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FUNDAMENTOS
BIOLÓGICOS
BÁSICOS EM
ORTODONTIA
FLÁVIO VELLINI-FERREIRA
FUNDAMENTOS BIOLÓGICOS BÁSICOS EM ORTODONTIA 3

INTRODUÇÃO I — ESTRUTURAS CONSTITUINTES


DO APARELHO MASTIGADOR
Os conceitos biológicos básicos são funda-
mentais para a prática ortodôntica moderna. Os constituintes do aparelho mastigador são:
Daí este capítulo abranger os diferentes aspec-
tos anatomofuncionais do aparelho mastigador 1. Estruturas passivas
como um todo. • ossos de sustentação
Procuramos resumir, nos parágrafos seguin- • juntura temporomandibular
tes, os fundamentos anatômicos que interessam • dentes e elementos de suporte
à ortodontia clínica, mais sob o ponto de vista • mucosa bucolingual.
funcional do que estático, propriamente dito.
Embora o interesse primordial das indagações 2. Estruturas ativas
anatômicas esteja na estrutura, esta e a função mastigadores, cutâneos, supra
• músculos
devem ser consideradas integradamente. e infra-hioídeos
A evolução da anatomia tem ocorrido no • lábios, bochechas e soalho bucal
sentido de torná-la uma ciência dinâmica, ao invés • língua
de uma ciência calcada em dados puramente es- • glândulas salivares
peculativos, não orientados para seu verdadeiro • vasos e nervos
sentido de aplicação. A morfologia pura e simples
busca na função a complementação de suas inda- Tentar estabelecer para o aparelho masti-
gações descritivas. Se assim não fosse, o estudo de gador estruturas mais ou menos importantes
um músculo seria enfadonho, desde que não ace- é, certamente, incidir em erro. Isto porque
nasse para o porquê de sua existência, de suas todas são essenciais para o bom funciona-
relações e funções. Os conhecimentos anatômi- mento do sistema e do organismo, uma vez
cos não podem abstrair-se dos fisiológicos, o que que cada uma desempenha papel preponde-
vale dizer — forma e função não podem ser sepa- rante para o bem-estar do todo. Nas socieda-
radas. A evidência das idéias expostas destaca-se, des celulares altamente organizadas dos me-
sobretudo, em ortodontia, no estudo da anato- tazoários mais evoluídos, a divisão do traba-
mia do tecido ósseo. Neste, a função se integra lho (especialização) das unidades biológicas
exatamente na estrutura, e a oposição entre a é levada ao extremo, sempre com a finalida-
forma e a função não tem sentido algum, pois a de de servir, de funcionar para o bem geral
atividade funcional se insere no arcabouço anatô- de todo o organismo. A hierarquização fun-
mico. Embora os conceitos aqui expressos convir- cional só pode ser estabelecida quando se de-
jam, em essência, para o aparelho mastigador, fine o ponto de vista do observador, que é
não se pode abstrair do fato de que ele é parte do sempre convencional, ainda que possa pare-
aparelho de nutrição que, por sua vez, é parte cer morfofuncionalmente justificável. Dizer,
integrante e integradora do ser individual. por exemplo, que os dentes e ossos são, para
As unidades biológicas que contribuem o ortodontista, as mais importantes peças do
para o desempenho de uma função geral deter- aparelho mastigador não tem sentido, desde
minada e que se constituem num aparelho (ou que não se defina o ponto de vista do obser-
sistema), não são independentes, mas sim co- vador. É necessário ter em mente que este
nectadas anatômica e funcionalmente, através aparelho representa, anatômica e funcional-
de múltiplas interações estabelecidas entre ór- mente, uma parte corpórea e, por conse-
gãos de um mesmo aparelho, ou de órgãos de qüência, não pode ser analisado e tratado
aparelhos diferentes. Exemplos destas correla- como uma unidade anatômica separada, sem
ções morfofuncionais são dados pelo sistema que se voltem as vistas para a saúde geral do
nervoso e endócrino, quando unem partes indivíduo. Contudo, e apenas com finalidade
para a formação de um todo. didática, costuma-se colocar, sob o ponto de
Assim sendo, algumas vezes as más oclusões vista da conceituação “stricto sensu”, o termo
refletem disfunções distantes do aparelho mas- mastigador com o significado de triturador,
tigador. Outras vezes, respostas desfavoráveis esmagador, despedaçador de substâncias ali-
ao tratamento ortodôntico são imputadas a cer- mentares. Daí a razão de se dar maior ênfase
tas glândulas endócrinas, devido a alterações às partes que mais ostensivamente exercem
no metabolismo do cálcio que podem ocorrer estas funções, a saber: dentes com os tecidos
durante a adolescência. de sustentação, ossos, junturas e músculos.
4 ORTODONTIA • DIAGNÓSTICO E PLANEJAMENTO CLÍNICO

II — EVOLUÇÃO FILOGENÉTICA fica-se que esta particularidade humana é o re-


sultado do retardamento gradual da erupção
Procedendo-se a uma rápida inspeção na destes dentes.
história filogenética do aparelho mastigador, Segundo Schultz, a ordem de erupção origi-
nota-se claramente que em sua organização nal e primitiva dos dentes dos primatas seria:
predominam os processos de adaptação e espe- M1 - M2 - M3 - I1 - I2 - P - C.
cialização. Uma tendência característica na evo- Contudo, enquanto a erupção do M1 con-
lução da dentadura humana, documentada pe- serva seu número de ordem original e primiti-
los fósseis hominídeos, atesta uma involução do vo, a do M3 e depois a do M2 é, paulatinamen-
referido aparelho. A ausência dos dentes tercei- te (à medida que se sobe na escala dos prima-
ros molares, incisivos laterais superiores e, me- tas), precedida pela erupção dos incisivos e,
nos freqüentemente, segundos premolares in- por último, pela erupção dos premolares e dos
feriores é fato interpretado como indício destas caninos, de sorte que no Homo sapiens tem-se a
tendências. A esses caracteres é preciso acres- seqüência de erupção:
centar os devidos aos suportes ósseos (maxila e 1. Primeiros molares
mandíbula): diminuição dos maxilares com 2. Incisivos centrais e laterais inferiores
conseqüente encurtamento da abóbada palati- 3. Incisivos centrais superiores
na e fusionamento precoce da pré-maxila; re- 4. Incisivos laterais superiores
dução da dimensão anteroposterior da mandí- 5. Caninos inferiores
bula, verticalização da sínfise e formação do 6. Primeiros premolares
mento. 7. Segundos premolares
O crescimento do encéfalo e o encurtamento 8. Caninos superiores
dos maxilares, a diminuição volumétrica dos mús- 9. Segundos molares
culos mastigadores e o desvio para trás dos ossos 10. Terceiros molares.
do maciço facial mostram que, em relação aos Estudos realizados por Della Serra a respei-
outros Primates, o homem possui um aparelho to da ordem de erupção dos dentes definitivos
mastigador pouco especializado, sobre o qual se dos símios do Novo Mundo, feitos em certos
manifestam indiscutíveis sinais de redução. lemuriformes fósseis ou viventes, sobre maca-
No tocante à ordem de erupção dos dentes, cos catarríneos e antropomorfos, bem como
os segundos e terceiros molares monofisários sobre o homem fóssil e vivente, estão sintetiza-
são os últimos a irromperem. Observando-se o dos no quadro geral das tendências eruptivas
que acontece em toda ordem dos Primates, veri- dos dentes, como segue:

ORDEM DE ERUPÇÃO DOS DENTES DEFINITIVOS DOS PRIMATES


(SEGUNDO SCHULTZ E DELLA SERRA)

Fórmula original hipotética (Schultz) M1 M2 M3 I1 I2 PP C


➞ ➞

➞ ➞

Aotes M1 M2 M3 I1 I2 PPP C

Archaeclemur Lemur M1 M2 I1 I2 M3 PPP C

Saimiri M1 M2 I1 I2 PPP M3 C

Alouatta, Ateles, Brachyteles, Cebus Logothrix, Pithecia


Callicebus, Papio, Hylobates, Pongo, Pan, Gorilla M1 I1 I2 M2 PP C M3

Homo neanderthalensis bosquimanos, numerosos


homens fósseis pré-históricos. M1 I1 I2 M2 P? C? P? M3

Homo sapiens M1 I1 I2 P C P M2 M3
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III — EVOLUÇÃO tilagíneo e um vaso sangüíneo (arco aórtico)


ONTOGENÉTICA que interliga as aortas dorsal e ventral; além
do mais, há músculos e nervos. Externamen-
A história da formação e desenvolvimento te tais arcos são revestidos pelo ectoderma, e
dos elementos componentes do aparelho internamente pelo endoderma, ficando o
mastigador associa-se intimamente à forma- mesênquina interposto aos dois folhetos. No
ção e crescimento da face. Esta, por sua vez, embrião humano desenvolvem-se cinco arcos
está diretamente relacionada à edificação dos separados por quatro sulcos branquiais ecto-
arcos branquiais, representados por cristas dérmicos. Ao mesmo nível destes sulcos ex-
ou barras arqueadas, separadas por sulcos ternos, o endoderma da faringe pressiona o
que aparecem durante a quarta semana, na mesênquima para os lados e invagina-se para
superfície ventrolateral da cabeça embrioná- constituir a bolsa faríngica ou branquial. O
ria. Os arcos branquiais correspondem às endoderma de cada bolsa e o ectoderma de
guelras ou brânquias dos peixes e de alguns cada sulco, ao estabelecerem contato, unem-se
anfíbios, em que os arcos são separados por e as delgadas lâminas assim formadas rara-
fendas através das quais circula água para res- mente se rompem para completar a condição
piração. Cada arco contém um esqueleto car- de fenda (Fig. 1.1).

