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JEAN-LUC NANCY
PHILIWE LACCUE·LABARTHE
•
escuta
Jean-Luc Nancy
Philippe-Lacoue Labarthe
O TÍTULO DA LETRA
(Uma leitura de Lacan}
Traducão de
Sergio Joaquim de Almeida
Revisão Técnica de
Durval Checchinato
facebook.com/lacanempdf
© by Éditions Galilée, 1973
© ·by Editora Escuta para a edição em língua portuguesa
Nancy, Jean-Luc.
O titulo da letra : uma leitura de Lacan / Jean-Luc
Nancy, Philippe Lacoue-Labarthe ; tradução de Sérgio
Joaquim de Almeida ; revisão técnica Durval Checchi
nato. -- são Paulo : Escuta, 1991.
Bibliografia.
91-1468 CDD-150.195
lndices para catálago sistemático:
1. Lacan, Jacques : Teoria psicanalítica 150.195
APRESENTAÇÃO 9
POSICIONAMENTO. • • • . . . . . . . • • • . . • • . . . . . . . . 13
UM GIRO DE LEITURA. . . . . . . . . • . • . . • . . . . • • • . 17
PRIMEIRA PARTE
A LÓGICA DO SIGNIFICANTE................. 29
1. A ciência da letra. . . . • . . . • • . • . . . . • . . . . • • • • 35
2. O algoritmo e a operação ..••...•.••... '. . • • • 41
3. A árvore do significante. • . • . • • • • • • . . . . . • • • . 59
4. A significância. • • • . . . . . . . • . . . . . . . . . . . . . . 69
SEGUNGA PARTE
A ESTRATÉGIA DO SIGNIFICANTE. • • • • . . . . • . • • 87
1. A estratégia. • . • . . • • . • . . . . . • • . • . • . • . . • • • • 95
2. O sistema e a combinação. . . . . . . • . . . . . . . . . . . 113
3. A verdade "homologada". . . . . • . . . . • • . . . • • • • 141
APRESENTACÃO
,
É o que faz com que hoje, e de maneira que parecerá talvez pa-
ra alguns um paradoxo, eu lhes aconselhe a ler um livro do qual o
mínimo que se pode dizer é que ele me diz respeito. Esse livro se
chama Le titre de la lettre (O título da letra), e foi publicado pelas
edições Galilée, coleção À la lettre. Não lhes falarei dos seus autores,
que me parecem no caso representar antes o papel de pífaros.
Não é, se tanto, diminuir seu trabalho, pois direi que, quanto a
mim, é com a maior satisfação que o li. Desejaria submeter este au-
ditório à prova desse livro, escrito com as piores intenções, como
vocês poderão constatar nas trinta últimas páginas. Eu não poderia
senão encorajar demais sua difusão.
Posso dizer de certo modo que, se :,e trata de ler, jamais fui tão
bem lido - com tanto amor assim. Seguramente, como se verifica
com a inclinação do livro, é um amor do qual o mínimo que se pode
dizer é que seu estofo habitual na teoria analítica não pode deixar de
ser evocado.
Mas é dizer demais. Talvez mesmo seja dizer demais colocar lá
dentro, de uma maneira qualquer, os sujeitos. Seria talvez reco-
nhecê-los demais enquanto sujeitos, por evocar os sentimentos deles.
Digamos então que é um modelo de boa leitura, a ponto de
poder dizer que lamento não ter jamais conseguido, daqueles que
me são próximos, nada que seja equivalente.
Os autores acreditaram dever limitar-se - e, meu Deus, por
que não cumprimentá-los por isso, já que a condição de uma leitura
é evidentemente que a si mesma ela imponha limites - a um artigo,
recolhido aos meus Escritos, que se chama A instância da letra.Par-
tindo do que me distingue de Saussure e que faz com que eu tenha,
APRESENTAÇÃO 11
limitado, nosso trabalho. Ver-se-á, por outro lado, não haver na-
da aqui que suponha - mesmo que fosse por provisão, e contra-
riamente, talvez, a certas aparências - a idéia ou o horizonte de
uma "interpretação" exaustiva e sistemática da obra de Lacan;
nada, caso se prefira, que vise a seu esgotamento ou a sua satu-
ração significante ( com que direito, em que discurso arriscar-se-
iam a isso?). As indicações avançadas, aqui ou acolá, em direção
a outros textos de Lacan valem apenas no regime que quisemos
dar-lhes, aquele das notas plurais e dispersas. Este trabalho foi,
antes de tudo, suscitado pelo indecidfvel* da (ou na) questão da
"interpretação" de Lacan (isto é, logo - embora não imediata-
mente - de Freud); e é nele que se manteve.
3. Por certo que não se trata, neste caso, senão do mais manifesto discurso
de Freud e, além disso, neste mesmo discurso, dos efeitos de uma certa prudên-
cia deliberada. Mas, aqui, não nos aplicaremos a ler Freud.
4. La psychanalyse et son enseignement. Écrits, p. 454. Cf. todo este tex-
to. - As referências aos Écrits remetem à edição completa lançada pela Seuil
(coleção "Le champ freudien") em 1966. Elas serão daqui em diante anotadas
por E. - e não serão colocadas em notas quan{o pertencerem ao texto que esti-
vermos a ler. Tudo que se segue supõe que, a todo o instante, se possa reler, des-
se texto, bem mais do que vamos citar.
5. Idem.
6. La science et la vérité, E. 867.
20 O TfTULO DA LETRA
legiar este escrito. Por várias razões, outros escritos são, por certo, pelo menos
tão importantes quanto ele dentro do dispositivo lacaniano (A carta roubada, A
significação do Fálus, subversão do sujeito, por exemplo). Resta, por um lado, que
estes textos são difíceis de ler, sem o discurso que os guarnece; por outro lado, é
à propriedade (e não ao "privilégio") te61ica deste escrito que nossa leitura se
aplica - no torneio próprio assumido ou representado aí pelo teórico.
