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Estudo sobre os limites da contratualização do litígio e do

processo

ESTUDO SOBRE OS LIMITES DA CONTRATUALIZAÇÃO DO LITÍGIO E


DO PROCESSO

Studies on the limits of the contractualization of the procedure and thelitigation itself
Doutrinas Essenciais - Novo Processo Civil | vol. 2/2018 | p. 1323 - 1333 | |
Revista de Processo | vol. 269/2017 | p. 139 - 149 | Jul / 2017
DTR\2017\1815
___________________________________________________________________________
Marcelo José Magalhães Bonizzi
Pós-doutor pela Universidade de Lisboa. Professor doutor da USP/Largo São Francisco.
Procurador do Estado de São Paulo. mjmbonizzi@gmail.com

Área do Direito: Processual

Resumo: O presente estudo parte da premissa de que a contratualização do litígio e do


processo é uma tendência do processo civil contemporâneo. A partir disso, busca
contextualizar essa tendência e fixar limites aos poderes das partes de celebrar negócios
processuais, segundo a efetividade que eles puderem proporcionar ao processo.

Palavras-chave: Processo - Contratualização - Negócios processuais - Acordos de parte


- Efetividade

Abstract: This paper’s premiss is that the contractualization of the procedure and the
litigation itself, in the sense of procedural agreements, is a tendency of the contemporary
civil litigation. From that, it aims to contextualize such a tendency while delineating limitis
to the autonomy of the parties pertaining to procedural agreements according to its
resulting effectiveness.

Keywords: Procedure - Contractualization - Procedural agreements - Parties rulemaking


- Effectiveness

Revista de Processo • RePro 269/139-149 • Jul./2017

Sumário:
1 Considerações iniciais - 2 A contratualização dos litígios - 4 Conclusões

1 Considerações iniciais

O sistema processual civil, embora seja um ramo do direito público, vem cedendo espaço
à autonomia da vontade dos litigantes, que agora podem celebrar os chamados “negócios
jurídicos processuais” com muito mais abrangência do que no passado recente. De fato,
uma simples comparação entre as aberturas dadas para esse tipo de negócio no CPC de
1973 e no CPC de 2015 deixa claro que as regras atuais são muito mais amplas do que as
anteriores.

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Não são claras as razões dessa tendência, mas seria ingênuo imaginar que o Estado tenha
resolvido prestigiar a autonomia da vontade dos litigantes no âmbito processual. O mais
provável é que, reconhecendo sua incapacidade de gerir o processo civil, especialmente
num cenário de forte congestionamento de processos nos tribunais, o Estado tenha
resolvido ceder espaço nessa administração para que as partes possam participar e,
portanto, dividir com ele o ônus da gestão de fases e atos importantes do processo.

Essa incapacidade estatal de administração tem, aqui e no estrangeiro, diversos


fundamentos. Talvez o mais evidente deles seja a falta de treinamento a respeito de
“técnicas de gerenciamento do processo” e também dos recursos (humanos, financeiros
etc.) que os tribunais possuem. É notório que o juiz e os servidores normalmente não
possuem qualquer conhecimento técnico em administração, e os tribunais também não
costumam contar com administradores profissionais em seus quadros, mesmo quando se
sabe – paradoxalmente – que os recursos geridos por eles envolvem números muito
expressivos: milhares de pessoas, centenas de prédios, toneladas de materiais, muitos
veículos, equipamentos e programas de informática etc. A gestão desses tribunais, aliás,
parece ser muito mais complexa do que a gestão de muitos municípios brasileiros.

Na iniciativa privada, instituições com muito menos recursos e responsabilidades


contariam com uma bela equipe de administradores, contratados sob o compromisso de
apresentar resultados de produtividade e eficiência melhores a cada ano. Até onde se pode
saber, nada disso ocorre no âmbito da Administração Pública em geral e, muito menos, no
Poder Judiciário.