Fig. 1.1 — A. Representação esquemática de corte sagital da região cefálica de um embrião de cinco semanas (6 mm aproximadamente). As bolsas
branquiais, situadas na parede lateral direita do intestino faríngico, estão numeradas de B1 a B4. A zona de inserção da membrana bucofaríngica
corresponde à linha pontilhada. B. Esquema destinado a mostrar o desenvolvimento dos sulcos (S1, S2, S3 e S4), das bolsas (B1, B2, B3 e B4) e dos
arcos (I, II, III e IV) branquiais. Notar que, devido ao grande desenvolvimento do segundo arco (II), as bolsas B2, B3 e B4 ficam ocultas sob ele. Observar
a diferenciação do epitélio endodérmico das bolsas em: tonsila palatina (A); glândula paratireóide inferior (B); timo (C); glândula paratireóide superior
(D) e corpo último branquial (E). Do primeiro sulco (S1) e da primeira bolsa (B1), formam-se, respectivamente, o meato auditivo externo e o recesso
tubotimpânico. Notar a diferenciação do órgão do esmalte no processo maxilar (MX) e no processo mandibular (I). (modificado de Starck — in Della
Serra e Vellini - Ferreira)
6 ORTODONTIA • DIAGNÓSTICO E PLANEJAMENTO CLÍNICO

O primeiro arco branquial mandibular bi- membrana bucofaríngica (Fig. 1.2). A região
furca-se, dando origem aos processos maxilar do palato se origina, em sua maior extensão,
e mandibular que, juntamente com o proces- por proliferação dos processos maxilares, ex-
so frontonasal, contribuem para a formação ceto na região anterior formada às expensas
da boca propriamente dita, lábios, bochechas do processo nasal medial e que se constitui na
e fossas nasais. Assim, em um embrião de qua- pré-maxila. Esta alojará futuramente os quatro
tro semanas, o estomódeo ou boca primitiva, incisivos superiores. O septo nasal surge como
de origem ectodérmica, está limitado superior- expansão caudal da eminência frontal a qual
mente pelo processo frontonasal, lateralmen- se funde posteriormente aos processos palati-
te, pelos processos maxilares, inferiormente, nos. Separa-se, deste modo, a cavidade nasal
pelo processo mandibular, e, ao fundo, pela da cavidade bucal definitiva.

Fig. 1.2 — Etapas da formação da face evidenciando os processos frontal (1), nasal medial (2), nasal lateral (3), maxilar (4) e mandibular (5), segundo
Langman.

Os esquemas das Figs. 1.3, 1.4, 1.5 e 1.6 A falta de coalescência ou fusão entre estes
elucidam a formação do palato primário, o me- vários processos (Fig. 1.7) dará origem às más-
canismo de acomodação da língua caudalmen- formações congênitas (lábio leporino, fenda
te devido ao rápido crescimento do processo palatina, fissura facial oblíqua) com profundas
mandibular, permitindo a fusão dos processos influências no posicionamento dos dentes, na
palatinos e a conseqüente separação da cavida- estética facial e no psíquico do paciente (Figs.
de bucal da cavidade nasal. 1.8 e 1.9)
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Fig. 1.3 — Corte sagital da região da fossa nasal mostrando desde os primórdios de sua evolução até a formação da premaxila (1) e do palato (2),
sua fusão (3), separando a cavidade nasal (4) da cavidade bucal (5) — segundo Clara, in Langman.

Fig. 1.4 — Representação esquemática, em A, de um corte frontal da cabeça embrionária mostrando a língua 1 em sua posição vertical. Em B, vista
ventral da premaxila 2, do septo nasal 3 e dos processos palatinos 4 (segundo Langman).

Fig. 1.5 — Esquemas mostrando em A o deslocamento caudal da língua 1 e em B a aproximação dos processos palatinos em direção medial 2 (segundo
Langman).
8 ORTODONTIA • DIAGNÓSTICO E PLANEJAMENTO CLÍNICO


Fig. 1.6 — Esquemas A e B evidenciando a fusão dos processos palatinos (1) com a premaxila (2), marcando definitivamente a separação da cavidade
nasal da cavidade bucal. A papila incisiva 3 demarca o ponto onde ocorreu a fusão entre aqueles processos (segundo Langman).

Fig. 1.7 — Contribuição dos diferentes processos embriológicos na edificação da face adulta. 1. Processo nasal médio 2. Processo nasal lateral 3.
Processo maxilar 4. Processo mandibular
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Fig. 1.8 — Falta de coalescência entre processos embrionários que formam a face, originando em 1 a fenda facial oblíqua, em 2 a macrostomia
unilateral e em 3 o lábio leporino mediano com nariz parcialmente fendido (modificado de Langman).

Fig. 1.9 — Representação esquemática de diferentes más formações congênitas ocasionadas pela falta de coalescência da premaxila e processos
palatinos. Em 1 aspecto normal; em 2 lábio fendido unilateral com comprometimento nasal; em 3 lábio fendido unilateral interessando lábio, maxila
e estendendo-se até a região da papila incisiva; em 4 lábio fendido bilateral abrangendo a premaxila; em 5 fenda palatina simples e em 6 fenda palatina
combinada com lábio fendido unilateral (inspirado em Langman).

Os lábios formam-se por volta da sétima se- branquial, ao passo que seus revestimentos epi-
mana, pelo fendilhamento da região gengival, teliais interno e externo darão origem a outros
que assim prossegue até a região das boche- tecidos. Embora os músculos dos diferentes ar-
chas. cos migrem em várias direções, a sua prove-
Durante a sexta semana de desenvolvimen- niência pode ser sempre identificada, visto que
to, o segundo arco sobrepõe-se aos outros três, a inervação provém do arco de origem.
tornando-os pouco evidentes, determinando Na formação dos elementos constituintes do
que o quarto e o quinto arcos mergulhem aparelho mastigador contribuem o primeiro e o
numa depressão triangular denominada seio segundo arcos branquiais, também denominados,
cervical - S3 na Fig. 1.1. No curto prazo de duas respectivamente, arco mandibular e arco hioídeo.
semanas, os arcos branquiais desaparecem e a Durante o desenvolvimento, cada arco adquire um
semelhança com a “condição branquial” termi- esqueleto cartilagíneo que eventualmente desapa-
na. Estruturas como ossos, músculos e vasos rece ou persiste durante toda a vida, como estrutu-
sanguíneos, diferenciam-se do mesênquima ra óssea, cartilagínea ou ligamento.
10 ORTODONTIA • DIAGNÓSTICO E PLANEJAMENTO CLÍNICO

O componente cartilagíneo do primeiro se maciça, constitui os primórdios do compo-


arco branquial é constituído pela cartilagem de nente ectodérmico do dente. Edifica-se, assim,
Meckel e por uma pequena expansão dorsal de- uma lâmina formadora dos dentes na região
nominada processo maxilar. Ambas as porções maxilar e uma na mandibular. Estas duas lâmi-
cartilagíneas regridem com o desenvolvimento, nas são de concavidade posterior, sendo que a
persistindo apenas diminuta porção da cartila- superior tem raio de curvatura maior que a
gem de Meckel que formará a bigorna e o mar- inferior.
telo. A mandíbula forma-se, secundariamente, Em resumo: da depressão epitelial origina-
por um processo de ossificação membranosa, se o sulco vestibular, o componente ectodérmi-
como será visto no capítulo referente ao Cresci- co do dente e os órgãos do esmalte das peças
mento e Desenvolvimento Craniofacial. temporárias e permanentes (Fig. 1.10).
A musculatura mastigadora se origina do arco Da face vestibular da referida lâmina ecto-
mandibular, sendo inervada pelo ramo mandibu- dérmica, desenvolvem-se os órgãos do esmalte
lar do trigêmeo, nervo dito do primeiro arco. dos dentes temporários, cujas proliferações ini-
O componente nervoso do segundo arco ciam-se por volta da sétima semana. Durante o
branquial é o nervo facial, e o muscular, os desenvolvimento destas, em número de dez para
músculos cutâneos ou mímicos. cada arco, a lâmina dental continua sua prolife-
Na sexta semana de vida intra-uterina evi- ração e os órgãos do esmalte dos dentes perma-
denciam-se, tanto nos processos maxilares nentes (um para cada dente) vão surgindo (tam-
quanto nos mandibulares, duas intensas proli- bém em número de dez para cada arco), ao
ferações da camada epitelial que se aprofun- nível de uma borda livre. Em cada extremidade
dam no mesênquima subjacente. A externa, distal da lâmina dental, desenvolvem-se os bro-
por destruição de suas células centrais, dá ori- tos correspondentes aos órgãos do esmalte dos
gem ao sulco labial, e a interna, conservando- três molares permanentes de cada hemiarco.

Fig. 1.10 — Esquema para indicar as várias fases de desenvolvimento do incisivo central inferior.
A. Formação da lâmina dental (6ª semana v.i.u.).
B. Estágio de casquete, notando-se a diferenciação do órgão do esmalte do dente decíduo (7ª semana v.i.u.).
C. Fase de campânula. À direita a extremidade livre da lâmina dental que dará o órgão do esmalte do dente permanente. O osso alveolar está iniciando
sua diferenciação (10ª semana v.i.u.).
D. Primeiras deposições de dentina (16ª semana v.i.u.) e oclusão do saco dental.
E. Diferenciação do incisivo central inferior permanente (nascimento). A coroa do dente decíduo está completa.
F. Início de erupção do dente decíduo (6 meses). A coroa do dente permanente já está praticamente formada com esmalte e dentina.
G. Rizólise do dente decíduo e dente permanente em vias de erupção (6 a 7 anos).
H. Erupção do dente permanente (7 a 8 anos).
I. Dente permanente em uso, na boca, apresentando uma borda incisal transformada em faceta oclusal. Observar, na cavidade pulpar, a dentina
secundária (adulto). v.i.u. — vida intra-uterina (baseado em diagramas de J.G. Dale e K.J. Paynter, segundo Leeson e Leeson).
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Cada órgão do esmalte passa, sucessivamente, todo. A interdependência entre a forma e a


