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DA

JEAN-LUC NANCY
PHILIWE LACCUE·LABARTHE


escuta
Jean-Luc Nancy
Philippe-Lacoue Labarthe

O TÍTULO DA LETRA
(Uma leitura de Lacan}

Traducão de
Sergio Joaquim de Almeida
Revisão Técnica de
Durval Checchinato

facebook.com/lacanempdf
© by Éditions Galilée, 1973
© ·by Editora Escuta para a edição em língua portuguesa

Nancy, Jean-Luc.
O titulo da letra : uma leitura de Lacan / Jean-Luc
Nancy, Philippe Lacoue-Labarthe ; tradução de Sérgio
Joaquim de Almeida ; revisão técnica Durval Checchi­
nato. -- são Paulo : Escuta, 1991.

Bibliografia.

1. Lacan, Jacques, 1901-1981 I. Lacoue- Labarthe,


Philippe II. Titulo.

91-1468 CDD-150.195
lndices para catálago sistemático:
1. Lacan, Jacques : Teoria psicanalítica 150.195

Editora Escuta Ltda.


Rua Dr. Homem de Mello, 351
05007 São Paulo, S.P.
Tel.: (011) 65-8950
1991
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 9

POSICIONAMENTO. • • • . . . . . . . • • • . . • • . . . . . . . . 13
UM GIRO DE LEITURA. . . . . . . . . • . • . . • . . . . • • • . 17

PRIMEIRA PARTE

A LÓGICA DO SIGNIFICANTE................. 29
1. A ciência da letra. . . . • . . . • • . • . . . . • . . . . • • • • 35
2. O algoritmo e a operação ..••...•.••... '. . • • • 41
3. A árvore do significante. • . • . • • • • • • . . . . . • • • . 59
4. A significância. • • • . . . . . . . • . . . . . . . . . . . . . . 69

SEGUNGA PARTE

A ESTRATÉGIA DO SIGNIFICANTE. • • • • . . . . • . • • 87
1. A estratégia. • . • . . • • . • . . . . . • • . • . • . • . . • • • • 95
2. O sistema e a combinação. . . . . . . • . . . . . . . . . . . 113
3. A verdade "homologada". . . . . • . . . . • • . . . • • • • 141
APRESENTACÃO
,

O titulo da letra é um livro importante sob múltiplos aspectos.


Primeiro porque versa sobre a teoria do significante em Lacan, de
maneira muito precisa. Segundo, porque sua publicação é super-
oportuna nesse momento do movimento psicanalítico no Brasil.
Embora tupiniquinamente, podemos dizer, mutatis mutandi, que
a situação da psicanálise no Brasil corresponde de alguma manei-
ra à vivida em França quando da publicação do livro. A psicanáli-
se tomou vulto, ampliou suas fronteiras quanto à formação de no-
vos analistas e quanto ao volume apreciável de novas publicações
e traduções. Esse texto, parece-me, vem propiciar uma ordenação
teórica considerável sobre o específico do significante e sua
função científica na teoria e clínica da psicanálise. Lacan institui o
signo como algoritmo da lingüística e o significante como algo-
ritmo da psicanálise. O significante é episteme no sentido pleno
do postulado bachelardiano. Isto é de importância fundante para
a psicanálise como ciência, embora ciência da significância e do
particular. É nisto que se institui a psicanálise como ciência es-
pecífica do inconsciente do homem.
Além disso, este livro coloca precisões importantes dirimindo
dúvidas quanto à ba"a e a resist€ncia. Há leituras diversas do al-
goritmo psicanalítico, mas a que aqui os autores propõem me pa-
rece ser a correta, de quebra sancionada por Lacan. A resistência
não vem do significado e muito menos da significação. Ela é a
10 O TÍTULO DA LETRA

própria barra. E é por isso que a autonomização do significante


descoberta por Lacan na clínica é menos importante que a pró-
pria barra. A importância da barra está em que é ela que institui
o significante. Daí a apreciação de Lacan: "Posso dizer de certo
modo que, se se trata de ler,jamais eu fui tão bem lido".
Ao apresentar este livro sinto-me em posição muito curiosa.
Estamos publicando um livro sobre o significante em Lacan que o
mesmo Lacan apreciou em termos contundentemente positivos.
Lacan elogiou em seus seminários, como fiéis interpretadores de
seu pensamento, Maud Mannoni, Serge Leclaire e, é claro, J. A.
Miller ... Mas estes faziam parte de seus seminários. Os autores de
O título da letra, porém, deles não participavam. Por isso, quando
Lacan interrompe o Seminário "Encore" (pp. 62-63) para longa-
mente os elogiar, penso que temos um critério apreciável. Lacan
com a palavra:

É o que faz com que hoje, e de maneira que parecerá talvez pa-
ra alguns um paradoxo, eu lhes aconselhe a ler um livro do qual o
mínimo que se pode dizer é que ele me diz respeito. Esse livro se
chama Le titre de la lettre (O título da letra), e foi publicado pelas
edições Galilée, coleção À la lettre. Não lhes falarei dos seus autores,
que me parecem no caso representar antes o papel de pífaros.
Não é, se tanto, diminuir seu trabalho, pois direi que, quanto a
mim, é com a maior satisfação que o li. Desejaria submeter este au-
ditório à prova desse livro, escrito com as piores intenções, como
vocês poderão constatar nas trinta últimas páginas. Eu não poderia
senão encorajar demais sua difusão.
Posso dizer de certo modo que, se :,e trata de ler, jamais fui tão
bem lido - com tanto amor assim. Seguramente, como se verifica
com a inclinação do livro, é um amor do qual o mínimo que se pode
dizer é que seu estofo habitual na teoria analítica não pode deixar de
ser evocado.
Mas é dizer demais. Talvez mesmo seja dizer demais colocar lá
dentro, de uma maneira qualquer, os sujeitos. Seria talvez reco-
nhecê-los demais enquanto sujeitos, por evocar os sentimentos deles.
Digamos então que é um modelo de boa leitura, a ponto de
poder dizer que lamento não ter jamais conseguido, daqueles que
me são próximos, nada que seja equivalente.
Os autores acreditaram dever limitar-se - e, meu Deus, por
que não cumprimentá-los por isso, já que a condição de uma leitura
é evidentemente que a si mesma ela imponha limites - a um artigo,
recolhido aos meus Escritos, que se chama A instância da letra.Par-
tindo do que me distingue de Saussure e que faz com que eu tenha,
APRESENTAÇÃO 11

como eles dizem, me desviado dele, eles conduzem de um assunto a


outro, a esse impasse, que eu designo, respeitante ao que é, no dis-
curso analítico, da abordagem da verdade e de seus paradoxos. Aí
está algo que, sem dúvida, no fim, e não tenho que sondá-lo de outro
modo, escapa àqueles que se impuseram esse extraordinário traba-
lho. Tudo se passa como se fosse justamente do impasse aonde meu
discurso é feito para conduzi-los, que eles se tenham por quites, e
que se declarem - ou me declarem, o que dá na mesma no ponto
em que chegam - estar confusos. Por aí fica completamente indica-
do que vocês mesmos se enfrentem com a conclusão deles, as quais
vocês verão que podem ser qualificadas de sem-cerimônias. Até es-
sas conclusões, o trabalho prossegue de uma maneira que não posso
senão reconhecer um valor de esclarecimento completamente sur-
preendente - se isso puder por acaso esclarecer um pouco suas fi-
leiras, por mim eu só veria vantagens, mas, depois de tudo, não es-
tou certo de que - por que, já que vocês são sempre tão numerosos
aqui, não confiar em vocês? - nada enfim os desencoraje.
À parte, então, essas trinta ou vinte últimas páginas - na ver-
dade, foram apenas estas que eu li em diagonal - as outras ser-
lhes-ão de um conforto que, em suma, posso lhes desejar.

À página 93 do mesmo seminário, Lacan assim resume a


mensagem do livro: "como o indica o pequeno livro que os fiz ler
sob o título de O titulo da letra, é bem duma subordinação do sig-
no em relação ao significante que se trata em tudo o que lhes
avancei".
Pena que Lacan tenha visto "as piores intenções nos autores"
porque escreveram as últimas trinta páginas que ele leu em dia-
gonal. Lacan soube reconhecer a dependência de sua formação
médica: Clérambault, "notre seul maitre en psychiatrie"; soube
guardar sempre o maior respeito à pessoa de Freud, seu verda-
deiro mestre em psicanálise, mas teve pouca humildade para re-
conhecer sua constante dependência de Martin Heidegger. E nos-
sos autores foram muito felizes ao excluírem Lacan de um sim-
plório heideggerismo e colocá-lo no plano da cxÃ11@eux , que o
leitor se dê o trabalho de uma leitura sobre o "Logos", Das We-
sen der Sprache, sobretudo Das Wo,t e os compare com o tex-
to "Função e campo da fala", "A instância da letra no incons-
ciente", "Direção do tratamento", "Variantes do tratamento típi-
co" etc.
Há momentos em que não sabemos se estamos em Heideg-
ger ou em Lacan. Um simples exemplo: "O homem fala, pois,
12 O TÍTULO DA LETRA

mas é porque o símbolo o fez homem". (L.). "O homem é ho-


mem enquanto é aquele que fala". "É a palavra que faz o ho-
mem, que o torna homem" (H.). Os exemplos de pontos de vista
filosófico de idêntico pensar poderiam se multiplicar a vontade.
Opino, pois, que não se deve colocar à parte essas trinta pá-
ginas. Elas fazem jus à afirmação do próprio Lacan na "Instân-
cia" (p. 528): "quando falo de Heidegger ou antes quando o tra-
duzo, esforço-me para deixar à palavra que ele profere sua signi-
ficância soberana".
Não é outra, a meu ver, a leitura que os autores fazem de
Heidegger em Lacan. Sim, mais que a Platão, Aristóteles, Kant,
Hegel, Descartes ... é a Heidegger que Lacan deve sua fundamen-
tação filosófica do inconsciente. O algoritmo lacaniano se funda-
menta num tripé: Freud (o sonho é um "enigma"), Saussure ("é o
ponto de vista que cria o objeto") e Heidegger (toda sua filosofia
da linguagem, sobretudo os estudos sobre poesia: "o ser do sendo
e o ser em vista da verdade"; a palavra é o "sentido do ser", "a
casa do ser").
Quinta da Peroba, maio 1991
Durval Checchinato
POSICIONAMENTO

O trabalho que apresentamos a seguir vem em formato de


"livro" apenas porque o número de páginas excedia os limites de
uma publicação em revista. É inevitável, sem dúvida, que tal apre-
sentação (por pouco voluminosa que seja) corra pelo menos o
risco de produzir um dos efeitos que nossa cultura agrega ao "li-
vro" até em (a partir de?) sua materialidade - uma espécie de
efeito de encadernação (em toda metaforicidade, é claro ...) - e
que se venha a pensar, desta forma, que tal teria sido a intenção
de ser "um livro sobre Lacan".

A leitura deverá dissipar tal efeito; pelo menos, é o que espe-


ramos. Nada há aqui que vá além - a não ser por indicações ou
sugestões - do exercício de deciframento de um texto de Lacan.
O que equivale a dizer, em particular, que este mesmo texto não
é visto nem interrogado fora dos limites da situação que lhe é
própria: na cronologia das obras de Lacan a princípio; más
também quanto à sua posição ou à sua função de texto "teórico",
no sentido em que se verá ser tomado esse termo, o qual reme-
terá ao endereço universitário do texto como à articulação, que faz
dele o objeto, do discurso psicanalítico sobre os discursos científi-
co e filosófico. Só essa função, tão-somente ela, terá legitimado, e
14 O TÍTULO DA LETRA

limitado, nosso trabalho. Ver-se-á, por outro lado, não haver na-
da aqui que suponha - mesmo que fosse por provisão, e contra-
riamente, talvez, a certas aparências - a idéia ou o horizonte de
uma "interpretação" exaustiva e sistemática da obra de Lacan;
nada, caso se prefira, que vise a seu esgotamento ou a sua satu-
ração significante ( com que direito, em que discurso arriscar-se-
iam a isso?). As indicações avançadas, aqui ou acolá, em direção
a outros textos de Lacan valem apenas no regime que quisemos
dar-lhes, aquele das notas plurais e dispersas. Este trabalho foi,
antes de tudo, suscitado pelo indecidfvel* da (ou na) questão da
"interpretação" de Lacan (isto é, logo - embora não imediata-
mente - de Freud); e é nele que se manteve.

Nada melhor, pois, para, de uma vez, colocar estas páginas


"no lugar delas" do que estas poucas precisões empíricas: tratou-
se, num primeiro estágio, de um trabalho proposto no interior do
Grupo de pesquisas sobre as teorias do signo e do texto da Univer-
sidade de Ciências Humanas de Strasbourg (fevereiro de 1972).
Um segundo estágio foi apresentado num seminário animado por
Jacques Derrida, Rua Ulm, em maio de 1972. A versão final não
sofreu outras modificações que não aquelas que dependem das
condições, algo diferentes, da publicação.
Os dois signatários elaboraram este texto em comum. Se ti-
veram que dividir entre si a redação definitiva por capítulos, tal
não se deu sem que o curso do trabalho tenha imposto, aqui ou
ali, certas passagens redigidas em comum, por vezes, até, inter-
venções pontuais de um "estilo" no outro. Nesse jogo de escritas,
cujas diferenças mais marcadas são, sem dúvida, localizáveis, po-
der-se-á ler que este trabalho, sem ser um "livro", não é, de ma-
neira alguma, uma leitura simples.

• No original, indécidable (neologismo em francês), palavra que tem sua


origem em décider; criamos o neologismo em português para garantir a riqueza
do termo. (N. do T.)
POSICIONAMENTO 15

Resta ainda, porém, antes de encetar esta leitura - e porque


é preciso, também, sacrificar às leis do gênero - remeter a seu
lugar o que vemos servir de título a este trabalho: O título da
letra.
É evidente que é preciso um título. Sabe-se, porém, hoje, que
não é quase mais possível propor um sem descobrir um pouco to-
da sua riqueza semântica. E sujeitar-se-ia alguém, aliás, a esco-
lhê-lo por outros motivos? Se nos fixamos neste é, pois, porque
parecia oferecer-nos um certo número de recursos. Entre outros,
o do título enquanto significa aquele documento que estabelece
um direito, atesta uma propriedade ou uma qualidade - e é, com
efeito, este título da letra lacaniana que será necessário produzir,
decifrar, autenticar. Ou, ainda, aquele do título enquanto designa
quanto de ouro ou de prata tem uma moeda - e sabe-se bem
que se a palavra é prata, o ouro é, apesar de tudo, o silêncio ...

No entanto, ele pode, muito simplesmente, ser lido: o títu-


lo: da letra - ou: sobre a letra - o que são maneiras, tanto uma
como a outra, de anular nosso título, deixando-o identificar-se
com o título do texto de Lacan que iremos ler.
É a razão pela qual este "título" nós o largaremos aqui para
não mais (quase) voltar a ele. E o limiar deste trabalho será mar-
cado pelo único índice de seu sub-título:
(Uma leitura de Lacan).
UM GIRO DE LEITURA

Vocês me provam que leram meus Escrit~ o que,


aparentemente, não é tido como necessário para con-
seguir entender-me.
(Lacan, "Radiophonie", Scilicet nº 2/3, p. 55.)

A publicação dos Escritos foi, como pode-se ler, um pedido


de leitura.1 Descobre-se, depois de tudo, que tal leitura ainda está
por ser feita. O tempo da leitura é sempre tardio e a de Lacan
não escapa à regra; e menos ainda, no seu caso, uma vez que ela
tem sido, sem dúvida, acentuada por tudo aquilo que, nos Escritos
ou relacionado com eles, pôde converter o pedido em desejo, isto
é, frear ou interdizer a própria leitura; a autoridade (que não dei-
xa de ser sem mistério) da análise, a constituição de uma Escola,
a produção, enfim, ou a repetição, pela fala lacaniana, desses
mesmos efeitos. ·
Não será o caso, por isso, de realizar o desejo - de afivelar
uma significação de Lacan - mas, sim, de tentar obedecer à du-
pla lei pela qual este "texto" dá-se a ler e deporta ou reporta sem
cessar as condições de sua leitura. Assim fazendo, espera-se, no
entanto, mostrar que não é possível, de fato, fazer a economia do

1. Cf., também, em Scilicet nº 1 (Seuil, 1968), "La méprise du sujet sup-


posé savoir", e "Raison d'un échec".
18 O TÍTULO DA LETRA

desvio pela leitura - no sentido mais e mais paciente do ter-


mo - mesmo que fosse para sair, pouco a pouco, do leito do seu
curso único e forçado, tornando-se a própria leitura este trans-
bordamento, no ( ou pelo) texto leitor, do texto lido.
Uma tal leitura não existe sem "razões", mesmo não poden-
do haver simples justificativa para um gesto que, necessariamen-
te, se transporta para fora de si mesmo e, de início, fora da ordem
e da autoridade às quais submete-se o comentário clássico ( o qual
tem razões, ou tem só uma, que a leitura conhece, mas não co-
nhece sozinha ...). Por isso é que não nos recusaremos a produzir,
como se deve, pelo menos algumas de nossas razões - mesmo
que devêssemos fingir antecipar aquilo do qual só a leitura po-
derá dar a volta.
Por que (e, portanto, como) ler Lacan? Por que (como) ler
w1i texto de Lacan?

De início, ler Lacan é, sem dúvida, ler esse discurso mediante


o qual viu-se (afinal) colocada a questão de uma verdadeira re-
lação da psicanálise com a ordem "teórica" em geral.
De fato, sabe-se que, até antes de Lacan (há que se dizer, no
entanto, que cm grande parte é a ele que devemos tal saber...), a
ciência e a filosofia - ou as autoridades constituídas sob esses
nomes - partilharam ambas o seu "acolhimento" à psicanálise
entre algumas atitudes clássicas: o silêncio ( desconhecimento ou
negação), a hostilidade declarada, a anexação, o confisco ou a
consagração aos fins, que permaneceram imutáveis, de tal ou qual
aparelho teórico. Mais precisamente, nada foi pensado que não
tenha a forma do "acolhimento", isto é, da subordinação da psi-
canálise a um fundamento, a uma justificação, a uma verdade -
equivale dizer também, na maioria das vezes, a uma norma, é cla-
ro.2

2. É preciso excetuar desta evocação, é claro, isto e aqueles que já empu-


nhavam uma subversão da autoridade teórica como tal, fossem quais fossem,
aliás, suas relações com a psicanálise: principalmente Georges Bataille, cujo no-
me veremos surgir em nossa leitura.
UM GIRO DE LEITURA 19

O próprio Freud não obstante suas declarações sobre o


caráter revolucionário da análise - manteve-a em sua essência,
dentro do estatuto de uma ciência regional, submissa, nem que
fosse por antecipação, a outras jurisdições teóricas além da sua.3
A intervenção de Lacan consistiu em romper com o sistema
do "acolhimento" para fazer com que a própria psicanálise inter-
viesse, precisamente, no campo teórico - até vir a propor como
que um novo traçado de toda a configuração e de uma e da outra,
e de um dentro do outro.

Na verdade, é sabido que, a princípio, tratava-se de endireitar


ou retificar a prática psicanalítica na medida em que esta, retor-
nada de seu exi1io fora da Europa, seguia a via de um "reforço do
ego"4 sob a égide do psicologismo e do pragmatismo anglo-
saxões, isto é, a via do reforço das resistências do "narcisismo" ou
do somatório de suas "identificações imaginárias"5 e em que sua
finalidade, social e política, era aquela do "alma-a-alma liberal"
acomodado à européia, isto é, à moda da "compreensão jasper-
siana" e ao "personalismo à falta". 6
Para despojar a psicanálise dessa função ortopédica, era ne-
cessário, portanto, reajustá-la a si mesma. E essa é a razão pela
qual o empreendimento prático implicava uma reconstrução teó-
rica. Pelo menos, assim é que o discurso de Lacan foi instituído:
de acordo com o regime de uma articulação do "teórico" em ci-
ma do "prático", e de acordo com o movimento de uma reconsti-
tuição da identidade própria, por meio de um retorno às origens.

3. Por certo que não se trata, neste caso, senão do mais manifesto discurso
de Freud e, além disso, neste mesmo discurso, dos efeitos de uma certa prudên-
cia deliberada. Mas, aqui, não nos aplicaremos a ler Freud.
4. La psychanalyse et son enseignement. Écrits, p. 454. Cf. todo este tex-
to. - As referências aos Écrits remetem à edição completa lançada pela Seuil
(coleção "Le champ freudien") em 1966. Elas serão daqui em diante anotadas
por E. - e não serão colocadas em notas quan{o pertencerem ao texto que esti-
vermos a ler. Tudo que se segue supõe que, a todo o instante, se possa reler, des-
se texto, bem mais do que vamos citar.
5. Idem.
6. La science et la vérité, E. 867.
20 O TfTULO DA LETRA

Conhecem-se os grandes traços dessa instituição: a verdade


de Freud exigia, para ser articulada, o recurso a outras ciências
que não aquelas que pareciam delimitar seu campo (biologia e
psicologia). Era preciso, pois, construir, para constituir o discurso,
psicanalítico em geral, um sistema inteiro de empréstimos, ape-
lando à lingüística, à etnologia estrutural, à lógica combinatória.
Este processo mesmo, no entanto, tornava necessário o discurso
de sua própria legitimidade, ou seja, um discurso epistemológi-
co - ou, antes, na medida em que se via constituir-se, dessa for-
ma, não apenas uma ciência, mas uma cientificidade inédita, um
discurso sobre a epistemologia. E o conjunto da operação repre-
sentava definitivamente uma passagem explícita do discurso da
análise pelo discurso filosófico - a mesma passagem que Freud,
se bem que a tivesse sempre implicitamente evocado ou indicado,
não tivesse jamais praticada como tal.

É bem essa passagem, portanto, que temos que considerar


aqui. Com a condição, no entanto, de nos entendermos.
Isso não quer dizer que seja o caso, aqui, de apreciar as moda-
lidades dessa passagem para avaliar sua legitimidade ou medir-
lhe a pertinência. Isso suporia dispormos de algo como que uma
verdade de Freud. Ora, nossa leitura não só não será guiada por
nada similar, como nem fará apelo algum ao domínio próprio da
análise mesma e, menos ainda, à sua prática - ou, como Lacan a
nomeia, à "clínica"7• Se assim é (e, tal situação não é, seguramen-
te, sem paradoxo), o é, sem dúvida, por razão de competência -

7. É, certamente, também, o limite próprio de nossa leitura, já o coloca-


mos mais acima. Nada, portanto, será prejulgado quanto ao discurso mais especi-
ficamente "clínico" de Lacan. Decifrar-se-á tão-somente o que possibilita ulte-
riormente (de acordo com um processo que ficaria por analisar) a determinação
de uma "clínica" pelo e no discurso teórico, a teoria da análise e a análise como
teoria. Mas nem é preciso dizer que - uma vez estando em jogo, precisamente,
a trama de conjunto da operação lacaniana - este limite não é um no sentido
em que "trataríamos" apenas "de um aspecto" desta operação. Se a pura juris-
dição do teórico deve ser aqui, embaralhada, não temos mais, também, que reco-
nhecer seu alter ego: que pretenderia apresentar-se como a pura autoridade da
"prática" em si.
UM GIRO DE LEITURA 21

mas é, também, e a princípio, em razão do próprio texto de Lacan


e da passagem (pelo filosófico) filosófica que ali é efetuada.8 A
"verdade freudiana" - fórmula que voltaremos a encontrar - só
acontece nesse texto mesmo: não se pode pressupô-la, tem-se
mais é que decifrá-Ia. Ver-se-á que, de certa maneira, é para
além dele mesmo somente que este trabalho dará acesso a uma
leitura de Freud e isto bem mais do que ele de fato teria anteci-
pado.
Trata-se, por conseguinte, de examinar o que a análise pro-
duz quando passa para o campo teórico, a fim de poder perguntar
o que pensa de um empreendimento que se dá menos na subor-
dinação ao "teórico" do que como uma inte,venção nesse teórico,
a partir de um "de fora" que quer interpelar a própria teoria e ar-
razoar sobre ela.

Poder-se-ia, com certeza, conduzir este exame sobre o con-


junto dos textos de Lacan - o que equivaleria a presumir ali um
sistema, legível ou, antes, visível como tal, fora da diversidade dos
textos cujo lugar seria ele. A questão de uma sistematicidade la-
caniana (ao menos, no interior de um escrito) virá aqui a seu
tempo; para abordar a leitura, no entanto, não são necessárias
outras presunções que não as do próprio Lacan, isto é, em parti-
cular:
- a vontade de deslocar (ou de adiantar-se ao?) o discurso
sistemático da teoria, em nome de uma revolução freudiana que
impõe "a necessidade de abaixar a soberba que faz parte de todo
monocentrismo•'9. Assim Lacan pode declarar que "(seus) enun-
ciados nada têm de comum com um exposto teórico que se justi-
fica por um fechamento" 1º;

8. Assim é, aliás, que o próprio Lacan especifica seus Escritos em relação


ao conjunto de seu ensinamento: eles "buscam cercar o essencial da matéria de
(seus) seminários" e "além do mais, eles introduzem o essencial desta matéria no
contexto de uma crítica epistemológica do ponto de vista psicanalítico da época
em cima do domínio estudado". (Entrevista com J. Lacan, em: A. RiffletaLemai-
re, Jacques Lacan, Bruxelles, Dessart, 1970, p. 405).
9. "Radiophonie", Scilicet, n° 2/3, p. 73.
10. Entrevista com A. Rifflet-Lemaire, op. cit., 405.
22 O TÍTULO DA LETRA

- a vontade, por conseguinte, de produzir cada intervenção


como uma unidade acabada de palavra ou de texto, que reúne na
enunciação, cada vez, todo o investimento do trabalho e procras-
tina, no mesmo gesto, a totalização dos enunciados.
É melhor, portanto, ler um texto de Lacan. Equivale a dizer
que vale mais ler, em certo sentido, cada um de seus textos en-
quanto local de concentração e instância de repetição de todos os
outros; e vale mais ler um deles, como aquele texto único que
pretente ser, com o que uma semelhante vontade não pode deixar
de conotar: a fonte do evento, da proferição circunstancial e, por-
tanto, da palavra falada. 11 Tratar-se-á, pois, de decifrar aquilo que,
fundado sobre um modo que se pretende inédito, chega ao teóri-
co. A leitura dirigir-se-á a um "texto" do qual ignora, logo de iní-
cio, o estatuto e o regime próprios e ao qual, necessariamente,
deverá propor a questão - se isso pode ainda ser o objeto de
uma questão - de sua natureza e de seu investimento de texto.
Dito de outra forma, esta leitura buscará obedecer a este
movimento em que toda "questão" de leitura é conseguida: o que
há ali do texto de Lacan (?) - se se trata mesmo de um texto (?)
- em que sentido, se há aqui um "sentido" (?) - e até onde?

Leremos a Instância da letra no inconsciente ou a razão após


Freud.
Este escrito12 é marcado por sua data e por sua circunstância.
Pronunciado e ridigido em 1957, situa-se, mais ou menos, no
meio do período durante o qual, entre duas exclusões sucessivas

11. O lugar do discurso de Lacan é o seminário e não o "escrito", como te-


remos oportunidade de redizê-lo. Quando falamos do discurso de Lacan é preci-
so, portanto, entender ao mesmo tempo a determinação teórica do lugar e do la-
ço dos conceitos e o "discurso" no sentido lingüístico de "fala estendida" (cf. R
Barthes, Élements de sémiologie, I. 1. 3.).
12. Lembrado várias vezes por Lacan seguidamente, com certa insistência.
Cf. em especial "Radiophonie", passim, e "Lituraterre" em Littérature, nº 3, La-
rousse, 1971, p. 5. "Seria, por acaso, letra morta que teria colocado como título
destes trechos que disse Écrits... , da letra a instdncia, como razão do inconscien-
te?" etc. - Assinalaremos bem rapidamente que não é o caso, por isso, de privi-
UM GIRO DE LEITURA 23

provocadas pelas sociedades de psicanálise in loco, o trabalho de


Lacan produziu seus mais evidente~ efeitos de ruptura no campo
da prática e da instituição psicanalíticas. O mesmo ano assistiu ao
aparecimento, no número precedente de A psicanálise, o Seminá-
rio sobre "a carta roubada", texto-chave que abrirá os Escritos. 13
Esta carta, tomada a Poe para sua platéia de analistas, Lacan
coloca em sua Instância para um público universitário: os estu-
dantes da Sorbonne que o convidaram. 14 É assim que se dá a ver-
dadeira primeira intervenção de Lacan na Universidade e, de al-
guma forma, é o símbolo - até o ato mesmo - da passagem no
"teórico" (dever-se-ia correr o risco de dizer: a passagem para o
ato - o acting out - teórico?). Na Instância, a psicanálise articula
sua teoria para ela mesma, no campo teórico considerado como
tal - ou articula-se sobre a teoria. Veremos como este escrito
deve ser lido como o texto da articulação.

Em todo o caso, já é esta a posição que lhe confere seu


preâmbulo, redigido para sua publicação. E é decifrando, aqui,
brevemente, o essencial deste preâmbulo, que empenharemos
nossa leitura - por meio deste pré-texto que por si mesmo é uma
leitura, por Lacan, da ocasião de seu discurso, ou uma inscrição
do discurso em sua ocasião.
Tal inscrição faz-se sobre um triplo registro:
1. A Instância é um discurso universitário - ou, pelo menos,
dirigido aos universitários, de acordo com a universitas de uma
certa comunicação - a "generalidade necessária" (E. 494) -
pressuposta desde o instante em que Lacan não se dirige mais aos

legiar este escrito. Por várias razões, outros escritos são, por certo, pelo menos
tão importantes quanto ele dentro do dispositivo lacaniano (A carta roubada, A
significação do Fálus, subversão do sujeito, por exemplo). Resta, por um lado, que
estes textos são difíceis de ler, sem o discurso que os guarnece; por outro lado, é
à propriedade (e não ao "privilégio") te61ica deste escrito que nossa leitura se
aplica - no torneio próprio assumido ou representado aí pelo teórico.
13. Este texto, oriundo de um seminário de 1955, traz, no entanto, como o
assinala Lacan (E. 61), as marcas da teoria tal como fora elaborada na época da
sua redação, que antecede, de pouco, a da Instância.
14. Cf. E. 908.
24 O TÍTULO DA LETRA

únicos técnicos da análise; ao mesmo tempo, este discurso é es-


pecificado pela "qualificação... literária" (id.) de seus ouvintes.
Desta forma, o que a Universidade designa como letras, e em par-
ticular como literatura, demonstrará ouvir à elaboração lacaniana
da "letra".
2. Ao mesmo tempo, é um discurso científico - ou, pelo
menos, e mais amplamente, é um discurso considerado na ordem
do saber e para nela ser o discurso de uma certa verdade; em todo
caso, de um certo "verídico" (id.). Prefaciando o início de sua ex-
posição, Lacan descarta, aqui, de pronto o mau (o falso) saber de
referência que poderia ser, em particular, a etnolingüística de Sa-
pir e de Jespersen; determina a finalidade de seu propósito na
denúncia e na recusa de qualquer "falsa identidade" (id.) da psi-
canálise.
3. Por conseguinte, tal discurso só é também um discurso aos
analistas (e, como tal, discurso "de formação" - id.) pela me-
diação, se podemos assim dizer, dos dois outros discursos - e é
essa mediação que dá todo seu peso à ocasião da qual Lacan sou-
be "pegar o viés" (id.) para seu discurso. A universitas litterarum,
onde se comunica um certo saber das letras, é o lugar que Freud
quis para a formação prévia do analista - e é a partir desse lugar
que o discurso pode pretender produzir "a verdadeira" identida-
de (id.) da psicanálise.