Não é, obviamente, esse cenário utópico, em que administradores especializados


assumem a condução administrativa dos tribunais, deixando para os juízes a tarefa de
julgar, que nos espera no futuro.

Em termos muito mais modestos, é correto supor que o que temos hoje pode ser visto
apenas como um alívio para as partes no que diz respeito à gestão do processo. A
possibilidade de celebração de negócios processuais é instrumento poderoso nas mãos das
partes, desde que elas saibam utiliza-lo. De fato, ao invés de depender de demoradas
intimações e de muitas petições, as partes podem celebrar negócios processuais que
resolvam tudo em breve tempo, restando ao juiz a colheita das provas e, obviamente, a
missão de julgar.

No entanto, parece haver uma importante barreira a ser superada. Ocorre que os
profissionais brasileiros (advogados públicos ou privados, defensores públicos ou
promotores) não estão acostumados a celebrar esse tipo de negócio e, muito menos, a
enxergar o processo como um ambiente propício a isso. Em certa medida, o profissional
que toma a iniciativa de procurar outro para propor um determinado negócio processual,
parece ter mais chances de ser recebido com desconfiança do que propriamente como
alguém que deseja compartilhar a administração do processo ou como alguém que deseja
algum tipo de “colaboração”1 em termos de gestão processual. No caso dos advogados
públicos a barreira parece ser ainda maior, dado o temor de que esses negócios jurídicos
processuais venham a ser mal interpretados pelo Ministério Público e pelo Tribunal de
Contas, isso para não falar nas corregedorias e até mesmo numa eventual ação popular.

Outra barreira que precisa ser superada é a da falta de uma visão clara sobre quais seriam

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os limites desses negócios processuais. A verdade é que o legislador foi muito tímido ao
dizer até que ponto é possível celebrar esses acordos e qual seria o papel do juiz nesse
cenário.

Daí porque, ao menos em linhas gerais, o presente estudo pretende fornecer subsídios
para alguns aspectos importantes da “contratualização” dos litígios e do processo, através
da sistematização e da visão dos limites desse importante tema processual.

2 A contratualização dos litígios

Na linha do que vem sendo afirmado pela doutrina francesa, não é novidade que contratos
possam ser utilizados para solucionar litígios, como ocorre, por exemplo, com a confissão
de dívida ou com a transação. O que chama a atenção é a “ampliação” desse fenômeno,
que chegou ao ponto de criar uma categoria nova de métodos de solução de litígios: as
chamadas “ADR” (Alternative dispute resolution)2 ou, em português, os “meios
alternativos de solução de litígios”, todos amparados na manifestação de vontade das
partes envolvidas nesses litígios.

A simples intenção de iniciar as tratativas de uma futura conciliação pode ser vista como a
fase preliminar de um contrato, que tanto pode terminar com a solução do litígio quanto
chegar ao fim sem produzir tal resultado.

No cenário dos conflitos em geral, essa intenção de conciliar, quando não nasce
espontaneamente entre as partes, agora é estimulada (na falta de um termo melhor) pelas
disposições que estão no art. 334 do CPC de 2015, segundo as quais, antes do prazo para
contestação sequer começar a fluir, as partes devem passar pela fase de conciliação ou de
mediação, ou seja, elas devem ser estimuladas a encontrar uma “solução negociada” para
o litígio submetido ao Poder Judiciário.

Do mesmo modo, aceitar a presença de um mediador que, para além da simples tentativa
de conciliação, vai “privilegiar o restabelecimento da comunicação entre as partes”, mas
“mantendo sempre nas partes a responsabilidade da resolução do conflito”3, também é
algo que depende da aceitação das partes, ou seja, da manifestação de vontade delas.

Ambas as situações acima expostas evidenciam a mudança de paradigma: saímos de uma


ordem jurídica “imposta” para uma ordem jurídica “negociada”4, mesmo que essa
negociação seja, em nosso país, estabelecida como fase de um processo em curso5.