por três estágios distintos, durante sua evolução: função, lei básica da biologia, encontra nos
broto, casquete ou barrete e campânula. Ao ór- conceitos expostos toda sua validade. Em suas
gão do esmalte atribui-se grande importância na afirmativas, Benninghoff demonstrou de modo
morfogênese da coroa e da raiz, bem como na bastante significativo que os limites impostos
histogênese do esmalte. pelos ossos isolados não tinham sentido quan-
O tecido mesenquimático contido no órgão do consideramos o crânio em conjunto, uma
do esmalte dará origem à papila dental, cujas vez que a difusão dos esforços funcionais se faz
células se diferenciam formando os odonto- insensivelmente através das uniões entre as di-
blastos, os quais têm papel preponderante na ferentes peças ósseas. Daí a razão do enunciado
dentinogênese. de unidade funcional dado ao esqueleto cra-
Do tecido mesenquimático que envolve o niofacial.
órgão do esmalte originará o cemento, o perio- É certo que estes conceitos morfofuncionais
donto e a lâmina dura do processo alveolar. evoluíram progressivamente, uma vez que até
por volta de 1770 os conhecimentos sobre a
IV — AS UNIDADES FUNCIONAIS adaptação do osso aos esforços funcionais eram
DO APARELHO MASTIGADOR totalmente obscuros.
Por esta época, Hunter impulsionou as pes-
O aparelho mastigador como um todo é for- quisas concernentes à biologia óssea, demons-
mado por unidades funcionais representadas trando que este tecido não era inerte, como acei-
pelos ossos, dentes, periodonto, juntura tempo- to até então, mas em constante remodelação.
romandibular, músculos envolvendo movimen- Anos mais tarde, o notável anatomista
tos mandibulares, sistema lábio-línguo-geniano, Mayer conjuntamente com o matemático Cul-
mecanismos neuromusculares e nutritivos. mann estabelecem, em estudos realizados no
fêmur humano, que os diferentes aspectos
1 - OSSOS morfológicos e funcionais deste osso, traduzi-
dos pela disposição trabecular interna, obede-
Embora maxila e mandíbula sejam as prin- ciam princípios gerais de engenharia (Fig.
cipais peças ósseas componentes do aparelho 1.11). Assim, demonstraram que a trajetória da
mastigador, em vista de alojarem os dentes, esponjosa se fazia de tal modo às suas trabécu-
podemos, sob o ponto de vista funcional, consi- las se cruzarem em ângulo reto, o que conferia,
derar todo esqueleto craniofacial como partici- segundo aqueles pesquisadores, maior resistên-
pante das atividades que se desenvolvem neste
aparelho.
A arquitetura básica do esqueleto craniofa-
cial está concebida de maneira tal a satisfazer
as demandas da atividade funcional deste seg-
mento do soma. Milhões de anos de evolução,
com acentuadas modificações na codificação
genética, desenvolveram um esqueleto cefálico
extremamente racional para cumprir as neces-
sidades do homem. Intensas alterações para o
lado do aparelho mastigador que, cada vez
mais, durante a evolução, se reduziu, em con-
traposição à expansão do encéfalo, refletiram-
se de maneira acentuada no esqueleto cra-
niofacial. A diminuição do esforço mastigatório
e, conseqüentemente, a redução do prognatis-
mo tornaram o crânio humano mais delicado
quando comparado ao de outros primatas. É
notório que uma das forças maiores absorvidas
pelas super-estruturas cranianas e faciais é sem
dúvida alguma a força mastigatória, razão por
que Benninghoff concebeu a idéia de funcio-
nalidade do esqueleto da cabeça como um Fig. 1.11 — Esquema da arquitetura óssea do fêmur, segundo Mayer.
12 ORTODONTIA • DIAGNÓSTICO E PLANEJAMENTO CLÍNICO

cia ao osso. Enunciaram, outrossim, que a par- que a intensidade da força aplicada ao osso
te central do osso, apresentando-se como um modificava-lhe a arquitetura interna (Fig.
tubo oco, resistia melhor aos esforços que se 1.12). Todavia só mais tarde Weinmann e Si-
manifestavam sobre a peça. Embora os princí- cher, em sua obra “Bone and Bones”, contesta-
pios de Mayer e Culmann abrissem as portas ram um fato até então aceito como verdadeiro
para novas investigações a respeito, eles se — o concernente à disposição ou entrecruza-
constituíram tão somente nos alicerces onde se mento das trabéculas ósseas em ângulo reto.
edificariam novos conceitos e novas teorias. Estes autores enfatizaram ser a disposição da
Sob este aspecto, Wof e Roux, fundamentados esponjosa óssea uma resposta aos estímulos
nas pesquisas anteriormente citadas, introduzi- funcionais, podendo as trajetórias ter até senti-
ram um novo conceito, aliás fundamental às do não retilíneo. Um fato contudo parece ter
investigações e explicações de fatos futuros, de ficado bem aclarado — e esta citação encontramo-

Fig. 1.12 — Esquema da arquitetura óssea, segundo original de Koch, evidenciando os cálculos da máxima tensão e acentuada compressão exercidas
na cabeça do fêmur quando aplicada uma carga de 100 libras.
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la no trabalho de Picosse sobre linhas de força como sóe ser na vida embrionária, e em locais
na mandíbula humana — há um padrão here- não solicitados funcionalmente, apresenta-se
ditário para o trabeculado ósseo primário, o conformado com um trabeculado não ordena-
qual é herdado dos ancestrais, mas modificável do. É pois mecanicamente ineficaz e apresenta-
por fatores exógenos secundariamente. Justifi- se como forma de transição para o osso lame-
cativa para esta assertiva encontramos nas in- lar. Já este último, o lamelar, organiza-se em
vestigações sobre crescimento ósseo “in vitro”. camadas onde as fibras colágenas se dispõem
Portanto, a evolução de nossos conhecimen- em lamelas, no intuito de suportar melhor aos
tos sobre a arquitetura geral e funcional do es- esforços nele incidente. Acentue-se que o teci-
queleto cefálico repousa no complexo estudo da do ósseo lamelar ora se apresenta como nas
biologia óssea, pois que em nenhuma outra parte diáfises dos ossos longos — cortical —, ora se
de nosso organismo se manifesta de modo tão apresenta esponjoso como na parte central da
evidente a inter-relação entre forma e função. epífise.
Acenemos aqui a maneira particular de cresci- Do exposto parece evidente, e a maioria dos
mento do osso, diverso da maioria dos nossos te- autores aceita, que as forças funcionais que se
cidos e por si só suficiente para o entendimento manifestam sobre o tecido ósseo condicionam-
da arquitetônica do crânio e da face. Enquanto a lhe a arquitetura traduzindo-se isto por engros-
maioria dos tecidos orgânicos cresce por multipli- samento da cortical e arranjo das trabéculas
cação celular, ocupando as novas células os espa- constituintes da esponjosa. Contudo, e Pasmo-
ços entre as demais, no tecido ósseo, pela sua re chama a atenção para este fato, pesquisado-
própria natureza, este tipo de crescimento é im- res há que procuram buscar em fatores bioquí-
praticável. Destarte, o osso cresce por aposição de micos ou hematogênicos explicação para a ar-
novas camadas sobre as já existentes e de um bem quitetura óssea.
equilibrado sistema de aposição e reabsorção re- Sob este aspecto uma série de investigações
sulta o modelo final. Há uma constante aposição científicas poderiam ser relatadas, mormente
e reabsorção óssea no ciclo vital biológico, predo- no campo ortodôntico, que de certo modo faz-
minando a primeira no jovem e a segunda (reab- nos aceitar a inter-relação entre esforço funcio-
sorção) no velho. À custa do processo remodelan- nal e arquitetura óssea. Extensos trabalhos rea-
te as peças ósseas se edificam e alteram sua arqui- lizados por Machado de Sousa, Benninghoff,
tetura constantemente. Picosse, utilizando diferentes técnicas (puncio-
Por paradoxal que pareça o osso, duro namento da cortical, RX, laminografias, cortes
como se nos afigura, é um dos mais plásticos e seriados), falam a favor dessa assertiva.
maleáveis tecidos orgânicos graças, exatamen- Nós mesmos, em mandíbulas humanas, utili-
te, a este duplo e harmônico sistema de aposi- zando o método radiográfico, pudemos consta-
ção e reabsorção óssea. tar fatos já asseverados por diferentes autores,
É necessário, contudo, frisar que a arquite- confirmando que o estímulo funcional promove
tura óssea em geral e a craniofacial em particu- um rearranjo do trabeculado ósseo. A falta deste
lar está condicionada a múltiplos fatores. Sua promove uma osteoporose. Muito provavelmen-
origem do tecido conjuntivo, sua maneira de te estas modificações arquiteturais, devidas a
crescer, seu próprio tipo de ossificação, se perturbações da osteogênese da mandíbula, se-
membranoso ou endocondral, assim como a jam resultantes de uma diminuição da afinidade
sua topografia, tudo está perfeitamente adapta- cálcica pela matriz protéica. Esta descalcificação
do à missão imposta a esta estrutura orgânica seria secundária às modificações histoquímicas
— a missão mecânica destinada ao osso. A exte- ocorridas na elaboração da matriz e não primiti-
riorização macroscópica evidenciável em cortes vas como sóem ser em certas perturbações do
e traduzida por diferentes caminhos trajetoriais metabolismo fósforo-cálcico. O corolário destas
da esponjosa não são senão o termo último de modificações é a fragilidade óssea.
uma especialização encetada na própria organi- Se aplicarmos estas considerações gerais ao
zação das fibras colágenas das unidades osteô- crânio e à face, veremos que, nestes segmentos,
nicas. A adaptação do osso às forças de pressão o osso se comporta diferentemente porque di-
e tração que sobre ele se manifestam se faz pau- ferentes são as suas solicitações mecânicas, dife-
latinamente e de maneira admirável, numa co- rentes são as suas ações, diferentes são as suas
ordenação e concatenação de fatos realmente áreas de inserções musculares.
notáveis. Esta é a razão por que o osso fibroso, De qualquer modo, sempre a natureza age
que aparece em locais de rápido crescimento, economicamente apondo tecido ósseo apenas
14 ORTODONTIA • DIAGNÓSTICO E PLANEJAMENTO CLÍNICO

