desembocam no mar. O “por duto de coletivos operando em uma cron, Angela Merkel ou Justin Trudeau vingança..
que não?” substitui o “é assim mes- ótica que ultrapassava as individuali- – e uma “democracia iliberal” no estilo
mo”, o impossível acontece. Um contá- dades”.2 Ele lembrava que os insurgi- húngaro, como marcador de todos os *Serge Halimi é diretor do Le Monde
gio de levantes – há cinquenta anos, dos de então refletiam sobre a abolição combates políticos. Em resumo, o plu- Diplomatique.
não se falava ainda em “convergência do capitalismo, questão que, lamenta- ralismo das sociedades abertas contra
das lutas” – nos lembra que a história va ele, “não é mais feita por muita gen- o autoritarismo nacionalista, mas sem
não terminou, que as reformas e as re- te”. Seus camaradas e ele combatiam colocar em questão o sistema econô- 1 René Crevel, Détours [Desvios], La Nouvelle Re-
voluções que a moldaram queriam fre- uma “modernidade” fundada sobre a mico e as relações de poder que decor- vue Française, Paris, 1924.
2 “Mémoire combattante: quelques écrits de Jac-
quentemente abolir a obrigação de racionalização do trabalho em vez de rem dele.4 Transformar o presidente ques Sauvageot” [Memória combatente: escritos
obedecer e se submeter. sua divisão ou das riquezas. A globali- francês em símbolo internacional da de Jacques Sauvageot], Contretemps, n.37, Paris,
Em maio de 1968, o ensaio geral zação com a qual eles sonhavam visa- moderação democrática diante dos abr. 2018.
3 Segundo as palavras do reitor Jean Capelle, anali-
não levou a uma estreia. Um levante va ao “desenvolvimento necessário da “extremos” de todo tipo constitui, no sando o plano governamental de 1966 sobre o
geral marcado por uma das maiores solidariedade internacional”, não à entanto, um singular paradoxo no mo- ensino superior.
greves operárias da história da huma- circulação cada vez mais rápida das mento em que ele enfrenta os sindica- 4 Ler Pierre Rimbert, “De Varsovie à Washington, un
Mai 68 à l’envers”, [De Varsóvia a Washington, um
nidade teve até mesmo sua posterida- mercadorias. Enfim, em maio de 1968, tos, coloca em perigo o direito de asilo Maio de 68 às avessas”, Le Monde Diplomatique,
de maculada porque suas encarna- tratava-se de combater um poder que e parece ter como principal ambição jan. 2018.
MAIO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 3

EDITORIAL

Nossos
sonhos
não cabem
nas vossas
urnas1
POR SILVIO CACCIA BAVA

© Claudius
V
ivemos em um sistema político e começa pela mudança de valores que Para melhorar a vida dos trabalha- Dado que esse é um desafio sistêmi-
econômico viciado no lucro e na organizam nossa sociedade. dores e trabalhadoras brasileiros e pa- co, não é de uma só política, mas de uma
concentração da riqueza. Os re- Precisamos de uma economia ba- ra enfrentar a trajetória do desastre estratégia de “desenvolvimento”, nossa
cursos naturais e as pessoas seada no amor, na generosidade, na ambiental, há um caminho. Precisa- resposta precisa ser também articulada
precisam ser explorados até o limite e, hospitalidade, na cordialidade, empe- mos revigorar nossa democracia, res- e sistêmica, envolvendo todas as dimen-
quando não servem mais, são descar- nhada em promover uma cultura fun- gatá-la das mãos dos poderes econô- sões da opressão e da exploração.
tados como lixo, confinados nas fave- dada no cuidado, que acolha aqueles micos, colocá-la a serviço de um novo Tomemos a questão dos direitos da
las ou vão mofar nas prisões. que passam por dificuldades. Precisa- processo civilizatório. Só com esse no- mulher. Aí estão os direitos das mulhe-
É um sistema baseado na destrui- mos de uma sociedade que coloque vo poder democrático, com o controle res negras de não serem submetidas à
ção e exploração incessantes, no con- em primeiro lugar a melhoria do bem- da cidadania, será possível operar as violência policial, o direito das mulhe-
sumismo, no individualismo, na com- -estar das pessoas, e não o lucro. mudanças necessárias. res imigrantes de não serem deporta-
petição, na guerra de todos contra A mudança é radical. Implica rejei- Isso não vai acontecer da noite para das, o direito das mulheres trans de
todos, algo que chegou a um nível crí- tarmos a agenda econômica das gran- o dia. Será uma sucessão de embates, não serem vítimas do ódio e assédio...
tico. A lógica da austeridade promove des corporações e adotarmos uma agen- de conflitos, de mobilizações, para ir- o direito de todas sobre o próprio cor-
o aumento da desigualdade social, os da cidadã. O que significa isso? Acabar mos conquistando mais poder, in- po, o direito de todas de receber salá-
desastres climáticos, a pobreza endê- com o abismo entre ricos e pobres, criar fluenciando o desenho de novas leis, rio igual ao dos homens para funções
mica. E a desigualdade é fundada nas um grande número de empregos com preenchendo nosso Congresso Nacio- iguais, e assim vai... As diferenças não
discriminações, colocando uns contra bons salários, reduzir substancialmente nal com autênticos representantes do podem sumir, elas são a alma das mo-
outros com base na cor da pele, na fé as emissões de carbono, revigorar de povo, formulando e implementando bilizações. Se vierem a se articular, aí
religiosa, na sexualidade. baixo para cima nossa democracia. novas políticas públicas.2 sim temos uma resposta sistêmica a
Enfrentar esse sistema demanda Um programa político cidadão não Queremos manter e aprimorar o SUS um projeto de sociedade fundado nas
conectar os processos que geram as pode esconder o sofrimento popular. como um sistema de saúde pública uni- discriminações.
desigualdades econômicas e sociais Precisa se dirigir à crescente revolta versal e gratuito. Queremos educação Se hoje não temos partidos políti-
com o legado persistente da escravidão popular e alimentar a rejeição às polí- universal, gratuita e de qualidade em to- cos capazes de fazer essa oposição de
e se comprometer com os movimentos ticas do atual governo, construindo dos os níveis, inclusive a universidade. caráter sistêmico, em diálogo e intera-
negros de defesa de direitos; com os uma narrativa nacional que permita Queremos que os serviços públicos se- ção com os movimentos sociais, a his-
movimentos de defesa dos direitos das aos brasileiros e brasileiras enxergar jam pagos pelo conjunto dos impostos, e tória nos ensina que é na sociedade ci-
mulheres; com as lutas dos povos indí- as diferenças entre as políticas de aus- não por seus usuários. Queremos uma vil que se gestam essas rupturas. As
genas; com o respeito e a valorização teridade, que se aproveitam do medo matriz energética limpa e que o petróleo mudanças transformadoras e progres-
da diversidade religiosa e cultural; com para aprofundar a desigualdade, e as permaneça no subsolo. Queremos ga- sistas são sempre populares.
o acolhimento dos imigrantes. políticas para a melhoria da qualidade rantir saneamento básico para todos e
Precisamos promover a redução de vida de todos. erradicar a pobreza e o analfabetismo de
drástica das desigualdades econômi- É importante fazer a denúncia da nosso país. Queremos leis que contro-
cas, raciais e de gênero. Trata-se de restrição crescente dos recursos pú- lem o setor financeiro e os grandes ban- 1 Essa frase ficou famosa nas mobilizações do Movi-
mento dos Indignados, na Espanha, em 2011. Este
unir a luta por justiça econômica com blicos para as políticas sociais, como a cos para que eles obedeçam à estratégia editorial está baseado no livro de Naomi Klein, Não
análises de como o racismo e a misogi- emenda constitucional que congelou de melhoria da qualidade de vida para basta dizer não: resistir à nova política de choque
nia são ferramentas poderosas para por vinte anos os gastos sociais, e de- todos. Queremos implantar uma tribu- e conquistar o mundo do qual precisamos (Ber-
trand Brasil, Rio de Janeiro, 2017). A obra é a siste-
impor as desigualdades. monstrar como educação, saúde, tação progressiva que faça os ricos, fi- matização de um debate de lideranças mundiais da
Temos de nos opor a essa economia transportes públicos, segurança pú- nalmente, pagarem impostos condizen- sociedade civil que se reuniram para buscar alter-
capitalista baseada na destruição e na blica, parques e assistência social es- tes com sua riqueza. Queremos controles nativas ao neoliberalismo.
2 Ver a esse respeito o movimento Our Revolution
exploração incessante, e apresentar tão cada vez mais precarizados por efetivos que não permitam a evasão de (www.ourrevolution.com), que hoje se organiza
uma alternativa. E essa transformação falta de recursos. divisas e a sonegação de impostos. nos Estados Unidos.
4 Le Monde Diplomatique Brasil MAIO 2018

PROTEÇÃO PATRIMONIAL E LETALIDADE

A intervenção de
interesses privados
na segurança pública
no Rio de Janeiro
Circulam entre policiais e moradores de favelas
rumores de que alguns chefes do tráfico estariam agora
incentivando roubos e participando de seus lucros,
em vez de reprimi-los. É a resposta a essa transformação
que parece pautar as recentes iniciativas de reforço na
segurança pública, que culminaram com a intervenção federal
POR CAROLINA CHRISTOPH GRILLO E DANIEL VELOSO HIRATA**

© Rodrigo Leão
“S
alve-se quem puder.” No que verdade que o traficante figura no cros, em vez de reprimi-los. É a respos- a estratégia gerencial, concebida por
tange às políticas de segurança imaginário popular como o inimigo ta a essa transformação que parece consultorias privadas, é construir indi-
pública, o Rio de Janeiro parece público número um, eclipsando o la- pautar as recentes iniciativas de refor- cadores de performance capazes de in-
levar esse dito popular ao paro- drão. Só que as prisões em flagrante ço na segurança pública, que culmi- duzir a ação dos profissionais de segu-
xismo. Mas quem pode se salvar? Eis o no Rio de Janeiro têm ocorrido antes naram com a intervenção federal. rança pública em certa direção.
não dito que ajuda a entender como se por crimes contra o patrimônio, como No entanto, o gerencialismo da ad-
trata menos de inação que de um tipo roubo (34%), furto (26%) e receptação ministração pública do Rio de Janeiro
específico de ação pública. Aquela que (4%), que somam 64% do total de fla- vai muito mal, a ponto de, em 2016, o
se propõe a salvar uns em detrimento grantes, do que por tráfico de drogas Qualquer “dono de governo decretar estado de calamida-
de outros, antes a vida social das coisas (22%).1 Ainda do ponto de vista da vio- de pública no âmbito da administra-
que a das pessoas. Num estado que os- lência extralegal (e suas conhecidas
morro” carioca sabe ção financeira. Passamos por um dos
tenta uma taxa de letalidade violenta relações com os poderes oficiais), des- como preservar o momentos mais graves da história flu-
acima da média nacional – concentra- de os primeiros esquadrões da morte cotidiano de suas “bocas minense, que é tecnicamente uma cri-
da nos jovens pretos, pobres e periféri- dos anos 1950 até suas metamorfoses de fumo” mediante a se de Estado. Produziu-se a incapaci-
cos –, a prioridade dos órgãos de segu- nos dias atuais, é o ladrão, e não o tra- dade de arrecadação por meio de
rança pública tem sido a defesa da ficante, o alvo preferencial dos grupos
negociação do “arrego” programas de isenção fiscal politica-
propriedade, não da vida, derraman- de extermínio. com as forças da ordem mente orientados, desencadeando a
do-se, inclusive, muito sangue para es- Qualquer “dono de morro” carioca inviabilidade operativa da administra-
se fim. Sustentamos aqui a hipótese de sabe como preservar o cotidiano de ção, o fechamento de setores estratégi-
que as políticas de uso da força legal no suas “bocas de fumo” mediante a ne- Desde 2009, a defesa patrimonial cos, atrasos no pagamento dos salários
Rio de Janeiro se dirigem principal- gociação do “arrego” com as forças da possui inscrição oficial e dirige as de servidores, sucateamento de servi-
mente à proteção patrimonial e têm si- ordem, mas não pode se salvar das ações e esforços policiais em sua atua- ços públicos e mesmo de obras do pas-
do cada vez mais pautadas por grupos operações dessas mesmas forças ção cotidiana. Os indicadores estraté- sado recente de megalomaníacos
cujo interesse é salvar-se das crescen- quando da recuperação de veículos gicos de criminalidade no estado do eventos, para ficar apenas em alguns
tes ameaças à posse e circulação de ri- roubados. Por isso, traficantes sempre Rio de Janeiro são três: letalidade vio- (poucos) exemplos. Esse cenário de
quezas no estado. se esforçaram para controlar a atua- lenta, roubo de veículos e roubo de rua. terra arrasada foi provocado pelos des-
Já há algumas décadas ouve-se fa- ção de assaltantes, por vezes sacrifi- Note-se que, dos três indicadores, dois mandos, a pilhagem e a péssima admi-
lar que as mortes em favelas e perife- cando-lhes a vida para manter seus se referem a crimes patrimoniais, e há nistração de políticos investigados que
rias são produto de uma violenta e fra- negócios. Nos últimos cinco anos, en- pressões de entidades patronais para levaram a população do estado a um
cassada guerra às drogas. No entanto, tretanto, a incidência de roubos no es- que o roubo de cargas seja incluído co- poço cujo fundo parece não ter fim.
a circunscrição territorial da repres- tado cresceu 83%, o que aponta para mo quarto indicador. Para o Instituto Segundo a parte desse mesmo gru-
são a um mercado reconhecidamente uma transformação em curso nos de Segurança Pública (ISP-RJ), tratou- po político encastelada em Brasília, a
transnacional, operando por atores mercados criminais fluminenses. Cir- -se de produzir “indicadores com salvação passaria pela chantagem
muito mais diversificados que os pre- culam entre policiais e moradores de maior impacto na sensação de insegu- aceita de joelhos de um empréstimo
tos e pobres mortos em favelas, indica favelas rumores de que alguns chefes rança da população”, que serviriam junto ao grupo francês Paribas e pelo
haver outra preocupação que se so- do tráfico estariam agora incentivan- para o monitoramento das ações em voluntarismo militarista da interven-
brepõe ao combate às drogas. É bem do roubos e participando de seus lu- toda a área de segurança no estado.2 Já ção federal na segurança pública. O
MAIO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 5

aceno positivo de parte da população mo em qualquer lugar do mundo, combate ao roubo de cargas. Entre as minais no Rio de Janeiro. E não se trata
junto aos salvadores parece mais o quem financia escolhe”.4 poucas exceções estão as patrulhas em de fazer suposições simplórias, como a
gesto do náufrago segurando a pri- Além de violar a universalidade da pontos turísticos realizadas, segundo de que desempregados tenham passa-
meira coisa que vê pela frente do que a segurança pública via prestações de os jornais, com o intuito de proporcio- do a roubar. Nossa hipótese é de que a
subscrição consciente de suas conse- serviços privados em áreas específicas, nar maior sensação de segurança à po- crise afetou tanto os comércios legais
quências. Alguns chamariam isso de busca-se produzir a sensação de segu- pulação. De resto, a prioridade de en- como o tráfico de drogas, estimulan-
“doutrina do choque”, no caso do Rio rança pelo aumento da carga de traba- frentamento ao roubo de cargas se do, de um lado, a receptação de cargas
de Janeiro, choque feito por fios de al- lho dos profissionais, e não pelo reforço explicita nos bloqueios do Exército em roubadas por comerciantes e, de ou-
ta-tensão. Com inflação acima da mé- de seu contingente. A oficialização do estradas e operações em áreas a que a tro, as guerras concorrenciais entre
dia nacional, elevado custo de vida e “bico”, que retira desses profissionais imprensa se refere como notórios cen- facções e uma mudança na relação do
desemprego crescente, o Rio atravessa seu tempo de descanso, com impactos tros de distribuição de cargas rouba- tráfico com os roubos.
uma grave recessão econômica, cujo sobre sua saúde mental e integridade fí- das, como a Vila Kennedy e os comple- “Roubo de carga no Rio de Janeiro é
indicador mais visível seja talvez o sica, foi agravada pelo contexto de pe- xos do Lins, Chapadão e Pedreira. saque”, afirmou o presidente da Fe-
crescimento da população em situa- núria do estado, quando policiais pas- transcarga em evento público realiza-
ção de rua, que triplicou na capital nos saram a receber precariamente seus do na OAB-RJ. Segundo ele, cargas vi-
últimos anos. É em meio a esse ator- salários. A “venda do descanso” não in- sadas por quadrilhas especializadas
doamento que se fortalece a adesão às corporado à folha de pagamento (com A compreensão desse no resto do país, como o aço e o café
promessas de lei e ordem. valores variando entre R$ 150 e R$ 200 momento deve passar cru, não são roubadas no Rio de Janei-
A compreensão desse momento de- por turno adicional de oito horas) apre- ro, onde se rouba sobretudo aquilo que
ve passar pela atenção às relações en- sentou-se como salvação.
pela atenção às relações é possível distribuir em poucas horas
tre os grupos políticos que há tempos Uma dinâmica perversa parece ter entre os grupos políticos dentro das favelas para os receptado-
governam o estado do Rio de Janeiro e sido gestada nas polícias. O sinal ama- que há tempos governam res a que se tem acesso. A imprensa
poderosos grupos privados, que têm relo foi acionado pelo registro de dimi- o Rio e poderosos tem divulgado imagens de caminhões
direcionado as políticas de segurança nuição do efetivo para o patrulhamen- sendo descarregados por pessoas que,
pública cada vez mais para a defesa pa- to em alguns bairros, porque policiais
grupos privados como num saque, apressadamente le-
trimonial. Isso não é novidade, e há preferem trabalhar para as “Operações vam consigo o que podem. É muitas
uma longa história que poderia ser Presente”, com pagamentos mais ge- vezes possível ao consumidor final de-
contada. Mas nos concentraremos em nerosos que aqueles feitos por meio do É de fato preocupante o crescimen- tectar a origem dessas mercadorias,
apenas alguns pontos dos desdobra- Regime Adicional de Serviço (RAS). O to de 200% na incidência de roubos de especialmente quando os preços são
mentos recentes desse percurso. sinal vermelho foi ligado quando o já carga nos últimos cinco anos no Rio de muito baixos. No entanto, lembremos,
A chamada Segurança Presente citado deputado Paulo Melo foi preso Janeiro, que produz um impacto eco- cada um se salva como pode.
constitui um movimento importante. junto com Jorge Picciani, presidente da nômico concreto, à medida que au- E, em meio ao “salve-se quem pu-
Gestada no interior de articulações en- Alerj, acusados de receber propinas de menta o preço de fretes e seguros e in- der” do Rio de Janeiro, nem quem pen-
tre a Secretaria de Estado de Governo e empresários dos ônibus. Além disso, cide sobre o preço final dos produtos sou poder se salvar tem conseguido.
setores empresariais, ela teve início no Orlando Diniz, ex-presidente da Feco- ao consumidor. Empresas têm deixa- Apesar de todos os reforços no policia-
fim de 2015 por meio de um convênio mércio, preso em desdobramento da do de operar no Rio de Janeiro e os mento ostensivo e da média de cinco
entre a Secretaria Estadual de Assis- Operação Lava Jato que visava o grupo Correios passaram a cobrar uma taxa mortes por dia “em decorrência de
tência Social e Direitos Humanos, a do ex-governador Sérgio Cabral, está adicional no frete para o estado. Em oposição à intervenção policial”, os cri-
Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro sendo acusado pelo Ministério Público relatório publicado em 2016, a Federa- mes contra o patrimônio, incluso o
e a Federação do Comércio do Estado de fabricar dossiês com dados sigilosos ção das Indústrias do Estado do Rio de roubo de carga, continuam aumentan-
do Rio de Janeiro (Fecomércio) (decre- coletados por policiais civis. As rela- Janeiro (Firjan) estimou um prejuízo do. O que temos visto são agentes das
tos n. 45.475/2015 e n. 45.702/2016). ções perigosas entre meios empresa- de R$ 6,1 bilhões proporcionado por forças de ordem matando e morrendo
Com investimentos partilhados entre riais, políticos, policiais e criminosos esse tipo de crime entre 2011 e 2015. em malsucedidas ações dirigidas à
os poderes públicos e a entidade patro- parece ter sido favorecida por esse mo- Representantes dessa e de outras enti- proteção patrimonial. Vemos o estado
nal, estimados em quase R$ 50 milhões vimento de salvaguarda patrimonial. dades patronais, como a Associação colocar o valor das coisas acima do va-
anuais, estabeleceu-se uma gratifica- Seria esse o sentido oculto da frase de Comercial do Rio de Janeiro (ACRJ) e a lor das pessoas, como faz o ladrão. Es-
ção temporária a agentes das Forças Paulo Melo: “Quem financia escolhe”? Federação dos Transportadores de te, quando rouba à mão armada, pro-
Armadas, policiais civis e policiais mi- Para nós, a intervenção federal no Cargas do Estado do Rio de Janeiro duz uma equivalência circunstancial
litares que reforçam o patrulhamento Rio de Janeiro pode ser pensada tam- (Fetranscarga), reuniram-se diversas entre vidas e coisas de tipo “dá-me tuas
de áreas específicas. bém por meio do direcionamento das vezes com autoridades públicas esta- coisas e deixo-te a vida”. Arrisca inclu-
Trata-se de um programa de prote- ações de segurança pública para a duais e federais das áreas de seguran- sive a própria vida, liberdade e integri-
ção patrimonial cujo objetivo é esti- atuação na proteção patrimonial cons- ça e defesa para exigir maior seguran- dade física para subtrair bens das víti-
mular o comércio carioca. Por isso, truída nas relações entre entidades ça patrimonial e alertar para o risco de mas. Espera-se do estado que não aja
sua atuação se concentra em áreas de empresariais e poderes públicos. “Pôr desabastecimento. Não resta dúvida como um ladrão.
apelo turístico, como o Aterro do Fla- termo ao grave comprometimento da de que a forte pressão política exercida
mengo e a Lagoa Rodrigo de Freitas, ordem pública” foi o argumento cons- por essas entidades foi determinante *Carolina Christoph Grillo é pós-doutoran-
ou de forte atividade comercial, como titucional evocado para fundamentar para o decreto da Garantia da Lei e da da Fapesp do Departamento de Sociologia da
o Centro, a Lapa e o Méier. Logo no a intervenção, cuja plausibilidade fora Ordem (GLO) e, depois, a intervenção. Universidade de São Paulo; Daniel Veloso
início do Segurança Presente, o então preparada durante o Carnaval pela co- Não questionamos aqui a legitimidade Hirata é professor de Sociologia da Universi-
secretário de Segurança Pública, José bertura midiática de roubos e arras- dessa pressão. É, contudo, digno de dade Federal Fluminense.
Mariano Beltrame, se disse não infor- tões nas ruas da capital. A ênfase con- nota que, no poço sem fim em que se
mado sobre o programa e classificou a ferida aos crimes contra o patrimônio encontra o Rio de Janeiro, foram esses
iniciativa como segurança privada se- na construção do imaginário de des- os únicos gritos de socorro atendidos.
melhante à “vigilância de shopping”. controle na segurança do Rio aponta Em meio ao “salve-se quem puder”,
1 Dados da pesquisa “Liberdade mais que tardia: as
Para Beltrame, “o problema desse tipo para o sentido da “ordem pública” que quem poderá se salvar? audiências de custódia no Rio de Janeiro”, realiza-
de patrulhamento é que eles (os agen- se viu comprometido. Só não foi expli- No entanto, sabemos também que da pelo Cesec em parceria com o Iser e publicada
tes) não trabalham em cima da man- citado o tipo de roubo que realmente cada um se salva como pode, e o au- em dezembro de 2016. Disponível em: <https://
goo.gl/XERysE>.
cha criminal. Quem paga leva”.3 Já o preocupa as autoridades a ponto de ar- mento dos roubos de carga parece 2 Ver em: <https://goo.gl/jGzoum>.
então secretário de Governo do Esta- ticularem uma intervenção. subscrever a essa lógica. Temos traba- 3 “Beltrame critica o Segurança Presente”, O Globo,
do, Paulo Melo, esclareceu, em defesa A maioria das operações do Exérci- lhado com a hipótese de que a crise 10 dez. 2016.
4 Agência Pública, “Operação policial financiada por
ao programa, que a escolha das áreas to no Rio de Janeiro, antes e depois da econômica contribuiu para as recen- empresários cariocas mira moradores de rua”, 19
foi feita a pedido do cliente e que, “co- intervenção, tem tido como foco o tes transformações nos mercados cri- fev. 2016.
6 Le Monde Diplomatique Brasil MAIO 2018

ASSASSINATOS DE POLÍTICOS E DE MILITANTES SEM-TERRA

A volta da violência política no Brasil


Parecem longínquas as capas de revistas que prometiam ao Brasil um futuro radiante. Abalado por uma onda
de violências, como o assassinato da vereadora socialista Marielle Franco, o maior país da América do Sul multiplica
rupturas com a ordem constitucional, a ponto de certos direitos adquiridos após o fim da ditadura, em 1984,
parecerem ameaçados. A começar pela liberdade de expressão e de escolher seus dirigentes
POR ANNE VIGNA*

© Rodrigo Leão

D
esde 2016 e da destituição da gressista (PP, direita), os felicitou sem de Leandro Bonotto. Desde a década nhecia esse fenômeno na política,
presidenta Dilma Rousseff pelo nenhum constrangimento: “Atirar de 1990, esse proprietário se opõe vio- contrariamente ao México ou à Co-
Congresso – uma operação que ovo, levantar o relho, mostra onde es- lentamente ao MST e à recuperação de lômbia”, analisa Maurício Santoro,
a esquerda designa como “gol- tão os gaúchos”. terras empreendida pelo Instituto Na- professor de Ciência Política da Uni-
pe de Estado parlamentar” –, o Brasil Ao longo de uma carreira política cional de Colonização e Reforma Agrá- versidade Estadual do Rio de Janeiro.
parece retomar um passado que mui- de mais de cinquenta anos, o ex-presi- ria (Incra). Não é exatamente uma sur- “No mesmo mês, atiraram na carava-
tos achavam superado: o de uma terra dente Lula – preso desde o dia 7 de abril presa: todos os ataques perpetrados na do Lula e assassinaram uma verea-
regida pelos “colonos” e “bandeiran- – sempre percorreu o país sem sofrer contra a caravana de Lula foram pre- dora de esquerda no Rio, Marielle
tes”, caciques locais que se utilizavam nenhum perigo. Contudo, apenas no parados por associações de grandes Franco. Esses acontecimentos trágicos
da violência para se livrar das pessoas mês de março, precisou enfrentar uma proprietários que atacam abertamen- são inéditos em nossa história con-
consideradas um estorvo. Estorvo são série de bloqueios de milícias armadas te o MST em ações violentas. Um deles, temporânea”, completa. Pela primeira
os de esquerda e os pobres, notada- de tratores, pedras, fuzis. O objetivo: Gedeão Ferreira, presidente da Fede- vez, a violência toca personalidades
mente os sem-terra que ocupam terras impedir a caravana mobilizada pelo ração de Agricultura do Rio Grande do políticas de primeiro escalão. Para os
improdutivas, que, segundo a Consti- candidato à Presidência para reunir o Sul, declarou quando tomou posse movimentos sociais, isso não é novi-
tuição, deveriam ser redistribuídas no apoio da população contra sua conde- desse cargo: “Vamos enfrentar o MST dade e tem crescido explicitamente.
âmbito da reforma agrária. nação a doze anos de prisão por cor- e o Incra. Suas ocupações têm como Segundo a Comissão Pastoral da Terra
Enquanto o país comemora os 130 rupção passiva – condenação denun- única finalidade privar os produtores (CPT), criada sob a ditadura militar
anos de abolição da escravatura no ciada pela esquerda e também por 122 rurais de suas propriedades”.2 Conde- pela Conferência Nacional dos Bispos
próximo 13 de maio, um dos símbolos juristas brasileiros que, em um conjun- nado em 2002 por “desobediência à no Brasil, setenta militantes foram as-
mais marcantes desse triste período fi- to de artigos, evidenciam a parcialida- justiça” e “iniciação ao crime” depois sassinados em 2017, número maior
gura nas telas de televisão: o chicote de de uma acusação fundada na con- de ter recusado o acesso de técnicos do que em 2016, com 61 vítimas. Entre as
de couro. Grandes proprietários o uti- vicção do juiz, e não em provas.1 Incra às suas propriedades, Ferreira foi setenta mortes do ano passado, 52 fo-
lizaram para bater em camponeses do absolvido no ano seguinte pelo Tribu- ram ligadas a conflitos de terra.
Movimento dos Trabalhadores Rurais DEZ CAMPONESES TORTURADOS nal Regional Federal da 4ª região, a “O fim do governo do PT [esquer-
Sem Terra (MST) que esperavam a E MORTOS EM 2017 mesma corte que condenou em segun- da] conduziu a uma agudização nítida
passagem da caravana do ex-presiden- O inquérito policial aberto para da instância o ex-presidente Lula. da violência”, confirma José Batista
te Luiz Inácio Lula da Silva no Sul do apurar as investidas bélicas contra a “O Brasil é um país muito violento, Afonso, advogado da CPT no estado do
país, no dia 22 de março. A senadora caravana no dia 27 de março já identi- com um número recorde de homicí- Pará. “Observa-se uma reorganização
Ana Amélia Lemos, do Partido Pro- ficou a origem dos ataques: a fazenda dios, mas tradicionalmente não se co- das associações de grandes proprietá-
MAIO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 7

rios de terra e sua aproximação com as que somam 40 mil hectares, quase nalizações dos rejeitos, obrigando a PRESOS SOB ACUSAÇÕES FALACIOSAS
forças da ordem. No Pará, isso é parti- quatro vezes o tamanho de Paris. refinaria a reduzir sua produção em “Enfrentamos um ataque sem pre-
cularmente claro, com 21 assassinatos 50%. Duas semanas depois, em 12 de cedentes”, conta Ney Strozake, advoga-
no ano passado. Há muito tempo não MORTES CAUSADAS PELA POLÍCIA março, um dos dirigentes da associa- do do MST. “Em março, uma de nossas
víamos isso”, completa. Entre esses De acordo com os movimentos so- ção, Paulo Sérgio, foi assassinado – o ocupações foi atingida com produtos
mortos, estavam dez camponeses in- ciais, essas terras eram bem utilizadas segundo em três meses. tóxicos expelidos por aviões de grandes
tegrantes da Liga de Camponeses Po- até a morte do patriarca, Honorato Ba- proprietários da Bahia. No Sul, vários
bres: foram torturados e em seguida binski. As ocupações da Santa Lúcia de nossos militantes foram presos sob
executados durante uma ocupação da começaram em 2013, quando 5.694 pretextos falaciosos, e liberá-los tem se
propriedade Santa Lúcia, no dia 24 de hectares deixaram de ser cultivados. O “Em março, uma de mostrado bem complicado”, conta.
maio de 2017. Esse massacre em Pau herdeiro, Honorato Babinski Filho, No dia 27 de março, ainda no Pará,
nossas ocupações foi o padre José Amaro foi preso. A polícia
D’Arco é o pior depois do massacre de com 25 anos, vive no Rio de Janeiro e se
Eldorado dos Carajás, em 1996, quan- apresenta como “ator” nas redes so- atingida com produtos o acusa de uma série de crimes que
do dezenove camponeses do MST fo- ciais, onde não esconde sua vida no- tóxicos expelidos vão de assédio sexual a lavagem de di-
ram executados por policiais. A inves- turna agitada. Contudo, exige da justi- por aviões de grandes nheiro, passando por invasão de ter-
tigação do caso em Pau D’Arco acaba ça que expulse os ocupantes. À juíza ras. Esse padre lutou ao lado da religio-
proprietários sa Dorothy Stang, assassinada em
de condenar 29 policiais. Os especia- que solicitou provas de atividade na fa-
listas mostraram que, além dos feri- zenda, ele forneceu documentos como da Bahia” 2005 por latifundiários. A prisão de
mentos fatais, os corpos apresenta- o contrato de compra e venda de sete- Amaro foi denunciada por todos que
vam múltiplas fraturas, atestando a centas vacas e um certificado de vaci- conhecem suas ações junto aos pobres
tortura relatada por outras vítimas. nação de 75 animais, porém com datas Desde janeiro, a associação denun- da região. “Trata-se de uma nova tática
posteriores de um mês após as solicita- ciou ameaças de morte proferidas por visando impedir o trabalho dessas
ções da justiça. Ele conseguiu então na integrantes da Polícia Militar. “Imedia- pessoas”, comenta o diretor da Comis-
justiça a expulsão dos camponeses, tamente entrei em contato com o se- são Pastoral da Terra, Ruben Siqueira.
“O Brasil é um país que voltariam a ocupar as terras mais cretário de Segurança do estado do Pa- “O assassinato de Dorothy Stang freou
muito violento, com três vezes. A última delas, fatal: “O in- rá para que ele destacasse uma as ações violentas de latifundiários pe-
um número recorde quérito deve determinar quem orde- proteção”, conta Armando Brasil, pro- la atenção internacional que o caso
atraiu; destruir a reputação de um ho-
de homicídios, mas nou esse crime. Mas, como é comum curador de justiça militar no Pará. “Ele
no Pará, os policiais fazem bico como me respondeu que não era seu papel e mem, contudo, pode ser mais eficaz
tradicionalmente agentes de segurança para os latifun- ainda disse que os dirigentes da asso- para acabar com sua ação militante
não se conhecia esse diários”, acrescenta o procurador, para ciação eram invasores de terras. Como que matá-lo”, avalia.
fenômeno na política” explicar seu pessimismo quanto aos se isso tivesse qualquer relação com o Mesmo com as acusações partindo
resultados da investigação. caso. Sem mencionar que isso jamais de latifundiários, a justiça confirmou
Os policiais do Pará também ven- foi provado. Por outro lado, o assassi- a detenção provisória do padre Amaro.
dem seus serviços a empresas de mi- nato aconteceu de fato”, relata. Segun- Ameaçado de morte repetidas vezes, o
Em seus depoimentos, os policiais neração. Em Barcarena, a associação do ele, “todo mundo sabe que policiais padre está na mesma prisão que o as-
afirmam que entraram na fazenda Cainquiama denunciou diversas vezes trabalham para a refinaria. O inquérito sassino de Stang, no estado brasileiro
com mandatos de interdição contra al- os rejeitos de resíduos tóxicos pratica- vai provar; de qualquer forma, não vejo mais perigoso para os militantes. E a
guns camponeses e que eles atiraram. dos pela multinacional Norsk Hydro, outra explicação para esses assassina- justiça não vê nenhum inconveniente
Dois policiais, contudo, fizeram acor- presente em quarenta países e com tos”. Desde então, pelo menos três mu- nesse fato.
do de delação premiada com redução 34,4% das ações pertencentes ao Esta- lheres da associação também sofre-
da pena e confirmaram a versão dos do norueguês. A Norsk Hydro possui ram ameaças de morte e ainda não *Anne Vigna é jornalista.
sobreviventes. “Os especialistas mos- em Barcarena “a maior refinaria de contam com nenhuma medida de
traram também que os camponeses alumínio do mundo”, segundo a em- proteção. Até existe um programa de
não atiraram; a versão dos policiais presa. No dia 23 de fevereiro, a associa- proteção de militantes, mas ele é ine- 1 Carol Proner, Gisele Cittadino, Gisele Ricobom e
João Ricardo W. Dornelles (orgs.), Comentários a
não se sustenta”, precisa o procurador ção notificou novamente as autorida- ficaz: as 683 pessoas que se benefi- uma sentença anunciada, o processo Lula, Bauru,
Leonardo Caldas. O conflito é clássico des sobre os rejeitos clandestinos, ciam dele na maioria das vezes rece- Canal 6 Editora, 2017.
nesse estado da Amazônia: a fazenda negados pela mineradora, mas confir- bem apenas acompanhamento via 2 Joaquim de Carvalho, “Ruralista pró-Bolsonaro,
candidata do MBL, ativista pró-armas... quem está
Santa Lúcia pertence à família Babins- mados pelas autoridades sanitárias lo- telefone. Apenas catorze estão de fato organizando os ataques a Lula no Sul”, Diário do
ki e é uma de suas onze propriedades, cais. Ela mostrou às autoridades as ca- sob proteção policial. Centro do Mundo, São Paulo, 25 mar. 2018.

