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SOMBRAS D`ALMA

Renato Almeida

2017

LIVRARIA VIRTUAL NUOVAH LETURA


Composição: Renato Almeida
Revisão : Never Filho e Renato Almeida
Capa: Cristiano Almeida

Poemas escritos entre 2006 e 2016.

À professora Luzia, e a todos que ajudaram a construir esse labirinto


de ideias doentias.
ÍNDICE

LIVRO I
SOMBRAS
POLAROIDS
VELEIRO
CHAMADO
PALÍNDROMO
ÚLTIMO VÔO
EPITÁFIO
SOCIEDADE DOS POETAS MALDITOS
ESCRITA SEM NOME
O ERRO
PÚSTULAS
A TORRE
RETRATO DE UMA MANHÃ PERFEITA
DIONÍSIO
MARCHA FÚNEBRE
SONETO DOS VITRAIS SILENCIOSOS
AMUSA
LOW
HAIKAIS DE SOMBRAS
MIRANTE DAS ILUSÕES
RESPOSTA MAIS QUE SINCERA AO REI D'ESPANHA
REQUIEM PARA UM SONHO
WHEN AUTUMN COMES
DO CAIR DAS FOLHAS SECAS
DE COSTAS PARA O MUNDO
UMA NOITE ESCURA EM ST. FLORIAN
CONFISSÕES
LIVRO II

D'ALMA

DEIXA
TOQUE DE ÂNGELUS
GUILHETA
DEVANEIO
NOTURNO
ESCULTURAS
DESERTOS
PLATEAU
SONETO IRREGULAR PARA UMA SAUDADE IRREGULAR
DIVAGAÇÃO
HAIKAIS D'ALMA
ELA
APENAS MAIS
TRAÇOS
DE ESTAÇÃO PARA ESTAÇÃO
ODE AOS PEQUENINOS
UM NOVO DESCOBRIR
M30
ALVORADA
CARTA AO CRIADOR
ENTRE EU E BRUCKNER
O EXPRESSO DO AMANHÃ
AOS IRMÃOS DE HELIÓPOLIS
ÓRION
FICA COM ESSAS CANÇÕES PARA TI
LIVRO I

SOMBRAS
POLAROIDS
Edifico construções
Em pequenos blocos
Solitários e frios
Concreto e laje

Cantigas soam falsas


Retratando a inocência
E fujo dos camponeses
Conformados em massa

É onde cantam toadas


É na praça molhada de chuva
Nos bancos recheados
De confete e glacê

É que eu quero ver a tarde calma


Por entre verdes árvores
E não em blocos de vidro,
Que voam, ah! Como voam de verdade

Calado e sentindo
O que se passa ao meu redor
Guardo tudo em minha memórias
Como fotografia velha e amarela.
VELEIRO
Ando
Sem destino ou rumo
Tal como um veleiro
Perdido
Esperando pelas ondas
Que irão me levar
De volta pra casa
Ou me farão descansar
No silêncio do fundo do mar.
CHAMADO
Vamos despir o nosso sentir
Vamos cuspir a arte em versos
Para que os homens
Não vejam nossa loucura
Que é mansa e doce
Amarga fosse
Seria amargo de vinho
Inebriante é acalanto d`alma
Deixa tudo como está
Grita tua própria dor
Mostra como é imunda
A arte como a qual compactuamos.
PALÍNDROMO
Viver é como um palíndromo,
De busca e meios,
Até onde os confins,
Se perdem em inexatidão,
Perante a razão,
Calada e inerte,
Dos bêbados e loucos

De antemão,
Que fiquem calados,
Os sensatos,
Os centrados,
E aqueles que não entendem,
O sentido minimalista,
Da vida e do sentir.
ÚLTIMO VÔO
Roubaram-te o azul
O céu encobre-te em cinza
Com um brilho funesto e púrpura
Da tempestade que se aproxima

Rogaram-te uma voz alegre


Com entonação suave e doce
De uma tarde lúgubre e amarga
Do cansaço que não se traga

No alto da montanha
Eu vi o rio que corria
Abaixo do sol
No alto da montanha
Eu vi o entardecer, belo
E é um devaneio sereno