onde há necessidade, de modo ao princípio da


economia de tecido com o máximo de resistên-
cia ser sempre obedecido.
Na região facial logo nos deparamos com
uma nova componente de força — ação mastiga-
tória. Apenas para elucidar, e consoante Hilde-
brand, ao nível dos molares, a ação mastigatória
exerce uma pressão que gira em torno de 35 a 45
kg. Ademais, na face, o fato da mandíbula ser um
osso móvel, confere a este segmento do soma ca-
racterísticas todas especiais. A própria inserção
nessa, dos músculos mastigadores, se reveste de
uma importância clínica toda especial.
Bem estudada a disposição do trabeculado Fig. 1.13 — Esquema das trajetórias ósseas no esqueleto facial,
ósseo no esqueleto facial por Benninghoff, Si- segundo Benninghoff.
cher e Tandler, Machado de Sousa, Weinden-
reich e outros, ficou patente que a esponjosa se
organiza de tal modo a melhor resistir ao esfor- da mandíbula e de pilares os encontrados nos
ço mastigatório, e que as modificações deste se maxilares.
traduzem por alterações não só na disposição Naquele osso (mandíbula) foram descritas três
das trajetórias ósseas, quanto da própria corti- trajetórias: dental, marginal e temporal. A primei-
cal. A este respeito, acene-se para o espessa- ra (dental) partindo dos alvéolos (região cortical)
mento desta à altura do 1º molar superior, ao recebe os esforços de tensão a que o ligamento
nível da crista zigomaticoalveolar, como tradu- alveolodental está sujeito, e transmite estes esfor-
zindo uma área de maior receptibilidade de ços à cabeça da mandíbula. Daí os esforços são
esforço mastigatório. Outro fato digno de nota difundidos à base do crânio. O mesmo se diga
é a existência da crista do colo do côndilo, for- com respeito à trajetória marginal que recebe es-
mado por razões idênticas de transmissão e su- forços musculares e se traduz por um espessamen-
porte de forças. to da borda inferior deste osso. Esta trajetória se
Ao considerarmos o aparelho mastigador, entrecruza na linha média, protegendo o osso dos
vemo-lo formado pelos dentes, seus elementos esforços de flexão. Ambas as trajetórias se dirigem
de suporte, principalmente ósseos, e os meios à cabeça da mandíbula, e daí ao crânio, como já
de união — ligamento alveolodental ou desmo- assinalamos. Apenas enfatize-se a arquitetônica es-
donto. pecial da articulação temporomandibular que re-
As forças mecânicas que se manifestam sobre cebe e transmite estes esforços.
os dentes o fazem sob a forma de força de pres- Note-se que na mandíbula, nos pontos não
são. Todavia, como o osso não suporta bem a sujeitos a esforços mecânicos, surgem novas es-
este tipo de carga, pois reage reabsorvendo-se, a truturas, tais como o canal mandibular. Acen-
natureza transforma, através do desmodonto ou tue-se também a predileção, na zona dos tercei-
ligamento, a força de pressão em força de tra- ros molares, para a difusão de processos infec-
ção. A essa o osso reage bem e difunde, através ciosos dentais devido ao grande espaçamento
do trabeculado ósseo, às superestruturas cranio- das auréolas da esponjosa.
faciais o esforço mastigatório. A trajetória temporal parte do processo co-
De modo que, entre outras, o ligamento tem ronóide e une-se às duas outras já citadas. É
por função transformar as forças de pressão em uma trajetória tipicamente de tração, dada à
forças de tração. A seguir, o esforço que se mani- inserção do potente músculo temporal no já
festa sobre os dentes se difunde através do trabe- referido processo ósseo.
culado ósseo às estruturas faciais e cranianas. No maxilar foram descritos os pilares canino,
Esta intrincada biomecânica alveolodental, zigomático e pterigóideo unidos por traves de re-
exposta aqui de maneira simplista, permitiu forço, tais como as nasais (entre os pilares canino),
aos estudiosos que detectassem no osso a dire- o arco supra e infraorbital (entre o pilar canino e
ção das trajetórias, quer na mandíbula quer no zigomático) e o tubérculo da raiz do zigoma
maxilar (Fig. 1.13). (unindo o pilar pterigóideo ao zigomático).
Sicher denominou de trajetórias os feixes Estes pilares têm seus trabeculados ósseos ar-
ordenados de trabéculas ósseas na intimidade ranjados da maneira seguinte: o canino, à altura
FUNDAMENTOS BIOLÓGICOS BÁSICOS EM ORTODONTIA 15

do ramo ascendente do maxilar, concentrando os branquiçada, situados na cavidade bucal e coloca-


esforços que se manifestam sobre os incisivos, cani- dos sobre os maxilares onde se dispõem em filei-
nos e primeiros prés. O zigomático partindo da ras. Formados por tecidos mineralizados e alta-
região molar, passando pelo arco zigomaticomalar mente especializados, compõem-se de dentina
e logo se bipartindo em dois ramos — um que que, pela sua superfície interna, relaciona-se com
segue a direção da apófise orbitária externa e ou- a polpa (sensibilidade, nutrição e formação), ao
tro que segue o arco zigomático. Capta os esforços passo que, externamente, é revestida pelo esmal-
da região de pré e molares, exceto do terceiro te na coroa, e pelo cemento, na raiz.
molar. O pilar pterigóideo partindo da região da Para Beltrami, o dente é uma papila do derma
tuberosidade sobe pelo processo pterigóide e se cutâneo hipertrofiada e calcificada. Originalmen-
conecta com o pilar zigomático à altura da raiz do te, como acontece com outros órgãos da pele, os
zigoma, como já referido. Reúne os esforços da dentes são estruturas temporárias destinadas a de-
região dos últimos molares e região do túber. saparecer após determinado período de função,
Aprile ainda fala em um pilar vomeriano sendo substituídos de acordo com as necessidades
que ficaria à altura da região posterior das coa- funcionais. Peixes e anfíbios apresentam tal tipo
nas, sendo formado pelo vômer e unindo-se às de substituição contínua, conhecida como polifio-
pterigóides, base do crânio e palato duro. dontismo. Nos mamíferos, os dentes adquiriram
O palato seria a estrutura que uniria e soli- maior estabilidade e são utilizados não só para
dificaria todos os pilares. apreender o alimento, como também para masti-
Dois fatos merecem atenção especial. Primei- gá-lo. Assim, a diferenciação dos dentes assume o
ramente o concernente ao arco supraorbital, mais alto grau, reduzindo-se as “gerações” de subs-
bem desenvolvido nos antropóides e raças pri- tituições para as séries decídua e permanente. Do
mitivas, e que seria, para Sicher, uma superes- polifiodontismo dos peixes passamos ao difiodon-
trutura destinada a colher os esforços mastigató- tismo na espécie humana. Concomitantemente
rios que se manifestam sobre o aparelho masti- desenvolveu-se uma divisão de trabalho entre os
gador daqueles ancestrais. De outro lado a for- diferentes grupos de dentes, relacionada com seu
mação do mento, que para Weidenreich e Du especial formato (incisivos — cortar; caninos —
Brul teriam a mesma origem ou então estariam despedaçar; jugais — moer, esmagar). Desta for-
ligados ao desenvolvimento da posição ortostáti- ma, a dentadura homodôntica da maior parte dos
ca do homem atual. répteis transformou-se na heterodôntica dos ma-
Neste apanhado sobre a arquitetura geral e míferos (Della Serra e Vellini-Ferreira).
funcional do esqueleto cefálico, procuramos É interessante notarmos que os dentes ju-
mostrar como os dados anatômicos estão inter- gais, providos de cristas, cúspides e sulcos, loca-
ligados aos funcionais, sendo a forma, no dizer lizam-se nos pontos dos maxilares onde se faz
de Ruffini, a imagem plástica da função. A evo- sentir, com maior intensidade, a ação da força
lução dos nossos conhecimentos anatômicos mastigadora (Fig. 1.14).
aplicados à ortodontia tem se calcado em da-
dos morfológicos porém orientados para seu
verdadeiro sentido de aplicação.
Fizemos, destarte, uma síntese das correla-
ções morfofuncionais sobre a arquitetura do es-
queleto cefálico interligado ao aparelho masti-
gador, entendendo que as unidades biológicas
que contribuem para o desempenho de uma
função determinada não são independentes,
mas conectadas anatômica e funcionalmente
através de múltiplas interações. A integração,
termo criado por Sherrington para designar a
união de partes para formar um todo, encontra
aqui toda sua validade.

2. DENTES
Fig. 1.14 — Esquema indicativo da maior concentração de forças na
Os dentes são definidos como órgãos ou mas- área molar -M-, em vista das diferentes direções dos feixes musculares
sas duras de tecidos calcificados, de coloração es- mastigadores.
16 ORTODONTIA • DIAGNÓSTICO E PLANEJAMENTO CLÍNICO

A fase de transição da dentadura decídua saparecendo com a avulsão daqueles. Nestes