13. Este texto, oriundo de um seminário de 1955, traz, no entanto, como o
assinala Lacan (E. 61), as marcas da teoria tal como fora elaborada na época da
sua redação, que antecede, de pouco, a da Instância.
14. Cf. E. 908.
24 O TÍTULO DA LETRA
16. A respeito dos comentários fdtos até aqui sobre Lacan, é necessário di-
zer, pelo menos, que não são exatamente empregados como comentários no "tex-
to" que queriam interpretar ou repetir. Não é preciso dizer que não estamos a
falar, aqui, dos textos ou das exposições que, em se apresentando expressamente
sob uma referência constante a Lacan, até como uma "reprise" de seus termos,
nem por isso quiseram ser comentários: assim, em particular, "Da estrutura na
psicanálise" por M. Safouan, in Estrutura e psicanálise, Cultrix, São Paulo.
UM GIRO DE LEITURA 27
A LÓGICA DO SIGNIFICANTE
Trata-se, agora, de decifrar - e igualmente, portanto, para
começar a criar uma espécie de subtítulo pelo qual se anuncie es-
ta primeira parte: O sentido da letra.
Convém, por certo, entendê-lo de início, precisamente em vá-
rios sentidos, isto é (mesmo que a nota possa parecer, neste ca-
so, um tanto quanto forçada), de acordo com o sentido que se
queira dar ao termo sentido e, bem entendido, o valor que se
atribuirá ao genitivo. Seja o caso, por exemplo, e para nisso insis-
tir bastante: a significação do conceito de letra; ou, então: o senti-
do que a letra produz (ou até: o sentido que é a letra); ou até, ain-
da: ter o sentido da letra, assim como se diz "ter senso dos negó-
cios". Mas indispensável é, também, por certo relacioná-lo com o
título geral: a Instância da letra no inconsciente ou a razão após
Freud, do qual pode-se dizer que seja apenas a primeira moeda-
gem.
O comentário de um título supõe sempre que se tenha termi-
nado a leitura do texto que ele comanda. Não se trata, pois, de
arriscar-se a isso nem por artimanhas. Mas uma vez que, apesar
de tudo é necessário situar, pelo menos, o texto que temos que ler
(é uma regra clássica) permitindo-nos fazer, sobre tal título, duas
observações prévias:
A primeira será a respeito do uso da palavra, ou do conceito,
instância - ficando entendido, se nos é facultado antecipar um
32 O TÍTULO DA LETRA
3. Tudo isto pode, com efeito, ser sustentado sob a condição de não omitir
que fora um ano antes (em 1956) que Benveniste propusera o conceito de
"instância do discurso" para designar "os atos discretos e cada vez únicos por
meio dos quais a língua é atualizada em palavra falada por um locutor". (Proble-
mes de lingui.stique générale, p. 251). Ora, esta definição servia precisamente, co-
mo se sabe, para conduzir a análise da "natureza dos pronomes", na qual se
constituía, em homenagem a R Jakobson, que mais tarde a reformulará (les Em-
brayeurs... , in Essai.s de lingui.stique générale, p. 178 e ss.), a teoria da enun-
ciação e dos "indicadores" do discurso - de que teremos que falar de novo, é
claro. Mas não se há de esquecer, também, que, em Aristóteles, a ·EV<M'O'.O'L<;
designa na teoria da refutação, o obstáculo que é oposto ao arrazoado de um ad-
versário (Rhétorique, II, 25, 1402a); cf. Premiers analytiques, II, 26, Topiques, VIII,
2, 157ab. Esta "instância" é, em particular, aquela que a exceção opõe a uma
pregação universal.
Um exemplo deste topos parece ser este aqui, que avaliaremos dentro de
seu mais "justo" valor. "em certas regiões, é bom sacrificar seu pai, entre os Tri-
bailes, por exemplo, mas isto não é, de forma alguma, um bem" (Topiques, II, 11,
115b).
34 O TÍTULO DA LETRA
que Lacan retém por ora, a afasia, cuja causa pode bem ser
anatômica, acha-se ali mais fundamentalmente determinada de
acordo com a estrutura da linguagem, isto é, não-anatomicamen-
te; e o é de tal forma que a instância, aqui, seja a própria estrutu-
ra.
Por outro lado, a literalização prende-se ao fato de o sujeito,
como locutor, tomar emprestado à estrutura da linguagem o su-
porte material de seu discurso: "designando como letra [diz Lacan]
esse suporte material que o discurso concreto toma emprestado à
linguagem" (E. 495). Dois conceitos estão em jogo aqui: antes de
tudo, o conceito de discurso concreto. Ele é determinado por sua
relação, ao mesmo tempo, com a linguagem enquanto estrutura e
com a fala (no sentido saussuriano, como execução individual da
língua) para reter o elemento comum aos dois. Por sua vez, este
elemento é duplamente especificado (e, aqui, tomaremos empres-
tado do texto intitulado Função e campo da fala e da linguagem
em psicanálise algumas formulações) na "intersubjetividade da fa-
la" na interlocução e na "transindividualidade" da linguagem (e
do sujeito): "seus meios, diz Lacan a propósito da psicanálise, são
os da fala na medida em que ela confere um sentido às funções
do indivíduo; seu domínio é aquele do discurso concreto enquan-
to campo da realidade transindividual do sujeito" 1•
O segundo conceito em jogo é o de suporte material. Repor-
tar-nos-emos aqui, a dois texi:os: de um lado, o Seminário sobre
''A carta roubada", onde se sabe que a partir da carta (a missiva)
que dá seu título à novela de Poe e que, urge lembrar, está es-
condida num lugar tão evidente que ninguém a enxerga, Lacan
chama de materialidade do significante ao mesmo tempo a ap-
tidão do significante para a localização, sua "re_lação com o lu-
gar"2.