A BATALHA DOS LIVROS


Formação da Esquerda no Brasil

“A Batalha dos Livros é um capítulo da guerra universal contra o obscurantismo que engessa as civilizações, man-
tém as desigualdades e protege as injustiças. Da Revolução Francesa à Russa de 1917, o Brasil não conheceu senão
seus ecos. Foi, então, preciso esse mergulho profundo entre as cinzas dos livros e as horas concentradas de leitura,
para fazer emergir entre os militantes os programas de formação política, as editoras, as livrarias e as bibliotecas.
A vigilância e a repressão conduziram a militância a uma batalha cotidiana, transformando suas lutas em um ato
de coragem e em um gesto de amor à cultura.”
Marisa Midori Deaecto
Autor: Lincoln Secco Professora de História do Livro, Universidade de São Paulo
Editora: Ateliê Editorial
Preço: R$ 42,00 (240 pp.)

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8 Le Monde Diplomatique Brasil MAIO 2018

BANQUETE RURALISTA

Aos cuidados dos proprietários de terra


Com 235 deputados de 513 no total, e 27 senadores de 81, a bancada ruralista se mostra bastante empreendedora. De sua autoria
estão iniciativas que aumentariam a violência no campo se aprovadas: um projeto de lei legalizando o porte de armas por produtores
rurais; outro que propõe inscrever o MST e outros movimentos de trabalhadores do campo na lista de “organizações terroristas”
POR ANNE VIGNA*

U
ma grande reunião acontece Carlos Frederico Marés de Souza Fi-
todas as terças em uma linda lho, professor de Direito Agrário da
pousada de um bairro de alto PUC-PR. “E o enquadramento legal já
padrão de Brasília. “É um al- era limitado. A lei permite, atualmen-
moço e o menu muda toda semana”, te, o uso de pesticidas proibidos em
explica o encarregado de comunica- seu país de origem.”
ção da “bancada ruralista”. No cardá- Com 235 deputados de 513 no total,
pio não estão petiscos ou menu de- e 27 senadores de 81, a bancada ruralis-
gustação, e sim temas que esse grupo ta se mostra bastante empreendedora.
de latifundiários do Parlamento dis- De sua autoria estão iniciativas que au-
cutem em sala fechada para, em se- mentariam a violência no campo se
guida, levar ao Congresso ou ao Palá- aprovadas: um projeto de lei legalizan-
cio do Planalto. do o porte de armas por produtores ru-
“É exatamente isso: eles discutem rais; outro que propõe inscrever o MST
com qual molho vão devorar os direi- e outros movimentos de trabalhadores
tos indígenas ou a reforma agrária”, do campo na lista de “organizações
ironiza Alceu Castilho, responsável terroristas”...
pelo De Olho nos Ruralistas, um ob- Os ruralistas também dirigiram
© Rodrigo Leão

servatório da indústria agroalimentar duas comissões parlamentares de in-


no Brasil. Desde a chegada de Michel quérito (CPIs) sobre o Incra e a Funai.
Temer à Presidência em 2016, a banca- Essas comissões pedem que a justiça
da parlamentar ganhou uma influên- investigue 96 pessoas (antropólogos,
cia inédita. O mérito? Ter contribuído responsáveis de ONGs nacionais e in-
com metade dos votos do Congresso ternacionais, procuradores, juízes
que destituíram a presidenta Dilma neração em uma das reservas amazô- ganismos públicos essenciais, o Insti- etc.), acusadas por eles de “fraudes
Rousseff. Confrontado com uma im- nicas mais importantes, a Renca. Em tuto Nacional de Colonização e da na demarcação e homologação de
popularidade abissal (menos de 5% ambas as vezes, a pressão internacio- Reforma Agrária (Incra) e a Fundação terras indígenas”. “O Poder Judiciário
dos brasileiros se dizem satisfeitos nal forçou o recuo. Uma pena para os Nacional do Índio (Funai). tem uma grande responsabilidade
com seu governo), Temer não conse- amigos de Hummel, que se consolam Desde sua chegada à Presidência, nos processos de criminalização dos
guiria se manter no poder sem o apoio em constatar que o presidente satisfez Temer suprimiu o Ministério do De- movimentos sociais”, inquieta-se
dos ruralistas. E de fato o presidente é treze dos dezessete “temas prioritários” senvolvimento Rural, que desenvolvia Layza Queiroz Santos, advogada do
convidado com frequência para o al- que pautaram no Congresso. políticas favoráveis aos pequenos agri- Comitê Brasileiro de Defesa dos Di-
moço de terça. Essa lista de “reclamações” com- cultores. Uma nova lei limita a reforma reitos Humanos. “Se a relação de for-
Nestes dois anos, “o presidente tem preende em primeiro lugar os entraves agrária e prevê a regularização de ter- ças entre progressistas e conservado-
nos atendido plenamente, isso é verda- à expansão territorial do agronegócio, ras adquiridas a um preço bem infe- res não se equilibrar no Congresso
de. Mas ainda há muitos obstáculos pa- em particular na Amazônia. A pala- rior aos praticados no mercado – práti- que será eleito este ano, a violência
ra superar”, avalia João Henrique Hum- vra-chave dos ruralistas nesse campo ca histórica entre os latifundiários. no campo vai recrudescer.”
mel, diretor do Instituto Pensar Agro, o é “flexibilização”: a das análises preli- “Essa lei é uma grande derrota para a Enquanto o governo Temer se abre
anfitrião desses almoços. Pensar Agro é minares das concessões de exploração democratização da propriedade da para o agronegócio, quase 4 milhões
um “think tank sem fins lucrativos” que (sejam de mineração ou agrícolas), terra”, resume Julianna Malerba, dou- de camponeses permanecem sem ter-
agrupa as quarenta principais organi- mas também a da obrigação de reali- toranda em Planejamento Urbano na ra no Brasil, em um território com 66
zações agrícolas no Brasil, todas tam- zar estudos de impacto ambiental. Universidade Federal do Rio de Janei- mil latifúndios improdutivos, que re-
bém desprovidas de “fins de lucro”, res- Também reivindicaram uma lei ro. “Ela muda completamente as re- presentam 175 milhões de hectares
salta Hummel. O instituto financia as que permita às empresas estrangeiras gras e provoca uma concentração ain- (uma área um pouco menor que a do
atividades do grupo parlamentar rura- adquirir terras sem limitações – o que da maior. Além disso, permite anistias México, que tem 196 milhões de hecta-
lista, elabora propostas e analisa os foi, de fato, implementado – e desejam fiscais e reduções de dívidas aos lati- res). “E esses números são estimados
projetos de lei desse campo. Em relação que os “entraves históricos” aos seus fundiários”, pontua. para baixo”, ressalta Marés de Souza
aos “obstáculos”, Hummel relembra negócios sejam suprimidos, entenda- Há dois anos, o ministro da Agri- Filho. “Os critérios que medem a pro-
“duas recuadas de Temer” nestes dois -se: os direitos indígenas e de comuni- cultura é “o maior dos ruralistas”: dutividade datam de 1975. Se a miséria
anos. A primeira vez quando renunciou dades quilombolas, além da obrigação Blairo Maggi, conhecido no Brasil co- dos camponeses não for levada em
à diretriz de abolir a qualificação de por parte do Estado de empreender mo “rei da soja”, proprietário do grupo conta, os conflitos vão se radicalizar.”
“trabalho escravo”, conforme a reivin- uma reforma agrária diante da desi- Amaggi e maior produtor mundial da O número de brasileiros que vivem
dicação dos ruralistas. Em nome dessa gualdade da propriedade das terras no commodity, citado no Panama Papers em estado de extrema pobreza aumen-
qualificação, em 2017, o Ministério do Brasil. Vitória: não apenas o governo por ter montado com o grupo Louis- tou em 11,2% entre 2016 e 2017, passan-
Trabalho liberou 2.264 trabalhadores Temer propôs uma reforma constitu- -Dreyfus uma empresa super-rentável do de 13,34 milhões para 14,83 milhões
de 165 empresas que os mantinham em cional visando à mudança das regras nas Ilhas Cayman. “Esse governo su- de pessoas – sujeitos que jamais parti-
“condições análogas à escravidão”, no- de demarcação de terras indígenas de primiu toda a regulamentação am- cipam do almoço de terça-feira.
tadamente em latifúndios. A segunda comunidades quilombolas, mas tam- biental para a agricultura, de semen-
vez foi quando tentaram liberar a mi- bém amputou o orçamento de dois or- tes transgênicas a inseticidas”, explica *Anne Vigna é jornalista.
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ESTADO É O MAIOR VIOLADOR DE DIREITOS HUMANOS

Democracia e barbárie
No Brasil pequeno e mesquinho da casa-grande, todos são iguais perante a lei, mas uns são mais iguais do que outros.
E num país racista como o nosso, esses outros, com os quais se rompe eticamente e os quais não se reconhece como iguais
em humanidade, são mulheres e homens negros das periferias e favelas. É sobre eles que a barbárie é dirigida e legitimada
POR MARCELO FREIXO*

D
orothy Stang tinha feito seus Essas histórias são emblemáticas. Entretanto, esse processo de dete- cante Marcinho VP? Simplesmente
votos de pobreza havia exata- Não somente pelo drama e brutalida- rioração da democracia e crescimento porque uma sociedade excludente de-
mente uma década quando, em de que carregam em si mesmas, narra- do autoritarismo necessita de uma sumaniza aqueles que deseja descar-
1966, aos 35 anos, resolveu tro- tiva chocante da tragédia, mas pelo análise mais profunda, que passa pela tar, suprime sua identidade, indivi-
car a Califórnia, nos Estados Unidos, que as reações aos assassinatos reve- reflexão sobre o que representam os dualidade e história. Os outros, no fim
pelo trabalho pastoral com pequenos lam, tanto as belas como as hedion- assassinatos de tantos defensores de das contas, são todos iguais. E assim
agricultores em Coroatá, no Mara- das. Por que o Brasil só descobre e se direitos humanos, como Marielle, Do- vemos o absurdo de uma foto de uma
nhão. Na década de 1970, ela foi viver encanta por pessoas como Marielle rothy e Cícero, e as reações às suas exe- mulher que não é Marielle ser usada
na região do Xingu, no Pará, onde fun- após sua execução? Por que a trajetória cuções. Esse cenário nos impõe uma para difamá-la. Isso é barbárie.
dou a primeira escola de formação de de uma mulher negra que cresceu e vi- questão central que não é nova nem Forjamos não só um Estado, mas um
professores, a Brasil Grande. veu na Maré e se elegeu vereadora do pode ser explicada somente pela crise modelo de sociedade extremamente in-
O Brasil grande que a missionária Rio não chamou a atenção antes? Ma- da Nova República: a construção do tolerante, violento e autoritário. Somos
vislumbrava era o da justiça no cam- ri, Dorothy e Cícero precisaram ter ne- Estado brasileiro, desde o período co- mais justiceiros do que justos, preferi-
po, e assim ela se engajou por quase gados seus direitos e sua vida para se- lonial, e o progressivo estabelecimen- mos linchar a defender o cumprimento
quarenta anos na luta dos trabalhado- rem reconhecidos. Por quê? to de uma linha que divide democra- da lei. Por isso, a defesa dos direitos hu-
res por dignidade. História encerrada cia e barbárie. manos é tão ameaçadora: ela contesta
covardemente em 12 de fevereiro de Conheço defensores de direitos hu- de forma contundente o cerne dos privi-
2005, quando o Brasil pequeno e mes- manos de todo o mundo. Nos países légios, põe em xeque as relações de po-
quinho dos latifundiários, grileiros e No Brasil pequeno onde o Estado é baseado nos princípios der e questiona os princípios que ampa-
madeireiros disparou seis tiros contra e mesquinho do bem-estar social, principalmente ram a organização social. Marielle,
o Brasil grande da irmã Dorothy, que na Europa, as batalhas que os militan- Cícero e irmã Dorothy só foram ampla-
tombou brandindo a Bíblia numa er-
da casa-grande, tes travam são muito distintas das nos- mente conhecidos após o martírio.
ma estrada de barro a 53 quilômetros todos são iguais sas. Elas são norteadas primordial- Quando vivos, eram ameaças.
do município de Anapu. perante a lei, mas mente por valores liberais, ligados à Assim, quem afirma que lutar pelo
O Brasil grande de Cícero Guedes, uns são mais iguais defesa de direitos individuais. No Bra- respeito aos direitos humanos é mera-
líder do Movimento dos Trabalhado- sil, consolidamos um Estado de con- mente defender bandidos revela uma
res Rurais Sem Terra (MST) em Cam-
do que outros trole social por meio da violência. Por perspectiva escravocrata que enxerga
pos dos Goytacazes, no norte do Rio de isso, ele é o grande violador de direitos no suplício e na coação o único méto-
Janeiro, também sangrou numa estra- humanos, inclusive dos trabalhadores do de mediação das demandas da ci-
da de chão. Alto, negro e conhecido Desde as jornadas de 2013 é co- da segurança pública, e a nossa princi- dadania. Para essas pessoas, defender
pela voz tonitruante de trovão, Cícero mum falarmos sobre a crise de repre- pal preocupação é a letalidade. direitos humanos é como proteger o
vivia no assentamento Zumbi dos Pal- sentatividade que expôs os primeiros O Brasil tem profundas raízes es- escravo fujão, que não aceita as cor-
mares, de onde organizava a luta por sinais do definitivo esgotamento da cravocratas; carregamos sobre nossas rentes que lhe são impostas.
terra e liberdade dos trabalhadores Nova República, inaugurada sob os costas o peso da vida de 11 milhões de Lutar pelos direitos humanos sig-
que sobrevivem num município de auspícios da redemocratização. Esse africanos sequestrados. Fomos o gran- nifica defender o conjunto da socieda-
profundas raízes escravocratas. Assim processo de desgaste se acelerou nos de centro da escravidão e o último país de, a justiça social e o cumprimento
como o líder de Palmares, ele desafiou últimos anos com o golpe de 2015, a da América a aboli-la. Não superamos das leis sem distinções. O assassinato
os novos cativeiros e senhores de en- prisão do ex-presidente Lula e a ten- esse estigma com a redemocratização de defensores de direitos humanos
genho: acabou executado por um pis- tativa de impossibilitar sua candida- porque não conseguimos tratar as não nos divide entre direita e esquer-
toleiro em 26 de janeiro de 2013. tura, momento agônico que expôs a consequências do cativeiro forçado da, mas entre barbárie e democracia,
O Brasil da vereadora Marielle razão de ser da longa farsa política, como um problema central para nossa porque direita e esquerda cabem no
Franco, do Psol, também é grande, e jurídica e midiática. democracia; aqui, questões de classe e regime democrático.
sua força vem dos becos, vielas e cor- Os governos petistas, iniciados raça não se distinguem. O grande desafio do século XXI é a
renteza de gente que enche a Maré de em 2002 com a eleição de Lula, são No Brasil pequeno e mesquinho da superação da barbárie, porque não
vida. Mari era cria da favela e levou a algozes e vítimas dessa história. casa-grande, todos são iguais perante existirá democracia de fato enquanto
marca da resistência e luta dos seus. Diante da possibilidade de ampliar o a lei, mas uns são mais iguais do que houver violações de direitos humanos.
Fez pré-vestibular comunitário, for- diálogo com a população e apostar outros. E num país racista como o nos- Só avançaremos quando compreen-
mou-se socióloga pela Pontifícia Uni- numa agenda de reformas profun- so, esses outros, com os quais se rom- dermos que a luta pela cidadania não é
versidade Católica do Rio de Janeiro e das do sistema democrático, fortale- pe eticamente e os quais não se reco- ameaça, mas valor civilizatório essen-
tornou-se mestre em Administração cendo a soberania popular e comba- nhece como iguais em humanidade, cial e eixo central de qualquer regime
Pública pela Universidade Federal tendo as desigualdades a partir das são as mulheres e os homens negros democrático.
Fluminense. Menos de um ano e meio estruturas que a amparam, eles op- das periferias e favelas, as Marielles e A barbárie está na rua, nos parla-
após assumir o cargo de vereadora, taram por uma política de concilia- os Cíceros. É sobre eles que a barbárie mentos, está armada e baba ódio,
para o qual se elegeu com mais de 45 ção que se mostrou inviável num sis- é dirigida e legitimada. mas do sangue derramado germi-
mil votos, numa linda campanha cal- tema corrompido. O governo Dilma Por exemplo, por que é possível que nam as sementes do Brasil grande de
cada na defesa dos direitos humanos e acabou descartado pelos antigos alguém publique e tantas pessoas Dorothy Stang, Marielle Franco e Cí-
na igualdade de gênero, foi executada aliados com os quais construíra uma compartilhem nas redes sociais uma cero Guedes.
com quatro tiros na cabeça na noite do governabilidade frágil baseada em foto de um casal negro desconhecido
dia 14 de março de 2018. interesses fisiológicos. afirmando que são Marielle e o trafi- *Marcelo Freixo é deputado estadual (Psol-RJ).
10 Le Monde Diplomatique Brasil MAIO 2018

UMA AGENDA URBANA QUE PARTE DAS CAMADAS POPULARES E NELAS SE SUSTENTA

Projetar cidades com a sociedade


Cabe às forças vivas, populares e democráticas o trabalho de reformular desde baixo o horizonte de superação desta crise,
que é econômica, social e de representação. O BrCidades – um projeto para as cidades do Brasil que está sendo elaborado
como elemento do Projeto Brasil Popular, da Frente Brasil Popular – parte dessa posição e vem crescendo muito
POR ERMÍNIA MARICATO, KARINA LEITÃO, LIZETE RUBANO, MARGARETH M. UEMURA, PAOLO COLOSSO E CARINA SERRA*

A
conjuntura marcada pelo des- mação em comunidades de bairros. O
manche de garantias fundamen- primeiro se deu em Itaquera com mili-
tais, conservadorismo cultural, tantes de movimentos de sem-teto e de
austeridade com a cidadania e juventude, em parceria com a Igreja
generosidade com grandes atores do Povo de Deus em Movimento, a Uni-
mercado também tem impactos nega- fesp e o Levante Popular da Juventude.
tivos sobre a vida cotidiana das popula- Como fazemos o caminho no próprio
ções urbanas. O lado mais dramático caminhar, essas experiências têm nos
dessa descida morro abaixo é a volta da fornecido subsídios para visualizar o
violência e da pauperização extrema e a que o BrCidades vai seguir no próximo
naturalização de violações de direitos. período. A formação em Itaquera foi
Por outro lado, o conservadorismo é bastante exitosa e gerou demandas
reativo, não consegue dar respostas sa- nas regiões sul e norte da cidade. O
tisfatórias à sociedade. O caso do Rio de próximo momento importante, mais
Janeiro, cuja violência se mantém mes- de síntese, será o I Fórum Nacional
mo com intervenção militar, é sinto- “Um projeto para as cidades do Brasil”,
mático. São Paulo não está muito dife- para o qual virão cerca de quatrocen-
rente, vive amarga frustração com um tas lideranças sociais e intelectuais do
gestor não político que cortou linhas de Brasil todo.
ônibus e passe livre estudantil, desidra- Nosso objetivo é elaborar uma
tou conselhos participativos, regrediu agenda para cidades mais justas – do
na zeladoria, mas dobrou verba de pu- ponto de vista social, econômico, étni-
blicidade e deixou a Prefeitura depois co-racial e de gênero – e mais sustentá-
de se projetar no cenário estadual. veis. Para tanto, é fundamental reabrir
A evidência de que estamos viven- diálogos e produzir ações convergen-
do o fim de um ciclo político, econômi- tes entre movimentos sociais, univer-
co e social não vem apenas dos even- sidades, ONGs e entidades de profis-
tos pós-golpe de 2016, mas nos remete sionais ligadas à produção do espaço
também à retomada da hegemonia urbano, entre forças de movimentos
agrário-exportadora e à queda da pro- consolidados, aqueles em ascensão e
dução industrial (que teve início em os novos ativismos. Com generosidade
1980), às mudanças demográficas e re- e solidariedade, essas triangulações
gionais (o que inclui mudanças nos podem gerar saberes e práticas muito
fluxos migratórios, na ocupação do potentes e transformadores em pelo
território nacional e na rede de cida- menos três aspectos: conectar as for-
des) ou mesmo à regressão vivida pe- ças vivas, incidir nas narrativas sobre
las cidades com o boom imobiliário de a cidade que moldam a opinião públi-
2009 a 2015. A dispersão urbana se ca e formar estudantes, cidadãs e cida-
acentuou com o crescimento da espe- dãos com disposição para as lutas por
culação fundiária e elevação do custo uma democracia densa e ampla.
© Daniel Kondo

da moradia e dos aluguéis, além do au- O BrCidades não vai se envolver em


mento do custo/preço dos transportes planos de governo, mas seu caráter po-
e o tempo das viagens diárias. Os vul- lítico se centra numa aposta de médio
tosos investimentos do PAC e do Mi- prazo, a saber, reconstruir coletiva-
nha Casa Minha Vida não lograram mente uma agenda urbana que parta
contrariar o padrão histórico de segre- das camadas populares e nelas se sus-
gação e desigualdade urbana. É mo- do Projeto Brasil Popular, da Frente rio Indisciplinar da Escola de Arquite- tente. Nesse sentido, é um projeto de
mento de repensar o país e as cidades. Brasil Popular – parte dessa posição e tura e Urbanismo da UFMG, já temos redemocratização desde as cidades,
Cabe às forças vivas, populares e de- vem crescendo muito, o que reforça uma disciplina sobre o projeto. No Rio ou, se quisermos, um projeto de socie-
mocráticas o trabalho de reformular nossa avaliação. estão previstos eventos para debater e dade para o Brasil urbano.
desde baixo o horizonte de superação Em um ano, temos núcleos se es- buscar saídas para temas como vio-
desta crise, que é econômica, social e truturando no Rio de Janeiro, em Flo- lência urbana e habitação de interesse *Ermínia Maricato, Karina Leitão, Lizete
de representação. O BrCidades – um rianópolis, Fortaleza, Porto Alegre, Be- social. Na capital paulista, temos feito Rubano, Margareth M. Uemura, Paolo Co-
projeto para as cidades do Brasil que lo Horizonte e São Paulo. Na metrópole curso de extensão e debates em uni- losso e Carina Serra são coordenadores do
está sendo elaborado como elemento mineira, em parceria com o Laborató- versidades, assim como cursos de for- BrCidades.
MAIO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 11

MUTAÇÕES

A outra margem da política


Durante os meses de maio e junho, pensadores brasileiros e franceses fazem conferências
no Rio, em São Paulo, Belo Horizonte e Brasília sobre as mutações na política
POR ADAUTO NOVAES*

P
oucos negariam o diagnóstico: põem significações cômodas e simpli- reconhece o que é, por assim dizer, mo com os modos de pensamento que
há uma evidente decomposição ficadas da realidade, o que leva o pen- realmente real... A filosofia sofreu ligei- a difusão universal e o desenvolvimen-
do sistema de representação po- samento a coisas já feitas e pensadas. ro atraso em relação aos fatos... não ter to de certo espírito científico impõem
lítica e do corpo político como Eis, pois, uma das positividades das filosofia é a filosofia que convém ao pouco a pouco a todos os homens”.
um todo, o que deixa exposta a diferen- mutações que dominam o cenário po- nosso tempo”. No mundo da incerteza Uma ideia chama atenção nesse
ça abissal entre “governo democrático” lítico: deixar em evidência que vive- filosófica, muitos buscam refúgio nas fragmento: a potência do desenvolvi-
e vida democrática, isto é, o povo crian- mos um indeterminado da significação crenças religiosas e nos fatos científi- mento técnico e o descompasso entre o
do de forma permanente e vivendo em do mundo e que é preciso ressignificá- cos. A incerteza da razão conduz ao re- espírito científico e a política. Em ou-
democracia; vivemos um momento de -lo. Redesenhar o mundo e acrescentar torno mais explícito ainda das velhas tras palavras: a ausência de uma or-
incerteza e desordem, sérios conflitos a ele novos poderes. certezas sobrenaturais. No lugar da dem política compatível com o tempo.
criados pela ocupação das instituições Vivemos a era da desordem e dos destruição de velhas crenças e opi- Assim, o funcionamento da política re-
do Estado por entidades religiosas; fal- fatos. Não os fatos que povoavam a vi- niões, como propunham os iluminis- duz-se a um conjunto de expedientes
ta de alternativas claras; redes digitais da cultural e política de qualquer siste- tas, vê-se uma retomada da tradição e técnicos e de interesses privados,
que surgem como os novos mediado- ma, mas fatos inteiramente novos. dos dogmas. O sentimento religioso criando uma detestável mecânica so-
res entre a sociedade e o Estado; crise Ora, os fatos científicos – que dão ori- passa a ter grande peso na política, o cial. Uma das consequências mais fu-
dos partidos políticos; crise dos uni- gem à inconsistência, ao fugaz e veloz, que, de certa maneira, é novo entre nós. nestas dessa mecânica civilização está
versais; singularização e fragmenta- à precisão e à racionalidade técnica – Eis a grande questão: como conci- no esquecimento dos laços entre os in-
ção das lutas fora da visão da história e abolem aquilo que permitia a precária liar democracia e governo representa- divíduos e da ideia de comunidade, o
do futuro; a definição da “democracia” ordem do mundo, isto é, o trabalho da tivo quando se sabe que o represen- viver em comum. Entramos na era do
como consumo democrático, “super- razão, a relativa consistência e cons- tante não representa? Vemos no Brasil “egoísmo organizado”. Assim, deve-
mercados dos estilos de vida”; menti- tância das coisas. A tecnociência ga- o surgimento de dois perigosos fenô- mos ter prudência ao ouvirmos falar de
ras sobre legitimidade política; peque- nhou autonomia e passou a definir a menos que complicam ainda mais o “poder popular” como o conjunto de
nos e grandes golpes sem disfarce; e estrutura social e política. Os proble- velho problema trazido pela ideia de indivíduos que delegam poder a repre-
mais: democracias contemporâneas mas da política, dominada pela mun- representação: o populismo e a preva- sentantes, conceito deformado que
que se servem da técnica para estabe- dialização e pela técnica, já haviam si- lência do poder das igrejas na política. põe em questão a própria ideia de polí-
lecer limites do poder político do povo. do antecipados por Martin Heidegger: Estado laico já é quase coisa do passa- tica, que depende da relação entre a ló-
Em síntese, um absoluto apolitismo. “O movimento planetário dos tempos do. É conhecida a força da bancada gica da democracia e a lógica da repre-
Além dos velhos problemas que modernos transformou-se em uma evangélica no Congresso, em particu- sentação. O problema trazido pelas
nascem ao mesmo tempo com as no- potência que determina a história. lar na Comissão de Ciência e Tecnolo- duas lógicas não é novo, é parte da pró-
ções e as formas originárias da própria Mais: para mim, hoje, é uma questão gia, responsável pela concessão de ca- pria democracia, mas é preciso buscar
democracia – problemas com as ideias decisiva saber como se pode estabele- nais de TV e rádio, nos quais a fé é saídas para o que Rancière chamou de
de representação política, o teológico- cer um sistema político na era da téc- difundida. Se até o fim do século XX os “anomalias e monstros” que elas secre-
-político, o chamado poder popular, as nica e que sistema seria esse. Eu não católicos constituíam no Brasil 99% da tam. Valéry define a democracia con-
formas jurídico-políticas, a própria sei responder a essa questão. Não es- população, hoje eles encolheram para temporânea como “a arte de impedir o
ideia de república etc. –, é importante tou certo de que seja a democracia”. As 52% e os evangélicos já são 32% (se- povo de se interessar por aquilo que lhe
pôr em discussão as novas questões consequências da técnica sobre a polí- gundo pesquisa do Datafolha). Eis o diz respeito... mas que, ao mesmo tem-
trazidas à política pela crise (e fim?) do tica são difusas e imprecisas, mas ex- que diz o líder e pastor Edir Macedo no po, obriga as pessoas a decidir sobre o
Estado-nação, pela globalização e pe- pressam uma evidência total: perda livro Plano de poder: é preciso acordar que nada entendem”. Todas as anoma-
las invenções técnicas e científicas. dos ideais de transformação e resigna- o eleitorado, “um gigante adormeci- lias são secretas e vivem do segredo.
A outra margem da política é isto: ir ção diante dos “fatos” políticos. do”, para pôr em prática “um projeto Mas pelo menos uma delas é visível: a
aos fundamentos da política para rom- De maneira uniforme e cada vez de nação pretendido por Deus”, um astúcia dos poderes, como adverte
per as construções e ideias petrificadas, mais poderosa, a tecnociência distan- “sonho divinal”. Teria a democracia Alain, que consiste em corromper seus
e retomar as coisas nas suas fontes, de cia-se das outras instituições e ganha a moderna e laica chegado ao limite? representantes por meio do próprio
onde pode – e deve – surgir o novo: “co- força de uma religião: domina as insti- Como pode haver divergência de opi- poder. Uma dessas visíveis corrupções
meçar pelo começo – aconselha Valéry tuições políticas, as artes, os costumes, nião, progresso moral e intelectual, está na traição. Vemos, a cada dia, de-
–, o que quer dizer recomeçar, refazer a linguagem, as igrejas, as mentalida- que devem orientar a escolha da repre- putados mudarem de partido, e o jogo
todo um caminho como se tantos ou- des... Mesmo o espírito mais sagaz, ar- sentação, se o povo se submete às político surge em todo esse movimen-
tros não o tivessem traçado e percorri- mado de certo conhecimento, sente-se crenças que instituem a eterna sobe- to, “que leva lentamente, firmemente,
do...”. É evidente que houve, ao longo da vulnerável e impotente. Para o homem rania divina, preceitos religiosos, da condição de representantes do povo
história, desvios das noções originárias comum, ela se tornou coisa necessária crença nos poderes da tecnociência e a inimigos do povo”. Assim, resta aos
da política, o esquecimento dos ideais em seus prazeres e até mesmo no “sa- demagogia dos poderosos? governados a tarefa de um controle
preconcebidos; eis por que o futuro so- ber”, uma entidade quase misteriosa Lemos no ensaio A política do espíri- contínuo e eficaz.
nhado jamais é verdadeiro hoje. que conduz todas as ações cotidianas. to, de Valéry: “O mundo moderno, em
A ideia de sistema político sempre Pensa-se menos, ou melhor, pensa-se toda sua potência, de posse de um capi- *Adauto Novaes, ex-jornalista e professor,
foi problema que pede discussão per- mais de maneira prática: exigir o me- tal técnico prodigioso, inteiramente pe- foi, durante vinte anos, diretor do Centro de
manente. Em geral, as noções – sedi- nor esforço de um pensamento abstra- netrado de métodos positivos, não sou- Estudos e Pesquisas da Fundação Nacional
mentadas – tornam-se arbitrárias e in- to é quase uma ofensa. Musil define a be entretanto criar uma política, uma de Artes. Atualmente é diretor da Artepensa-
discutíveis, levando a análises descrença política de nosso tempo co- moral, um ideal, nem leis civis ou pe- mento. Veja o programa completo do ciclo “A
mecânicas (sistematizadas) das coisas. mo a crença apenas nos fatos (científi- nais que estejam em harmonia com os outra margem da política” no site <www.mu-
Sistemas homogêneos sempre pro- cos). A representação da realidade “só modos de vida que ele criou, e até mes- tacoes.com.br>.
12 Le Monde Diplomatique Brasil MAIO 2018

QUEBRA-CABEÇA GEOPOLÍTICO

O que os russos querem


no Oriente Médio?
Ao decidir intervir militarmente na Síria, em setembro de 2015, Moscou salvou o regime de Bashar al-Assad, permitindo
que ele retomasse a maior parte do território perdido. O Kremlin se esforça para impor sua visão de um ordenamento político,
mantendo um equilíbrio nas relações com todos os atores envolvidos: ocidentais, turcos, israelenses, sauditas e iranianos
POR NIKOLAI KOZHANOV*

A
intervenção militar da Rússia na
Síria em 2015 era facilmente de-
dutível. Durante o primeiro ano
do conflito (2011-2012), o Kremlin
acreditava que o regime de Bashar al-
-Assad conseguiria superar a tempesta-
de, desde que estivesse protegido con-
tra ingerências externas. Essa ilusão se
dissipou à medida que os confrontos se
agravaram. Moscou tentou então tomar
providências para que Damasco e a co-
munidade internacional se voltassem
para um compromisso. Os líderes rus-