O investimento é, pois, principalmente o de um discurso


obedecendo às exigências da universitas e da ciência. O próprio
texto de Lacan inscreve-se como discurso em suas linhas e entre
suas linhas. Se Lacan pôde dizer: "Sempre coloco balizas para
que as pessoas possam reencontrar se_u caminho em meu discur-
so"15, é porque, de fato, é possível - senão fácil de ali assinalar o
rumo e o itinerário do conceito (processos, importações ou pro-
duções propriamente conceituais).
Desta forma, o menor paradoxo desse texto votado à sub-
versão da autoridade "clássica" do discurso não é aquele tipo de

15. "Radiophonie", Sci/icet nº 2/3, p. 13.


UM GIRO DE LEITURA 25

reconstrução de um outro discurso clássico, à qual parece dar


procedimento por meio de todo seu movimento. É preciso, ainda,
lçr este paradoxo - e, para isso, começar por nada recusar à lei-
tura universitária, isto é, ao comentário, com aquilo que sua ca-
minhada pode ter de pesado e de ingrato, de redutor também, ou
de extenuante, em relação aos efeitos mais salientes da fala laca-
niana. Poder-se-á, ao menos, por aí, garantir-se de não perder
demais, por excesso ou por falta, as determinações mais decisivas.
O "texto" de Lacan encontra, pois, a nosso ver, nesse regime,
seu primeiro estatuto: aquele que convém à fórmula e ao em tor-
no do "comentário de texto". Por isso é que começaremos por
comentar, escolhendo fazê-lo em cima da primeira parte do ex-
posto (O sentido da letra), onde se instala a teoria da letra.
Mas, além desse comentário, será o caso de decifrar o que
pode apenas aparecer como uma repetição da primeira parte nas
duas partes seguintes (A letra no inconsciente, A letra, o ser e o
outro), repetição destinada a permitir a articulação da teoria da
letra sobre a própria psicanálise, isto é, como veremos, a articu-
lação de Saussure e de Freud, ela mesma articulada, ao final de
tudo, sobre um outro registro ainda ou por um outro persona-
gem, um outro nome que, a seu tempo, haverá de aparecer. A lei-
tura deverá, a partir daí, complicar seu giro na proporção desse
jogo da repetição e da articulação.
Isto equivale a dizer que ela terá que fazer, em particular,
com que o preâmbulo dê como que um regime duplo, ou misto,
do que está exposto.
Com efeito, diz Lacan, não é um "escrito" (E. 493), se o es-
crito ''se distingue pela prevalência do texto" (id.) e se esse texto
- esse facteur (carteiro; fator) do discurso" (id.) que permanece
suspenso entre o mensageiro dos correios e o parâmetro matemá-
tico cuja própria exposição promete dar-nos o "sentido" (id.) -
for, ele mesmo, especificado pelo "restringimento... que não deve
deixar ao leitor outra saída que sua entrada" {id.). Entendamos,
na medida em que o "texto" permite aqui entender, que a palavra
texto recupera, a esta altura, o valor do ideal (do absoluto) do dis-
curso na necessidade constrangedora de seu processo conceituai e
na circularidade sem resto que disso resulta - e que este ideal,
aqui, não deve "prevalecer".
26 O TÍTULO DA LETRA

A exposição estará, pois, "entre o escrito e a palavra falada"


(id.), uma vez que, desta última, "as medidas diferentes são es-
senciais para o efeito de formação que eu procuro" (E. 494). Será
preciso ler, por conseguinte, aquilo que, no meio do caminho,
desvia-se do discurso ou desarranja-o; será preciso ler entre a es-
cuta (do discurso) e a leitura ( do texto). Para nossa leitura, o texto
de Lacan, ou aquilo que, pelo menos, interrogaremos como um
tal texto, no "sentido forte" da palavra como se diz (mas, aqui,
precisamente, no sentido menos determinável, de acordo com
uma lógica discursiva do sentido), deverá, portanto, ser procurado
nesse desvio, ou como essa meia-ausência que se anuncia para ser
decriptada nas entrelinhas ou, até, entre as frases. Mais exata-
mente, quem sabe, a questão do texto, aqui, deverá tornar-se a do
desvio ou do não-desvio, nesta exposição de Lacan, entre o dis-
curso dado a ouvir (a compreender, a decifrar, talvez a crer) e o
texto dado a ler.
Nosso comentário - reconstrução e transcrição num discurso
decididamente manifesto - deverá, é certo, desde então ser, por
sua vez 16, destruído. Não se terá consentido em tal encaminha-
mento simplesmente para a ele se resignar, e é no sentido de tra-
balhar os resultados do comentário para exceder-lhe (em todos os
sentidos da palavra) o estatuto que a leitura, obedecendo ao mo-
tivo complexo do "texto" lacaniano, deverá arriscar-se - sem que
se possa indicar, por antecipação, a que volta, isto é, a que texto
uma tal destruição poderá dar lugar nem se deverá ser produzida
por causa do texto de Lacan, ou apesar dele, ou segundo alguma
outra figura menos simples.
Assim agindo, teremos, por fim, que reconhecer que a leitura
deve, desta forma, passar pela decifração de um certo jogo da
metáfora no texto de Lacan. Tal metáfora é justamente ela que,

16. A respeito dos comentários fdtos até aqui sobre Lacan, é necessário di-
zer, pelo menos, que não são exatamente empregados como comentários no "tex-
to" que queriam interpretar ou repetir. Não é preciso dizer que não estamos a
falar, aqui, dos textos ou das exposições que, em se apresentando expressamente
sob uma referência constante a Lacan, até como uma "reprise" de seus termos,
nem por isso quiseram ser comentários: assim, em particular, "Da estrutura na
psicanálise" por M. Safouan, in Estrutura e psicanálise, Cultrix, São Paulo.
UM GIRO DE LEITURA 27

na epígrafe do preâmbulo (E. 493), d.omina de antemão todo o


texto da Instância:
Extraída das Profecias de Da Vinci, esta epígrafe pertence a
um conjunto de textos - de um gênero combinado - cujos títu-
los, é sabido, funcionam constantemente como metáforas do con-
teúdo da profecia. Aqui, "as crianças de fraldas" metaforizam
uma servidão, ela mesma marcada pela submissão de uma língua
a uma outra língua, que reduz a primeira ao meio-mutismo de
uma "língua" de paixões. A profecia é, pois, por sua vez, para La-
can, metáfora ou alegoria tanto do inconsciente enquanto lingua-
gem quanto de repressão social (e psicanalítica - no sentido das
psicanálises de "falsa identidade") desse mesmo inconsciente -
ou, ainda, da verdade que é enunciada em Freud e em Lacan.
O que a exposição irá estabelecer é que o inconsciente não
produz seu "sentido", a não ser na metáfora. O texto de Lacan se
precavém, pois, em epígrafe, contra o que ele deve exibir e traba-
lhar. Que uma epígrafe só se torne legível no decorrer do texto do
qual, sempre, é uma certa figura, eis aí sua situação e sua função
clássica. Mas, que esta legibilidade reconduza, como a um regime
próprio dela, ao próprio funcionamento metafórico - da epígrafe
ou a uma literalidade da metáfora, é o que parece selar o trajeto
de discurso de Lacan dentro desse próprio tropa. Destarte, o úl-
timo "estado" do "texto" lacaniano, que comandará a última vol-
ta da leitura, deverá ser esse tipo de metaforicidade generalizada
ou de identificação com (e da) a metáfora.
Por ora, aproveitaremos somente a ocasião para inscrever
aqui, por nossa vez e sem nos pronunciarmos, ainda, sobre seu
funcionamento, a epígrafe de nossa leitura:

... somos forçados a trabalhar com os termos Termini científicos, isto


é, com a língua figurada própria die eigene Bildersprache da psicolo-
gia (mais exatamente: da psicologia das profundezas). Não podería-
mos, sem isso, descrever absolutamente nada dos processos que lhe
correspondem e nem mesmo teríamos podido percebê-los. É bem
possível que as carências de nossa descrição desvanecer-se-iam se já
pudéssemos substituir os termos psicológicos pelos termos fisiológi-
cos ou químicos. Estes também pertencem, certamente, não só a
uma linguagem figurada, mas a uma linguagem que há muito tempo
nos é familiar e que é, talvez, igualmente mais simples.
(Freud, "Au-delà du principe de plaisir", in G. W., t. XIII, p. 65.)
28 O TÍTULO DA LETRA

Agora, sem dúvida, é possível (re)começar a ler.


O primeiro momento - o do comentário - será, se nos é
permitido retomar uma fórmula produzida em outra situação pa-
ra intitular a teoria lacaniana em seu todo17, o de uma lógica do
significante.

17. MILLER, J. A. "La suture. Élements pour une logique du signifiant",


Cahiers pour l'analyse, n° 1. Exceto a condensação, esta fónnula obedece à letra
de Lacan: cf., por exemplo, E. 468 e 469 etc.
PRIMEIRA PARTE

A LÓGICA DO SIGNIFICANTE
Trata-se, agora, de decifrar - e igualmente, portanto, para
começar a criar uma espécie de subtítulo pelo qual se anuncie es-
ta primeira parte: O sentido da letra.
Convém, por certo, entendê-lo de início, precisamente em vá-
rios sentidos, isto é (mesmo que a nota possa parecer, neste ca-
so, um tanto quanto forçada), de acordo com o sentido que se
queira dar ao termo sentido e, bem entendido, o valor que se
atribuirá ao genitivo. Seja o caso, por exemplo, e para nisso insis-
tir bastante: a significação do conceito de letra; ou, então: o senti-
do que a letra produz (ou até: o sentido que é a letra); ou até, ain-
da: ter o sentido da letra, assim como se diz "ter senso dos negó-
cios". Mas indispensável é, também, por certo relacioná-lo com o
título geral: a Instância da letra no inconsciente ou a razão após
Freud, do qual pode-se dizer que seja apenas a primeira moeda-
gem.
O comentário de um título supõe sempre que se tenha termi-
nado a leitura do texto que ele comanda. Não se trata, pois, de
arriscar-se a isso nem por artimanhas. Mas uma vez que, apesar
de tudo é necessário situar, pelo menos, o texto que temos que ler
(é uma regra clássica) permitindo-nos fazer, sobre tal título, duas
observações prévias:
A primeira será a respeito do uso da palavra, ou do conceito,
instância - ficando entendido, se nos é facultado antecipar um
32 O TÍTULO DA LETRA

pouco, que falar de conceito exigirá, doravante, que se tome um


certo número de precauções, se é verdade que em Lacan o con-
ceito pode ser reconhecido, construído, como neste caso, sobre
um jogo de palavra (para não dizer: sobre o jogo de sua palavra).
~/.
Sabe-se, com efeito, que instance designa, na sua origem, de
acordo com Littré, uma solicitação que pressiona (pede-se insis-
tentemente ...), um argumento, ou mesmo um processo (na medida
em que um processo supõe acusação e defesa a que, por conse-
guinte, opõem-se ali argumentos). Daí, por extensão, o sentido fi-
xou-se depois, na língua clássica, como autoridade judiciária (diz-
se: um juiz, um tribunal de instância). No entanto, no francês
moderno corrente, tal precisão do termo perdeu-se mais ou me-
nos e quase só se emprega instance no sentido bem amplo de au-
toridade tendo o poder de decisão (sentido, aliás, que Littré ignora
e que Robert apresenta como neologismo). A instância da letra é,
portanto, a autoridade da letra. E, além disso, se é verdade que
no uso contemporâneo, que não é necessariamente um uso incor-
reto, ecoa, ainda, o primeiro sentido do latim instare (estar em
pé), tal valor é, ainda, reforçado e o título visaria, aqui, a posição
dominante da letra, o lugar de destaque que ela ocupa, de onde
tem poder de decisão e exerce autoridade, de onde, em outras pa-
lavras, rege e legisla. É preciso também, no entanto, contar com a
possibilidade de um Witz, de uma palavra: instância é, de fato,
quase insistência e, aliás, em seu primeiro sentido, insistir é fazer
instância, perseverar em pedir. Sem dúvida, em parte alguma, pelo
que conhecemos, a palavra é explicitamente sublinhada por La-
can.1 A insistência aparece, no entanto, como o veremos, no pró-
prio texto (E. 502) e sabe-se que se trata, sim, de um conceito
importante do discurso lacaniano: é o conceito pelo qual é mar-
cada a especificidade da cadeia significante como, para dizê-lo ra-
pidamente, a iminência, isto é, o reportar indefinido do sentido
que está no princípio do automatismo de repetição, do Wiederho-
/ungszwang de Freud. 2 A instância da letra seria, pois, talvez
também, nesse sentido, sua insistência - algo como o suspenso

1. A não ser, recentemente, em "Lituraterre" (in Littérature, nº 3, outubro


de 1971, p. 5).
2. Cf., por exemplo, E. 11, 557.
A LÓGICA DO SIGNIFICANTE 33

do sentido. Isso não deixa de complicar a interpretação do subtí~


tulo da primeira parte.3
A segunda observação a fazermos diz respeito à duplicação
do título: a instância da letra... ou a razão após Freud. Duplicação
totalmente clássica, isto é também, possivelmente, completamen-
te paródica. Duplicação exigindo em todo caso que se esteja aten-
to ao deslize de sentido do qual ela pode ser a ocasião (premedi- .. ,
tada). Pelo menos isto fica marcado aí: é que, após Freud, desde(,
a intervenção de uma certa ruptura ou um certo corte operado
com Freud, a razão não é mais, doravante, o que antes podia-se
reparar sob tal palavra, mas é, no inconsciente, a iiistância (ou in-
sistência) da letra. Isto quer dizer duas coisas: a razão é a letra
e aquilo que passa, a partir de então, no e pelo inconsciente (sen-
do o efeito estilístico aqui visado aquele, evidentemente, da antí-
tese, no sentido retórico da palavra). Fosse ela acrescentada por
jogo, esta "precisão" confirma, em todo o caso, o que já se pôde
ler, de passagem, no preâmbulo: que este texto é proposto, de
imediato, abertamente, como um textofilosófico .. Uma certa visa-
da do inconsciente, uma certa visada no inconsciente, do que ali
predomina e, como tal, o determina, a tomada em consideração
da letra e do que nela está em jogo quanto ao sentido, tudo isso
diz respeito à definição da razão em geral, ratio ou logos, e é em

3. Tudo isto pode, com efeito, ser sustentado sob a condição de não omitir
que fora um ano antes (em 1956) que Benveniste propusera o conceito de
"instância do discurso" para designar "os atos discretos e cada vez únicos por
meio dos quais a língua é atualizada em palavra falada por um locutor". (Proble-
mes de lingui.stique générale, p. 251). Ora, esta definição servia precisamente, co-
mo se sabe, para conduzir a análise da "natureza dos pronomes", na qual se
constituía, em homenagem a R Jakobson, que mais tarde a reformulará (les Em-
brayeurs... , in Essai.s de lingui.stique générale, p. 178 e ss.), a teoria da enun-
ciação e dos "indicadores" do discurso - de que teremos que falar de novo, é
claro. Mas não se há de esquecer, também, que, em Aristóteles, a ·EV<M'O'.O'L<;
designa na teoria da refutação, o obstáculo que é oposto ao arrazoado de um ad-
versário (Rhétorique, II, 25, 1402a); cf. Premiers analytiques, II, 26, Topiques, VIII,
2, 157ab. Esta "instância" é, em particular, aquela que a exceção opõe a uma
pregação universal.
Um exemplo deste topos parece ser este aqui, que avaliaremos dentro de
seu mais "justo" valor. "em certas regiões, é bom sacrificar seu pai, entre os Tri-
bailes, por exemplo, mas isto não é, de forma alguma, um bem" (Topiques, II, 11,
115b).
34 O TÍTULO DA LETRA

suma tal evento, essa mutação ou essa reviravolta, que o texto


toma como objeto.
É pois, na perspectiva assim aberta pelo duplo jogo do título
e do subtítulo, que encetaremos o comentário desta primeira par-
te. Para a comodidade da exposição e porque é bem o caso de,
como cm todo comentário, trabalhar por reconstituir, para apre-
sentar seu arranjo, uma lógica (veremos bem até onde isto é
possível...), nós proporemos um corte grosseiro do texto em qua-
tro partes correspondendo às mais visíveis articulações. E, em o
fazendo, cada uma dessas partes anunciar-se-á por um título
(que, aliás, indicará menos o objeto e mais o que ali buscaremos
ler).4
A primeira destas partes ocupa as duas primeiras páginas do
texto, da página 495 até à primeira alínea da página 497. A este
comentário daremos o título de: a ciência da letra.

4. Poder-se-ia ter igualmente perguntado, a propósito da "instância'', se


bem que Lacan não faça alusão alguma a isso, se tal vocábulo não deveria ser
tomado no sentido que Quine lhe deu em sua lógica. Trata-se, então - no rnso
mais simples e mais geral - .ia ou das proposições que podem ser substiluídas
por uma letra empregada como símbolo no cálculo. ''Toda proposição é a instân-
cia de uma letra qualquer" (Quine, Logique élémentaíre, trad. J. Largeaull e B.
Saint-Semin, Colin, 1972, p. 74). O título de Lacan deveria ser decifrado, então,
assim: a proposição (o enunciado, o discurso) que, no inconsciente, é a instância
de uma letra, que não é um símbolo qualquer mas a letra ou a própria-literalida-
de (o próprio simbólico). O texto todo ficaria, desta forma, colocado sob o signo
de um desvio da lógica de que, de qualquer maneira, será preciso falar d<: nnvn.
(Acrescentemos que o uso do termo por Quine provém, ele mesmo, da conser-
vação, mais marcada em inglês do que em francês, dos valores compreendidos na
ínstantía da escolástica, como - exemplo em apoio a uma asserção - instrumen-
to de prova ou de manifestação em geral, signo ou marca.)
1
A CIÊNCIA DA LETRA

Esta ciência, é verdade que não a veremos constituir-se de


repente. Será o caso, antes (e é o objeto destas duas páginas), de
definir-lhe o objeto, isto é, o conceito de letra. Com o intuito de
recompor esquematicamente esta definição, poder-se-ia propor
aqui:

- a princípio, essencialmente, a letra designa a estnttura da ·,:


linguagem na medida em que o sujeito nela está implicado. Esta
implicação, sejam quais forem suas modalidades, não é somente
inicial, mas é a fundadora de toda a lógica que vai estabelecer-se.
Dizer que a letra é aquilo que implica o sujeito é, antes mesmo de
"tomar-se a ·letra ao pé da letra" ( de acordo~ com a expressão da
p. 495), tornar o sujeito na letra, o que aparecerá bem depressa,
como se suspeita, como uma maneira de tomar o sujeito ao pé da
letra.
Esta literalização do sujeito é, se assim se pode dizer, dupla.
De um lado, "a linguagem com sua estrutura pré-existe à en-
trada que cada um ali faz num momento de seu desenvolvimento
mental" (E. 495). Isso explica o referir-se a Jakobson e, em parti-
cular, a utilização do célebre texto sobre a afasia (Dois aspectos
da linguagem e dois tipos de afasia) uma vez que, pelo menos é o
36 O TÍTULO DA LETRA

que Lacan retém por ora, a afasia, cuja causa pode bem ser
anatômica, acha-se ali mais fundamentalmente determinada de
acordo com a estrutura da linguagem, isto é, não-anatomicamen-
te; e o é de tal forma que a instância, aqui, seja a própria estrutu-
ra.
Por outro lado, a literalização prende-se ao fato de o sujeito,
como locutor, tomar emprestado à estrutura da linguagem o su-
porte material de seu discurso: "designando como letra [diz Lacan]
esse suporte material que o discurso concreto toma emprestado à
linguagem" (E. 495). Dois conceitos estão em jogo aqui: antes de
tudo, o conceito de discurso concreto. Ele é determinado por sua
relação, ao mesmo tempo, com a linguagem enquanto estrutura e
com a fala (no sentido saussuriano, como execução individual da
língua) para reter o elemento comum aos dois. Por sua vez, este
elemento é duplamente especificado (e, aqui, tomaremos empres-
tado do texto intitulado Função e campo da fala e da linguagem
em psicanálise algumas formulações) na "intersubjetividade da fa-
la" na interlocução e na "transindividualidade" da linguagem (e
do sujeito): "seus meios, diz Lacan a propósito da psicanálise, são
os da fala na medida em que ela confere um sentido às funções
do indivíduo; seu domínio é aquele do discurso concreto enquan-
to campo da realidade transindividual do sujeito" 1•
O segundo conceito em jogo é o de suporte material. Repor-
tar-nos-emos aqui, a dois texi:os: de um lado, o Seminário sobre
''A carta roubada", onde se sabe que a partir da carta (a missiva)
que dá seu título à novela de Poe e que, urge lembrar, está es-
condida num lugar tão evidente que ninguém a enxerga, Lacan
chama de materialidade do significante ao mesmo tempo a ap-
tidão do significante para a localização, sua "re_lação com o lu-
gar"2.
Mas uma localização que, estranhamente, é sempre uma
"ausência em seu lugar", se lugar tiver que designar um espaço
na realidade objetiva - e seu caráter insecável - localização e in-
secabilidade que atribuem, então, uma materialidade singular ( as-
sim Lacan traduz o termo inglês odd) ao significante. Essa

1. E. 257.
2. E. 23.
A CIÊNCIA DA LETRA 37

mesma materialidade singular no que tem de inquantificável. 3 De


outro lado, Função e campo da fala, onde, partindo esta vez da
questão da relação da linguagem com o corpo, a linguagem se de-
signa como não sendo imaterial ("Ela é corpo sutil, diz Lacan,
mas é corpo."4); isto se apóia tanto sobre certas formas de soma-
tização, histérica por exemplo ("as palavras são tomadas em to-
das as imagens corporais que cativam o sujeito; podem engravidar
o histérico, identificar-se com o objeto do penis-neid etc... ") quan-
to sobre a possibilidade, no caso das palavras, de "sofrer lesões
simbólicas", de "realizar os atos imaginários cujo sujeito é o pa-
ciente" (como, por exemplo, em "O homem dos lobos", a palavra
Wespe (a vespa) castrada em seu W inicial para construir, preci-
samente, as iniciais S.P. do sujeito).
Dizer que a letra é o suporte material que o discurso concre-,
to toma emprestado à linguagem quer, pois, dizer, em tais con- ·
<lições, isto é, com a condição de· levar em consideração o deslo-
camento a que Lacan submete cada um desses termos, que, de
um lado (e seguindo uma formulação clássica), o sujeito tome
emprestado, no instante do ato da elocução ( que é o ato da re-
lação com outrem), do material constituído que lhe é fornecido
pela linguagem; que, por outro lado, o sujeito só entra na transin-
dividualidade na proporção em que já esteja implicado num dis-
curso por sua vez suportado, istq é, ele próprio determinado pela
instância dessa materialidade singular que a letra é.
O acento carregado sobre a materialidade é pelo menos o
signo de uma dupla recusa: a recusa de atribuir à linguagem uma
origem, ou na idealidade do sentido ou em seu simples avesso,
uma materialidade somática, por exemplo. Portanto, nem idea-
lismo nem materialismo, se bem que o acento esteja colocado de
. preferência, após ter sido falseado, sobre o segundo désfes dois
termos. Esta dupla recusa, que compromete toda a determinação
lingüística do inconsciente, será, aliás, o corolário de uma outra
recusa relativa ao estatuto do próprio inconsciente. O inconscien- \
te não será o local onde estão sediados os instintos. Portanto, se

3. E. 23,24.
4. E. 301.
38 O TÍTULO DA LETRA

se trata de uma materialidade da linguagem como do inçonscien-


te, de forma alguma esta materialidade deve ser pensada, pelo
menos de acordo com o que se credita ao materialismo clássico,
como unia materialidade substancial. A letra é matéria, mas não
é substância. E é este termo inqualificável, aparentemente irre-
dutível a todas as oposições da conceitualidade filosófica tradicio-
nal, que, doravante, ocupará o "lugar mestre" {se é que se pode,
ainda, falar assim) naquilo que, a partir de Freud, é indicado sob
o nome de inconsciente. ·
Mas esta teoria da letra compromete, também, num segundo
momento, a pré-inscrição do sujeito, por seu nome próprio, no
discurso:

O sujeito também, se ele pode parecer servo da linguagem, o é


mais ainda de um discurso em cujo movimento universal seu lugar já
está inscrito ao nascer, mesmo que fosse sob a forma de seu nome·
próprio. (E. 495)

Tal pré-inscrição agrava a implicação, já reconhecida, do su-


jeito na linguagem. Ela reforça sua literalização. O sujeito do dis-
curso concreto é não somente submisso à linguagem enquanto es-
trutura mas, ainda, previamente, à realização da linguagem no
-,; próprio discurso. É que, para Lacan, não há sujeito que não saja
já sempre sujeito social, isto é, sujeito da comunicação em geral:
o que Lacan descreve em termos afinal muito próximos daqueles
do discurso clássico da antropologia filosófica. O sujeito da co-
municação é, de fato, o sujeito de um contrato pelo qual a pala-
- · vra se garante. Assim é que, na terceira divisão do texto (La /ettre,
l'être et l'autre), quando se tratará de definir o Outro (com um
grande O) cujo inconsciente é o discurso, isto é, quando se tratará
de desprender o sujeito do inconsciente de toda identidade consi-
go mesmo e, até, de toda alteridade simples, para designá-lo em
sua "excentricidade" e sua "heteronomia" radicais, Lacan, em se-
guindo de bem perto, como acontece muitas vezes, a dialética he-
geliana do desejo, do conflito e do reconhecimento, deformar-
Ihe-á o processo e perturbar-Ihe-á os efeitos por meio de um re-
curso simultâneo à teoria dos jogos e a essa doutrina do contrato,
de tal forma que o reconhecimento possa aparecer como o reco-
nhecimento da palavra, que _não supõe o ~utro como u111:~ori-
A CitNCIA DA LETRA 39

gem, mas como a própria regra do funcionamento da linguagem,


aquilo a partir do que a linguagem pode determinar-se em sua
dupla função de verdade e de mentira. O sujeito será, pois, insta-
lado pelo Outro no seio da linguagem como "convenção signifi- ,
cante" (E. 525), convenção cujas regras determinarão o lugar do
próprio sujeito e garantirão, fosse ela mentirosa, a verdade de sua ;
palavra - uma vez que a mentira não é nada de animal, nada que
possa reduzir-se ao fingimento natural submetido à necessidade. .
Portanto, a literalização remete também a uma teoria do·
contrato, da passagem convencional da animalidade à humanida-
de. Trata-se, se se quiser, de um rousseauismo, mas a célebre di-
ficuldade do segundo Discurso relativa à anterioridade da lingua-
gem ou do estado de sociedade seria cortada em favor da lingua-
gem e, por isso mesmo, anulada. Isso, aliás, é o que marca aqui,
nitidamente, a passagem que nos interessa: essa segunda sujeição
do sujeito representada por sua pré-inscrição nominal não se fun-
damenta sobre a anterioridade da comunidade ou da sociedade
em relação com o indivíduo, mas, sim, sobre a anterioridade da
linguagem em relação ao indivíduo. A sociedade do sujeito laca-
nim10 confunde-se com à primitividade radical da letra. É sua li-
teralidade. Vem daí o recurso ao conceito de uma tradição ori-
ginária, instauradora, anterior à própria história e produzida pelo .
discurso (E. 4%). Daí, ainda, a referência implícita, no segundo
parágrafo dessa página, a Levi-Strauss, isto é, ao deslocamento da ·
antiga oposição natureza/sociedade para a a tripartição nature- ;, ·
za/sociedade/cultura, onde a cultura, que se reduz à linguagem, é,.
precisamente encarregada de assegurar a partilha entre natur~za ·
~ sociedade. Daí, por fim, a alusão ao debate soviético, podado,
como se sabe, por Stalin, a respeito da superestruturalidade da
linguagem.

Tais precisões visam, juntas, a recusar qualquer inflexão et-


no-lingüística da teoria do sujeito, mas compreende-se, também~ ·~
desde então, que todo este contratualismo não está aí apenas pa-
ra preparaJ" a instalação da teoria do sujeito no seio da única
ciência que possa convir-lhe.
Esta ciência, acredita-se, é a ciência da letra. Mas o fato de
40 O TÍTULO DA LETRA

querer fundá-la não significa dizer que seja sem origem nem
mesmo, de certa forma, que já não esteja criada. A ciência da le-
tra não deixa de estar relacionada, de fato, com a lingüística, pelo
menos enquanto a teoria do sujeito deve submeter-se a uma teo-
ria da linguagem. Por isso é que se pode considerar que esta pri-
meira parte acaba no apelo feito por Lacan à fundação saussuria-
na da lingüística como ciência. Apelo que é formulado nos pró-
prios termos da epistemologia contemporânea, isto é, ao mesmo
tempo na evocação do estatuto experimental da lingüística, fiador
da científicidade de seu objeto (E. 496) e na aplicação do conceito
bachelardiano de ruptura 5 ao gesto fundador de Saussure. É sobre
tal "emergência" da lingüística, uma "revolução do conhecimen-
to", que é preciso, portanto, ajustar, na medida em que desclassi-
fica e reclassifica todas as ciências, uma teoria do sujeito sem re-
lação com qualquer antropologia ou qualquer psicologia que seja.
A não ser que não se trate do movimento inverso e que não seja
de deslocamento introduzido pela lingüística que deva produzir-
se uma ciência do sujeito. Por ora, uma reciprocidade impossível
de desfazer-se, salvo a se notar que, se se deve seguir ainda passo
a passo o movimento deste texto, é bem da lingüística que proce-
de a ciência do sujeito para ir-se constituindo progressivamente.
Isto é o que tentaremos reconstruir em cima de uma segunda
parte, dividida entre as páginas 497 e 501 do texto a que damos o
nome de o algoritmo e a operação.