De fato, o novo CPC (LGL\2015\1656) exige que as partes se submetam ao que se pode
chamar, então, na perspectiva do tema ora em estudo, de fase de “estímulo à
contratualização do litígio”, da qual elas só podem se ver livres se ambas manifestarem,
expressamente, que não possuem interesse nessa fase (art. 334, § 4º), ou seja, que não
vislumbram motivos para celebrar qualquer tipo de contrato que possa pôr fim ao litígio6.

2.1 Limites à contratualização do litígio

Como todo negócio jurídico, ocioso dizer, os contratos que tenham por objetivo terminar
um litígio exigem, cumulativamente: agente capaz, objeto lícito e forma prevista ou não
defesa em lei.

No entanto, se houver algum grau de indisponibilidade dos direitos envolvidos nesse litígio,

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o negócio jurídico não poderá ser celebrado tão facilmente ou simplesmente não poderá
ser celebrado, como ocorre, por exemplo, com direitos ligados à saúde, que não podem ser
objeto de transação. Por outro lado, se houver “consenso das partes envolvendo direitos
indisponíveis, mas transigíveis”, o acordo precisa ser homologado em juízo, após prévia
manifestação do Ministério Público”7.

Além disso, no caso da Administração Pública em geral, devido à necessidade de proteção


do patrimônio público que ela representa, normalmente há, em menor ou maior grau,
alguma indisponibilidade a ser tutelada8. A esse respeito, a Lei de Mediação disciplina, em
seus artigos 32 a 40, as hipóteses em que podem ser celebrados os acordos pela
Administração Pública, permitindo, portanto, a “contratualização do litígio” mesmo num
cenário em que houver patrimônio público envolvido. Essa é uma prova bastante eloquente
da força da tendência contemporânea de contratualização do litígio ora em estudo. Não
custa lembrar que, num passado não muito distante, sequer se cogitava de transações com
a Administração Pública, dado o dogma da indisponibilidade dos direitos por ela tutelados.

Aliás, nesse ponto é importante lembrar que a Administração Pública é maior litigante que
o Poder Judiciário possui, se levarmos em consideração os três níveis dessa Administração
(municípios, estados e União) e que seria muito interessante que a tendência de
contratualização fosse bem recebida nesse cenário. Todos sabem que a falta de autonomia
da Advocacia Pública não permite que se vá muito longe em termos de contratualização do
litígio, mas, ao menos em prol da redução dos litígios e dos custos, espera-se que os
governantes sejam sensíveis a esse tema e criem regras administrativas que possam dar
algum conforto ao advogado público, fixando parâmetros objetivos para a celebração de
acordos, como, por exemplo, a existência de jurisprudência que indique que a resistência
ao acordo não será produtiva.

3 A contratualização do processo

Não há dúvida de que o processo é um instrumento público de solução de litígios e de que,


portanto, suas regras são essencialmente de direito público, destinadas a regular a relação
entre o Estado-juiz e os litigantes. Nessa arena pública, em que os duelos modernos são
travados, o espaço para a celebração de negócios processuais entre as partes sempre foi
muito reduzido. Mas todos já perceberam que o CPC de 2015 abriu espaço na
administração do processo para a vontade das partes, segundo as disposições contidas em
seu art. 190.

Assim, mesmo na ausência de um negócio entre as partes que ponha fim ao litígio, a
possibilidade de contratualização continua viva, agora tendo como objetivo não o litígio em
si, mas o “modo ou técnica” de solução desse litígio.

O tema não é novo9. Mesmo no âmbito do processo judicial, que se desenvolve às custas do
contribuinte e sob parâmetros legais, é relativamente comum encontrarmos regras que
permitem às partes a celebração de negócios. O CPC de 1973 dava essa abertura a elas em
poucas situações, como na hipótese de escolha do foro competente, conforme dispunha
seu art. 11110, assim como permitia também a celebração de negócios a respeito da
redistribuição do ônus da prova (parágrafo único do art. 33311), dentre outros exemplos
possíveis12.