Eu me vi imaculado
Profano que sou, perdido entre os santos
Engraçado que sou
Sorri amarelo para os serafins
Afim
De que por simpatia
Me fosse reservado
Um lugar entre os deuses.
EPITÁFIO
Há um refúgio
Há uma segunda chance?
Há um porto seguro
Há um instante
Há sempre o instante
Dos poetas
Dos loucos
Dos que amam demais
Dos que amam de menos
Dos que nunca amaram
Antes beirar o parapeito
Que a sanidade
Tendo fim o ato
O vazio é eterno momento
Preenche sem nada possuir
A vacuidade vazia e oblíqua do esquecimento
Sombras não são mais tormento
Desde que decidi não mais sentir

Saudades
Estarei por fim livre
Sem motivos
Pra rir ou chorar
Sem melancolia, nostalgia ou tristeza

Hoje voltarei ao meu lar


Quero ser bem recebido.
SOCIEDADE DOS POETAS MALDITOS
Ainda há homens
De uma espécie
Em extinção
Poeta maldito
Maldita condição
De ser a pantomina
De um espetáculo real

Um salto no escuro
Obscuro, o caminho do homem
Fantasmas são máculas
Máculas perdidas na vida
Vida, louca metáfora
Que muda com o tempo.
ESCRITA SEM NOME
Forças ocultas
Permeiam o olho
Malignas talvez
Macabras entranhas

-Olha, o sol está apagado!

Tua vida é um fio


Mato-te a cada dia
Roubando tuas esperanças
Apagando as lembranças

-Pare meu amor,


Ou irás me matar tão logo possível!
O ERRO
Toma-te o encanto
Como arma errante
Carrega contigo d`oravante
O riso e não o pranto

Rega a dor com alegria


Dar-lhe de comer sem desprezo
Se presente assim podia
Fazer da amargura muro espesso

E tendo limpa a alma


Fruto de uma vida
Triste, amarga, inerte

Torna-a escura, nunca clara


Com resolução altiva
Pelo malogro que fizestes.
PÚSTULAS
Ei que os miseráveis
Seguem sua marcha
Rumo ao infinito
Subindo em muros
Contemplando o que os arranha-céus
Não podem dar

Uma marcha continua


E desenfreada
Seguindo a rota do acaso
E escassos
São os caminhos
Que não abusam da sorte
Mostre
Se existe algo além
Daquilo que a vida tem
Para oferecer.
A TORRE
I
Eis a torre
Minúcia do tempo
Atenta para os homens
Que lá moraram
Em grande disparate
No meio a falta de luxo
Dos que a olham com miséria
II
Traço a prumo
Com a revolta dos que olham
Para cima
Querendo chegar no alto
E abaixo de si
Para colher lágrimas perdidas
Orvalho de flores
III
O silêncio da torre
É túmulo para quem olha
E do alto se vê
Um doce retrato do tempo
Dos que a olham com miséria.
RETRATO DE UMA MANHÃ PERFEITA
Sangue, suor e chuva
O tempo frio e cinza
O véu que vela a vida
A curva pela lança desferida
Se encerra por aqui
E aí
O tempo voa
Entre gritos entusiasmados
De alegrias e veleidades

Prostíbulos

Santuário do santos
Descanonizados
Palácio em que o compasso
Fechado
Retrato da vida
É um pedaço
Perdido
Do paraíso e do céu
DIONÍSIO
Canto
Encanto
Passo profundo
Mundo escuro
Cinema mudo
Canção surda
Perdido, o mundo
Vida turva
A relva serena
A moça morena
Nasce o sol oriente
E em mim nascente
O desejo profano e a prece terrena
Deus perdeu a inocência
Deus perdeu a paciência
E nos deixou no mundo
Bêbados e imaculados
MARCHA FÚNEBRE
Veja:
Quantas flores no deserto!
Ninguém jamais tirou você de mim
Mesmo,
Que eu te esconda a verdade
Meu bem
Sabes bem
Que meu amor é teu
Só teu

Ah! Que cheiro de agrião, tão doce


E inocente como um vendaval
Quero descansar logo este corpo
E me ver livre finalmente
De tudo isso

Quantas crianças decapitadas!