5. É, sem dúvida, mais exatamente, a uma combinação dos conceitos de re-


fundição e de ruptura, tais como os encontramos em Bachelard, que a alusão de
Lacan nos remete, pp. 496-497.
2
O ALGORITMO EA OPERACÃO
,

Trata-se, pois, de visar, na lingüística aberta por Saussure, a


ciência da letra.
Do conceito de ruptura epistemológica ao qual implicitamen-
te referiu-se,' Lacan retém, aqui, este elemento segundo o qual
requer-se de uma ciência que ela seja instituída com base não no
simples tratamento de um novo objeto empírico, mas na determi-
nação prévia de um modo de cálculo (e de uma conceitualidade
correspondente), somente a partir do que se pode construir um
objeto de ciência.
É tal determinação que Lacan interpreta como a posição
inaugural de um algoritmo:

Para apontar a emergência da disciplina lingüística, diremos


que, como no caso de qualquer ciência no sentido moderno, parece-
se, no momento de se constituir, com um algoritmo que a fundamen-
ta. (E. 497)

Fazer uso deste termo, porém, equivale, pelo menos, a esten-


der todos os .conceitos da epistemologia bachelardiana. De fato,
se o algoritmo designa, em seu primeiro sentido, um processo de
cálculo algébrico, sabe-se que, em seu sentido moderno, designa
um processo de notação diferencial. Mais precisamente, o .algo-
ritmo designa um tal processo como constitutivo de uma lógica
para a qual, sabemos, as duas expressões de lógica algoritmica e
42 O TÍTULO DA LETRA

de lógica simbólica são equivalentes. Vê-se, pois, em que sentido


pode-se, aqui, falar de extensão: é uma extensão por transborda-
mento dos limites do domínio estritamente matemático. A não
ser que, bem entendido, o algoritmo não seja empregado aqui por
conceito no sentido epistemológico (tal como se define, por
exemplo, em Canguilhem). Então, tratar-se-ia simplesmente do
conceito de signo, do qual poder-se-ia, quem sabe, dizer, de fato,
que ele instaura a lingüística como ciência. Mas, neste caso, a no-
tação proposta por Lacan: ~ não seria senão uma notação for-
mal, isto é, econômica, do cC:nceito de signo. Ora, Lacan fala bem
de formalização (E. 497), e da formalização no sentido moderno,
enquanto ela torna possível um cálculo lógico. E, aliás, é de um
cálculo que, aparentemente, se tratará,- na segunda divisão (A le-
tra no inconsciente), quando for o caso de estabelecer as fórmulas
da metáfora e da metonímia (E. 515). Por ora, portanto, é preciso
tomar algoritmo no sentido estrito.
Veremos que, de fato, trata-se essencialmente de fazer o sig-
no saussuriano passar por um certo tratamento. Algoritmizar o
signo, se é que se pode arriscar tal expressão, será o mesmo, pra-
ticamente, que impedi-lo de funcionar como signo. Digamos
mesmo que, em o colocando, o estaremos destruindo.
Com efeito, é do algoritmo que Lacan diz que "ele merece
ser atribuído a Ferdinand de Saussure, se bem que não se reduza
estritamente a essa forma em n~nhum dos numerosos esquemas
sob os quais ele aparece em ( rif'. ..
Curso de lingüística geral" (E.
497). Algo forçado, ou, como diz Lacan, "homenagem" que se
apóia em que o ensino de Saussure é "um ensino digno desse
nome, isto é, que só é possível deter com base em seu próprio
movimento".
De fato, encontramos em Saussure o esquema seguinte1, en-
tre muitos outros, o mais próximo, sem dúvida, do algoritmo la-
caniano:

1. Cours, p.159.
O ALGORITMO E A OPERAÇÃO 43

Se o compararmos com o algm:itmo, perceber-se-á que ali o


significante aparece sob a barra (aliás, todos os esquemas de
Saussure são, sob este ponto de vista, idênticos) e que, mesmo
que se levasse em conta a simbolização atribuída por Barthes a
ste.
Saussure: --que, também ela, inverte o esquema saussuriano
sdo.
(se bem que Barthes o interprete em termos estritamente saussu-
rianos2), ter-se-á que lidar sempre, na realidade,. com um proces-
so de notação cômodo. Em contraposição, quatro traços princi-
pais distinguem o algoritmo:
1. O desaparecimento de um certo ·paralelismo entre os ter-
mos inscritos de um e de outro lado da barra, l!Ína vez que não se
deve só ler, como o indica Lacan, "significante sobre significado",
mas "S grande" sobre "s pequeno" ( este, aliás, escrito em itálico).
2. O desaparecimento da elipse saussuriana, jamais ausente e
símbolo, sabe-se disso, da unidade estrutural do signo.
3. A substituição da fórmula saussuriana das duas faces do
signo pela designação de duas etapas do algoritmo.
4. Por fim, o acento colocado sobre a barra que separa S de
s. (O algoritmo lê-se, de fato: "significante sobre significado, o
sobre correspondendo à barra que separa suas duas etapas".)
É bem isso, aliás, que o próprio Lacan destaca no comentário
que propõe a respeito desse algoritmo:

A temática desta ciência (a lingüística) está, a partir de então,


pendente da posição primordial do significante e do significado, co-
mo ordens distintas e ·~paradas m.Ci~lriiéíi.!!Jlor uma ~ r a resis-
tente. à significação. (E. 4~7) -·- --~ ----

Mas, na verdade, é para logo acrescentar:

É isso que tomará possível um exato estudo das ligações pró-


prias do significante e da amplitude da função delas na gênese do
significado.

Não somente, pois, a posição de duas ordens distintas do sig-


nificante e do significado endurece uma oposição sem dúvida efe-

2. Eléments de sémiologie, II. 4.


!
44 , O TÍTULO DA LETRA

tiva presente em Saussure, mas sempre corrigida pela idéia de


uma relação constitutiva do signo em sua indissociabilidade (é,
por exemplo, a célebre imagem do rosto e do verso de uma mes-
ma folha, ou, então, a dupla indicação de setas investida que en-
quadra, na maioria dos casos, o esquema do signo)3; mas, mais
radicalmente, a separação dessas duas ordens por uma barreira
resistente à significação subverte de parte a parte a concepção
saussuriana do signo. Ali, no ponto em que, para Saussure, a re-
lação ( ou a reciprocidade ou a associação) é o inicial, Lacan in-
troduz uma resistência tal que a transposição da barra, a relação
do significante com o significado, resumindo, a produção da pró-
pria significação jamais serão evidentes - é o menos que se pode
dizer. O deslocamento operado sobre Saussure não depende, por-
tanto, primeiramente e simplesmente como muitas vezes se diz, da
autonomização do significante. A autonomia do significante é efe-
tiva, mas secundária. Ela depende - e o texto que acabamos de
citar, de um parágrafo a outro, indica~o explicitamente - da pró-
pria resistência. O que é primordial (e fundador) é, de fato, a
barra. O corte por meio do qual é instaurada a ciência da letra
nada mais é, afinal, que o corte introduzido ( ou, pelo menos,
acentuado) no signo.
A ciência da letra, de um mesmo movimento, instala-se, pois,
na lingüística e a destrói. Posição paradoxal - no final de tudo;
insustentável. Como fundar uma ciência cujo elemento fundador
a gente destrói? Como destruir uma ciência da qual, no entanto,
mantemos todos os conceitos? Pode-se mesmo, porque é bem es-
te o caso, refundar, ou refundir uma ciência já constituída opon-
do-se, em seus próprios termos, àquilo que a constitui como ciên-
cia? É mais que uma posição insustentável, é uma tarefa impossí-
vel. A ciência da letra seria este impossível: uma lingüística sem
teoria do signo. Como poderia isto funcionar?

3.
O ALGORITMO E A OPERAÇÃO 45

Na verdade, isto não funciona. Ou não dessa forma. Não é


por acaso que, a esta altura do texto, abre-se uma espécie de
parênteses que adia ou suspende, pelo tempo de uma página re-
torcida e difícil, a demonstração. Aparentemente, trata-se de
marcar ali, como que para manter a memória, o investimento, is-
to é, o alcance exato dessa ruptura introduzida no pensamento do
signo: nada menos, dir-se-ia, que o fechamento e a condenação
de toda problemática filosófica do signo. Realmente, o movimen-
to que está anlllldado aqui é muito mais complexo ou, se se pre-
ferir, mais equívoco.
A problemática filosófica do signo é a questão do arbitrário:
"Esta distinção primordial (o corte do signo) vai muito além [diz
Lacan] do debate referente ao arbitrário do signo tal como foi
elaborado desde a reflexão antiga... " (E. 497). Um falso debate,
ou debate em vão, uma vez que, no fechamento desta questão,
todas as respostas que se podem criar "desviam-nos do lugar de
onde a linguagem interroga-nos sobre sua natureza" (E. 498).
Mas por que, exatamente?
De fato, não é o arbitrário do signo como tal que é questio-
nado. Ao final de tudo, pode-se mesmo perguntar se não seria
preciso dizer: ao contrário. Isto porque o que está sendo questio-
nado é uma certa maneira de ter colocado a questão do arbitrário
ou, mais exatamente, o tratamento da linguagem que é imposto
por uma certa posição do arbitrário. Esta posição do arbitrário é
ó reconhecimento, digamos pós-cratyleano, da aporia da referên-
cia: "O impasse [diz Lacan] experimentado desde a mesma épo-
ca que se opõe à correspondência bi-unívoca da palavra com a
_coisa.!....mesmo que fosse apenas no ato de denominação" (E. 497).
Em outras palavras, o "mal" todo vem do fato de ter-se pensado
a linguagem em relação à coisa. Pois, a partir da ruptura entre o
signo e a coisa, quase não é mais possível ir além da resposta
agostiniana4 (nenhuma "significação que não seja sustentada
senão por remeter a uma outra significação", E. 498) ou da so-
lução conceitualista e nominalista ("Se formos comprimir a cons-
tituição do objeto dentro da linguagem, não poderemos senão

4. Lacan apela, aqui, ao De Magistro.


46 O TÍTULO DA LETRA

constatar ali que ela apenas se encontra ao nível do conceito, bem


diferente de algum denominativo, e que a coisa, em se reduzindo
evidentemente ao nome, parte-se no duplo ·raio divergente da
causa onde foi abrigar-se em nossa língua e do nada a quem
abandonou sua veste latina (rem)", E. 498).
Sendo o signo arbitrário, quase não é possível, em outros
termos, ir além do rçconhecimento da ligação necessária entre
significante e significado. E é precisamente dentro deste reconhe-
cimento - que, em suma, recobre até nós, mais ou men_os expli-
citamente, o campo todo da metafísica - que a lingüística, em
seu conjunto, permanece presa. A lingüística, ou sua duplicata de-
sajeitadamente filosófica, o neopositivismo lógico. Esta é a_ ràzão
pela qual, aliás, Lacan não culpa diretamente Saussure ( cuja hesi-
tação quanto à questão do arbitrário é sabida), mas as emendas
ulteriores, das quais, todavia, não se pode dizer que possam ser o
efeito de s~a própria cientificidade. Seja, por exemplo, o fato -
numa alusão à desmotivação de Benveniste5 - esta atestação que
regula a dificuldade do arbitrário do significante, "que não há lín-
gua atual à qual se apresente a questão de sua insuficiência t.m
cobrir o campo do significado, sendo um efeito de sua existência
como língua o responder a todas as necessidades" (E. 498); ou,
ainda, no lógico-positivismo, aquilo que obriga à reduplicação da
questão do sentido, "à cata do sentido do sentido" (id. ), isto é, a
levantar a questão do sentido de um sistema de significações fe-
chado sobre si mesmo.
A linguagem não deve, p~is, ser pensada a partir do signo. E
é por esta razão, em suma, que, desde o pensamento do signo, is-
to é, desde pensamento que "desmotiva" o signo para melhor
"motivar", em sua relação com o significado, o significante, não
se pode transgredir a lei da representação: lei que é a própria
ilusão.

Tais considerações, por mais atuais que sejam para o filósofo,


desviam-nos do lugar de onde a linguagem interroga-nos sobre sua
natureza. E fracassará quem tentar sustentar a questão enquanto
não estiver desprendido da ilusão de que o significante responde à

5. Cf. "Nature du signe linguistique" (1939), in Problemes de linguiscique


générale, p. 49 e ss.
O ALGORITMO E A OPERAÇÃO 47

função de representar o significado, ou melhor dizendo: que o signi-


ficante tenha que responder por sua existência ao título de qualquer
significação. (E. 498)

Compreende-se melhor agora, sem dúvida, em que sentido,


com vistas a ,assegurar a ciência da letra, trata-se de separar à
força da filosofia do signo a lingüística; em que sentido é preciso
destruir o signo. Consiste isto em trabalhar o signo até destruir
nele toda função representativa, isto é, a própria relação de signi-
ficação. Aí está precisamente o papel e a função do algoritmo. O z<
algoritmo qão é o ~ Ou melhor: o algoritmo é o signo en- (fj
quanto não significa (sobre o modo da representação do signifi-
cado pelo significante). Poder-se-ia, talvez, arriscar-se a escrever:
o algoritmo é o signo (cancelado). Signo sob canceladura de pre-
ferência a signo destruído. Não funcionando. Nenhum dos concei-
tos da teoria do signo desaparece: significante, significado, signifi-
cação ainda estão ali. Séu sistema, no entanto, é subvertido, per-
vertido.

É justamente esta perversão do sistema do signo que é urdida


pela operação armada em cima do algoritmo. De fato, uma vez
instalado o corte no signo (a barra acentuada), a operação recai
essencialmente sobre o significante: trata-se de fazer o significan-
te sofrer um deslocamento tal que não se possa mais, doravante,
tomá-lo como um elemento do signo, mas que seja preciso, de-
baixo do antigo nome, visar ou encarar um conceito (ao menos)
paradoxal: aquele de um significante sem significação.
É a razão por que ãoperaçao consiste em lazer a diferença
entre o esquema saussuriano do signo e o esquema do algoritmo.
Isto prova, e desta vez definitivamente, que o algoritmo ~
s
não
é, como tal, comparável com o esquema de Saussure. De fato,
apenas sua ilustração é-lhe comparável.
O esquema de Saussure escolhido por Lacan é o esquema da
árvore. Sabe-se que Saussure desenhava-o assim 6:

6. Cours, p. 99.
48 O TÍTULO DA LETRA

l
Lacan o reproduz, pois, invertendo-o e suprimindo-lhe a elip-
se e também as duas flechas da associação:

ÁRVORE

A seguir, opõe-lhe o esquema do algoritmo ( esquema que é


importante reproduzir aqui, e ver-se-á logo por que, incluindo os
trincos de porta):

HOMENS DAMAS

LJ LJ
Isto funciona como uma espécie de duplicata paródica do es-
quema saussuriano. Mas em que consiste exatamente a diferen-
ça?

... vê-se [diz Lacan] que, sem estender muito o alcance do significan-
te interessado na experiência, seja redobrando-lhe somente a espécie
nominal apenas pela justaposição de dois termos cujo sentido com-
plementar parece dever consolidar-se com isso, a surpresa é produ-
zida por uma precipitação inesperada do sentido: na figura das duas
O ALGORITMO E A OPERAÇÃO 49

portas iguais que simbolizam, com o mictório à. disposição do ho-


mem ocidental para que faça suas necessidades fisiológicas fora de
casa, o imperativo que parece partilhar com a grande maioria das
comunidades primitivas e que sujeita a vida pública às leis da segre-
gação urinária. (E. 500)

Decomponhamos:
1. Dois termos inscrevem-se acima da barra, no lugar do sig-
nificante (ou da "figura acústica" de Saussure). Primeiro momen-
to da operação: a duplicação do significante ou, mais exatamente,
a introdução de uma dualidade no significante, isto é, de uma di-
ferença. No sistema saussuriano, esta justaposição (possível, é
claro) teria feito a diferença atuar como consolidação do valor de
cada um dos dois termos - e, portanto, de valor complementário
deles. Mas precisamente este esquema não é saussuriano.
Com efeito:
2. No lugar do significado ( ou do conceito) esperado - de-
veriam ser, por exemplo, silhuetas masculina e feminina - encon-
tra-se "a figura das duas portas". Ou, então, ainda o esquema to-
do reproduz ou figura um dispositivo bem real (uma edícula pú-
blica ou, pelo menos, sua fachada) ou, bem, no lugar do significa-
do, e apagando-o, introduziu-se urna outra função. Lacan, numa
formulação particularmente ambígua (pelo fato de interdizer,
aparentemente, que se possa decidir entre o simbólico e o real),
fala de simbolização: "A figura de duas portas... que simbolizam
com o mictório [a indecidibilidade está, aqui, neste "com"] ... o
imperativo etc.". Voltaremos, num instante, a este equívoco. Di-
gamos simplesmente aqui que, em lugar do significado, introduz-
se a simbolização·de uma lei, que é uma lei de segregação sexual
que Lacan indica bem como sendo praticamente universal - e
co~parável neste ponto às leis gerais da cultura.
y
3. Por fim, a passagem do significante nesta simbolização ( o
equivalente, portanto, ao processo por onde é gerada a signifi-
cação) é dada como uma "precipitação do sentido". Formulação
notável, mais uma vez, uma vez que se presta pelo menos a três
interpretações, não obstante, engraçadas: porque isso pode,
também, querer dizer que o sentido cai de cabeça para baixo (e
não se diz onde ...) ou que o.sentido vai depressa demais, curto-
circuitando o significado (o homem e a mulher, como conceitos,
50 O TÍTULO DA LETRA

quase não são mais audíveis a não ser através da porta) ou, enf(m,
que o sentido precipita-se no sentido químico da palavra, isto é,
que se deposita como tal no meio ou na solução do significante.
Vê-se, logo, que a "sideração" (por meio de um golpe baixo)
do debate nominalista (E. 500) consiste em suprimir pura e
simplesmente toda a questão da referência (compreendida como
determinando a posição do significado) para substituí-la por um
"acesso" do significante ao significado (E. 501), uma "entrada"
do significante no significado (E. 500) através ou, antes, por meio
do jogo do único significante, confirmado aqui em sua tríplice de-
terminação: materialidade /localização/simbolização.

É este processo da "significação" que se trata, agora, de re-


constituir; pelo menos o primeiro tempo deste processo, se se de-
ve reconhecer, em seguida, que o esquema algorítmico, por si só,
não permite assegurar até o fim a produção do "sentido".
O que fundamenta o processo aqui descrito, em seu conjunto,
é, como acabamos de ver, a lei da segregação urinária, isto é, a lei
como lei da diferença dos sexos. Digamos, para manter a fidelida-
de à terminologia do texto, o imperativo. Este imperativo deter-
mina, por sua vez, uma separação material inscrita pelo signifi-
cante como lugares distintos (o duplo mictório - e é preciso,
sem dúvida, tomar a palavra mictório no sentido maisforte). O
significante é, pois, a diferença dos lugares, a própria possibilida-
de da localização. Daí vem sua materialidade "singular", como é
dito (quem não se lembra?) no Seminário sobre ·~ carta rouba-
da". Não se divide em lugares, divide os lugares - isto significa
que ele os institui. Isto equivale dizer, se se preferir, que não há
divisão por existir matéria, mas, inversamente, que existe matéria
por haver divisão. Sobre esses lugares, aliás, o significante lingüís-
tico Homens/Damas não se inscreve para remeter diretamente
ao significado (os "conceitos" de homem e de mulher), mas ins-
creve-se só a si mesmo como diferença. Ou seja, exatamente
Homens cfa Damas, isto é, a própria lei.
Isso pode-se considerar, de fato, como sendo símbolo por
duas ve.zes:
1. No sentido da lógica simbólica ou algorítmica na medida
O ALGORITMO E A OPERAÇÃO 51

em que, aqui, tem-se que lidar apenas com marcas diferenciais


(cuja relação é comparada, sabe-se bem, pela teoria da lógica
simbólica à relação dos lugares numa topologia). Daí, o exemplo
do míope, nesta mesma página 500: "porque, ao ter que aproxi-
mar-se das plaquetas esmaltadas que o suportam [o significante],
o olhar piscante de um míope estaria, talvez, justificado para
questionar se é bem ali que é preciso ver o significante, cujo signi-
ficado, neste caso, receberia da dupla e solene procissão da nave
superior as últimas honras". O míope não decifra, portanto, nem .'"':
a significação, se é que podemos dizê-lo, da fachada da edícula,
nem o significado do significante inscrito (Homens, Mulheres),
mas, sim, a própria diferença dos lugares. Isto é, para esquemati-
zar grosseiramente, mais ou menos isto:

(H) - - - : / = ~ ( D )

Quer dizer, ainda, o lugar que lhe é destinado, por exemplo,


enquanto homem. Existe, pois, sob a barra, o mictório que lhe
convém e não o significado (homem) ao qual seria preciso, de ou-
tro modo, atribuir a própria função do mictório: ou seja, receber
as "últimas honras" dos homens e das mulheres separados pelo
significante em uma dupla procissão. Witz que só é evidentemente
possível, como se observará, se se jogar com a ambigüidade do
esquema, que pode ser realista ou simbólica - ambigüidade cui-
dadosamente tecida ela mesma no interior de todo este texto e,
em particular, na proposição que citávamos logo atrás: " ... a ima-
gem de duas portas idênticas que simbolizam ... com o mictório...
o imperativo etc.", que pode ler-se, portanto:
- ou bem: a figura de duas portas idênticas que, com o
mictório, simbolizam o imperativo...
- ou bem: a figura de duas portas idênticas que simbolizam
a um só tempo o mictório e o imperativo.
2. No sentido clássico da palavra, na medida em que o sím-
_bolo não é completamente desmotivado, mas retém sempre al-
guma coisa do real ao qual é referência ( é, por exemplo, o "laço
natural" de que fala Saussure). Falando de outra maneira, aqui, o
52 O TfTULO DA LETRA

conjunto Homens/Damas não tem a lei por significado, mas, por


meio do espaçamento que constitui como tal, simboliza a diferen-
ça que a lei articula.
Partindo do conjunto deste funcionamento, poder-se-ia pro-
por, pois, a esquematização aproximativa que se segue:

HOMENS DAMAS
ÁRVORE

S? EJEl
-----
R/Si

(S.do)

Símbclo

Lei

Esquematizaçi>.o esta que vale, a se supor que não seja falha,


o que, em geral, valem esquematizações deste tipo. Mas que não
vale, de qualquer forma, a ilustração que o próprio Lacan propõe,
uma vez que "exemplo algum construído seria capaz de· igualar o
relevo que é encontrado no vivido da verdade". E de fato:

Um trem chega à estação. Um menininho e uma menininha,


irmão e irmã, estão num compartimento sentados um em frente ao
outro do lado da janela que, abrindo para o exterior, deixa desenro-
larem-se ante os olhos as construções da plataforma ao longo da
qual o trem pára: "Olha, diz o irmão, estamos em Damas!" -
"Babão!", responde a irmã, "não vê que estamos em Homens."
Além do fato de que os trilhos, nesta história, materializam a
barra do algoritmo saussuriano sob uma forma bem-feita para suge-
rir que sua resistência possa ser outra que não dialética, seria preci-
so - esta é bem a imagem que convém - não ter olhos diante dos
buracos para ali atrapalhar-se quanto ao lugar respectivo do signifi-
O ALGORITMO E A OPERAÇÃO 53

cante e do significado, e não seguir de que centro radiante vem o


primeiro refletir sua luz nas trevas das significações inacabadas. (E.
500)

É, pois, por ocuparem lugares distintos e opostos que as duas


crianças escolhem, por conta da parada (sem decifrar, por conse-
guinte, o significado), a inscrição correspondente ao lugar de cada
um. Cada inscrição (ou cada lugar) é a exclusão da outra. Desta
forma, cada vez, a escolha realizada acaba sendo aquela do sexo
oposto. E é isto que Lacan relaciona imediatamente com a cas- ·<
tração (o buraco, o centro radiante) e lê como sendo sua ins-
crição (mas com a condição de pensar a própria castração como
relacionada em última instância, como o veremos, com o buraco
(do) significante). Dito de outra forma, um uso puramente signi-
ficante, puramente toponímico, corresponde a uma posição da di-
ferença dos sexos a partir daquilo que a define - a presen-
ça/ausência do pênis (mas, desta vez, com a condição de relacio-
nar esta alternativa com a alternativa estrutural onde, como é di-
to, ainda, no Seminário sobre ''A carta roubada" "a presença e a
ausência pegam seu apelo uma da outra"7• Por conseguinte, é só
partindo deste "centro" que pode-se chegar ao significado, o qual,
aliás, é indicado aqui apenas do lado das' trevas, do inacabamcnlo.
As crianças permanecem simbolicamente separadas da signifi-
cação pelos trilhos ou, caso se prefira, os trilhos impedem (eles
não são "dialéticos") a significação de cumprir-se. E, além disso,
o comentário que vem logo a seguir marca bem que a diferença
animal dos sexos, natural, não é a diferença e que só o uso do
significante pode inscrevê-la como tal, levando-a até a Dissensão
(o mitema do EpLc; primordial) onde é gerada a guerra sem
medida da tragédia ou a dualidade irredutível das pátrias platôni-
cas.

Compreende-se melhor, a partir daí, o que é o significante


para Lacan - ou, antes, qual é exatamente o deslocamento pelo
qual Lacan o faz passar (" ... eu defini o significante como nin-

7. E.46.
54 O TÍTULO DA LETRA

guém o ousou fazer" 8). Não é mais a outra face do signo em re-
lação ao significado e só existindo nesta associação, mas esta or-
dem do espaçamento segundo o qual é inscrita, marca-se a lei
como diferença. Ou, até, como vemos agora, que é preciso no-
meá-lo, este buraco estrutural segundo o qual é marcada a lei co-
mo diferença.
Dito isto, a própria operação fica ainda por ser produzida. É
preciso assegurar o funcionamento do algoritmo, isto é, de fato,
permitir ao único significante que suporte o peso todo deste fun-
cionamento, uma vez que a "significação" não deve passar pelo
significado. Tem que se arranjar, portanto, uma "entrada" no sig-
nificado, sem que, no entanto, em algum momento, venha a
apoiar-se sobre algum significado. De acordo com os termos da
ilustração ferroviária - noteriios, de passagem, que o equívoco
do simbólico ainda persiste nesse caso - trata-se de o significado
estar saindo dos trilhos e chegando às crianças (pela porta, pelo
corredor ou pela tubulação do vagão).
A "fórmula" desta operação é a seguinte:

O algoritmo, na medida cm que ele próprio só é pura função


do significante, não pode revelar senão uma estrutura de significante
a essa transferência. (E. 501)

Vê-se que é uma fórmula nem clara nem unívoca. Pois o que
aqui é constrangedor 1 o que comanda todo processo, é o próprio
algoritmo ser "pura função do significante". Ora, isto pode ser
entendido de duas maneiras:
- ou bem, de fato, função do significante quer dizer, sim-
plesmente, que o algoritmo está escrito em função do significante
ou, mais exatamente, que ele é a notação da posição e do proces-
so do significante. O que equivale a dizer, então, que o algoritmo
vale aqui por seu conteúdo, tal como já foi determinado; mas,
também, dada esta formulação, na medida em que ali se acha
acentuada (pela pureza da função) a predominância do significan-
te. Se o algoritmo deve ser lido como notação do único significan-
te e de uma operação para a qual ele é o suficiente, se o algorit-

8. "Radiophoníe", Seitice/ n° 2/3, p. 65.


O ALGORITMO E A OPERAÇÃO 55

mo só é escrito para indicar a primariedade auto-suficiente do


significante, o significado que aí figura (ou melhor, aquilo que
ocupa seu lugar) só está ali para lembrança ou a título de um
efeito secundário, derivado da operação significante da qual não
é, de forma alguma, contemporâneo e na qual não tem nem
mesmo participação. Já se sabe, porém, que é impossível ler o al-
goritmo dessa forma;
- ou, então, a fórmula pura função do significante indica que
o significante funciona como algoritmo, isto é, de acordo com a
natureza algorítmica do algoritmo. De fato, segundo a expressão
da página 498, o algoritmo não tem sentido nenhum. Tal ausência
de sentido liga-se ao funcionamento autônomo da cadeia aig-"rít-
mica na medida em que esta é concebida como uma cadeia de
marcas diferenciais - isto é, de marcas que por si mesmas não
marcam nada além de suas posições recíprocas e as relações (ou
as combinações) por onde fabrica-se um "sentido" (que não se
define ele próprio por nenhuma mira de um conteúdo ou de um
significado, seja ele empírico ou de verdade).
Está bem evidente tratar-se disto. O conceito de marca, con-
tudo, retém ainda em si algo de positivo demais. Eis por que La-
can o substitui, de fato, por um outro "modelo", o de um algorit-
mo como "buraco", cuja lógica diferencial (puramente diferencial,
se é que isto tem sentido) determina a ordem inteira do signifi-
cante. É, de resto, necessário recorrer neste ponto a um outro
texto de Lacan: Subversão do sujeito e dia/ét.ica do desejo (é ver-
dade ser wn texto posterior - data de 1960 - mas que Lacan in-
dica ter sido escrito a partir de um seminário contemporâneo de
a Instância da letra), no qual destacaremos duas·fórmulas capazes
de iluminar o jogo do que doravante será necessário chamar de
a Lógica do significante:

O significante só se constitui a partir de um ajuntamento sin-


crônico e enumerável em que nenhum se sustenta se não for pelo
princípio de sua oposição a cada um dos outros.9
Se a lingüística promove-nos o significante para nele ver o de-
terminante do significado, a análise revela a verdade dessa relação

9. E. 806.
56 O TÍTULO DA LETRA

em fazendo dos buracos do sentido os determinantes de seu discur-


so.lo

A isso, porém, é preciso acrescentar ainda: é que, em cima


desta determinação do jogo dos significantes como relação dos
buracos do sentido, vem enxertar-se uma determinação última a
partir da qual ordena-se, de fato, o jogo no seu conjunto. Um sig-
nificante a que Lacan dá o nome de o significante de uma falta no
Outro. Se, como já o sabemos, o Outro é o fiador, quer dizer, a
condição de possibilidade da palavra falada, é porque, anterior-
mente, é alguma coisa como significante originário de onde tra-
ma-se a combinação significante. Mas é com a condição de nada
ser por si mesmo - e nada ao ponto de não admitir por sua vez
um ·outro, que seria o Outro do Outro, Deus, se se quiser, ou um
símbolo O. Ele é, pelo contrário, o significante da própria/a/ta de
um símbolo (e de Deus?), a partir do qual pode articular-se a ca-
deia dos significantes. É o significante "sem o qual todos os ou-
tros nada significariam", puro desvio do significante em geral.
Surge daí a necessidade desta terceira amostra:

Ora, a bateria dos significantes, como ela é, sendo por isto


mesmo completa, este significante não pode ser senão um traço que
se traça com seu círculo sem poder nele ser contado. Simbolizável
pela inerência de um (-1) ao conjunto dos significantes.
Como tal, ele é impronunciável, mas não o é sua operação... 11

Existe, aqui, algo como que uma pura operatividade no


princípio daquilo que o próprio Lacan chamará, em breve, de sig-
nificância - sem que, por isso, no entanto, o valor de operação
(de mecanismo) seja explicitamente tematizado como o momento
da destruição do sentido, menos ainda da oposição do sentido e
da operação. Mas ainda voltaremos a isso. Por ora, contentemo-
nos com observar que é de lá, portanto, que a própria operação
haure sua possibilidade e que, desta forma, funda-se a lógica do

10. E. 801.
11. E. 819.
O ALGORITMO E A OPERAÇÃO 57

significante, isto é, ao mesmo tempo sua autonomia e seu funcio-


namento paradoxalmente "centrado" sobre um buraco, uma falta.
Poder-se-ia pensar, então, que é, enfim, possível assegurar
esta entrada no significado já anunciada há um certo tempo. Ora,
não é nada disso. Isso ainda não acontece. É preciso, ainda, mos-
trar que o sen.tido pode realmente produzir~se a partir da letra.
sozinha. Necessário é, ainda, mostrar até que ponto pode-se pas-
sar sem o signo. E é o objeto daquilo que, por conseguinte, de-
terminaremos como uma terceira parte neste texto, à qual demos
este título que, após algumas páginas, não mais causará surpresa:
a árvore do significante.
3
A ÁRVORE DO SIGNIFICANTE

A fórmula que acabamos de comentar ("porque o algoritmo,


na medida em que ele próprio nada mais é que pura função do
significante, pode tão-somente revelar uma estrutura de signifi-
cante a esta transferência") definia, pois, a imposição ou as con-
dições propriamente estruturais do funcionamento significante. É
tal estruturalidade do significante que Lacan coloca como articu-
lação:

Ora, a estrutura do significante está em que, como se diz co-


mumente a respeito da Hnguagem, ele seja articulado. (E. 501)

Quer isto dizer duas coisas:


1. Que as unidades significantes, do ponto de vista de seus
"englobamentos crescentes" (isto é, em linguagem saussuriana,
do ponto de vista do sistema), decompõem-se em "elementos di-
ferenciais últimos" (id.) que· são os fonemas da fonologia e a
propósito dos quais Lacan salienta exclusivamente o caráter de
"ajustamento diferencial" deles.
Esta é a razão pela qual - agora compreende-se - um certo
privilégio é atribuído à 'PWV'Tl , predestinando-a, justamente, à es-
critura alfabética. Advém daí o uso da palavra letra, que reúne
aqui, na figura dos caracteres tipográficos, os traços essenciais do
60 O TÍTULO DA LETRA

significante: de um lado, sua materialidade e sua aptidão para ser


localizado e, por outro lado, sua estrutura diferencial.