© Reuters / Maxim Shemetov


sos começaram assim por estabelecer
uma distinção entre Al-Assad e o Esta-
do sírio. Advertidos pela explosão da
Líbia com a queda do regime de
Muamar Kadafi em 2011, eles tinham
como prioridade proteger as institui-
ções sírias, mas, ao mesmo tempo,
mantinham a convicção de que ape-
Vladimir Putin durante cerimônia realizada para comemorar os 75 anos da vitória russa na Batalha de Stalingrado
nas Al-Assad poderia impedir o des-
mantelamento do Estado sírio. Isso
não significava, no entanto, que per- Em setembro de 2015, as preocu- nou real em 2015, quando um número qualquer grupo que representasse
maneceriam eternamente presos à pações do Kremlin com as chances de crescente de combatentes estrangeiros uma ameaça séria para Damasco, aí
pessoa de seu chefe. sobrevivência do poder de Damasco vindos da Europa, da Rússia, do Cáuca- incluídos aqueles que não eram islâmi-
As autoridades russas nunca de- foram agravadas em razão da radica- so e da Ásia central foram engrossar as cos radicais ou não eram qualificados
ram total confiança a Al-Assad. Elas lização da oposição síria e de sua pro- fileiras da Organização do Estado Islâ- como “terroristas”, sobretudo pelo Oci-
não se esqueceram de que, em 2000, gressão em campo. Ele temia então mico (OEI) e de outros grupos islâmi- dente. Mas o Kremlin nunca admitiu
após sua chegada ao poder, ele tinha um colapso iminente do regime. cos na Síria e no Iraque. De acordo com isso e afirma, ainda hoje, que só mirava
tentado uma aproximação com a Eu- Achava que a ajuda militar, tecnológi- os serviços de segurança russos e ana- os “terroristas”.
ropa, em particular com a França. Foi ca e econômica que lhe era oferecida só listas independentes, em 2015 cerca de Rapidamente, o uso da força aérea
somente quando essa tentativa fracas- prolongaria sua agonia, sem chegar a 1.500 a 2 mil combatentes russófonos atingiu dois objetivos: de um lado, au-
sou, sobretudo por causa da presença salvá-lo. Uma intervenção militar dire- originários do norte do Cáucaso, do mentou as chances de sobrevivência do
síria no Líbano, que ele se voltou para ta e perene representava, portanto, resto da Rússia e das comunidades regime sírio a longo prazo; de outro, tor-
a Rússia. Elas se lembram também uma solução preferível aos dois seguin- chechenas do estrangeiro lutavam na nou impossível a criação pelos exércitos
que, nos anos 1990 e 2000, Damasco tes cenários: apoiar Al-Assad em opera- Síria ao lado de diversos grupos islâmi- ocidentais de uma zona de exclusão aé-
não deu nenhuma importância aos ções militares pontuais e onerosas ou cos, como a Frente al-Nosra e o Ahar rea e bastante improvável a intervenção
pedidos de Moscou com relação aos deixar seu poder entrar em colapso. De al-Cham. Ainda por cima, esses grupos direta deles em campo contra as tropas
rebeldes chechenos que haviam fugi- novo, os dirigentes russos motivaram armados contavam com centenas de legalistas. Ao mesmo tempo, trocando
do para a Síria após terem cometido sua escolha fazendo referência aos pre- pessoas vindas do Azerbaijão e de ex- informações e tentando coordenar seus
ataques contra militares e civis russos. cedentes da Líbia e do Iraque, dois paí- -repúblicas soviéticas da Ásia central, esforços militares com outros países,
Moscou permanece, portanto, pru- ses em que, segundo eles, a queda do como o Tadjiquistão e o Uzbequistão. entre os quais os Estados Unidos, o
dente em sua parceria com Damasco. regime não trouxe nada de bom. Para Nenhum deles se identificava com a Kremlin continuava a promover a ideia
Em um discurso em julho de 2016, Vla- eles, a Síria não deveria se tornar um causa da OEI ou da Al-Nosra. Para al- de uma grande coalizão contra a OEI,
dimir Putin declarou que não queria, novo foco de jihadistas na região. guns, a guerra travada na Síria consti- que envolveria também o regime sírio,
ao depositar confiança num regime sí- Bem antes de setembro de 2015, o tuía sobretudo uma fase de preparação pondo fim ao isolamento internacional
rio suscetível de mudar de aliados de Kremlin havia colocado a comunidade para os combates a serem conduzidos de Al-Assad. Espalhando suas forças
um dia para o outro, reproduzir o erro internacional em alerta contra esse ris- em seu próprio país. aéreas a partir da base de Hmeimim, a
que a União Soviética tinha cometido co. De início, essas declarações se ins- Um dos principais objetivos da in- sudeste da cidade de Lataquia, a Rússia
com o Egito: para marcar sua ruptura creviam especialmente em um plano tervenção russa na Síria era restaurar a reforçava sua posição diplomática, o
com a URSS em julho de 1972, Anwar de comunicação que apresentava o capacidade militar e política do regi- que significava que nenhuma decisão
Sadat expulsou sem dificuldades mi- Ocidente como um encrenqueiro no me. Assim, os bombardeios aéreos to- concernente à Síria poderia ocorrer sem
lhares de conselheiros soviéticos. Oriente Médio. Mas a ameaça se tor- maram imediatamente como alvo seu consentimento.
MAIO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 13

Ela perseguia assim um objetivo co e a oposição, contornando-se o pro- sença duradoura dos Estados Unidos abril de 2018 contra instalações milita-
bem mais ambicioso que a simples sal- cesso colocado em prática em Genebra no nordeste da Síria. res sírias, Moscou acha que nem a
vação imediata do poder. Certamente, pelas Nações Unidas. O estabeleci- Hoje, os diplomatas russos discu- União Europeia nem os Estados Uni-
a Rússia pretendia de início pôr fim à mento de um diálogo direto com re- tem em primeiro lugar com seus ho- dos desempenham um papel decisivo.
guerra organizando um diálogo nacio- presentantes iranianos e turcos – ato- mólogos dos países que têm uma in- Os estrategistas russos consideram
nal entre o regime e as forças de oposi- res regionais importantes que não fluência direta no campo de batalha que esses atores não manifestaram
ção (à exclusão dos islâmicos radicais tinham sido incluídos antes entre os sírio, como o Irã, a Turquia e a Arábia uma vontade real de se envolver nos
e dos grupos de combatentes estran- porta-vozes – fez progredir a ideia de Saudita. Durante a visita a Moscou do negócios russos e têm muito pouca in-
geiros). No entanto, ela buscava igual- uma solução diplomática do conflito. rei da Arábia Saudita, Salman bin Ab- fluência sobre o campo de batalha.
mente iniciar esse processo de recon- A estratégia russa mudou com a dulaziz al-Saud, em outubro de 2017, a Durante o encontro entre Putin e
ciliação em suas próprias condições, queda, no fim de 2017, dos últimos bas- Rússia o encorajou a criar um grupo de Trump que aconteceu no Vietnã em
que incluíam a preservação da integri- tiões da OEI. Em dezembro de 2017, Pu- oposição unido que representaria as novembro de 2017, a Rússia conseguiu
dade do território sírio e a formação de tin chegou a evocar novamente a hipó- forças hostis a Al-Assad nas negocia- o que queria de Washington: a garan-
uma coalizão contra a OEI, como afir- tese de uma retirada parcial da Rússia. ções de Genebra. Em paralelo, o tia de que os Estados Unidos reconhe-
mou Putin na Assembleia Geral das Mas o Kremlin não tem ilusões: ele sa- Kremlin intensificou suas consultas ciam Al-Assad como presidente sírio
Nações Unidas em setembro de 2015. be que a OEI está quebrada, porém não com Teerã e Ancara a fim de abordar o legítimo, respeitariam o princípio de
Moscou exigia, dessa forma, a preser- completamente destruída, que a guer- tema de Afrin e Idlib, assim como as integridade territorial da Síria e o prin-
vação das estruturas estatais sírias e ra civil não terminou e que deverá con- futuras zonas de diminuição do pro- cípio de diminuição dos conflitos en-
só concebia a transformação do regi- tinuar com seu apoio militar se quiser cesso de guerra. Moscou tenta tam- tre os beligerantes e continuariam a
me no âmbito dos mecanismos consti- manter Al-Assad no poder. Em tais cir- bém tranquilizar essas duas capitais, apoiar o processo de Genebra.
tucionais existentes. Em 2016, Putin cunstâncias, considera bom conservar que duvidam de seu engajamento em Em troca, Putin jogou o jogo de seu
ainda insistia no processo de paz na uma presença armada nesse país, ain- relação a seus parceiros. Em 14 de no- homólogo norte-americano, que faz da
Síria, contando firmemente com um da que a fase atual do conflito não exija vembro de 2017, o ministro das Rela- luta contra o terrorismo na região sua
tipo de partilha de poderes entre o re- muitos soldados em campo. Se uma ções Exteriores russo, Sergei Lavrov, prioridade. Na declaração comum feita
gime em vigor e os elementos “sadios” parte das tropas foi repatriada, trata-se declarou a legitimidade da presença pelos dois países, a Rússia reafirmou
da oposição. A destituição de Al-Assad sobretudo de um rodízio destinado a militar iraniana na Síria, sinal para sua vontade de combater a OEI até ob-
não podia ser uma condição prévia pa- adaptar a presença militar às reais ne- Teerã de que a cooperação com o país ter uma vitória total com a ajuda dos
ra a abertura de um diálogo nacional. cessidades. Além disso, episódios ante- é tão importante aos olhos de Moscou Estados Unidos. Em resumo, Moscou
A queda de Alepo, em dezembro de riores de retirada mostram que o Exér- quanto aquela mantida com Israel. só vai concordar em falar do futuro da
2016, deu à Rússia a segurança de que cito russo sempre pode aumentar seu Oficialmente, a Rússia condenou a Síria, para além dos temas abordados
ela poderia orientar o curso dos acon- contingente quando as circunstâncias operação militar lançada no início de no Vietnã, se os norte-americanos pro-
tecimentos na Síria e na região. Mesmo locais o exigirem. janeiro de 2018 pela Turquia na região curarem se envolver mais na política
a mudança do panorama político nor- O anúncio de uma retirada tinha de Afrin. Na realidade, ela abriu o céu interna síria.
te-americano depois da eleição de Do- uma função mais política que militar. para seus aviões e deu seu aval, se-
nald Trump não alterou essa convic- Na véspera das eleições presidenciais gundo um acordo tácito com a Tur- *Nikolai Kozhanov é professor de Econo-
ção. Em 2018, Moscou acredita ter de março de 2018, Putin preocupou-se quia: esta última teria as mãos livres mia Política do Oriente Médio da Universida-
alcançado um de seus principais obje- em exibir alguns sucessos na cena in- na região de Afrin desde que não con- de Europeia de São Petersburgo e pesquisa-
tivos: salvar o regime e lhe permitir re- ternacional. Enquanto os países oci- testasse o avanço das tropas do regi- dor associado no programa Rússia-Eurásia
tomar certas zonas do território. Mas a dentais prolongavam e endureciam as me sírio na zona de Idlib e em Ghouta, do The Royal Institute of International Affairs,
Rússia ainda não terminou isso e só sanções econômicas em relação à Rús- último bastião rebelde na periferia de Chatham House (Londres).
pode retirar suas tropas ao final do sia num contexto de manutenção do Damasco. O sucesso dessa operação
processo de negociações políticas, ain- status quo na Ucrânia, o Oriente Mé- apresentava também o mérito de afas-
da mais hipotético. dio era um dos únicos pontos em que o tar um pouco mais a Turquia dos Esta- 1 Cf. Julien Mercille, The Political Economy and Me-
dia Coverage of the European Economic Crisis:
Kremlin podia se vangloriar de condu- dos Unidos e de outros países da Or- The Case of Ireland [A economia política e a co-
MOSCOU SE ATRIBUI UMA IMAGEM POSITIVA zir uma política externa frutífera. Sem ganização do Tratado do Atlântico bertura da mídia na crise econômica europeia: o
Nessa perspectiva avançou a ideia parar de afirmar que a presença de Norte (Otan), como a França, que caso da Irlanda], Routledge, Londres, 2014.
2 Ler Renaud Lambert, “As quatro vidas do modelo
de uma nova plataforma de negocia- suas tropas era apenas temporária, apoia as forças árabe-curdas. irlandês”, Le Monde Diplomatique Brasil, out. 2010.
ções batizada de Astana (do nome da Moscou atribuía a si uma imagem po- 3 Citado por Paul O’Donoghue, “We’re renting out
capital cazaque, onde ocorreram os sitiva, no momento em que o secretá- ATAQUE DE MERCENÁRIOS Dublin apartments for “2,400 a month and not
making any profit” [Estamos alugando aparta-
primeiros encontros) e permitiu-se rio de Estado norte-americano, Rex Apesar dos bombardeios norte-a- mentos em Dublin por 2.400 euros por mês e não
discutir um cessar-fogo entre Damas- Tillerson, planejava manter uma pre- mericanos, britânicos e franceses de estamos lucrando nada], Fora.ie, 28 out. 2017.

2018 É O ANO MARX


Festa de aniversário, cursos, debates, lançamentos, vídeos e
promoções... essas são algumas das atividades que a Boitempo
está preparando para marcar o ano do bicentenário de Marx!

#LeiaMarx
14 Le Monde Diplomatique Brasil MAIO 2018

OS IMPASSES DA ESQUERDA NORTE-AMERICANA

Como o
Russiagate
cega os
democratas
Para justificar a derrota nas eleições de 2016, os
democratas levantam razões de todo tipo: a ilegalidade
do sistema eleitoral, as fake news ou então os russos,
acusados de conluio com o presidente Donald Trump.
O foco em Moscouoculta as verdadeiras causas da
derrota, especialmente o programa econômico
defendido pelo partido
POR AARON MATÉ*

© Silene Zepter
O
s bombardeios franco-ameri- vez depois de sua eleição que ele se di- pesquisador do Centro para o Interes- de armas nucleares ofensivas, firman-
cano-britânicos na Síria, na se- rigiu pelo nome ao presidente russo no se Nacional. “Durante toda a sua car- do as bases dos tratados posteriores
quência do envenenamento de Twitter”, extasiou-se o New York Times. reira, ele foi um falcão anti-Rússia.”3 sobre o controle de armas. Quando
um ex-espião russo e de sua fi- A “esperança” expressa pelo diário Além disso, semanas antes de sua in- apresentou o novo arsenal nuclear
lha no Reino Unido, mergulharam as faz eco ao sentimento dominante nos dicação, durante discurso pronuncia- russo, em março último, Putin tomou
relações entre a Rússia e o Ocidente círculos progressistas depois que os do em fevereiro, Bolton afirmou que a o cuidado de deixar claro que essa mo-
em abismos inéditos. No entanto, al- serviços secretos acusaram o Kremlin suposta ingerência da Rússia no pro- dernização era a consequência da re-
guns, pouco sensíveis a essas tensões, de ingerência na eleição presidencial cesso eleitoral era “um ataque contra vogação do tratado ABM por Washing-
chegam a ver nisso razões para ter es- norte-americana de 2016. Em 2009, no a Constituição dos Estados Unidos”. ton; depois, ele apelou para um retorno
peranças, a começar pelo New York Ti- início do primeiro mandato de Barack Ele pediu, portanto, medidas duras ao sistema de controle de armamentos
mes. Comentando a decisão norte-a- Obama, os democratas evocavam um contra Moscou, “no ciberespaço e em desmontado, segundo ele, pelos Esta-
mericana de fechar um consulado e “reset” nas relações com Moscou e outros lugares”, e formulou este con- dos Unidos. Para Bolton, isso não pas-
expulsar sessenta diplomatas russos, o zombavam o retorno dos republicanos selho: “Não acho que a resposta deva sa de “argumentos de propaganda”,
conselho editorial do prestigioso diá- aos discursos da Guerra Fria. Exortan- ser proporcional; acho que ela deve “absurdos”. O verdadeiro objetivo de
rio se alegrava em 26 de março: “Esses do Trump a “endurecer a política em ser totalmente desproporcional”. Em Putin, analisou ele na Fox News, rede
desenvolvimentos permitem esperar relação à Rússia e a Putin” – como o fez outras palavras, como ele disse na re- da qual era então consultor, era “tentar
que [Donald] Trump seja enfim obriga- Chuck Schumer, o chefe da minoria de de ultradireita Fox News em 2016: fazer novamente da Rússia uma gran-
do a reagir à ameaça que [Vladimir] democrata no Senado – ou ainda a “re- “É preciso machucar os russos”. de potência [...], e fazer novamente da
Putin faz pesar sobre os Estados Uni- taliar [...] para nos defender contra a Bolton sempre recusou qualquer Rússia uma potência nuclear maior é
dos e seus aliados”. O único inconve- subversão russa” (segundo as palavras forma de negociação ou reaproxima- parte desse objetivo”.
niente, segundo os jornalistas, é que do ex-vice-presidente Joseph Biden), ção com Moscou, sob o risco de au- Bolton nunca escondeu: ele quer
“Trump deverá ir mais longe se quiser eles se alinham hoje aos neoconserva- mentar o perigo nuclear. Quando era acabar com as disposições que garan-
enfrentar de maneira eficaz os golpes dores e aos falcões republicanos.2 subsecretário de Estado para o contro- tem, em âmbito mundial, um controle
baixos de Putin”.1 Algumas semanas le de armamentos (2001-2005), ele su- dos armamentos. “A próxima etapa nas
depois, após o suposto ataque com ar- “UM ATAQUE CONTRA A CONSTITUIÇÃO” pervisionou a denúncia pela adminis- relações bilaterais com a Rússia”, expli-
mas químicas realizado em Douma, Assim, a indicação para o posto de tração de George Bush do tratado ABM cou em 2017 na Conferência de Ação
perto de Damasco, o presidente norte- conselheiro de Segurança Nacional de (Anti-Balistic Missiles), assinado trin- Política Conservadora, “é a revogação
-americano fustigava “Putin, a Rússia e John Bolton não necessariamente de- ta anos antes com a União Soviética. pela atual administração do novo tra-
o Irã”, culpados de “apoiar o animal sagradou aos democratas. De fato, es- Fixando um teto para as capacidades tado Start” (Strategic Arms Reduction
Bashar al-Assad”, e afirmava que eles te último “é o pior pesadelo de Mos- estratégicas de defesa, esse tratado in- Treaty – Tratado de Redução de Armas
iam “pagar muito caro”. Foi “a primeira cou”, observa Harry J. Kazianis, centivava a limitar o desenvolvimento Estratégicas) – acordo assinado em
MAIO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 15

2010 com Moscou que previa diminuir tória de um Trump submisso à Rússia do Atlântico Norte (Otan) a expulsar contentamento”: “É preciso, em vez
o número de ogivas nucleares norte-a- torna difícil a crítica dessas medidas, cerca de 150 diplomatas russos – uma disso, que Putin ouça o barulho da ar-
mericanas e russas –, porque “isso seria levando em conta que até os adversá- cifra nunca atingida por uma opera- tilharia e das lagartas dos tanques da
um sinal enviado a Vladimir Putin”. rios do presidente as defendem. ção desse tipo. Otan multiplicando as manobras con-
No entanto, mais do que analisar as Desde o começo do caso, o líder juntas com o Exército ucraniano. É is-
implicações dessas posições estratégi- trabalhista Jeremy Corbyn qualificou so, e muito mais ainda, que vai atrair
cas, os meios de comunicação progres- o envenenamento de “bárbaro e mais sua atenção. Uma resposta análoga se
sistas preferem se interessar pela “es- Pedir provas? que irresponsável”, depois quis que “se justifica no Oriente Médio, onde a Ca-
tranha” aparição de Bolton, há cinco pedissem explicações às autoridades sa Branca coloca já as bases de reações
anos, num clipe de uma associação
Apelar para instituições russas com base em provas”, encora- mais enérgicas às investidas que a
russa de defesa de armas de fogo.4 Não internacionais? jando o governo conservador a enviar Rússia faz como forma de testar os Es-
porque as propostas que ele defendia Tal atitude fez que Corbyn amostras à Rússia sob os auspícios da tados Unidos. Há raros momentos na
ali tivessem qualquer interesse diplo- fosse chamado de “pombo Organização para a Proibição de Ar- política em que acontecimentos ines-
mático, mas porque a prática corrente mas Químicas. Pedir provas? Apelar perados criam ocasiões que é preciso
dos comentaristas do Russiagate é co-
dos russos” pelos meios para instituições internacionais? Tal aproveitar antes que desapareçam”.8
locar em destaque todo elemento que de comunicação atitude fez que Corbyn fosse chamado A elite democrata e os grandes líde-
possa reforçar a história de um esque- de “pombo dos russos” pelos meios de res de opinião da esquerda liberal es-
ma de Moscou e de uma possível impli- comunicação britânicos, por seus ad- tão entre aqueles que Bolton pode ad-
cação de Trump, e ignorar as informa- Não olhar para as iniciativas pró- versários políticos e mesmo por mem- mitir que criaram as ocasiões que ele
ções que possam invalidar essa tese. -guerra do presidente em relação à bros de seu próprio partido. agora quer aproveitar. Neste momento
Rússia significa ignorar os riscos que perigoso das relações russo-america-
PREOCUPAÇÃO NAS NAÇÕES UNIDAS elas alimentam. Comparando a situa- OUVIR O BARULHO DA ARTILHARIA nas, eles enfim se convencerão de que
Nessa perspectiva, a indicação de ção atual “àquilo que vivemos durante O envenenamento em Salisbury e o seria melhor deixar como está?
um falcão anti-Rússia para o posto a Guerra Fria”, o secretário-geral das Russiagate têm em comum a acusação
mais alto da segurança nacional é ape- Nações Unidas, António Guterres, re- automática do Kremlin, aí incluída a *Aaron Maté, jornalista, é correspondente e
nas o mais recente dos elementos a evi- centemente exortou as duas partes a ausência de provas públicas e o risco produtor de The Real News.
tar.5 Afora a expulsão de um número restabelecer “os mecanismos de co- de provocar uma escalada das ten-
recorde de diplomatas, seria possível municação e controle a fim de evitar a sões. Uma diferença de tamanho dis- 1 “Tough action on Russia, at last, but more is needed”
mencionar, entre as recentes iniciati- escalada das tensões e contribuir para tingue, no entanto, esses dois casos. [Ação dura sobre a Rússia, finalmente, mas é preciso
vas norte-americanas, as sanções ado- que as coisas não escapem completa- Diferentemente de Corbyn, nos Esta- muito mais], The New York Times, 26 mar. 2018.
2 Ler Serge Halimi, “Trump acuado pelo partido anti-
tadas contra personalidades (entre elas mente ao controle”. A ameaça nuclear, dos Unidos nenhum líder político de -Rússia”, Le Monde Diplomatique Brasil, set. 2017.
o genro de Putin) e contra treze empre- alertou ainda o Boletim dos Cientistas primeiro escalão insistiu na necessi- 3 Citado por Cindy Saine, “Trump’s pick for National
sas, ou ainda o destacamento de dois Atômicos, foi “agravada pelo fato de dade de provas nem preconizou uma Security Adviser advocates tough response to
Russia” [Escolhido de Trump para conselheiro de
navios de guerra para o Mar Negro – que as relações russo-americanas são reação estudada. Impulsionados por Segurança Nacional defende resposta dura à Rús-
manobra que “se inscreve num esforço hoje marcadas mais pelo conflito do sua obsessão anti-Rússia, os democra- sia], The Voice of America, 28 mar. 2018. Disponí-
destinado a combater a crescente pre- que pela cooperação”, que a coordena- tas e os colunistas progressistas insis- vel em: <www.voanews.com>.
4 Cf. Tim Mak, “John Bolton’s curious appearance in
sença dos russos na região”, segundo a ção está “reduzida a quase nada” e que tem, ao contrário, para que Trump en- a Russian gun rights video” [Aparição curiosa de
CNN. “Vocês enviam navios para o Mar “nenhuma negociação russo-ameri- dureça sua postura. John Bolton em um vídeo russo sobre o direito às
do Norte e isso aumenta neles a sensa- cana sobre o controle dos armamentos A chegada de Bolton só vai reforçar armas], National Public Radio, 22 mar. 2018. Dis-
ponível em: <www.npr.org>.
ção de ameaça”, disse um alto funcio- está em curso”.7 essa tendência. Em artigo publicado 5 Para exemplos mais antigos, ler “Ingerência russa,
nário norte-americano.6 Uma simples A perspectiva de um arrefecimen- em fevereiro, ele afirmou: “As ambi- obsessão e paranoia”, Le Monde Diplomatique
olhada num mapa faz com que nos per- to das tensões sofreu um sério revés ções globais de Putin não envolvem Brasil, dez. 2017.
6 Ryan Browne, “US show of force sends Russia a
guntemos sobre a razão pela qual os Es- com a crise que resultou do envenena- intenções benevolentes em relação à message in Black Sea” [Demonstração de força
tados Unidos querem combater a “cres- mento do ex-espião russo Sergei Skri- América e, quanto mais rápido ele dos Estados Unidos envia uma mensagem à Rús-
cente presença” dos russos num mar pal e de sua filha, Yulia, em Salisbury souber que sabemos disso, melhor”. sia no Mar Negro], CNN Politics, 20 fev. 2018. Dis-
ponível em: <www.edition.cnn.com>.
que margeia seu próprio território. Se- (Reino Unido). O ministro britânico Ora, prosseguiu ele, seria ingênuo 7 Citado em “The get-tough-on-Russia consensus is
ria igualmente possível se perguntar se das Relações Exteriores, Boris John- acreditar que simples “acusações pe- escalating the crisis in Syria” [O consenso do en-
as expulsões de diplomatas e as san- son, conseguiu convencer mais de nais” e “sanções financeiras” contra durecer-com-a-Rússia está aumentando a crise na
Síria], The Nation, Nova York, 11 abr. 2018.
ções financeiras constituem uma es- vinte Estados-membros da União Eu- os russos “serão minimamente sufi- 8 The Hill, 19 fev. 2018. Disponível em: <http://
tratégia apropriada. Mas a adesão à his- ropeia e da Organização do Tratado cientes para lhes provar nosso des- thehill.com>.
16 Le Monde Diplomatique Brasil MAIO 2018

ESTADOS UNIDOS

Democratas e a
inovação como religião
O tipo de progressismo que reina em Massachusetts nestas últimas décadas não é o de Franklin Roosevelt nem
do sindicato dos operários da indústria automobilística. Os colarinhos-brancos superdiplomados, mesmo quando votam
nos democratas, não estão realmente preocupados com as gigantescas remunerações dos vencedores da sociedade
POR THOMAS FRANK*

Q
uando pedimos aos democra- Como tantas outras paisagens nor-
tas um balanço sobre suas ad- te-americanas, essa é o resultado de
ministrações – os acordos de décadas de uma desindustrialização
livre-comércio, por exemplo, dirigida pelos republicanos e raciona-
ou a legislação incompreensível para lizada pelos democratas. A 80 quilô-
reformar Wall Street –, eles respondem metros dali, Boston triunfa, mas a
que ninguém poderia ter feito melhor. doutrina da prosperidade que se vê em
Afinal de contas, eles tiveram de se ar- cada esquina da capital serve também
ranjar com aqueles horríveis republi- para justificar o fracasso que se vê em
canos que obstruem sistematicamente cada esquina de Fall River. É um lugar
o Senado e modificam as circunscri- ao qual a abundância nunca retorna,
ções eleitorais em benefício próprio. pois os dirigentes do país simplesmen-
Não se deve pensar que todas as medi- te aceitaram uma ordem social que
das que os presidentes Bill Clinton e não para de fazer diminuir os salários
Barack Obama fizeram passar em de pessoas como os moradores de Fall
Washington representam realmente a River, ao mesmo tempo que aumenta
fogosa alma democrata... as remunerações dos inovadores, dos
Para avaliar esse argumento, esco- criativos e dos executivos.
lhemos um local onde o reino demo- Se Fall River está cravejada de ma-
crata não encontra praticamente ne- lharias vazias, as ruas de Boston trans-
© Daniel Kondo

nhuma oposição, e a obstrução e a bordam de equipamentos destinados


sabotagem republicana não podem a tornar o empreendedorismo fácil e
macular o balanço. O mapa eleitoral prático. Durante minha estadia por lá,
dos Estados Unidos nos oferece diver- passei meu tempo visitando centros
sas possibilidades, mas uma escolha se de inovação, todos decorados com
impõe: Boston, em Massachusetts, a móveis de cores vivas, espaços de tra-
verdadeira pátria espiritual da classe mente diplomada, um número de pa- Se olharmos de um ponto de vista balho abertos, citações inspiradoras
progressista. A capital norte-america- tentes depositadas excepcional e mais um pouco mais crítico, Boston é a sede sobre a inventividade, mesas de pin-
na do ensino superior é também a de ganhadores de prêmios Nobel do que de duas indústrias que estão provo- gue-pongue, consoles para jogar Gui-
um dos estados mais democratas, onde em qualquer outra cidade do país. O es- cando a ruína da América média: o en- tar Hero e outros instrumentos (que eu
é totalmente insólito encontrar um tado de Massachusetts ocupa regular- sino superior e a indústria farmacêuti- nunca vi ninguém usando) para dar
eleito republicano. Quando outras ci- mente o primeiro lugar do índice da no- ca. Todas as duas impõem tarifas que um pouco de leveza aos tempos de
dades e estados, desesperados pela de- va economia dos estados, que mede as quase todo mundo tem de pagar e que pausa, e paredes cobertas de tinta bri-
sindustrialização, esforçam-se para performances em termos de “indústria aumentam bem mais rápido que os sa- lhante nas quais se pode escrever com
criar uma vida cultural e intelectual e do conhecimento, da tecnologia e da lários ou a inflação. pincel atômico.
imploram para suas universidades ge- inovação, do espírito empreendedor e Assim, sem dúvida, é lógico que
rarem ideias rentáveis, Boston é o lugar da inscrição na globalização”. Massachusetts ocupe um lugar de des- PERCURSO DE UM GOVERNADOR EXEMPLAR
que eles buscam imitar. É a cidade que Ela abriga também diversas em- taque em outra categoria: a das desi- A pedra angular da “inoestrutura”
praticamente inventou o modelo eco- presas de medicamentos e biotecnolo- gualdades. Assim que o visitante deixa [infraestrutura de inovação (N.T.)]
nômico do “estado azul” (a cor dos de- gia, reunidas no que se chama de “su- Boston e seus engarrafamentos de cére- municipal é a universidade; inclusive,
mocratas), onde a prosperidade nasce perpolo das ciências vivas”, que faz bros, ele descobre um estado repleto de alguns nessa cidade acabaram acredi-
do ensino superior e das indústrias das parte de um “ecossistema” onde os au- destroços – antigas cidades industriais tando que o lançamento de empresas
ciências e da tecnologia que o rodeiam. tores de teses podem “se associar” e trabalhadores que veem seu modo de e de carreiras profissionais era o ver-
com grupos de capital de risco e gran- vida definhar, como os de Fall River. Es- dadeiro objetivo do ensino superior.
DESTROÇOS INVISÍVEIS des farmacêuticas podem adquirir sa localidade ao sul de Boston perdeu Os dois andam juntos. É por isso que o
Em 2010, cerca de 152 mil estudan- empresas menores. Enquanto as ou- suas numerosas confecções de tecido Massachusetts Institute of Technology
tes viviam em Boston, representando tras indústrias se atrofiam, o superpo- há anos e, com elas, sua razão de ser. (MIT) tem dois reitores adjuntos en-
16,5% da população da cidade. A aglo- lo de Boston se desenvolve e os profis- Muitos galpões vazios continuam de carregados da inovação, em vez de um
meração abriga 85 universidades priva- sionais das ciências vivas do mundo pé. Sólidas estruturas do século XIX, es- só, e é por isso que seu presidente es-
das, ou seja, a maior concentração de inteiro correm para essa Atenas da sas imensas caixas de granito ou de tijo- creve colunas para ensinar à nação a
estabelecimentos de ensino superior do América e para os novos “centros de los dominam a paisagem. A maioria boa maneira de “produzir inovação”.
país – e sem dúvida do mundo. A região inovação” que se acumulam na perife- dessas velhas fábricas têm as janelas re- Por essa razão ainda, a Northeastern
de Boston aproveita todas as vantagens ria universitária de Cambridge, no cobertas de tábuas, emblemas reconhe- University dispõe de um “acelerador de
adjacentes: uma população extrema- oeste da península de Boston. cíveis do desespero, do solo até o teto. empresas” batizado de Idea; Harvard
MAIO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 17

tem seu famoso Centro para a Inova- vador”, inclusive; para todo o resto do Sem surpresa, o primeiro “prêmio
ção; a Boston University possui seu De- mundo, era como se empanturrar de Deval Patrick de inovação pública” foi
partamento de Estratégia e Inovação; arsênico. Os banqueiros aproveitaram atribuído a Deval Patrick. Ele foi entre-
e uma de suas escolas propõe uma até que o mundo pagasse o preço – e gue em 2014 por John Harthorne, dire-
qualificação profissional em Inovação continua pagando até hoje. tor da incubadora de jovens empresas
e Empreendedorismo. Qualquer político que tivesse toca- MassChallenge, junto com o fundador
A identificação de Massachusetts do nessa negociata sórdida deveria ter do Uber, Travis Kalanick. “Quis estar O olhar da cidadania
com o Partido Democrata é profunda. tido sua carreira interrompida imedia- aqui para agradecer o governador por
Bastião da família Kennedy, ele produ- tamente. Mas Patrick se esquivou des- sua liderança, sua visão da inovação,
ziu dois outros candidatos à presidên- sa. Ele foi eleito governador de Massa- da tecnologia, e por ter criado esse es-
cia democratas nestas últimas déca- chusetts em novembro de 2006, pírito inovador aqui em Massachu-
das: o governador Michael Dukakis, tornando-se uma espécie de missio- setts”, declarou Kalanick. Eric Sch-
em 1988, e o senador John Kerry, em
2004. Mesmo quando Massachusetts
nário do culto à inovação. “A econo-
mia de Massachusetts é uma econo-
midt, presidente do Google, também
estava presente para celebrar Massa- Na luta
tem governadores republicanos (como mia de inovação”, gostava de declarar, chusetts e sua “explosão de start-ups”.
Charles Baker, desde 2015), não ape- e repetia esse comentário a todo mo- “Precisamos de mais empreendedores
nas eles têm tendência a serem tão
convencidos quanto seus rivais pelo
mento, modificando ligeiramente a
ordem das palavras-chave do otimis-
porque eles criam empregos e resol-
vem todos os problemas que conhece- pela
modelo do estado azul, mas também o mo: “A inovação é o pivô da economia mos”, alardeou. Três meses depois da
corpo legislativo de Massachusetts, de Massachusetts” etc.1 O governador premiação, o segundo mandato de Pa-
sempre dominado pelos democratas,
consegue passar seu veto.
A maioria dos grandes políticos do
abriu as “escolas de inovação”. Ele as-
sinou o “contrato de inovação social”,
que tinha algo a ver com a satisfação
trick acabou. Pouco depois, ele ga-
nhou um prêmio ainda mais impor-
tante: o emprego de diretor-geral na
construção
estado, se não todos, contribuiu para das “necessidades do setor privado em Bain Capital, a empresa de gestão de

de uma
promover o culto ao conhecimento, as talentos qualificados iniciantes”. ativos e serviços financeiros fundada
start-ups e a classe criativa. Nesse qua- por Mitt Romney, o candidato republi-
dro de honra, o predecessor de Baker, cano à presidência de 2012.
Deval Patrick, reina em muito bom tro- O tipo de progressismo que reina
Favorecer a inovação
sociedade
no. É um dirigente típico da classe pro- em Massachusetts nestas últimas dé-
gressista, seu modelo mais brilhante, significava esmagar cadas não é o de Franklin Roosevelt
poderíamos dizer. Todos parecem nem o do sindicato dos operários da
amá-lo, até mesmo seus adversários.
as pessoas em seu indústria automobilística. Os colari-
A vida de Patrick seguiu a trajetória caminho – por exemplo, nhos-brancos superdiplomados, mes-
democrata clássica. Jovem homem
negro extremamente inteligente, mas
os motoristas de táxi,
cujo ganha-pão foi
mo quando votam nos democratas,
não estão realmente preocupados
mais justa,
pobre, ele foi tirado do buraco por com as gigantescas remunerações dos
uma bolsa que lhe permitiu o acesso a
usurpado vencedores da sociedade. Elas lhes pa-
uma boa escola particular. Alguns
anos depois, ele entrou na Faculdade
recem naturais, na verdade – já que se
trata dos vencedores da sociedade. O solidária e
de Direito de Harvard e, exatamente EXPLOSÃO DE START-UPS progressismo das classes superiores
como nas histórias de Bill Clinton e Na maior parte do tempo, era puro não se estende às questões de desi-
Barack Obama, as portas de um mun-
do até então desconhecido se abriram
palavrório – as banalidades regula-
mentares que tinham de ser ditas a ca-
gualdade, área em que os corações
moles se endurecem rapidamente. sustentável.
bruscamente para ele. Depois de ter da vez que uma companhia farmacêu- O “liberalismo” da inovação é “um
trabalhado para uma organização de tica inaugurava escritórios no estado. liberalismo dos ricos”, para retomar a
defesa das minorias, ele foi para Em outras ocasiões, a palavra de or- fórmula exata do dirigente sindical lo-
Washington, onde dirigiu a divisão dem preferida de Patrick custava caro, cal Harris Gruman. O que se deseja em
dos direitos cívicos do Departamento muito caro – US$ 1 bilhão em subven- Massachusetts é uma meritocracia
de Justiça. Em 1994, ele obteve R$ 54 ções e exonerações de impostos con- mais perfeita, na qual aqueles que têm
milhões de compensação em um fa- cedidos pelo governador em 2008 para talento possam crescer. As reivindica- Quartas, às 17h,
moso processo por discriminação encorajar as empresas farmacêuticas e ções dos trabalhadores ordinários não Rádio USP (São Paulo: 93,7 FM
contra o restaurante Denny’s. de biotecnologia a se instalarem em os tocam, diz Gruman: “Os vigias, os
Ribeirão Preto: 107,9 FM)
Durante os anos 2000, Patrick se Massachusetts, por exemplo.2 garçons de fast-food, os auxiliares do-
tornou advogado de negócios e atra- Em outras ocasiões, favorecer a mésticos e os cuidadores de crianças –
vessou a etapa seguinte normal para inovação significava esmagar as pes- em sua maioria mulheres e negros – Quartas, à meia-noite
os democratas de um certo tipo: pas- soas em seu caminho – por exemplo, não têm diploma universitário”.
TV Aberta SP, canais 9 da NET, 8 da
sou a trabalhar para as grandes em- os motoristas de táxi, cujo ganha-pão E se você não tem diploma univer-
Vivo Fibra e 186 da Vivo.
presas que ele tinha perseguido, en- foi usurpado por aplicativos como o sitário em Boston, meu irmão, tem de
trando em 2004 para o conselho de Uber. Quando esses trabalhadores or- se virar sozinho.
administração da matriz do organis- ganizaram diversas ações de protesto
mo de créditos subprime (de alto ris- na região de Boston, Patrick se colo- *Thomas Frank é jornalista e escritor. Autor
co) Ameriquest. cou claramente do lado da empresa; de Pourquoi les riches votent à gauche [Por
Em 2004, o Ameriquest era o maior aparentemente, o conforto das pes- que os ricos votam na esquerda], publicado
credor hipotecário de alto risco do soas que usavam esse meio de trans- em 20 de abril pela editora Agone (Marselha)
observatorio3setor
país e, sabemos agora, um pioneiro do porte era mais importante do que a e do qual este texto foi tirado.
tipo de práticas que quase destruíram remuneração decente daqueles que o
o sistema financeiro mundial. Para os conduziam. O fato de o Uber ter con-
iniciados do Ameriquest, empacotar tratado um antigo conselheiro de Pa- observatorio3setor
1 Deval Patrick, discursos pronunciados respectiva-
“empréstimos mentirosos” e enviá-los trick não foi mera coincidência. Mas o mente em 8 de dezembro de 2010 e 17 de junho de
para os tubos de Wall Street sob a for- motivo, claro, era a inovação: o Uber 2010.