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Assim como ocorreu com a contratualização do litígio, o que salta aos olhos atualmente é
a amplitude que foi dada a esse tema. É nítido que o CPC de 2015 foi fortemente
influenciado pela tendência internacional de contratualização do processo, conforme se
pode ver em seu art. 190, através do qual as partes podem celebrar os chamados
“negócios jurídicos processuais”. Além disso, agora as partes também podem apresentar
uma “delimitação consensual das questões de fato e de direito”, para dimensionar a
instrução processual (art. 357, § 2º) e ainda, de “comum acordo”, elas podem “escolher o
perito” (art. 471), dentre outras possibilidades, todas indicadoras de que a
contratualização do litígio é uma tendência que chegou para ficar no sistema processual
civil brasileiro13.

Em seu grau mais elevado, a contratualização do processo é também a arbitragem, na qual


o Estado se despe da natureza pública do processo judicial e deixa todos os ônus da gestão
processual nas mãos de particulares. Ao final da arbitragem, como todos sabem, o Estado
reconhece que a decisão proferida no âmbito particular é jurisdicional ou tem efeitos
jurisdicionais, a ponto de conferir a essas decisões o mesmo status conferido às decisões
judiciais (art. 515, VII).

3.1 Limites à contratualizaçao do processo

O processo judicial é, em essência, conforme já foi visto, um instrumento público, criado


para resolver os mais variados litígios que podem surgir no âmbito de uma sociedade. É
essa sociedade quem arca com praticamente todas as despesas geradas pelo processo e é
essa mesma sociedade que deposita nesse processo sua esperança de justiça, ainda
quando litiga com o próprio Estado (o Estado-inimigo do cidadão).

Nesse contexto, o poder de celebrar negócios processuais só pode ser feito nos estritos
limites da lei. Se a lei permitir alguma margem de interpretação, como faz no art. 190 do
CPC (LGL\2015\1656), parece correto dizer que essa interpretação será sempre restrita.

No que diz respeito às normas cogentes, como aquelas que dizem respeito à competência
absoluta e às condições da ação, apenas para usarmos exemplos corriqueiros, é correto
dizer que elas não poderão ser atingidas por negócios processuais14. Também quanto aos
efeitos dos recursos as partes não poderão celebrar negócios processuais, assim como não
poderão “criar” novos recursos15 ou impedir a aplicação de súmulas vinculantes ou de
precedentes com igual força (fixados em assunção de competência)16, embora possam
celebrar acordos que incluam renúncia ao direito de recorrer.

Resta indagar, portanto, qual seria a dimensão dos negócios processuais no âmbito das
regras processuais que não sejam de ordem pública ou cogentes. O eixo desse tema é a
redação do art. 190 do CPC de 2015, que prevê os chamados negócios processuais
“atípicos”. As mudanças no procedimento a que essa regra se refere logo no início estão
diretamente relacionadas com o poder conferido ao juiz pelo art. 139, VI, desse mesmo
diploma legal, de “dilatar os prazos processuais e alterar a ordem de produção das provas”.

É importante destacar que, para que esse poder possa ser exercido, o juiz deve sempre
levar em consideração a possibilidade de conferir “efetividade” à tutela do direito (art. 139,
VI).

Com os negócios processuais também deve ser assim, embora a lei processual –

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infelizmente – não faça menção expressa a isso. Essa é a “chave de interpretação da


contratualização do processo”. Esse norte processual está nesse contexto como um
verdadeiro princípio do processo, ou seja, como algo que, possuindo um grau de abstração
bastante elevado, permeia o sistema processual em todos os seus aspectos e lhe dá um
rumo a ser seguido17.