Vê-se, por meio disso; que um elemento essencial na própria


palavra falada estava predestinado a ser vertido nos caracteres mó-
veis que Didots ou Garamonds, pressionando nas caixas baixas•,
tomam validamente presente o que chamamos a letra, a saber, a es-
trutura essencialmente localizada do significante. (E. 501)

Tal decomposição em elementos define, geralmente, a ordem


do léxico, quer dizer, "a ordem dos englobamentos constituintes
do significante" cujo limite superior é "a locução verbal" (E. 502).
Ordem esta definida por Lacan como uma topologia, quer di-
zer, uma pura combinação de lugares, da qual pode-se dar como
"aproximação" a figura da cadeia significante extraída de Hjelms-
lev1: "anéis [diz Lacan] cujo colar tem seu fecho no anel de um
outro colar feito de anéis" (E. 502). É, em geral, a gramática cujo
limite é a unidade imediatamente superior à frase.
A articulação significante pode, portanto, descrever-se se-
gundo os dois eixos saussurianos do sintagma e do sistenia. Mas o
é com a condição de manter o funcionamento da ·pura estrutura
significante além do ponto onde, estritamente do pônto de vista
lingüístico, as condições de possibilidade fornecidas pela estrutura
cedem o lugar à produção do sentido.
Assim é que, dentro da dimensão horizontal ou linear do dis-
curso, Lacan destaca não a realização ou afivelamento do sentido
(uma vez que "nenhum dos elementos da corrente consiste na
significação de que, no próprio momento, é capaz" [E. 502]), mas
a perpétua antecipação do significante em relação ao sentido.
Parte daí a utilização das frases incompletas: entretanto ... , eu nun-
ca ... , talvez ainda ... , que produzem um efeito significante justa-
mente naquele ponto em que param de colocar signos e suspen-
dem o sentido. Utilização esta que remete, por exemplo, à análise
do Presidente Schreber, tal como Lacan a desenvolvera dois anos

• Em linguag_em tipográfica, as caixas que contêm o tipos menores.


1. Le langage, p. 56.
A ÁRVORE DO SIGNIFICANTE 61

antes e tal qual sua retomada no texto intitulado: A respeito de


uma questão preliminar a qualquer possível tratamento da psicose. 2
Tal antecipação, Lacan relaciona-a, no entanto, com a teoria
saussuriana dos "dois reinos flutuantes". Mas suspeita-se que é
pelo menos para falseá-la, considerando-se aquilo que é preciso
fazê-la restituir. Sabe-se que, para Saussure3, trata-se de descre-
ver a formação do signo como o recorte simultâneo de duas mas-
sas flutuantes, a dos sons e a dos pensamentos, no interior das
quais nem os sons nem os conceitos aparecem como tais antes do
recorte próprio da língua. Por isso, o esquema bem conhecido:

(idéias confusas)