Tragam seus mortos para o jardim
Morte certa tem
Quem se esquece de viver

E no final
Nosso amor vai ressurgir.
SONETO DOS VITRAIS SILENCIOSOS

Para Flávia Elizabete

Tomei pra mim o momento solene


Que antecede a queda e o abraço
O palpitar profundo e o olhar escasso
E o cais, cujo barco quebrado se prende

Tomei para mim, singelo e doce instante


Em que olhos tímidos e refugiados se encontram
E se assustam os pensamentos que proclamam
A dádiva do não tempo e do porvir adiante

E tendo fitado juntos o vazio


O riso como uma catedral em música
Encontra a luz através de um vitral azul feliz

Deixa maior a certeza da dúvida


Do abismal sentido silencioso
Que todo teu olhar amedrontado diz
AMUSA
Até quando eu
matarei minha arte por ti,
que por mim nunca mataste teu ego?

Até quando eu
matarei a meu eu se por ti
matei a mim mesmo?

Até quando eu
negarei a mim que por ti
neguei a todos?

Até quando eu
suportarei o fardo
que por ti carreguei tão longe?

Até quando eu
sacrificarei meus sonhos se sonhando
realizei os caprichos teus?

Até quando eu
afogarei meus desejos
pela tua apatia sempre estática?

Até quando eu
cantarei o teu canto
e calarei o pranto que trago calado?

Até quando eu
irei ouvir o reverberar
de uma vida tão linda e distante?

Até quando eu
irei escrever poemas
que fale de meus dilemas
como se não fosse eu
mas tu, somente tu
a fonte de meus problemas?
LOW

É quase concreto armado


Sintetizado em descendente
Se abre um novo mundo
Todo sombrio onde antes brilho
Ainda que decadente

É quase espacial
Como ler William Blake
Armado de um sabre de luz

Caroline, Caroline
Porque esse homem te chama?
Para evocar a figura
De todas as crianças em holocausto?

É quase lúdico
É a pedra de Drummond
Não mais no meio do caminho
Mas atirada em outra direção

Onde ninguém se atreve


Onde não se escuta o bater da pedra no chão
Onde só o porvir saberá
A sua elipse real e perfeita.
HAIKAIS DE SOMBRAS

I
O relógio conta
As folhas dançam
E eu me apresso

II
Embate contínuo
Destino tenso
Nuvens carregadas

III
Eu canto meu silêncio
Eu grito qualquer nome
Eu me calo em teus olhos

IV
Todos comentam
Alguns imitam
Nem todos transformam

V
Altivo, o cavaleiro
Ao grito de guerra
Estandartes ao vento

VI
Toma a tua pena
Guarda minhas palavras
Sossega teu pensar

VII
Na penumbra da tarde
Esconde-se o sentido
Destruir o teu medo
MIRANTE DAS ILUSÕES

Do alto de um edifício que do nada surge


Surge uma visão ainda mais ilusória
Tal qual experiência de um homem sem memória
E que tenta em vão lembrar
Com a esperança de se resguardar
De coisas não mais vividas
De fotografias manchadas em púrpura
Sofridas
E que correm como o vento
Fugindo sempre das águas tempestuosas
Que se acalmam em alto mar
Do alto de um mirante eu vejo
O que se pinta com cores cada vez mais fortes
Em tons que parecem tons de sorte
E que batalhas hão de enfrentar
E que desilusões irão se fermentar
Para surgir e morrer ao nascer
Morra o amor e viva o sofrer
E Viva!
Mais uma para guardares
É teu mirante das ilusões
Que criastes como filha bastarda
Não vês como o tempo ja passa
E não te cabe arroubos ou desvarios
Não te cabe mais o direito
Te cabe o silêncio
Nem mesmo os rodopios
De películas na tela a se mostrar
Homem, volta ao teu lugar
Põe teus pés no chão
É hora augusta, austera então
Assassina esses teus sonhos
Esses desejos medonhos
Que ainda nutre a romantizar teu peito
Guarda tudo isso, conta como segredo
A ti somente a ti
Contempla-te a ti
E vê esse vale de ilusões
Que criastes para ti
Somente para ti.
RESPOSTA MAIS QUE SINCERA AO REI
D'ESPANHA

“..., porque simplesmente não consigo enquanto todos falam e depois se


calam, abrir mão do meu direito de não parar de gritar estando calado...”
DO CAIR DAS FOLHAS SECAS

Tal qual silencioso manicômio


As folhas que secas caem
Anunciam sua sorte no outono
E desejam encontrar-se com as demais

Tal qual grito no fundo do mar


Os galhos dançam seus ritos
E macambúzios anunciam alegremente
Um doce assobio e suave pesar