ma de obrigação era um negócio extre- representava o futuro; os motoristas


2 Cf. Brian Johnson, “Gov. Deval Patrick’s life scien- www. observatorio3setor.org.br
ce legacy” [O legado em ciência viva do governa-
mamente rentável – um negócio “ino- de táxi, o passado. dor Deval Patrick], MassDevice.com, 12 jan. 2015.
18 Le Monde Diplomatique Brasil MAIO 2018

COMPARTILHANDO A PRECARIZAÇÃO

A uberização da Uber
Daniele era motorista profissional, contratada por Michel para servir sua família. Seu trabalho seguia todas as regras
trabalhistas, como jornada de oito horas diárias e registro em carteira. Entretanto, nas horas em que estava a trabalho
e sem atividades específicas com a família de Michel, Daniele era obrigada a realizar corridas como motorista de Uber...
POR RODRIGO FIRMINO E BRUNO CARDOSO*

© Bruno Maron

D
esde a década de 1980, a crise Tendo como protagonistas empre- menores) mensais, e não diários. Am- imobiliários com vários imóveis no
que assola o mundo do traba- sas que rapidamente se tornaram gi- bos, Airbnb e Uber, colaboram para a Airbnb a motoristas de Uber que traba-
lho e a sociedade salarial vem gantes do ramo, como Airbnb e Uber, o produção da cidade contemporânea, lham até catorze horas por dia, seja co-
sendo documentada e pensada fenômeno se espalha para vários tipos bastante diferente das cidades que vi- mo forma de aumentar seu capital eco-
pelo trabalho acadêmico e ampla- de serviço, acompanhados pela gran- ram o encerramento do século XX. nômico ou de sobreviver em um
mente debatida nas arenas políticas de quantidade de empresas que apos- A rapidez da disseminação e o im- contexto de crise e queda nos índices
dos mais diversos países. Essa crise tam no que ficou conhecido como ube- pacto da economia colaborativa não de vagas de trabalho formal e de enco-
implica o abalo do modelo que preva- rização. Esse fenômeno é marcado, podem ser explicados apenas em razão lhimento do valor real do salário míni-
leceu em parte considerável do século entre outras coisas, pela precarização do encolhimento do mercado de traba- mo, cada vez mais pessoas se envolvem
XX, caracterizado pelo predomínio do das relações de trabalho, já que as em- lho formal e da precarização das rela- com o modelo da sharing economy.
emprego formal, pela força da repre- presas se apresentam apenas como ções de trabalho, nem por conta do de-
sentação sindical e pelas negociações fornecedoras da tecnologia de inter- senvolvimento e popularização dos DANI E O “COMANDANTE”:
setoriais, além da associação entre a mediação de serviços, não assumindo dispositivos tecnológicos conectados A PRECARIZAÇÃO DA LIBERDADE
identidade dos cidadãos e sua ocupa- com isso nenhuma responsabilidade pela internet. O modelo Uber-Airbnb A uberização ganha contornos
ção profissional e um perfil de gênero trabalhista em relação a seus usuá- obteve sucesso, diante de várias tenta- curiosos a cada dia, mas recentemente
majoritariamente masculino. Muitas rios-parceiros. Exemplos são os mais tivas diferentes de start-ups na fervi- presenciamos o que parece ser uma
dessas transformações se consolida- variados e assustadores, como o caso lhante economia dos aplicativos, tam- tentativa de elevar ao máximo o apro-
ram ou se radicalizaram com a popu- da prefeitura de Ribeirão Preto (SP), bém por ter “afinidade eletiva”, como veitamento desse tipo de precarização
larização e a conexão constante de dis- que chegou a elaborar um projeto, po- diria Max Weber, com aquilo que é do ponto de vista da exploração do tra-
positivos comunicacionais digitais e a pularmente conhecido como profes- chamado de self empreendedor,3 carac- balho. Os detalhes do esquema im-
internet, assunto que vem sendo trata- sor Uber, para a contratação de aulas terístico da racionalidade neoliberal4 pressionam pela engenhosidade das
do de forma exaustiva pela sociologia.1 avulsas para a rede municipal de edu- contemporânea e dos modos de subje- relações propostas para maximizar a
Como efeitos, temos ao mesmo tempo cação.2 Se para a Uber a consequência tivação que a produzem. Em outras exploração das horas contratadas de
o lento fim dos empregos e o esvaeci- mais imediata parece ser a precariza- palavras, trata-se da sedução do em- um trabalhador, a ponto de o contrata-
mento das fronteiras entre o trabalho e ção das relações de trabalho e a extin- preendedorismo, da autoconcepção do realizar atividades adicionais em
o não trabalho. Além disso, os disposi- ção do vínculo formal, no caso do Air- dos indivíduos como “empresas de si”, suas horas de trabalho para, indireta-
tivos tecnológicos e a rede vêm propi- bnb os impactos se sentem mais, para constituídas primordialmente por ca- mente, pagar por seu próprio salário.
ciando o surgimento de novos modelos além do setor hoteleiro, no processo de pital humano e concorrendo com inú- Após um encontro da Rede Latino-
de trabalho e de exploração de servi- gentrificação das vizinhanças e da ex- meros outros indivíduos-empresa pela -Americana de Estudos sobre Vigilân-
ços, entre os quais nos interessa aqui pulsão dos locatários tradicionais, prestação de serviços ou por oportuni- cia, Tecnologia e Sociedade (Lavits), em
diretamente o da sharing economy. com contratos longos e valores (bem dades de mercado. De proprietários São Paulo, tomamos um UberX condu-
MAIO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 19

zido por uma jovem motorista chama- prir todos os requisitos, pois, como ela ção, já que o “comandante” parecia qualquer usuário da Uber em São
da Daniele,5 muito simpática e alegre. própria disse, “desse jeito sou eu que inspirar medo em sua motorista e ali- Paulo. Ao ter a ideia de transformar
Daniele seguia o caminho sugerido pe- pago meu próprio salário”. A lucidez de mentava a relação patronal com cons- seu veículo particular em meio de
lo aplicativo e conduzia com eficiência. sua análise ressaltava que o pagamen- tantes ameaças, certamente aprovei- produção e, por meio de um contrato
Animados com as possibilidades de no- to que recebia era composto por parte tando-se do fato de sua funcionária ser formal ambíguo, apropriar-se da
vos projetos de pesquisa sobre vigilân- do que ela mesma arrecadava com o mulher. A razão de empregar apenas mais-valia produzida por suas duas
cia da Lavits, conversávamos sobre Big serviço de Uber durante sua jornada mulheres possivelmente o fazia exer- trabalhadoras, o “comandante” não
Data e as possibilidades de uso da cole- de trabalho, desempenhando uma cer outras formas de dominação e po- faz algo muito diferente daquilo que
ta e manipulação de dados por gover- função que se desviava de sua ativida- der mais ou menos sutis e já extensa- Marx observou na aurora do capitalis-
nos, empresas e cidadãos. Debatíamos de-fim – conduzir a família de Michel mente pensadas e apontadas como mo industrial, ainda no século XIX.
projetos para, por exemplo, modificar a ao shopping, à escola, ao clube etc. características das relações de gênero Não pretendemos com isso afirmar
precificação de apólices de seguro ba- A exploração se revelou complexa, no mundo do trabalho. que a economia compartilhada e suas
seada na análise de dados individuali- astuta e eticamente questionável, de variações de capitalismo criativo em-
zados e em tempo real de clientes, per- uma trabalhadora “semiprecarizada”, preendedor possam ser reduzidas ao
sonificando de maneiras cada vez mais em uma situação construída sobre caso que apresentamos, ou mesmo
precisas os cálculos de risco. ambiguidades, por um patrão que se Airbnb e Uber, que este seja significativo das relações
Daniele manipulava seu celular en- identificava no celular como “coman- colaboram para a econômicas e sociais que emergem da
quanto conduzia, recebendo e respon- dante”. Tratava-se de uma maximiza- sharing economy e a sustentam. Muito
dendo mensagens de um interlocutor ção da exploração de sua força de tra-
produção da cidade menos defendemos que a perspectiva
chamado “comandante”, mas parecia balho. Era curioso e surpreendente contemporânea, bastante marxista, elaborada 150 anos antes do
atenta à nossa conversa. Foi quando que, numa atividade tão característica diferente das cidades que surgimento de empresas como Uber e
nos ocorreu envolvê-la na discussão, da sharing economy e do self empreen- viram o encerramento Airbnb e do modelo econômico que
questionando-a sobre as condições do dedor, os velhos conceitos de mais-va- proporcionam, seja a principal chave
seguro de seu veículo pelo fato de usá- lia e de propriedade dos “meios de pro-
do século XX de explicação para as transformações
-lo como instrumento de trabalho in- dução” pudessem fazer tanto sentido. contemporâneas do mundo do traba-
formal. Daniele respondeu dizendo A história ganhou contornos de as- lho. Contudo, ao destacarmos as espe-
que no seguro não havia informações sédio moral quando Daniele relatou ter Antes que deixássemos Daniele e ela cificidades desse caso, levando em
sobre o uso da Uber, mas disse que o pedido para ser bloqueada pela própria se fosse com outro passageiro, pergun- consideração o contexto político do
veículo, na verdade, pertencia a outra Uber. Bloqueios de usuários/parceiros tamos se ela gostaria que a avaliásse- Brasil do pós-golpe de 2016 e o avanço
pessoa, seu “chefe”. Esse fato não pas- da Uber são comuns em casos de deso- mos com a nota máxima (cinco estrelas) das políticas neoliberais de desregula-
sou despercebido, e queríamos saber bediência das regras de uso do serviço, ou se preferia uma nota baixa, para ser mentação do trabalho, não há como
mais sobre o que parecia ser um exem- mas nunca ou raramente a pedido do bloqueada novamente pelo aplicativo. não pensarmos nas crescentes possi-
plo de terceirização de frota Uber, o próprio usuário/parceiro. Isso mostra “Nota alta, né, porque a gente tem nosso bilidades de radicalização da explora-
que não seria o primeiro caso. uma tentativa de Daniele de se desven- orgulho.” A nota que demos, cinco es- ção capitalista e da precarização das
No entanto, estávamos equivoca- cilhar da atividade adicional sem per- trelas, não era de forma alguma injusta. relações de trabalho. Gradualmente,
dos. Daniele era motorista profissional, der o emprego. Funcionou por alguns Longe disso, a viagem acabou sendo um pouco sem sentirmos, um tanto
contratada por Michel para servir sua dias, apesar dos pedidos insistentes do perturbadoramente agradável, apesar sem reagirmos, vamos nos acostu-
família. Seu trabalho seguia todas as “comandante” para que ela resolvesse a da história de precarização disfarçada, mando com formas cada vez mais
regras trabalhistas, como jornada de situação junto à Uber. A pressão se dava muito pela simpatia e abertura da pró- criativas, empreendedoras e autôno-
oito horas diárias e registro em cartei- por meio de constantes comentários de pria Daniele, duplamente uberizada e mas de explorar os mais pobres, mais
ra. Entretanto, nas horas em que estava que ele não conseguiria manter a moto- sob vigilância de seu “comandante”. fracos e mais precários. Um mundo de
a trabalho e sem atividades específicas rista e que seria “obrigado a demiti-la”. uberexploração de um trabalho cada
com a família de Michel, Daniele era Impaciente, ele mesmo criou uma nova UBERIZAÇÕES vez mais uberificado.
obrigada a realizar corridas como mo- conta para Daniele, que precisou voltar O caso de Daniele nos mostra as-
torista Uber, com as seguintes condi- a fazer as corridas, já que dependia do pectos sombrios daquilo que vem sen- *Rodrigo Firmino é professor titular do Pro-
ções: todo valor repassado pela Uber dinheiro para se manter. Ela contou do chamado de sharing economy. No grama de Pós-Graduação em Gestão Urba-
iria diretamente para a conta do chefe; que, no auge da pressão, foi no escritó- lugar da maior liberdade e autonomia na (PPGTU) da Pontifícia Universidade Cató-
o e-mail cadastrado no serviço era o de rio da Uber e explicou a história, sendo prometidas pelas formas de empreen- lica do Paraná (PUCPR), editor-chefe da
Michel, que monitorava valores e traje- informada de que aquela situação era dedorismo criativo, o que pudemos ver revista urbe (www.scielo.br/urbe) e membro
tos conforme estes aconteciam; em ca- irregular e que não seria possível reati- foi um trabalho ainda mais intenso, fundador da Rede Latino-Americana de Es-
so de acidentes, a responsabilidade re- var sua conta. Já buscando abandonar controlado e hierarquizado. Se é verda- tudos em Vigilância, Tecnologia e Sociedade
cairia sobre Daniele; celular e veículo definitivamente essa situação de “ube- de que o modelo de trabalho que cons- (Lavits – www.lavits.org). E-mail: rodrigo.fir-
eram de propriedade de Michel; e não rização da Uber”, Daniele contou que tituiu o capitalismo industrial fordista mino@pucpr.br. Bruno Cardoso é professor
havia a possibilidade de trabalhar sem estava completando um curso para vem se enfraquecendo desde a década adjunto do Programa de Pós-Graduação em
aceitar essas condições. motorista de ônibus e que já tinha tra- de 1980, pelo menos não foi para nos Sociologia e Antropologia (PPGSA) da Uni-
Muito constrangidos e preocupa- balhado como motorista de van esco- dirigirmos a um mundo no qual o pró- versidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
dos, começamos a fazer cada vez mais lar, função que não se importaria de de- prio trabalho e sua importância na e membro fundador da Lavits. E-mail: bruno-
perguntas e a tecer comentários, suge- sempenhar novamente. constituição disciplinar da sociologia vcardoso@hotmail.com.
rindo cuidados e o registro de todo o Pouco antes de nos deixar em nos- perderiam a cada dia mais sua centra-
processo em caso de problemas futu- so destino, ainda houve tempo de sa- lidade.6 De modo quase oposto, o tra-
ros com a justiça trabalhista. Daniele bermos outra faceta do caso: Daniele balho vai se tornando onipresente, dis- 1 Ver, por exemplo, Manuel Castells, A sociedade
em rede, Paz e Terra, São Paulo, 1999.
então nos revelou outro detalhe assus- mencionou haver outra motorista tra- tribuído por dispositivos tecnológicos 2 Ver Ana Luiza Basilio, “Professor Uber: a precari-
tador: o “comandante” com quem ela balhando para a família nas mesmas que nos acompanham a todo momen- zação do trabalho invade as salas de aula”, Carta
trocara mensagens pouco antes era o circunstâncias. Chamou-nos a aten- to, nos alertam, nos conectam, nos ras- Capital, 28 ago. 2017. Disponível em: <https://
goo.gl/BaAMiW>.
próprio Michel, que reclamava da ção o fato de serem ambas motoristas treiam e, até certo ponto, nos aprisio- 3 Nikolas Rose, Inventando nossos selfs, Vozes, Pe-
quantidade pequena e do preço baixo mulheres, o que foi justificado por Da- nam na mais plena mobilidade. trópolis, 2011; Nikolas Rose e Peter Miller, Gover-
das corridas. Afinal, ele recebia relatos niele como ciúme do “comandante” O “comandante”, sem dúvida, foi nando o presente, Paulus, São Paulo, 2012.
4 Pierre Dardot e Christian Laval, A nova razão do
de todas as corridas em tempo real. Já pelo fato de as motoristas estarem à empreendedor ao ter a ideia de colo- mundo, Boitempo, São Paulo, 2016.
nos preocupávamos se nossas conver- disposição de sua esposa. Para além car suas duas funcionárias para tra- 5 Os nomes foram modificados para preservar a
sas também não estariam sendo mo- do ciúme da esposa, outros atravessa- balhar, nas “horas vagas de trabalho” identidade dos envolvidos.
6 Claus Offe, “Trabalho: a categoria-chave da socio-
nitoradas pelo “comandante”. Daniele mentos por relações de gênero (e po- como motoristas de sua família, tam- logia?”, RBCS: Revista Brasileira de Ciências
se sentia pressionada e tinha de cum- der) podem ser percebidos nessa situa- bém como motoristas potenciais de Sociais, v.4, n.10, p.6-20, 1989.
20 Le Monde Diplomatique Brasil MAIO 2018

DESDOBRAMENTOS DO CASO FACEBOOK-CAMBRIDGE ANALYTICA

É preciso acabar com


o tráfico de dados
Por muito tempo, os Estados toleraram todas as infrações cometidas pelas indústrias digitais, seja em termos de fiscalização,
propriedade intelectual ou vida privada. Era preciso ser “rápido e quebrar coisas”, nas palavras de Mark Zuckerberg.
Mas a correlação de forças mudou. A questão não é mais saber se a atividade desses grupos será regulamentada, mas como
POR FRANK PASQUALE*

A
vida de Catherine Taylor virou de
cabeça para baixo no dia em
que uma corretora de dados
pessoais escreveu por engano
no arquivo sobre ela: “Tentativa de
vender e fabricar metanfetamina”. Es-
sa falsa acusação se espalhou como
rastilho de pólvora, por meio da venda
desenfreada de informações relativas
ao consumidor. Quando foi procurar
emprego, esse estigma digital espan-
tou os recrutadores. Ela não conse-
guia nem comprar uma máquina de
lavar louça a prazo.
A ChoicePoint, uma das muitas
empresas de coleta de dados pes-
soais, acabou corrigindo o erro. Mas
muitas outras empresas para as
quais ela tinha vendido o arquivo de
Catherine não fizeram isso. Ela teve
de procurá-las e processá-las judi-
cialmente, o que a deixou em ruínas.
“Eu não posso passar todo o meu
tempo de guarda”, disse ao repórter
do jornal The Washington Post, que
contou sua história.1 Catherine le-
vou quatro anos para arranjar um
emprego e, sem conseguir encontrar
um apartamento, acabou indo mo-
rar com a irmã. Ela afirma que o es-
tresse causado pela situação agra-
© Alpino

vou seus problemas cardíacos.


Para cada Catherine Taylor, que
está ciente da origem de sua má repu-
tação, milhares de pessoas são sub-
metidas, sem saber, à criação de per- ENCOLHIMENTO DA VIDA PRIVADA dos que vastos estoques de vídeos, con- Você digitou em uma página de bus-
fis e à espionagem digital. As mesmas Enquanto, em ambos os lados do versas íntimas e fotografias que ca: “sintomas da gonorreia” ou “como
empresas que usam algoritmos sofis- Atlântico, as autoridades políticas pre- achavam ter sido removidos estão per- declarar falência”? Esse percurso de na-
ticados para nos monitorar e mani- param-se para criar leis (ou aplicar feitamente preservados em seus arqui- vegação ainda pode existir, vinculado
pular se escondem atrás do “segredo melhor as que existem), revela-se ne- vos. Surgem registros detalhados de ao seu nome, ao endereço IP do seu
comercial” quando são chamadas a cessária uma cartografia mental das seus deslocamentos. Nos telefones An- computador e até ao seu identificador
prestar contas. vastas infraestruturas de hospedagem droid, a rede social capta discretamen- único. Com isso, as empresas podem fa-
De quando em quando, jornalistas de dados. Para nos orientar nesse labi- te informações relativas às chamadas. cilmente estabelecer listas de pessoas
e outros cidadãos que fazem denún- rinto, podemos distinguir três manei- Registros consideráveis revelam que as consideradas “neuróticas” ou “em abs-
cias abrem uma janela sobre o funcio- ras de lidar com informações pessoais redes sociais mantêm detalhes íntimos tinência”. “Com base no histórico de seu
namento opaco da nova economia di- nas empresas modernas: coleta, análi- da vida de seus usuários. À medida que cartão de crédito, do carro que você di-
gital. Suas revelações sobre como a se – para tirar conclusões sobre os os sensores dos telefones celulares me- rige e de outros aspectos do seu estilo de
empresa Cambridge Analytica desviou usuários envolvidos – e exploração. Ca- lhoram, os gigantes da web ficam cada vida, temos uma boa chance de saber se
informações de usuários do Facebook da etapa desse processo apresenta pro- vez mais tentados a coletar ainda mais você tem ou não a doença que nos inte-
chamaram a atenção para a necessida- blemas específicos. dados, até obter um retrato completo ressa”, declarou o vice-presidente de
de de uma política sobre os dados. Sob Quando os cidadãos exigem que o dos usuários, que expõe suas vulnera- uma empresa de saúde.2 Outros reven-
pressão, os Estados sentem-se obriga- Facebook e o Google enviem seus ar- bilidades, desejos, fraquezas e até mes- dem endereços de e-mail e prescrições
dos a agir para regular seu uso. quivos pessoais, descobrem horroriza- mo seus crimes. de pacientes com depressão ou câncer.
MAIO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 21

A amplitude dessa coleta de dados ordenando que as empresas informem A coleta de dados é apenas o pri- tra os hackers, eles não estão isentos
geralmente aparece pouco a pouco, à sobre o tipo de dados que coletam. meiro passo no processo de arruinar a de efeitos negativos para a humanida-
medida que as empresas deixam esca- Também deveriam permitir que os privacidade. Após reunir as informa- de. Sabemos que pelo menos uma em-
par as informações inadvertidamente. usuários impeçam a coleta de algu- ções, as empresas as analisam e fazem presa de cartão de crédito observa os
Por exemplo, um dia, uma delas enviou mas informações sensíveis, em vez de correlações e induções. Por exemplo, a eventos de nossa vida, especialmente
um e-mail para “Mike Seay, filha morta impor condições de uso do tipo “tudo socióloga Mary Ebeling preencheu al- aqueles relacionados à nossa psicolo-
em acidente de carro”. A filha do desti- ou nada”. Um usuário do Facebook po- guns formulários no início de uma gra- gia, para realizar análises preditivas.
natário havia de fato morrido em um deria, assim, proibir a rede social de videz que terminou em aborto espon- Como as estatísticas indicam que os
acidente havia menos de um ano. O in- elaborar um arquivo completo sobre tâneo. Ainda em choque, ela ficava casais que fazem terapia têm mais
teresse dessa informação sinistra para suas idas ao hospital. recebendo propagandas de produtos probabilidade de se divorciar do que
uma estratégia de marketing continua O crescente risco de violação de para bebês de empresas de marketing. os outros, esse fator se torna um “si-
desconhecido. A empresa não comen- privacidade desacredita qualquer ten- Mary havia sido classificada como mãe nal” de que a discórdia conjugal está
tou o assunto e não revelou a fonte da tativa de justificá-lo em nome da “seg- em inúmeros bancos de dados digitais. prestes a se transformar em problema
informação. As corretoras de dados mentação dos consumidores”. Por A experiência lhe rendeu um livro, mas financeiro. Essa “penalidade por tera-
podem obrigar por contrato seus clien- mais sofisticadas e cautelosas que se- ela nunca conseguiu entender todo o pia do casal” representa um dilema
tes a protegerem suas fontes. jam, até mesmo empresas gigantes po- processo por trás dos anúncios que a para os legisladores. Se protegem essa
Coletores, corretoras e revendedo- dem sucumbir a ataques piratas. O assombraram durante anos.5 Outros informação, ocultam um aspecto im-
res de dados podem entregar informa- tráfego cibercriminoso de dados con- algoritmos constroem nossa reputação portante da capacidade de pagamento
ções inofensivas, mas também criam tinua sendo um assunto tabu. Mas já como mutuário, estudante, proprietá- dos titulares de cartão de crédito. Se
classificações de um cinismo sem foi admitido que uma corretora norte- rio ou empregado. Muitas empresas de autorizam que ela seja revelada, os ca-
igual. Compilam listas de vítimas de -americana vendeu acidentalmente os crédito estão usando as informações sais podem desistir da terapia neces-
agressão sexual, pessoas com aids ou números de seguridade social, cartei- de maneiras inéditas, para oferecer sária para o relacionamento.
mal de Alzheimer. Há também listas ra de motorista, conta bancária e car- seus serviços a consumidores e peque- Mesmo que não exista um vínculo
de pessoas impotentes ou depressivas. tão de crédito de milhões de pessoas a nas empresas. Nessa sociedade de ra- comprovado entre terapia de casal e
Vendidas por alguns centavos o nome, especialistas em roubo de identidade.4 ting, as pessoas não sabem como seu inadimplência, a correlação é suficiente
essas listas, mesmo sendo muito pou- pedido de crédito foi examinado. para orientar uma decisão. As conse-
co confiáveis, atraem profissionais de MILHÕES DE ARQUIVOS POR PEN DRIVE quências podem ser sombrias no caso
marketing, mas também, e cada vez É necessário monitorar melhor a de estados objetivamente verificáveis,
mais, instituições financeiras, que fonte dos dados e seus compradores. como gravidez, e destrutivas para as
examinam o perfil de seus clientes pa- Apesar dos esforços dos legisladores Você digitou em uma pessoas categorizadas como “preguiço-
ra evitar fraudes, além de empregado- para entender essas práticas, a troca busca: “sintomas da sas”, “não confiáveis”, “com problemas”,
res em busca de funcionários. Mestres de informações médicas continua gonorreia” ou “como ou pior. No momento em que a alqui-
da sombra, as corretoras esvaziam de sendo um alvo em movimento, pois mia digital cria novas realidades analó-
qualquer substância o conceito de milhões de arquivos podem ser cripto-
declarar falência”? Esse gicas, os dados à deriva podem causar
confidencialidade. Há muito tempo, grafados e transmitidos com um úni- percurso de navegação problemas em cascata. A partir do mo-
uma dinâmica está em curso: a vida co clique. Às vezes, encontram-se tra- ainda pode existir, mento em que um programa de softwa-
privada encolhe, à medida que a prote- ços das vendas de dados, mas o que vinculado ao seu nome re define que uma pessoa apresenta um
ção comercial se expande. fazer quando eles são trocados após risco de crédito, está em falta com suas
Alguns desses dados estão errados. um acordo informal entre corretoras? responsabilidades profissionais ou con-
O autor de um artigo revelador descre- Um simples pen drive pode conter mi- some de maneira marginal, esses atri-
ve como uma de suas amigas, em per- lhões de arquivos. As agências de su- Esses problemas têm consequências butos podem afetar decisões em muitos
feita saúde, recebeu um misterioso pervisão já tinham dificuldade em concretas particularmente preocupan- outros sistemas da economia. As autori-
convite para uma reunião voltada a controlar as empresas físicas – com a tes. Um relatório recente da Privacy In- dades devem avaliar e regular o funcio-
pacientes com esclerose múltipla. proliferação de empresas de comércio ternational revela que as empresas de namento das empresas de tecnologia
Aparentemente, ela havia preenchido de dados, elas ficaram completamente tecnologia financeira, que apostam nas financeira. Algumas inferências preci-
um formulário de inscrição para uma sobrecarregadas. Se as corretoras não ferramentas digitais para capturar fa- sam ser proibidas. Por exemplo, a geolo-
reunião de pessoas com amigos afeta- serão obrigadas a explicar as origens e tias de mercado, não hesitaram em ex- calização pode interferir na avaliação
dos por essa doença, e esses dados fo- os destinos exatos de todos os dados plorar informações confidenciais para da capacidade de pagamento e levar à
ram coletados e depois revendidos a que possuem, não podemos estimar a avaliar a capacidade de pagamento de negação de crédito a pessoas ligadas a
uma empresa de marketing. Ela já não extensão dos usos fraudulentos ou um tomador de empréstimo: atividade um bairro de má reputação.
lembra se o formulário previa esse tipo acabar com as transferências ilegais. política, telefonemas e mensagens, apli- Enquanto a vida dos cidadãos co-
de uso – mas quem poderia se lembrar Além da responsabilização das em- cativos usados, geolocalização, formu- muns é constantemente sujeita à vigi-
de todas essas condições gerais de uso presas de coleta, conforme prevê a no- lários preenchidos etc.6 lância do Estado, empresas poderosís-
que aceitamos em um clique sem ler? va regulamentação europeia, os legis- Além disso, softwares capazes de fa- simas ocultam seus dados e algoritmos
Depois, a empresa de marketing ven- ladores deveriam proibir a divulgação zer previsões e ajustá-las com base na das autoridades que deveriam nos
deu essas informações a um grupo de algumas informações, salvo em ca- análise de dados em massa – os siste- proteger. Por que os poderes públicos e
que possui duas empresas farmacêuti- so de derrogação. Por exemplo, muitos mas de aprendizagem automática – seus serviços não se dedicam a ras-
cas. A interessada começou a suspeitar estados norte-americanos proibiram mobilizam meios ainda mais intrusivos trear melhor os erros das companhias?
de alguma coisa quando começou a que os empregadores pedissem a fun- para estimar a capacidade de pagamen- Considerando suas condições, Google
receber itens promocionais para a reu- cionários atuais ou potenciais a senha to. Por exemplo, um artigo recentemen- e Facebook deveriam ser monitorados
nião. Quantos de nós somos classifica- para acessar suas contas de redes so- te publicado pretende avaliar a propen- de perto. O quadro jurídico e técnico
dos em categorias que desconhece- ciais. Mas a competição pode pressio- são ao crime pela fisionomia dos para isso já existe. Agências de espio-
mos, sem fazer ideia disso?3 nar alguns candidatos a oferecê-las indivíduos.7 Pesquisadores de inteligên- nagem estão redobrando seus esforços
O caso Cambridge Analytica mos- por conta própria. Assim, quem se cia artificial também preveem a sexua- em todo o mundo em nome da “guerra
trou que os dados de milhões de usuá- preocupa com a proteção de sua priva- lidade e a saúde com base no rosto de ao terror”. Uma guerra contra as viola-
rios do Facebook haviam sido desvia- cidade pode ser prejudicado, mesmo uma pessoa, imagem relativamente fá- ções de privacidade seria uma reorien-
dos por essa empresa, que negocia que esteja apenas exercendo seus di- cil de obter no Google ou no Facebook.8 tação bem-vinda de suas atividades.
influência política (ler na pág. 23). Mas reitos, pois o empregador privilegiaria Os reguladores devem ser capazes
as revelações sobre a transferência de os outros. Enquanto o uso de informa- DA INTELIGÊNCIA À ESTUPIDEZ ARTIFICIAL de monitorar os processos de aprendi-
informações são raras. Os Estados de- ções sensíveis não for proibido e seria- Embora os sistemas de aprendiza- zagem automática para entender, mes-
veriam facilitar a tarefa daqueles que mente controlado, ninguém estará a gem automática sejam uma inovação mo que seja um pouco, se alguma fonte
começam a abrir essa “caixa-preta”, salvo de um futuro sem privacidade. valiosa na luta contra o câncer ou con- de dados suspeita está influenciando as
22 Le Monde Diplomatique Brasil MAIO 2018