J~~~L,;7,~1.
~~~~1ar~·

~~-~~~
(sons confusos)

Ora, desse esquema é que Lacan diz que ele ilustra "o desli-
zar incessante do significado sob o significante". Não é, contudo,
a simples inversão do esquema, à qual estamos agora habituados,
esta maneira de recolocar o signo sobre seus próprios pés, se é
que se pode permitir usar aqui esta fórmula famosa, aliás, e tida
como suspeita. Falar do deslizamento de um dos termos ao invés
de falar da flutuação de ambos é, evidentemente, mais do que fal-
sear ou inverter. Não apenas porque o significado, uma vez mais,
paga o preço, mas porque a "imagem" saussuriana aqui invocada
não se presta de fato, e com razão, a um tratamento de tal tipo. É
por isso, aliás, que Lacan, a fim de denunciar-lhe a fragilidade;
finge tomá-la justamente como uma simples imagem: "imagem
que se parece, diz ele, com as duas sinuosidades das Águas supe-

2. E. 539-540.
3. Cours, pp. 155-156.
62 O TÍTULO DA LETRA

riores e inferiores nas miniaturas dos manuscritos do Gênesis.


Duplo fluxo onde delgada parece a marca das finas linhas de chu-
va que ali desenham os pontilhados verticais, aí supostos limitar
os segmentos de correspondência". (E. 502-503)
Portanto, trata-se realmente de uma crítica ("Toda experiên-
cia vai contra isso... "). Contra o esquema saussuriano que subor-
dina a constituição do significante e do significado à divisão pré-
via do signo e que estabelece a coextensão da cadeia dos signifi-
cados à cadeia significante, é preciso manter a independência e a
preexistência do significante. Daí o deslizamento sem fim do sig-
nificado. Curiosamente, porém, parece que aí se está a chocar
brutalmente com essa dificuldade que até agora havia sido cuida-
dosamente descartada ou transferida. Se o significado não pára
de esquivar-se de ser presa do significante, se o significante não
consiste nunca em tal ou qual significação pontual se nada pára,
aqui ou acolá, o movimento ou a submovimentação de um sentido
sempre arrancado de si mesmo, transportado para fora de si -
como se dar conta pelo menos do efeito de significação ou de sen-
tido? Ao diferir, como que mimetizando, aliás, o própnó movi-
mento que se trata de pensar - ao diferir, pois, a posição desta
questão, pôde-se tornar (até certo ponto) possível a operação de
perversão, ou, como diz Lacan, de desvio do sistema saussuriano,
e ver-se-á num instante que uma vez fechada precipitadamente (e
alusivamente) a falha aqui descoberta, isto continuará ainda por
certo tempo. Mas o esquema dos "reinos flutuantes" resiste. O
esquema dos "reinos flutuantes", isto é, o esquema que mais sim-
plesmente não dá conta do signo em geral, mas do funcionamento
concreto da própria língua, o que obriga, bem se sabe, a passar da
sig11ificação ao valor. 4
Sabe-se que a "solução" é a chamada teoria dos pontos de
basta (points de capiton) - simplesmente nomeada ou invocada
aqui (na Instância). De acordo com essa teoria, lembrando rapi-
damente o essencial, é preciso, para que se efetive uma signifi-
cação num dado momento que, em geral, de lugar em lugar, o
significante interrompa o deslizamento do significado como que

4. Cours, pp. 157-158.


A ÁRVORE DO SIGNIFICANTE 63

por fenômeno de ancoragem que dá lugar à pontuação "onde a


significação constitui-se como produto acabado"5• Veja-se, entre
as páginas 805 e 808 dos Escritos, montagem do gráfico do ''ponto
de basta"; ou, então, substitua-se o "rio" do esquema saussuriano
pelos "reinos flutuantes", uma espécie de acolchoado, visto em
corte.
É preciso, é claro, lembrar que o próprio ponto de basta é
dado por Lacan como mitico - de tal forma que não há signifi-
cação que não esteja sempre a ponto de deslizar fora de seu sen-
tido pretensamente próprio. É isso, por exemplo, que o texto de
um seminário de 22 de janeiro de 1958 destaca, texto citado por
Laplanche quando do colóquio de Bonneval a respeito do incons-
ciente.

Entre os dois encadeamentos... o dos significantes em relação a


tudo que há de significados ambulantes circulando - pois estão
sempre a ponto de deslizar - a ação de afixar de que estou falando
ou, ainda, o ponto de basta é mítico, pois nunca alguém pôde afixar
uma significação a um significante; em compensação, porém, o que
se pode é afixar um significante a um significante e ver o que isto
faz. Neste caso, porém, produz-se sempre alg9 de novo ... isto é, o
surgimento de uma nova significação.ó

A dificuldade torna-se a fechar, pelo menos provisoriamente.


Isso não impede que ela tenha encetado, no prazo de um parágra-
fo e como que por acidente, a linearidade discursiva da demons-
tração. Ora, é precisamente - e parodoxalmente - a própria li-
nearidade saussuriana que atrapalha todo esse discurso. Se consi-
derarmos de fato tal passagem como um "comentário", em dia-
gonal, do capítulo IV do Curso, não é indiferente marcar desde já,
com o risco de a isso voltar mais tarde, que é a linearidade que
constitui o princípio da língua como sistema de diferenças "sem
termos positivos" - e que é justamente por essa razão também
que ela oferece este "termo de comparação" que é a escrita ma-

5. Subversion du sujet..., E. 806.


6. ln LAPIANCHE-LECIAIRE, L 'inconscient, une étude psychanalytique,
Actes du colloque, D. de Brouwer, p. 118.
64 O TÍTULO DA LETRA

teria! das letras.7 Pois bem, diz Lacan, "a linearidade que F. Saus-
sure considera como constituinte da cadeia do discurso, em con-
formidade com sua emissão por meio de uma única voz e na hori-
zontal em que se inscreve em nossa escrita, mesmo que de fato
ela seja necessária, não é suficiente" (E. 503). Por pouco, portan-
to, seria preciso conjurar a linearidade. Verdade é que, aí ainda, o
que de fato se procura contornar é algo como o "positivismo" de
Saussure, se se pode dizer que, uma vez tratando-se do signo co-
mo tal (e não mais somente do significante e do significado "to-
mado à parte"), isto é, a partir do quarto parágrafo deste capítulo
IV, corrige a teotia das puras diferenças (na língua só existem di-
ferenças) em proveito de uma doutrina da combinação concebida
como um "fato positivo", e, aliás, "a única espécie de fatos que
a língua comporta": "a partir do momento em que se comparam
os signos entre si - termos positivos - não se pode mais falar de
diferença" 8• Basta isto, porém, para explicar que a única necessi-
dade que se reconheça com relação à linearidade não seja defini-
da de outra forma que não por meio da orientação temporal que
ela impõe ao discurso - reconhecimento que, aliás, mais parece-
ria salvá-la in extremis, permitindo-lhe, por esta razão, ser "toma-
da como fator significante", pelo menos nas línguas em que adis-
tinção gramatical do objeto e do sujeito permite que, na inversão
dos termos de tal proposição (Paulo agride Pedro em vez de Pe-
dro agride Paulo*). produza-se uma inversão do tempo, dado que,
como bem se sabe, tudo depende de "quem começou"?
Realmente - e teremos, sem dúvida, que voltar a falar desse
golpe de força - se a linearidade não é suficiente é porque "basta
(nós é que sublinhamos) escutar a poesia... para que nela se faça
ouvir uma polifonia e que todo discurso se averigua alinhando-se
sobre as várias pautas de uma partitura" (E. 503). Portanto, o que
essencialmente constitui o discurso não é a articulação sintagmáti-
ca, a horizontalidade sintática da cadeia, mas a profundidade pa-

7. Cours, pp. 165-166.


8. Cours, pp. 166-167.
• Em português, não basta a ordem de "quem começa"; manda a gramática
que o objeto venha precedido da preposição a, para eliminar a ambivalência: Pe-
dro agride a Paulo, Paulo agride a Pedro. (N. do T.)
A ÁRVORE DO SIGNIFICANTE 65

radigmática ou sistemática, o jogo das correlações semânticas ou


léxicas. Tanto a linearidade coloca problema, quanto a verticali-
dade (terra prometida ...) vai de per si. E não é por acaso que ela
se introduz aqui por meio de uma metáfora - e por uma metáfo-
ra (a analogia da música) que é, quem sabe, a metáfora da meta-
foricidade em geral. Deste rodeio, suspeita-se, as conseqüências
serão consideráveis e teremos que medir progressivamente seus
efeitos. Antes, porém, é preciso analisar. Que é que se passa de
fato?
O que se passa é simplesmente isto: a dificuldade que tinha
relação com a linearidade e que impunha contra toda expectativa
(isto é, malgrado a vontade apregoada de diferir ainda a ultrapas-
sagem da barra e a entrada no significado para garantir a possibi-
lidade de uma significância pura) - que impunha, portanto, o
"ponto de basta" e a pontuação, esta própria dificuldade autoriza
e fundamenta este encarar, doravante poético, da linguagem.

Nenhuma cadeia significante, de fato, que sustente como apen-


so à pontuação (sublinhado por nós) de cada uma de suas unidades
tudo o que de contextos atestados se articula na vertical, se podemos
afirmá-lo, desse ponto (de novo sublinhado por nós). (E. 503)

É, aliás, o que possibilita imediatamente a retomad<! do des-


vio de Saussure, este tratamento que, sem dúvida, não podemos
definir de outra forma que por seu caráter witzig (no sentido mais
romântico do termo). O Witz gráfico do esquema é substituído
por um outro, desta vez verbal, e fundamentado no anagrama
(barra) da árvpre saussuriana.9

Assim é que para retomar nossa palavra - árvore - não mais


em seu isolamento nominal, mas ao término de uma de suas pon-
tuações, veremos que não é somente em favor do fato que a palavra
barra é seu anagrama, que ela atravessa a do algoritmo saussuriano.
(E. 503)

9. Quase não se pode evitar observar aqui, de passagem, que um outro tipo
de anagrama (e onde um outro inconsciente está interessado) íoi acionado pelo
próprio Saussure e que poder-se-ia interrogar este empreendimento para saber
até que ponto não teria sido como que um outro desvio ou um outro Witz opera-
do em cima da lingüística. Isto aíetaria, com uma complexidade suplementar e
singular, as relações de Saussure e Lacan, cujo enredo começa a ser urdido aqui.
66 O TÍTULO DA LETRA

Pura precaução restritiva. Isso porque segue-se logo, a


propósito de tal árvore, um tipo de demonstração, poética ela
mesma, do poder poético - ou, como se diz nos manuais de lite-
ratura, do poder evocador da palavra. Preciso é acautelar-se para
não pensar aqui que tal referência está deslocada, se é verdade
que todo este exercício apóia-se como último recurso naquilo
que, na posteridade do simbolismo (e sabe-se até que ponto ela
vai ... ), terá sido chamado a alquimia do verbo ou a bmxaria evo-
catón·a. Não se trata, portanto, de comentar este texto (mas,
mesmo assim, consultem Littré a respeito da palavra árvore). E é
muito melhor, sem dúvida, (tornar a) dá-lo simplesmente para
ler, isto é (mais que nunca em toda esta exposição) para entender:
Pois decomposto no duplo espectro de suas vogais e de suas
consoantes, ela chama com o rober e o plátano as significações com
que fica carregada em nossa flora, com força e majestade. Drenando
todos os contextos simbólicos em que tal palavra é tomada no he-
braico da Bíblia, erige sobre uma pequena colina sem folhagem a
sombra da cruz. Reduz-se, depois, ao Y maiúsculo do signo da dico--
tomia que, sem imagem historiando o annorial, em nada ficaria de-
vendo à árvore, por mais que se diga genealógica. Árvore circulató-
ria, árvore de vida do cerebelo, árvore de Saturno ou de Diana, cris-
tais precipitados em uma árvore condutora do raio, é vossa figura
que traça nosso destino na carapaça, passada pelo fogo, da tartaruga,
ou vosso clarão que faz surgir do meio de uma noite inumerável esta
lenta mutação do ser no l' Ev llávTa da linguagem:
Não! diz a Árvore; ela diz: Não! no brilho
de sua cabeça soberba

versos que consideramos tão legítimos de ser ouvidos nos harmôni-


cos da árvore quanto o reverso delas:
Que a tempestade trate universalmente
Como ela faz uma erva

Esta estrofe moderna ordena-se de acordo com a mesma lei do


paralelismo do significante, cujo concerto rege a gesta eslava primiti-
va e a mais refinada poesia chinesa.
Como se vê, no modo comum de ser em que são escolhidas a
árvore e a erva, para que ali se tomem presentes os signos de con-
tradição do dizer "Não!" e do tratar como, e que através do contras-
te categórico do particularismo da soberba ao universalmente de sua
redução, termina-se na condensação da cabeça e da tempestade, o
brilho indiscernível do instante eterno. (E. 504)
A ÁRVORE DO SIGNIFICANTE 67

Portanto, é desta maneira ou neste estilo que, de fato, se dá a


transposição da barra, antes mesmo que ela mesma seja exposta.
Quer dizer, a produção do sentido. Sentido este que será dado
anteriormente ao enunciado de sua própria possibilidade, uma
vez que, do ponto de vista da demonstração, tudo está ainda por
fazer.
Por isso é que, terminada a estrofe da árvore, completado o
ciclo, preciso é, ainda, trabalhar pela produção da operação signi-
ficante. Daí vem a última parte que, afinal, sem dúvida, permiti-
mo-nos intitular: a significdncia.
4
A SIGNIFICÂNCIA

O dispositivo articulado da letra foi, pois, descrito e situado


na medida em que confere ao si~ificante sua estrutura ou, mes-
mo, enquanto constitui, estruturalmente, o significante. Esque-
çamos por um instante o rodeio poético pelo qual tal significante
acaba de transpor a barra - eis que, como veremos, o mesmo
rodeio não demorará em insistir de novo.

Vê-se, talvez melhor agora, como a descrição da articulação


não cessou de ser partilhada, todo o tempo, entre dois registros
que correspondem a um duplo valor do termo "significante".
De fato, de um lado não cessamos de manter-nos dentro da
ordem do significante enquanto algoritmo, isto é, de uma unidade,
de alguma maneira, auto-suficiente e que, uma vez posta, desen-
volve com autarcia suas propriedades sobre o modo combinatório
e "localizado" (E. 501).
Por outro lado, também não paramos de encarar, mas como
que de soslaio, a operação significante para a qual deve definiti-
vamente funcionar o algoritmo. A operação significante - é ma-
nutenção paradoxal - sob o significante: "significante" de uma
parte, pelo menos, de seu conceito lingüístico, isto é, do conceito
saussuriano da "imagem acústica" ( ou, secundariamente, gráfica)
enquant_o parte do signo e, portanto, enquanto elemento da ( e na)
70 O TÍTULO DA LETRA

significação. Trata-se, logo, daquele valor ativo, produtivo, que


está compreendido dentro do particípio presente sobre o qual
forma-se a palavra "significante", e é este valor que definirá, ao
final das contas (ao final do cálculo algorítmico), aquilo que La-
can chamará, um pouco mais adiante (E. 510), de a significância.
É desta operação que, agora, mais propriamente, devemos
tratar. Mas, como isto vai decidir-se bem rápido, é precisamente
a propriedade ou aquilo que há de próprio de tal operação - da-
quilo que o próprio Lacan chama de "a função propriamente sig-
nificante" (E. 505) - que, no ato mesmo de se estabelecer, será
questionado.
Com efeito, a significância é á operação do significante quan-
do ele é "passado para o estágio de significado", como diz Lacan
(E. 504) e quando, conseqüência disso, passa a "carregar-se de
significação" (id. ). Se a significância não é, pois, absolutamente,
rigorosa e simplesmente a própria significação, não é menos ver-
dade que é isso que torna possível a significação e é até isso _que,
por si, tende a constituí-la. Quando o termo significância aparece
na Instância, naquele ponto em que acabamos de tomá-lo (E.
510), é para traduzir a Deutung da Traumdeutung de Freud.
Em alemão, falta o prefixo be - para formar Bedeutung,
a significação (o prefixo serve para marcar o ato ou a operação de
dar o sentido, de tomar significante, no sentido comum desta pa-
lavra) - falta, em francês, uma desinência para passar da "signi-
ficância" à "significação". A significância opera assim ao menos
na borda da significação, isto é, ela toca naquilo que, até aqui, foi
excluído por Lacan da ordem significante. ·
Mas é também a razão pela qual o tratamento da significân-
cia reinvestirá, na mesma borda da significação, o valor todo
autônomo e autárquico do significante ( ou seja, como já disse-
mos, em última instância, todo o valor resistente da barra) - va-
lor este que, com todo rigor, poder-se-ia chamar de não-signifi-
cante.
Em conformidade com a literalidade do significante, a pro-
dução do sentido deve acontecer sem que o significado seja leva-
do em conta. É preciso, pois, na fórmula que de alguma maneira
abre esta parte do texto (E. 504) entender que "passar para o
estágio do significado" é sempre - e só pode ser - passar ao li- ·
A SIGNIFICÂNCIA 71

mite do significado, em outras palavras, sem ultrapassar tal limite


(ou, tendo-o já ultrapassado mas de tal forma precisa que o signi-
ficado com isto se tenha logo esgotado, que a pontuação se dis-
solva e que o deslizamento seja perpetuado). Seria preciso, con-
seqüentemente, sustentar juntas - o que, é claro, não será fá-
cil - estas duas teses: a significância ultrapassa a barra e a signi-
ficância desliza somente ao longo da barra.

Tal operação antinômica já é atestada pela composição do


texto nesta passagem (E. 504-509).
De fato, a operação do sigóificante é logo de início anunciada
pela introdução do sujeito na problemática.

Mas todo este significante só pode operar se estiver presente


no sujeito, dirão. (E. 504)

Ora, é quando muito uma meia página que será consagrada a


este "sujeito". Basta para Lacan ter concordado com que o senti-
do só pode acontecer para e pelo sujeito - determinação que, é
preciso dizer, não é somente "clássica", mas é absolutamente ine-
rente aos termos que a compõem - para logo depositar toda a
produção do sentido na conta de um trópico, o da metonímia e da
metáfora, em que a subjetividade não mais interfere e que ocupa
toda a seqüência da passagem, formando a urna só vez a con-
clusão desta primeira parte da exposição.
A vez assim arrogada ao sujeito só pode ser compreendida
por meio do tratamento a que ele é aqui submetido. Sobre ele é
que precisamos, por conseguinte, parar com o risco de dar ao
comentário proporções inversas àquelas do texto.

A significação como "presença" do significante "no sujeito" é


o que, de fato, estava compreendido, mais atrás, na idéia de um
acesso ao significado - entrada essa cuja exibição havia sido, ne-
cessariamente, diferida.
Que o lugar da significação é o sujeito é o que indica bem a
ddinição do Signo dada, o mais das vezes, por Lacan:
72 O TÍTULO DA LETRA

O signo é aquilo que representa alguma coisa para alguém.!

Com este "alguma coisa", esta definição marca aquilo que já


observamos e que é preciso relembrar, isto é: Lacan, tomando
por antecipação ao signo lingüístico (saussuriano) os elementos
de sua temática ( o significante, o significado etc.), descarta a
função na qual e pela qual tais elementos, na lingüística,
dispõemrse num conjunto e como tais, isto é, a função de signo ou
a função de significação enquanto função representativa (pelo
que ela está implicada, afinal de contas, enquanto função referen-
cial). É por esta mesma razão que ele pode, aliás, reservar o no-
me de "signo" - sob a definição que acaba de ser lembrada -
para a pura função indiciai que é, por exemplo, aquela daquilo
que ele chama "a linguagem - signo" dos animais. 2 O "signo" de
Lacan recupera, portanto, o conceito do signo referido e é pelo
efeito de uma insistência discreta, mas tenaz, que Lacan carrega
sobre o motivo de uma refcrencialidade direta, quase imediata ( é
bom que se lembre a exclusão da "coisa", e seu corolário, a von-
tade de escapar a qualquer tradição filosófica do signo - e que
se veja, mais adiante, tal motivo funcionar na constituição dos
tropos). Por esta insistência, portanto, Lacan chega até a identifi-
car o signo com o simples sinal ou, ainda, com o indício no senti-
do que lhe é dado por Peirce. O signo é, aqui, a referência pura,
isto é, aquilo contra o qual se colocou a resistência da barra, com
a autonomia do significante.
Este último, pelo contrário, preenche a função de significân-
cia, na qual não poderia haver apresentação ou indicação do refe-
rente, de "alguma coisa". Mas, em abandonando o "alguma coi-
sa", o significante abandona necessariamente também seu corre-
lato: o "alguém". Na significância, não havendo apresentação do
referente, não veremos, também, apresentar-se aquele para quem
pode (ou: deve), em geral, haver referência - ou, mais exata-
mente, não se verá apresentar-se aquilo que, relacionado com a
referencialidade, assume de uma só vez a forma e o estatuto de
um "aquele", de um sujeito.

1. Por exemplo, E. 840, Posilion de l'inconscient.


2. Cf. particularmente, Fonction et champ de la parole, E. 296 e ss.
A SIGNIFICÂNCIA 73

Na página que já citamos, Lacan estende também sua defi-


nição do signo com o complemento seguinte:

mas deste alguém, incerto é seu estatuto.

É esta "incerteza" do sujeito que, conseqüentemente, preci-


samos encarar de frente no próprio momento em que este surge
em nosso texto. Teremos, assim,· que lidar com uma dupla deter-
minação:
1. De um lado, o sujeito da significação, desta "significação",
pelo menos, cujas "palavras" estão prestes "a se carregar" na
operação puramente significante (E. 504), não é a subjetividade
dona do sentido. Assim como a significação não pode acabar, pa-
rar; da mesma forma que o significado não pode ser subtraído a
seu perpétuo deslizar - assim também, nem o sujeito pode ser
aquilo, ou aquele, que daria sentido ao sentido, que faria ou cons-
tituiria o sentido. A "presença" do significante "no sujeito" não
pode, portanto, de acordo com as intenções de Lacan, ser uma
reviravolta dos papéis, a subordinação do primeiro ao segundo. O
sujeito é, antes, comandado ele próprio pelo que do significante
se apresenta, assim, nele ( e o "sentido" lacaniano do significante
"sujeito" é, de preferência, aquele de: lugar-tópica e, vê-lo-emos,
trópico), o que equivaleria a dissolver esse "sentido", a fazê-lo
deslizar na própria função significante.
2. Mas, por outro lado, é preciso enunciar a recíproca desta
primeira proposição: o lugar do significante lacaniano é, ainda as-
sim, o sujeito. Fundamentalmente, e apesar da brevidade das in-
dica~ões do texto em tal passagem, é numa teoria do sujeito que
se assenta, aqui, a lógica do significante.

Para voltar a isso, é preciso partir de novo do texto. O que há


de surpreendente nas quatro alíneas que são dedicadas ao sujeito
(E. 504-505) é que o processo da significação é ali descrito como
passando sem este sujeito e fora dele. Com efeito, é no "total-
mente outra coisa" (E. 505) e no "entre as linhas" (id.) que vai se
determinar uma função anunciada, aliás, como interior ao sujeito.
Por certo, tal função é relacionada, pelo texto, com as in-
74 O TÍTULO DA LETRA

tenções e capacidade de um sujeito - deste sujeito que "eu" sou


"na medida em que (a) língua é comum entre mim e outros sujei-
tos" (id. ). É bem este "eu" que é, aqui, o sujeito de todas as
ações, isto é, das operações significantes: "eu" posso "significar"
e "ser entendido". Mas é preciso logo dizer que este sujeito náo é
o sujeito lacaniano.
Para explicar os motivos deste paradoxo, é necessário consi-
derar o duplo registro no qual o texto, aqui, atua simultaneamen-
te e que é importante decompor:

1. Num primeiro registro, o texto dá andamento a uma espé-


cie de encenação de um sujeito no sentido clássico do termo ( co-
notado, ademais, com base no modo existencial, uma vez que se
comporta como um personagem), isto é, de um sujeito capaz de
significação ou de querer-dizer (presente aqui sob a forma de
"querer ser entendido"[E. 505]).
Do próprio ponto de vista clássico, o querer-dizer mede-se
pelo seu contrário, o não-querer-dizer ( ou seja, em nosso texto,
os termos "esconder" [E. 504] ou "disfarçar" [E. 505), isto é, ele
se mede sempre, fundamentalmente, pela busca de uma verdade
como sentido próprio ou como adequação do sentido a uma pro-
priedade.
Não é, contudo, esta busca como tal que Lacan retém. Pelo
menos, ela não lhe interessa a não ser na medida em que, no inte-
rior do motivo da busca de adequação, seja possível, de alguma
forma, isolar a busca em relação à referência (isto é, à "coisa"
com relação à qual a busca pode ser adequada, apropriada ou
não) e trabalhar ou fazer atuar a busca por si mesma. Lembrando
a história das duas crianças, Lacan deixa claro que ela continuaria
verdadeira mesmo que não houvesse nenhum acesso possível, pa-
ra as crianças, ao significado - ou seja, à suposição de que HO-
MENS - DAMAS esteja escrito numa língua desconhecida. A
"querela de palavras" não estaria "nem menos prestes", escreve
ele, "a carregar-se de significação" (E. 504). (De passagem,
acrescentemos que o estatuto de "sujeitos" dessas crianças surge
logo como problemático e, de qualquer forma, deslocado.) É,
portanto, só do jogo dos significantes que se pode - ou deve? -
esperar a própria significação. A visada do significado não é, co-
A SIGNIFICÂNCIA 75

mo tal, retida. O que é retido, se se quiser, é a própria função de


adequação, abstraída de seu contexto ou, melhor dizendo, desta-
cada de toda adequação ou apropriação para outra coisa que não
seu próprio jogo e na medida em que este jogo, em seu funcio-
namento próprio, possibilita um desvio ou uma alteração por
meio da combinação dos significantes. "Na medida em que uma
língua é comum entre eu e outros sujeitos" - isto é, na medida
do contrato e da garantia que foram abordadas mais atrás - o
querer-dizer pode utilizar esta língua "para significar totalmente
outra coisa daquilo que ela diz" (E. 505).
O "totalmente outra coisa" vem, pois, caracterizar a função
significante, qualificar-lhe a propriedade, se é que ainda podemos
expressar-nos desta forma, no lugar do "alguma coisa" que de-
terminava a função do signo.
É, por exemplo (sabe-se, porém, doravante que é mais que
um exemplo), o que um novo exercício sobre as possibilidades
inesgotáveis do significante "árvore" vem desenvolver aqui. Dizer:
"trepar na árvore" em vez de "ser incauto" ou dizer "arvorar" em
vez de "carregar" equivale a produzir afora o "comunicado dos
fatos" (e a comunicação concerne ao sujeito ou constitui o sujeito
clássico) e apesar dele, um efeito suplementar de zombaria. É,
desta forma, "fazer entender a verdade entre as linhas por meio
do único significante" (E. 505).
É preciso destacar, aqui, que estas "acrobacias", nome que
lhes dá Lacan, voltam a definir, ou pelo menos a descrever, a co-
notação - ou seja, aquilo cuja retórica é o significante (no sentido
lingüístico)3. É em tal regime que a seqüência do texto irá desen-
volver-se: a significância funcionará como uma regra da generali-
zação da conotação - que, ao mesmo tempo, deveria ser o desre-
gramento da significação e da função de sujeito.
No entanto, o que ainda retém este poder de conotação no
interior do querer-dizer (de onde, segundo a teoria clássica, não
saberia escapar e do qual, se podemos falar assim, é até uma mo-
dalidade particularmente acentuada) ou - dá na mesma - o que
não passa, ainda aqui, de um corolário do poder de denotação (de

3. Cf. BARTIIES, R. Eléments de sémiologie, IV. 2.


76 O TÍTULO DA LETRA

adequação) é esta encenação de um sujeito que pode "saber a


verdade": de fato, eu posso "se eu sei a verdade, fazer com que
ela seja entendida apesar de todas as censuras entre as linhas" (E.
505).
"Saber a verdade" é o que o sujeito lacaniano não pode. E é
um sujeito como este, privado de tal saber, que pode ser o sujeito
de uma conotação pura e simplesmente desligada ou desmarcada
da denotação (pois, como se vê, a significância pode ser restituída
por uma tal fórmula).

2. É aqui que é preciso passar ao segundo registro - agora,


implícito - deste texto, passagem esta que nos obriga a fazermos
referência a outros textos dos Escritos.
Se o problema é ter um sujeito para a teoria da letra, este su-
jeito deve, necessariamente, ter sido, até aqui, mascarado por
aquele que é preciso, antes de mais nada, designar como o perso-
nagem do querer-dizer. Este sujeito é o sujeito para o qual a úni-
ca verdade, em vez de ser a verdade de uma significação, ou de
uma adequação, bem-sucedida, é aquela que se enuncia a si
mesma na famosa prosopopéia (em 1956, ou seja, no ano que
precedeu a Instância )4:

Eu, a verdade, eu falo ...

Esta verdade - cuja teoria, por sua vez, comanda a teoria do


sujeito - não é aquela que um sujeito pode saber. Ela é anterior
ou exterior a qualquer saber, pois é preciso entendê-la tal como
Lacan desde então a precisou5, como a identificação da verdade
com a própria palavra falada, sem outra referência e, em particu-
lar, com a exclusão de toda metalinguagem, isto é, de qualquer
sentido do sentido.
Esta verdade, que "se fundamenta naquilo que ela fala" (id. ),
depende só, portanto, da palavra e de nenhuma outra coisa que
se trataria de designar. Ela só se mantém no espaçamento da es-
trutura significante - ou no buraco.

4. La chose freudienne, E. 409.


5. La Science et la vérité, E. 867-868.
A SIGNIFICÂNCIA 77

E é este buraco mesmo que o texto destina para o sujeito,


quando a função de "significar totalmente outra coisa" é apresen-
tada como uma função que não se presta a "disfarçar o pensa-
mento (no mais das vezes indefinível) do sujeito", mas a "indicar
o lugar de tal sujeito na busca do verdadeiro" (E. 505). Não se
trata de "disfarçar" o que não se deixa definir - isto quer dizer
que o sujeito não tem propriedade, menos ainda interioridade,
que pudesse mascarar. (E, neste sentido, a verdade lacaniana
desvia-se absolutamente da verdade enquanto a adequação de
que falávamos mais atrás.) A função de "significar totalmente ou-
tra coisa" não obedece ao modelo do "disfarce" a não ser para
"disfarçar nada", uma ausência, de acordo com um processo do
"totalmente outro" que é o de uma alteridade e de uma alteração
indefinidamente reconduzidas ao longo de uma cadeia significan-
te. O "totalmente outro" é a própria palavra, isto é, a verdade.
(E, neste sentido, vê-se que esta verdade só se desvia do modelo
da adequação utilizando este último como que para perverter ou
mudar-lhe a direção. Por ora, poder-se-ia tentar formular isto as-
sim: se, rara a letra, não se trata mais de ser adequada a alguma
coisa - e, cm especial, a um "espírito" - trata-se, em compen-
sação, da adequação [verdade] da letra a um gesto permanente e
radical de in-adequação.)
O sujeito não seria capaz de "significar" este "totalmente ou-
tro" sem se alterar e, num dizer ousado, alienar-se a si próprio
tomando seu lugar, por sua vez, na única estrutura significante.

Contentar-nos-emos, aqui, com reparar rapidamente este lu-


gar - esta outra localização do buraco - por meio de alguns
grandes traços para cujo traçado levantaremos, fora da Instância,
o estritamente necessário:
O sujeito define-se como "aquilo que o significante represen-
ta"6, que deve se entender assim: se o sujeito é a possibilidade da
palavra e se esta fala é efetuada como cadeia significante, desde
então a relação de um significante com um outro significante, ou

6. Position de l'inconscient, E. 835.


78 O TÍTULO DA LETRA

o que um significante "representa", como diz Lacan, para um ou-


tro significante - ou seja, a própria estrutura da cadeia - está aí
o que é preciso chamar de "sujeito".
Daí as duas definições que compõem o círculo em que a lógi-
ca do significante e a teoria do sujeito implicam-se uma na outra:

1. "o significante é aquele que representa um sujeito para um


outro significante''7;
2. "o sujeito é o que o significante representa e não poderia
representar nada que não fosse para um significante"8 .

Esta posição do sujeito na cadeia - e, de certa forma, como


a função de sua própria concatenação ou como a "razão" desta
série - Lacan a situa particularmente naquilo que a lingüística
designa sob o nome de shifter (em francês: embrayeur) 9 • Os shif-
ters são, citando Jakobson, "uma classe especial de unidades gra-
maticais", "cuja significação geral não pode ser definida fora de
uma referência à mensagem" (ou seja, em termos lacanianos, à
seqüência significante). O exemplo mais tocante de shifter, no di-
zer de Jakobson, é o pronome pessoal: "Eu" não tem, no código,
significação acabada se não for remetido à mensagem onde pode
figurar como sujeito do enunciado. Mas, enquanto sujeito do
enunciado, não significa o sujeito da enunciação, designa-o sem
significá-lo10• Quando digo "eu", este "eu" não me significa.
Desta forma, o sujeito exposto em cena no texto de Lacan -
num primeiro registro - como sujeito da enunciação, deve ser
remetido, de fato, a este outro sujeito, àquele que, tomado na se-

7. Por exemplo, Subversion du sujet, E. 819.


8. Position de l'inconscient, E. 835.
9. E.535. Veja-se, aqui, também a referência do texto de Jakobson que ci-
tamos. Convém notar que, no mais das vezes, Lacan evita traduzir o vocábulo
shifter, solução que, sem dúvida, é mais conveniente tanto ao valor "próprio" do
termo quanto ao uso a que Lacan o destina. Suprime, de fato, "a estranha me-
tonímia automóvel pela qual o tradutor francês de Jakobson faz deslizar o shifter
(traduzido por ele, como se sabe, por embrayeur) da mudança de relação para a
embreagem. F.ste termo que enuncia o deslizamento e o deslocamento encarre-
ga-se, aqui, de conotações que enunciam a prisão e a ancoragem". (Pierre Kuen-
tz, Parole/discours, in Langue française n11 15, sept. 1972, p. 27).
10. Subversion du sujet, E. 800.
A SIGNIFICÂNCIA 79

paração entre o sujeito do enunciado e o da enunciação, põe-se


ou impõe-se como um puro significante - ou como o que um
significante "representa", e uma "representação" que não é, por-
tanto, uma referência.
Acrescentemos o que, em Lacan, remata esta destruição-re-
construção do conceito de sujeito enquanto sujeito da teoria dos
jogos, isto é, do oposto, de fato de toda identidade subjetiva, co-
mo puro lugar ou puro pivô de um cálculo:

A teoria dos jogos, melhor chamada de es~ratégia, é o seu


exemplo onde se aproveita o caráter inteiramente calculável de um
sujeito estritamente reduzido à fórmula de uma matriz de combi-
nações significantes. I t

Ora, este sujeito da estratégia outro não é que o próprio Ou-


tro (se assim se pode dizer): "este Outro nada mais é que o puro
sujeito da moderna estratégia dos jogos"12 ou "o sítio prévio do
puro sujeito do significante" 13 - quer dizer que ele "é" o "(-1)",
que, como se pode recordar, é "im pronunciável como tal".
O sujeito lacaniano é, pois, instituído no e pelo significante.
Assim é que se repete e se teoriza a pré-inscrição do sujeito por
seu nome "próprio", tal qual a evocava a primeira página do tex-
to. A teoria da letra como que se afivela bem com uma teoria do
sujeito. A entrada no sujeito não pode ser, desde então, senão
uma entrada no significante - enquanto que o sujeito significado
desliza para fora de si e que sua teoria afivela-se, por sua vez,
com a da letra. Desta forma, mais uma vez se é reconduzido ao
significante. A pontuação do sujeito - por conseguinte, a pon-
tuação da própria "significância" - ou a significância na medida
em que ela pontua - é, ela também, "mítica" e o sujeito lacania-
no exclui o sujeito substancial do querer-dizer.
É preciso logo acrescentar que, pelo menos, ele o exclui en-
quanto sujeito psicológico, existencial ou antropológico. Pois, já
se pode duvidar disso, convém também interrogar-se a respeito
daquilo que, apesar de tudo, poderia bem ser mantido pela manu-

11. La science et la vérité, E. 860.


12. Subversion du sujet, E. 806.
13. Jbid., 807.
80 O TÍTULO DA LETRA

tenção deste nome de "sujeito" e pela articulação expressa de


uma teoria como tal do sujeito. 14
Para poder passar, porém, a esta interrogação, é preciso, ain-
da, acabar de desdobrar o que esta teoria prescreve quanto ao
funcionamento mesmo da significância.

Retornemos, portanto, ao nosso texto. A passagem pelo su-


jeito introduziu-nos na "função propriamente significante". Esta
função é, pois, aquela que o sujeito articula, isto é, "a represen-
tação de um significante para um outro" ou o funcionamento pa-
radoxal da significação no único significante. Assim, a verdadeira
função do sujeito é aquela que se analisa nos dois elementos da
conotação que são a metonímia e a metáfora.
(Do ponto de vista que até aqui tem sido o nosso - e do
ponto de vista desta primeira parte do texto - estes dois trapos
só irão intervir para articular com mais precisão um jogo signifi-
cante [um jeu Gogo) em lugar de je (eu)] cujas regras essenciais já
foram todas enunciadas.
··h No entanto, de um outro ponto de vista - isto é, do ponto de
vista do que chamaremos de articulação da lógica do significante
em cima da teoria freudiana - a metonímia e a metáfora exigirão
relcitura por ser nelas que a lógica do significante revela-se como
lógica do desejo e porque, além disso, é à articulação em pauta
que nos irá conduzir diretamente este trópico que parece fechar e
coroar a estrita teoria da letra e que arrasta, de fato, por inteira a
um novo regime.)
Na apresentação desses dois trapos feita por Lacan, notar-
sc-á, de início, aquilo que se pode designar ou como uma certa
mistura entre a taxionomia da retórica clássica, de um lado, e a
análise jakobsoniana e dois "aspectos da linguagem", do outro,
ou mesmo como um uso figurado, no discurso de Lacan, dos ter-
mos metonímia e metáfora. Tanto um como outro, veremos, não
se mantên aqui numa acepção retórica estrita, nem mesmo facil-
mente definível.

14. Um certo parte (conversa e comportamento) do sujeito exigirá um ou-


tro giro de leitura. Cf. infra, p. 111.
A SIGNIFICÂNCIA 81

Primeiro, a metonfmia é introduzida pelo famoso paradigma


das "trinta velas". Estas são classificadas, por Fontanier, como
uma sinédoque da parte - e, portanto, fora da metonímia. O
que de fato Lacan visa, sob o nome de metonímia, é a série que