Tal qual o mais dolorido parto


Eu parto para tentar encontrar
Em parte, a parte que me falta
E a falta que me faz o silenciar

Tal qual parque de tapete amarelo


As folhas nas ruas, secas, caem
E anunciam que a chegar mais um inverno
Se sacrificam, e não voltam mais.
DE COSTAS PARA O MUNDO

De costas para o mundo


E ouvindo tudo que me cabe
Eu planejo um grito profundo
Que não me abale
Mas antes que me cale

De costas para o mundo eu tento


E como tento encontrar
Fio de Ariadne
Onde eu possa me guiar

De costas para o mundo


meus sonhos
Encobertos
Por neblina espessa

De costas para o mundo


no meu mundo
eu sou feliz.
UMA NOITE ESCURA EM ST. FLORIAN

“...Não me fales da tua dor meu amigo, eu bem sei o que sentes, cercado de
todo esse turbilhão de sons para calar tua própria voz...
...Não me fales meu amigo, do teu grito preso, a tua dor é minha, porque sei
que cada folha, cada pedra, cada onda espumosa do mar que contas é para
entender teu papel no infinito...
...Não me fales do que sentes meu amigo, a insânia te bate a porta, quase
como irmã te oferece os braços em acalanto, os ouvidos em cantiga...
...Não me fales de tua insegurança meu amigo, pois sou certo do que duvido,
e só me falta um passo para achar um novo mundo...
...Não me fales do que vês meu amigo, pois nunca serei capaz de enxergar,
eu vejo apenas estrelas e tu vê Deus, além de todas essas nebulosas que
mal consigo ver...”
WHEN THE AUTUMN COMES

When the autumn comes


All flowers fall down at the ground
And in the sea
Birds don't sing a song to me
The clouds goes so fast
And leave my mind away from here

I woke up this morning so late


And my clock was stopped
Exactly in the same place where I left it

Remember me
Please, remember me

Look around and tell me all that you see


The clouds goes so fast again
And leave my mind away from here

When our sweets lies don't make it bad


Say me if I'm walking so fast

Remember when that love comes


Remember that all that love is gone.
RÉQUIEM PARA UM SONHO

Deixo aqui escrito


um poema-epitáfio-epílogo
Um suspiro da saudade do futuro já distante
Que torno a imaginar
Como algo demasiado utópico,

Aqui jaz uma série de cartas


E um baralho desde sempre viciado
E até o último momento
Assisto esse jogo de cartas sempre marcadas

Aqui escrito de pena em punho


um réquiem para um sonho
que moribundo renasce
e morre para permanecer vivo.
CONFISSÕES

Como pode tu, ó homem,


Acreditar em vis anis,
Tomar para ti atitude servis,
Que até o mais brando fogo consome?

Como podes amigo,


Gritar tão alto assim,
Calado sempre sem reagir,
Mesmo socado tão forte e contrito?

Mas o silêncio à tarde volta,


Vão as folhas sempre mortas,
Irem até onde o vento as trouxer.

Mas, a palavra que se coloca,


Agita a insânia que súbito bate a porta,
Surgida de uma mentira qualquer.
LIVRO II

D'ALMA
DEIXA
Deixa cair do céu,
Uma coroa de hortelãs,
Que o amargo vira mel,
Virá do mar,

Deixa vir as crianças,


Delas é feito o adeus,
E onde hoje sorris amarelo,
Ressurge o amanhã

Deixa gritar o mar,


O vento manso da manhã,
Que leva a vida sem trazer,
Destino algum,

Deixa vir os pássaros


Retrato da liberdade e do sentir,
Deixa-os pousar aqui,
E irem embora logo depois.
NOTURNO
Brilha a noite,
Calada,
E como brilha a noite,
Serena e silenciosa,
O nosso céu,
O nosso mar,
A luz do luar,
Sem querer saber,
Quem fez as estrelas,
Tão belas e safadas.
GUILHETA
Quando um dia
Liberto desses grilhões,
Eu olhar para trás,
Ei de rir demais,
Da minha parcimônia
E de quão mentecapto fui

Quando um dia
Sentado em algum lugar,
Pensar em algo distante,
Ei de saber o bem
Que sentirei d`ora avante,
Em que ponderar,