grandes empresas. Nem a aprendiza- A regulamentação mais decisiva sional, sob o argumento de que não é uma compreensão do aparato estatal.
gem automática nem a análise preditiva deveria ser aquela relacionada ao uso possível controlar os próprios genes. É necessário esclarecer os métodos
são complexas demais para poderem de dados. Um Estado provavelmente Mas somos mais capazes de controlar das empresas que influenciam nosso
ser reguladas. Algumas empresas de teria dificuldades para impedir que um câncer, uma fratura na perna, a governo, nossa organização social e
tecnologia financeira que utilizam inte- pesquisadores estudem as probabili- ansiedade e a depressão que podem nossa cultura. Na era da informação,
ligência artificial poderiam argumentar dades de capacidade de pagamento ou acompanhar os problemas conjugais? os novos senhores prometem liberda-
que os cálculos que embasam suas de- as disposições criminais com base, Não se deve esperar que simples in- de e autodeterminação, enquanto suas
cisões se tornaram uma forma cogniti- por exemplo, no reconhecimento fa- divíduos se encarreguem de expor os “caixas-pretas” levam ao estabeleci-
va tão difícil de explicar quanto o pro- cial: como controlar o que eles estão problemas ligados aos dados em mas- mento de uma oligarquia digital.
cesso de decisão humana. É preciso ter procurando em um conjunto de dados sa e aos processos de decisão automa-
cuidado com esse argumento da “com- (mesmo que isso resulte de correla- tizados. Indivíduos não têm tempo pa- *Frank Pasquale é professor de Direito da
plexidade infinita” que justifica a des- ções falaciosas)? No entanto, os ban- ra explorar os milhares de bases que Universidade de Maryland. Autor de Black
regulamentação. A inteligência artifi- cos podem ser proibidos de selecionar poderiam impactar sua vida. A detec- Box Society. Les algorithmes secrets qui
cial celebrada por entidades comerciais a quem vão emprestar dinheiro literal- ção de falhas na exploração desses da- contrôlent l’économie et l’information [Black
também pode se transformar em “es- mente pela cara do cliente, ou as uni- dos cabe às autoridades, que devem Box Society. Os algoritmos secretos que con-
tupidez artificial” ou pior. Além disso, versidades de selecionar seus alunos examinar os inventários dos servido- trolam a economia e a informação], Éditions
existem várias medidas práticas fáceis com base no “nível de agitação” calcu- res das grandes empresas e das corre- FYP, Limoges, 2015.
de aplicar, mesmo para os sistemas de lado quando eles eram crianças. toras para encontrar dados suspeitos e
pontuação de crédito mais complexos: Aqui, a intervenção do Estado, e não exigir rastreabilidade para verificar a
1 Ylan Q. Mui, “Little-known firms tracking data used
os reguladores poderiam exigir que os o julgamento do indivíduo, é crucial. confiabilidade de suas fontes. No setor in credit scores” [Empresas pouco conhecidas
dados utilizados para o cálculo lhes se- Imaginemos o seguinte cenário: os da- da saúde, os Estados Unidos já utili- rastreiam dados usados em pontuações de crédi-
jam comunicados e excluir, por exem- dos circulam em total transparência. zam especialistas para identificar prá- to], The Washington Post, 16 jul. 2011.
2 Joseph Walker, “Data mining to recruit sick peo-
plo, os que se relacionam com a saúde. Você pode acompanhar qualquer in- ticas problemáticas nos hospitais e ple” [Mineração de dados para recrutar pessoas
Além disso, como parte do Regulamen- formação sobre você, da corretora ao consultórios médicos. Bastaria tribu- doentes], The Wall Street Journal, Nova York, 17
to Geral sobre a Proteção de Dados usuário final. Você pode contestar as tar um pouco a economia dos dados dez. 2013.
3 Nicholas P. Terry, “Protecting patient privacy in the
(RGPD), da União Europeia, que entra que achar incorretas. Você pode, se de- para financiar controles mais amplos. age of Big Data” [Proteger a privacidade do pa-
em vigor no dia 25 de maio, os cidadãos sejar, forjar várias versões digitais de si As empresas estão usando cada vez ciente na era do Big Data], University of Missouri-
podem exigir conhecer a lógica dos pro- mesmo, para que cada fornecedor te- mais processos automatizados para -Kansas Law Review, v.81, n.2, Kansas City, 2012.
Lori Andrews, I Know Who You Are and I Saw
cessos totalmente automatizados que nha a melhor e mais recente versão de avaliar riscos e se orientar em seus ne- What You Did: Social Networks and the Death of
emitem julgamentos sobre eles. Esse seus gostos, interesses e conquistas. gócios. As companhias que controlam Privacy [Eu sei quem você é e vi o que você fez: as
“direito à explicação” deveria fazer par- Esse tipo de economia individual esses processos estão entre as mais di- redes sociais e a morte da privacidade], Free
Press, Nova York, 2011.
te dos direitos humanos universais, ca- da reputação continuaria sendo apa- nâmicas e rentáveis da economia da 4 “Experian sold consumer data to ID theft service”
so contrário, essas decisões opacas de vorante. Em primeiro lugar, com a informação. Todos esses serviços usam [Experian vende dados de consumidores a serviço
computadores terão cada vez mais peso atual intensificação dos fluxos, os in- algoritmos, mantidos secretos a maior de roubo de identidade], Krebs on Security, 20 out.
2013. Disponível em: <krebsonsecurity.com>.
em nossa vida cotidiana. divíduos teriam dificuldade em saber parte do tempo, para ordenar essa pro- 5 Mary Ebeling, Healthcare and Big Data. Digital
Para restaurar a confiança popular exatamente onde e como são caracte- fusão de informações. A atração por Specters and Phantom Objects [Saúde e Big
na vida política e no debate democrá- rizados, mesmo com a ajuda de novos essa tecnologia tem origem na antiga Data. Espectros digitais e objetos fantasma], Pal-
grave Macmillan, Basingstoke, 2016.
tico, os reguladores deveriam convo- softwares e de profissionais. E, em aspiração de prever o futuro, tempera- 6 “Case study: Fintech and the financial exploitation
car imediatamente as empresas en- muitos casos, dados verídicos podem da por um toque moderno de sobrieda- of customer data” [Estudo de caso: Fintech e a ex-
volvidas para divulgar os dados e os ser usados para fins injustos ou discri- de estatística. ploração financeira de dados de clientes], Privacy
International, 30 ago. 2017. Disponível em: <www.
algoritmos empregados com o objeti- minatórios, por exemplo, se uma em- Nessa atmosfera de segredo, as fal- privacyinternational.org>.
vo de definir o discurso apropriado a presa de crédito programar em seu sas informações podem passar por 7 Blaise Agüera y Arcas, Margaret Mitchell e Alexan-
determinados alvos, bem como esses software que o pagamento a um con- verdade e produzir previsões injustas, der Todorov, “Physiognomy’s new clothes” [As no-
vas roupas da fisiognomonia], Medium, 6 maio
alvos em si. Uma legislação como o selheiro matrimonial deve ser inter- talvez desastrosas. A modelagem pode 2017. Disponível em: <https://medium.com>.
“direito à explicação” da RGPD seria pretado como um risco-padrão, justi- ser catastrófica quando considerações 8 Sam Levin, “LGBT groups denounce ‘dangerous’
um apoio para a liberdade de expres- ficando aumentar as taxas de juros do injustas ou inadequadas se misturam AI that uses your face to guess sexuality” [Grupos
LGBT denunciam “perigoso” recurso de inteligên-
são. Se as empresas afirmam que seus titular do cartão. O recurso a um pro- ao poder dos algoritmos para criar os cia artificial que usa rosto para adivinhar sexualida-
algoritmos são complexos demais pa- fissional de saúde não deveria deter- fracassos que eles pretendiam prever. de], The Guardian, Londres, 9 set. 2017; Barbara
ra serem revelados, as autoridades de- minar os termos de uma concessão de O debate público, assim como a ca- Marquand, “How your selfie could affect your
health insurance” [Como sua selfie pode afetar seu
veriam proibir o uso das informações crédito. Já é proibido usar informações pacidade de os cidadãos tomarem de- seguro-saúde], 24 abr. 2017. Disponível em:
dele resultantes. genéticas para recrutamento profis- cisões informadas, exige mais do que <www.nerdwallet.com>.

O filme de Jonas Carpignano é memorável,


sua direção surpreendente e a performance
H o j e n o s do adolescente impressionante!
c i n e m as Martin Scorsese

U M F I L M E D E J O N AS CA R P I G N A N O
MAIO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 23

FACEBOOK E CAMBRIDGE ANALYTICA

Tudo ia bem. Já não vai mais


O domínio e a manipulação das informações pessoais levavam ao poder uma personalidade educada,
distinta, progressista e liberal. Quatro anos depois, Hillary Clinton entrou em campanha...
POR PIERRE RIMBERT*

E
m 2008, um jovem candidato à Converter dados pessoais em per- “[Donald] Trump provavelmente não boração de perfis agora aparecem co-
primária democrata e depois à suasão clandestina: esse princípio ele- poderá contar com sua indignação mo o negócio de plataformas que ofe-
eleição presidencial norte-ame- mentar da publicidade on-line passaria contra o uso mais inteligente dos dados recem seus serviços apenas para
ricana alimentava o entusiasmo a partir de então a ser aplicado às dis- empreendido pelos democratas.” Tudo vender os dados de seus usuários aos
dos comentaristas pelo método inova- putas eleitorais. A imprensa celebrou ia bem: “O candidato com os melhores anunciantes. Quanto à disseminação
dor utilizado em sua campanha: cole- essa conquista. “Big Data salvará a polí- dados será vencedor”. de “notícias falsas”, devemos culpar o
tar os dados pessoais dos cidadãos que tica”, proclamava a capa da MIT Tech- Mas eis que em novembro de 2016 gênio diabólico dos “russos” ou o algo-
poderiam votar nele. E ele foi tão bem- nology Review (jan.-fev. 2013), cujo su- os barulhentos bonés “Make America ritmo do Facebook, que, como um tab-
-sucedido que, segundo a jornalista mário anunciava: “Bono [cantor do Great Again” substituíram os sutis al- loide eletrônico, privilegia as informa-
Sasha Issenberg, a equipe de Barack grupo U2]: ‘Dados podem combater a goritmos californianos. Desde então, ções mais atraentes para chamar a
Obama “sabia o nome de cada um dos pobreza e a corrupção’”, “Sasha Issen- tudo vai mal. Pouco dispostos a admi- atenção dos leitores, gerar comparti-
69.456.897 cidadãos norte-americanos berg: ‘Dados tornam as eleições mais tir a derrota contra um eleitorado e um lhamento e criar virais?
cujas cédulas o haviam levado à Casa inteligentes’” e “Joe Trippi: ‘Dados dão candidato que desprezam, os defenso- Preocupado em recuperar a reputa-
Branca”. Quatro anos depois, essa cole- alma à política’”. Tudo ia bem: o domí- res de Clinton imputam seu fracasso à ção de sua empresa, o fundador do Fa-
ta se tornou ainda mais empolgante, nio e a manipulação das informações intervenção de poderes maléficos no cebook, Mark Zuckerberg, teve de guar-
com “protocolos de ‘compartilhamen- pessoais levavam ao poder uma perso- mesmo terreno que deveria levá-los à dar sua camiseta para responder, de
to direcionado’ capazes de vasculhar a nalidade educada, distinta, progressis- vitória: os russos, que invadem as re- terno, às interpelações dos parlamenta-
rede Facebook em busca de amigos ta e liberal. des sociais para espalhar propaganda res norte-americanos. Nada vai bem.
que a equipe de campanha gostaria de Quatro anos depois, Hillary Clinton política e notícias falsas; a Cambridge
recrutar, mobilizar ou convencer”.1 Tu- entrou em campanha. Em 2016, “suas Analytica, que obteve e processou as *Pierre Rimbert é jornalista do Le Monde
do ia bem. Sem respeito excessivo pela centenas de especialistas em dados tra- informações pessoais dos usuários do Diplomatique.
privacidade, estatísticos e especialis- balhavam em estreita colaboração com Facebook em benefício de Trump. Que
tas democratas colhiam traços de o Facebook para tirar partido da rede escândalo! Passando do status de “sal-
comportamentos individuais on-line, de amigos de cada eleitor”, observava o vador da vida política” para o de “peri-
reviravam as redes sociais e reuniam Wall Street Journal. Temia-se que os go para a democracia”, o capitalismo
hábitos de consumo para construir um usuários ficassem incomodados com a de vigilância impulsionado pela extra- 1 As citações deste artigo são de L. Gordon Crovitz,
banco de dados gigante. Para quê? exploração política de seus dados? “Os ção de dados revela sua mecânica. “Trump’s Big Data gamble” [Big Data: a grande
“Definir os eleitores mais dispostos a consumidores parecem acostumados à Por muito tempo apresentadas co- aposta de Trump], The Wall Street Journal, Nova
York, 25 jul. 2016; e Sasha Issenberg, “A more per-
serem convencidos” e depois bombar- segmentação da publicidade comer- mo efeitos colaterais de um sistema fect union” [Uma união mais perfeita], MIT Techno-
deá-los com “mensagens sob medida”. cial”, explicava o jornal de negócios. virtuoso, a pilhagem de dados e a ela- logy Review, v.116, n.1, Boston, jan.-fev. 2013.
24 Le Monde Diplomatique Brasil MAIO 2018

UMA EXPERIÊNCIA EM COMUM PARA MANIFESTANTES DO MUNDO INTEIRO

Gás lacrimogêneo, lágrimas de ouro


Como os manifestantes franceses – os de Maio de 68, mas também os de hoje –, os ativistas de todo o mundo compartilham
uma experiência comum: a inalação de gás lacrimogêneo. Em um século, essa arma apresentada como inofensiva impôs-se
como ferramenta universal de manutenção da ordem
POR ANNA FEIGENBAUM*

© Daniel Kondo

D
iferentemente de outros merca- sua toxicidade para o meio ambiente. sensação de asfixia, náuseas, vômitos. ponderam em abril de 1915 com um
dos, a indústria da manutenção Há quase um século, ouvimos dizer re- Os lacrimogêneos também foram produto infinitamente mais mortal, o
da ordem não teme a agitação petidamente que ele não faz mal a nin- questionados no caso de aborto espon- gás de mostarda – o primeiro caso na
social nem as crises políticas – guém, que não é nada mais que uma tâneo e em problemas musculares e história de uso maciço de uma arma
muito pelo contrário. As revoltas da nuvem de fumaça que faz arder os respiratórios de longo prazo.2 química com cloro.
Primavera Árabe em 2011 e as mani- olhos. Quando pessoas morrem por De início distantes nessa corrida
festações que abalaram o mundo nos causa dele – a associação Physicians FORMA “HUMANA” DA VIOLÊNCIA DE ESTADO pela inovação, os norte-americanos
últimos anos fizeram explodir a venda for Human Rights, por exemplo, con- O uso de armas químicas remonta não tardariam a recuperar o atraso.
de gás lacrimogêneo e de equipamen- tabilizou 34 mortes ligadas ao uso do pelo menos à Antiguidade. Durante a No mesmo dia de sua entrada na guer-
tos antimotim. Com o talão de pedidos gás lacrimogêneo nas manifestações Guerra do Peloponeso, os beligerantes ra, os Estados Unidos criaram uma co-
na mão, os vendedores cruzam o pla- no Bahrein em 2011-20121 –, os poderes usavam gases sulfurosos contra as ci- missão de pesquisa “para conduzir in-
neta. Exércitos de especialistas saem à públicos retrucam que se trata sim- dades sitiadas. Foi em meados do sé- vestigações sobre os gases tóxicos, sua
procura da menor agitação popular plesmente de acidentes. culo XIX, porém, que os avanços da fabricação e seus antídotos para fins
para aconselhar fabricantes e compra- Na realidade, o gás lacrimogêneo ciência geraram debates éticos sobre de guerra”,3 mas também um Serviço
dores sobre os bons negócios do dia. O não é um gás. Os componentes quími- seu uso. As primeiras tentativas de res- da Guerra Química (Chemical Warfa-
gás lacrimogêneo é, sem dúvida, seu cos que produzem efusão lacrimal tringir o uso de armas químicas e bio- re Service, CWS), generosamente do-
principal produto: universalmente exibem os belos nomes de CS (2-cloro- lógicas remontam às conferências de tado de recursos e pessoal. Em julho
considerado pelos governos o remédio benzilideno malonitrilo), CN (cloroa- Haia de 1899 e 1907, mas sua formula- de 1918, o tema monopolizou a aten-
mais confiável e mais indolor para a cetofenona) e CR (dibenzoxazepina). ção ambígua reduziu esses acordos a ção de mais de 2 mil cientistas.
contestação social, como uma pana- Trata-se de agentes irritantes que po- quase nada. A Primeira Guerra Mun- Depois do conflito, os militares se
ceia contra a desordem, ele não conhe- dem ser acondicionados tanto sob a dial iria servir como um laboratório mostraram divididos. Os que viram
ce fronteiras nem concorrência. forma de vapor como de gel ou líquido. aberto para o desenvolvimento de com os próprios olhos a devastação
Que danos ele causa a suas víti- Sua combinação é projetada para afe- uma nova gama de venenos. causada pela arma química denuncia-
mas? Que problemas coloca em ter- tar simultaneamente os cinco sentidos Em geral admite-se que as tropas ram seu caráter desumano, agravado
mos de saúde? Ninguém sabe, porque e infligir um trauma físico e psicológi- francesas inauguraram o reinado do pelo medo e a ansiedade que ela espa-
ninguém se preocupa com isso. Em co. Os estragos que o gás lacrimogêneo gás lacrimogêneo na Batalha das Fron- lhava. Os outros a viram com certa
nenhum país há uma obrigação legal ocasiona são incontáveis: lágrimas, teiras, em agosto de 1914, atirando nas magnanimidade, pelo fato de que faria
de contar o número de suas vítimas e queimaduras de pele, distúrbios da vi- trincheiras adversárias granadas menos mortos que um fogo de artilha-
também nenhuma obrigação de for- são, secreção nasal, irritação das nari- cheias de brometo de xilil, uma subs- ria. Um bioquímico de Cambridge, John
necer informações sobre suas entre- nas, dificuldade para engolir, saliva- tância irritante e neutralizante, porém Burdon Sanderson Haldane, defendeu a
gas, seus usos, os lucros que ele gera ou ção, compressão dos pulmões, tosse, não letal ao ar livre. Os alemães res- eficácia dos gases de guerra, tachando
MAIO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 25

seus detratores de sentimentalistas; se bios sociais e as insurreições selvagens mortos. Entre as vítimas, uma criança bal para o gás lacrimogêneo. Com esse
podemos “lutar com uma espada”, por diminuirão até desaparecerem por morta algumas horas depois do ataque fim, ele criou uma lista com os lugares
que não “com o gás de mostarda”? completo. [...] Os gases lacrimogêneos – oficialmente em consequência de onde essa arma tinha comprovado sua
Para o historiador Jean-Pascal Zan- parecem notadamente apropriados uma doença, mas o fato de haver respi- eficácia: na Alemanha, onde servira
ders, as controvérsias que se seguiram para isolar o indivíduo do espírito da rado o gás envenenado “definitiva- contra os grevistas de Hamburgo em
à Primeira Guerra Mundial nos lega- multidão. [...] Uma das vantagens des- mente não ajudou”, diria um porta-voz 1933; na Áustria, onde se destacara
ram uma dupla herança.4 De um lado, sa forma suavizada de gás de combate do hospital. contra os comunistas em 1929; na Itá-
consagraram a distinção entre os “ga- reside no fato de que, em sua relação Entre os veteranos expulsos, o gás lia, onde acabava de ser incorporada
ses tóxicos” – a respeito dos quais ou- com a multidão, o policial não hesitará lacrimogêneo foi rebatizado de “ração ao equipamento de base das forças da
trora se discutia em Haia – e as novas em utilizá-lo”. Hoover”, em referência ao presidente ordem; ou ainda na França, onde seu
armas químicas inventadas entre 1914 Herbert Hoover (1929-1933), que lhes uso se banalizara.
e 1918. Essa distinção voltaria a apare- enviara a tropa, e em alusão às desi- Durante esse período, o gás lacri-
cer em muitas ocasiões nas conven- gualdades sociais que se aprofunda- mogêneo tornou-se para os países um
ções internacionais, legitimando que Sua função bífida, vam no país. Em contrapartida, para meio privilegiado de obstruir as de-
se proibissem certas armas para apro- ao mesmo tempo física os chefes de polícia, os industriais e mandas por mudança. Sua função bífi-
var outras, apresentadas como não le- seus representantes, a operação havia da, ao mesmo tempo física (dispersão)
tais. Foi em virtude desse raciocínio
e psicológica, parecia sido um sucesso. O serviço de vendas e psicológica (desmoralização), pare-
que o gás lacrimogêneo trilhou um ca- ideal para conter da Lake Erie Chemical, a empresa que cia ideal para conter as tentativas de re-
minho legal mais favorável que outros as tentativas de produzia o gás utilizado no Capitólio, sistência às medidas impopulares. Co-
agentes tóxicos. De outro lado, hoje se resistência às medidas ficou feliz de incluir em seu catálogo mo, ainda por cima, é possível hoje
levam muito a sério os interesses co- fotos da evacuação sangrenta. Mais usar gás de forma totalmente legal em
merciais ligados à expansão da indús-
impopulares tarde, figurariam nele também ima- manifestantes pacíficos ou passivos, as
tria química. Refrear sua criatividade gens dos grevistas de Ohio e da Virgí- autoridades não têm mais que se preo-
no campo militar lhe traria um prejuí- nia fugindo sob nuvens de gás. “Um cupar com lutas coletivas não violen-
zo insuportável – um argumento ain- Essa amostragem precoce dos ar- único homem equipado com gás Che- tas. O gás lacrimogêneo se impôs como
da em vigor um século depois. A partir gumentos comerciais baseia seu equi- mical Warfare pode derrotar mil ho- uma arma multifuncional capaz não
do Tratado de Versalhes (1919) e do líbrio em um fio estreito: elogiar as vir- mens armados”: o slogan enfeitava or- somente de conter uma manifestação,
Protocolo de Genebra (1925), os inte- tudes repressivas do produto e ao gulhosamente folhetos publicitários. mas também de minar qualquer forma
resses econômicos das potências alia- mesmo tempo celebrar seu caráter in- O fabricante se vangloriava de forne- de desobediência civil.
das se fundiram ao direito internacio- dolor. A moda dos gases lacrimogê- cer uma “explosão irresistível de dor Essa função política persiste até ho-
nal. Virada a página da guerra, manter neos num mercado que até então só cegante e sufocante”, a qual ele garan- je. Enquanto o uso de armas químicas
a paz dentro das próprias fronteiras – e conhecia o cassetete e o fuzil deve tia, no entanto, que não ocasionava é proibido pelos tratados internacio-
no exterior, em suas dependências co- muito a essa arte de conciliar antago- “nenhuma ferida perene” – sempre o nais no contexto das guerras, as forças
loniais – tornou-se uma prioridade pa- nismos. O gás evaporava. A polícia po- marketing do equilíbrio. Durante a da ordem permanecem, em âmbito na-
ra norte-americanos e europeus. Daí dia, enfim, dispersar uma manifesta- Grande Depressão, nos anos 1930, os cional, mais que nunca autorizadas a
seu constante interesse pelos gases la- ção com “um mínimo de publicidade Estados Unidos recorreram cada vez jogar gás tóxico em indivíduos ou gru-
crimogêneos, dos quais o CWS e seu negativa”5 sem deixar sangue e hema- mais aos gases lacrimogêneos para re- pos à sua escolha. Um policial pode,
diretor, o general ganhador de muitas tomas em seu rastro. Em vez de ser vis- primir os protestos sociais. Segundo assim, exibir um atomizador de gás la-
medalhas Amos Fries, seriam os ardo- to como uma forma de tortura física e uma comissão do Senado, as compras crimogêneo na cintura, enquanto um
rosos pioneiros. psicológica, o gás lacrimogêneo se im- de gás entre 1933 e 1937, efetuadas militar não tem esse direito. A aceita-
Os anos 1920 anunciaram a idade punha nas mentes como uma forma “principalmente durante e em anteci- ção quase unânime dessa incoerência
de ouro dos gases lacrimogêneos. Ti- “humana” de violência do Estado. pação a movimentos grevistas”, che- contribui muito para a florescente
rando partido do crescimento das ar- Além de suas atuações no rádio e garam a US$ 1,25 milhão (US$ 21 mi- prosperidade da indústria da manu-
mas químicas durante a guerra, Amos nos jornais, o general e sua equipe or- lhões em valor atual). tenção da ordem – e para as lágrimas
Fries converteu esse veneno em uma ganizaram demonstrações públicas. Outro horizonte promissor para a dos manifestantes do mundo inteiro.
ferramenta política de uso cotidiano. Um belo dia de julho de 1921, um velho indústria da “dor cegante e sufocante”:
Graças a um lobby aguerrido, ele con- amigo e colega de Fries, Stephen J. De as colônias. Em novembro de 1933, Sir *Anna Feigenbaum é pesquisadora da Uni-
seguiu moldar uma nova imagem do La Noy, posicionou-se com uma carga Arthur Wauchope, o alto comissário versidade de Bournemouth (Reino Unido).
gás lacrimogêneo, não mais associado de gás num terreno perto do centro de britânico na Palestina, reclamou sua Autora de Tear Gas. From the Battlefields of
a uma arma tóxica, mas a um meio Filadélfia. A fim de ilustrar os benefí- parte do produto milagroso. Em uma World War I to the Streets of Today [Gás lacri-
inofensivo de preservar a ordem públi- cios de seu arsenal, ele convidou poli- carta para o escritório das colônias, ele mogêneo. Dos campos de batalha da Primei-
ca. Amparado em um advogado e um ciais da cidade para testar sua merca- argumentou: “Considero que o gás la- ra Guerra Mundial às ruas de hoje], Verso,
oficial, ele aliou à sua causa uma gran- doria. Os jornalistas compareceram crimogêneo seria um agente altamente Londres, 2017.
de rede de publicitários, cientistas e em grande número para imortalizar a útil nas mãos das forças de polícia na
políticos encarregados de promover cena: duzentos agentes uniformiza- Palestina para dispersar as reuniões
nos meios de comunicação esses “ga- dos jogando gás em pleno rosto. ilegais e as multidões amotinadas, par- 1 “Tear gas or lethal gas? Bahrain’s death toll mounts
ses de guerra para tempos de paz”. Seria preciso esperar alguns anos ticularmente nas ruas tortuosas e es- to 34” [Gás lacrimogêneo ou gás mortal? O núme-
A imprensa de negócios se mos- para passar da experimentação para o treitas dos velhos bairros da cidade, ro de mortes no Bahrein sobe para 34], Physicians
for Human Rights, Nova York, 16 mar. 2012.
trou, logicamente, a mais dedicada a trabalho prático. A ocasião se apresen- onde o uso de armas pode provocar ri- 2 “Facts about riot control agents” [Fatos sobre agen-
difundir o refrão do “gás para a paz”. tou em 29 de julho de 1932, quando a cochetes que conduzam a perdas des- tes de controles de motins], Centros de Prevenção
Em sua edição de 6 de novembro de guarda nacional recebeu ordem de proporcionais em vidas humanas”. e Controle de Doenças, Atlanta, 21 mar. 2013.
3 Citado por Gerard J. Fitzgerald, “Chemical warfare
1921, a revista Gas Age-Record fez um dispersar milhares de veteranos da and medical response during World War I” [Guer-
retrato extasiado do general Fries. Ali Primeira Guerra Mundial reunidos DISPERSÃO E DESMORALIZAÇÃO ra química e resposta médica durante a Primeira
se podia ler que o “chefe dinâmico” do diante do Capitólio, em Washington. Uma demanda similar emanou em Guerra Mundial], American Journal of Public
Health, n.98, Washington, DC, abr. 2008.
CWS “estudou de perto a questão da Apelidados de “exército bônus”, esses 1935 de Serra Leoa, onde os adminis- 4 Jean-Pascal Zanders, “The road to Geneva” [A es-
utilização do gás e das fumaças para ex-soldados e suas famílias estavam tradores coloniais enfrentaram greves trada para Genebra]. In: Innocence Slaughtered.
lidar com multidões e selvagens. Ele exigindo o pagamento de um saldo sa- por aumento de salário. Em seguida, Gas and the Transformation of Warfare and So-
ciety [A inocência massacrada. Gás e a transfor-
está sinceramente convencido de que, larial que seu ministério se recusava a foi a vez do Ceilão, que depois passaria mação da guerra e da sociedade], Uniform Press,
quando os policiais e os administra- desbloquear. Uma chuva de granadas a se chamar Sri Lanka. Foi dada uma Londres, 2016.
dores coloniais estiverem familiariza- lacrimogêneas se abateu sobre a mul- instrução ao novo secretário de Estado 5 Seth Wiard, “Chemical warfare munitions for law en-
forcement agencies” [Munições de guerra química
dos com o gás como meio de manter a tidão, provocando pânico. A evacua- britânico nas colônias, Malcolm Ma- para agências de aplicação da lei], Journal of Crimi-
ordem e de proteger o poder, os distúr- ção brutal teve como resultado três cDonald, de elaborar uma política glo- nal Law and Criminology, v.26, n.3, Chicago, 1935.
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A EXPULSÃO DE PALESTINOS EM 1948

Israel assombrado pela Nakba


Em maio começam as celebrações do 70º aniversário de criação do Estado hebreu, ocasião para o povo palestino
lembrar a catástrofe vivida em 1948 e reivindicar o direito de retorno dos refugiados, previsto pelas resoluções da ONU.
Em Gaza, os manifestantes que enfrentam as balas dos soldados israelenses militam por essa exigência de justiça
POR THOMAS VESCOVI*
© Reuters / Ibraheem Abu Mustafa

Manifestantes palestinos correm durante enfrentamento com as tropas israelenses na Faixa de Gaza