para a permanente apresenta no homem aspec- casos, devido ao processo de reabsorção ós-
tos dos mais importantes, quando encarada sob sea, surge no local do alvéolo uma crista ou
o ponto de vista ortodôntico. rebordo dito residual.
Uma apreciação geral sobre a cronologia Nos locais em que se alojam os dentes
de calcificação, erupção e completação dos plurirradiculares, os alvéolos se apresentam
dentes decíduos e permanentes será realizada divididos por um septo intra-alveolar de sen-
no capítulo referente ao Desenvolvimento da tido vestibulolingual para os dentes inferio-
Dentição. res e em forma de T para os dentes superio-
res. Neste caso há dois tipos de comparti-
3. APARELHO DE SUSTENTAÇÃO mentos vestibulares e um palatino, segundo
DO DENTE a morfologia dos dentes aí implantados. Ar-
quiteturalmente estes septos estão constituí-
O progressivo aperfeiçoamento da função dos por uma camada de osso esponjoso cen-
mastigatória levou a uma profunda alteração tral revestido pela cortical, conferindo a es-
no modo de fixação do dente ao osso, chegan- tas estruturas grande resistência. No caso de
do à máxima complexidade nos mamíferos. alguns septos intra-alveolares, a camada es-
Nestes, o dente desenvolve uma raiz que se en- ponjosa chega a ser tão fina que praticamen-
castoa na loja alveolar óssea, aí se fixando atra- te as lâminas corticais se unem, dando ori-
vés de um ligamento. À dentina e esmalte, filo- gem a uma formação papirácea, facilmente
geneticamente os dois tecidos mais antigos, comprometida nas exodontias.
juntou-se o cemento, que propicia a inserção A parede alveolar está formada por uma
desse ligamento. As estruturas de sustentação cortical lisa (lâmina dura) constituída por
do dente, que constituem o periodonto, são: o osso fasciculado para a inserção do ligamento
cemento, a membrana periodontal (ligamento alvéolo-dental. Sob esta parede situa-se a ca-
ou membrana alvéolo-dental), a gengiva e o mada esponjosa, cuja direção de seu trabecu-
processo alveolar. A gengiva se constitui no pe- lado está adaptada às forças de pressão e tra-
riodonto de proteção, enquanto os demais ele- ção que se manifestam sobre os dentes e são
mentos, no periodonto de inserção. transmitidas ao osso através do ligamento al-
Como em qualquer articulação do gênero véolo-dental.
das junturas fibrosas, aqui também podemos É importante conhecer também o revesti-
considerar as superfícies articulares e os meios mento periostal dos processos alveolares, assim
de união. como a gengiva, ligamentos e músculos da re-
As superfícies articulares estão representa- gião, os quais fixam as características de união
das pelos alvéolos, que no seu conjunto for- entre dentes e tecidos que o suportam.
mam os processos alveolares e pelas raízes den- Raiz: a raiz forma, juntamente com o alvéolo,
tais recobertas pelo cemento. as superfícies articulares. As raízes acham-se reves-
Alvéolos: são escavações, mais ou menos pro- tidas por uma substância osteóide — o cemento
fundas, destinadas a conter a maior parte da — cuja função é servir de ponto de fixação para
raiz dental. Os alvéolos modelam-se sobre as as fibras ligamentares, propiciando, pelo cresci-
raízes reproduzindo-lhes a forma, normal ou mento, uma compensação ao desgaste oclusal
não. Ao conjunto dos alvéolos de cada arco (abrasão dental), permitindo o rearranjo das
dental, com suas respectivas paredes ósseas (lâ- principais fibras do ligamento periodontal.
mina dura), denomina-se processo (apófise) De origem mesenquimal, o cemento reco-
alveolar. bre a porção radicular do dente, mantendo di-
O alvéolo, e conseqüentemente o processo ferentes relações com o esmalte, ao nível do
alveolar, é função do dente: nasce e vive com colo. Choquet descreveu quatro casos concer-
ele, desaparecendo após sua queda (Beltra- nentes a estas relações, como se vê na Fig. 1.15.
mi). Na primeira relação, o esmalte e o cemento
O número de alvéolos é igual ao de raízes se defrontam borda a borda. No segundo e ter-
presentes, podendo ser simples ou compos- ceiro casos, o esmalte cobre o cemento e é reco-
tos, conforme a morfologia radicular. Sendo berto pelo cemento respectivamente. Na quarta
função do dente, o alvéolo migra com a mu- eventualidade o esmalte e o cemento deixam
dança de posição dos dentes (como por entre si um espaço mais ou menos amplo, ao
exemplo nos tratamentos ortodônticos), de- nível do qual a dentina se encontra exposta.
FUNDAMENTOS BIOLÓGICOS BÁSICOS EM ORTODONTIA 17

Fig. 1.15 — Relações esmalte-cemento, segundo Choquet. Em 1 o


esmalte e o cemento se defrontam; em 2 o esmalte cobre o cemento;
em 3 o esmalte é recoberto pelo cemento; e em 4 há um espaço entre
o esmalte e o cemento, deixando descoberta a dentina (D). E. esmalte;
C. cemento; D. dentina.

A - CEMENTO sente no terço apical da raiz. Neste tipo de


cemento notam-se as linhas incrementais,
O cemento é uma variedade de tecido ósseo que indicam sua formação periódica. Pode-se
desprovido de cementócitos (cemento acelu- observar, ainda, a matriz calcificada e as fi-
lar) quando é delgado, e contendo cemento bras de Sharpey inseridas. Do mesmo modo
celular quando é espesso. que na dentina, verificam-se no cemento zo-
Na espécie humana o cemento recobre as nas correspondentes a períodos de maior e
raízes anatômicas dos dentes e tem por princi- menor atividade calcificadora, que aparecem
pal função dar inserção às fibras do ligamento com a disposição de lâminas sucessivas. A hi-
periodontal à maneira das fibras de Sharpey, percementose diz respeito à produção exage-
pois é o componente dental mais parecido rada de cemento em toda a extensão ou em
com o osso. partes da raiz.
De espessura variável (80 a 100 micra),
apresenta maior condensação nos pontos onde B - MEIOS DE UNIÃO
o dente está sujeito a maiores pressões (ápice),
adelgaçando-se para o colo. O reduzido espaço de um décimo a um
O cemento é o mais frágil dos tecidos calci- quinto de milímetro, que existe entre a raiz
ficados do dente. dental e a lâmina dura do alvéolo, é ocupado
O cemento está constituído por uma subs- por um tecido de natureza conjuntiva, deriva-
tância fundamental e por células-cementócitos do do saco dental (origem mesenquimal). Tra-
— muito semelhantes aos osteócitos. Do ponto ta-se de um tecido conjuntivo fibroso denso,
de vista estrutural, podem-se diferenciar duas com finalidade precípua de manter o dente em
espécies de cemento: seu alvéolo, garantindo-lhe fixação e também
a) Cemento celular: é encontrado normalmen- certa mobilidade passiva por ação das forças
te na superfície da dentina, podendo ocasional- mastigatórias.
mente estar na superfície do cemento acelular. A melhor denominação dada a este tecido
O cemento celular pode abranger toda a é ligamento periodontal, sendo, contudo, conhe-
espessura do cemento apical. É sempre mais cido como membrana alveolodental, tecido
espesso ao redor do ápice, contribuindo, des- peridental ou periodontal (Fig. 1.16).
tarte, para alongar a raiz. Ao lado deste tecido diferenciado encon-
As células do cemento celular (cementóci- tram-se, no espaço desta gonfose, outras es-
tos) são semelhantes aos osteócitos, isto é, os truturas, tais como: células, restos epiteliais,
prolongamentos na sua maioria irradiam, a vasos sangüíneos, filetes nervosos e espaços
partir dos canalículos dos cementoblastos, para linfáticos.
a superfície do cemento. O ligamento periodontal, como qualquer
Segundo estudos de Box e Skillen, alguns tecido conjuntivo fibroso, é constituído por cé-
canalículos contendo prolongamento dos ce- lulas, substâncias intercelulares e líquidos
mentócitos anastomosam-se com os ramos peri- (Ham) e, por isso, de estrutura semelhante a
féricos dos canalículos dentinários. de outros tecidos conjuntivos fibrosos. O que
b) Cemento acelular: pode recobrir a denti- difere é a sua arquitetônica particular, pois as
na radicular desde a junção esmalte-cemento fibras colágenas são mais numerosas, grupam-
até o ápice. Contudo, muitas vezes, está au- se em feixes que se dispõem da raiz ao alvéolo,
18 ORTODONTIA • DIAGNÓSTICO E PLANEJAMENTO CLÍNICO

Fig. 1.16 — Esquema do ligamento alveolodental mostrando: 1. gengiva (periodonto de proteção); 2. cemento; 3. osso alveolar; 4. diferentes feixes
de fibras do ligamento, inclusive as circulares (modificado de Arnin e Hagerman).

obedecendo às forças de pressão e tração que Dentoperiostais: limitam-se com as fibras do


se exercem sobre a peça dental. ligamento periodontal e vão do periósteo
Costuma-se descrever no periodonto os se- da região da crista alveolar até o cemento
guintes feixes principais de fibras: radicular na sua porção cervical.
Transeptais: ligam dentes vizinhos entre si
a - Feixes Gengivais (periodonto de proteção) passando por sobre a crista óssea alveolar.
Alveologengivais: unem a gengiva à crista ós-
a1 - dentogengivais
sea alveolar.
a2 - dentoperiostais
Circulares, circundam os feixes de outras fi-
a3 - transeptais bras, rodeando os elementos dentais.
a4 - alveologengivais
a5 - circulares b - Feixes Periodontais (periodonto de sustentação)
b1 - horizontais
Dentogengivais: fixam a gengiva marginal ao b2 - oblíquos
cemento na sua porção mais cervical. b3 - apicais
FUNDAMENTOS BIOLÓGICOS BÁSICOS EM ORTODONTIA 19

Os grupos de feixes de fibras periodontais no alvéolo. Destas lacunas, a maior é a do es-


constituem o principal meio de união para o paço apical, onde a ausência de fibras destina-
dente. As fibras destes feixes, inserindo-se no se a permitir a livre entrada do feixe vasculo-
cemento, cruzam o espaço alveolodental para nervoso do alvéolo para a polpa, garantindo,
se fixar na parede alveolar, com implantação à por outro lado, proteção a esses elementos e
maneira de fibras de Sharpey. Estas fibras ade- impedindo o choque do ápice contra o fundo
rem mais ao cemento que ao osso, por isso, do alvéolo.
após extrações, a raiz dental vem coberta por Outro fato que deve ser assinalado com res-
esse tecido conjuntivo. peito a estes feixes de fibras é a disposição ar-
As fibras inseridas no cemento constituem quitetônica particular que cada uma delas assu-
feixes densos, porém ao se prenderem na pare- me, e também os feixes em conjunto, disposi-
de alveolar dissociam-se em leque, permitindo ção que garante uma certa elasticidade a este
a passagem de vasos e nervos entre seus grupos tipo de tecido fibroso, ainda que aí não exista
menores. A partir do cemento, as fibras podem fibra elástica.
assumir diversas direções: horizontal, oblíqua De fato, as fibras dispõem-se nos seus feixes,
ou apical, conferindo aos feixes suas respectivas formando espirais alongadas ou como cordas,
denominações. Note-se que, no último agrupa- capazes de ceder às forças de pressão que agem
mento, as fibras apicais fixam-se na proximida- sobre o dente, porém retornando ao estado
de do forame apical e daí dirigem-se ao osso primitivo quando cessada a força atuante.
alveolar, limitando um espaço conhecido pelo O importante deste sistema é a transforma-
nome de espaço apical de Black ou coxim mu- ção que se opera nas forças, ou seja, a força de
coso apical (Fig. 1.17). pressão mastigatória é transmitida como força
Os diferentes feixes de fibras assinalados de tração para as paredes alveolares.
deixam, no seu entrelaçamento, espaços ou la- Outros elementos do espaço alveolodental — ao lado
cunas mais numerosas e maiores junto à pare- do tecido conjuntivo diferenciado que forma o li-
de alveolar, comunicando-se com a esponjosa gamento alveolodental, há que assinalar outras es-
óssea. A maioria de tais lacunas é preenchida truturas no espaço entre a parede alveolar e o ce-
por vasos, nervos e espaços linfáticos, que fun- mento da raiz, tais como: fibroblastos típicos —
cionam como verdadeiros freios hidráulicos encarregados da formação das fibras colágenas; os-
quando a peça dental tende a se aprofundar teoblastos, cementoblastos e osteoclastos, com fun-