Mas uma localização que, estranhamente, é sempre uma
"ausência em seu lugar", se lugar tiver que designar um espaço
na realidade objetiva - e seu caráter insecável - localização e in-
secabilidade que atribuem, então, uma materialidade singular ( as-
sim Lacan traduz o termo inglês odd) ao significante. Essa
1. E. 257.
2. E. 23.
A CIÊNCIA DA LETRA 37
3. E. 23,24.
4. E. 301.
38 O TÍTULO DA LETRA
querer fundá-la não significa dizer que seja sem origem nem
mesmo, de certa forma, que já não esteja criada. A ciência da le-
tra não deixa de estar relacionada, de fato, com a lingüística, pelo
menos enquanto a teoria do sujeito deve submeter-se a uma teo-
ria da linguagem. Por isso é que se pode considerar que esta pri-
meira parte acaba no apelo feito por Lacan à fundação saussuria-
na da lingüística como ciência. Apelo que é formulado nos pró-
prios termos da epistemologia contemporânea, isto é, ao mesmo
tempo na evocação do estatuto experimental da lingüística, fiador
da científicidade de seu objeto (E. 496) e na aplicação do conceito
bachelardiano de ruptura 5 ao gesto fundador de Saussure. É sobre
tal "emergência" da lingüística, uma "revolução do conhecimen-
to", que é preciso, portanto, ajustar, na medida em que desclassi-
fica e reclassifica todas as ciências, uma teoria do sujeito sem re-
lação com qualquer antropologia ou qualquer psicologia que seja.
A não ser que não se trate do movimento inverso e que não seja
de deslocamento introduzido pela lingüística que deva produzir-
se uma ciência do sujeito. Por ora, uma reciprocidade impossível
de desfazer-se, salvo a se notar que, se se deve seguir ainda passo
a passo o movimento deste texto, é bem da lingüística que proce-
de a ciência do sujeito para ir-se constituindo progressivamente.
Isto é o que tentaremos reconstruir em cima de uma segunda
parte, dividida entre as páginas 497 e 501 do texto a que damos o
nome de o algoritmo e a operação.
1. Cours, p.159.
O ALGORITMO E A OPERAÇÃO 43
3.
O ALGORITMO E A OPERAÇÃO 45
6. Cours, p. 99.
48 O TÍTULO DA LETRA
l
Lacan o reproduz, pois, invertendo-o e suprimindo-lhe a elip-
se e também as duas flechas da associação:
ÁRVORE
HOMENS DAMAS
LJ LJ
Isto funciona como uma espécie de duplicata paródica do es-
quema saussuriano. Mas em que consiste exatamente a diferen-
ça?
... vê-se [diz Lacan] que, sem estender muito o alcance do significan-
te interessado na experiência, seja redobrando-lhe somente a espécie
nominal apenas pela justaposição de dois termos cujo sentido com-
plementar parece dever consolidar-se com isso, a surpresa é produ-
zida por uma precipitação inesperada do sentido: na figura das duas
O ALGORITMO E A OPERAÇÃO 49
Decomponhamos:
1. Dois termos inscrevem-se acima da barra, no lugar do sig-
nificante (ou da "figura acústica" de Saussure). Primeiro momen-
to da operação: a duplicação do significante ou, mais exatamente,
a introdução de uma dualidade no significante, isto é, de uma di-
ferença. No sistema saussuriano, esta justaposição (possível, é
claro) teria feito a diferença atuar como consolidação do valor de
cada um dos dois termos - e, portanto, de valor complementário
deles. Mas precisamente este esquema não é saussuriano.
Com efeito:
2. No lugar do significado ( ou do conceito) esperado - de-
veriam ser, por exemplo, silhuetas masculina e feminina - encon-
tra-se "a figura das duas portas". Ou, então, ainda o esquema to-
do reproduz ou figura um dispositivo bem real (uma edícula pú-
blica ou, pelo menos, sua fachada) ou, bem, no lugar do significa-
do, e apagando-o, introduziu-se urna outra função. Lacan, numa
formulação particularmente ambígua (pelo fato de interdizer,
aparentemente, que se possa decidir entre o simbólico e o real),
fala de simbolização: "A figura de duas portas... que simbolizam
com o mictório [a indecidibilidade está, aqui, neste "com"] ... o
imperativo etc.". Voltaremos, num instante, a este equívoco. Di-
gamos simplesmente aqui que, em lugar do significado, introduz-
se a simbolização·de uma lei, que é uma lei de segregação sexual
que Lacan indica bem como sendo praticamente universal - e
co~parável neste ponto às leis gerais da cultura.
y
3. Por fim, a passagem do significante nesta simbolização ( o
equivalente, portanto, ao processo por onde é gerada a signifi-
cação) é dada como uma "precipitação do sentido". Formulação
notável, mais uma vez, uma vez que se presta pelo menos a três
interpretações, não obstante, engraçadas: porque isso pode,
também, querer dizer que o sentido cai de cabeça para baixo (e
não se diz onde ...) ou que o.sentido vai depressa demais, curto-
circuitando o significado (o homem e a mulher, como conceitos,
50 O TÍTULO DA LETRA
quase não são mais audíveis a não ser através da porta) ou, enf(m,
que o sentido precipita-se no sentido químico da palavra, isto é,
que se deposita como tal no meio ou na solução do significante.
Vê-se, logo, que a "sideração" (por meio de um golpe baixo)
do debate nominalista (E. 500) consiste em suprimir pura e
simplesmente toda a questão da referência (compreendida como
determinando a posição do significado) para substituí-la por um
"acesso" do significante ao significado (E. 501), uma "entrada"
do significante no significado (E. 500) através ou, antes, por meio
do jogo do único significante, confirmado aqui em sua tríplice de-
terminação: materialidade /localização/simbolização.