Jakobson ilustra por meio deste tropo, que é a série dos termos
da combinação própria da linguagem: é o discurso enquanto con-
catenação de entidades sucessivas, enquanto contextura das re-
lações in praesentia, enquanto preponderância da contigüidade.
Assim entendida, poder-se-ia dizer que a metonímia é o tropo
sintagmático ou, ainda, a figura do sintagma.
Esta figura, no exem pio "repisado" ( cf. E. 505) das "trinta
velas" oferece-se à leitura como um "barco", segundo o jogo de
palavras malicioso no qual Lacan encerra a definição. Esta espé-
cie, passavelmente retorcida, de abismo na ilustração da figura
serve para marcar que, na dita metonímia, "a coisa" não "deve
ser tomada no real", pois um navio, em geral, tem mais de uma
vela. O barco não é, portanto, o significado do rodeio metoními-
co; ele é o próprio rodeio, isto é, a conexão do significante "na-
vio" com o significante "vela", ou seja, o que Lacan chama de
"palavra a palavra".
Notar-se-á que esta fórmula deixa-se transcrever nos termos
da lingüística à qual, de fato, obedece; é a conexão dos signos que
produz a figura e não aquela dos referentes. A realidade de
enxárcia dos navios certamente não efetua figura. 15 Mas, ao ab-
sorver o significado neste referente e ao afastá-lo com ele, Lacan
quer eliminar da figura o sentido com a realidade. O de ''palavra
a palavra" é o soletrar das unidades discretas da frase antes de
(ou sem) captar seu sentido, ou é a tradução de palavra a palavra,
que se sabe não fazer sentido ou um pouco apenas e é também o
"palavra por palavra", isto é, a fórmula de literalidade. Esta litera-
lidade que, paradoxalmente, se deve atribuir à figura é, para La-
can, o "pouco de sentido", como o dirá esta frase de A direção do
tratamento:

15 .. Se bem que na época de Homero, e muitas vezes também na de Quinti-


liano, um navio só tivesse, igualmente, uma vela ...
82 O TÍTULO DA LETRA

A metonímia, de acordo com o que lhes ensino, é este efeito


tomado possível pelo fato de não existir significação alguma que não
remeta a uma outra significação e no qual produz-se o denominador
mais comum das duas, isto é, o pouco sentido.16

A metonímia não é, pois, uma figura como enfeite ou manei-


ra que manteria salvo o sentido. É o sintagma como eixo ou ro-
deio segundo o qual o sentido se empobrece ou se esgota na letra
do discurso.
Portanto, é também ela a realização desse rodeio ou desse
golpe, aplicado, como nos lembramos, por Lacan à linearidade
saussuriana. A linearidade do sintagma é, sem dúvida, o que mais
resiste à autonomização do significante tal como Lacan a encara.
Eis por que a metonímia é aqui, de alguma maneira, o rodeio que
rompe o sintagma e o pulveriza em significantes isolados, cada
um dos quais remetendo a um outro significante, e segundo um
tropo que não é outro que uma metáfora no sentido mais amplo
que Lacan irá dar-lhe - isto é, no sentido de um tropo para-
digmático. (Pode-se, aliás, notar que o próprio Lacan, alguns anos
antes, em Função e campo da fala, classificava juntas a metonímia
e a metáfora como "condensações semânticas", ao passo que uma
outra lista de termos retóricos ordenava os "deslocamentos sintá-
ticos"17. Se, na Instância, o sintático e o semântico são mais em-
baralhados do que desempatados, é preciso ler ali, sem dúvida
que, fundamentalmente, é a partir só do tropo de palavra, da figu-
ra de sentido, ou do sentido figurado, que se deve pensar a signi-
ficância como esgotamento ou exclusão do significado.)
Quanto à metáfora, o exemplo que Lacan, através de Quillet,
toma emprestado de Hugo:

Sa gerbe n 'était pas avare ni haineuse ... • (E. 506)

parece difícil de poder ser classificada como exemplo de metáfora


no sentido estrito, se se pode nele destacar a composição de, pelo

16. E. 622.
17. E. 268.
• Seu feixe não era nem avaro nem odioso... (N. do T.)
A SIGNIFICÂNCIA 83

menos, duas metonímias, uma da causa instrumental (o feixe para


Booz), a outra do efeito (o feixe para a terra ou para a economia
de Booz). Da metáfora parece aqui retido sobretudo o traço que
realiza a passagem do animado para o inanimado. Quillet e Lacan
são, pois, fiéis a um emprego habitual bem amplo do termo metá-
fora18 - transporte ou trapo por excelência, designação do efeito
de sentido figurado em geral.
Esta "metáfora" visa, portanto, aqui, à outra série de Jakob-
son, a dos termos que marcam: a linguagem enquanto seleção: é o
discurso como concorrência de entidades simultâneas, como subs-
tituição, no fundo, de relações in abselllia, como preponderância
da similaridade. A metáfora é, então, o trapo paradigmático ou a
figura de alternação por meio da qual a mensagem faz surgir por
antecipação, no código, os paradigmas de sua ocorrência.
Certamente não é um acaso se, com a acepção corrente da
palavra "metáfora", Lacan acolhe, também, o gênero literário
que, comumente, parece ser o espaço privilegiado para ela se
exercer - isto é, a poesia e, mais precisamente, a poesia circuns-
crita por estas duas referências: Hugo e o surrealismo (E.
506-508). É a poesia que se pode designar, em seus próprios ter-
mos, como a do Verbo - da Palavra ou da palavra - e do "po-
der" ou da "magia" das palavras. Uma poética toda desta ordem
e toda uma prática poética deste estilo estendem-se, de fato, sob
o texto de Lacan, tanto aqui como em outros momentos, em suas
referências literárias, em seus efeitos próprios de estilo e, por fim,
em sua articulação teórica. Como vimos, o episódio decisivo da
estrofe da árvore assiste, aqui, à reprodução dos efeitos específi-
cos de uma intervenção do poético no teórico ou enquanto teóri-
co. Verifica-se, desta forma, que as referências literárias e o estilo
ou a retórica de Lacan não são enfeite, mas pertencem à mais de-
cisiva constituição de seu discurso. Discurso este que, quando de-
termina a instância teórica da metáfora, convida, num mesmo
gesto, seu leitor (seu ouvinte) a "produzir ... um deslumbrante te-

18. Cf. também Fontanier: "a Metáfora, cujo nome tão conhecido, e, talvez,
mais conhecido que a própria coisa, perdeu, como o observa Laharpe, todo seu
peso escolástico". (Les figures du discours, Flammarion, p. 99). Para reencontrá-
lo, consultar G. Genette, "La réthorique restrcinte", in Figures Ili (Seuil).
84 O TÍTULO DA LETRA

cido de metáforas" (E. 507) - que é tecido, ele próprio, de ponta


a ponta, numa poética da metáfora.
A metáfora articula-se no jogo da substituição de um signifi-
cante por outro. Conforme à mesma lógica que a usada por ele
para a metonímia, Lacan evita apresentar esta figura como um
processo que manteria salvo o sentido. Ao contrário, o sentido
próprio - e, muito especialmente, no exemplo de Booz, o senti-
do exemplar do nome próprio, isto é, deve-se lembrar, do signifi-
cante prescrevendo um sujeito - é "abolido" (E. 508). O que é
"abolido" jamais "ressurge" (id.) em pessoa; só se pode produzir
um retorno paradoxal do abolido através da própria abolição, ou
seja, na figura que vem em seu lugar. A abolição é, pois, "não-
sentido" e é ela· que autoriza o sentido:

A metáfora posiciona-se no ponto exato cm que o sentido se


produz no não-sentido. (id.)

Este não-sentido, como se vê, não deve ser tomado tanto co-
mo contra-senso, conforme o nome inglês (nonsense) do sen-
tido absurdo, mas mais como negativo do sentido, momento de
sua perda ou de sua ausência, cuja dialética articula o sentido. Se
Booz é exemplar, não é só enquanto nome próprio mas, também,
enquanto nome de um pai, isto é, daquele que deve ser morto, em
conformidade com "o evento mítico em que Freud reconstruiu o
encaminhamento, no incons~iente de todo homem, do mistério
paterno", ou "da significação da paternidade" (id.).
A significação de Booz como pai em "seu feixe" traz à luz
aqui, portanto, a paternidade de toda sua significação: ela é en-
gendrada pelo não-sentido, ou seja, fora do significado, e no puro
significante. A fórmula de Lacan para a metáfora - isto é, para o
tropa ou rodeio do discurso enquanto cadeia das unidades de sen-
tido - é a seguinte: "uma palavra por outra" (id. ).
Uma palavra por outra quer dizer uma palavra no lugar de
outra - uma substituição de significantes - mas, também, uma
palavra à vista de outra - uma espécie de teleologia interna da
ordem significante; é por meio desta teleologia metafórica que
o sujeito insiste no signifi~nte pois, como o sabemos, ele é "aqui-
lo que um significante representa para um outro significante" -
e isto, mesmo que tal teleologia esteja destinada a perpetuar-se
A SIGNIFICÂNCIA 85

sem que nunca aconteça o te/os, que seria um sujeito substancial,


um mestre do sentido.
A metáfora reúne, pois, em si mesma a função do sujeito e a
da palavra; ela é o lugar em que esta se apossa daquele e o "lite-
raliza" debaixo das espécies de uma singular literalidade trópica
ou significante. A palavra postada assim em sua instância S'upre-
ma é "a palavra" por excelência (E. 508), o Witz, tal como Freud
o soube ler, a palavra que, só tendo "como patronado o signifi-
cante do espírito" (id. ), é igualmente a letra em sua própria lite-
ralidade. Esta palavra é, desta forma, a uma só vez o primeiro
motivo pelo qual Freud intervém no texto de Lacan e o último
elemento da exposição teórica da letra.
Esta letra ainda é necessário que ela passe. O que a metoní-
mia, relembrada para terminar, indica ao lado da metáfora é que
o "uma palavra por outra" deve fornecer os rodeios e desvios do
"de palavra a palavra" para se produzir. Como "a arte de escre-
ver" em sua relação com a perseguição política, a metonímia ma-
nifesta uma "servidão" (id.) inerente à ordem do significante, pa-
ra que o sentido aconteça - e desta servidão quem tem a astúcia
é a própria metonímia.
De que a letra é escrava? De uma verdade, nos .diz Lacan.
Mas a enunciação dessa verdade - a partir de que se ordena to-
do o jogo trópico e, com ele, toda a teoria do sujeito, compreen-
dendo aí a teoria da verdade que a isso se reporta - acarreta to-
da a lógica da letra numa nova articulação do discurso, pois que
Lacan a denomina:

,'. verdade freudiana. (E. 509)


SEGUNDA PARTE

A ESTRATÉGIA DO SIGNIFICANTE
A primeira parte deste texto nós já a lemos (tentamos deci-
frá-la), até o ponto em que, terminando, ela reconduz a ciência da
letra à "verdade freudiana" - isto é, pode-se pressentir, à sua
verdade.
Releiamos.

Mas não sentimos nós a partir de um momento que, por ha-


vermos seguido os caminhos da letra para alcançar a verdade freu-
diana, ardemos, com o fogo pegando por toda parte. (E. 509)

Evitemos, por ora, relevar a metáfora. É bem o momento de


uma articulação. Articulação estrita, clássica - ·prescrita, de fato,
desde o início do texto, pelo próprio título ("Nosso título faz com
que entendamos q·ue ... é toda a estrutura da linguagem que é des-
coberta pela experiência psicanalítica no inconsciente" [E. 495]) e
preparada progressiva e cuidadosamente conduzida ao longo de
toda esta última página por um deslizamento controlado no qual,
na recapitulação da trópica geral da letra, o nome de Freud co-
meça por se fazer entender e, com ele, começam a instalar-se,
como em forro da terminologia lingüística ou retórica, alguns dos
conceitos da psicanálise: o Witz, a censura, o desejo ...
· Esta passagem faz-se, não há dúvida, de maneira alusiva e
trata-se simplesmente de marcar aqui (uma maneira, se assim se
90 O TÍTULO DA LETRA

pretende, de afivelar a fivela para fazer a transição) que nada terá


sido dito sobre a letra que seja estranho a Freud. Isto não impede
que, pelo menos até certo ponto, uma lógica precisa (retorcida,
mas precisa) esteja atuando aqui, cujo movimento é preciso re-
compor, ainda que brevemente.
Trata-se,, pois, de articular conjuntamente lingüística e psi-
canálise. Aliás, é esta mesma articulação que funda, propriamente
falando, o que podemos chamar de a ciência da letra. Mas, como
pode ela ser feita? Ou, mais exatamente, como pode ela aconte-
cer? O texto responde: numa certa relação entre a letra e a verda-
de e na proporção em que o desejo ali estiver implicado. Esta é a
razão pela qual o acento se desloca, in fine, para a metonímia
( que, como veremos, é o tropo do desejo). De fato, metonímia
tem relação com a censura. Comumente, ela é mesmo o instru-
mento privilegiado que dá o "poder de contornar os obstáculos da
censura social" (E. 508). No "de palavra a palavra", falando de
outra forma, pode vir inscrever-se uma verdade proibida. Toda
dificuldade, porém, provém do fato de ser preciso derrubar esta
relação simples. Não é a verdade que é censurada, mas, inversa-
mente, é antes a verdade que censura [a verdade] que institui a
censura ou que obriga a censurar. Aliás, é por isso que a metoní-
mia, como a arte de escrever, é servil: "esta forma [diz Lacan]
que dá seu campo à verdade em sua opressão, não manifesta al-
guma servidão inerente à sua apresentação?" (id.) Não é, por cer-
to, indiferente que ressurja aqui o modelo da escrita e que ressur-
ja na evocação da "conaturalidade" (E. 509) da escrita e da per-
seguição. A escrita, se bem compreendemos, ama a perseguição
assim como a metonímia oferece à Verdade a ocasião de exercer
um domínio implacável. Lacan diz brutalmente "efeito da verda-
de sobre o desejo" (id.)
Para que tudo isto seja inteligível, preciso é, evidentemente,
supor uma verdade tal (tão escondida, inacessível, proibida - e
poderosa em seu retraimento) que não só não se dá como, ainda,
ao se recusar, obriga mesmo à inscrição de sua recusa. Seria pre-
ciso, pois, aqui, reconstituir uma doutrina toda da verdade, e da
verdade em sua relação com o desejo, por meio do que compre-
ender-se-ia que o desejo, na medida em que é justamente cons-
trangido por esta inacessível verdade, deve obrigatoriamente to-
mar emprestado o desfiladeiro metonímico, diferir-se indefinida-
A ESTRATÉGIA DO SIGNIFICANTE 91

mente ou diferir indefinidamente seu "fim". Seria mesmo ne-


cessário, também, medir exatamente o desvio introduzido aqui
com relação à utilização, feita por Freud, desse mesmo "modelo"
da censura.
Ora, precisamente isto é que falta.
Haverá, no penúltimo parágrafo, uma retomada deste tema
da relação entre letra e verdade. Sê-lo-á, no entanto, através do
viés, também alusivo, do adágio no qual Lacan, como se sabe, re-
encontra precisamente na letra que "materializa a instância da
morte"1, a verdade do desejo que é o de ser "um desejo de mor-
te" (E. 518), assunto este que logo nos será proposto a ler: "Cer-
tamente, a letra mata ... ". E se é preciso opor - adágio obriga -
esta morte literal à vida do espírito é para, simplesmente, dar de
novo para se entender, desta vez porém como o próprio da "des-
coberta" freudiana, o enunciado desta l\>,i da significância que se
viu ser construída a partir de Saussure: "As pretensões do espírito
permaneceriam irredutíveis se a letra não tivesse feito a prova de
que produz todos seus efeitos de verdade no homem, sem que o
espírito tenha tido minimamente de se envolver nisso. Esta reve-
lação a Freud é que foi feita, e sua descoberta ele a chamou de
inconsciente". (E. 509)
Falta, pois, a articulação.
Certamente, não é por acaso se, mal pronunciada a palavra
desejo (sobre o qual a articulação deve se nodalizar), a verdade
torna-se tão pressionante o objeto oculto, que se devia procurar,
está tão próximo que "ardemos", como gritamos no jogo de ca-
bra-cega: "está quente". Metáfora que, é claro, precisamos rele-
var agora. Pois, não somente é esta verdade, cuja "revelação" é
iminente, que tampa, se assim podemos dizer, a letra, como
também seu fogo, que nos queima, resplandece brutalmente e
"pega por toda parte". É bem conhecido que a Revelação inscre-
ve-se em letras de fogo. Ou, pelo menos, que aquilo que se revela
é fogo. Mas o que este fogo queima e devasta aqui nada mais é
que a própria articulação. No ponto em que devia produzir-se o
ajuntamento sistemático de Saussure e de Freud, isto queima, e

1. Cf. Seminário sobre "A cana roubada" (E. 24).


92 O TÍTULO DA LETRA

queima de tal forma que corremos o risco de termos para deci-


frar só as cinzas desta constituição da ciência da letra.
Sejam quais forem, conseqüentemente, os efeitos deste
incêndio, uma coisa é certa: a ruptura textual que aqui acontece é
tão nítida e profunda que praticamente interdita, doravante, o
comentário, o simples decifrar. É necessário, pois, retificar a fór-
mula com a qual introduzíamos, no início, este novo desenvolvi-
mento. Em não dizer: nesta primeira parte, conduzimos o co-
mentário até o ponto em que a ciência da letra reinscreve-se na
verdade freudiana. Antes isso: do texto visto em seu conjunto, é
impossível manter o comentário além do ponto onde sobrevém
ocultando-se - como a verdade que a fundamenta - uma "arti-
culação" (daqui para frente, entre aspas) que, por averiguar-se
incapaz de preencher a função da articulação, não se deixa domi-
nar pelo comentário ou porque exceda seus recursos (produzindo,
então, uma economia mais complexa que a economia discursiva)
ou porque destrua todo o edifício arquitetônico no qual, por tra-
dição, o comentário deve se refugiar. Conduzimos, portanto, o
comentário até a última beira dessa lareira onde se concentra um
fogo todo preparado para consumir o discurso. Empreender pas-
sar esse limite ou mesmo esboçar, simplesmente, o gesto de o ul-
trapassar equivale de imediato, por conseguinte, a queimar o co-
mentário. E quando se diz do comentário que ele está queimado,
pode-se entendê-lo, também, no mesmo sentido que, em certo
uso da língua, se pode dizer dos indicadores ou dos agentes de in-
formação.
Pode-se, no entanto, pelo menos designar aqui a reviravolta
que se introduz na economia geral do texto? Se o enredo daquilo
que por comodidade chamaremos de "articulação" (ou a (in)arti-
culação) é soldar lingüística e psicanálise juntas, o que faz, de fa-
to, com que a articulação não possa funcionar? É, no entanto,
uma relação simples entre Freud e Saussure que parecia, já desde
o início, poder instaurar-se. Bastaria, aparentemente, ler a desco-
berta de Freud dentro da lingüística. Se assim, a articulação teria
apenas que relembrar, para encerrar, alguma coisa como os te/os
deste empreendimento ("Eu bem lhes dissera, tratava-se de
Freud"), para, a posteriori, produzir sua possibilidade. Se nada
disto se passa ou se, pelo menos, alguma coisa vem complicar tal
A ESTRATÉGIA DO SIGNIFICANTE 93

movimento ou bloquear esta passagem é porque o negócio não é


tão simples.
Por quê? Ao menos por esta razão que, ao longo de toda esta
primeira parte, não parou de produzir-se aquilo que acreditamos
poder chamar - apoiando-se no próprio Lacan2 - de um desvio
da lingüística. O que autoriza tal desvio nada mais é que um certo
costume de Freud, uma certa maneira de projetar, mais ou menos
explicitamente, na lingüística saussuriana, para perturbar-lhe o
funcionamento, um complexo conceituai, proveniente da psicaná-
lise. E seria por certo necessário, a partir deste ponto de vista, re-
ler este texto a fim de nele localizar mais precisamente os locais
de intervenção da psicanálise. Uma segunda leitura inevitável e
que coagiria a retomar as coisas em seu início, desde a introdução
sob a autoridade de Saussure, deste algoritmo construído todo ele
sobre uma barra resistente na qual sabe-se poder reconhecer a
barra simbólica do recalque.
Ora, esta segunda leitura é a tal ponto inevitável que o pró-
prio Lacan, aqui, não pode escapar-lhe e que a segunda parte do
texto (A letra no inconsciente) dá acesso precisamente à leitura
"lingüística" do texto de Freud que repete palavra por palavra,
pelo menos por um certo tempo, a leitura freudiana da lingüísti-
ca, da qual, no entanto, era a condição. Relação, no fim de tudo,
indiscutível e que resiste, se é que não se recusa totalmente, à
análise. É bem por isso que a articulação não se produz. Em que
lógica articular, de fato, que Freud deve ser lido segundo Saussu-
re, Saussure lido segundo Freud? É ele redutível a qualquer
dialética - à própria dialética? Pode-se falar em termos de circu-
laridade hermenêutica? Mesmo que fosse possível, de uma ou de
outra maneira, tentá-lo é precisamente isto que Lacan quer evi-
tar. Ou aquilo que, mais exata111ente, o texto não dá a ler, mas
queima - seja qual for a origem deste fogo.
Existe aí, pois, legível num "acidente" textual, um rodeio que
vem afetar o discurso da letra e que obriga a esta estranha repe-
tição. Repetição esta que, como logo veremos, deverá ela própria,
ainda uma vez pelo menos, repetir-se. Pois o que falta, na falta da

2. Cf.E. 821.
94 O TÍTULO DA LETRA

articulação (ou na falta de articulação), o que faz com que a arti-


culação produza, afinal de contas, nada mais que um simulacro de
telos, é um fundamento, uma origem, uma "arché". Que começa,
de Saussure ou de Freud? Este carecimento de origem, o movi-
mento que ·paradoxalmente comanda, será examinado por nós
agora. Por ora, contentemo-nos em assinalar que, se ele afeta o
curso do texto, perturba, ao mesmo tempo, o comentário.
É este movimento, visto em sua duplicidade, que chamare-
mos, agora, de estratégia. E começaremos por dar nossas expli-
cações a respeito.
1
A ESTRATÉGIA

Antes de definir esta palavra - ainda mais que, como vere-


mos, vários sentidos nela estão implicados - urge insistir na du-
plicidade do movimento que ela designa. Ao falarmos de estraté-
gia, estaremos visando, de fato, duas coisas: de um lado, a es-
tratégia que é de Lacan e do outro, mas de maneira bem mais
complexa, algo como que certa estratégia em face do texto de La-
can. Se se preferir, uma estratégia da leitura, uma vez que deve-
mos abandonar o comentário. Não que se trate, aqui, de declarar
guerra ou (para utilizarmos um outro recurso metafórico que,
desde o início, vem regendo nosso trabalho) "de jogar com um
mau torneio" do texto. Estratégia designará, antes de tudo, o giro
obrigado daquilo que, doravant.e, terá querido inscrever-se à
margem do texto de Lacan.
Eis por que, propriamente falando, tratar-se-á menos aqui de
uma pluralidade de sentido do que um certo uso ou, mais exata-
mente, de uma multiplicidade de usos possíveis da estratégia. E
se, de fato, uma pluralidade de sentidos, por ser semântica, surge
como sempre centrada, uma pluralidade de usos, com um pouco
de sorte, deveria poder ficar relativamente dispersa.
Mas é preciso começar pelo "sentido".
Sabe-se, de início - e já tivemos, aliás, a oportunidade de as-
sinalá-lo - que a estratégia é uma das peças-chaves da sistemáti-
96 O TÍTULO DA LETRA

ca lacaniana. A própria palavra não está. ausente e se Lacan a uti-


liza é enquanto sinônimo da teoria dos jogos, para indicar o esta-
tuto possível de um sujeito não subjetivo - isto é, de um sujeito
plural, combinatório, não presente, ao mesmo tempo, a si ( ele é
sem consciência) e num lugar determinado (pois ·Se reduz ao cál-
culo do aleatório).
Mas, em tirando proveito da presença da palavra, neste sen-
tido, talvez não seja impossível fazê-la designar· outra coisa, que
não seja sem pertinência. Por exemplo, antes de tudo o modo de
composição do que poder-se-ia chamar - calcado no único
exemplo, é verdade, da primeira parte deste texto - o "sistema"
lacaniano. Sistema feito de empréstimos ou, antes, sistema de
empréstimos que vimos ilustrar-se na constituição de uma trópica
significante montada ou fabricada a partir, ao mesmo tempo, da
retórica clássica, da lingüística jakobsoniana, da poética pós-sim-
bolista ou surrealista etc. Deve, portanto, entender-se, aqui, a es-
tratégia como uma técnica ou como uma "arte" da sistematização
- e de uma sistematização que não apresenta sua própria lei de
composição como lei de uma arquitetura. Para que haja, de fato,
um sistema edificado arquitetonicamente - isto é, um sistema no
sentido clássico e absoluto do termo - é necessário que ele se dê
como uma construção por posição de conceitos. Tais conceitos,
mesmo não sendo totalmente produzidos no sistema, pelo menos
exibem como leis suas as regras segundo as quais foram empres-
tadas de outros sistemas, em relação aos quais foram retrabalha-
das. Supondo-se que tal arquitetônica não seja mais que puro
ideal do teórico, pelo menos há de· se constatar qtie não é com re-
ferência a este ideal que se define o discurso lacaniano. Aliás, es-
te discurso, como regra geral, não se coloca como tendo que ser
definido; e por uma definição, seja ela qual fosse, mas com todas
as dificuldades que não deixaria de acarretar. Aliás, é o que indi-
ca, já, como dependendo de um outro tipo de sistema que seria
antes combinado que construído. E se a estratégia, em suma, deve
recobrir a combinação, designaria, pois, essencialmente duas coi-
sas: de um lado, um conjunto de procedimento de desvio e, do
outro, a manutenção da pluralidade como tal, de seus procedi-
mentos (e, por conseguinte, dos domínios ou das regiões a partir
dos quais existe o desvio).
A ESTRATÉGIA 97

Pelo resto, seria, quem sabe, possível definir esta estratégia do


desvio por diferença com aquilo que a epistemologia contem-
porânea pôde designar como a importação do conceito. Se a im-
portação extrai uma unidade ou um traço conceituai para, de ma-
neira regrada, fazê-los entrar num novo jogo sistemático, o des-
vio, em compensação, extrairia um conceito sem o trabalhar, e pa-
ra fazê-lo servir a outros fins. Por definição, o desvio seria impuro
- e sua impureza seria de tal porte, aliás, que ele poderia até
mimetizar ou desviar até a própria importação.
Equivale a dizer - e para usar uma distinção cômoda - que
se a importação procede como uma passagem de denotação em
denotação (capaz de denotar a própria passagem), o desvio é um
deslizamento conotativo. Isto não deixa de ter conseqüências. Em
todo caso, é isto que permite explicar que, no desvio, as regiões
de empréstimo não desaparecem do horizonte do novo sistema.
Por isso é que este último, ao invés de apresentar-se de imediato
como nova região teórica, instala-se, se assim se pode dizer, num
espaço intermediário, numa intersecção de regiões ou numa cir-
culação permanente entre as regiões. Os conceitos desviados con-
servam, então, a carga de uma referência plural.
No entanto, a idéia de estratégia implica, também, sempre a
idéia de uma operação finalizada ou "interessada". E não se vê
bem em nome de que seria necessário não levar isso em conta. O
que realmente interessa a Lacan, no sentido forte da palavra, é ar-
rancar a psicanálise de tudo que pôde e poderia, ainda, prática e
teoricamente, comprometê-Ia, enfraquecê-la, privá-la de seu
poder "cortante" ou embotar-lhe o corte. Ou seja, antes de tudo,
quem sabe, sua função (política) de adaptação social, de inte-
gração do ego etc. ( e, neste ponto pelo menos, a mira política é
bem clara) - perigo tão pressionante e tão constante que impõe
uma luta teórica incessante contra todas as formas filosóficas do
"subjetivismo" atuante na psicologia clássica, na antropologia,
quiçá até na fenomenologia husserliana e em seus derivados mais
ou menos sentimentais.
Deriva disto a busca do 4uc Lacan intitula (desde o preâmbu-
lo, como se pode recordar) ,feitos de fonnação. Temos que insis-
tir em 4uc tal busca impõe certo recurso à palavra, um certo uso
da dírácia própria da fala e de seu poder, digamos, persuasivo.
98 O TÍTULO DA LETRA

Em realidade, é isto que anima e governa toda a estratégia de La-


can e dá as razões até certo ponto, interferência, das voltas e rup-
turas que afetam o fio demonstrativo de seu discurso. Mesmo
quando dá impressão de ausente, uma espécie de pré-texto pe-
dagógico não pára de trabalhar o texto teórico - não cessa de re-
tomar, em particular Gá o temos entrevisto), desde que se trata
de Freud, como uma escansão obstinada do próprio texto. Que se
trate, de fato, de arrancar a psicanálise das mãos de uma certa or-
topedia não interdiz, pelo contrário, que o projeto, em seu con-
junto, seja ele próprio ortopédico. Ortopedia esta, se se prefere,
antiortopédica, ou contrapedagogia, que não deixa de estar rela-
cionada, até em sua vontade crítica, com a intenção, talvez a mais
fundamental, pelo menos após Socrátes, de toda a filosofia.
Afonnação a que Lacan se refere nada mais é, sem dúvida, que a
própria 1rcxi.8efu ou sua retomada na Bildung das Luzes (de que
Lacan se vale explicitamente1) e do Idealismo alemão. Não falta-
ria aí até, e com razão, este segundo "forro" teórico da filosofia
que se ata, a maior parte do tempo, como próprio projeto pe-
dagógico e que é o estofo médico. Pois a formação é formação
para a análise, formação do analista, mesmo não sendo reservada
exclusivamente só para os experientes, isto é, só para os médicos.
Por isso, a psicanálise poderia aparecer aqui como uma espécie
de medicina generalizada, a paideia de todas as paideiai, o desfila-
deiro paidéico, se assim podemos dizer, que seria doravante ine-
vitável. E, no dizer de Lacan, o psicanalista acumularia em si três
funções, do "sábio", do "mago" e do "pajé"2 (E. 521), tripla
função em nome da qual, entre outros, pôde-se manter, na uni-
versidade e no discurso universitário, o enunciado que tentamos
ler.
O importante, aqui, é sem dúvida que este motivo de for-
mação (mas é mais que um motiva3) possa, desta forma, apresen-

1. Cf., por exemplo, a súplica para que se insiram os Escritos.


2. O mege (curandeiro) não sendo nada mais que - é preciso dizê-lo? -
aquela pessoa que cuida: mégier, no francês antigo, cuidar, derivando de medicare
do latim.
3. Não seria por implicar, sem dúvida, em última instância, a questão que
poder-se-ia indicar com a fórmula bem geral da psicanálise no político e do polí-
A ESTRATÉGIA 99

tar a estratégia lacaniana segundo um modelo especular (no qual


a teoria visa a formar o analista que, em praticando a análise, traz
em retorno a teoria possível) ou, de acordo com o modelo,
também rigorosa e profundamente filosófico, do abismamento -
abismamento com que está comprometido necessariamente o es-
tilo de Lacan. A via do "retorno a Freud", isto já foi dito ao final
de A psicanálise e seu ensino, "é a única formação que podíamos
pretender transmitir àqueles que nos seguem. Ela se chama: um
estilo"4 • E por que um estilo se não fosse em virtude de um "cir-
cuito" cujo percurso poder-se-ia reconstituir secamente invocan-
do que, se a teoria gera o conceito do sujeito que regula o sujeito
da análise, este último pode, a partir daí, instaurar-se como o su-
jeito do discurso; em outras palavras, pode assumir o lugar do
próprio Lacan ou, caso se prefira, daquele que forma sujeitos da
análise. Quando Lacan fala, seria, então, o Outro que fala e que
fala sobre ele.
Claro que este é apenas um dos percursos possíveis. O que
estamos a avançar aqui quanto à estratégia continua sendo algo
rápido e esquemático e, sem dúvida, seria preciso ler de bem per-
to um texto como, por exemplo, a Direção do tratamento, pelo
menos em suas duas primeiras divisões. Não quisemos infringir a
tal ponto a lei à qual tentamos até aqui submeter-nos, que nos
impõe limitar o quanto possível as incursões fora do texto que es-
colhemos para ler.
Já dissemos o bastante a respeito para fazer pensar que nem
é desejável nem mesmo possível desprender-se de tal estratégia e
que, conseqüentemente, se é obrigado a conduzir necessariamen-
te a leitura do texto de acordo com as exigências ou os requisitos
da própria estratégia. Esta é a razão pela qual não se trata de cri-
ticar Lacan, isto é, de exercer sobre seu discurso a jurisdição sis-

tico na psicanálise. Uma questão como esta não pode, é claro, ser elaborada aqui.
Pode-se, tão-somente, assinalar que a estratégia lacaniana penniliria, quem sabe,
abordar, sobre um ou outro ponto, sua complexidade problemática - e que, em
todo caso, esta não seria capaz de reduzir-se a alguma simples "política da psi-
canálise", não mais que a uma, também, não menos simples "psicanálise da polí-
tica", sejam quais forem as referências ou preferências de uma ou outra.
4. E. 458.
100 O TÍTULO DA LETRA

temática do próprio discurso. Isto exclui em particular, como se·


verá, que se lhe repreenda qualquer infidelidade ao rigor episte-
mológico ou que seja repreendido pelas liberdades que adota face
à lingüística científica.s Nossa leitura, pelo contrário, deve obede-
cer aos desvios, aos deslocamentos que tecem o discurso lacania-
no; deve segui-los ou acompanhá-los; deve casar-se, tão estreita-
mente quanto possível, com o desenho complexo - o que não
quer dizer que se deva repeti-los pura e simplesmente (isto é, re-
ligiosamente), mas que é preciso interrogar precisamente sua ló-
gica, quer dizer, a própria intenção estratégica para testar-lhe a
eficácia "deslocante" e medir-lhe os efeitos quanto ao excesso
que aí se anuncia em relação à ciência e à filosofia.
Pois é, sem dúvida, a promessa mais prudente, aliás, do que
se possa crer, de um excesso desse gênero que faz com que, sob a
condição de que se possa manter até o fim a forma desta redupli-
cação, o discurso de Lacan se preste a uma estratégia sobre sua
própria estratégia. No entanto, a própria estratégia é discursiva;
pertence necessariamente, e sempre pertenceu, como tal, à or-
dem filosófica do discurso. A guerra é filosófica e, seja qual for
seu poder destruidor, mantém-se sempre dentro dos limites do fi-
losófico. Seria, pois, preciso resignar-se com alguma coisa que
não seja nem uma estratégia da estratégia nem, é claro, uma con-
tra-estratégia. Falaremos, portanto, por razões evidentes, de des-
construção se a desconstrução, que de fato é discursiva e estraté-
gica, gravita, no entanto, sempre, se assim se pode dizer, dentro
do excesso dela mesma e não cessa de desfazer nela o discursivo
e o estratégico. Como já anunciamos, colocaremos também o tex-
to6 em oposição ao discurso, mesmo que se prove ser necessário,
aqui ou acolá, complicar tal distinção ou, mais exatamente, re-
gulá-la com a figura que ela assume em Lacan, pois seria muito
bem possível Gá dissemos algo a respeito) que o texto, tal como
concebe Lacan, nada mais seja que não o próprio discurso, im-

5. Como, também, do "texto" de Freud.


6. Remetemos neste ponto, globalmente, ao conjunto do trabalho de Jac-
ques Derrida e, se se quiser, mais particularmente às colocações legíveis em "Po-
sitions" (in Promesse nº 30/31, outono-inverno 1971 - retomado em Positions,
Ed. Minuit, 1972).
A ESTRATÉGIA 101

pecável e circular, a ordem significante como tal e como ele se


inscreve - chegamos a isto - em Freud (ou mesmo em Lacan
na medida em que confessa visar também ao "texto"); breve, a
verdade em seu Logos - e que a fala, em contraposição, seja ela
própria para Lacan o texto (inacabado), o "discurso" perpetua-
mente suspenso da iniciação, da incitação da exortação, próprio
para estimular, para fazer representar ou intrigar, mas sem nunca
afivelar um saber da verdade. Entre a estratégia e aquilo que aqui
tentamos visar, a diferença estaria, talvez em suma, ligada ao des-
vio que se poderia dizer estar a separar duas formas do transbor-
damento: ao transbordamento lacaniano, isto é, ao transborda-
mento que afeta o discurso, ou que o discurso sofre, até a inarti-
culação, como a insuportável irrupção de uma verdade por de-
mais poderosa, por demais pressionada a querer dizer-se para po-
der se dizer - o "incêndio" de agora há pouco seria um exemplo
disso - seria necessário opor a leitura transbordando minucio-
samente o leito do texto (ou do discurso: ..) que ela tenta ler7 e
que recorreria precisamente, por privilégio, como que a tantos
indícios seguros de uma via por onde enveredar, a estes momen-
tos de transbordamento que vêm agitar e remover, cá e lá, o cur-
so do texto.
É neste sentido, conseqüentemente, que estamos, doravante,
entregues à estratégia. Isto é, à desconstrução. A isso ter-nos-á
constrangido o transbordamento do texto. Tratar-se-á, portanto,
exatamente, de reler. Se o transbordamento legível na (in)articu-

7. Nesta distinção, atua a imposição de uma dupla metáfora. Impossível


é não observar isto aqui. De um lado, o fogo;·o transbordamento solar da luz; do
outro (de preferência), a água, a inundãção - e, antes que tudo, sem õúvida,
a infiltração. Compreender-se-á, no entanto, que não dizíamos mais aqui, a res-
peito, pois seria preciso, rigorosamente, reconduzir o fogo ao pai (ao homem) e a
água, talvez (mas talvez somente) à "mãe" (à mulher). Ficaria faltan~o, ..então, -
mas isto vai, aqui, além de nossas intenções - tecer tudo isto com o motivo que,
em seu final, parece dominar um texto como o da Significação do fálus: "Corre-
lativamente entrevê-se a razão de tal traço nunca elucidado onde, mais uma vez,
mede-se a profundeza da intuição de Freud; a saber, porque ele adianta que não
existe mais que uma libido, com seu texto mostrando que ele a concebe como
sendo de natureza masculina. A função de significante fálico desemboca aqui so-
bre sua relação mais profunda: aquela por onde os Antigos aí encarnavam o
Nowc; e o Ao"'/Óc; " (E. 695).
102 O TÍTULO DA LETRA

lação perturba o texto, se comunica ao edifício discursivo um cer-


to abalo, se ele deslora, por pouco que seja, as peças ou as partes,
importa, agora, seguir o traçado das trincas e persistir não em re-
edificar o plano, a disposição fundadora e estrutural, mas em lo-
calizar o fio ou a linha de solicitação que a afeta.
Ora, já se viu o princípio desta segunda leitura comanda, por
razões porém que lhe são próprias, a própria. economia do texto.
Se a falta de articulação é, em suma, um indício é porque exibe
paradoxalmente a estranha circularidade que se instala entre
Freud e Saussure e coage a repetir, em cima de Freud, a leitura,
ela mesma freudiana, de Saussure. Segunda navegação que, à sua
vez, cabe-nos, pois, seguir.
É a razão pela qual a leitura estratégica será encetada em
cima do motivo da repetição.

Sem dúvida, de certa forma, nada distinguirá o trabalho que