Fig. 1.17 — Diferentes feixes de fibras do ligamento periodontal. Em G está representado o grupo gengival; em T os feixes transeptais; em C os da
crista alveolar; em H os horizontais; em O os oblíquos; em A os apicais; e em B o espaço apical de Black.
20 ORTODONTIA • DIAGNÓSTICO E PLANEJAMENTO CLÍNICO

ção na remodelação do tecido ósseo e cemento. O temas, retrações gengivais, limitação dos movi-
tecido ósseo adapta-se, mediante contínuas aposi- mentos linguais, etc.
ções e reabsorções, às necessidades funcionais do Na região vestibular a gengiva é limitada, no
periodonto, ao passo que o cemento responde a maxilar e mandíbula, pela junção mucogengi-
estímulos diversos, reabsorvendo-se ou apondo val que a separa da mucosa alveolar. É caracte-
novas camadas às já existentes. rística da mucosa alveolar ser de coloração ver-
Restos epiteliais (Mallassez) — são formações melha e apresentar numerosos pequenos vasos
epiteliais derivadas ou vestigiais do órgão ada- junto à superfície. Na região do palato a distin-
mantino, que formam grupos ou ninhos espar- ção entre gengiva e mucosa é pouco demarca-
sos no seio do ligamento alveolodental. Para da, enquanto na mandíbula encontramos uma
muitos autores, os cistos paradentais e os tumo- linha nítida separando gengiva da mucosa que
res epiteliais (adamantinomas) têm origem nos reveste o soalho bucal.
restos epiteliais mencionados. Sob o ponto de vista anatômico e clínico,
podemos dividir a gengiva em (Fig. 1.18):
C - GENGIVA OU PERIODONTO
DE PROTEÇÃO a) gengiva inserida
papilar
b) gengiva livre
A mucosa vestibular de um lado e a palatina marginal
ou lingual de outro continuam-se ao nível da
borda livre de cada maxilar, contornam a base
da coroa dental, inserindo-se firmemente no
periósteo do osso alveolar, constituindo-se na
gengiva ou periodonto de proteção. Pode-se defini-
la, pois, como a parte da mucosa bucal que
cobre os arcos alveolares, nos quais estão im-
plantados os dentes.
Sulco gengivolabial é a designação dada à
área de reflexão da mucosa nas partes superior
e inferior do vestíbulo bucal.
Interrompendo a continuidade destes Fig. 1.18 — Esquema dos constituintes da gengiva: 1. gengiva papilar;
sulcos (superior e inferior), encontramos, 2. sulco marginal; 3. pregas interdentais; 4. junção mucogengival; 5.
na linha média, os freios labiais superior e mucosa alveolar; 6. gengiva livre; 7. gengiva inserida.
inferior e à altura dos caninos e premolares
as bridas. Embora, sob o ponto de vista ana-
tômico tenham a mesma constituição, funci-
onalmente bridas e freios apresentam dife- a) Gengiva inserida: é caracterizada por altas
renciação. papilas de tecido conjuntivo, elevando o epité-
As bridas têm ação mais restrita que os freios, lio, cuja superfície aparece granulada. O granu-
uma vez que subservem como área de reforço e lado, cujo grau varia com os indivíduos, é mais
apoio, na mucosa vestibular, durante a ação de provavelmente uma expressão de adaptação fun-
contração do músculo bucinador. cional a impactos mecânicos. O desaparecimen-
Esta atividade é bem entendida no ato masti- to desse granulado é sinal de edema, evidencian-
gatório quando o músculo bucinador, ao se con- do que a gengiva inserida foi envolvida num
trair, repõe o alimento retido no vestíbulo bucal processo patológico (gengivite) em evolução. A
sobre as superfícies mastigatórias dos dentes. gengiva inserida aparece ligeiramente afundada
Os freios têm ação mais ampla uma vez que, entre dentes adjacentes, devido à sua relação
além das já citadas para as bridas durante a com a gengiva alveolar (pregas interdentais).
ação dos músculos orbicular dos lábios, do soa- b) Gengiva livre
lho bucal e língua, limitam a extensão dos mo- b1) Gengiva marginal: seguindo a forma
vimentos destes órgãos (extroversão labial, mo- sinuosa dos colos dentais e separada da
vimentos de projeção e retrusão da língua). gengiva inserida por um entalhe pouco
Sob o ponto de vista clínico as inserções profundo em forma de V que corre para-
anormais de freios e bridas são de suma impor- lelo à margem da gengiva (sulco margi-
tância, como se verá no capítulo de Etiologia nal) a uma distância de 0,5 e 1,5 mm,
das Más Oclusões Dentais, podendo causar dias- temos a gengiva marginal (Fig. 1.19).
FUNDAMENTOS BIOLÓGICOS BÁSICOS EM ORTODONTIA 21

livre, consideramo-la, nesta obra, como


entidade à parte visto a importância clí-
nica que apresenta.
A gengiva papilar tem a forma de uma pirâ-
mide de vértice afilado nos dentes anteriores, e
vértice truncado nos dentes posteriores. Esta
região truncada do vértice da papila chega a
ser ligeiramente côncava logo abaixo do ponto
de contato, sendo sugerido que esta região co-
berta de epitélio não queratinizado é mais vul-
nerável à doença periodontal.
A gengiva oferece uma constituição um
pouco diferente daquela da mucosa bucal, pois
encerra muito tecido conjuntivo e pouco teci-
do elástico, não possuindo quase glândulas e
apresentando numerosas papilas.
Normalmente rosada, às vezes com um tom
ligeiramente acinzentado devido às variações na
espessura do estrato córneo, difere da mucosa
alveolar que se apresenta vermelha com nume-
rosos vasos pequenos, próximos à superfície.
No feto e no recém-nascido a gengiva for-
ma um bordelete sobre cada borda alveolar,
mostrando uma série de perfurações no mo-
mento da ruptura dos folículos e da emergên-
cia dos dentes.
Durante a erupção dental o epitélio reduzi-
do do esmalte (que recobre primitivamente a
coroa do dente) fusiona-se com o epitélio bu-
cal. A seguir, o epitélio fusionado que cobre a
ponta da coroa se degenera na sua parte cen-
tral e o dente emerge na cavidade bucal atra-
vés desta perfuração. Logo que o dente emer-
ge, o epitélio reduzido do esmalte passa a se
denominar epitélio juncional. À medida que o
dente irrompe, o epitélio juncional separa-se
Fig. 1.19 — Esquema evidenciado: 1. margem gengival; 2. gengiva gradativamente da superfície do esmalte, dan-
livre; 3. sulco marginal; 4. gengiva inserida; 5. junção mucogengival; 6.
mucosa alveolar.
do origem a um sulco pouco profundo que se
estende ao redor de toda a circunferência do
dente -— o sulco gengival. Este sulco fica,
pois, limitado de um lado pelo dente e de
A gengiva marginal apresenta-se constituída outro pela gengiva. O fundo do sulco encon-
por duas vertentes — uma voltada para a cavi- tra-se onde o epitélio juncional (inicialmente
dade bucal — vertente marginal, e a outra vol- epitélio reduzido do esmalte) separa-se da su-
tada para o dente — vertente dental. perfície do dente. A parte da gengiva coroná-
A vertente dental apresenta duas porções: a ria em relação ao fundo do sulco é a gengiva
primeira que forma a parede do sulco gengival marginal (Fig. 1.20).
e a segunda, intimamente acolada ao dente, O epitélio juncional sofre modificações
constituindo-se no epitélio juncional (aderên- fisiológicas com o passar do tempo. Afora aque-
cia epitelial). las relacionadas com a erupção ativa do dente,
b2) Gengiva papilar: a porção da gengiva outras são observadas durante a erupção passi-
que preenche o espaço entre dois dentes va. Esta é definida como a lenta exposição da
adjacentes (espaço interdental) se cons- coroa do dente por separação progressiva do
titui na gengiva papilar. Embora a rigor epitélio juncional e sua proliferação em pro-
a gengiva papilar seja parte de gengiva fundidade.
22 ORTODONTIA • DIAGNÓSTICO E PLANEJAMENTO CLÍNICO

Fig. 1.20 — 1. epitélio bucal; 2. epitélio reduzido do esmalte; 3. esmalte; 4. dentina; 5. cavidade pulpar; e 6. sulco gengival.

Inicialmente o epitélio juncional protege o arquitetônico, apresentam menor dimensão ao


limite esmalte-cemento. Com o passar do tem- nível do colo.
po, fisiologicamente, a aderência epitelial (epi- Este fato resguarda o periodonto de proteção
télio juncional) pode chegar a ser feita com o contra a ação mecânica do bolo alimentar. Toda
cemento, deixando exposto, em maior ou me- e qualquer modificação na linha de maior con-
nor grau, o colo anatômico do dente (Fig. 1.21). torno da coroa, que inclui naturalmente a área
Deve ser ressaltado que todas as coroas den- de contato, repercute desfavoravelmente em maior
tais, sendo construídas sob um mesmo plano ou menor grau sobre a gengiva (Fig. 1.22).