(H) - - - : / = ~ ( D )
HOMENS DAMAS
ÁRVORE
S? EJEl
-----
R/Si
(S.do)
Símbclo
Lei
7. E.46.
54 O TÍTULO DA LETRA
guém o ousou fazer" 8). Não é mais a outra face do signo em re-
lação ao significado e só existindo nesta associação, mas esta or-
dem do espaçamento segundo o qual é inscrita, marca-se a lei
como diferença. Ou, até, como vemos agora, que é preciso no-
meá-lo, este buraco estrutural segundo o qual é marcada a lei co-
mo diferença.
Dito isto, a própria operação fica ainda por ser produzida. É
preciso assegurar o funcionamento do algoritmo, isto é, de fato,
permitir ao único significante que suporte o peso todo deste fun-
cionamento, uma vez que a "significação" não deve passar pelo
significado. Tem que se arranjar, portanto, uma "entrada" no sig-
nificado, sem que, no entanto, em algum momento, venha a
apoiar-se sobre algum significado. De acordo com os termos da
ilustração ferroviária - noteriios, de passagem, que o equívoco
do simbólico ainda persiste nesse caso - trata-se de o significado
estar saindo dos trilhos e chegando às crianças (pela porta, pelo
corredor ou pela tubulação do vagão).
A "fórmula" desta operação é a seguinte:
Vê-se que é uma fórmula nem clara nem unívoca. Pois o que
aqui é constrangedor 1 o que comanda todo processo, é o próprio
algoritmo ser "pura função do significante". Ora, isto pode ser
entendido de duas maneiras:
- ou bem, de fato, função do significante quer dizer, sim-
plesmente, que o algoritmo está escrito em função do significante
ou, mais exatamente, que ele é a notação da posição e do proces-
so do significante. O que equivale a dizer, então, que o algoritmo
vale aqui por seu conteúdo, tal como já foi determinado; mas,
também, dada esta formulação, na medida em que ali se acha
acentuada (pela pureza da função) a predominância do significan-
te. Se o algoritmo deve ser lido como notação do único significan-
te e de uma operação para a qual ele é o suficiente, se o algorit-
9. E. 806.
56 O TÍTULO DA LETRA
10. E. 801.
11. E. 819.
O ALGORITMO E A OPERAÇÃO 57
(idéias confusas)
J~~~L,;7,~1.
~~~~1ar~·
~~-~~~
(sons confusos)
Ora, desse esquema é que Lacan diz que ele ilustra "o desli-
zar incessante do significado sob o significante". Não é, contudo,
a simples inversão do esquema, à qual estamos agora habituados,
esta maneira de recolocar o signo sobre seus próprios pés, se é
que se pode permitir usar aqui esta fórmula famosa, aliás, e tida
como suspeita. Falar do deslizamento de um dos termos ao invés
de falar da flutuação de ambos é, evidentemente, mais do que fal-
sear ou inverter. Não apenas porque o significado, uma vez mais,
paga o preço, mas porque a "imagem" saussuriana aqui invocada
não se presta de fato, e com razão, a um tratamento de tal tipo. É
por isso, aliás, que Lacan, a fim de denunciar-lhe a fragilidade;
finge tomá-la justamente como uma simples imagem: "imagem
que se parece, diz ele, com as duas sinuosidades das Águas supe-
2. E. 539-540.
3. Cours, pp. 155-156.
62 O TÍTULO DA LETRA
teria! das letras.7 Pois bem, diz Lacan, "a linearidade que F. Saus-
sure considera como constituinte da cadeia do discurso, em con-
formidade com sua emissão por meio de uma única voz e na hori-
zontal em que se inscreve em nossa escrita, mesmo que de fato
ela seja necessária, não é suficiente" (E. 503). Por pouco, portan-
to, seria preciso conjurar a linearidade. Verdade é que, aí ainda, o
que de fato se procura contornar é algo como o "positivismo" de
Saussure, se se pode dizer que, uma vez tratando-se do signo co-
mo tal (e não mais somente do significante e do significado "to-
mado à parte"), isto é, a partir do quarto parágrafo deste capítulo
IV, corrige a teotia das puras diferenças (na língua só existem di-
ferenças) em proveito de uma doutrina da combinação concebida
como um "fato positivo", e, aliás, "a única espécie de fatos que
a língua comporta": "a partir do momento em que se comparam
os signos entre si - termos positivos - não se pode mais falar de
diferença" 8• Basta isto, porém, para explicar que a única necessi-
dade que se reconheça com relação à linearidade não seja defini-
da de outra forma que não por meio da orientação temporal que
ela impõe ao discurso - reconhecimento que, aliás, mais parece-
ria salvá-la in extremis, permitindo-lhe, por esta razão, ser "toma-
da como fator significante", pelo menos nas línguas em que adis-
tinção gramatical do objeto e do sujeito permite que, na inversão
dos termos de tal proposição (Paulo agride Pedro em vez de Pe-
dro agride Paulo*). produza-se uma inversão do tempo, dado que,
como bem se sabe, tudo depende de "quem começou"?
Realmente - e teremos, sem dúvida, que voltar a falar desse
golpe de força - se a linearidade não é suficiente é porque "basta
(nós é que sublinhamos) escutar a poesia... para que nela se faça
ouvir uma polifonia e que todo discurso se averigua alinhando-se
sobre as várias pautas de uma partitura" (E. 503). Portanto, o que
essencialmente constitui o discurso não é a articulação sintagmáti-
ca, a horizontalidade sintática da cadeia, mas a profundidade pa-
9. Quase não se pode evitar observar aqui, de passagem, que um outro tipo
de anagrama (e onde um outro inconsciente está interessado) íoi acionado pelo
próprio Saussure e que poder-se-ia interrogar este empreendimento para saber
até que ponto não teria sido como que um outro desvio ou um outro Witz opera-
do em cima da lingüística. Isto aíetaria, com uma complexidade suplementar e
singular, as relações de Saussure e Lacan, cujo enredo começa a ser urdido aqui.