“A
marcha do grande retorno”: é se difundisse para além do mundo UMA PALAVRA BANIDA to, os militantes da esquerda sionista
assim que as organizações polí- árabe, foi preciso esperar até 1987 e a Ao longo da primeira metade dos conseguiram unir grandes setores da
ticas palestinas nomeiam a série publicação das primeiras obras dos anos 1990, os trabalhos de novos histo- sociedade israelense. Com as declara-
de ações realizadas todo ano en- “novos historiadores israelenses”, en- riadores suscitaram um real interesse ções de Barak e uma nova insurreição
tre 30 de março e 14 de maio. Para o Es- tre eles Benny Morris, Tom Segev, Ilan de uma parte da sociedade israelense. palestina bem mais mortífera e milita-
tado de Israel, o 14 de Maio marca a fes- Pappé e Avi Shlaim.2 Analisando os ar- Conferências, seminários, debates nos rizada que a primeira, a maior parte
ta nacional, em lembrança à declaração quivos do Estado de Israel, esses pes- meios de comunicação: apesar da deles cessou qualquer atividade paci-
de independência por David Ben-Gu- quisadores derrubaram um a um dos grande rejeição, essas teses passaram fista; suas organizações cresceram.
rion, em 1948. A sociedade palestina, de pilares da historiografia oficial. ao menos a serem discutidas. Surgi- Para a sociedade judaica, não há
seu lado, rememora esse dia como a Na- A temporalidade dessas publica- ram projetos de escrita de uma história mais “interlocutor” para construir a
kba (“catástrofe”, em árabe): a expulsão ções não foi aleatória. A primeira obra israelo-palestina, assim como comis- paz. Os israelenses entendem a Se-
de 805 mil palestinos, cujos descenden- apareceu logo quando explodiu a Pri- sões que visavam rever os programas gunda Intifada como um ataque sem
tes ainda esperam a aplicação da Reso- meira Intifada, cerca de uma década de História nas escolas. Entretanto, as trégua dos palestinos, além disso
lução n. 194, votada em 11 de dezembro após a chegada da direita ao poder e do discussões permaneceram restritas a marcados pela mobilização do Ha-
de 1948 pela Assembleia Geral das Na- início do movimento refusenik, com os meios intelectuais. O assassinato de mas, uma força política de tendência
ções Unidas. Esse texto funda o “direito objetores de consciência, que se recu- Rabin por um extremista judeu em islâmica, o que ecoa na angustiante
de retorno” desse povo e prevê uma in- savam a servir em territórios ocupa- 1995, a chegada ao poder de Benjamin situação atual do mundo. Em 2001,
denização a título de compensação. Por dos, e os militares israelenses, que se Netanyahu em 1996 e o início de aten- Ariel Sharon, líder da direita, ganhou
fim, é nessa data que a administração interrogavam sobre as práticas de seu tados suicidas em solo israelense atra- as eleições com outra proposta: já que
de Donald Trump pretende inaugurar, Exército. Os pacifistas entraram em palharam o processo de abertura, mas a convivência se tornara impossível, a
este ano, a nova embaixada dos Estados uma fase de abertura e questionamen- não o interromperam. separação levaria à paz. De acordo
Unidos em Jerusalém. to da sociedade, do Estado e da relação A eclosão da Segunda Intifada, em com essa lógica, o Exército se retiraria
Desde a Primeira Guerra Árabe-Is- com o outro. A ascensão de Yitzhak setembro de 2000, fechou os últimos da Faixa de Gaza e um muro seria
raelense, centenas de milhares de pa- Rabin ao cargo de primeiro-ministro espaços de intercâmbio e diálogo en- construído na Cisjordânia entre pa-
lestinos estão dispersos pelos quatro em 1992 e o início das negociações tre israelenses e palestinos sobre suas lestinos e colonos israelenses.
cantos da região. Historiadores regis- com a Organização para a Libertação narrativas históricas. Principais pro- A memória da Nakba foi novamente
traram os acontecimentos, conscien- da Palestina (OLP), que conduziria à motores dessas relações, os movimen- enterrada em benefício da velha propa-
tes de que a versão do vencedor corria assinatura dos Acordos de Oslo em se- tos pacifistas se enfraqueceram logo ganda: os palestinos teriam deixado
o risco de se impor. Os escritos de Wa- tembro de 1993, inscrevem-se nesse após a derrota de Camp David, em ju- suas terras para não conviver com os
lid Khalidi e Sami Hadawi não traba- cenário. Foi a época em que a Guerra lho de 2000 – imputada pelo primeiro- judeus; Israel tem direito a essa terra
lham com ambiguidades: seja tendo Fria terminou e o apoio de vários paí- -ministro trabalhista, Ehud Barak, co- que Deus teria dado a Abraão. Desde
escolhido fugir para se proteger, seja ses árabes à coalizão anti-iraquiana mo responsabilidade integral de sua chegada ao poder, Sharon retirou
tendo sido forçado a sair de onde mo- durante a Guerra do Golfo em 1991 Yasser Arafat, apesar de mais adiante de circulação nas escolas o manual de
rava, o povo palestino foi expropriado soou o sino para um pan-arabismo há Barak reconhecer que não havia pro- História de Eyal Naveh, que introduzia
de sua terra.1 No entanto, para que es- muito tempo refratário a qualquer ne- posto nada ao dirigente palestino. Sem uma visão heterodoxa de 1948. Na uni-
sa versão dos acontecimentos de 1948 gociação com Israel. representar a vanguarda do movimen- versidade, os trabalhos de “novos histo-
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riadores” são combatidos com virulên- Sobre as ruínas do grande movi- Para a socióloga Ronit Lentin, exis- passado perturbador, contudo, reapa-
cia. Hoje, essa batalha está no centro mento da paz, contudo, emergiram tem três maneiras de entender a Nakba rece, segundo Freud, sempre que os li-
das ações do Im Tirzu, uma organiza- pequenas organizações para ações em Israel.6 Uma minoria insiste na vi- mites entre imaginação e realidade se
ção estudantil próxima ao dirigente de mais focadas. Assim, a Zochrot, fun- são fantasmática da Palestina como dissipam. A memória da Nakba emer-
extrema direita Naftali Bennett, cujos dada em 2001, tem por objetivo ensi- “terra sem povo para um povo sem ter- ge na superfície pela intermediação de
militantes, nos últimos anos, encam- nar a Nakba à sociedade israelense. ra”. Outros reconhecem parcialmente diversos atores que destroem as cria-
param uma campanha intitulada “A Ela aproveitou a iniciativa da primei- a tragédia vivida pelos palestinos, mas ções imaginárias para mostrar a reali-
Nakba é uma mentira”.3 Os israelenses ra conferência sobre o direito ao re- se recusam a admitir qualquer traço de dade, e pelos palestinos que sempre
se recusam a considerar-se parte ativa torno de refugiados palestinos a Is- responsabilidade judaica e não raro ressurgem no espaço público.
da história palestina, e as instituições rael e desde 2012 organiza um festival repetem os argumentos sobre os laços A marcha de 30 de março e aqueles
martelam que são herdeiras de ideias anual de cinema chamado “Da Na- entre os árabes e os nazistas.7 Por fim, que a seguem, com esse fardo de mor-
emancipatórias e progressistas. kba ao retorno”. Propõe também visi- alguns reconhecem explicitamente a tes, representam um pesadelo para o
A criação de Israel ocorreu logo de- tas a territórios palestinos “abando- expulsão, mas recusam-se a apresen- Estado de Israel; uma lembrança do fa-
pois da guerra mais sangrenta da his- nados” em 1948, como a residência de tar desculpas, ou até lamentam que a to de que 5 milhões de palestinos, os
tória, em que os ideais de liberdade um xeque que virou cafeteria da Uni- transferência não tenha sido total – refugiados e seus descendentes que vi-
triunfaram sobre o fascismo. Os ju- versidade de Tel Aviv e casas palesti- como o “novo historiador” arrependi- vem em Gaza, na Cisjordânia ou em
deus se viam como as principais víti- nas transformadas em centro psi- do Benny Morris, que terminou por outros países da região continuam in-
mas do terror nazista, e a fundação do quiátrico em Kfar Shaul – esses e afirmar: “Um Estado judeu não pode- sistindo em seu direito de retorno ou
Estado-refúgio no Oriente Médio viria outros elementos da paisagem is- ria ter sido criado sem desterrar 700 na reivindicação de uma reparação
para reparar essa tragédia – europeia. raelense que rememoram a presença mil palestinos”.8 por terem sido caçados de suas terras e
Desde então, a defesa israelense se tor- árabe na região. Para Eleonora Merza O Likud, por sua vez, fica com a ver- de suas casas. Eles encarnam uma in-
nou ao mesmo tempo um desafio polí- e Eitan Bronstein, fundadores do são oficial, que nega totalmente a ex- justiça na qual os israelenses perma-
tico e civilizatório. A memória da Na- centro de pesquisa alternativa Des- pulsão e, por consequência, qualquer necem implicados.
kba corre o risco de prejudicar a colonizar, a Nakba ainda é um tabu direito dos palestinos sobre a terra. A
inocência histórica reivindicada e di- em Israel. Na prática, “a discussão se esquerda sionista reconhece os massa- *Thomas Vescovi é pesquisador indepen-
fundida pelo aparelho de Estado is- limita geralmente a debater se a Na- cres e a expulsão, mas atribui a respon- dente em História Contemporânea. Autor de
raelense. Aceitar que, na criação de kba é desejável ou mesmo permitida sabilidade às milícias nacionalistas do La Mémoire de la Nakba en Israël [A memória
seu país, seus combatentes não eram nos ambientes de diálogo”. Contudo, Partido Revisionista, o Irgun e o Lehi. da Nakba em Israel], L’Harmattan, Paris, 2015.
vítimas, e sim algozes, arruinaria a a leitura é de que a situação avançou, Para alguns militantes contra a
“pureza das armas” da qual se gaba o porque o termo ecoa o suficiente para ocupação, a descoberta da realidade
Exército dito “de defesa” de Israel. A ló- inquietar dirigentes políticos. de 1948 marcou o início do questiona-
gica da separação levou a sociedade No dia 23 de março de 2011, o mento geral do Estado de Israel. Daí a 1 Walid Khalidi, Nakba, 1947-1948, Sindbad – Insti-
judaica israelense a um profundo de- Knesset (Parlamento israelense) ado- resistência de muitos de seus concida- tuto de Estudos Palestinos, Arles, 2012.
sinteresse pela causa palestina. Du- tou uma emenda no orçamento pre- dãos em se interrogarem sobre esse 2 Ler Dominique Vidal, “L’expulsion des Palestiniens
revisitée par des historiens israéliens” [A expulsão
rante as eleições legislativas de março vendo explicitamente que nenhuma período. Aceitar que o discurso incul- dos palestinos revisitada por historiadores is-
de 2015, apenas 9% consideravam o organização que comemora a festa cado desde a escola caia por terra pode raelenses], Le Monde Diplomatique, dez. 1997.
acordo de paz com os palestinos uma nacional como um luto receba qual- significar marginalização e até estig- 3 Ler Charles Enderlin, “Israël à l’heure de l’Inquisi-
tion” [Israel na Inquisição], Le Monde Diplomati-
prioridade para o governo que viria.4 quer tipo de subvenção. Naturalmen- matização; seriam acusados de aceitar que, mar. 2016.
Com esse tema invisível a seus olhos, te, essas associações já não se benefi- o discurso do adversário. Assim, al- 4 The Times of Israel, Jerusalém, 25 jan. 2015.
uma forte proporção de israelenses se ciavam antes, mas trata-se de uma guns optam por enterrar essas verda- 5 Gideon Levy, “Survey: Most Israeli Jews wouldn’t
give Palestinians vote if West Bank was annexed”
afiliou às ideias mais nacionalistas. forma de estigmatizá-las por uma di- des no mais profundo de si para seguir [Observatório: a maioria dos israelenses judeus não
Em 2001, quando a violência da Segun- retriz legal e difundir o sentimento de normalmente com sua vida. daria aos palestinos o direito de voto se a Cisjordânia
da Intifada atingiu seu paroxismo, que apoiar essas organizações é estar De acordo com a teoria freudiana,9 fosse anexada], Haaretz, Tel Aviv, 23 out. 2012.
6 Ronit Lentin, Co-memory and Melancholia. Israelis
apenas 35% dos israelenses se diziam à margem da sociedade. Além disso, a Israel age em relação à Nakba como memorialising the Palestinian Nakba [Comemória
favoráveis a uma “transferência” da emenda nega à população árabe de Is- um espírito traumatizado que tenta e melancolia: israelenses rememorando a Nakba
população árabe para fora de Israel, rael, ou seja, um a cada cinco habitan- recusar a existência daquilo que o as- palestina], Manchester University Press, 2010.
7 Ler Gilbert Achcar, “Inusable Grand mufti de Jéru-
em direção à Cisjordânia. Em 2015, tes, o direito de celebrar sua história. E sombra. Um tipo de “estranheza in- salem” [O desgastado grande mufti de Jerusalém],
58% passaram a apoiar essa proposta, mais: desde 2009, oficialmente as es- quietante”, na raiz de um sentimento Le Monde Diplomatique, maio 2010.
e 59% eram a favor de um regime de colas árabes não têm mais o direito de de vergonha ressentida em relação a 8 Haaretz, 9 jan. 2004.
9 Sigmund Freud, L’Inquiétante étrangeté et autres
apartheid privilegiando os judeus em utilizar o termo “Nakba” em seus pro- atos passados, provoca um mal-estar e essais [A inquietante estranheza e outros ensaios],
caso de anexação da Cisjordânia.5 gramas escolares. o desejo de fazê-los desaparecer. Esse Gallimard, Paris, 1985 (1. ed.: 1919).

Direitos dos povos indígenas Saberes em viagem Monadologia


A Constituição de 1988 foi um marco para os Vivian Batista da Silva constrói uma história e sociologia
direitos territoriais dos povos indígenas. dos manuais pedagógicos. Comparando as Jurista de formação, o francês Gabriel
Paradoxalmente, as publicações brasileiras Tarde (1843-1904) ficou conhecido
interpretações da lei que vêm e portuguesas, de 1870 como o rival histórico de Émile
sendo feitas ameaçam o a 1970, a autora mostra Durkheim e, em sua época, sua obra
futuro de muitas dessas que as ideias e os não obteve o devido reconhecimento -
populações. Este livro, métodos pedagógicos muito possivelmente por conta da
organizado pela antropóloga foram produzidos e complexidade e originalidade
Manuela Carneiro da Cunha difundidos em de suas ideias, além de sua aversão
e pelo professor de direito diferentes tempos e pelo determinismo evolucionista que
Samuel Rodrigues Barbosa, lugares e que esse constituía o mainstream intelectual de
traz críticas às recentes trânsito de fins do século XIX.
interpretações judiciais. conhecimento se deu
em grande parte pela Produzir conteúdo
circulação dos Compartilhar conhecimento.
manuais. Desde 1987.
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28 Le Monde Diplomatique Brasil MAIO 2018

A APROPRIAÇÃO DOS OCEANOS

A pilhagem de peixes da África


A intensa exploração dos oceanos coloca em perigo a reprodução de diversos peixes. Na África, a grilagem de águas por
barcos de arrasto franceses, espanhóis, chineses, coreanos, japoneses e russos ameaça a segurança alimentar do continente.
As embarcações operam legalmente por causa de acordos que abrem as zonas costeiras aos navios de países ricos
POR KYLE G. BROWN*, ENVIADO ESPECIAL

E
m seu amplo escritório em Ga- país. Mohamed sabe que terá de agir outro lado do continente, na costa oci- com a necessidade de navegar cada vez
borone, Botsuana, Per Erik Bergh rapidamente se quiser pegá-lo em fla- dental, é um problema maior ainda. mais longe, para uma pesca cada vez
examina imagens de satélite do grante e interceptar sua tripulação an- De acordo com as estimativas do mais escassa. “Quando comecei, eu
tráfego marítimo na costa da tes que ela desembarque com docu- centro de dados da FishSpektrum, não me afastava mais que 30 ou 40 qui-
África oriental. Entre as dezenas de pe- mentos falsos. uma plataforma especializada em lômetros da costa”, conta Sène. “Hoje,
quenos pontos que se deslocam em sua identificação de embarcações, a Chi- temos de viajar pelo menos 130 quilô-
tela, um absorve toda a sua atenção. CANOAS CONTRA NAVIOS INDUSTRIAIS na sozinha teria uma frota de seis- metros para encontrar peixe.”
Faz mais de vinte anos que esse ro- A bordo de barcos rápidos empres- centos navios espalhados por toda a Na madrugada do dia 16 de janeiro,
busto norueguês de cabelos brancos tados da polícia – as raras lanchas do África ocidental, de Gibraltar até a Ci- Sène, seu filho e sua tripulação de três
rastreia os barcos de pesca industrial Ministério da Pesca nem sempre têm dade do Cabo. Seus concorrentes eu- marinheiros fizeram uma primeira pa-
que vêm explorar os recursos pesquei- combustível suficiente para se afastar ropeus, russos e turcos estariam dis- rada a apenas 8 milhas náuticas (15
ros do continente africano, desafiando da costa –, ele faz a abordagem. A ins- putando ferozmente esse espaço. Das quilômetros) da costa. Eles tinham
leis e regulamentos. Ano após ano, ele peção é proveitosa: nos porões da trai- praias da Mauritânia, pode-se assis- acabado de fazer suas orações mati-
tenta alertar as autoridades locais, mui- neira, estão armazenadas 30 toneladas tir ao balé das traineiras que brilham nais e de lançar a rede quando Yous-
tas vezes relutantes ou subequipadas, de peixe, incluindo espécies típicas das a noite toda no horizonte, como uma soupha viu uma traineira avançando
para que intervenham contra esses cri- águas somalis, como pargos-verme- guirlanda luminosa. direto em sua direção. Imediatamente,
minosos dos mares que carregam ile- lhos e salmonetes. As autoridades tam- “Desde o entardecer até de manhã, seu pai ligou o motor e acelerou, mas já
galmente em suas redes milhares de bém apreendem muitos documentos há luzes por toda parte, parece que es- era tarde demais. O monstro de aço os
toneladas de peixes. falsos. No dia 12 de outubro, Mohamed tamos em uma grande capital”, suspira atingiu a toda velocidade. “Quando me
Com informações fornecidas pelas ordena a abertura de um inquérito ju- Doudou Sène. Por 35 anos esse pesca- dei conta, eu estava debaixo da água.
forças navais da União Europeia pre- dicial. Mas, na manhã seguinte, o Gre- dor cinquentão lançou suas redes na Só voltei à superfície quando o barco já
sentes no Oceano Índico, cruzadas ko 1 já está longe. “Pedimos aos países- costa de Saint-Louis, nas águas frontei- estava longe”, conta Sène. Nem ele nem
com fotografias de suas fontes locais e -membros do FISH-i que abordem riças entre o Senegal e a Mauritânia. Ele seus companheiros estavam de colete
relatórios de satélites e radares, Bergh todos os navios vindos da Somália para viu o número de traineiras estrangeiras salva-vidas. O corpo de Youssoupha
e os dez membros de sua equipe – to- verificar seus documentos”, declara crescer pouco a pouco, tornando suas nunca foi encontrado, e Sène teve o
dos funcionários da ONG Stop Illegal Mohamed. “Dissemos a todo mundo: condições de trabalho cada vez mais braço esquerdo amputado.
Fishing (SIF, Pare a Pesca Ilegal) – logo ‘Nunca concedemos licença ao Greko 1 perigosas. Na costa norte do Senegal, A poucos quilômetros dali, na mo-
conseguem identificar o suspeito: Gre- para 2016, então prendam-no, por fa- onde a pesca é uma tradição ancestral, vimentada praia de Saint-Louis, os pes-
ko 1. Nesse dia de outubro de 2016, a vor!’. Há muitos barcos que utilizam o vaivém quase diário de cerca de 20 cadores que conseguiram voltar para
traineira grega que já mudou de ban- documentos falsos para navegar de mil canoas tem um papel crucial na so- casa descem de suas canoas e descarre-
deira várias vezes está obviamente um país a outro.” É sempre a mesma brevivência econômica e na coesão so- gam caixas de peixe. Enquanto os ob-
atuando em águas territoriais somalis, história: um navio fretado em um país cial das comunidades das aldeias. serva, Mustapha Dieng, líder do sindi-
local reservado para os pequenos pes- rico saqueia os recursos vitais de um A canoa de Sène mede 14 metros. cato dos pescadores, destaca que as
cadores da costa. dos países mais pobres do mundo, de- Várias vezes por semana, ele a empur- colisões são “cada vez mais frequen-
Bergh imediatamente avisa a força pois foge insultando suas vítimas. rava para a água em busca de polvo, até tes”. “Temos a impressão de que, a par-
de intervenção FISH-i, um dispositivo Diante dessa predação organizada, os janeiro de 2017, quando tudo se despe- tir de certa hora da noite, os navios in-
mantido por oito países costeiros da re- irrisórios barcos-patrulha, constante- daçou. De sua vida anterior, ele conser- dustriais ligam o piloto automático, e
gião – da Somália a Moçambique – e mente sem combustível, que a Somá- vou um braço musculoso, a flexibilida- não fica ninguém no comando. Eles
coordenado pela SIF. Entre as autorida- lia tem para monitorar os 3 mil quilô- de juvenil e a roupa de marinheiro, nem enxergam as canoas à sua frente.
des locais e as associações, instaura-se metros de sua costa – a mais longa do colete e gorro de lã afundado na cabe- Eles as atingem e nem param”, explica.
uma divisão de trabalho ditada pela fal- continente africano – não fazem dife- ça. Agora, porém, Sène vive confinado O acidente que custou a vida de
ta de recursos financeiros: a SIF fornece rença nenhuma. em seu quarto, olhando para o teto e Youssoupha também é resultado da
conselhos e informações; os militantes Com águas ricas em peixe e Esta- relembrando seu último dia no mar. feroz concorrência imposta a indús-
do Greenpeace e da Sea Shepherd fa- dos pobres ou em dificuldades, os paí- Ele havia zarpado de madrugada trias que disputam uma riqueza cada
zem a patrulha de barco e levam a bor- ses africanos são um achado para as na companhia de Youssoupha, o mais vez mais escassa. À maldição da pesca
do os agentes da força pública, que não indústrias pesqueiras russas, asiáticas velho de seus sete filhos, o único que se ilegal soma-se a sobrepesca “legal”,
têm outros meios, para efetuar as pri- e europeias. Como esgotaram as reser- mostrava disposto a assumir o lugar do autorizada por acordos privados (mui-
sões. Mas, desta vez, são os represen- vas de peixe em suas próprias áreas pai. Havia muito tempo que Youssou- tas vezes nebulosos) entre países cos-
tantes do governo que intervêm. geográficas, elas mandam navios-fá- pha aguardava o momento certo para teiros e empresas, bem como pelos
O Greko 1 está perto do porto de brica mundo afora, com uma predile- dizer a seu “velho” que ficasse em casa Acordos de Parceria de Pesca Susten-
Mogadíscio quando a mensagem do ção pelo eldorado africano. Na costa e não se preocupasse mais. É um cos- tável, assinados em 2014 entre a União
norueguês chega aos olhos de Said Ja- leste do continente, as autoridades tume bem estabelecido no Senegal que Europeia e uma dúzia de países afri-
ma Mohamed, então ministro adjunto marítimas já estão enfrentando as um dos filhos assuma a canoa da famí- canos. Esses acordos cedem aos na-
da Pesca e Recursos Marítimos. O no- maiores dificuldades para conter o lia e se encarregue de abastecer a casa. vios europeus o direito de explorar
me do navio não é desconhecido para apetite das centenas de traineiras que O pai conta com orgulho que Youssou- suas zonas econômicas exclusivas
ele. O Greko 1 já foi repetidamente lo- singram o Oceano Índico. A gigantes- pha não era do tipo que se assustava (uma faixa de cerca de 350 quilôme-
calizado nas águas territoriais de seu ca armada que atravessa os mares do com a dureza do trabalho no mar ou tros de águas territoriais) em troca de
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um apoio técnico e financeiro muito DIREITO TALHADO PELOS ARMADORES


variável – 1,8 milhão de euros para o Alguns países, no entanto, aceitam
Senegal e 60 milhões para a Mauritâ- cooperar com organizações ambien-
nia, que tem uma costa maior e mais tais para gerenciar melhor seus recur-
rica em peixe1 –, dinheiro que os pes- sos marinhos. Em fevereiro de 2017, o
cadores locais quase não veem, nem Greenpeace despachou o navio Espe-
se beneficiam dos fundos destinados ranza para uma missão de vigilância
à gestão dos recursos pesqueiros. de dois meses nas águas do Senegal,
“A pesca industrial é um desastre Guiné, Serra Leoa e Guiné-Bissau. A
para o Senegal”, avalia Abdou Karim bordo do imponente barco de 72 me-

© Cau Gomez
Sall, presidente da Plataforma dos tros construído na Rússia soviética,
Pescadores Artesanais do Senegal e equipado com um helicóptero e lan-
responsável pelas áreas marinhas chas rápidas, militantes e tripulação
protegidas (AMP) do país. “Eles pes- usaram informações fornecidas pela
cam em áreas proibidas. A quantidade guarda costeira para localizar embar-
que declaram nunca corresponde à cações suspeitas. Com uma patrulha
tonelagem real – quando declaram 50 de sete dias nas águas de cada país, as
mil toneladas, na realidade são 100 equipes compostas por militantes do
mil. E eles não se contentam com a Greenpeace e funcionários do Minis-
pesca excessiva: também usam equi- tério da Pesca efetuaram mais prisões
pamentos que destroem o hábitat na- do que alguns países fizeram em um
tural da fauna marinha.” ano inteiro. Mais da metade dos na-
vios interceptados estavam registra-
COOPERAÇÃO REGIONAL BALBUCIANTE dos na China; os outros vinham da Eu-
Como a captura é cada vez menor ropa e da Coreia do Sul.
perto da costa, os pescadores senegale- Consciente de que os países e as
ses estão se aventurando nas águas da ONGs estão utilizando cada vez mais
Mauritânia. Mas desde 2015, quando imagens de satélite, um número cres-
expirou o acordo que autorizava os cente de traineiras falsifica ou desativa
dois vizinhos a praticarem a pesca ar- seus sinais de transmissão. “Quando,
tesanal nas águas um do outro, a Mau- de seu barco, você vê todas essas trai-
ritânia não hesita em atirar nos intru- neiras que não aparecem na tela do
sos.2 Vários barqueiros senegaleses computador, é porque elas desconec-
foram mortos pelas balas da guarda taram o sistema de identificação auto-
costeira mauritana. O caso de Fallou mática”,6 explica Pavel Klinckhamers,
Sall, um pescador de 19 anos baleado chefe de missão do Esperanza, que nos
em janeiro de 2018 na frente de seus oi- recebeu a bordo por dez dias. O am-
to companheiros, provocou violentos bientalista holandês de 45 anos passa
protestos em Saint-Louis, reacendendo dezesseis horas por dia vasculhando
as tensões entre os dois países. Três se- mapas, telas e bancos de dados, tarefa
manas depois, o presidente senegalês, que só interrompe para subir ao con-
Macky Sall, fez uma visita a seu colega vés e observar os navios que cruzam o
mauritano, Mohamed Ould Abdelaziz, Guiné-Bissau e Serra Leoa, a pesca ile- Senegal, irritados. “Pedimos ajuda a horizonte. “Mais da metade desses
prometendo assinar um novo acordo.3 gal representa para esses seis países nossos vizinhos, mas eles infelizmen- barcos não transmite sinais”, consta-
Sall foi eleito em 2012 com a promessa uma perda de 2 bilhões de euros por te não cooperaram”, lamenta Mama- ta. “São barcos ocultos.”
de reformar o setor pesqueiro, que em- ano. “A pesca ilegal”, acrescentam os dou Ndiaye, diretor da Divisão de Pro- Décadas de pesca intensiva têm
prega 600 mil pessoas no Senegal, e de autores, “equivale a 65% das capturas teção e Monitoramento da Pesca do consequências. No ano passado, a
regulamentar as exigências dos países legais feitas na África ocidental. Isso Senegal. “Você pode monitorar sua zo- União Internacional para a Conserva-
ricos. Desde então, o país endureceu significa um grave problema em ter- na econômica exclusiva, mas, se a de ção da Natureza (IUCN) realizou um
sua legislação, revogou as licenças de mos de segurança alimentar e de eco- seu vizinho fica sem vigilância, os bar- estudo sobre os estoques de peixes ós-
vários operadores duvidosos e instau- nomia para toda a região.” Problema cos podem fugir para lá e depois retor- seos nas águas africanas, da Mauritâ-
rou um sistema de certificados para re- ainda mais urgente quando as Nações nar, quando voltarmos ao porto. Não nia a Angola. Ele mostra que 51 espé-
duzir as fraudes. A Divisão de Proteção Unidas preveem que a população afri- temos meios para manter patrulhas na cies, a maioria delas indispensável
e Monitoramento da Pesca recebeu re- cana dobrará até 2050. área 24 horas por dia”. De seu lado, o para a alimentação das populações
cursos adicionais e passou a aplicar Embora as traineiras zombem das diretor-geral da Divisão de Exploração costeiras, estão ameaçadas ou prestes
multas mais altas – um esforço cele- fronteiras, a cooperação regional é in- dos Recursos Pesqueiros da Mauritâ- a desaparecer.7
brado em um estudo recente sobre a cipiente, como mostra um incidente nia diz que não recebeu nenhuma Em uma manhã de março, em um
pesca ilegal publicado pela revista on- durante uma inspeção de rotina feita mensagem de alerta sobre o Gotland. mar agitado, o Esperanza atravessa
-line Frontiers in Marine Science.4 pela Marinha senegalesa em 25 de fe- Em vez de constituir sua própria uma camada de lixo. Centenas de pei-
“Os danos causados pela pesca ile- vereiro de 2017. Nessa noite, por volta frota de pesca industrial, a maioria dos xes mortos flutuam na superfície. Se-
gal diminuem à medida que aumen- das 21 horas, as autoridades surpreen- Estados da África costeira prefere ven- gundo o capitão, eles foram rejeitados
tam as multas sobre as formas extre- deram o Gotland, uma traineira-fábri- der licenças de exploração de suas por uma traineira que procurava es-
mas de pesca ilegal, não declarada e ca de 94 metros, pescando de forma águas territoriais, cedendo a operado- pécies mais comerciais. De repente,
não regulamentada”, observa Dyhia fraudulenta em suas águas. A equipe res estrangeiros o melhor de suas re- duas canoas aparecem. Suas tripula-
Belhabib, coautora do estudo, que su- de vigilância fez contato com o capitão servas de pescado. A Organização das ções pulam na água e tentam trazer a
pervisiona o projeto “The Sea Around do navio para subir a bordo, mas o Nações Unidas para a Alimentação e a bordo peixes comestíveis, sobretudo
Us” (O mar que nos rodeia) em um ins- Gotland fugiu. O resultado foi uma Agricultura (FAO) estima que a venda as corvinas, uma espécie de bom ta-
tituto de pesquisa sobre o impacto hu- perseguição que durou quatro horas desses direitos de pesca lhes renda 400 manho e bastante carne, similar ao
mano e ambiental da pesca na Univer- em águas da Mauritânia, e então este milhões de euros por ano, ao passo robalo – uma delas consegue alimen-
sidade da Colúmbia Britânica. De país se recusou a dar apoio à patrulha que, se exercessem eles mesmos a ati- tar uma família de sete a oito pessoas.
acordo com Belhabib e seus colegas da senegalesa. O Gotland desapareceu, e vidade, obteriam receitas de 3,3 bi- A pressa desesperada desses peque-
Mauritânia, Senegal, Gâmbia, Guiné, seus perseguidores voltaram para o lhões de euros.5 nos pescadores contrasta cruelmente
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com a economia do desperdício típica Já o Saly Reefer se apresenta como nos registros nacionais. Os Estados- mente um contrato atrás do outro”,
da pesca industrial, que lança ao mar afiliado a uma empresa sediada na Es- -membros podem excluir desse regis- lança Abdou Karim Sall. “O que acon-
os peixes considerados pouco lucrati- panha, a Sea Group SL, com a qual é tro os barcos condenados por infração tecerá quando não houver mais peixe?
vos nos mercados do Norte. impossível falar, apesar das muitas ou que abusem da troca de bandeira. Quando um homem começa a passar
Abdou Karim Sall já viu essa cena tentativas. Mesmo diante dessa cone- “Essa nova legislação é um exemplo fome, do que ele se torna capaz?”
muitas vezes. “Quando uma traineira xão oficial, o Ministério da Pesca espa- para o resto do mundo”, Bergh quer
quer polvo, todas as outras espécies nhol tomou a inesperada iniciativa de acreditar. “A pesca é uma indústria ca- *Kyle G. Brown é jornalista. Reportagem co-
pegas em suas redes são devolvidas à negar publicamente que o barco per- ra: ficando privadas do direito de pes- financiada pelo Journalismfund.eu.
água, mortas!” Assim, 10 milhões de tença a um membro de seu país. É ver- ca, mesmo que por um ano, as empre-
toneladas de peixe são perdidas a cada dade que, após anos de inércia, Madri sas se expõem a pesadas perdas.” Mas
ano, o equivalente a 10% do volume to- passou recentemente à ofensiva con- ainda há uma grande armadilha: em
tal capturado no mar, de acordo com tra a pesca ilegal, processando gran- caso de ações judiciais, os armadores
as estimativas do projeto “The Sea des armadores, como a Vidal Armado- conservam a possibilidade de negociar
Around Us”.8 Enquanto o Esperanza res – embora o processo contra ela um acordo, como o que beneficiou 1 Cf. “Accords de pêche bilatéraux avec les pays non
ruma para o sul, os oficiais da Guiné- tenha sido derrotado, no ano passado, Mandalios. “A maioria dos litígios é re- membres de l’UE” [Acordos bilaterais de pesca
-Bissau a bordo avistam uma traineira na Corte Suprema. solvida amigavelmente, sem chegar ao com países não membros da UE], site da Comis-
são Europeia, Bruxelas. Disponível em: <https://
que navega com um cargueiro de ban- tribunal”, nota Bergh. “Isso é poten- ec.europa.eu>. Ler também Jean-Sébastien Mora,
deira de Comores, o Saly Reefer. A lan- TRANSFERÊNCIA DE PROTEÍNAS cialmente uma brecha, já que os pro- “Pesca industrial provoca destruição na África”, Le
cha rápida do Greenpeace sai atrás de- ENTRE POBRES E RICOS prietários e as missões diplomáticas Monde Diplomatique Brasil, 15 maio 2013.
2 “Mauritanie: faute d’accord, les pêcheurs sénéga-
les. Sem mover um músculo, o capitão Na Somália, bem longe desses tru- têm um interesse comum nessas nego- lais sont au chômage technique” [Mauritânia: por
russo da traineira não recua quando ques sofisticados, Mohamed, no Mi- ciações, ao fim das quais não resta ne- falta de acordo, pescadores senegaleses estão
um dos oficiais anuncia que ele terá de nistério da Pesca, finalmente recebe nhum vestígio de infração.” Embora tecnicamente desempregados], Radio France In-
ternationale, 10 fev. 2017.
pagar uma multa por transbordo ilegal uma boa notícia: um alerta do Quênia esse regulamento não se aplique à fro- 3 Amadou Oury Diallo, “Sénégal-Mauritanie: le cas-
– a embarcação foi pega enquanto des- sinaliza a chegada do Greko 1 ao porto ta chinesa, envolvida em inúmeras vio- se-tête des accords de pêche” [Senegal-Mauritâ-
carregava em pleno mar – e que os dois de Mombasa. Poucas horas depois, sua lações das regras da União Europeia nia: o quebra-cabeça dos acordos de pesca], Jeu-
ne Afrique, Paris, 9 fev. 2018.
navios serão escoltados até o porto. equipe embarca em um voo para o sobre a pesca ilegal, não declarada e 4 Coletivo, “Assessing the effectiveness of monito-
Uma pequena vingança para as auto- Quênia. A quantidade de homens uni- não regulamentada (INN), Pequim ring control and surveillance of illegal fishing: The
ridades locais, que raramente têm os formizados que os recebem no desem- anunciou em fevereiro a intenção de Case of West Africa” [Avaliação da eficácia do mo-
nitoramento e vigilância da pesca ilegal: o caso da
meios necessários para intervir além barque deve ter surpreendido o capi- sancionar a pesca ilegal praticada pe- África ocidental], Frontiers in Marine Science, 7
de algumas milhas náuticas. tão indiano e sua tripulação, que los navios de bandeira vermelha. mar. 2017. Disponível em: <www.frontiersin.org>.
Para as empresas, o transbordo é saíram de Mogadício com tanta pressa Na imensidão dos oceanos da Áfri- 5 Gertjan de Graaf e Luca Garibaldi, “La valeur des
pêches africaines” [O valor da pesca africana], Cir-
uma forma rápida e eficaz de reduzir que deixaram para trás seus docu- ca, é difícil prever quantos Gotland culaire sur les Pêches et l’Aquaculture, n.1093,
o tempo entre a captura do peixe e mentos e até a âncora do barco. O co- continuarão passando pelas malhas FAO, Roma, 2014. Disponível em: <www.fao.org>.
sua colocação no mercado – especial- mitê de recepção inclui a polícia que- da rede. Mas, sinal de que os tempos 6 O Sistema de Identificação Automática (SIA) é uma
rede automatizada de troca de mensagens que per-
mente se a operação ocorre em mar niana, as autoridades portuárias e estão mudando, muitos países africa- mite que as autoridades de vigilância de tráfego
aberto, longe dos olhares de todos e marítimas locais, os representantes nos reforçaram seus sistemas de vigi- conheçam a identidade, o status, a posição e a rota
dos regulamentos. Isso permite mis- somalis e membros da força de inter- lância. Redes como a FISH-i e a Comis- das embarcações situadas na área de navegação.
7 “Overfishing threatens food security off Africa’s
turar capturas legais e ilegais, e co- venção da FISH-i. “Quando inspecio- são Sub-Regional de Pesca da África western and central coast as many fish species in
mercializar o mais rápido possível namos o navio, encontramos tanto Ocidental melhoraram seus sistemas the region face extinction – IUNC report” [Sobre-
uma produção de origem duvidosa. A peixe que não havia espaço para mais de inteligência e compartilhamento pesca ameaça a segurança alimentar na costa oci-
dental e central da África, e muitas espécies de
União Europeia – maior mercado do nem um palito de fósforo”, diz Bergh. de informações, dificultando um pou- peixes na região estão ameaçadas – relatório da
planeta – estima em 1 bilhão de euros Os somalis têm várias acusações, in- co a tarefa dos criminosos dos mares. IUNC], União Internacional para a Conservação da
o volume de pescado importado ile- cluindo falta de licença, pesca na zona Outros governos, porém, conti- Natureza (IUCN), Gland (Suíça), 19 jan. 2017. Dis-
ponível em: <www.iucn.org>.
galmente a cada ano.9 de 24 milhas náuticas que o Estado re- nuam os recebendo muito bem, para 8 “Ten million tonnes of fish wasted every year despi-
Assim como o Gotland e o Saly Ree- serva para os pescadores locais e posse grande insatisfação de seus oposito- te declining fish stocks” [Dez milhões de toneladas
fer, muitos navios operam em nome de de documentos falsos. Inicia-se uma res. Embora o Senegal tenha aprova- de peixe desperdiçadas todo ano, apesar do declí-
nio dos estoques de peixe], Sea Around Us, 26 jun.
empresas europeias, protegendo-se negociação, ao fim da qual as partes do uma legislação destinada a apoiar 2017. Disponível em: <www.seaaroundus.org>.
atrás da bandeira de um país exótico, concordam com uma multa de 65 mil a pesca artesanal, uma cláusula de 9 “Handbook on the practical application of Council
geralmente pobre e que chama pouca euros – sanção bem modesta, se com- proteção à pesca industrial foi adicio- Regulation (EC) establishing a Community system
to prevent, deter and eliminate illegal, unreported
atenção, o que às vezes lhes custa re- parada com os 300 mil euros que vale a nada, com todos os riscos de instabi- and unregulated fishing” [Manual de aplicação prá-
primendas da União Europeia.10 O di- carga do navio. lidade daí decorrentes.12 tica do Conselho de Regulação (CE) que estabe-
reito marítimo internacional é feito Mesmo assim, o proprietário, Sta- De qualquer modo, o problema de lece um sistema comunitário para prevenir, impedir
e eliminar a pesca ilegal, não declarada e não regu-
sob medida para os armadores, pois os vros Mandalios, brada contra a injusti- fundo permanece inalterado: apesar lamentada], Comissão Europeia, out. 2009. Dispo-
autoriza a içar a bandeira que preferi- ça. “Apesar de negarmos as acusações, de seu custo proibitivo, a pesca inten- nível em: <https://ec.europa.eu>.
rem. Não contentes em utilizar ban- não tivemos outra opção senão pagar”, siva de longa distância continuará flo- 10 “Lutte contre la pêche illicite: la Commission distri-
bue des cartons jaunes à Taïwan et aux Comores, à
deiras de conveniência, alguns mu- protesta. “Precisávamos liberar o na- rescendo enquanto satisfizer a de- titre d’avertissement, et se félicite des réformes me-
dam à vontade o nome de seus barcos, vio o mais rápido possível e queríamos manda do consumidor. Na Europa e nées au Ghana et en Papouasie” [Luta contra a
usam documentos de registro falsos evitar longos processos judiciais.” na Ásia, o consumo per capita de peixe pesca ilegal: Comissão distribui cartões amarelos a
Taiwan e Comores, como advertência, e celebra as
ou criam estruturas opacas para dis- Após esse caso, Belize removeu de seu só aumenta, chegando a 22 quilos por reformas de Gana e Papua], Comissão Europeia,
farçar a identidade do financiador. registro o Greko 1, que ficou apátrida – ano.13 Ao mesmo tempo, diminui 1º out. 2015. Disponível em: <http://europa.eu>.
O Gotland, por exemplo, está ligado pelo menos até que encontre uma no- acentuadamente na África subsaaria- 11 “Règlement 2017/2403 du 12 décembre 2017 re-
latif à la gestion durable des flottes de pêche exter-
a uma empresa domiciliada na Bélgica, va bandeira. na, onde não ultrapassa, em média, os nes” [Regulamento n. 2017/2403, de 12 de de-
a Inok N.V. Quando tentamos falar com No entanto, a impunidade de que 10 quilos.14 Essa transferência de pro- zembro de 2017, relativo à gestão sustentável das
ela pelo telefone, somos transferidos gozam os navios de pesca europeus teína dos países pobres para os ricos frotas de pesca externas], Journal Officiel de
l’Union européenne, 28 dez. 2017. Disponível em:
para um escritório russo, que, por sua poderia estar chegando ao fim. A União tem “enormes consequências”, alerta a <https://eur-lex.europa.eu>.
vez, transfere para o país da bandeira Europeia adotou em 2017 um regula- FAO, que estima que três quartos das 12 Lei n. 2015-18, de 13 de julho de 2015, sobre o
do Gotland: São Vicente e Granadinas, mento destinado a tornar a Política Co- espécies marinhas capturadas no pla- Código da Pesca Marítima, Journal Officiel de la
République du Sénégal, Dacar, 14 jan. 2016.
um pequeno paraíso fiscal do Caribe. mum da Pesca (PCP) mais restritiva neta sejam alvo de exploração excessi- 13 “The State of World Fisheries and Aquaculture
Quanto ao verdadeiro dono, ele per- para os milhares de navios que operam va ou já estejam em via de extinção. 2016” [Estado da pesca mundial e da piscicultura
manece, obviamente, desconhecido. É fora das águas europeias.11 A partir dis- “Durante anos, o Senegal conside- 2016]. Disponível em: <www.fao.org>.
14 “Fish to 2030: Prospects for fisheries and aquacultu-
o tipo ideal de arranjo para confundir so, cada navio deve passar a ter um nú- rou que seus recursos eram inesgotá- re” [Pescar até 2030: perspectivas para a pesca e a
eventuais investigadores. mero de identificação único inscrito veis, e os governos assinavam cega- piscicultura], 2013. Disponível em: <www.fao.org>.
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UM PANORAMA CLÍNICO DA CRISE