Fig. 1.21 — Modificações fisiológicas do epitélio juncional. 1. esmalte; 2. dentina; 3. cemento; 4. sulco gengival; 5. epitélio juncional; 6. epitélio gengival;
7. osso. Em A o epitélio juncional se prende no esmalte e em D no cemento. Em B e C tipos intermediários deste epitélio.
FUNDAMENTOS BIOLÓGICOS BÁSICOS EM ORTODONTIA 23

ramos da artéria alveolar inferior e vasos lin-


guais.
Estudos da vascularização do periodonto do
macaco Rhesus (Kindlowa) mostraram que na
região vizinha à aderência epitelial (epitélio jun-
cional) há numerosos capilares enovelados for-
mando uma verdadeira coroa vascular. Provavel-
mente, a pressão gerada pelo líquido circulante
nesta densa rede capilar seria um dos fatores da
manutenção da aderência epitelial. A distensão
e redução numérica destes capilares, indicando
alguma obstrução no fluxo sangüíneo, sendo
acompanhada de um aprofundamento do sulco
gengival, seriam elementos que falariam a favor
Fig. 1.22 — Desenho esquemático mostrando em A, o periodonto desta teoria (Fig. 1.23).
protegido, e em B, o periodonto sem proteção contra a ação mecânica
b) Veias: as veias do periodonto formam ple-
do bolo alimentar devido a diferentes curvaturas das faces V e L da
coroa. xos ao nível do espaço alveolodental, podendo
se lançar nos confluentes ósseos, gengivais e
pulpares.
D - VASOS E NERVOS DO PERIODONTO c) Linfáticos: os vasos linfáticos do ligamento pe-
riodontal acompanham os vasos sangüíneos, for-
Embora o estudo da irrigação sangüínea e mam espaços linfáticos e se comunicam com os
da inervação do periodonto mereça atenção provenientes da gengiva e do osso. Seguindo o
especial, resumiremos a seguir alguns tópicos trajeto dos vasos linfáticos da polpa, vão ter aos
de maior importância. linfonodos submaxilares e cervicais profundos.
a) Artérias: as artérias alveolares superior e d) Nervos: a inervação do periodonto é asse-
inferior ao atingirem o ápice do alvéolo forne- gurada por filetes nervosos da segunda e tercei-
cem vários ramúsculos (ramos dentais), muito ra divisão do nervo trigêmeo, ou seja, nervos
flexíveis, que se dirigem para a polpa (arté- alveolares superiores e inferiores.
rias pulpares) e para o espaço periodontal
(artérias periodontais). Estas últimas formam,
ao nível do espaço alveolodental, verdadeira
rede arterial fornecendo ramos colaterais que
se anastomosam com os provenientes da espon-
josa do osso alveolar e da gengiva.
A grande flexibilidade dos ramos arteriais
provenientes das artérias dentais encontra ex-
plicação, segundo Böedeker, na adaptabilidade
funcional contra choques e distensões a que a
peça dental estaria sujeita.
A rede anastomótica do espaço alveolodental
assegura o suprimento sangüíneo à região do
periodonto, mesmo quando, por razões várias
(apicectomia, pulpectomia), o feixe vasculoner-
voso apical é extirpado.
Circundando a crista óssea interalveolar,
abaixo do colo dental, forma-se uma coroa de
elementos vasculares oriundos das artérias
periodontais e osso alveolar que, segundo
Erausquin, teria importância na regeneração
dos feixes de fibras colágenas da crista alveolar.
Para Gaunt, o suprimento sangüíneo dos
Fig. 1.23 — Esquema da irrigação do periodonto do macaco Rhesus:
dentes superiores e tecidos de suporte seria 1. coroa vascular da gengiva; 2. vasos do ligamento alveolodental; 3.
proveniente dos ramos arteriais alveolares su- rede capilar gengival; E. esmalte; D. dentina (reproduzido de Kindlowa
periores e vasos palatinos, e na mandíbula, de in Anatomia Dental).
24 ORTODONTIA • DIAGNÓSTICO E PLANEJAMENTO CLÍNICO

Os filetes destinados ao ligamento perio- São movimentos pouco extensos, sendo os


dontal que acompanham os elementos vascula- primeiros devido à ação dinâmica da muscu-
res são sensitivos. A sensibilidade táctil do latura lábio-glosso-geniana, e os segundos,
periodonto é de grande importância na regula- conseqüentes à própria posição dentária,
ção das forças que agem sobre os dentes e re- pois, como é sabido, todos os dentes perma-
centemente foi estudada por Kawamura e Wa- nentes têm uma inclinação geral da coroa e
tanabe, Kraft e por Sirila e Lane. A partir destas raiz, para o lado mesial.
pesquisas, ficou evidenciado que os dentes são Movimento de rotação — É o mais limitado
capazes de detectar corpos estranhos com pou- que o dente pode sofrer pelo fato de a morfo-
ca micra de diâmetro. logia radicular nunca ser perfeitamente cônica.
A sensibilidade proprioceptiva ou sinesté- Pequenas rotações podem ser efetuadas para
sica, que se encontra relacionada com as sen- qualquer dos lados da coroa.
sações de posição, pressão e com o sentido Nos movimentos de rotação com finalida-
de movimento, também é recolhida por re- de ortodôntica, verificou-se que os feixes de
ceptores periodontais. Embora existam re- fibras do grupo supra-alveolar do ligamento
ceptores para a propriocepção no ligamento alveolodental, são os responsáveis pela recidi-
periodontal e tecidos moles adjacentes, suas va do deslocamento após o dente ter atingido
características não estão bem definidas, se a posição correta no arco. Eis porque se acon-
bem que sua presença tenha sido estudada selha, nestes casos, uma super-rotação, ou de-
histológica e eletrofisiologicamente por sinserção cirúrgica dos referidos feixes.
Breaudreau e Jerge, Bernick, Jerge, Kirstine, Movimentos de translação — Para que o dente
Lewinksy e Stewart. realize o movimento de translação, ou seja, de
Funcionalmente, o aparelho de sustentação todo seu corpo, há necessidade do uso de apa-
do dente, além de sua precípua função mante- relhagem ortodôntica especializada. Caso con-
nedora e sensitiva, transmite e transforma as trário, os movimentos realizados pelos dentes
forças que se manifestam sobre cada unidade serão sempre de inclinação ou de rotação em
dental às paredes da loja alveolar correspon- torno de um eixo.
dente. De fato, dada à arquitetura especial das O movimento de translação do dente veri-
fibras conjuntivas componentes do ligamento, fica-se durante sua migração, e é um reflexo
as forças de pressão que se produzem sobre os das forças funcionais que se manifestam so-
dentes, são transmitidas ao osso sob a forma de bre os ossos. De fato, por paradoxal que pa-
forças de tração. Estas são fisiológicas e bem reça, o osso é o mais plástico dos tecidos de
suportadas pelo tecido ósseo. nossa economia; ele responde às pressões
Os aspectos biomecânicos da movimentação com reabsorção, e às tensões, com aposições
ortodôntica devem ser uma preocupação cons- de novas camadas. A translação dental é lar-
tante na prática diária. Jamais os procedimen- gamente utilizada em ortodontia quando
tos mecânicos podem desrespeitar os funda- procura posicionar dentes nos devidos luga-
mentos biológicos, sob pena de irreparáveis res. Oppenheim assevera que as variações na
danos aos tecidos. intensidade das forças aplicadas sobre os
Fisiologicamente, os movimentos apresenta- dentes podem modificar o ponto de apoio
dos pelos dentes são: em torno do qual eles giram.

Movimentos verticais — São os que tendem a 4. JUNTURA


aprofundar o dente no alvéolo (movimento TEMPOROMANDIBULAR
de pistão ou aprofundamento). Verificados
durante a mastigação, são devidos à força de A juntura temporomandibular, ou simples-
pressão que tende a intruir o dente. São as mente ATM, é uma articulação do tipo sinovial,
fibras oblíquas que resistem a estas forças. Em que se estabelece entre as extremidades ósseas
termos absolutos de movimento, as forças de da cabeça da mandíbula, a cavidade glenóide e
compressão aplicadas a um dente são as que o tubérculo articular do temporal.
determinam menor alteração ou deslocamen- A fim de tornar concordantes tais superfí-
to da peça. cies ósseas e servir de amortecedor aos cho-
Movimentos laterais — Efetuam-se no senti- ques a que esta juntura está submetida, inter-
do das faces vestibulares ou linguais (vestibu- põe-se a ela o menisco articular, formado por
lolinguais) e mesiais ou distais (mesiodistais). tecido conjuntivo fibrocartilagíneo. As super-
FUNDAMENTOS BIOLÓGICOS BÁSICOS EM ORTODONTIA 25

fícies ósseas estão unidas através da cápsula Por outro lado, os receptores nervosos situa-
articular que, na parte posterior da juntura, dos nos ligamentos teriam importante papel
se espessa para constituir o ligamento tempo- de guia na função muscular. Basicamente, du-
romandibular. Ligamentos à distância ou rante a mastigação, há uma combinação de
acessórios, estão representados pelo esfeno, dois movimentos na ATM — rotação ou do-
estilo e pterigomandibular. As superfícies ar- bradiça e translação ou deslizamento. Da com-
ticulares ósseas são recobertas por um tecido binação destes movimentos temos a diducção
conjuntivo fibroso, denso, avascular, que con- (lateralidade), a abertura e fechamento da
tém variáveis quantidades de células cartilagí- boca e a protrusão e retrusão da mandíbula.
neas, dependendo da idade do indivíduo e Delicados mecanismos neuromusculares de
do esforço funcional a que é submetida a controle e coordenação dos esforços funcio-
juntura. A membrana sinovial atapeta inter- nais protegem a ATM de traumas. Todavia,
namente os espaços não coincidentes com as movimentos não fisiológicos dos maxilares
superfícies articulares e produz pequena ocasionados por más oclusões, hipertonicida-
quantidade de líquido sinovial. O músculo des musculares, contatos prematuros oclusais,
pterigóideo externo ao se inserir fortemente etc., têm efeito lesivo sobre a juntura.
no colo da cabeça mandibular, envia tendões Resultados de pesquisa concernente à adap-
que se conectam com a cápsula articular e o tabilidade da articulação temporomandibular,
menisco (Fig. 1.24). têm demonstrado a necessidade de adaptar a
Pesquisas recentes sugerem que receptores oclusão à ATM, pelo menos em indivíduos
sensoriais existentes na cápsula articular po- adultos. Devido às múltiplas necessidades fun-
dem influenciar o núcleo motor do trigêmeo, cionais e magnitude das forças que exercem na
sendo este fato de grande importância no con- ATM, as funções normais e as más oclusões
trole da atividade dos músculos mastigadores. podem e devem ter repercussão na juntura.