66 O TÍTULO DA LETRA
16. E. 622.
17. E. 268.
• Seu feixe não era nem avaro nem odioso... (N. do T.)
A SIGNIFICÂNCIA 83
18. Cf. também Fontanier: "a Metáfora, cujo nome tão conhecido, e, talvez,
mais conhecido que a própria coisa, perdeu, como o observa Laharpe, todo seu
peso escolástico". (Les figures du discours, Flammarion, p. 99). Para reencontrá-
lo, consultar G. Genette, "La réthorique restrcinte", in Figures Ili (Seuil).
84 O TÍTULO DA LETRA
Este não-sentido, como se vê, não deve ser tomado tanto co-
mo contra-senso, conforme o nome inglês (nonsense) do sen-
tido absurdo, mas mais como negativo do sentido, momento de
sua perda ou de sua ausência, cuja dialética articula o sentido. Se
Booz é exemplar, não é só enquanto nome próprio mas, também,
enquanto nome de um pai, isto é, daquele que deve ser morto, em
conformidade com "o evento mítico em que Freud reconstruiu o
encaminhamento, no incons~iente de todo homem, do mistério
paterno", ou "da significação da paternidade" (id.).
A significação de Booz como pai em "seu feixe" traz à luz
aqui, portanto, a paternidade de toda sua significação: ela é en-
gendrada pelo não-sentido, ou seja, fora do significado, e no puro
significante. A fórmula de Lacan para a metáfora - isto é, para o
tropa ou rodeio do discurso enquanto cadeia das unidades de sen-
tido - é a seguinte: "uma palavra por outra" (id. ).
Uma palavra por outra quer dizer uma palavra no lugar de
outra - uma substituição de significantes - mas, também, uma
palavra à vista de outra - uma espécie de teleologia interna da
ordem significante; é por meio desta teleologia metafórica que
o sujeito insiste no signifi~nte pois, como o sabemos, ele é "aqui-
lo que um significante representa para um outro significante" -
e isto, mesmo que tal teleologia esteja destinada a perpetuar-se
A SIGNIFICÂNCIA 85
A ESTRATÉGIA DO SIGNIFICANTE
A primeira parte deste texto nós já a lemos (tentamos deci-
frá-la), até o ponto em que, terminando, ela reconduz a ciência da
letra à "verdade freudiana" - isto é, pode-se pressentir, à sua
verdade.
Releiamos.
2. Cf.E. 821.
94 O TÍTULO DA LETRA
tico na psicanálise. Uma questão como esta não pode, é claro, ser elaborada aqui.
Pode-se, tão-somente, assinalar que a estratégia lacaniana penniliria, quem sabe,
abordar, sobre um ou outro ponto, sua complexidade problemática - e que, em
todo caso, esta não seria capaz de reduzir-se a alguma simples "política da psi-
canálise", não mais que a uma, também, não menos simples "psicanálise da polí-
tica", sejam quais forem as referências ou preferências de uma ou outra.
4. E. 458.
100 O TÍTULO DA LETRA
9. Daí a insistência com que, para marcar que "o valor de significante da
imagem (do sonho) nada tem a ver com a significação", Lacan destaca a utili-
zação que Freud faz da presença do determinativo na escrita hieroglífica (Traum-
deutung, VI, trad. p. 276), "para melhor reconduzir-nos ao fato de que estamos
na escrita onde mesmo o pretendido 'ideograma' é uma letra". (E. 510).
10. O que é indicado aqui também na "condensação" que se produz ali da
Dichtung é que a Verdichtung remete à metáfora e, portanto, por aí, à "escuta da
poesia". Apelo homonímico que nada seria capaz Íle justificar, diz J.-F. Lyotard
em Discours, figure (Le travai/ du rêve ne pense pas, p. 239 e ss.), uma vez que
a Dichtung da Verdichtung - a condensação, a espessura - não tem parentesco
algum etimológico com a Dichtung "dizente" da ficção ou da poesia. Motivo críti-
co, pois, o desta observação e em referência ao qual pode-se marcar o desvio da
leitura que tentamos aqui, em particular, quando se trata da interpretação laca-
niana de Freud a respeito da qual, por razões que são, sem dúvida, evidentes
agora, não temos que nos pronunciar aqui.
A ESTRATÉGIA 105
f(S) _!_
s
S'
t c5 ) s = se+) s
12. Como é o caso, ainda, na lei hõlderliniana do retorno; mas não na repe-
tição kierkegaardiana: "Tudo partido, assim do VÓ<T'TO<; héilderliniano é à repe-
tição kierkegaardiana que Freud retornará menos de vinte anos mais tarde" (E.
519). A alusão é fulgurante, mas permite pelo menos compreender-se que, neste
trajeto, uma certa submissão à lei simples de um Logos único ("o princípio real
do Logos", segundo os termos de Hõlderlin retomados aqui) dá progressivamen-
te lugar a um dualismo irredutível ("as mortais antinomias empedocleanas" - a
que, sabemos, aliás, que Freud apelou explicitamente).
13. "A perifrase, o hipérbato, a elipse, a suspensão, a antecipação, a re-
tração, a negação, a digressão, a ironia são as figuras de estilo (ftgurae sententia-
rum de Quintiliano) como a catacrese, a litotes, a antonomásia, a hipotipose são
os tropas, cujos termos impõem-se à pena como os mais próprios para etiquetar
tais mecanismos" (E. 521). Cf. Benveniste, Problemes de linguistique générale, p.