Quando um dia...
Quando será o dia...
Em que direi meu nome,
Aos quatro ventos,
Sedento,
De vida e de amor?
DEVANEIO
Que gosto amargo
Tem tua boca
Sabor de passado
Não passado a limpo
Que gosto estranho
Pedaço de limbo
Pedaço de mar
Onde quero navegar
E naufragar
Como um cão possesso
Exorcizando meus males

Que cheiro suave


Tem teu corpo
Santuário de minha volúpia
Leve como o ar
Vejo-te passando
E te acompanho
Olhar atento
Atentando por um aceno
És meu jardim
Refúgio do meu desejo
Resto de devaneio
Que está por vir.
TOQUE DE ÂNGELUS
Na matina ressoa
O sino
E a sina dos fiéis

Manhãs dominicais
E o orvalho

Ah! Como são belas


As fileiras de carolas
Beatas penitentes
Perdendo a razão
Pedindo perdão

Querendo esconder o que fazem


Dos olhos de Deus

E eu

Que sem sorte nada desatina


Fico sempre a olhar

Que toda matina

Ressoa
O sino
E a sina
Dos fiéis
ESCULTURAS
Ah, minha Deusa grega
Em branco gesso e doçura
Em pequena estatura
Sorriso franco
Olhar malicioso
Como vedes, nu
Sem mentiras

Ah, minha Deusa grega


Adoras o canto de Orfeu
E no entanto,
Outro canto rege meus pensamentos

Na academia me vês
A vender papiros
Enquanto tu sois
Acólita dos mestres
E é incontestes

Que te amando
Me calo.
DESERTOS
Os desertos sempre
Estão cheios de plantas,
Plantas teu deserto

Houve chuva de sementes


Cuspidas fora do mundo
Mudo é o meu segredo

Do vinho, o caminho
Ouvido de perguntas
D`ouvido despistado

Meu amor sereno


Meio-amor inteiro
Grãos de centeio

Assim vai sendo


Suas mãos e as minhas
Fazendo o trabalho
Caminhar parado.
PLATEAU
Compaixão e carne
Entregue ao fluxo profano
Doce, terno e cheio de encanto
Como que onipotente
Caminho trilhado, presente
Entre suspiros mundanos

E mística toma-me no colo


Materna afaga-me entre os seios
E amiga cura-me os males
E amante seu logo me torno
Livre, sem arbítrio

Cura-me a amargura
Faz-me doce
Esquece a morte de hoje

Toma-me pra ti novamente


Faz-me suar sobre ti presente
Como se a última vez fosse.
SONETO IRREGULAR PARA UMA SAUDADE
IRREGULAR
Antes recente era a perda
Que em certa tarde aconteceu
Do elo tão forte que se perdeu
E que unidos nos mantivera

Aos anos presto tributo,


Por tão doces momentos
Mas, ainda não me contento
Por ter perdido tudo

Ainda preso o choro


Ainda trago segura a lágrima
E espero que em verdade

Se desfaça sentimento torto


Que não pode nenhuma máxima
Exprimir maior saudade.
DIVAGAÇÃO
Creditar tudo que sinto
Tão forte quanto ameno
Faz-se presente nunca mentindo
Longe, alhures, derredor o sofrimento

Sofrimento é posse da carne


Frágil permanece sempre o homem
Contempla tua última tarde
Aviso da noite que se consome

E estando sentado imóvel


Faz-se ver sentido estranho
Tão fugaz quanto errante

Permanece embriagado ou sóbrio


Esperando do hoje o ganho
Perdido nunca, talvez distante.
HAIKAIS D’ALMA
I
Saudade é um sorriso,
Do tempo, o sofrimento
De ontem

II
Meu quarto,
Minha casa,
Refúgio de pequenos pássaros

III
Sorvete gelado,
Casais de namorados,
A lamber-se tímidos

IV
O eremita caminha,
No deserto imita,
A dança das cobras.

V
Ergue-se o sacerdote,
Tempestuoso e imponente,
Ao curar-se dos males.

VI
Bambus se envergam,
Com o tempo,
Como os velhos.