se anuncia agora, pelo menos em seu início, em seu primeiro
"momento", do trabalho de decifração tentado sobre a primeira
parte do texto. Tão simplesmente, tratar-se-á de decifrar a repe-
tição (ou, o que dá na mesma, de comentá-la). Trabalho idêntico,
pois, excetuando-se a lentidão, uma vez que, ao final, o essencial
já foi todo conseguido. Ou quase.
Mas, na realidade, as coisas não são tão simples assim - e
sabe-se bem, aliás, que a repetição não é a reduplicação do idên-
tico. Ora, a esta lei, precisamente, o texto de Lacan não pode dei-
xar de obedecer. Por isto é que, neste caso, a repetição não é efe-
tivamente simples. A partir do momento, de fato, cm que a neces-
sidade inscreveu-se no texto ( e é sabido, agora, que isto se produz
desde o início ou até, se se pode concebê-lo, antes que o texto
comece - como sua mais rigorosa prescrição), o desequilíbrio
desta forma introduzido faz com que a repetição se deixe levar
por si mesma, se repita mais uma vez e não pare de se repetir.
Processo infinito, de fato, e que só um toque de força pode, ca-
sualmente, vir a bloquear - e, aliás, de maneira provisória. E é
isto que, no texto, assumirá a forma não só de uma repetição ex-
plicitamente lingüístico-freudiana de Freud (se é que se pode fa-
lar assim), mas de uma repetição filosófica, abertamente filosófi-
ca, desta própria repetição, na proporção em que já, de fato, todo
A ESTRATÉGIA 103

um desígnio filosófico - reconhecido, contudo, aqui e acolá -


trabalhava o empreendimento do desvio freudiano da lingüística e
tentava, talvez, dar-se como princípio a resolução (a substi-
tuição?) da troca infinita que aproxima um do outro, Freud e
Saussure.
Não há surpresa, pois, em tais condições, diante da possibili-
dade de que toda a segunda parte do texto (A letra no inconscien-
te) esteja, a princípio, ocupada pela obsessão de tal relação. O
andamento perentório do tom não deve criar ilusão. Nem a de-
claração liminar ("A obra de Freud apresenta-nos, em uma de
cada três páginas, referências filológicas; em uma de cada duas,
inferências lógicas e, em toda a parte, uma apreensão dialética da
experiência, a análise lingüística reforçando ainda suas pro-
porções na medida em que o inconsciente aí está mais diretamen-
te interessado". E. 509) nem tal ou qual proposição a respeito do
"avanço" da formalização freudiana por -mbre as formalizações
da lingüística (E. 512-513) permitem, de fato, anular a questão. E
sabe-se bem, aliás, que ela está sempre, apesar de tudo, à espera
de uma resposta. 8
Conseqüentemente, nenhuma "solução"; mas, pelo contrário,
a repetição do próprio gesto com o qual se iniciava a leitura de
Saussure e pelo qual será encetada, aqui, a leitura da Traumdeu-
tung (traduzida, e não por acaso: a significância do sonho, como
já tivemos que observar) ou; ao menos, de seu capítulo VI: care-
ce, de fato, conío se devia - lembra-se - tomar "a letra à letra"
e sendo que, na Traumdeutung, "não se trata, em todas as pági-
nas, de outra coisa que não. o que chamamos de a letra do discur-
so" (E. 509), carece tomar a letra de Freud à letra, ler Freud à le-
tra - o que equivale exatamente a (re)ler a letra em Freud.Ale-
1

tra no inconsciente, o título fala por si só.


É duplo o princípio desta (re)leitura: de um lado, dado tra-
tar-se de revelar "a instância no sonho desta mesma estrutura li-
teralizante (em outras palavras, fonemática) na qual se articula e
se analisa o significante no discurso" (E. 510), é necessário reco-

8. Aludimos, aqui, por exemplo, à "Radiophonie" (p. 55 e ss.) ondeares-


posta não se dá de maneira menos problemática na fórmula: "O inconsciente é a
condição da lingüística" (p. 58).
104 O TÍTULO DA LETRA

nhecer nos modelos utilizados por Freud (o rébus, a escrita hie-


roglífica) os traços essenciais de um puro jogo de significante dis-
tinto de todo simbolismo analógico; por outro lado, e mais preci-
samente, trata-se de identificar em todos os elementos do traba-
lho do sonho, os elementos ou as funções da própria letra. Ambos
os princípios implicam, por conseguinte, em que se substitua a
decodificação pela decifração e que se reconheça no sonho, ao
invés de uma simples pantomima ou de um mundo de imagens
simbólicas, um verdadeiro "sistema de escrita" (E. 511), ficando
entendido que é bem o modelo fonético, o ideal, em suma, da es-
crita alfabética que regula, aqui, este conceito da escrita.9
Daí a transcrição literal das peças maiores do aparelho con-
ceituai freudiano. Para recordar o essencial dele:
1. A Entstellung (isto é, de acordo com as traduções, a trans-
posição ou a deformação) deve ser interpretada por aquilo que
foi "designado mais atrás com Saussure" como sendo o desliza-
mento do significado sob o significante.
2. A Verdichtung (a condensação) remete à metáfora10 ;
a Verschiebwzg ( o deslocamento), à metonímia.
3. A Rücksicht auf Darstel/barkeit, o levar em consideração a
figurabilidade (o que Lacan traduz por: consideração para com os
meios da encenação), e que é, segundo Freud (Traumdeutung, VI,
4), um processo duplicando o trabalho de condensação e o deslo-

9. Daí a insistência com que, para marcar que "o valor de significante da
imagem (do sonho) nada tem a ver com a significação", Lacan destaca a utili-
zação que Freud faz da presença do determinativo na escrita hieroglífica (Traum-
deutung, VI, trad. p. 276), "para melhor reconduzir-nos ao fato de que estamos
na escrita onde mesmo o pretendido 'ideograma' é uma letra". (E. 510).
10. O que é indicado aqui também na "condensação" que se produz ali da
Dichtung é que a Verdichtung remete à metáfora e, portanto, por aí, à "escuta da
poesia". Apelo homonímico que nada seria capaz Íle justificar, diz J.-F. Lyotard
em Discours, figure (Le travai/ du rêve ne pense pas, p. 239 e ss.), uma vez que
a Dichtung da Verdichtung - a condensação, a espessura - não tem parentesco
algum etimológico com a Dichtung "dizente" da ficção ou da poesia. Motivo críti-
co, pois, o desta observação e em referência ao qual pode-se marcar o desvio da
leitura que tentamos aqui, em particular, quando se trata da interpretação laca-
niana de Freud a respeito da qual, por razões que são, sem dúvida, evidentes
agora, não temos que nos pronunciar aqui.
A ESTRATÉGIA 105

camento para tornar possível a figuração do conteúdo do so-


nho - é irredutível a qualquer colocação em imagem possível,
mas deve-se ler como uma condição respeitante ao "sistema da
escrita".
4. Por fim, a elaboração secundária ou é desprezível enquan-
to pertence ao processo consciente ou, então, fornece elementos
que vêin integrar-se ao jogo significante do pensamento incons-
ciente (e trata-se, neste, propriamente, do pensamento do sonho
Traumgeàanke) (E. 511-512).

A partir disso, uma vez assegurada a tradução do léxico freu-


diano ou, caso se prefira, tendo-se verificado Freud falando a
própria linguagem da ciência da letra, não só se torna impossível
ler, no texto da Traumdeutung, o romance experimental de um in-
consciente psíquico (isto é, o romance psicológico do inconscien-
te), mas também não se pode senão (re)encontrar para tal obra
um puro funcionamento formalizável de acordo com as regras da
própria formalização lingüística. "Trata-se, pois, de definir a tópi-
ca deste inconsciente. Eu digo que é ela mesma que o algoritmo
define." (E. 515). Fórmula que, desenvolvida segundo o princípio
da "incidência do significante sobre o significado", pode dar ori-
gem às fórmulas da metáfora e da metonímia. Ou seja, sucessi-
vamente, três fórmulas que não se deixam ler, de fato, como ver-
dadeiras fórmulas lógicas (não supõem nem autorizam, aqui, ne-
nhum cálculo) e para as quais Lacan propõe, a cada vez, a tra-
dução. Obtém-se, portanto:
1. A fórmula geral:

f(S) _!_
s

qu~ pode ser lida: a função do significante é pôr um termo sobre


uma barra resistente à significação;
2. A fórmula da metonímia:

f (S ... S') S = S (-) s


106 O TÍTULO DA LETRA

que pode ser lida: a função significante de conexão dos significan-


tes entre si equivale à manutenção da barra que retém o signifi-
cado fora do alcance do significante. O significado assim "elidido
pode, então, designar o objeto do desejo como "falta do ser", fal-
ta pela qual o desejo é condenado a funcionar como o remetente,
ao longo do encadeamento, da metonímia desta falta;
3. Por fim, a fórmula da metáfora:

S'
t c5 ) s = se+) s

que pode ser lida: a função significante de substituição de um sig-


nificante por um outro significante equivale à ultrapassagem da
barra (daí o signo +) 11 na criação da significação. A significação
assim produzida é um efeito poético de significação. Mantém-se,
em outras palavras, no registro da conotação, onde é, logo, entre-
gue ao deslizamento permanente do significado. E é tal passagem
que, antes, permitira indicar o lugar do sujeito.

Ora, é aqui precisamente que se produz o que se deve enten-


der como uma outra ruptura. Esta mesma ruptura tendo sido
produzida pela imposição repetitiva que, doravante, governa ne-
cessariamente o texto. Não é, pois, por um acaso que Lacan a as-
sinala com estes termos:

Esta ultrapassagem expressa a condição de passagem do signi-


ficante no significado, cujo momento assinalei mais acima confun-
dindo-o provisoriamente (nós sublinhamos) com o lugar do sujeito.
É a função do sujeito, assim introduzida, na qual precisamos,
agora, deter-nos, pois que está no ponto crucial de nosso problema.
(E. 516)

11. Sua deslocação "ideográfica", de alguma forma, em relação ao símbolo


usual da adição, deslocação que tem todos os jeitos de um Witz sobre a notação
lógico-matemática, dá assim a medida do desvio que se opera aqui às custas da
lógica.
A ESTRATÉGIA 107

O que, portanto, trabalhava, como se pode recordar, toda a


primeira parte ao ponto de diferir, praticamente até o fim, a ul-
trapassagem da barra, enceta agora a repetição mesma de Freud,
uma vez que resta ainda regular a questão daquilo que a primeira
parte havia (provisoriamente, diz Lacan) conseguido pensar a tí-
tulo da "passagem no sujeito", da "presença" do significante no
sujeito ( cf. E. 504). Ora, o próprio texto de Freud ( ou, mais exa-
tamente, por si só) não permite retornar á questão do sujeito. É
preciso, portanto, passar por um outro texto distinto, por sua vez,
do texto lingüístico e do texto freudiano - que é o texto filosófi-
co. Repetição da repetição, começando sob o nome de Descartes.
É, de fato, do cogito que se deve partir mais uma vez. É, por-
tanto, já que a mesma lógica aqui ainda está em ação, o cogito
que é também preciso subverter, (para apelar ao título de um ou-
tro texto de Lacan: Subversão do sujeito e dialética do desejo, que
aliás, programa, pelo menos parcialmente, o itinerário filosófico
que, agora, iremos percorrer). Subverter o cogito é, de fato, es-
sencialmente reduzi-lo, extenuá-lo até sobrar apenas a pura po-
sição do sujeito como tal. "Desubstancializá-lo", pois, conforme
um gesto aliás clássico, mas acentuado aqui, uma vez que não se
opõe somente à espessura psicológica que uma certa tradição cre-
ra poder reter (após tê-la ajuntado, do exterior, ao cogito carte-
siano), mas, também, à pura transparência em si da subjetividade
transcedental na medida em que ela mantém o sujeito, de fato, no
horizonte da presença-em-si em geral. Esta é a razão pela qual,
de um lado, é necessário puxar o cogito na direção do sujeito da
estratégia (ou, sem jogo de palavras, da teoria dos jogos ou, ain-
da, de uma combinatória evocada, há pouco, pelas fórmulas lógi-
cas desviadas) e, por outro lado, trata-se de "descentrar o sujeito
em relação ao sujeito clássico".
Tal excentricidade do cogito é, evidentemente, Freud que
permite pensá-la. Mas, ainda, é necessário compreender que não
só o embasamento cartesiano é indispensável para medir o desvio
introduzido pela psicanálise, mas ainda a própria excentricidade,
que Freud busca manifestar na relação do sujeito consigo mesmo,
só é, de fato, pronunciável nos termos da lingüística, isto é, nos
termos da diferença entre o sujeito da enunciação e o sujeito do
enunciado. Advém daí a dupla formulação do cogito freudiano (e
108 O TÍTULO DA LETRA

a duplicidade, compreende-se, é necessário aqui): "eu não sou, lá


onde sou o joguete de meu pensamento" / "Eu penso no que sou,
lá onde eu não penso pensar" (E. 517) - que, na realidade, deri-
va da retranscrição da fórmula cartesiana ("cogUo ergo Sum" ubi
cogito, ibi sum - E. 516), retranscrição tal que aí se marca a dife-
rença entre enunciado e enunciação. E é esta diferença que pode,
então, compreender-se como a introdução, no coração do sujeito
que ele barra ou fende, do desejo empiricamente sobrevindo den-
tro da "experiência" analítica - desejo que não se define por ou-
tra coisa que pelo seu enroscamento num rébus do significante
(de onde a necessidade da substituição metafórica) ou sobre uma
falta do ser (de onde a necessidade do deslocamento metonímico,
onde se nodaliza, aliás, o descumprimento do desejo).
Pode-se considerar, desde então, que o sistema de repetição
está a postos. E é precisamente por esta razão que o mecanismo
da repetição vai agora acelerar-se. O vai-e-vem entre os três tex-
tos ( da lingüística, da psicanálise, da filosofia) será cada vez mais
rápido, como que causado por uma pulsação precipitada entre as
duas bordas de um desvio. Em certo sentido, nada de novo se
produzirá. Mas este "nada de novo" contém, de fato, a possibili-
dade de uma proliferação das referências filosóficas. Pois, se a re-
lação entre Freud e Saussure permanece bloqueada, a única
chance que há de nela introduzir um desequilíbrio capaz de fazer
mexer-se um desses dois "termos" é acentuando a insistência, ex-
plícita ou não, do filosófico. É este novo giro dado pelo texto que
nos conduzirá, doravante, de Descartes a Heidegger.
Para descrevê-lo esquematicamente, tal processo pode de-
compor-se em três momentos:
1. A "máquina" freudiana toma definitivamente o lugar do
sujeito. A metáfora e a metonímia, colocadas pela lingüística no
lugar onde devia produzir-se o sujeito, deportadas na conceituali-
dade freudiana, formam ali "mecanismos" tais que permitem
submeter o sujeito à maquinária da "outra cena". Com efeito, na
metáfora "determina-se o sintoma" (E. 518) como a substituição
de um significante corporal no lugar de um outro significante re-
calcado, substituição esta que torna "a significação inacessível ao
sujeito consciente" (id.). No que tange à metonímia, ela carrega o
desejo, como perpétuo "desejo de outra coisa", condenando desta
A ESTRATÉGIA 109

forma o desejo a dar-se como sempre já morto e preso numa


memória puramente maquinal. Tal memória permite, então,
compreender a repetição freudiana na medida em que resolve as
aporias da reminiscência filosófica. Pois, se a reminiscência se
choca, de fato, com a dificuldade intransponível de ter que inver-
ter o sentido de um processo de geração12, a repetição freudiana,
pelo que tem de "mecânica", toma a figura do deslocamento do
desejo para uma "outra cena", que não é originária. O sujéito é,
desde então, o instrumento desta maquinação, isto é, o instru-
mento cofn que "o ser coloca sua questão" (E. 520).
Este ser outra coisa não é que o ser que falta ao desejo e que,
por esta razão, "só aparece no lampejo de um instante no vazio
do verbo ser" (E. 520). Puro efeito do significante, portanto, e
capaz do lance, pelas "resistências próprias do caminhar signifi-
cante da verdade", isto é, pela retórica do inconsciente13, de pro-
duzir a significação do sujeito como resistência narcísea do eg~.
2. Todo este funcionamento pode, então, compreender-se
como "a excentricidade radical de si consigo mesmo com a qual o
homem é confrontado" (E. 524). Tal excentricidade clama por
uma "mediação" que é a do Outro. Como já se sabe, o Outro é o
instituidor do contrato da fala e, já o dissemos, é neste ponto do
texto que se inscreve em filigrana o nome de Rousseau. 14 Como
se inscreve, aliás, imediatamente, o de Hegel se o Outro, de fato,

12. Como é o caso, ainda, na lei hõlderliniana do retorno; mas não na repe-
tição kierkegaardiana: "Tudo partido, assim do VÓ<T'TO<; héilderliniano é à repe-
tição kierkegaardiana que Freud retornará menos de vinte anos mais tarde" (E.
519). A alusão é fulgurante, mas permite pelo menos compreender-se que, neste
trajeto, uma certa submissão à lei simples de um Logos único ("o princípio real
do Logos", segundo os termos de Hõlderlin retomados aqui) dá progressivamen-
te lugar a um dualismo irredutível ("as mortais antinomias empedocleanas" - a
que, sabemos, aliás, que Freud apelou explicitamente).
13. "A perifrase, o hipérbato, a elipse, a suspensão, a antecipação, a re-
tração, a negação, a digressão, a ironia são as figuras de estilo (ftgurae sententia-
rum de Quintiliano) como a catacrese, a litotes, a antonomásia, a hipotipose são
os tropas, cujos termos impõem-se à pena como os mais próprios para etiquetar
tais mecanismos" (E. 521). Cf. Benveniste, Problemes de linguistique générale, p.
75 e ss.
14. Cf. Supra, p. 31.
110 O TfTULO DA LETRA

"indica o além onde se enlaça o reconhecimento do desejo ao de-


sejo do reconhecimento" (E. 524), isto é, aparece como o media-
dor de uma dialética que seria propriamente hegeliana se Lacan
não a assentasse brutalmente sobre a relação contratual.
3. Resta, então, captar o que é próprio da "revolução" freu-
diana. Sua fórmula é simples - seja qual for a sutileza do desvio
pelo exemplo de Erasmo que permite produzi-la15: consiste em
subtrair o inconsciente da dominação da consciência e em arran-
car a loucura das presas do logos.

Loucura já não és mais o objeto do elogio ambíguo no qual


o sábio ajeitou o covil inexpugnável de seu temor. Se, com tudo isso,
ele não está tão mal alojado é porque o agente supremo que, de to-
do o sempre dava-lhe as galerias e o labirinto, é a pr6pria razão, é o
próprio Logos a quem ele serve. (E. 526)

Em sua simplicidade, ou até em sua evidência, esta fórmula


poderia encerrar o texto. Ela "aponta", de fato, aquilo que é
"razão a partir de Freud", ou seja, "instância da letra" mesma, e
ela enuncia, conseqüentemente, "a verdade imensa na qual Freud
traçou uma via pura" (E. 527).
Ora, não é nada disso. Longe de terminar, o texto prossegue
ainda um pouco. De fato, mais uma página; nela, no entanto, tu-
do, como se deve, é recolocado em jogo. Pois, a verdade da des-
coberta freudiana encontra-se ali relacionada com uma outra
verdade, que, em princípio, não era esperada: a verdade heideg-

15. "Da mesma forma como concebeis que um erudito, tão pouco dotado
para os 'engajamentos' que o solicitavam tanto em seu tempo como em qualquer
outro, como era Erasmo, tenha tido uma J)Ol!ic;ão tão eminente na revolução de
uma reforma na qual o homem estivesse tão interessado em cada homem como
em todos?"
"É porque, em se tocando por pouco que seja na relação do homem com o
significante, aqui conversão dos procedimentos da exegese, muda-se o curso de
sua história modificando-se as amarras de seu ser." (E. 526-527)
Erasmo é, pois, o ambíguo panegirista da loucura, que citamos a seguir,
mas cuja sábia submissão ao Logos não pôde impedir (pelo contrário, se é a
razão que se empenha, ela própria, na desordem da loucura) que, em tocando no
significante do Livro (da Letra) do Ocidente, enceta a subversão desta sabedoria
e desta razão.
A ESTRATÉGIA 111

geriana que é, como cada um sabe, a alêtheia. Mas a relação de


uma com a outra não é automática, é claro; ela é mesmo tão
complexa que corre o risco de implicar uma lógica que não seja
de todo redutível à lógica da repetição que acreditamos poder se-
guir até o momento; corre o risco de, por sua vez, transbordar das
margens desta lógica - obrigando-nos, por conseguinte, a diferir,
pelo menos provisoriamente, a análise.
Eis por que nos contentaremos por ora com assinalar aqui
duas coisas:
- Pelo menos pela surpresa que provoca, a irrupção do no-
me de Heidegger parece pertencer bem à série das rupturas, dos
acidentes que não cessaram de desviar a lógica simples do per-
curso de Lacan. E, mais profundamente, na medida em que Hei-
degger indica aqui "um requestionamento da situação do homem
no sendo, tal qual a supuseram até agora todos os postulados do
conhecimento" (E. 527-528), sua intervenção parece ameaçar to-
dos os recursos filosóficos de que se pôde fazer uso dentro deste
mesmo percurso.
- Mas, por outro lado, a verdade heideggeriana parece,
também, dar acabamento à lógica deste texto. Imediatamente, de
fato, a letra é relacionada com o ser, com um ser que é preciso,
portanto, entender como o da "questão" heideggeriana do "ser".
E é a esta "questão", com efeito, que, para findar, vem se "ligar"
à metáfora - ou melhor, é nas fórmulas da ciência da letra, onde
se combinam o léxico da lingüística e o da psicanálise, que o sig-
nificante heideggeriano do ser vem imprimir o carimbo de sua
verdade:

Pois o sintoma é uma metáfora, queira-se ou não dizê-lo, como


o desejo é uma metonímia, mesmo que o homem dela zombe. (E.
528).

Esta verdade - a/êtheia - devemos somá-la dentro da lógica


da estratégia lacaniana antes de poder dizer o que tal operação
produz no cálculo do conjunto.
Para isto, é preciso, claro, examinar antes o funcionamento
deste conjunto como tal.
2
O SISTEMA EA COMBINACÃO
,

É, pois, a estratégia que dispõe e governa este aparelho de


repetições que se encaixam e se entrelaçam umas nas outras.
Trata-se, agora, de pôr em evidência esta estratégia para ela
mesma ou produzir seus efeitos específicos. Isto equivale a dizer
que é necessário reler o texto de Lacan - ou repetir sua leitura -
e isto, como se verá, por várias vezes.
Esta estratégia é, a princípio, uma estratégia de conjunto à
qual o texto de Lacan obedece, em seu todo, em sua economia e
em sua estrutura - ou, mais exatamente, à qual este texto deve
sua economia e sua estrutura, nos sentidos exatos destes termos,
isto é, nos sentidos "restritos" deles.
De acordo com esta estratégia de conjunto, o texto casa-se
simultaneamente com um duplo motivo - dualidade, ou duplici-
dade, que é, como o sabemos, o próprio regime da estratégia e a
razão da repetição da leitura.
De um lado, com efeito, este texto opera uma espécie de
combinação dos gestos de empréstimos, de perversão, de sub-
versão ou de repetição por meio dos quais ele é instituído. A este
título, seu movimento é aquele que pudemos dizer corresponder,
globalmente, a um procedimento de desvio.
Mas este desvio mesmo, cuja natureza falta captar, utiliza
:iínda um outro movimento. Trata-se, então, se assim se pode di-
zer, da estratégia de um movimento girante, pelo qual, no próprio
114 O TÍTULO DA LETRA

curso da fala lacaniana, em suas rupturas e em suas suspensões,


alguma coisa instala-se, conclui-se e encerra-se com todas as ca-
racterísticas da sistematicidade.
É preciso tentar discernir este duplo movimento e decifrar-
lhe a lei. O que é o mesmo que dizer, é claro, que será preciso
partir para a questão: é esta duplicação estratégica mantida até o
fim, é ela o "lugar" duplo do texto de Lacan - ou, então, um dos
lados passa para o outro, e é preciso, então, perguntar-se se o
desvio chega ao ponto de desviar o sistema que parece (re)consti-
tuir-se no discurso lacaniano, ou se, pelo contrário, uma seme-
lhante (re)constituição desvira em sistema o próprio desvio. A
menos, é claro, que esta alternativa revele-se não ser também ab-
solutamente decidível.
Ao menos é com estas questões - talvez, portanto, ainda
simples demais - que podemos encetar a leitura dos efeitos es-
tratégicos deste discurso - começando pelo efeito de sistema.

Que este texto seja sistemático (que este "texto", pois, seja
absolutamente também um "discurso") ou dê lugar, ao menos, a
um sistema é o que já se terá podido perceber na construção que
sua primeira parte pôs cm prática, e na repetição desta cons-
trução debaixo de toda uma série de motivos e de instâncias teó-
ricas. É preciso, agora, determo-nos sobre esta sistematicidade
mesma, isto é, sobre o discurso que o texto de Lacan mantém, na
medida em que, em conformidade com a petição fundamental, e
fundadora, do discurso científico e/ou filosófico, compl~ta-se por
si mesmo em uma ordem fechada sobre si mesma, que tal ordem
não inclui nada que não esteja ali organicamente articulado e que
não exclui nada de sua circunferência sem ordená-lo ainda rigo-
rosamente com esta mesma circunferência. Todo sistema é, desta
forma, o sistema - isto é, em grego, a posição combinat6ria 1 -
de uma certa identidade em si da articulação do discurso: ele é o
"archê" e o "tclos" de uma lógica.

1. &ta "tradução" deve indicar a finura e a fragilidade do desvio que sepa-


ra o sistema da combinação desviante. Deslocar-se, apesar de tudo, dentro deste
desvio, e talvez deslocá-lo, tal é o desafio, o duplo giro do texto.
O SISTEMA E A COMBINAÇÃO 115

Permitir-nos-emos, após ter "soletrado", até aqui, em nossa


leitura, de dar a ver esta sistematicidade, dentro do esquema aqui
proposto2•

Não comentaremos, porém, este esquema sem que o tenha-


mos feito ser precedido, como para desdobrar sua figura, em dois
textos. E, para começar, uma vez que - como acabamos de re-
cordar - a sistematicidade é grega e procede de uma exigência
imperiosa do discurso, temos este texto:
Eis aqui qual é o rodeio ( 7pó1roc; ), pois preciso é que não se
enuncie menos que isto: toda coisa descrita e figurada
(6ux-ypaµ.µa), todo o sistema de numeração ( àpL0µ.óc; ), toda
combinação ( <TV<J7Cl<JL<;) de harmonia, e a homologia da revo-
lução dos astros, tudo isto deve produzir abertamente sua unidade
para quem se instrui o rodeio.

Texto este de Platão, em Epinomis3, cujos elementos não


acabamos de ver, e toda a lógica, circular dentro do contorno· de
nosso esquema.
Circulará aí, por conseguinte, também este outro texto que
poderia ser (que, de fato o é, mesmo não sendo seu propósito ex-
plícito) o comentário do precedente, que não é por acaso que seja
de Heidegger, tendo em vista certo ponto sobre o fechamento de
nosso gráfico:

O sistema não é de forma alguma nem só nem de princípio


uma ordenação da matéria disponível do saber, e daquilo que mere-
ce ser sabido, com vistas à comunicação correta deste saber - o sis-
tema é, antes de tudo, a articulação (Fügung) interna do próprio
cognóscível, o desdobramento e o torneio (Gestaltung) que o fun-
damentam e, mais propriamente, ainda: o sistema é a articulação, em
conformidade com o saber, da conjugação (Gejüge) e do ajuntamen-
to (Fuge) do próprio ser.4

2. Cf. infra, p. 103.


3. 991º - se este texto deva ser, ou não, atribuído ao "próprio" Platão é
um debate conhecido que aqui não tem importância.
4. Schellings Abhandlungen über das Wesen der menschlichen Freiheit, Tü-
bingen, 1971, p. 34.
116 O TÍTULO DA LETRA

O que quer que estas inscrições liminares possam fazer pen-


sar (ou levar a crer), neste momento, um esquema como este não
pode, no entanto, é claro, ter outras pretensões que não aquelas
de todas as representações gráficas nas quais o grafismo mesmo
não é o lugar ou o objeto de um processo científico de um cálculo
inscrito como tal. Portanto, aqui, nada de geométrico, nada de
topológico. Este esquema tem tão-somente os caracteres total-
mente empíricos da comodidade e do recurso à intuição sensível.
Igualmente, não pode ele (se) dispensar de seu próprio comentá-
rio. O uso de tal figura não é, pois, para nós senão um jogo. (É,
pelo menos, necessário dizê-lo, uma vez que o efeito deste gênero
de prática permanece um efeito com um quê de sério, numa cul-
tura sempre freqüentada pelo mos geometricum ).
Acontece, simplesmente, que este jogo, como tantos outros,
não deixa de ter seus ensinamentos.
Pois o emprego de um esquema não existe, por certo, sem
justificativas cm nossa leitura nem sem uma pertinência própria
ao texto que se trata de ler. Dar a ver a unidade sistemática deste
discurso é, quem sabe, de fato, a princípio, apenas um jeito de re-
petir a unidade que ele quis dar a entender no evento de sua enun-
ciação. O esquema seria, então, a repetição - tanto "literal"
quanto "metafórica" - deste recurso que a fala de Lacan, como
já o deixava entender a respeito dela mesma no preâmbulo, extrai
de dentro da ocasião de um "discurso" no sentido oratório do
termo, isto é, da ocasião de uma tomada única, de uma apreensão
direta (senão simples), imediata e, por isto, sensível, igual àquela
a que Lacan, um dia, convidou um auditório universitário - antes
de oferecê-lo, aqui, nos Escritos que são, importa não esquecer,
"um título mais irônico do que se crê".5
Este esquema pode, em seguida, sustentar-se por meio de
uma conformidade com o procedimento, igualmente um "jogo",
da representação gráfica tal como o próprio Lacan pôde utilizá-la
em outros textos6, sem que estes "gráficos" tenham a mínima

5. "Lituraterre", in Littérature, nº 3, p. 4.
6. Cf. E. 48, 50, 53, 56-57, 548, 571, 673, 674, 680, 774, 778, 805, 808, 815,
817 - e seminários inéditos, passim. As precauções necessárias relativas à natu-
O SISTEMA E A COMBINAÇÃO 117

congruência com o conceito da teoria matemática que tem o


mesmo nome. O "gráfico" lacaniano pertence, também ele, à es-
tratégia do desvio.
Trata-se, portanto, aqui, imitando um pouco seus procedi-
mentos, de tentar uma representação espacial desta estratégia, a
fim de observar qual forma permite - ou exige - gerar: acontece
que esta forma é a do cfrculo e, pelo menos até certo ponto, do
círculo sem defeito ou sem resto, como deve ser. Isto é, a forma do
anel de que Lacan fala quando, em fazendo uso de mais um jogo,
evoca a "ambigüidade do furão", segundo a qual "foge de soh
nossas garras o anel do sentido sobre o cordel verbal" (E. 517)7 -
o que faz com que o anel do sentido fuja é, ainda, o comprimento
de um outro anel, aquele do círculo dos jogadores.
Este círculo - se considerarmos, antes, a menor circun-
ferência do esquema - podemos fazê-lo girar a partir de qual-
quer um dos seus pontos. Por exemplo, a própria letra. Ela é
aquilo que, instituindo-se como materialidade de um lugar, pré-
inscreve o sujeito "em seu lugar", que é o de um significante. É,
também, contudo, aquilo cuja instituição só acontece por meio do
Outro, cujo contrato inscreve a letra na fala, isto é, na capacidade
de verdade, desta verdade que vimos caracterizar-se por meio da
adequação (adaequatio ou homoiosis da qual, é claro, será preci-
so falar de novo). Mas esta mesma letra inscreve-se, também - e
esquiva-se - em uma alêtheia, verdade derradeira, cujo texto, já
se viu, obriga pelo menos a computá-la, por ora, como "verdade
freudia:aa", isto é, ao menos como esta verdade que oprime o de-
sej9 (aquela, também, que o sujeito não pode saber e que se iden-
tifica com o desvio significante da (na) fala ou, melhor, que se
identifica enunciando-se como um tal desvio ou como um bura-
co). Este gesto é, desta forma, aquele pelo qual o ser vem a faltar
por três vezes no círculo:

reza destes "grafos" foram tomadas por J.-A. Miller: Cahiers pour l'ana/yse, nº
1/2, 1966, p. 171.
7. Este furão insiste em Lacan: cf. E. 259.
118 O TÍTULO DA LETRA

"Sistema" da Instância da letra, ou


De revo/utionibus orbium litteralium8.

Saussure - - - - - - - - - - - Lógica
., .,... Simbólica ,

.,-
/
,,,.,,,.
. _s_
+ 1
',
' '~ ( 'AAt,B,io<. )

/// \ _.,,--- 1
(Rousseau)

RA~ /Heide~:

/
/ OUTRo
/ r····•.}~.9&1, matéria,
••••• estrutura localizada
',
,
t VERDADE (Hegel)
(contrato) pré-inscrição do \

!::~::i~: sujelt/(nlome prórlo) /

1
1
I, S' :i
1 '

/ / /

1 / ····• r .. ·• s··. · ·"' METONÍMIA: falta do SER


1 / (desejo, instância, "pouco de sentido")l
1 I \
I \
1 / { resistência do significante 1
l / [encaminhamento da Verdade) ~
SER em questão: METÁFORA - palavra: . • . - - - - - (SWEITO)
(sintoma "sentido no \ res1stenc1a do Ego t
não sentido") \ (cogito, Narciso) I

\\ (S)sfsJsJs>
5 '\.
(nome própr~: Booz) /
I
C'conte>dos apensos deslizamento I
à pontuaçãu")...... ... do significado...... J
(verbo "SER")

"no lugar
- - - <Jo sujeito"

t
pai primordial

8. Cf.E. 401,506 e "Radiophonie", p. 86.


O SISTEMA E A COMBINAÇÃO 119

à palavra (metonímia), pela palavra (metáfora), na palavra (o


verbo "ser"). Faltante, o ser ocupa um outro lugar do Outro -
uma Outra Cena, que é, portanto, a mesma, e, por isto, sobre o
círculo. Daí, o ser governa, pela letra e seu circuito, o sujeito que
vem, com sua ausência, afivelar o círculo literal.
No que tange à própria circunferência, bastará tê-Ia lançado
assim. Cada um pode, em seguida, vê-la afivelar-se com algum
outro de seus pontos, cada um dos quais pontua, de alguma for-
ma, a "mesma" ausência, a "mesma" alteração ou altera identi-
camente sua identidade.

O interior do círculo repete o fechamento de seu traçado. Es-


te interior é, de fato, dividido pela própria divisão da fala, isto é,
pelo buraco que a letra ali cava com seu círculo. Desta forma, a
fala não "ultrapassa" a barra que resiste à significação a não ser
substituindo o primeiro significante (aquele que a barra domina)
pelo significante metafórico (aquele que está acima da barra, que
é aquele com que se tem que lidar sempre - e que se nota, pois
substitui um outro, S19). Este último é, ele mesmo, Jogo arrastado
na cadeia metonímica. Desta forma, ·a fala cede lugar à série du-
pla, indefinidamente aberta, dos deslizamentos do significado (na
ordem da metáfora, comandado pela máquina que, na outra cena,
furta ao sujeito seu lugar e o que este tem de próprio) - e das
conexões do significante onde insiste o "pouco de sentido" de um
desejo oprimido pela verdade (ordem da metonímia, pois, co-
mandada por esta localização da letra que marca para o sujeito o
"lugar" onde ele é furtado a si próprio).
Esta dualidade irredutível, porém, é também, como se vê,
aquilo que acaba de encher e fechar de novo o círculo, por meio
da simetria que, desde então, deixa-se notar de um lado a outro
da barra. O ser cuja cadeia metonímica lhe falta é aquele que
desliza, num "lampejo", para fora de seu próprio verbo. O nome
do sujeito é aquele que, significado, é abolido. Este sujeito, assim
paradoxalmente pré-inscrito (pré-proscrito), é aquele cujo lugar é

9. Cf. as fórmulas de E. 515, já citadas.


120 O TÍTULO DA LETRA

mantido pela operação da máquina. E a maquinação do assassí-


nio do pai nada mais é que a da substituição do significante.
Também o lugar da máquina, a "outra cena" de Freud, sobre a
qual "a máquina rege o regente" (E. 519), é a cena do Outro, isto
é, mais uma vez o círculo da letra - a cena circular em que a le-
tra põe cm jogo sua instância.
O processo da fala, em sua série dupla, tem por outro lado
um "sentido": caminha em direção da nomeação e da significação
do sujeito ( o genitivo, aqu~ além disso, sendo duplo). Mas o sujei-
to produzido na ultrapassagem da barra - isto é, através de um
jogo duplo de resistências: a do significante oprimido pela verda-
de e a do significado imaginário do sujeito - só 'pode ser um su-
jeito que não advém e que não é, por seu turno, senão um ponto
sobre a circunferência onde lhe falta o ser e onde a letra o divide
(é por isso que o arco que o suporta traça-se como pontilhado,-
scm, no entanto, subtrair nada ao fecho do círçulo).

Desta forma, a.circularidade do círculo é:


-- a simetria das operações da palavra;
- a simetria da organização "literal" e da organização "in-~
consciente";
- a identidade de todos os termos cardinais que, na circun-
ferência, comandam todas estas simetrias.
A isto é preciso acrescentar ainda:
- a identidade da circunferência mesma e das operações
que ela contém.
Os termos da circunferência comportam-se entre si, realmen-
te, como metáforas no sentido de Lacan: a letra, a verdade, o Ou-
tro, o ser e o sujeito fazem, aqui, o sistema na medida em que a
função de cada úm consiste em vir ao seu "lugar" por um outro -
e a cadeia circular destas funções, regulada pela posição de não-
advento do sujeito (ou de ser... ) é bem uma cadeia metonímica.

Mas a circulação de tal "identidade" exige, para seu círculo,


um centro. É nesta necessidade do centro que se pode ver a figu-
ra de o esquema exercer a mais decisiva imposição. sobre aquilo
que ela figura. De fato, na medida em que tal grafismo dá, com
comodidade mas corretamente, conta do discurso de Lacan, este
discurso revela-se ao mesmo tempo circular - isto é, como que
O SISTEMA E A COMBINAÇÃO 121

sistemático. Mas, revela-se, portanto, também como centrado,


mesmo quando o grafismo não pôde (e não deveu) inscrever este
centro como tal.
A barra, de fato, atravessa-lhe o lugar. Enquanto barra ela
deveria, fazendo "saltar" o ponto central, quebrar também a iden-
tidade do círculo, desarranjar-lhe o funcionamento, ao ponto de
não poder acontecer aqui a significação de "sistema". Ora, esta
significação acontece. Como sistema pelo menos, o discurso de
Lacan reduz, como esperamos ter mostrado há pouco, os desvios
que ele cava, e se detém sobre seu próprio deslizamento (ou
detém seu desligamento imprimindo-lhe a forma do círculo).
Neste deter-se, ele se centra - e este centro é a própria barra,
cuja espessura revela-se, pois, dissimular um ponto. É o ponto
mesmo elo sistema, a pontuação, isto é, o conceito a partir do qual
é possível dispor os elementos e as relações de uma lógica do sig-
nificante, que sob tal relação, é, portanto, e sem desvio, uma lógi-
ca e nada mais.
Neste valor pontual - e pontuante - da barra, é preciso re-
conhecer o que, precisamente, foi posto como pri1Jcípio por este
discurso: a barra é de fu.ndamento ou de origem. Ela é a "archê"
de um sistema que, em sistematizando a divisão, a falta ou o bu-
raco nos lugares de origem, não deixou de conservar, sem reco-
locá-lo em jogo, seu próprio valor "arcaico" de sistematicidade,
isto é, de origem e de centro. Vê-se, desta forma, que a fala de
Lacan, em seus efeitos de dispersão ou de deslocação, não exclui,