75 e ss.
14. Cf. Supra, p. 31.
110 O TfTULO DA LETRA
15. "Da mesma forma como concebeis que um erudito, tão pouco dotado
para os 'engajamentos' que o solicitavam tanto em seu tempo como em qualquer
outro, como era Erasmo, tenha tido uma J)Ol!ic;ão tão eminente na revolução de
uma reforma na qual o homem estivesse tão interessado em cada homem como
em todos?"
"É porque, em se tocando por pouco que seja na relação do homem com o
significante, aqui conversão dos procedimentos da exegese, muda-se o curso de
sua história modificando-se as amarras de seu ser." (E. 526-527)
Erasmo é, pois, o ambíguo panegirista da loucura, que citamos a seguir,
mas cuja sábia submissão ao Logos não pôde impedir (pelo contrário, se é a
razão que se empenha, ela própria, na desordem da loucura) que, em tocando no
significante do Livro (da Letra) do Ocidente, enceta a subversão desta sabedoria
e desta razão.
A ESTRATÉGIA 111
Que este texto seja sistemático (que este "texto", pois, seja
absolutamente também um "discurso") ou dê lugar, ao menos, a
um sistema é o que já se terá podido perceber na construção que
sua primeira parte pôs cm prática, e na repetição desta cons-
trução debaixo de toda uma série de motivos e de instâncias teó-
ricas. É preciso, agora, determo-nos sobre esta sistematicidade
mesma, isto é, sobre o discurso que o texto de Lacan mantém, na
medida em que, em conformidade com a petição fundamental, e
fundadora, do discurso científico e/ou filosófico, compl~ta-se por
si mesmo em uma ordem fechada sobre si mesma, que tal ordem
não inclui nada que não esteja ali organicamente articulado e que
não exclui nada de sua circunferência sem ordená-lo ainda rigo-
rosamente com esta mesma circunferência. Todo sistema é, desta
forma, o sistema - isto é, em grego, a posição combinat6ria 1 -
de uma certa identidade em si da articulação do discurso: ele é o
"archê" e o "tclos" de uma lógica.
5. "Lituraterre", in Littérature, nº 3, p. 4.
6. Cf. E. 48, 50, 53, 56-57, 548, 571, 673, 674, 680, 774, 778, 805, 808, 815,
817 - e seminários inéditos, passim. As precauções necessárias relativas à natu-
O SISTEMA E A COMBINAÇÃO 117
reza destes "grafos" foram tomadas por J.-A. Miller: Cahiers pour l'ana/yse, nº
1/2, 1966, p. 171.
7. Este furão insiste em Lacan: cf. E. 259.
118 O TÍTULO DA LETRA
Saussure - - - - - - - - - - - Lógica
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à pontuaçãu")...... ... do significado...... J
(verbo "SER")
"no lugar
- - - <Jo sujeito"
t
pai primordial
10. Cf. esta "necessidade de abaixar a soberba que é própria de todo mo-
nocentrismo", que citamos acima, p. 14.
122 O TÍTULO DA LETRA
cuja pertinência vê-se, talvez assim, acentuada. Notemos, aliás, que o artigo de
Badiou pode ser lido como uma análise do discurso de Lacan inverso à nossa,
mas simétrica, sendo a prega desta simetria aquela que passa entre um questio-
namento feito à lógica (ou à ciência) e um questionamento feito ao texto.
20. Este símbolo acaba de designar o significado em sua relação com o (-1),
que já citamos, do significante de uma falta no outro ("raiz" metafórica ... ).
21. Subversion du sujet. E. 821.
22. La chose freudienne, E. 431.
23. Cf. Subversion du sujet, E. 819,821 e "Radiophonie", p. 68.
O SISTEMA E A COMBINAÇÃO 129
O sujeito é excentrado por seu desejo, ou: seu desejo não po-
de ser senão um processo excêntrico. Já dissemos que, com o de-
sejo, é Hegel que intervém no texto, ainda que anônimo.
Não chegaremos ao ponto de ler neste anonimato de Hegel
uma metaforicidade assassina do pai deste escrito. Questionaria-
mos, no entanto, se não é em razão de sua excessiva proximidade
24. Assim como o comentário geral do cogito, seja ele, neste ponto, de
Gueroult ou de Heidegger.
O SISTEMA E A COMBINAÇÃO 131
que seu nome deve ser calado, na medida em que, como se verá,
é com relação a ele que o duplo gesto estratégico assum~ a maior
amplitude. Compartilharia, então, este estatuto com Rousseau,
outro "nome" que insiste no texto e do qual será preciso voltar a
falar.
Seja como for, na medida em que é possível, e necessário, es-
clarecer o implícito da Instância, a respeito de Hegel, por meio de
outros textos de Lacan (e eles são numerosos; citaremos apenas
alguns25), pode-se pôr às claras ao menos isto:
É sempre em referência a Hegel que foi colocada a excentri-
cidade do sujeito lacaniano. Em outras palavras, é na "existência
em que se mede o gênio de Hegel, da identidade profunda do
particular ao universal" que "a psicanálise... contribui com seu
paradigma liberando a estrutura em que tal identidade se realiza
como disjunta do sujeito"26• Esta fórmula marca bem a dupla re-
lação com Hegel que está em jogo aqui. Ela é de fato construída
para apresentar o cumprimento exemplar, no interior do "sujei-
to" da psicanálise, da dialética hegeliana da consciência. Ao
mesmo tempo, aquilo que ela enuncia em seu termo - a dis-
junção do sujeito - é feito para quebrar esta dialética, ou, antes,
para suspender-lhe o curso antes de seu acabamento.