VII
Toma tua pena,
Arma perigosa,
Escreve meu nome.
ELA
Ela
Quero ela
Quero falar dela
Quero o falar dela
Quero o falar que pode vir dela

Ela
Olho para ela
Quero olhar para ela
Quero ver meus olhos nos olhos dela
Que olhos tem ela

Ela
Rir dela
Quero rir com ela
Que riso tem ela
Como é gostoso o riso dela

Ela
Afago ela
Quero afagar ela
Que gostoso afago tem ela
Quero me afagar entre os afagos dela

Ela
O canto dela
Me encanta o canto dela
Quero dormir hoje
Ouvindo o encantar dela

Ela
Livro aberto
Este eu li
‘Tava perto
E eu
Li ela
E eu
Quero estar perto dela.
APENAS MAIS

Porque não eu ?
Se tão bem me faz
Sinto bem o que me faz
Sentir tão bem

Apenas mais
Apenas mais tempo
Mas como esperar esse tempo?
Se esse tempo não existe?

Como posso eu não fitar?


Se nos olhos fitas azuis
Cinzas?
Não sei
São seus

É mais uma ideia minha?


É mais um devaneio meu?
É mais uma fantasia?
É mais um sonho
de poeta louco
de sonhos desvairados
de sonhos solitários

Dormindo ou acordado
Apenas olho
Me calo, como um pária
E finjo que não sei sorrir
Mas, a rir contemplo
O sorriso de...
TRAÇOS
Toma a minha mão e guia
Guia-me por entre mares
Guia-me por luz e sombra
Toma a minha mão e guia

Toma o meu papel e aponta


Mostra-me a curva
Mostra-me o desacerto
Aponta-me
Aponta para mim
Toma o papel e aponta

Desenha-me teus lábios


Desenha me teus traços
Desenha-me uma rosa
Desenha me um beijo
Desenha-me tuas curvas

Dança para que eu possa ver


A dança dos traços entre espaços
Dança para mim e mostra-me
Como tomar minha mão e guiar

Vem, toma a minha mão e guia-me


Mas não me deixar correr esses campos brancos só
Corre comigo
Aponta para mim
Toma a minha mão
E me guia.
DE ESTAÇÃO PARA ESTAÇÃO
De estação para estação
O sonar do apito tímido por entre as montanhas
O barulho do carvão que fumega por entre as entranhas da máquina
E que divaga a cada aperto de mão

Quem pode punir o vento?


Que nem todo cabelo assanha
E frenético o trem morro adentro
Um caleidoscópio trama

Quanta pompa nos transeuntes!


É como lembrar Russel e seu Mahler,
A criança que no pátio faz seu baile
Enquanto as cordas dão o tom
Etéreo, vago e perdido som
Que nem no vácuo há quem o compare

De estação para estação


A cada parada o parar do vinho
A cada canto o cantar do ninho
E o repousar,
O balançar das árvores
Dançar das ninfas
Numa bucólica fim de tarde
É tão único quanto juntar
Numa mesma mesa
Bowie e Mahler.
ODE AOS PEQUENINOS
O dia se vai em um entardecer
E eles riem
Riso zombeteiro de saber

A noite chega e traz a lua cheia e majestosa


E eles cantam
Histórias fantasiosas

A madrugada se cala por sobre a cidade


E eles dormem
Sono mais que serena liberdade

E na aurora do dia
Eles acordam
E transbordam alegria.
UM NOVO DESCOBRIR
E por mais que se repita o erro
Não é o medo de errar que anseio
É ansiar encontrar o medo
Do que é bom novamente presente

E por mais que se queira descoberto


E tardia a descoberta que se repete
É o próprio homem e não o tempo que adverte

Quero um novo descobrir

Onde haja espaço


Para o sol se descobrir

Onde haja espaço


P'ra gente cair no chão
M30
Talvez mais que um aglomerado de astros
O passo contado e desde já escrito
De pouco em pouco

Talvez mais que nebulosas


Campanário dos meses finais
Em uma epifania

Talvez mais do que os sábios


Homens calados contemplando o infinito
Tão perto de nós

Talvez mais que um pouco de ti


E o narciso a se ver no orvalho
Sobre um nobre cristal

Talvez mais que um dia claro


Talvez o meu dia
De livre, gritar a sorte.
ALVORADA
Em dias em que a alvorada surge no além-mar
Os bêbados cavalgam em seu tropeçar