A austeridade
deteriora a
saúde mental
dos gregos
Enquanto a greve dos transportes terrestres
e aéreos, das escolas e dos hospitais paralisava
o país, o Parlamento grego aprovava em meados
de janeiro um novo pacote de austeridade.
A medida exigida pelos credores deve permitir o
pagamento de 4,5 bilhões de euros. Os efeitos
desse tipo de arrocho sobre a população são

© Tulipa Ruiz
hoje bem mais conhecidos
POR MOHAMED LARBI BOUGUERRA*

A
austeridade radical imposta à nos sociais. O trabalho coloca em des- coestimulantes, muito viciantes, neuro- cionais. Ele confirma a reflexão do
Grécia desde 2010 não somente taque a resposta da população ao tóxicas, chamadas speed, meth ou crys- químico norte-americano Linus Pau-
agravou a situação da economia estresse gerado pela austeridade im- tal meth). Estas são associadas a uma ling (Prêmio Nobel de Química de
e o endividamento do país, com posta pela União Europeia – particu- substância local barata (do tipo street 1954 e Prêmio Nobel da Paz de 1962):
queda da produção e disparada do de- larmente pela Alemanha. O uso de drugs: alucinógenos, estimulantes) cha- “Nenhum dos aspectos contemporâ-
semprego. Entre os moradores de Ate- muitas substâncias – legais e ilegais –, mada “sisa”. As drogas que geram eufo- neos, até e aí compreendida a política
nas, ela teria provocado um aumento em especial os psicotrópicos e os anti- ria, cocaína e maconha, não seguiram e as relações internacionais, escapou à
fenomenal do consumo de psicotrópi- depressivos, cresceu rapidamente na uma tendência clara, mas experimen- influência da química”.
cos (multiplicado por 35), de ansiolíti- esteira do plano europeu de 2010. Ho- tam picos de consumo no fim de sema-
cos à base de benzodiazepínicos (mul- je, o desemprego atinge 30% da popu- na. O consumo de ecstasy (MDMA), no *Mohamed Larbi Bouguerra é químico, ex-
tiplicado por 19) e de antidepressivos lação ativa; as despesas públicas fo- entanto, aumentou fortemente. -membro da Academia Tunisiana de Ciên-
(multiplicado por 11). Esses dados ram drasticamente reduzidas, e os Para Thomaidis, esses resultados cias, Letras e Artes Bait Al-Hikma e ex-dire-
constam de um estudo original reali- impostos, aumentados. As aposenta- sugerem que a saúde da população na tor de pesquisa associado do Centro Nacional
zado nos esgotos da cidade.1 dorias serão reduzidas novamente em Grécia, em particular a saúde mental, de Pesquisa Científica (CNRS, França).
Pesquisadores da Universidade Na- 18% em 2019, pela 12ª vez.3 se deteriorou fortemente ao longo
cional Capodistriana de Atenas estuda- Os pesquisadores também observa- desse período. Se esse tipo de análise
1 Nikolaos S. Thomaidis et al., “Reflection of socioe-
ram metodicamente as manifestações ram um aumento do consumo de me- não é novo,5 sua equipe é a primeira a conomic changes in wastewater: licit and illicit drug
dessa “angústia cotidiana” descrita pelo dicamentos destinados ao tratamento conduzir um trabalho durante um use patterns” [Reflexo das mudanças econômicas
primeiro-ministro Alexis Tsipras.2 A ca- de hipertensão, úlcera e epilepsia.4 Por período tão longo, numa amostra tão em águas residuais: padrões de uso de drogas líci-
tas e ilícitas], Environmental Science and Techno-
da semana, de 2010 a 2014, Nikolaos outro lado, a presença de antibióticos e significativa da população, e de ter logy, v.50, n.18, Sociedade Norte-Americana de
Thomaidis e seus colegas recolheram anti-inflamatórios não esteroides (Ains) analisado muitas amostras. Sua con- Química, Washington, DC, 2016.
amostras nas estações de esgoto da ca- baixou, provavelmente por causa de clusão é contundente: “Todos os indi- 2 “Alexis Tsipras: ‘Donnons un nouvel élan à la crois-
sance européenne’” [Alexis Tsipras: “Vamos dar
pital grega, que coletam as águas rejei- cortes drásticos nos gastos com saúde e cadores socioeconômicos estão for- um novo impulso ao crescimento europeu”], Le
tadas por mais de um terço da popula- da queda do poder de compra. Assim, temente relacionados com a Monde, 14 jun. 2017.
ção da Grécia, ou seja, 3,7 milhões de no caso dos anti-inflamatórios da famí- quantidade de antidepressivos e de 3 Helena Smith, “Greece will avoid default after bai-
lout deal – but faces more austerity” [Grécia evitará
habitantes. Eles pesquisaram 148 medi- lia dos ácidos fenâmicos, observou-se benzodiazepínicos. O desemprego, o inadimplência após acordo de ajuda – mas enfren-
camentos narcóticos e outras substân- uma queda vertiginosa. O orçamento agravamento da situação econômica ta mais austeridade], The Guardian, Londres, 2
cias ilícitas, assim como seus metabóli- da saúde pública teve seu teto definido e o impacto do forte endividamento maio 2017.
4 Katherine Gammon, “Drug use in Athens rose dra-
tos – os produtos de sua transformação em 6% do PIB, o dos hospitais públicos das pessoas podem provocar ou agra- matically after economic crisis” [O uso de drogas
no organismo. foi amputado em 26% entre 2009 e 2011, var os problemas de saúde mental”. em Atenas aumentou drasticamente depois da cri-
Os cientistas ressalvam que, se a e as compras de medicamentos caíram Esse é também o primeiro trabalho se econômica], Chemical and Engineering News,
Washington, DC, 12 set. 2016.
presença dessas substâncias nas águas de 4,37 bilhões de euros em 2010 para 2 que destaca de maneira tão clara o es- 5 Cf. Christian G. Daughton, “Illicit drugs in municipal
é rotineiramente verificada, apenas bilhões de euros em 2014. tresse e os horrores vividos pelo povo sewage” [Drogas ilícitas no esgoto municipal]. In:
um número limitado de estudos foi Ao mesmo tempo, a equipe de Tho- grego, consequências dos “remédios” “Pharmaceuticals and care products in the environ-
ment” [Produtos farmacêuticos e cuidados com o
consagrado à correlação entre as con- maidis destaca a duplicação dos níveis administrados pela União Europeia e meio ambiente], ACS Symposium Series, v.791,
centrações encontradas e os fenôme- de metanfetaminas ilícitas (drogas psi- pelos financiadores de fundos interna- Sociedade Americana de Química, 2001.
32 Le Monde Diplomatique Brasil MAIO 2018

DEBANDADA DA UNASUL

Ascensão
e queda da
América
do Sul
Ainda que o ataque à Unasul não
signifique seu fim, ele não deixa de ser
um indicativo de que existem motivações
claramente políticas por trás da posição

© Daniel Kondo
tomada pelos seis países que decidiram
suspender sua participação
POR LEANDRO GAVIÃO*

N
o último dia 20 de abril, Brasil, Sul ganhasse contornos de apelo iden- csa), de Itamar Franco. Mesmo sem lo- Com alguma licença poética, po-
Argentina, Chile, Colômbia, titário, ultrapassando a condição de grar êxito, a Alcsa revelou uma mu- de-se afirmar que a América do Sul
Peru e Paraguai anunciaram a mera expressão geográfica. Sua “con- dança de posicionamento do governo nasceu no ano 2000.
suspensão, por tempo indeter- corrente” latino-americana, que havia brasileiro, que passou a visualizar na
minado, de sua participação na União ganho relevo a partir da criação da Ce- América do Sul um espaço privilegia- A CONSOLIDAÇÃO DO PROJETO SUL-AMERICANO
de Nações Sul-Americanas (Unasul). pal e da Alalc – em 1948 e 1960, respec- do para a diplomacia. Em 1º de janeiro de 2003, durante a
O grupo alega que a organização tivamente –, perdeu operacionalidade Os governos seguintes deram con- sessão de posse no Congresso Nacio-
não está funcionando adequadamen- nos anos 1990. Primeiro, porque se re- tinuidade à construção política da re- nal, Lula anunciou que a política ex-
te e que a polarização política tem conheceu que as ousadas propostas de gião. A iniciativa de Fernando Henri- terna de seu governo seria orientada
atuado como impeditivo para a obten- integração regional de coloração lati- que Cardoso de convocar a I Reunião para “a construção de uma América do
ção de uma posição consensuada so- no-americana não conseguiram deco- de Presidentes da América do Sul, em Sul politicamente estável, próspera e
bre o nome do próximo secretário-ge- lar. Segundo, por causa da “deserção” 2000, simbolizou uma mudança de unida, com base em ideais democráti-
ral do bloco. A vacância do cargo do México, uma vez que o país latino-a- paradigma nas relações interamerica- cos e de justiça social”.3 O presidente
perdura desde o fim da gestão do co- mericano mais importante fora da nas. Até aquele momento, as reuniões também se comprometeu a fazer “flo-
lombiano Ernesto Samper, em 31 de América do Sul concluiu as negocia- de cúpula assumiam um perfil ora la- rescer uma verdadeira identidade do
dezembro de 2017. ções para ingressar no Tratado Norte- tino-americano, ora pan-americano. Mercosul e da América do Sul”.
Ainda que essa interrupção não -Americano de Livre Comércio (Nafta). Publicado após o encerramento do No ano seguinte, a III Reunião de
signifique o fim imediato da Unasul, a O reconhecimento do comparti- encontro, o Comunicado de Brasília Presidentes da América do Sul resul-
decisão tomada pela metade mais rica lhamento de uma mesma matriz cul- expressou os principais temas debati- tou na Declaração de Cuzco e na fun-
dos países-membros coloca um gran- tural-idiomática e a alteridade em re- dos na reunião e indicou algumas pro- dação da Comunidade Sul-Americana
de obstáculo à sua sobrevivência, além lação aos Estados Unidos, que atuavam postas para o futuro, enfatizando a im- de Nações (Casa), com o objetivo de
de significar um retrocesso sem prece- como fatores de sustentação da identi- portância dos direitos humanos, da integrar o subcontinente nos âmbitos
dentes no projeto de construção da dade latino-americana, perderam a democracia, da paz regional e do apri- “político, social, econômico, ambien-
América do Sul como espaço privile- relevância que tinham no passado. moramento da infraestrutura regio- tal e de infraestrutura”,4 tendo em vis-
giado da diplomacia brasileira. Buscou-se, a partir de então, priorizar nal. É importante destacar que aquele ta fortalecer “a identidade própria da
projetos mais pragmáticos, que aten- foi o primeiro documento oficial a citar América do Sul”.
DA AMÉRICA LATINA À AMÉRICA DO SUL tassem para o subcontinente sul-ame- a identidade supranacional sul-ameri- Em 2007, a Casa se tornou a Una-
A ideia de América do Sul e a restri- ricano, ainda que isso significasse in- cana, definida como variável passível sul. Em 2008, os doze chefes de Estado
ção geográfica do conceito de vizi- cluir dois países de herança não latina: de contribuir “para o fortalecimento assinaram seu Tratado Constitutivo.
nhança remontam à chancelaria do a Guiana e o Suriname. de outros organismos, mecanismos ou Menos de quatro meses depois, a Una-
Barão do Rio Branco. Contudo, sua ins- processos regionais, com abrangência sul passou por seu primeiro grande
trumentação institucional – resultando O NASCIMENTO DA AMÉRICA DO SUL geográfica mais ampla, de que fazem teste. A Bolívia vivia uma crise separa-
em iniciativas concretas de cooperação O papel do Brasil foi fundamental parte países da América do Sul”.1 tista motivada por grupos radicais de
e integração – precisou esperar até a dé- no processo de ressignificação da re- Paralelamente, lançou-se a Inicia- oposição ao governo. Por meio de uma
cada de 1990. Nesse contexto, é comum gião. Do governo de João Figueiredo tiva para a Integração da Infraestrutu- comissão ad hoc, a Unasul colaborou
reconhecer o papel fundamental do ei- em diante, todos os presidentes brasi- ra Regional Sul-Americana (Iirsa), de para isolar politicamente os manifes-
xo Brasília-Buenos Aires, que, ao supe- leiros encaminharam algum projeto modo que as fronteiras deixassem de tantes separatistas e garantir a unida-
rar antigas rivalidades, possibilitou a voltado para o subcontinente. Contu- “constituir um elemento de isolamen- de do Estado boliviano.
assinatura do Tratado de Assunção do, a América do Sul stricto sensu so- to e separação para tornar-se um elo Em 2010, a Unasul foi igualmente
(1991), dando vida ao Mercosul. mente figurou na retórica oficial a par- de ligação para a circulação de bens e importante ao buscar uma solução ne-
A conjuntura interamericana tam- tir do lançamento da proposta da Área pessoas, conformando-se assim um gociada para as tensões entre a Vene-
bém contribuiu para que a América do de Livre Comércio Sul-Americana (Al- espaço privilegiado de cooperação”.2 zuela de Hugo Chávez e a Colômbia de
MAIO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 33

Álvaro Uribe. Os dois países haviam cultivar a convergência mesmo ha-


rompido relações diplomáticas em ju- vendo muitas discordâncias ideoló- AMÉRICA LATINA
lho, preocupando a vizinhança com a gicas entre os governos da região.
possibilidade de uma escalada das Nesse sentido, o empenho brasileiro
hostilidades. Após reatarem as rela- foi determinante para evitar que a EMPRESÁRIOS NO PODER
ções, Chávez e Juan Manuel Santos – Unasul reproduzisse os equívocos e
que havia tomado posse no dia 7 de as limitações da Alba, cuja identidade Na América Latina, os proprietários de grandes empresas arrebanham os
agosto daquele ano– destacaram a im- apelava abertamente ao socialismo e cargos mais altos do Executivo: a presidência da Argentina, do Chile, do
portância da Unasul como canal privi- ao antiamericanismo. Paraguai, do Peru... Estudo confirma a ampla super-representação atual
legiado para a solução de conflitos. Em 2010, a América do Sul poderia
das elites econômicas também no seio do poder político legislativo
Em setembro do mesmo ano, houve ser dividida em três grandes famílias
uma ameaça de ruptura da ordem políticas: esquerda bolivariana (Bolí- POR MIGUEL SERNA*
constitucional no Equador. Policiais e via, Equador, Paraguai e Venezuela),
militares organizaram um grande pro- centro-esquerda (Argentina, Brasil e
testo contra medidas de austeridade de
Rafael Correa. Pairava um clima de ten-
Uruguai) e direita (Chile, Colômbia e
Peru). Contudo, a busca por soluções
N o Peru, Pedro Pablo Kuczynski, em-
presário eleito para a presidência
em 2016 e forçado a renunciar após um
ção das Indústrias do Estado de São
Paulo (Fiesp), a maior organização pa-
tronal do país, participou diretamente da
são e incerteza em várias cidades do concertadas e a capacidade de diálogo
escândalo de corrupção, foi substituído organização de manifestações contra a
país. O aeroporto da capital e o prédio eram valores que estavam acima das em 23 de março de 2018 por Martín Al- presidenta Dilma Rousseff na véspera
do Congresso chegaram a ser tomados diferenças, possibilitando sanar pro- berto Vizcarra, também empresário. de seu impeachment, em 2016.1
por militares, acarretando a suspensão blemas regionais. Mesmo cenário de cerca de quatro anos Nesse contexto, nossa equipe de
das atividades do Legislativo. Ao dis- atrás no Panamá, onde o patrão Juan pesquisa realizou um estudo para medir
cursar no principal quartel do Exército, O DESMONTE DA AMÉRICA DO SUL Carlos Varela sucedeu ao patrão Ricar- mais precisamente a participação de li-
em Quito, Correa foi insultado e ataca- É um erro muito grave associar a do Martinelli. Depois do México, onde o deranças empresariais no exercício do
do com bombas de gás lacrimogêneo, Unasul às esquerdas ou ao antiameri- dirigente local da Coca-Cola, Vicente Poder Legislativo em oito países durante
precisando ser hospitalizado. canismo. Primeiro, porque a Unasul é Fox, ocupou a presidência de 2000 a o período de 2010 a 2017.2 Entre os 801
Diante desse cenário preocupante, derivada da I Reunião de 2000, quando 2006, o Chile acaba de reeleger o ho- deputados desse grupo de países, iden-
mem de negócios Sebastián Piñera, que tificamos aqueles que tinham sido pa-
a reação da Unasul foi mais célere e di- praticamente todos os países da região
já havia ocupado o cargo supremo entre trões ou altos executivos do setor priva-
nâmica do que a de outras organiza- eram governados por presidentes de
2010 e 2014. Na presidência da Argen- do, latifundiários ou comerciantes antes
ções regionais, condenando com vee- direita ou de centro-direita. Segundo, tina? O empresário Mauricio Macri, elei- de serem eleitos deputados. Em média,
mência as manifestações violentas e porque a Unasul sempre se posicionou to em 2015. No Paraguai? Um outro, esse era o caso de um terço (23%) de-
ameaçando isolar o país em caso de de maneira suprapartidária, com aber- Horacio Cartes, eleito em 2013... les, ainda que os números variassem
golpe. Convém destacar que a posição tura ao diálogo entre diferentes grupa- Na América Latina, a chegada de muito de um país para outro: Argentina,
favorável a Correa ultrapassou as pre- mentos ideológicos; além de defender empresários aos mais altos cargos do 13%; Uruguai, 17%; México, 21%; Peru,
ferências políticas de cada mandatário de forma irrestrita o estado de direito e Executivo constitui um fenômeno tão no- 23%; Brasil, 24%; Chile, 24%; Colôm-
e, por sugestão do presidente conser- o pluralismo, conforme se pode verifi- vo quanto generalizado. Nas fases de bia, 25%; e El Salvador, 40%.
vador chileno, Sebastián Piñera, in- car ao longo de seu Tratado Constituti- transição que sucederam às ditaduras, na Esses resultados confirmam a ideia
corporou-se um Protocolo Adicional vo e no texto do protocolo sobre o com- década de 1980, o patronato se manteve de um excesso de representação das
bastante discreto por causa de seu apoio elites econômicas no poder político le-
ao Tratado Constitutivo da Unasul, de promisso com a democracia.
aos regimes militares dos anos 1970. gislativo na América Latina, tendo em
modo a desencorajar casos semelhan- A “desideologização” da política
Não era mesmo o caso de se agitar mui- vista que os empresários e assemelha-
tes de tentativa de violação da ordem externa brasileira foi uma das bandei- to, tendo em vista que as democracias dos representam em média apenas
democrática. ras levantadas pelo PSDB na disputa emergentes se guiavam por um princípio 3,4% da população ativa na região. Com
Ancorada nesse protocolo, a Una- presidencial de 2006. Dez anos depois, fundamental: não questionar a economia base nos estudos disponíveis, a situação
sul suspendeu o Paraguai do bloco ao assumir a chancelaria no governo de mercado nem o interesse superior das se mostra mais caricatural nos senados
após concluir que o processo de im- de Michel Temer, o tucano José Serra empresas privadas. (nos países em que eles existem): eles
peachment sofrido pelo presidente reproduziu o mesmo mote. Agora, sob O segundo ciclo de reformas neolibe- representam 30% dos membros no
Fernando Lugo, em junho de 2012, es- a gestão de seu correligionário Aloysio rais, na década de 1990, facilitou a re- Brasil3 e 20% no Uruguai.4
tava permeado de irregularidades, Nunes, a Unasul se tornou a mais no- conquista do campo político pelo setor
configurando um golpe parlamentar. va vítima da “diplomacia do G-Nada” privado, sobretudo com o acesso de em- *Miguel Serna é professor de Sociolo-
presários a importantes cargos na admi- gia da Universidade da República, em
A decisão do julgamento já se encon- de Temer.
nistração pública, às vezes até mesmo Montevidéu (Uruguai), e professor convi-
trava pronta antes mesmo da apresen- Ainda que esse ataque à instituição
pela via eleitoral. Aqui e ali, o empresaria- dado no Instituto de Estudos Avançados
tação da defesa, que nem sequer pôde não signifique seu fim, ele não deixa de do foi capaz de orquestrar uma estreita da América Latina (Iheal), Paris 3.
solicitar a dilação probatória. Care- ser um indicativo de que existem mo- aproximação com figuras que encarna-
cendo de concretude, as acusações de tivações claramente políticas por trás vam o populismo de direita latino-ameri- 1 Ler Laurent Delcourt, “Movimento contra a
“mau desempenho” de suas funções da posição tomada pelos seis países. cano: Alberto Fujimori no Peru e Carlos corrupção ou golpe de Estado disfarçado?”,
foram de caráter preponderantemente Todos governados por coalizões de di- Menem na Argentina, por exemplo. Le Monde Diplomatique Brasil, maio 2016.
2 Miguel Serna e Eduardo Bottinelli, “El poder
ideológico, e não de juízo de ilicitude reita, diga-se de passagem. A partir do final da década de 1990,
fáctico de las elites empresariales en la políti-
na conduta. O Paraguai regressou à Retoricamente, o apelo à “desideo- três fatores enfraqueceram o setor eco- ca latino-americana” [O poder de fato das eli-
Unasul somente um ano depois, após logização” sempre soa agradável. Mas, nômico tradicional e o obrigaram a um tes empresariais na política latino-americana],
realizar novas eleições. parafraseando Norberto Bobbio, po- recuo tático: as crises, especialmente Clacso/Oxfam, Buenos Aires, 2018. O estu-
as de 1998 e 2001; o afluxo de capital do também detalha o impacto do setor para os
Com base nos exemplos supracita- de-se dizer não há nada mais ideológi- governos e os altos cargos públicos.
estrangeiro, sobretudo por meio das pri- 3 Paulo Roberto Neves Costa, Luiz Domingos
dos, conclui-se que a Unasul operou co- co do que afirmar que existe ação polí-
vatizações; e a chegada ao poder de Costa e Wellington Nunes, “Os senadores-em-
mo um canal de diálogo capaz de asse- tica desprovida de ideologia. governos progressistas (Venezuela, presários: recrutamento, carreira e partidos po-
gurar a normalidade institucional dos Brasil, Argentina, Bolívia, Equador etc.). líticos dos empresários no Senado brasileiro
países-membros e solucionar contro- *Leandro Gavião é doutor em História Polí- (1986-2010)”, Revista Brasileira de Ciência
Mas o contexto atual novamente se
Política, n.14, Brasília, maio-ago. 2014.
vérsias, garantindo a paz regional a des- tica pela Uerj e professor de Relações Inter- mostra propício para uma ofensiva polí- 4 Miguel Serna, Eduardo Bottinelli, Marcia Bar-
peito da contribuição ou não de tercei- nacionais da Universidade Católica de Petró- tica patronal. A esquerda perde fôlego, bero e Franco González, “Los empresarios en
ros países e de organizações exógenas. polis (UCP-RJ). quando não perde o poder, enquanto a la política en Uruguay en tiempos de cambio
crise parece desacreditar seu projeto (2000-2015)” [Os empresários na política no
Paralelamente, o bloco contribuía Uruguai em tempos de mudança], estudo
para desenvolver um sentimento de socioeconômico. Nesse contexto, os apresentado nas XVI Jornadas de Pesquisa
parceria e de destino comum entre 1 Disponível em: <https://goo.gl/8BzBaq>. empresários retomam a via do ativismo Científica da Faculdade de Ciências Sociais
2 Idem. político, como no Brasil, onde a Federa- da Universidade da República, Montevidéu.
seus membros. É particularmente in- 3 Disponível em: <https://goo.gl/7d38tL>.
teressante observar os esforços para 4 Disponível em: <https://goo.gl/nvpVuJ>.
34 Le Monde Diplomatique Brasil MAIO 2018

ARTE E POLÍTICA

“Seu sofrimento não é como o meu”


Mesmo que a controvérsia atual em torno da “apropriação cultural” definitivamente traduza apenas
a reivindicação de uma espécie de “renda racial” por uma pequena fração da burguesia negra, na realidade
ela beneficia toda a burguesia – e, portanto, principalmente os brancos
POR WALTER BENN MICHAELS*

US$ 100 mil anuais ou mais, por sua

E
m agosto de 1955, Emmett Till, vez, quase quadruplicou, atingindo
um afro-americano de 14 anos 13%. No entanto, para a grande maio-
de idade, natural de Chicago, foi ria deles, a renda anual média não pas-
assassinado no estado de Mis- sa de US$ 43,3 mil, e aproximadamente
sissippi, onde estava visitando mem- 11 milhões vivem na pobreza.3
bros de sua família. Seus dois assassi- Assim, não só o êxito de uma mino-
nos brancos foram detidos e julgados; ria não ajuda a maioria, mas participa
o júri precisou de uma hora para dar de um processo que a prejudica. Em
seu veredicto: “não são culpados”. nome da justiça social, constrói-se
Essa morte não tinha nada diferen- uma solidariedade racial imaginária,
te do habitual: a abolição da segrega- que gostaria que o sucesso de alguns
ção racial pela Suprema Corte, em negros – os que têm acesso ao Whitney,
1954, tinha desencadeado uma onda estudam em universidades de prestí-
de resistência, muitas vezes violenta. A gio e integram a classe média superior
singularidade da questão está, sobre- – representasse uma vitória para a
tudo, no fato de seus autores terem si- grande maioria dos negros que não
do julgados e de isso ter provocado tem esses benefícios. O absurdo de um
uma onda de reações no país, princi- raciocínio como esse salta aos olhos lo-
palmente graças à decisão tomada pe- go que aplicado aos brancos: os artis-
la mãe de Emmett Till de realizar o fu- tas brancos que não conseguem expor
neral com o caixão aberto: “É preciso Protesto diante do Whitney Museum pede a retirada da obra Open Casket do museu suas obras na Bienal do Whitney se
que as pessoas vejam o que fizeram sentem representados pelos seleciona-
com meu filho”, explicou. Assim, as fo- para, lá, “recuperar sua imagem”. Be- “instituições de prestígio como o dos? Os brancos pobres se orgulham
tografias de seu rosto torturado deram loufa decidiu, finalmente, não exibi-la. Whitney”, um espaço que poderia ter da existência dos brancos ricos? Não,
a volta nos Estados Unidos. Recapitulemos: em 1955, foi feito pertencido aos artistas negros. O que isso é evidente. Que algumas pessoas
Em março de 2017, a Bienal do um esforço coletivo para que o maior deixa Parker Bright irritado é que o brancas sejam ricas, enquanto a maior
Whitney Museum of American Art, lo- número possível de pessoas visse uma “debate sobre a injustiça racial no parte é pobre, não constitui uma solu-
calizado em Manhattan, expôs um fotografia de Emmett Till; atualmen- meio do mundo artístico” que ele lan- ção, mas o centro do problema.
quadro da artista branca Dana Schutz te, é feita uma mobilização para que çou “enquanto artista negro” seja Esse problema desaparece como
intitulado Open Casket (“caixão aber- ninguém veja uma pintura que mos- “apropriado” por um artista que não é por milagre no momento em que es-
to”), que um crítico descreveu como tra Emmett Till. As manifestações não negro para uma exposição no Palais critoras como Hannah Black tentam
“uma réplica marcante, por meio de se baseiam na natureza da imagem, de Tokyo. Em outras palavras, a partir provar a incapacidade dos brancos de
uma pintura, da fotografia tristemente mas na identidade de sua autora: “Os do momento em que “instituições de compreender o sacrifício da mãe de
famosa de Emmett Till desfigurado ti- artistas brancos [...] lucram com o elite, majoritariamente brancas”, pro- Emmett Till nestes termos: “Os negros
rada na época de seu funeral”. Ora, a traumatismo negro, com a morte dos movem obras antirracistas, deveriam continuam a morrer nas mãos dos su-
obra não foi recebida como uma arma negros e a dor dos negros”, lamenta a fazê-lo dedicando seus recursos so- premacistas brancos, as comunidades
complementar das lutas atuais contra jornalista Zeba Blay.1 Hannah Black mente às vítimas do racismo. Se há negras continuam a viver em uma po-
o racismo, mas como uma forma de ra- escreveu que a mãe de Emmett Till quem deva “lucrar” com o sofrimento breza extrema a alguns passos do mu-
cismo. A artista britânica Hannah tornou o semblante de seu filho “dis- negro, são os próprios negros. seu que expõe essa obra de valor...”. To-
Black publicou uma carta aberta pe- ponível para os negros, a fim de que Essa oposição à apropriação cultu- dos os que enriqueceram graças ao
dindo a retirada do quadro, diante do ele lhes servisse de inspiração e adver- ral se alia então com a reivindicação de capitalismo não têm nada a dizer so-
qual espectadores se juntavam para tência. [...] As pessoas que não são ne- um capital social. Essas lutas revelam, bre um discurso como esse, que sugere
protestar. Eventos análogos ocorreram gras devem aceitar que jamais pode- de certo modo, o avanço impressio- que a pobreza somente constitui um
em Saint-Louis contra obras que utili- rão reproduzir nem compreender esse nante da privatização de tudo – inclu- escândalo se resultar do racismo. Em
zavam fotografias de manifestantes gesto. [...] A pessoa de Schutz não está sive do sofrimento. Elas representam outras palavras, mesmo que a contro-
negros assassinados pela polícia em em questão”.2 Em síntese, a dor negra também uma variação de um tema fa- vérsia atual em torno da “apropriação
Selma, em 1965, e em Minneapolis pertence aos artistas negros. miliar: a justiça racial seria dissolvida cultural” definitivamente traduza
contra uma instalação em memória da Ou então, para ser mais preciso: na igualdade do acesso às instituições apenas a reivindicação de uma espé-
execução de 38 índios de Dakota em “Não é aceitável que um branco lucre da elite, uma reivindicação que sempre cie de “renda racial” por uma pequena
1862. O escândalo atravessou o Atlânti- com o sofrimento dos negros...”. Dana desempenhou um papel importante fração da burguesia negra, na realida-
co. Em fevereiro de 2018, o artista ne- Schutz foi acusada de racismo não por no movimento dos direitos civis nos de ela beneficia toda a burguesia – e,
gro Parker Bright, que havia se mani- defender o assassinato de Emmett Till Estados Unidos, com resultados previ- portanto, principalmente os brancos.
festado no Whitney contra o quadro (desse ponto de vista, Open Casket é síveis. A parte dos afro-americanos na O caixão aberto de Emmett Till re-
Open Casket, descobriu que uma foto- mais consensual ainda porque, hoje classe média superior, na ausência da presenta o totem perfeito para a pieda-
© Alec Perkins/cc