25. Seria preciso seguir a histórill das relações de Lacan com Hegel, deter-
minante, por certo, para um decifrar filosófico do discurso dos Escritos - e até
certa recusa enérgica demonstrada para com Jean Wahl que o havia qualificado
de hegeliano (Subversion du suje~ E. 804): o texto mereceria uma leitura atenta.
Se não é a oportunidade para fazê-la é, quem sabe, em compensação, o
momento de, pelo menos, marcar isto: pôde-se escrever: "Lacan... contenta-se
com reescrever Hegel e Freud, o que não merece tanto estardalhaço" (P. Trotig-
non, in l'.Arc n" 30, p. 30). Que "isto" não mereça estardalhaço, é mais que certo.
Mas que nada se passe numa "reescrita" ou que se passe ali nada mais que algo
simples é algo que está longe de ser tão evidente. Lacan não estaria a querer uma
leitura se isto não estivesse em jogo ali. Isto é, se não se colocasse ali a questão
também de saber o que acontece com os textos de Hegel, de Freud entre outros
(por onde, como podem passar, deslocar-se, ser contornados ou desviados), re-
conduzidos ao mesmo ou reinscritos alhures - e, também, em que medida, por
que vias, tais textos têm, ou não, programado tal ou qual leitura que hoje se pode
fazer etc.). '
26. Fonction et champ de la parole, E. 292.
132 O TÍTULO DA LETRA
33. É a partir daí que é preciso, sem dúvida, compreender "o imediato" do
inconsciente que é visado na página 518. Reporte-se à "certeza sensível" de He-
gel.
34. Não é por acaso, porém, que Bataille não tenha escolhido heteronomia,
assim como descartou heterodoxia em razão de seu apelo à ortodoxia (Cf. O.
C., p. 424, nº 12). Simples indício do que, sem dúvida, afastaria Lacan de Bataille.
35. Phénoménologie de l'esprit, trad. Hyppolite, I, pp. 152-153.
134 O TÍTULO DA LETRA
37. Poder-se-ia, aliás, espantar pelo fato de Lacan não ter recorrido à leitu-
ra de Hegel feita por Marx (nos Manuscritos de 1844) como um "processo sem
sujeito", leitura reativada hoje por diversos lados. Lacan vê bem demais que este
processo já é, por si só, o sujeito? Está ele, pelo contrário, fascinado a tal ponto
pelo sujeito que não vê o que dele retém quando busca desviar-se de Hegel?
136 O TÍTULO DA LETRA
é possível a não ser como Tra-dução para aquilo que sc·expressa e cm tais pala-
vras. Esta Tra-dução só dá certo através de um salto, um tipo de salto em que
aquilo salte aos olhos num instante - o que as paiavras ÊÔv lµµi;va.t. escu-
tadas como gregas querem dizer (Tradução Beckcr-Granel, P.U.F., 1960, p. 213).
5. Para que, no entanto, a analogia não seja aqui "esmagadora" faltaria
marcar bem suas diferenças: por exemplo, a recusa heideggeriana, sem apelo ao
nosso conhecimento, de ler Freud ou, mesmo, de ter qualquer consideração que
seja pela aparição e pela existência da psicanálise; inversamente, o acento que
Lacan coloca sobre os motivos epistemológico e científico em prejuízo da ontolo-
gia (explicitamente, pelo menos, ou, antes, oficialmente). Mas tais diferenças são
por demais visíveis e conhecidas demais para que nisso insistamos mais.
6. Cf. supra, pp. 79-80.
146 O TfTULO DA LETRA
9. "É a verdade daquilo que este desejo tem sido em sua história que o su-
jeito grita por seu sintoma, como Cristo disse que as pedras o teriam feito se os
filhos de Israel não lhes tivessem emprestado sua voz."
10. Esta co-incidência faria, de fato, coincidir, paradoxalmente, a afonia do
desejo com a idealidade da voz pura, da foné e do fonema, tal como J. Derrida
pôde esclarecê-la em La voix et le phénomene - onde se pode ler, por exemplo,
isto aqui: "Sendo a idealidade do objeto apenas seu ser-para uma consciência
não-empírica, não pode ser expressa senão em um elemento cuja fenomenalidade
não tenha a forma da mundanidade. A voz é o nóme deste elemento. A voz se ouve.
Os signos fônicos (as imagens acústicas no sentido de Saussure, a voz fenome-
nológica) são ouvidos de parte do sujeito que os profere na proximidade absolu-
A VERDADE "HOMOLOGADA" 149
ta do presente deles. O sujeito não tem que passar por fora de si para ser imedia-
tamente afetado por sua atividade de expressão" (p. 85). Mas tal paradoxo está,
sem dúvida, prestes a resolver-se, como todo paradoxo, se se pensa na importân-
cia decisiva, até capital, no sentido próprio do termo, que a fala assume em todo
o dispositivo lacaniano - esta fala em que se decide tão bem, já se viu o privilé-
gio de um certo modelo lingüístico, o modo de exposição necessário para o dis-
curso "de formação" que Lacan mantém e, afinal, a verdade de que fala este dis-
curso e que é a verdade que "fala".
150 O TÍTULO DA LETRA
11. Ou, mais precisamente, e para explicitar o mais brevemente possível es-
ta indicação, se se retêm antes de tudo (sendo fiel, desta vez, ao que Lacan dá a
entender por sua maneira de evocar Heidegger) nos textos de Heidegger tudo o
que põe seu empreendimento de releitura (por meio da "etimologia" da "tra-
dução" etc.) da língua filosófica "original", do grego, sob o signo de uma literali-
dade radical que se trata de entender de novo, antes que sob o signo de uma me-
taforicidade que seria preciso decifrar. Seria testemunha disto, entre tantos ou-
tros, precisamente o texto Logos.