Daí porque, ao interpretar as demais disposições do art. 190, o juiz precisa levar em
consideração esse mesmo norte, ao seja, a plena efetividade dos negócios celebrados
entre as partes “para o processo e para a tutela jurisdicional que dele resulta”. Somente se
essa efetividade estiver presente é que ele poderá admitir que um instrumento público
como o processo possa, em certa medida e durante certo tempo, ser moldado aos
interesses das partes.

Não há dúvidas, portanto, de que as partes podem convencionar sobre seus “ônus,
poderes, faculdades e deveres processuais”, mas isso não significa que o processo judicial
estará totalmente à disposição delas. Seria mesmo inimaginável que as partes
convencionassem a produção de provas desnecessárias (talvez pensando em outros litígios
a respeito do mesmo tema tratado no processo em que essas provas serão produzidas) ou
que todas elas teriam a faculdade de produzir provas testemunhais a qualquer momento,
durante um determinado espaço de tempo, de modo que o Poder Judiciário estivesse
sempre à disposição delas para realizar audiências, como se não houvesse outros milhares
de processos aguardando julgamento.

O poder conferido a elas é, com certeza, um avanço – inclusive em termos democráticos –


no gerenciamento do processo, mais só fará sentido se trouxer “efetividade”18 à tutela
jurisdicional, conforme dispõe a regra do art. 139, IV, e também se for interpretado a partir
da premissa de que o processo é um instrumento público de solução de litígios.

Nessa linha de entendimento, a regra que está no parágrafo único do art. 190 diz,
evidentemente, muito menos do que deveria, pois dispõe que o juiz apenas “controlará a
validade” dos negócios processuais, e que o juiz só poderia recusa-los quando houver
“nulidade”, “inserção abusiva em contrato de adesão” ou, ainda, quando “alguma parte se
encontre em manifesta situação de vulnerabilidade”. Essa regra deveria ter previsto
também a necessidade de se levar em conta a efetividade do processo, assim como fez o
legislador no art. 139, IV, na admissão dos negócios processuais.

Em outras palavras, se a regra do art. 190 for interpretada de forma isolada, desvinculada
da efetividade do processo e de sua natureza pública, alguém poderá pensar que o
processo civil se transformou numa espécie de “arbitragem pública”, feita às custas do
contribuinte, na qual as partes podem estipular os negócios processuais que lhe forem
mais convenientes19, sem levar em consideração a efetividade do processo, aí incluídos o
seu custo e a sua duração. Não é essa a melhor interpretação para os limites da
contratualização do litígio sob pena de negarmos a natureza pública do processo onde
esses negócios processuais podem ser utilizados. Em certa medida, a vontade das partes
ao celebrar negócios processuais precisa estar em harmonia com a vontade do Estado,
caso contrário caminharemos no sentido da privatização exagerada de um instrumento
público de solução de litígios, com grandes perdas para a sociedade. Assim como o Estado
não pode transformar a arbitragem privada num instrumento público, as partes não podem

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transformar o processo judicial num instrumento privado. O ideal seria termos o melhor de
dois mundos: as partes celebrando negócios processuais para tornar o processo mais
efetivo para elas e para o Estado. Para que isso ocorra, o juiz precisa se libertar dos estritos
termos do disposto no parágrafo único do art. 190 do CPC (LGL\2015\1656) e levar em
consideração a efetividade do processo ao admitir a celebração de negócios processuais.

É evidente, portanto, que o juiz não está no processo apenas para controlar a validade dos
negócios processuais e que a estrutura pública do processo judicial, custeada pela
sociedade, não pode ficar totalmente entregue aos caprichos das partes. Aqueles que
quiserem a contratualização completa do processo devem buscar a arbitragem privada,
arcando com todos os – normalmente elevados – custos de sua opção.