grafia dele se encontrava na exposição em dia, ninguém desculpa esse assas- elite, progrediu: 21% deles ganham no de neoliberal de esquerda. Aos artistas
do artista franco-argelino Neil Beloufa sinato), mas por enriquecer graças a mínimo US$ 75 mil dólares por ano, brancos, ele fornece a oportunidade de
no Palais de Tokyo. Muito irritado, ele ele, talvez não diretamente (a artista uma porcentagem que mais que do- se lamentarem por uma vítima da su-
lançou uma campanha de financia- anunciou que seu quadro não estava à brou entre 1970 e 2014. A proporção de premacia branca, que eles sinceramen-
mento colaborativo a fim de ir a Paris venda), e por ocupar um lugar em afro-americanos que recebem mais de te execram; para os artistas negros, es-
MAIO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 35

se luto sustentado ostensivamente por gação da morte de Emmett Till, acusar, em 2016, Bernie Sanders, então uma vez que Sanders encarnava o que
brancos marca sobretudo a perpetua- obtiveram de seus sindicatos recursos candidato à eleição primária demo- a política norte-americana tinha de
ção da supremacia branca que causou para “comprar provisões para a famí- crata, de ser “um comunista convicto” mais “socialista” (sem chegar até o co-
sua morte. Nos dois casos, o conflito lia Till”. Eles estiveram também ao la- porque havia trabalhado para o UPWA munismo). A esquerda não estava in-
entre ricos e pobres desaparece por trás do da mãe de Till quando o corpo de quando estudava em Chicago. Uma teiramente equivocada, uma vez que o
da luta contra a supremacia branca, lu- seu filho foi repatriado para Chicago. parcela da esquerda radical, por sua antirracismo suplantou tanto o anti-
ta que se reduz, no caso específico, a “Quando a tampa foi aberta, todo vez, o criticou por se preocupar dema- capitalismo que o desejo de Sanders
determinar quem está habilitado para mundo ficou em estado de choque e siadamente com a economia e não o mobilizar toda a classe popular foi in-
expressar artisticamente sua execração permaneceu sem voz”, contou a sindi- bastante com a justiça racial. terpretado como uma indiferença em
da morte de Emmett Till. calista Arlene Brigham. E prosseguiu: relação aos negros – sentimento que os
No entanto, a intenção original do “Os jornais estavam lá, mas disseram: liberais partidários de Hillary Clinton
caixão aberto era totalmente diferen- ‘Não vamos fotografar...’. Gus Savage tiveram grande alegria em utilizar co-
te. Em seu livro The Blood of Emmett estava lá. Eu lhe pedi que tirasse fo- Para a grande maioria mo instrumento.
Till (Simon & Schuster, 2017), o histo- tos... Ele publicou uma pequena revis- dos negros, a renda
riador Timothy Tyson lembra o fato de ta intitulada O Negro Americano. Foi *Walter Benn Michaels é professor de Lite-
o United Packinghouse Workers of assim que as imagens foram divulga-
anual média não passa ratura da Universidade de Illinois, nos Esta-
America (UPWA) – sindicato que, de das pela primeira vez. Em seguida, to- de US$ 43,3 mil, e dos Unidos, e autor, entre outros livros, de
acordo com a descrição de Tyson, “ca- do mundo começou a publicá-las”. aproximadamente The Beauty of a Social Problem: Photogra-
da vez mais conquista direitos civis” – Pessoas como Arlene Brigham não 11 milhões vivem phy, Autonomy, Economy [A beleza de um
ter enviado uma delegação inter-racial militavam apenas para obter aumento problema social: fotografia, autonomia e eco-
de observadores para acompanhar o dos salários: combatiam o capitalismo
na pobreza nomia], University of Chicago Press, 2015.
processo que inocentou seus assassi- e consideravam que a luta contra esse
1 Zeba Blay, “When white people profit off of black
nos. Tratava-se de um sindicato muito regime econômico estava ligada inex- pain” [Quando os brancos lucram com a dor dos
à esquerda, que militava violentamen- tricavelmente à luta contra o racismo. Uma parte minúscula da verdade negros], HuffPost, 22 mar. 2017.
te contra as condições brutais de tra- A caça aos “vermelhos” durante a contida nessas duas acusações revela 2 “‘The Painting Must Go’: Hannah Black pens open
letter to the Whitney about controversial Biennial
balho impostas nos grandes abate- Guerra Fria eliminou os mais radicais a que ponto o que está em jogo na luta work” [“A pintura tem de sair”: Hannah Black es-
douros e contra as leis segregacionistas do sindicato e apagou o comunismo social oscilou da apropriação do tra- creve carta aberta para o Whitney sobre o contro-
em vigor no sul naquela época. E fo- defendido por eles. Não o suficiente, balho operário para a apropriação da vertido trabalho da Bienal], Art News, Nova York,
21 mar. 2017.
ram dois membros do UPWA e do Par- todavia, para impedir o New York Post, cultura de uma comunidade. A direita 3 The New York Times, 1º fev. 2016, e Pew Research
tido Comunista que, diante da divul- pertencente a Rupert Murdoch, de não estava inteiramente equivocada, Center, Washington, DC, 22 jun. 2016.
36 Le Monde Diplomatique Brasil MAIO 2018

ENTREVISTA MARTINHO DA VILA

“Você vê uma foto do governo


atual e não encontra negros”
Aos 80 anos, o sambista Martinho da Vila afirma que debate racial acontece,
mas ressalta que situação do negro no país está distante do ideal
POR GUILHERME HENRIQUE*

O
sol que castiga o gramado dos cias literárias que permeiam seus de- Sensibilizar, sem dúvida. A músi- Martinho, você sempre gravou
campos de golfe do condomínio zesseis livros e a atuação como embai- ca é boa quando toca a pessoa. Na ar- muitos CDs, quase um por ano desde
de alto padrão localizado na xador da Comunidade dos Países de te, por exemplo, há um quadro famo- que começou a carreira, no fim da dé-
Avenida Lúcio Costa, na Barra Língua Portuguesa (CPLP) no Brasil. so, elogiado por todos, e às vezes eu cada de 1960. Recentemente, no en-
da Tijuca, zona oeste do Rio de Janeiro, não acho nada especial nele. Mas, se tanto, afirmou que já não vale a pena
parece não alcançar os andares mais LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL eu passar por ele duas, três vezes, e esse formato de veiculação. Essa mu-
altos do prédio em que vive Martinho – Certa vez, você afirmou que o samba aquela pintura me fizer pensar, sentir dança tem impactado seu trabalho?
da Vila. O amplo apartamento do ar- “às vezes é tratado como coisa nova, algo, então ela alcançou seu objetivo, Impacta muito. Fiz um disco este
tista é arejado e fresco, sem os incômo- às vezes como coisa antiga”. Qual mo- porque ela sensibiliza. A função da ano, o Alô, Vila Isabeeeel!!!, e valeu a
dos do calor externo. mento estamos vivendo? arte não é agradar só aos olhos ou aos pena, porque ele não é comum. Esse
Poucos móveis compõem a sala do MARTINHO DA VILA – O samba está ouvidos. Nos meus shows, tem muita trabalho foi feito para a Vila Isabel,
cantor, predominantemente branca, sendo tratado como novidade. Tem gente que vibra, se emociona, porque contando sua história, quase um do-
com livros espalhados pelo cômodo. uma juventude boa, que está descobrin- ouviu a música que ama. Há aquele cumento histórico. Aí vale a pena.
Na mesa central, uma obra que traz Fi- do o samba, fazendo coisas diferentes. que não conhecia essa mesma can- Mas, de resto, não interessa mais para
del Castro na capa. O título apresenta ção e fica parado, sem se mexer, meio as gravadoras. Elas precisam fazer um
imagens variadas do líder da Revolu- O que você tem ouvido no samba? que espantado. E tem aquela pessoa investimento que não tem o retorno
ção Cubana, falecido em 2016, aos 90 Algo que tem chamado sua atenção? que chora de emoção... Se você se esperado. Hoje é tudo digital. A maio-
anos. “Estive lá na década de 1980. Tenho o conceito de que é o crítico sensibiliza, faz o outro pensar e abre ria das gravadoras nem funciona mais
Gostei muito de Havana e Varadero. As de música que precisa falar se algo é a mente dele. como gravadora. Elas costumam gra-
praias são lindas”, relembra Martinho. bom ou ruim. Música, poesia, você var um artista que é importante, que já
Na varanda estão o computador e o gosta ou não gosta. Não dá para dizer rendeu muito, com sucesso, que ainda
sofá. O sambista se acomoda entre as al- se é ruim ou bom. O que é bom para “Estamos voltando tem moral. Fora isso, as gravadoras não
mofadas e dá as costas para a vista pri- mim pode ser ruim para outra pessoa. produzem mais: elas só distribuem.
vilegiada do mar carioca. Vestindo cal- Tem coisas de que eu não gosto e gran-
ao tempo do Atualmente, o artista que for fazer um
ça preta, camiseta azul com o título de de parte gosta. compacto simples, disco vai ter que produzi-lo e arcar
seu último álbum (Alô, Vila Isabeeeel!!!) que trazia com os custos de tudo. Quando o tra-
e chinelo, Martinho da Vila une a expe- Você já disse que não há nada mais duas músicas, balho está pronto, ele leva à gravadora
riência de seus 80 e a malemolência ca- político que o samba. O estilo tem de- e mostra o resultado. Se a gravadora
racterística quando o tema é a política sempenhado esse papel? Qual é o mo-
uma de cada aceita, ótimo, porque significa que ela
nacional. “Confesso que estou desli- mento da MPB nesse aspecto? lado do vinil” vai distribuir o álbum e fazer um proje-
zando, escorregando desses assuntos. Sempre fez isso. A música e o com- to de marketing. Mas a empresa não
Não acredito no governo brasileiro e positor são influenciados pelo tempo e vai reembolsá-lo pelo que o artista gas-
nos poderes institucionais”, admite. meio em que vivem. Ele fala das coisas tou. Estamos voltando ao tempo do
Quando o assunto é música, no en- que estão acontecendo, relatando se- Há quem diga que a música, atual- compacto simples, que trazia duas
tanto, Martinho abre o leque de consi- gundo sua ótica, e isso é uma atividade mente, é feita da mesma maneira, músicas, uma de cada lado do vinil. Se
derações acerca da indústria fonográ- política. O repentista nordestino, às com o advento da tecnologia. Você o compacto vendesse, aí gravávamos
fica e da produção atual. “Tem hora vezes pouco letrado, faz os repentes sempre diz que não se pode perder a algo maior. E tem outra coisa: gravar
que a música boa incomoda. As pes- com uma força política enorme. E não melodia e que isso tem faltado. Como não significa que vai tocar, porque o rá-
soas, em muitos momentos, não que- é uma política engajada. A música não equilibrar as duas coisas? dio é outro problema... Fora isso tem a
rem ouvir nada que seja bom, não que- deve ser engajada politicamente, por- É difícil. Tem hora que a música internet, as mídias sociais. Se tudo der
rem pensar”, explica. Dono de uma que música é arte. Você precisa fazer boa incomoda. As pessoas, em muitos certo, aí você faz um disco. O que a
discografia extensa, iniciada em 1969 arte. Se ela serve para política ou ou- momentos, não querem ouvir nada Sony fez comigo foi quase um mimo.
e composta por mais de cinquenta tra- tras coisas, fica em segundo plano. que seja bom, não querem pensar. Elas
balhos, ele já não vê sentido em gravar Não se pode fazer intencionalmente, não vão a um espetáculo para ver uma Na música “Sempre a sonhar”, que
discos como antigamente. O último senão vira panfletagem. O próprio proposta do show, a mensagem que ele está no álbum mais recente, há um
álbum foi “um mimo da Sony”, garan- criador pode mudar seu pensamento carrega, a riqueza melódica da música, trecho que diz que “um dia o morro
te, ciente de que o alcance do produto ao longo do tempo. O artista, de ma- a sua poética, o bom desempenho do vai descer em uma tremenda euforia”.
não será o mesmo de anos anteriores. neira geral, deve fazer arte. artista, da voz, da banda. Querem ir ao Como você analisa as transformações
Ao Le Monde Diplomatique Brasil, show para pular, gritar, sem se preocu- urbanísticas do Rio de Janeiro nos úl-
Martinho da Vila ainda discorreu so- Em entrevista recente ao Le Monde par com nada. Não há um método pa- timos anos?
bre as transformações sociais ocorri- Diplomatique Brasil [jan. 2018], Ma- ra reverter isso. A única coisa que pode Esse assunto dá uma palestra de
das no Rio de Janeiro nos últimos anos, no Brown falou sobre a diferença en- trazer a atenção do público para a mú- três horas... Enfim, tudo avançou. Você
a intervenção federal que acontece na tre fazer música para conscientizar e sica mais elaborada é o sucesso que ela não pode dizer que o Rio de Janeiro do
cidade, o protagonismo do negro na sensibilizar. Entre esses dois “estilos”, faz. A partir daí as pessoas podem vol- passado era melhor que o atual, por-
formação cultural do país, as influên- o que a música faz com mais eficácia? tar a consumir isso. que não era. O passado dificilmente é
MAIO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 37

melhor que o presente. As pessoas fa- foto do governo atual e não vê negros,
lam “ah, quando eu morava naquele não há ministros negros. É preciso
subúrbio, com os meus amigos, com o dizer que avançamos pelo fato de dis-
meu barbeiro, era tão bom”, mas hoje cutirmos isso, algo que não acontecia
tá morando na Barra da Tijuca. Aí você no passado. O debate está nas univer-
pergunta se ele quer voltar para o su- sidades. O que falta é a representa-
búrbio e ele não quer. Quando eu mo- ção. Olhar as instâncias públicas e
rava na favela, havia os sambas que fa- ver isso, seja na esfera federal, esta-
lavam do barracão de zinco. A realidade dual ou municipal.
é outra, mudou. Não tinha luz, agora
tem. Mas eles continuam no abando- Você falou há pouco sobre pessi-
no, como antigamente. Só que agora mismo e eu me lembrei de uma frase
com alguns benefícios. Nós temos do José Saramago, que sentia aflição
duas cidades distintas no Rio de Janei- por entrar em um mundo injusto e
ro: uma de quem mora no morro e nas sair dele ainda mais injusto. Aos 80
periferias, e a cidade de quem mora no anos, qual é sua reflexão acerca do fu-

© Henrique Gandolfo
meio disso, bem distante da realidade. turo para seus filhos, netos, na ques-
tão do racismo?
Qual é sua opinião sobre a inter- A reflexão acontece e, muitas vezes,
venção federal? o sentimento é de tristeza. Essa inclu-
Confesso que estou deslizando, es- são ainda está muito distante no Brasil.
corregando desses assuntos políticos Não a vejo próxima. Mas eu acredito
do momento. Não acredito no governo que seus filhos, por exemplo, vão en- Martinho da Vila: “Estou aqui vivendo, fazendo minhas coisas, tranquilo, navegando neste
brasileiro e nos poderes institucio- contrar uma situação melhor, porque mundo complicado, neste Brasil difícil”
nais. Não acredito na integridade do tudo está sendo discutido. Olha a gente
Supremo Tribunal Federal (STF). Tu- aqui, falando disso. Esse papo já é uma
do está girando em torno do marke- ação. O ideal dessa relação ainda está faz dele o foco da companhia. Ela in- todo mundo deve colaborar de modo
ting político, então a tendência é dizer distante e vai demorar para chegarmos veste, trabalha, faz projeto de marke- igual. Alguns países não podem cola-
que isso não é boa coisa, que é mais lá, mas estamos no caminho. ting. Eu gosto de entrar numa livraria borar muito, e outros, que podem, não
uma jogada. A verdade é que não que- e pegar um livro aleatoriamente. o fazem. Os adeptos da lusofonia têm
ro saber muito... Você não tem mais Você é filiado ao PCdoB, apesar de que lutar para que isso se fortaleça.
em quem confiar na política. Ao mes- não ser militante. É uma forma de Qual é o peso da literatura em sua
mo tempo, pela minha personalidade, exercer cidadania? Qual é o nível da escrita musical? Essas duas coisas se Ainda sobre a lusofonia, há poucos
não posso ser pessimista e dizer que participação popular para resolver os conversam ou são processos criativos escritores africanos que fazem sucesso
não há saída para o Brasil. Mas eu não problemas políticos do país? distintos? no Brasil...
vejo um caminho. Não me filiei para ser militante, Eu não gosto de fazer juntos. Me Mas o objetivo é chegar a isso, a esse
participar das ações do partido ou me planejo para começar um álbum e ter- intercâmbio. Quando eu trouxe o Canto
Em “Brasil mulato”, um verso diz: candidatar a algum cargo público. Foi miná-lo antes de iniciar outra coisa. Livre de Angola, nunca uma delegação
“branquinha, faça com ele a sua mis- para incentivar as pessoas a se filia- Literatura e composição musical são de um país africano havia visitado o
cigenação”, para em seguida afirmar rem a algum partido. É verdade que processos bem distintos, e cada um Brasil. A música angolana, africana, pa-
que “o Brasil de amanhã será lindo”. nossos partidos não têm uma linha tem uma forma. Há escritores que fi- ra entrar aqui, é uma dificuldade gigan-
Como estamos no debate sobre o ra- bem definida... Não dá para dizer qual cam reclusos para fazer um livro. Há tesca. No meu tempo, não se falava na-
cismo, a miscigenação e a integração é a ideologia dos partidos que temos, algum tempo estive com a Nélida da disso. O continente africano mal
do negro na sociedade? isso não funciona mais. Agora, o cida- Piñon [escritora brasileira] e ela estava aparecia nos livros. Ainda tem muito
Tenho um pensamento sempre dão que não é ligado a nada se torna, indo a Portugal para escrever um livro. pouco, mas você já consegue encontrar
otimista. Esses, os otimistas, muda- como dizemos na linguagem popular, Eu já não tenho muito isso. Escrevo em algumas coisas.
ram o mundo. Os pessimistas não o “defunto barato”. Quando ele per- qualquer lugar.
mudaram nada, porque eles não tence a uma organização, até mesmo Para encerrar, há uma crônica sua
acreditam em nada. A tendência é uma escola de samba, ele já tem gente Você esteve sempre relacionado do livro Conversas cariocas cujo tema
que avancemos nesse debate e nessa com ele. Filiado a um partido, o cida- com a CPLP [Comunidade dos Países é sonhar. Você descreve a importância
integração. Os primeiros militantes dão pode ir às reuniões, opinar, se de Língua Portuguesa]. Em entrevista do sonho para a vida. Queria saber
do movimento negro foram aqueles candidatar e interagir. ao site do Le Monde Diplomatique quais são seus sonhos aos 80 anos.
que tinham coragem de reclamar, de Brasil [14 mar. 2017], o escritor ango- Sonhar é sempre bom. Quem não
questionar. O negro estava em um Você tem um disco chamado Rosa lano Pepetela afirmou que a união en- sonha não realiza. Quem sonha baixo
emprego e, se ele reclamasse de algo, do povo, em alusão ao livro de Carlos tre os países só ocorre quando há inte- realiza baixo. Não tenho grandes so-
era punido. Depois da reclamação Drummond de Andrade. Há outro es- resses envolvidos. Qual é sua opinião nhos, porque sempre trabalhei com
veio a fase de protestar, com Abdias critor que você leia muito? sobre isso? oportunidade. Não fico sonhando mil
Nascimento [1914-2011, escritor e ati- Gosto de Machado de Assis. Come- Em termos de CPLP, Portugal está coisas ao mesmo tempo. Estou aqui vi-
vista] e toda aquela turma. Em segui- cei nesse negócio de literatura por na frente, apesar de acharem que eles vendo, fazendo minhas coisas, tranqui-
da, veio o período em que as pessoas causa dele, depois de estudar sua vida não estão interessados nesse processo. lo, navegando neste mundo complica-
tiveram que aceitar a relevância do e obra para um enredo de escola de A sede está lá, inclusive. Por exemplo: do, neste Brasil difícil. Uma pessoa com
negro para a sociedade brasileira, pa- samba. Li muito Machado e Jorge de em Portugal há canais de televisão pa- 80 anos, atualmente, ainda está jovem.
ra a formação da identidade do país. Lima. Mas não tem aquele que seja o ra o público africano, algo que não Tenho lenha para queimar. Não posso
Tiveram que assimilar a nossa im- principal, o meu guru. Tem grandes existe aqui. O Brasil poderia ser mais ficar pensando em quanto tempo ainda
portância cultural, não só na música nomes da literatura, famosos interna- participativo, mas não é. A CPLP ainda tenho. Antigamente as pessoas que-
popular, mas nas artes em geral, re- cionalmente, e com os quais eu não não está forte, porque são países muito riam envelhecer para fazer algo. Isso
conhecendo nomes como Machado tenho nenhuma ligação, não li ainda. distintos. Nem tanto em termos cultu- mudou, a ciência evoluiu. O tempo está
de Assis, Aleijadinho e tantos outros. A verdade é que não gosto muito de ler rais, mas em termos sociais. Há dife- a meu favor.
Agora, estamos na fase de ocupar os best-seller... Geralmente o best-seller rença entre Brasil e Angola, Brasil e
postos. Falando popularmente: o di- está envolvido no esquema da editora, Moçambique, Portugal e Guiné-Bis-
reito ao trabalho. Há empresas que que tem o livro como um produto de sau... É difícil equalizar isso em uma
não empregam negros. Você vê uma renda. Então, a editora tem um livro e organização na qual, teoricamente, *Guilherme Henrique é jornalista.
38 Le Monde Diplomatique Brasil MAIO 2018

MISCELÂNEA

livro filme internet


DO CORPO AO PÓ: O PROCESSO NOVAS NARRATIVAS DA WEB
CRÔNICAS DA Direção de Maria Augusta Ramos Sites e projetos que merecem o seu tempo
TERRITORIALIDADE
KAIOWÁ E GUARANI
NAS ADJACÊNCIAS
DA MORTE
E xtremamente didático em relação às enfa-
donhas discussões sobre as pedaladas fis-
cais, o documentário explica com clareza o que
UM ROBÔ CONTRA O PORN REVENGE
Fabi Grossi, uma menina de 21 anos, foi vítima
de porn revenge. Se você procurar a página
Bruno Morais, ninguém conseguiu ou teve espaço para expli- dela no Facebook e mandar uma mensagem,
Editora Elefante car: não foram as manobras fiscais que derru- ela vai te contar tudo. Contará que está depri-
baram a presidenta Dilma Rousseff. O processo mida e, dependendo do que você disser, ela irá
(o concreto, não o filme) foi uma mera formali- ou não cometer suicídio. Fabi Grossi não é uma

C omo manter mundos de pé em meio ao


massacre? Talvez seja essa a pergunta que
perpassa o livro de Bruno Morais. A morte, que
dade para a concreção de algo mais brutal.
Livre das blindagens midiáticas, os perpetra-
dores do impeachment ganham outra dimen-
pessoa real, mas uma campanha do Unicef que
instalou um robô de inteligência artificial base-
ado em histórias similares, para conscientizar
aparece já no título da obra, acompanha os in- são. As performances ao longo das sessões jovens por meio do chat. Tem fotos de uma atriz,
terlocutores do autor cotidianamente, nos mais comprovam, como afirma o filósofo Marcos manda áudios, manda vídeos. A conversa, em
diversos sentidos: da invasão do agronegócio Nobre em entrevista ao El País (10 abr. 2018), geral, dura alguns dias – ou você consegue evi-
aos territórios indígenas, dos corpos feitos vazios um dos aspectos mais nefastos da crise política tar a morte dela ou ela simplesmente para de
pelo trabalho capitalista, dos atropelamentos, das em que nos enfiamos: a tentativa desesperada conversar, deixando o fim subentendido. Os au-
execuções, dos mortos sem corpo para enterrar. de atores irrelevantes de se transformarem em tores, argentinos do Projeto Caretas, chamaram
Se o cenário é aterrador, o principal mérito de relevantes. Dessa perspectiva, o processo (o fil- isso de “peça de ficção por chat”.
Bruno – a bem da verdade, dos Kaiowá e Gua- me e o concreto) acaba quase que por osmose <www.facebook.com/ProjetoCaretas/>
rani – é transformar o convívio cotidiano com dando relevância a tantos outros irrelevantes. A
a morte em pulsões de vida. Tendo o massa- bancada petista ganha uma grandeza que não MONITOR DA VIOLÊNCIA
cre como o estado natural das coisas, é num tem. É irresistível – e deprimente, de qualquer Em 2017, uma pessoa foi assassinada no Brasil
refazer de roçado contra as colheitadeiras, num perspectiva – comparar o estado-maior petis- a cada nove minutos. Foram quase 60 mil mor-
levantar de acampamento de lona na beira da ta de O processo com aquele de Entreatos tes. Uma parceria do G1 com o Núcleo de Es-
estrada, na recusa das regras do jogo que a vida (2004), de João Moreira Salles. Gilberto Car- tudos da Violência da USP e o Fórum Brasileiro
se refaz e se mantém. Habituada com a guerra, valho, um dos sobreviventes do filme sobre as de Segurança Pública começou um mapea-
D. Damiana, uma das principais personagens eleições de 2002, tem no novo documentário mento, via Lei de Acesso à Informação, publica-
do livro, é tudo, menos vítima: continua abrindo uma importante participação, ao elaborar uma do em diversos especiais com dados, vídeos e
sua roça em meio a um cerco perverso da soja, autocrítica feita sob medida para os muitos gru- infografias. Dezenas de jornalistas e pesquisa-
continua cuidando de seus mortos, levantando pos críticos aos governos do PT, mas que se dores fazem parte do processo de apuração e
acampamento, combatendo a disciplina coloni- organizaram nas ruas para tentar barrar o im- levantamento de dados. O resultado é uma das
zadora que tentam impor, sem sucesso, ao seu peachment. A rua, local onde o PT se cons- mais completas reportagens sobre violência no
corpo, à sua terra. É difícil caminhar entre tanta truiu, foi negligenciada, quando não comba- país, com informações atualizadas frequente-
violência sem cair na denúncia que mais conde- tida pelo partido, desde o Entreatos. E a rua mente. Entre os especiais produzidos, um mapa
na do que apoia quem sobrevive a ela. É difícil foi conscientemente deixada de lado durante com todos os casos de mortes violentas duran-
não transformar o texto em uma compilação de o processo (concreto), apesar dos apelos da te uma semana, no Brasil todo. Foram mais de
martírios, retirando de quem vive entre escom- senadora Fátima Bezerra. Só restou José Edu- mil pessoas assassinadas no período.
bros o seu papel. Sem suavizar a violência da ardo Cardozo se iludindo ao acreditar que está <http://g1.globo.com/monitor-da-violencia/>
situação, Bruno não cai nessas tentações. expondo a ilusão da legalidade do processo.
De que substância são feitos os mundos que A contradição entre forma e conteúdo é es- ODIOLÂNDIA
seguem de pé em meio ao massacre? Ao se candalosa para o professor de Direito que não Na videoinstalação Odiolândia, a artista Gi-
propor a discutir questões clássicas da antro- passa de um idiot savant. selle Beiguelman mostra a agressividade nas
pologia, tais como “noção de pessoa” ou “teoria Durante a Revolução Francesa, a fé cega redes contra os dependentes de crack. Foi
da morte” com seus amigos Kaiowá e Guarani, dos constitucionalistas do regime do Diretó- criada para a exposição que inaugurou o Sesc
é mais do que interesse etnológico que parece rio no equilíbrio entre os diversos poderes da da Rua 24 de Maio, em São Paulo. “É um vídeo
mover o autor. Talvez se entendermos do que república os fez negligenciar qualquer recurso sem imagens que reúne comentários publica-
são feitos esses mundos que se mantêm de para o caso de um conflito insolúvel entre os dos nas redes sociais sobre as ações da Pre-
pé poderemos, quem sabe, multiplicá-los entre poderes Executivo e Legislativo. Por outro lado, feitura de São Paulo e do Governo do Estado
nós? Nesse sentido, o livro, em consonância alguns contemporâneos – menos ingênuos que na Cracolândia. Majoritariamente favoráveis
com as escolhas que o autor fez em sua vida, os defensores da versão montesquiana da mão ao tratamento policial da questão e ao uso da
transitando entre a academia e a advocacia/ invisível equilibrista – chegaram mesmo a se força e armas de fogo contra os dependentes,
militância, afilia-se a um tipo de antropologia perguntar se o golpe de Estado não era a úni- elas expressam também o desejo de ver as
que não se pretende restrita aos tratados para ca solução concreta para consecução do ideal mesmas políticas aplicadas a outros grupos.
especialistas, mas aposta na urgência de outros equilíbrio dos poderes. O processo (o concreto Nordestinos, sem-terra e gays são alguns dos
mundos que não este, dominado pelo capital. e o filme) expõe de maneira melancólica o pre- seus alvos”, explica a autora.
Em tempos que o apocalipse parece bater em ço pago pela ingenuidade do PT de acreditar <https://vimeo.com/253899114>
outras portas que não as de sempre, Bruno nos na mão invisível e impessoal que regularia as
lembra quem precisamos saber escutar. relações políticas da República.
[Andre Deak] Diretor do Liquid Media Lab,
[Leila Saraiva] Doutoranda em Antropologia [Fernando Sarti Ferreira] Doutorando do pro- professor de Jornalismo na ESPM, mestre em
pela UnB, militante do Movimento Passe Livre- grama de História Econômica da Universidade Teoria da Comunicação pela ECA-USP e dou-
-DF e assessora política do Inesc. de São Paulo. torando em Design na FAU-USP.
MAIO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 39

CANAL DIRETO SUMÁRIO


LE MONDE

diplomatique
BRASIL

Jair Bolsonaro: o candidato da


(in)segurança pública Ano 11 – Número 130 – Maio 2018
Muito elogioso achar que o Bolsonaro tenha um www.diplomatique.org.br

“horizonte mental”, quando na realidade é um


DIRETORIA
personagem fabricado sob medida para manipu- Diretor da edição brasileira e editor-chefe
lar gente ignorante, que não enxerga um palmo à 2 1968-2018
Maio, uma esperança no oceano
Silvio Caccia Bava
Diretores
frente do próprio nariz. Anna Luiza Salles Souto, Maria Elizabeth Grimberg e
Por Serge Halimi
Thiago Abreu Rubens Naves

Ótimo texto! Gostaria de entender como a interven- 3 EDITORIAL


Nossos sonhos não cabem nas vossas urnas
Editor
Luís Brasilino

ção federal pode ao mesmo tempo projetar os mili- Por Silvio Caccia Bava Editor-web
tares no cenário político e desarmar o Bolsonaro. As Cristiano Navarro

retóricas das duas partes não são as mesmas? 4 CAPA


A intervenção de interesses privados
Editores de Arte
Gabriel Biajoli Adriana Fernandes e Daniel Kondo
na segurança pública no Rio de Janeiro
Por Carolina Christoph Grillo e Daniel Veloso Hirata Estagiária
Quem controla a notícia no Brasil? A volta da violência política no Brasil Taís Ilhéu

Até que enfim surge uma reportagem sobre a má- Por Anne Vigna Revisão
fia desses canalhas que ameaçam a democracia Democracia e barbárie Lara Milani e Maitê Ribeiro

brasileira. Por Marcelo Freixo


Gestão Administrativa e Financeira
Jose Luiz Almeida Arlete Martins
10 AGENDA URBANA
Projetar cidades com a sociedade Assinaturas
É sobre isso que trata a regulação da mídia que Por Ermínia Maricato, Karina Leitão, Lizete Rubano, Viviane Alves

funciona no mundo inteiro, menos no Brasil. Margareth M. Uemura, Paolo Colosso e Carina Serra Tradutores desta edição
Lidi Lee Carolina M. de Paula, Frank de Oliveira,

11 MUTAÇÕES Lívia Chede Almendary, Rita Grillo e Wanda Brant


A outra margem da política
Capa Conselho Editorial
Por Adauto Novaes Adauto Novaes, Amâncio Friaça, Anna Luiza Salles
Já falei que vocês do Le Monde Diplomatique são Souto, Ariovaldo Ramos, Betty Mindlin, Claudius
maravilhosos! Mais uma capa, mais um tapa. Ceccon, Eduardo Fagnani, Heródoto Barbeiro, Igor

Vanessa Lopes 12 QUEBRA-CABEÇA GEOPOLÍTICO


O que os russos querem no Oriente Médio?
Fuser, Ivan Giannini, Jacques Pena, Jorge Eduardo S.
Durão, Jorge Romano, José Luis Goldfarb, Ladislau
Por Nikolai Kozhanov Dowbor, Maria Elizabeth Grimberg, Nabil Bonduki,
Raquel Rolnik, Ricardo Musse, Rubens Naves, Sebastião
A Justiça no centro da crise política Salgado, Tania Bacelar de Araújo e Vera da Silva Telles.
Um sistema judiciário que tem lado já é, por si só, 14 OS IMPASSES DA ESQUERDA NORTE-AMERICANA
Como o Russiagate cega os democratas Apoiadores da campanha de financiamento coletivo
uma injustiça. É triste percebermos que no Brasil a Por Aaron Maté Henrique Botelho Frota, Pedro Luiz Gonçalves Fuschino,
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críticas e sugestões para diplomatique@diplomatique.org.br Por Walter Benn Michaels Le Monde diplomatique
As cartas são publicadas por ordem de recebimento e, 1 avenue Stephen-Pichon, 75013 Paris, France
se necessário, resumidas para a publicação. secretariat@monde-diplomatique.fr

Os artigos assinados refletem o ponto de vista de seus 36 ENTREVISTA MARTINHO DA VILA


“Você vê uma foto do governo atual e não encontra negros”
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autores. E não, necessariamente, a opinião da coordenação Por Guilherme Henrique Em julho de 2015, o Le Monde diplomatique contava com 37
do periódico. edições internacionais em 20 línguas: 32 edições impressas e 5
eletrônicas.

Capa: © Rodrigo Leão


38 MISCELÂNEA
ISSN: 1981-7525
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