Em dias consonantes
As ondas batem e quebram pedras
Espuma servil

Em dias em que a poesia surge


E no amanhecer tardio
De romaria profana
Ao profano sacro amanhecer

Longo caminho

Que prazer tem o sol,


Ao fazer o seu longo caminho?.
ENTRE BRUCKNER E EU
Que notas são essas meu amigo?
O que tu vês que eu não consigo enxergar?
Me fala que notas são essas
Que escorrem nesse adágio tão precioso
Que tanto trabalho te custou
Que chuva é essa
É um silêncio abismal
E de repente explode toda noção da criação
Eu vejo
Eu vejo Deus se mostrando em teus rabiscos
Eu ouço as trombetas que se impõem
Eu confio em cada nota
Em cada silêncio
Me fala meu caro amigo
Como poderia eu contando as folhas
Enxergar o mesmo que ti?
Me fala porque
aos que profanos te ouvem
Surgem catedrais de sons infindáveis
mas eu vejo uma criança
eu vejo uma criança
que corre
corre
e brinca
e chora
e rir
e dança
canta
canta cada nota
te canta aos ouvidos ?
Que notas são essas
Esse ciclo infindável de ideias
Esse sentimento desolado
Uma vontade de ser pequeno
e ser levado
Por qualquer nota que se possa ouvir
Nesse turbilhão de sons
Que eu ouço quando escuto
tua música
religiosamente imponente
terminar.
CARTA AO CRIADOR

A ti, que em tudo se vê


No mais engenhoso e na inocência
No urgente e na paciência
Que as paixões humanas observas
Teu sorriso nunca visto
E teu trabalho, que sem descanso teçes
Que em tudo se vê e se move
Que qualquer coisa que se provoque
Seja nos ares ou no chão
Não foi nem há sem permissão
Olha por nós e tende piedade
Sei que é grande o erro
E gratuita a iniquidade
Mas há de se olhar os pequenos
Que não crescem e os que nunca hão de crescer
Permite-lhes enxergar o anoitecer
Não como fim
Mas como revanche
Pois o crepúsculo de um dia
Anuncia outro adiante
E o romper de uma aurora
Anuncia outro entardecer.
ÓRION

Eu sei que estás aí


Eu vejo
Escondido entre essas nuvens e nebulosas
Testemunha do nascer de alvoradas
De tantas eras e heróis
De segredos imaculados
Nunca revelados
Mas guardados debaixo dessa abóbada
Eu sei o que escondes
Pois há sobre tuas portas e pontes
O anúncio de que entenderia
Brilharás tão forte e ofuscarás
A lua em seu dia
E em tua noite o Sol.
O EXPRESSO DO AMANHÃ
Para Thomas Almeida

Que me reservas, ó Deus meu?


Além das lindas paisagens que estou vendo
O balançar das folhas eu contemplo
E ouço no vento o falar teu

E eu, sentado nesse muro em altitude


A olhar um trem que longe vem
Que passa por mim e se vai com desdém
Soltando seu grito no ar, e fumaça alhures

Ao contemplar o expresso do amanhã


E meu filho que hoje brinca
E que amanhã como homem desatina
Ponho-me a preocupar com coisa vã

Mas ele senta comigo a conversar


E pergunta o que lá vem vindo
E eu respondo, e ele se senta sorrindo
Pra comigo ver outra vez esse expresso passar.
AOS IRMÃOS DE HELIÓPOLIS
Ao trabalho fechado e solitário
Dos meus irmãos presto tributo
Pois trabalham como meninos
Sob Sol e Lua
Aos ciclos do tempo incertos
Mas caminho certo
Que o ciclo encerra
Busco o mar ou caminho seco
Tomar a areia
Talvez a pedra
E um forno que opera em dois
E em um se fermenta
E transmutada a criança
Aos meus irmãos alimento
Na esperança de maravilhar
No dia exato e na exata hora
Não uma obra grande
Mas, uma Grande Obra.
FICA COM ESSAS CANÇÕES PARA TI

E quando uma tarde qualquer


Eu fecho a mala e dou um passo
Dos vidros, ouço o cair dos estilhaços
Sem sentir surpresa alguma pelo que vier

E quando em uma rua qualquer


Eu escrever versos para uma canção
Ei de jogar os rabiscos que escrevi ao chão
Uma brisa repentina em perfume de mulher

E não tendo apreço pela palavra


Eu cuspo nosso passado agora
Por uma vida um pouco mais sensata

Fica com essas canções para ti


Fazes com elas o que quiseres
Elas não me servem de mais nada.

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