4 Conclusões

Em resumo, sem equilíbrio na utilização dos negócios processuais, a finalidade do


processo, que é a solução do litígio com celeridade e justiça, ficará em segundo plano. No
dizer da doutrina francesa, a contratualização pode ser boa se introduzir benefícios na
administração da justiça e no desenvolvimento dos processos (inclusive sob a ótica da
democratização da justiça), mas essa contratualização não pode ser apenas um
“instrumento de dissolução do serviço público e da justiça” e de “marchandisation d’une
fonction étatique”20.

1 As polêmicas a respeito da dimensão da colaboração no CPC de 2015 foram, em boa


parte, abordadas no meu livro intitulado “Princípios do processo no novo CPC
(LGL\2015\1656)” (São Paulo: Saraiva, 2016, p. 80-87).

2 Cfr. CADIET, Loïc; NORMAND, Jacques e MEKKI, Soraya Amrani. Théoria générale du
procès. 2. ed. Paris: Presses Universitaires de France, 2013, p. 213.

3 São palavras de: GOUVEIA, Mariana França. Curso de resolução alternativa de litígios. 2.
ed. Coimbra: Almedina, 2012, p. 50.

4 Cfr. CADIET, Loïc; NORMAND, Jacques e MEKKI, Soraya Amrani. Op. cit. p. 214. Nessa
obra, os autores associam, com razão, o crescimento do fator “contratualização” ao
declínio do “legicentrismo” e à crise do “Estado-providência” (idem).

5 O chamado “processo participativo”, previsto nos artigos 2.062 a 2.068 do Código Civil
francês, estimula a resolução amigável do litígio e é, de certa forma, obrigatório, posto que
as partes, desde a publicação do Decreto 2015-282, de 11.03.2015, estão obrigadas a
indicar, no recurso dirigido ao tribunal, quais foram os procedimentos de “resolução
amigável” já realizados por elas até aquele momento.

6 O legislador poderia ter optado por criar benefícios para as partes se submeterem a
conciliadores ou mediadores antes do início do processo, mediante supervisão, por
exemplo da Ordem dos Advogados. Se a solução negociada de um litígio nasce da intenção
das partes, um sistema que impõe uma fase processual destinada a isso parece ter poucas
chances de sucesso. No sentido de que uma fase “obrigatória” de mediação tende a ser

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mera perda de tempo e de dinheiro, v. CARPI, Federico. La metamorfose del monopolio


statale sulla giurisdizione. Revista de Processo, v. 257. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2016, p. 28.

7 Art. 3º, § 2º, da Lei 13.140, de 2015.

8 Sobre o tema, v. BONICIO, Marcelo José Magalhães. Arbitragem e Estado: ensaio sobre
o litígio adequado. Revista de Arbitragem e Mediação, v. 45. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2015, p. 155-174.

9 No direito norte-americano, há várias regras processuais que podem ser negociadas


entre as partes: teto para os valores que podem ser obtidos a título de indenização, escolha
da lei aplicável em relação à fase de aferição de culpa e definição de procedimentos prévios
à instituição do processo em si, dentre outras várias possibilidades (cfr. Party rulemaking:
making procedural rules trough party choice. Robert G. Bone. 90 Texas Law Review 1329
2011-2012. Ver também: The privatization of process: réquiem for an celebration of the
Federal Rules of Civil Procedure at. 75 Judith Resnik. 162 University of Pennsylvania Law
Review 1793 2013-2014).

10 V. CPC de 2015: art. 63.

11 V. CPC de 2015: § 3º do art. 373

12 Cfr. TUCCI, Rogério Lauria. Negócio jurídico processual. Temas e problemas de direito
processual. São Paulo: Saraiva, 1983, p. 152.