A VERDADE "HOMOLOGADA" 151
Resta saber porém o que é, aqui, tal verdade. Não que seja
preciso perguntar-se se é, ou não, a verdade de Heidegger (ainda
que, se Heidegger serve para fundamentar a prática do desvio, es-
ta questão da fidelidade ao texto de Heidegger não seja indiferen-
te). Mas, antes, para compreender que tipo de leitura está impli-
cado aqui, isto é, sustenta silenciosamente este tipo de encanta-
mento final.
A esta questão poder-se-ia certamente propor uma resposta
brutal. Se podemos mostrar, de fato, que Heidegger domina, em
última instância (e dar-se-ão crédito de pensar que não empre-
gamos esta palavra por acaso), toda a estratégia de Lacan e se es-
ta estratégia consiste finalmente em uma "destruição" da ontolo-
gia do próprio signo (após e mediante uma reconstituição desvia-
12. O atado em ponto de basta do discurso que, desde então, faz sistema,
pelo viés da preferência outorgada (contra a diferença, em suma) à metáfora,
com a escolha do eixo paradigmático (vertical) da linguagem contra a linearidade
sintagmática - e, por conseguinte, com a referência fundamental à poesia - ou
o recurso, não menos fundamental, a um estilo poético (cf. supra, pp. 54-55 e 71).
A poesia é este desejo, ou esta vontade, de uma linguagem em ponto de basta. De
onde, ainda, o desvio final do desvio (isto é, seu re-tomo e sua anulação) que,
como se irá ver, corresponde ao movimento reapropriação que se inicia e se fun-
da aqui - e graças ao qual o deslizamento/conotatim que constitui o desvio que
se abate sobre uma pura denotação. Observar-se-á que um privilégio análogo é
outorgado por Heidegger à poesia. Análogo a não ser por esta diferença, no en-
tanto - e é aí, sem dúvida, que seria preciso levar em conta a "questão" do texlo
heideggeriano - é que Heidegger se recusa a, mesmo simplesmente, usar o ftlo-
sofema: metáfora (cf., por exemplo, Príncipe de raison, trad. Préau, Gallimard,
1962, p. 126): "O metafórico existe tão-somente no interior das fronteiras da me-
tafísica". Quanto a tudo isto, remetemos a Mythologie blanche de J. Derrida
(Poétique nº 5, 1971 - retomado em Marges de la philosophie, éd. de Minuit,
1972).
152 O TÍTULO DA LETRA
13. Célebre tese cuja colocação em prática pode ser lida na leitura heideg-
geriana da alegoria da caverna ("La doctrine de Platon sur la vérité", in Ques-
tions II, Gallimard, 1968).
A VERDADE "HOMOLOGADA" I\ 1
textos parecem falar neste sentido. Mas isto tudo sob a condição,
também, de não cair em detalhes, de negligenciar a extrema
prudência de Heidegger e de passar por cima das hesitações ou
dos arrependimentos, as retratações mais ou menos explícitas que
pontuam o texto.
Pois o que este texto acaba dando a ler e mesmo (se é que o
aumentativo convém aqui, todavia) acaba por fazer claramente
ouvir no discurso é que a alêtheia, de um lado, nunca se reduz,
sem dúvida, à simples unidade do claro e da reserva do velamento
e do desvelamento etc.14 e, por outro lado, não é, também, aquilo
que um "acidente histórico determinado sobrevindo teria depor-
tado para a homoiosis. É, por outro lado, pelo fato de, como tal
(se isto pode ainda querer dizer algo aqui), a verdade (a alêtheia)
ter "sempre" sido captada na interpretação homoiótica - ou, pe-
lo menos, compreendida nesta interpretação - que ela é, de fato,
até nós, o impensado da filosofia (incluindo aí o pensamento gre-
go, pré-filosófico no sentido estrito, isto é, pré-platônico) e aquilo
a partir de que precisamente a desconstrução da ontologia15 pode
engajar-se na repetição da metafísica.
É bem por isto que, aliás, poder-se-ia dizer que, na leitura
que Lacan pratica de Freud, ele refere o inconsciente ao impen-
sado (assim definido) na exata medida com que refere o desejo à
verdade. No entanto, Lacan não segue Heidegger até este espa-
lhamento laborioso, mas sistemático, da oposição homoiosis/alê-
theia. Muito pelo contrário, ela o endurece - pois do rigor desta
posição depende, pelo menos para ele, a destruição do signo. Em
outras palavras, Lacan limita-se, se se prefere, à determinação (a
14. Não é o momento, aqui, para se fazer sua demonstração. Mas, ao me-
nos, pode-se indicar que, em se lendo de perto os textos mais "audaciosos" de
Heidegger, salta aos olhos, sempre, que entre o claro e a reserva, em (entre) sua
unidade, vem introduzir-se um traço suplementar, nomeadamente designado, por
exemplo, para remeter a um texto conhecido, na terceira parte de Origine de
l'oeuvre d'an: é a atração (Zug) da verdade em direção à obra que está "na
essência da verdade" (Chemins quine menent nulle pan, trad. Brockmeier, Gal-
limard, 1962, p. 49).
15. Far-se-á referência, entre outras, às "correções" feitas ao texto sobre
Platão que citávamos mais acima, na conferência intitulada: "La fin de la philo-
sophie et la tâche de la pensée (in Kierkegaard vivant, ldées/Gallimard, 1966).
154 O TfTULO DA LETRA
17. Denegação que, aliás, retoma, muitas vezes, em Lacan: cf., por exem-
plo, E. 260, "Radiophonie" (Scilicet 2/3), p. 72.
156 O TÍTULO DA LETRA
no texto de Freud que, por esta razão, cremos poder pôr em epí-
grafe. Texto este que será preciso, também, por conseguinte, re-
ler ...