Fig. 1.24 — Figura esquemática de uma vista medial da articulação


temporomandibular, mostrando:
1. cavidade glenóide;
2. cavidade temporomeniscal;
3. cavidade meniscomandibular;
4. disco;
5. cabeça da mandíbula;
6. ligamento estilomandibular;
7. ligamento esfenomandibular;
8. ligamento pterigomandibular;
9. músculo pterigóideo lateral (externo),
10. músculo pterigóideo medial (interno) e
11. processo pterigóideo do osso esfenóide.
26 ORTODONTIA • DIAGNÓSTICO E PLANEJAMENTO CLÍNICO

5. SISTEMA MUSCULAR masseter


MASTIGADOR E MOVIMENTOS propulsores pterigóideo
Músculos
MANDIBULARES medial (interno)
elevadores
da mandíbula retropulsores temporal
Os padrões para os movimentos mastiga-
tórios são fatores herdados e seu aperfeiçoa-
mento se dá pela experiência individual. Em pterigóideo
propulsores
animais, mesmo desprovidos de córtex cere- Músculos lateral (externo)
bral, conforme sejam estimuladas as regiões abaixadores digástrico
de incisivos, mucosa vestibulolingual anterior da mandíbula retropulsores miloioídeo
à região molar ou coincidente com esta, de- genioioídeo
sencadeiam-se reflexos mastigatórios. No pri-
meiro caso surgem reflexos de roer; no se-
gundo, movimentos de abertura e fechamen- Além dos músculos ditos mastigadores, du-
to da boca e, no terceiro, movimentos de di- rante o ato mastigatório, participa ativamente a
ducção. musculatura lábio-línguo-geniana.
O ato mastigatório é uma atividade neuro- A aplicação do método de captação dos po-
muscular altamente complexa, baseada em re- tenciais elétricos dos músculos em atividade
flexos condicionados, guiados pelas fibras pro- (eletromiografia), propiciou a observação da
prioceptivas relacionadas com os dentes (liga- complexa ação muscular durante a mastigação.
mento), com a ATM, com os músculos mastiga- A eficácia da contração muscular depende não
dores, assim como pelo sentido do tato da mu- só do número de fibras que se contraem e da
cosa vestibulolingual (Fig. 1.25). propriedade particular de contratilidade de
Ainda que funcionalmente possamos gru- cada uma delas, mas também da disposição ar-
par os músculos mastigadores conforme se se- quitetural dos feixes musculares e dos seus ele-
gue, estudos eletromiográficos recentes eviden- mentos passivos, os tendões.
ciam a atividade de vários grupos musculares Nos músculos mastigadores, os tendões são
numa mesma função (Fig. 1.26). curtíssimos, pois não há necessidade de gozar

1

2

2➞



3 1

Fig. 1.25 — Esquema elucidando a participação de vários grupos Fig. 1.26 — Esquema mostrando os músculos masseter 1 e pterigoídeo
musculares no movimento de abertura da boca: 1 músculo temporal, medial 2.
2 músculo pterigoídeo lateral e 3 músculo pterigoídeo medial.
FUNDAMENTOS BIOLÓGICOS BÁSICOS EM ORTODONTIA 27

da elasticidade arquitetônica dessas estruturas,


uma vez que a força muscular deve ser transmi-
tida quase que integralmente sobre os elemen-
tos ósseos a serem movimentados.
Os músculos mastigadores, como todos os
outros, têm uma posição de repouso (alonga-
mento de repouso fisiológico ou tônico).
Quando funcionam, eles se alongam ou se en-
curtam, porém sempre voltam à posição de
alongamento tônico. A cabeça, que se mantém
sobre a coluna, é movimentada pelo seu siste-
ma neuromuscular para as mais variadas posi-
ções funcionais, porém ela não pode permane-
cer por muito tempo fletida ou rodada sobre a
coluna, sem que a musculatura que proporcio-
nou tal movimento entre em cansaço por esfor-
ço. Há, pois, uma posição ereta e natural da
cabeça, posição de conforto, na qual todos os
músculos motores se encontram em alonga-
mento fisiológico tônico (tonicidade). O mes-
mo diga-se com respeito à mandíbula, que
Fig. 1.27 — Esquema representativo dos músculos da cabeça
pode permanecer em posição relativamente es- evidenciando, entre outros, os músculos cuticulares ou da expressão
tável, de conforto, desde que seus músculos as- facial, responsáveis em parte, pelo equilíbrio dental. Músculos 1
sumam atitude de alongamento de repouso orbicular da boca, 2 mentoniano, 3 depressor do lábio inferior, 4
(tônico). Entretanto, quando movimentada pe- depressor do ângulo da boca, 5 bucinador, 6 zigomático maior, 7
los seus músculos, não pode manter-se indefini- zigomático menor, 8 canino, 9 elevador do lábio superior, 10 elevador
do lábio superior e da asa do nariz.
damente afastada da maxila ou cerrada contra
ela, em posição lateral ou de protrusão, isto é,
em posições estáticas, antinaturais, sem que a
musculatura entre precocemente em fadiga. dos lábios, é reforçado anteriormente pelos fei-
Esta posição fisiológica de repouso (posição xes musculares radiais e, posteriormente, pelo
postural) tem assumido, no diagnóstico ortodôn- músculo constritor superior da faringe.
tico, papel de destaque através da análise funcio- Este sistema, cuja inervação provém de di-
nal para a interpretação das más oclusões. De ferentes fontes (nervos hipoglosso, facial, bu-
fato, as relações oclusais (ou exame dos modelos cal e plexo faríngeo), coordena funções varia-
em oclusão) podem nos induzir a falsas más oclu- das atinentes com a sucção, mastigação, deglu-
sões não detectadas em posição postural. tição, vocalização e postura. Estudos eletromi-
ográficos demonstraram que, mesmo quando
6. SISTEMA LÁBIO- os músculos peribucais estão em posição pos-
LÍNGUO-GENIANO tural de repouso, influenciam o equilíbrio dos
arcos dentais. Normalmente a força muscular
A integridade dos arcos, constituídos pela perioral e lingual está contrabalanceada, man-
sucessão dos dentes e suas relações recíprocas, tendo o normal posicionamento dos dentes
é o resultado do padrão morfogenético modifi- sobre o osso basal. Desvios da atividade mus-
cado pela ação funcional estabilizadora dos cular provocam más posições dos dentes,
músculos. Neste sentido, a musculatura cutâ- como se vêem em certos casos de Classe II
nea ou cuticular, mais que a mastigadora, tem divisão 1 (Fig. 1.28).
papel preponderante. De fato, contornando os Funcionalmente, lábio, língua e bochecha
arcos formados pelos dentes superiores e infe- têm funções diversas, porém, interdependen-
riores, dispõem-se, entre outros, uma série de tes. Os lábios agem na sucção, na pronúncia de
músculos cuticulares responsáveis, em parte, certas consoantes ditas labiais, em diferentes
pela manutenção do equilíbrio vestibulolingual expressões fisionômicas e no equilíbrio vestibu-
dos dentes (Fig. 1.27). Isto porque o sistema lar dos dentes anteriores.
lábio-línguo-geniano, além de formado pelos A bochecha, além de sua função estética e
músculos da língua, pelo bucinador e orbicular mastigadora, reconduzindo os alimentos do
28 ORTODONTIA • DIAGNÓSTICO E PLANEJAMENTO CLÍNICO

1 1

2 2

2
1
3
3

Fig. 1.28 — Esquema destinado a mostrar a ação da musculatura Fig. 1.29 — A ação e direção das forças musculares labial (1), lingual
peribucal no equilíbrio dos dentes. Os músculos orbicular dos lábios (1), (2) e supra-hioídea (3), estão representadas neste esquema calcado
bucinador (2) e constritor superior do faringe (3), formam o assim sobre um traçado cefalométrico.
chamado mecanismo do bucinador.

fórnice para as superfícies oclusais, atua no ato bios, bochechas, língua, mucosa bucal, glân-
de soprar e no equilíbrio vestibular dos dentes dulas salivares, vasos e nervos dos Iº e IIº ar-
jugais. cos branquiais.
A língua é um órgão concernente com a As diferentes partes deste aparelho funcio-
mastigação, deglutição, vocalização e gustação. nam continuadamente na mastigação, degluti-
Órgão essencialmente muscular, está revestida ção, vocalização, respiração, equilíbrio da cabe-
por um estojo mucoso onde encontramos glân- ça, mandíbula, língua e osso hióide. A fisiolo-
dulas mucosas, tecido linfóide (amígdala lin- gia e mecânica do aparelho mastigador é por
gual) e papilas gustativas. Através do arranjo de demais complexa, não sendo possível estabele-
seus músculos, a língua pode adotar uma infi- cer-se uma hierarquia completa dos vários me-
nidade de posições, alterando a capacidade do canismos neuromusculares que sobre ele inter-
cavo bucal, modificando-lhe a forma e variando vêm. Contudo, alguns aspectos de seu funcio-
a quantidade de ar emitido durante a produção namento podem ser relacionados especifica-
do som laríngico. Age também na mastigação, mente com componentes neuromusculares de
impulsionando o alimento para as superfícies estruturas bucais e estruturas anexas.
oclusais dos dentes e mantendo o equilíbrio Para se avaliar as anormalidades de forma
lingual destas peças. e função do aparelho todo, é preciso estudar
Muitos aspectos práticos e funcionais na e bem compreender a morfologia, o cresci-
construção de aparelhos ortodônticos baseiam- mento, a fisiologia desse aparelho e sua evo-
se nas inserções, morfologia, direção e ação das lução filo e ontogenética. Ademais, com os
fibras musculares (Fig. 1.29). modernos métodos de análise dinâmica do
crânio, desenvolveu-se o conceito de matriz
7. MECANISMOS funcional aplicado ao conhecimento do cres-
NEUROMUSCULARES E cimento craniofacial. Assim, aos processos
NUTRITIVOS neurotróficos de regulação e controle do
crescimento devem ser acrescidos os conheci-
O aparelho mastigador ou estomatognáti- mentos de vascularização dos diversos setores
co compreende os dentes com seus tecidos do aparelho mastigador.
suportes, as maxilas, a articulação temporo- Qualquer terapêutica que vise corrigir os
mandibular, os músculos mastigadores, os lá- distúrbios morfofuncionais desse aparelho or-
FUNDAMENTOS BIOLÓGICOS BÁSICOS EM ORTODONTIA 29

gânico deve ser conduzida segundo os funda- Ignorar o mecanismo, a estática e a dinâmi-
mentos anatomofisiológicos de todas as partes ca do aparelho mastigador é ignorar as causas
isoladas, mas que funcionam coletiva e interde- fundamentais da saúde ou doença do homem.
pendentemente como uma unidade biológica. Nenhum ortodontista poderá se desinteres-
Se os processos técnicos de tratamento viola- sar dos efeitos resultantes das deficiências do
rem quaisquer dos princípios anatomofuncionais, aparelho mastigador, porque esses efeitos
se não for respeitada a unidade biológica do apa- têm, desde o nascimento, repercussões sobre
relho, o objetivo de restaurar a forma e a função o desenvolvimento morfofuncional de todo o
da parte implicada certamente não será atingido. organismo.

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