13 Teria sido proveitoso possibilitar que as partes fizessem uma “requisição conjunta” ao
juiz, através da qual elas submeteriam a ele um determinado litígio, mas sem que fosse
exigido delas a elaboração de uma petição inicial e de uma contestação. Assim ocorre no
direito processual francês, através das disposições dos artigos 57 e 750 do “Noveau Code
de Procédure Civile”, que permitem que as partes pratiquem um “ato comum”,
submetendo ao juiz suas pretensões e os pontos em relação aos quais não há consenso.
Sobre o tema, na doutrina francesa, v. GUINCHARD, Serge. Cécile Chainais e Frédérique
Ferrand. Procédure Civile: droit interne et droit de l’Union européenne. 31. ed. Paris:
Dalloz, 2012, p. 586-587. Nesse caso, como estímulo às partes, as custas poderiam ser
reduzidas e os honorários dos advogados repartidos entre elas, segundo o valor também
sugerido por elas. Em linhas gerais, aliás, há pouco ou nenhum estímulo à participação
ativa das partes no gerenciamento do processo. No eixo da contratualização do processo,
que está no art. 190, encontramos um bom exemplo dessa lamentável omissão do
legislador, pois as partes que celebram negócios processuais não são recompensadas por
agir assim, assim como também não há estímulo para as partes que adotam uma postura
colaborativa no processo.

14 Art. 2.035, parágrafo único, do Código Civil (LGL\2002\400): “Nenhuma convenção


prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este
Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.”

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15 Cfr. CUNHA, Leonardo Carneiro da. Negócios jurídicos processuais no Processo Civil
brasileiro. Negócios processuais. Coord. Antonio do Passo Cabral e Pedro Henrique
Nogueira. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 59.

16 Cfr. NERY JR., Nelson. Código de Processo Civil comentado. 16. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2016, p. 190.

17 Sobre o tema, ver o livro que publicamos com o título “Princípios do processo no novo
CPC (LGL\2015\1656)” (São Paulo: Saraiva, 2016, esp. p. 25 e 181).

18 Nesse sentido, adverte Flávio Luiz Yarshell que “as regras processuais convencionais,
que alterem as opções feitas pelo legislador, devem ser pensadas como forma de trazer
resultados relevantes para racionalização do processo. ” (Convenções das partes em
matéria processual: rumo a uma nova era? Negócios processuais. Coord. de Antonio do
Passo Cabral e de Pedro Henrique Nogueira. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 79).

19 Os poderes do juiz não podem ser negociados, especialmente em matéria probatória.


Embora o processo não tenha por objetivo a busca da verdade, é certo que quanto mais
próximo da “realidade dos fatos” o juiz estiver, melhor será, em termos de justiça, sua
decisão. Sobre o tema, v. TARUFFO, Michele. Verità negoziata? Accordi di parte e processo.
Quaderni della Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, n. 11. Milano: Giuffrè, 2008,
p. 69-98. Nada impede, no entanto, que as partes negociem seus próprios poderes. Nesse
campo, ao contrário do que ocorre com os deveres das partes, a efetividade do processo
tem pouco a oferecer. Assim, por exemplo, se uma das partes se abstém de recorrer se a
outra desistir de pedir uma prova pericial, o juiz deve apenas controlar a validade desse
negócio nos exatos termos do disposto no parágrafo único do art. 190.

20 CADIET, Loïc. Les conventions relatives au procès em droit français. Accordi di parte e
processo.Quaderni della Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, n. 11. Milano:
Giuffrè, 2008, p. 34. No mesmo sentido, Remo Caponi afirma que a limitação da autonomia
das partes nos negócios processuais pode ocorrer “non solo in vista della tutela di interessi
pubblici, bensì anche di interessi di una delle parti, come l’interesse al giusto processo”, e
que os negócios processuais devem observar os “limiti in cui ciò non ostacoli l’efficienza del
processo rispetto allo scopo della giusta composizione della controvérsia”. Autonomia
privata e processo civile. Accordi di parte e processo. Quaderni della Rivista Trimestrale di
Diritto e Procedura Civile, n. 11. Milano: Giuffrè, 2008, p. 98-119.

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