no entanto, uma exposição discursiva nem, conseqüentemente,
U!I'a disposição unitária· e monológica - e que ela mesmo co-
manda uma taf disposição, a não ser que seja comandada por ela.
Há na "lógica do significante" em ação, apesar de tudo que, da
parte do significante, a isto se opõe, um poder sistemático que
não pára de reconstruir, de recentrar aquilo que a crítica, por La-
can, do "monocentrismo"'º quer destruir ou exceder.
É assim que a barra, funcionando como centro, pode gerar
um outro círculo: o círculo circunscreve ao círculo do sistema,
que é o de suas origens. É a barra que traça ou constrói o algo-

10. Cf. esta "necessidade de abaixar a soberba que é própria de todo mo-
nocentrismo", que citamos acima, p. 14.
122 O TÍTULO DA LETRA

ritmo, tratando um no outro, Saussure e a lógica simbólica; é ela


que repete Rousseau num contrato da fala, que pega seus recur-
sos de uma poética da metáfora, que füca Descartes no lugar do
sujeito impossível e Hegel na lei do desejo. É ela, afinal (ou: pri-
meiramente), que traz Freud e Heidegger no mesmo círculo, um
para fundar, com experiência e com ciência, a barra antes de sua
letra mesma, o outro para significar o modo de verdade de uma
tal teoria.
Todos estes nomes (próprios) circulam a seu turno seguindo
a lei do primeiro círculo; são metáforas uns dos outros, numa
espécie de projeção sincrônica e de repetição indefinida da histó-
ria do pensamento ocidental (não há de se esquecer, ademais, to-
dos estes nomes, de Platão a Hõlderlin, que o texto pronunciou);
formam, assim, o círculo, de fato, da razão "após Freud"; e sua
cadeia metonimiza a teoria ou o sistema da letra, mas o te/os des-
ta metonímia advém, uma vez que ele é este sistema mesmo ou,
ao menos, sua possibilidade inscrita como lei do discurso mantido
aqui. É por isto também que este sistema, tanto quanto um cen-
tro, tem um nome próprio: o de Lacan11 •

Quanto a todas estas considerações - isto é, quanto a uma


única consideração, a do centro, da função de centro preenchida
aqui apesar de tudo - Lacan compõe, pois, um sistema no mais
clássico sentido do termo. A revolução lacaniana, que retoma de
Kant, via Freud, a imagem da "revolução copernicana" 12, proce-
de, talvez, também num caminho inverso a esta. Ao invés de dis-
tender o círculo em elipse com duplo foco - dos quais, além dis-
so, um seria vazio - ela reconduziria a uma revolução circular. Aí
o motivo de o esquema poder arriscar-se a intitular-se por uma
paródia do título de Copérnico, a ser entendida assim: a letra do
texto de Lacan (expressão cujo equívoco será mantido com todo o

11. C'..omo o assinala, aqui e acolá, neste texto e em outros, a inscrição de


seu nome em seu discurso, ou o uso freqüente da primeira pessoa. Shifter que as-
segura, apesar de tudo, o enunciado na enunciação e reciprocamente.
12. Ver as referências do esquema e a Instance, p. 516.
O SISTEMA E A COMBINAÇÃO 123

cuidado) produz seus efeitos conforme os giros concêntricos de


um discurso literalmente sistemático.
Se Lacan pôde dizer que seus "enunciados nada têm em
comum com um exposto teórico se justificando por um fechamen-
to"13, vê-se que neste estágio, pelo menos, de nossa leitura, es-
ta declaração deve, de preferência, ser lida no desvio entre um
efeito produzido e a vontade de destruir ou de subverter este
mesmo efeito. É por isto, aliás - e nós o anunciamos - que não
é seguro que este sistema funcione simplesmente assim - como
sistema. Na medida, com efeito, em que sua sistemática é produ-
zida numa combinação de desvios múltiplos, trata-se de saber até
onde a função de desvio desvia ou desarranja a sistematicidade.
Pelo menos não é indiferente, por esta razão, que um sistema
barre seu centro, mesmo se esta barra não é também senão um
ponto.
Uma dupla leitura deste "sistema" é, portanto, necessária; é
necessário virar a página do esquema. Não, no entanto, sem ob-
servar ali o que ali figura como reserva e de que ainda nada di-
zemos: a dupla inscrição que foi preciso ali fazer da alêtheia: uma
hora, latinizada, no círculo; outra hora, em grego, fora dele. Para
ler esta dupla inscrição, é necessário reconsiderar toda a estraté-
gia de Lacan; é preciso discenir se é por ela ou fora dela, graças a
ela ou apesar dela, que a inscrição se acha desdobrada.

Um segundo percurso do sistema, considerado desta vez co-


mo combinação de deslocamento, far-nos-á descobrir, de início,
uma nova duplicação: com um mesmo gesto, a combinação radi-
caliza o desígnio do sistema e tenta afastar-se para qualquer outra
parte. Avancemos por etapas:
A estratégia foi, pois, estimulada por um certo tratamento da
lingüística. Este tratamento é um desvio, vimo-lo bem nesta ma-
neira de utilizar Saussure em lhe dirigindo críticas radicais e na
atribuição que lhe é feita de um algoritmo do qual ignorou tudo.
Acrescentemos que a metáfora e a metonímia, tiradas de Jakob-
son, perderam sua característica de "aspectos" complementares

13. Cf., acima, p. 14.


124 O TÍTULO DA LETRA

da linguagem, cuja preponderância respectiva pode variar, de


acordo com os gêneros literários por exemplo, para vir a ser duas
entidades autônomas cuja associação constitui a lei da linguagem
como lei do desejo.
Sabemos que todo este tratamento visava a relacionar a
função lingüística com Freud - mas com um Freud decifrado ele
próprio em termos de lingüística. Círculo obscuro onde vimos
produzir-se a "articulação" ou a (in)articulação do texto de La-
can. Encontraremos de novo esta articulação, mas tão-somente
pelo longo desvio que aqui encetamos.
Por ora, de fato, podemos simplesmente constatar uma coisa:
não existe, propriamente falando, rigor lingüístico com que se
possa objetar Lacan. Assim como nem ele formula como lingüista
suas "críticas" a Saussure (que são, de preferência, aliás, desvios
ou escorregadelas indiferentes ao eventual alcance crítico delas),
não pode ele mesmo ser criticado pela lingüística. Ele a transcre-
veu por inteiro cm termos freudianos: esta transcrição é, pelo
menos até certo ponto, subtraída à autoridade lingüística. (Aqui
se confirma o que avançávamos: a estratégia furta-se, como tal, à
jurisdição crítica e oferece-se a um outro movimento, um movi-
mento que confirma e disjunge a uma só vez as operações es-
tratégicas.)
Extravasando a crítica, coloca-se, em compensação, uma
questão: por que, se bem que transcrita, a lingüística é mantida
pelo menos numa parte, que não é a menor, de seus conceitos e
de seu léxico? 14
É pelo fato de que, cm meio ao desvio e ao relativo embara-
lhamento dos conceitos que dele resulta, algo deve ser, de fato,
mantido, algo que pertence menos ao conteúdo da disciplina
lingüística do que aquilo que a fundamenta e a delimita, em sua
etapa saussuriana e nas etapas ulteriores que dela dependem fun-
damentalmente. Este "algo" poderia marcar-se, sem dúvida, de
muitas maneiras, recorrendo-se a diversos momentos do texto de

14. Ou, se se preferir, qual é, em Lacan, o estatuto de uma semelhante ma-


nutenção - sem dúvida inevitável em si mesmo? Desviar e manter: que relação
entretém este rodeio com o "suprimir e conservar" daAufhebung hegeliana? Es-
ta é uma outra forma da questão do sistema.
O SISTEMA E A COMBINAÇÃO 125

Lacan. Pode-se, porém, pelo menos, designar-se ali o elemento


sobre o qual, em duas retomadas, a teoria depositou uma deter-
minação essencial: a saber, o sujeito.
O aparelho lingüístico todo, com efeito, é desviado com o in-
tuito de re(produzir), e, quem sabe antes de qualquer outra coisa,
o desvio do enunciado para a enunciação. Neste desvio, o shifter
lingüístico vem abrigar a "matriz de combinações significantes"
que nela reduz o "sujeito" - isto é, ali se aloja também todo o
processo deste sujeito, se "toda a dialética do desejo e a pequena
rede de marcas que ela forma se cavam no intervalo do enuncia-
do e da enunciação", como o diz um texto que, não é, como se di-
ria, do próprio Lacan, mas figura neste volume que vem assinado,
"propriamente falando", só pelo nome de Lacan.IS
O shifter, simples propriedade notável na lingüística, é, pois,
desviado como desvio irremediável entre o enunciado - a ordem
das marcas das inscrições - e a enunciação, que é a impossível
identificação do sujeito que fala. De um lado, as marcas, as letras,
a literatura também, do outro, o inencontrável autor ou locutor.
Mas, nós o sabemos, este desvio é também o feito da letra que
disjunge a fala desde que ela o abre e que divide assim o sujeito
- ou que, em dividindo o sujeito, disjunge-lhe a fala.
De uma ou de outra maneira, este desvio vale, bem entendi-
do, pela relação com aquilo de que se está desviando ou com
aquilo que é esquartelado. Isto é, no lugar vivo de um sujeito pre- .
sente. Este sujeito impossível e este lugar inatribuível são a re-
ferência negativa do desvio literal - mas são também seu mo-
mento constituinte ou, por que não, o seu substrato. Eles são im-
possíveis, mas a ordem significante não é possível sem a "presen-
ça" deles no desvio que a (e que ele) cava.
Vê-se, pois, o que pôde ser retirado da lingüística, até em seu
desvio: aquilo mesmo de onde ela procede e que a faz sair de
prumo, o modelo do sujeito da consciência transparente para si
mesma em suas significações e do qual a lingüística explora tar-
diamente, de uma maneira científica, o reverso de linguagem já
de há muito reconhecido e interrogado - ou reduzido - pela fi-

1.5. Scilicet nº 2/3, "Pour une logique du fantasme", p. 238.


126 O TÍTULO DA LETRA

losofia. É este modelo que faz da lingüística saussuriana, entre


outras, uma lingüística da fala (e, portanto, da com uni cação).
O motivo filosófico da lingüística é, desta forma, transporta-
·do para dentro da lógica do significante. Ali, o sujeito cai num
buraco, mas este buraco, a fala - intacta, de alguma maneira
- desenha-lhe o contorno.
Desta forma pode - rapidamente - ser caracterizado o pri-
meiro momento da combinação estratégica. Realcemos, de pas-
sagem, aquilo que irá constituir, de alguma forma, a regra formal
das operações seguintes: a regra de um gesto duplo com relação
ao elemento desviado que, cada vez mais, acha-se destruído no
mesmo movimento.

A lingüística é, ainda, o objeto de um outro deslocamento.


Ela é combinada com um regime geral de cientificidade cujo esta-
tuto, até aqui, no entanto, não lhe foi reconhecido por nenhuma
epistemologia formada sobre o modelo das ciências exatas. Ora, é
pela formalização lógica e pela epistemologia bachelardiana, e
disso nos recordamos, que Saussure torna-se para Lacan o funda-
dor de uma "ciência no sentido moderno" (E. 497). A situação
aqui é complexa. De um lado, Saussure, que não produziu ne-
nhum algoritmo, permaneceu alheio a toda formalização no sen-
tido lógico. De outro lado, a epistemologia está bem longe de re-
meter exclusivamente, para toda ciência, ao "momento consti-
tuinte de um algoritmo". Rigorosamente falando, é tão-somente
o caso da lógica. Mas a epistemologia da lógica tem esta proprie-
dade de confundir-se com a própria lógica, precisamente na épo-
ca moderna desta última, na qual intitula-se "algorítmica" ou
"simbólica".
Pareceria, portanto, que Lacan, graças a estes deslocamentos
embutidos, instala sua ciência da letra no lugar da circularidade
onde a lógica não depende a não ser dela mesma. E é bem isto
que, com efeito, se passa, de certa forma, segundo a "lógica" des-
ta fundação científica. 16

16. Deixaremos de lado, aqui, o outro modelo, o da fundação de uma ciên-


cia experimental, para o qual Lacan deixa deslizar algumas indicações em seu
texto, quando fala da "experiência" analítica. Tais indicações mais conotadas que
O SISTEMA E A COMBINAÇÃO 127

Não se trata, efetivamente, de utilizar a lógica como instru-


mento - o que condenaria a ciência da letra, dada sua radicali-
dade, a repor todos os problemas que a lógica levanta quando,
para estabelecer-se como verdade, deve remeter para fora de si
mesma, abrindo a questão do "sentido do sentido" tal como os
diversos empirismos ou positivismos lógicos puderam formular e
tal como Lacan, precisamente, a recusa ( cf. E. 498).
Portanto, não se trata antes de identificar-se com a lógica em
sua autonormatividade naquele ponto em que, para tornar-se ela
mesma decidível, institui-se como ciência da lógica, de acordo
com o título de Hegel, ou, então, ela se produz como aquela ca-
racterística almejada por Leibniz, que deveria ser uma escrita
universal de "figuras significantes por si mesmas" 17• Em todos os
casos, o projeto fundamental é o mesmo e visa a reduzir o signo
(sua dualidade, sua opacidade). O ideal de uma língua pura, pa-
radoxalmente estranha ao jogo da significação, confunde-se com
aquele de um cálculo divino, que é a medida de uma
qxi:>V'l'Í cr11µ.avnx,í criadora do mundo e do próprio signo.
Sem dúvida, de sua parte, Lacan reconhecerá de preferência
esta lógica no fracasso de seu fechamento ou de sua decidibilida-
de "na não-saída do esforço para suturar (o sujeito da ciência)"
demonstrado pelo "último teorema de Gõdcl" 18• Sabe-se, no en-
tanto, que este teorema pode ser considerado - ou interpretado
- exatamente como a falha por onde a lógica, "carecendo" de
uma "marca" de sua completitude, deve converter esta falta em
recurso (ou em miséria...) metafísico. Ele seria a lógica metafísica
sob suas espécies modernas, pelo quanto fica entregue a uma tal
interpretação.19 Bem entendido, não temos que participar do de-

denotadas remeteriam a um desvio do conceito ciêntífico da experiência - mas


permancem vagas demais e conotam, muitas vezes, um apelo à autoridade empí-
rica da "experiência" para que haja espaço para ali deter-se mais tempo.
17. Nouveaux Essais, IV, 6.2. Será preciso relembrar que o primeiro (e úl-
timo) modelo da característica é umaArs combinatoria?
18. La science et la vérité, E. 861.
19. É um dos resultados da análise consagrada ao teorema de Gêidel em
Lacan por A Badiou, in "Marque et Manque: à propos du zéro" (Cahiers pour
l'analyse, n° 10). Nosso trabalho s6 se encontra com o de Badiou neste ponto -
128 O TÍTULO DA LETRA

bate aqui. Basta que esta interpretação a mais "clássica" e


aquela do próprio Gõdel, aliás - seja, também, a de Lacan, isto
é, que a lógica invocada por este último seja, no modo negativo; a
"ciência da lógica" mesma ou a "ciência" do abismo da lógica ou,
ainda, o cálculo divino de um deus ausente.
Contudo, esta lógica simplesmente não é levada em conta por
Lacan. Nele, o cálculo é exatamente o objeto do desvio mais veri-
ficado. É, com efeito, a seu propósito que Lacan pronuncia o
termo, em que nos temos apoiado, desvio:

Indicamos, com o risco de incorrer em alguma desgraça, até


onde pudemos iro~ o desvio do algoritmo matemático de nosso
uso: o símbolo V -1 20, ainda escrito na teoria dos números com-
plexos, justifica-se evidentemente só por não aspirar a automatismo
algum em seu emprego subseqüente.2l

Seguramente, pois - uma vez que ele o diz - a lógica de


Lacan não é t>éria:

O que se chama de lógica ou direito não é jamais nada mais


que um corpo de regras que foram laboriosamente ajustadas a um
momento da história ... Não esperarei nada, portanto, destas regras
que esteja fora da boa-fé do Outro e em desespero de causa não me
servirei disso, se eu o julgar bom ou se a isto me obrigarem, a não•
ser que seja para divertir a má-fé.22

e é por isso que as fórmulas de "congruência" que a "Instância"


dá para a metáfora e a metonímia devem ser tomadas, como todo
o processo algorítmico e todos os cálculos a que pode dar mar-
gem, entre o jogo e a finta, com o próprio Lacan proibindo que
nos apeguemos ao jogo.23

cuja pertinência vê-se, talvez assim, acentuada. Notemos, aliás, que o artigo de
Badiou pode ser lido como uma análise do discurso de Lacan inverso à nossa,
mas simétrica, sendo a prega desta simetria aquela que passa entre um questio-
namento feito à lógica (ou à ciência) e um questionamento feito ao texto.
20. Este símbolo acaba de designar o significado em sua relação com o (-1),
que já citamos, do significante de uma falta no outro ("raiz" metafórica ... ).
21. Subversion du sujet. E. 821.
22. La chose freudienne, E. 431.
23. Cf. Subversion du sujet, E. 819,821 e "Radiophonie", p. 68.
O SISTEMA E A COMBINAÇÃO 129

No entanto, esta determinação de uma espécie de paródia ló-


gica não é nem única nem unívoca. A princípio, as fórmulas de
Lacan variam e, como se pôde ver, toda a algoritmia da Instância
dedica-se, aparentemente, ao título da mais "séria" ciência. A se-
guir, mesmo que, por razões circunstanciais, a paródia estivesse
dissimulada aqui, seria preciso perguntar: não é justamente uma
"ciência" negativa "da lógica" que autoriza e chama sua paródia?
Uma ciência negativa, mas, pelo menos, uma ciência da lógica?

Não respondamos de imediato a esta questão. Consideremos


antes, como um terceiro momento estratégico, que o motivo da
ciência é, pelo menos, tomado "a sério" naquilo que a "reflexão
sobre as condições da ciência" (E. 516) produz, no seu "apogeu
histórico", mais uma vez, esta "função do sujeito" que está "no
ponto crucial de nosso problema" (id. ). É na fundação filosófica
da ciência - nos dois valores do genitivo - que é preciso parar
agora, isto é, no cogito de Descartes.
Reconhecemos que este cogito figurava, enquanto "aparência
filosófica" (id. ), "esta miragem que torna o homem moderno tão
seguro de ser ele mesmo" (E. 517). Ele é o Narciso resistente de-
senraizado pela subversão freudiana. Esta o faz visando a um fim
essencialmente ambíguo:
"Este fim é de reintegração e de acordo, direi que é de re-
conciliação" (E. 524): é assim que Lacan comenta o Wo es war,
sol/ lch werden de Freud. Porém, tal reconciliação deve-se fazer
no seio da "excentricidade radical de si para consigo mesmo com
a qual o homem é confrontado" (id. ). Este duplo estatuto da re-
conciliação comanda o duplo tratamento de Descartes.
Efetivamente, as "aparências filosóficas" não devem servir
para "iludir" o cogito. Longe de ser posto para fora do jogo, o su-
jeito regula o jogo:

Pois a noção de sujeito é indispensável ao manejo de uma ciên-


cia como a e11tratégia no sentido moderno, cujos cálculos excluem
qualquer "subjetivismo". (E. 516)

Se a substancialidade do cogito é recusada, Descartes, em


compensação, é mantido por dois traços: uma pontualidade do
sujeito e uma relação decisiva - e até decisória - com a ciência
130 O TÍTULO DA LETRA

enquanto cálculo. Há referência de Lacan ao Discurso de Descar-


tes; sabe-se, no entanto, que basta ler antes as Regulae'1A para des-
cobrir, no fundamentando do próprio cogito, um sujeito articula-
do pela e na matemática. É, portanto, de alguma maneira, o pró-
prio Descartes, a articulação essencial de seu discurso, quem é,
aqui, ao mesmo tempo excluído e repetido.
Mais curiosamente ainda - ou mais estrategicamente - é
repetido duas vezes: uma primeira vez no ego das resistências tal
que "Freud (o) fez entrar em sua doutrina" (E. 520) e uma outra
vez nos seus enunciados que compõem finalmente aquilo que La-
can chama de o "mistério de duas faces" (E. 518) do sujeito, que
nós já havíamos lembrado: "Eu não sou, lá onde eu sou o joguete
de meu pensamento; eu penso no que sou lá onde não penso pen-
sar". (E. 517-518)
Vê-se tratar-se, cm tais fórmulas, de enunciados que deslo-
cam ou desalojam o sujeito, mas que não deixam de ser enun-
ciações do eu e por meio das quais este eu conserva o domínio de
uma certeza que, malgrado seu conteúdo, não perde em nada pa-
ra aquela do "eu penso". O desvio do shifter atua aí, no final de
tudo, como uma espécie de confirmação do sujeito, aderindo à
sua própria certeza pela certeza de seu desvio de si mesmo.
A "excentricidade radical" deste sujeito deve, pois, ser com-
preendida de acordo com esta dupla relação com Descartes. Por
certo, o sujeito está descentralizado aí em relação ao círculo ou à
esfera da subjetividade - mas é também um excêntrico, isto é,
um "mecanismo concebido de tal forma que o eixo de rotação da
peça motriz não ocupe o centro" (Robert); portanto, apesar de
tudo, é de uma rotação que ele é o motor.

O sujeito é excentrado por seu desejo, ou: seu desejo não po-
de ser senão um processo excêntrico. Já dissemos que, com o de-
sejo, é Hegel que intervém no texto, ainda que anônimo.
Não chegaremos ao ponto de ler neste anonimato de Hegel
uma metaforicidade assassina do pai deste escrito. Questionaria-
mos, no entanto, se não é em razão de sua excessiva proximidade

24. Assim como o comentário geral do cogito, seja ele, neste ponto, de
Gueroult ou de Heidegger.
O SISTEMA E A COMBINAÇÃO 131

que seu nome deve ser calado, na medida em que, como se verá,
é com relação a ele que o duplo gesto estratégico assum~ a maior
amplitude. Compartilharia, então, este estatuto com Rousseau,
outro "nome" que insiste no texto e do qual será preciso voltar a
falar.
Seja como for, na medida em que é possível, e necessário, es-
clarecer o implícito da Instância, a respeito de Hegel, por meio de
outros textos de Lacan (e eles são numerosos; citaremos apenas
alguns25), pode-se pôr às claras ao menos isto:
É sempre em referência a Hegel que foi colocada a excentri-
cidade do sujeito lacaniano. Em outras palavras, é na "existência
em que se mede o gênio de Hegel, da identidade profunda do
particular ao universal" que "a psicanálise... contribui com seu
paradigma liberando a estrutura em que tal identidade se realiza
como disjunta do sujeito"26• Esta fórmula marca bem a dupla re-
lação com Hegel que está em jogo aqui. Ela é de fato construída
para apresentar o cumprimento exemplar, no interior do "sujei-
to" da psicanálise, da dialética hegeliana da consciência. Ao
mesmo tempo, aquilo que ela enuncia em seu termo - a dis-
junção do sujeito - é feito para quebrar esta dialética, ou, antes,
para suspender-lhe o curso antes de seu acabamento.

25. Seria preciso seguir a histórill das relações de Lacan com Hegel, deter-
minante, por certo, para um decifrar filosófico do discurso dos Escritos - e até
certa recusa enérgica demonstrada para com Jean Wahl que o havia qualificado
de hegeliano (Subversion du suje~ E. 804): o texto mereceria uma leitura atenta.
Se não é a oportunidade para fazê-la é, quem sabe, em compensação, o
momento de, pelo menos, marcar isto: pôde-se escrever: "Lacan... contenta-se
com reescrever Hegel e Freud, o que não merece tanto estardalhaço" (P. Trotig-
non, in l'.Arc n" 30, p. 30). Que "isto" não mereça estardalhaço, é mais que certo.
Mas que nada se passe numa "reescrita" ou que se passe ali nada mais que algo
simples é algo que está longe de ser tão evidente. Lacan não estaria a querer uma
leitura se isto não estivesse em jogo ali. Isto é, se não se colocasse ali a questão
também de saber o que acontece com os textos de Hegel, de Freud entre outros
(por onde, como podem passar, deslocar-se, ser contornados ou desviados), re-
conduzidos ao mesmo ou reinscritos alhures - e, também, em que medida, por
que vias, tais textos têm, ou não, programado tal ou qual leitura que hoje se pode
fazer etc.). '
26. Fonction et champ de la parole, E. 292.
132 O TÍTULO DA LETRA

De fato, o que Lacan recusa de Hegel é a totalização desta


"Aufhe bung logicizante"ZI, segundo a qual "a verdade está em
constante reabsorção naquilo que ela tem de perturbador" 28 e
onde, por conseguinte, "a infelicidade da consciência ... não é ain-
da senão a suspensão de um saber" 29 do saber absoluto que não
pode senão ser excluído para o sujeito do significante.
No entanto, como o demonstrava a primeira fórmula citada,
é da dialética hegeliana que é preciso partir. É ela que gera, na
Instância, o nó do "reconhecimento do desejo ao desejo do reco-
nhecimento" (E. 524), atribuído expressamente, há pouco, por
Lacan a seu autor.30 É a ela que é preciso, também, chegar ou,
antes, é nela que é necessário ficar, se "a dialética que sustenta
nossa experiência ... nos obriga a compreender o ego de ponta a
ponta no movimento de alienação progressiva onde se constitui a
consciência de si na fenomenologia de Hegel" 31 • A lei do processo
do sujeito formular-se-á sempre "literalmente" em termos hege-
lianos. Assim é que o texto intitulado "Subversão do sujeito
e dialética do desejo" será concluído com esta frase, que, pelo
menos num aspecto, explicita a sujeição do desejo à verdade que
surgia na (in)articulação de nosso texto: "A castração quer dizer
que é preciso que o gozo seja recusado para que ele possa ser
atingido na escala invertida da Lei do desejo"32•

Suspenda Freud a dialética ou leia-se Hegel como dialética


perpetuada, sem conclusão - é, como se pode ver, a mesma coi-
sa. Ou, mais exatamente, é um mesmo processo de alienação, de
negatividade, que não deve mais simplesmente (se podemos
dizê-lo) ser compreendido em referência ao Absoluto, mas ao
Outro.
É desta forma que a dialética pode atravessar a própria
Instância da letra. Ela qualifica ali a "apreensão" freudiana "da

27. Subversion du suje~ E. 795.


28. Jbid., 797.
29. lbid., 799.
30. Cf. Propos sur la causalité psychique, E. 181.
31. Introduction au commentaire de Jean Hyppolite, E. 374.
32. E. 827.
O SISTEMA E A COMBINAÇÃO 133

experiência" (E. 509) roçando com seu sentido aquele da "analíti-


ca lingüística" (id. ), ela dá às formações do inconsciente "seu
atrativo mais secreto" (E. 513), é, enfim, a "dialética do retorno"
de onde "Freud faz derivar todo acesso ao objeto" (E. 519). Se-
jam, ou não, estas ocorrências estritamente hegelianas (e como
determiná-lo, se Lacan se recusa ou se furta à exposição do con-
ceito?), vê-se que o significante hegeliano desloca-se dentro do
texto e que seu significado, se ele desliza, acaba sendo pontuado
na mediação três vezes repetida da página 524 que é rigorosa-
mente bem hegeliana, uma vez que esta "mediação psicanalítica"
é o feito do Outro "em posição de mediação em relação a meu
próprio desdobramento de mim mesmo" 33.
Sem dúvida, este ponto de basta desfaz-se a si próprio, pelo
menos neste outro significante que o acompanha e que é "a hete-
ronomia" das páginas 524 e 525. Este termo remeteria por sua
vez, bem próximo a ele, à "heterologia" de Bataille - por onde
introduzir-se-ia, como de viés, no texto de Lacan, sabe-se bem
qual repetição subversiva de Hegel.34 Aqui, como em todos os
pontos em que, em Lacan, intervém um impossível, a estratégia
de Bataille não seria estranha à da "letra". Apesar de tudo, falta a
manutenção, por Lacan, da mediação e de uma mediação sim-
plesmente colocada e admitida para que possamos extrair do tex-
to este nome mais escondido ainda que o de Hegel.
O fato de a mediação dialética ser retida - ou que se tenha
que lidar, neste texto, com uma certa manutenção dialética -
obriga, com efeito, a colocar esta questão: o "além" (E. 524) que
é o Outro é radicalmente um outro que o outro que se apresenta
no desejo hegeliano? Quando, em Hegel, a consciência descobre
que a supressão que ela deseja para sua satisfação implica em que
o "outro também deve ser", aparece-lhe isto: "É de fato um outro
que não a consciência de si que é a essência do desejo"35• E esta

33. É a partir daí que é preciso, sem dúvida, compreender "o imediato" do
inconsciente que é visado na página 518. Reporte-se à "certeza sensível" de He-
gel.
34. Não é por acaso, porém, que Bataille não tenha escolhido heteronomia,
assim como descartou heterodoxia em razão de seu apelo à ortodoxia (Cf. O.
C., p. 424, nº 12). Simples indício do que, sem dúvida, afastaria Lacan de Bataille.
35. Phénoménologie de l'esprit, trad. Hyppolite, I, pp. 152-153.
134 O TÍTULO DA LETRA

alteridade (que, bem entendido, deve-se cuidar de não interpretar


calcando-se em registro antropológico) comanda a estrutura, se
assim se pode dizer, do goro:

O desejo (Lust) chegado ao gozo tem a significação positiva de


ter-se tomado certeza de si mesmo como objetiva consciência de si;
mas tem também uma significação negativa, a de ser ele mesmo su-
primido... nesta experiência, a realidade efetivamente atingida da
consciência de si assiste a seu aniquilamento.36

Sem dúvida, uma vez que é preciso percorrer todos os des-


vios, ainda Lacan colocaria como objeção o saber absoluto que
deve acabar por levar este processo a seu termo. Mas não é preci-
samente uma fórmula hegeliana, e que não deixa de ter afinida-
des com o saber absoluto, aquela que, para concluir, ele dá à
ciência da letra, se "Freud, por sua descoberta, fez reentrar no in-
terior do círculo da ciência esta fronteira entre o objeto e o ser
que parecia marcar-lhe o limite"? (E. 527)
Deixemos que a fórmula comente a si mesma. O desvio de
Hegel por Lacan consiste, portanto, ao menos no início, em um
retorno a um discurso negativo da dialética do desejo (e, pois, do
saber). A dialética lacaniana regularia, desta forma, uma desa-
propriação constante do sujeito, sobre um fundo de ausência e de
divisão pelo Outro, lá onde a dialética hegeliana regra-lhe o pro-
cesso de apropriação sobre um fundo de presença e de redução
da alteridade. O fim desta dialética não deixa de ser, em Lacan,
"de reintegração e de acordo" (E. 524), como pudemos vê-lo. E o
princípio de seu movimento é bem aquele que, em Hegel, convém
a tal fim: a mediação e, portanto, a Aufhebung. Por fim, e quem
sabe acima de tudo, se este princípio permanece, em Lacan, afe-
tado por uma negatividade que parece recusar-se à conversão po-
sitiva da qual opera-se o progresso das figuras da consciência em
Hegel (ou se, mais brevemente, é de um processo de inconsciente
que se trata), uma tal determinação não poderá impedir, sabe-
mo-lo bem, que seja sempre possível e necessário perguntar se tal
discurso negativo já não está prescrito por Hegel e compreendido
por seu discurso - um discurso ao qual nenhuma negatividade

36. lbid., p. 299.


O SISTEMA E A COMBINAÇÃO 135

simples conseguiria subtrair-se, se for verdade que, na dialética


hegeliana, é ao contrário que foi decidido o estatuto discursivo da
negatividade.37
No entanto, Hegel não deixa, por sua vez, de ser menos ar-
rastado para fora de si mesmo. A mediação do Ou'tro desliza ao
contrato da fala (E. 524) e é com Rousseau, como foi dito, que
temos de lidar.
Quanto a Rousseau, pudemos ver que a dificuldade relativa à
anterioridade da língua era resolvida de imediato por Lacan. É
preciso acrescentar que, de uma só vez, o contrato vê-se fixado
numa posição de princípio ou de origem que corta, ela também,
com a oscilação permanente que retém o Contrato social entre o
projeto político e a idealidade fundadora. (Sabe-se que Rousseau,
no princípio do Contrato, confessa-se incapaz de descrever uma
história, isto é, para ele, uma origem.)
Se o motivo do contrato é uma maneira de questionar-se as-
sim - ou, pelo menos, deixar em suspenso - a simplicidade da
origem, é preciso, logo, dizer que Lacan oscila, também, entre
Rousseau relido desta forma (do qual, porém, não explicita traço
algum) e um rousseauismo enquanto contratualismo metafísico.
Ora, este contrato é a "convenção significante" (E. 525) - e
é, pois, na teoria do signo que se repete ainda o gesto que diz
respeito a Rousseau "A origem da língua", se se pode dizê-lo, re-
fere-se para Lacan ao "núcleo de nosso ser" (E. 526), que ele re-
toma de Freud e do qual "testemunha" (id.) a retórica do incons-
ciente. Esta retórica é primeira porque existe por detrás dela e
instituindo-a ou fundando-a enquanto retórica ou tr6pica, um pró-
prio que permanece inacessível: "isto... que faz meu ser" não é
"algo que possa ser objeto de um conhecimento" (id. ).
E assim é que a estratégia de Lacan chega a culminar numa
operação sobre a teoria metafísica do signo. Lembremo-nos de
sua epígrafe que metafori7.ava a língua recalcada como língua de

37. Poder-se-ia, aliás, espantar pelo fato de Lacan não ter recorrido à leitu-
ra de Hegel feita por Marx (nos Manuscritos de 1844) como um "processo sem
sujeito", leitura reativada hoje por diversos lados. Lacan vê bem demais que este
processo já é, por si só, o sujeito? Está ele, pelo contrário, fascinado a tal ponto
pelo sujeito que não vê o que dele retém quando busca desviar-se de Hegel?
136 O TÍTULO DA LETRA

crianças e de afetos. Citemos Rousseau: "É de crer-se, pois, que


as necessidades ditaram os primeiros gestos e as paixões arranca-
ram as primeiras vozes"38• O que a epígrafe de Lacan metaforiza
poderia bem ser também o texto de Rousseau.
Exceto, certamente, que o signo destruído por Lacan perdeu
seu referente, seu próprio. Ou, antes, sua propriedade tornou-se
aquela de só (se) referir a um buraco. Mas é a propriedade da
própria referência ou de seu princípio desarticulada por causa
disso? Nada de menos certo. Vê-se, ao contrário, que no desvio
do contratualismo, algo se deixa decifrar como um "rousseauis-
mo" invertido e, em lugar de um "Ensaio sobre a origem das lín-
guas", um "Tratado sobre a língua original (do) Outro"l!I.
Com esta última operação, podemos reunir os resultados de
todo este percurso, ao longo do qual, por empréstimos e deslizes
de uma instância científica ou filosófica à outra, Lacan produz a
combinação de sua letra. A relação ambígua da referência ao bu-
raco dá-lhe a estrutura:

Um sujeito no buraco, calculado por um deus desaparecido,


gira com uma rotação excêntrica que descreve o círculo de sua
ciência, isto é, de uma dialética negativa de seu desejo, selado pe-
lo contrato de uma fala que faz referência ao buraco - tal "é" a
combinação.

Tal é o dispositivo que dá "a medida" da "dignidade ontoló-


gica" (E. 513) que Freud (segundo Lacan) e, depois, o próprio
Lacan souberam dar, e em seguida conservar, a "este objeto" que
é a própria instância da letra no inconsciente.
E trata-se, com efeito, de uma ontologia, como se pode espe-
rar após ter visto a estratégia levantar tantos elementos para sua
combinação na história maior da ontologia metafísica: todos os
traços essenciais desta última estão marcados aqui, a ponto de

38. Essai sur /'origine des tangues, Ducros, p. 141.


39. O que não deixaria de melhor ser esclarecido se pudéssemos enfocar
aqui a teoria lacaniana do real, deste real impossível mas real, que é o que impor-
ta para o sujeito, para seu desejo e para a significância. Mas isto seria comentar
outros textos: por exemplo, Réponse au commentaire de Jean Hyppolite.
O SISTEMA E A COMBINAÇÃO 137

que a fórmula desenvolvida da combinação deveria ser a de uma


onto-teo-semio-logia.
Trata-se, por certo, de uma ontologia negativa. É um buraco
que lhe designa o centro - e ordena sua circunferência, este bu-
raco diante do qual é preciso "ter olhos" (E. 500). Mas o traçado
do buraco não deixa de ser o trajeto de uma ontologia, desta on-
tologia em que a letra à qual o "ser" falta, "desenha a borda do
buraco no saber", como o diz Lacan mesmo relembrando, preci-
samente, a Instância. 40
Uma ontologia aberta - e fundada, isto é, também necessa-
riamente fechada - para uma hiância que oculta seu fundo, mas
deixa cercar seu contorno; isto não deixa de ter exemplo - muito
pelo contrário - na tradição metafísica e, notadamente, sob a
forma de uma "teologia negativa". O efeito último da estratégia
lacaniana, pelo menos no que tem de estratégia do sistema e da
combinação, seria, desta forma, a repetição, surpreendente mas
rigorosa, da teologia negativa - isto é, também, daquilo que He-
gel, mais uma vez ele, repetia e já deslocava. 41 Mas com Hegel,
seria, pois, ainda, mais próximo de Bataille que nos veríamos pas-
sando. Exceto, precisamente, se devêssemos marcar que uma
ateologia lacaniana, conforme o processo, tal como acabamos de
segui-lo, de sua produção, reteria cm sua ambigüidade estratégica
o epíteto metafísico, e isso seria uma "ateologia negativa".
Se for necessário fazer a conta dos conceitos, a negação du-
plicada remete-nos a Hegel. E se se trata de ler, é preciso, então,
decifrar aquilo que distingue uma teologia negativa de uma "ateo-

40. "Lituraterre" in Littérature, nº 3, p. 5.


41. É isto, talvez, o que Lacan pôde chamar de Dio-logia, como uma disci-
plina distinta desta teologia que é a Theoria, seja esta "cristã" ou "atéia". Dio-lo-
gia, que designa precisamente a teologia negativa ou a mística: "quanto à Dio-lo-
gia ... na qual os Padres se escalonam desde Moisés até James Joyce, passando
por Mestre Eckart, parece-nos que é, mais uma vez, Freud quem lhe assinala da
melhor forma seu lugar" - e este encontra-se, em Lacan, em "uma teoria in-
cluindo uma falta que deve-se achar em todos os níveis" ("La méprise du sujet
supposé savoir", Scilicet, nº 1, pp. 39-40). Seria, então, preciso ler todo este texto
que designa, entre outros, "este lugar do Deus-Pai" na questão do "Nome-do-
Pai" (p. 39), ou seja, na questão cuja exposição Lacan, a partir de sua exclusão de
Sainte-Anne, quis diferir sine die em seus seminários.
138 O TÍTULO DA LETRA

logia" à moda de Bataille, que é uma diferença de escritas. Mas,


por algum tempo ainda, prendamo-nos à escrita discursiva do tex-
to deLacan.
Retornamos, portanto, daqui à dupla visada que abriria este
percurso. Vê-se que a estratégia de Lacan radicaliza o sistema.
Este não é somente o campo fechado, contornado de referência
que um esquema podia tentar representar; é, por uma combi-
nação que institui um fechamento mais secreto e mais fundamen-
tal (da qual depende a primeira), a repetição da exigência filosó-
fica ( da vontade ou do desejo filosóficos) mais determinante para
com o discurso: a aspiração ao sistema ou a imposição exercida
pela sistematicidade na medida em que elas expõem a petição de
um Logos inteiramente fundado e articulado por si ou na medida
em que exprimem a vontade do Si (mesmo que fosse este "ego"
cuja identidade não pára de abolir-se no imaginário e o desliza-
mento do significado) de apropriar-se de si como discurso.
De certa maneira, a dualidade que organiza toda esta es-
tratégia organiza-se a si própria neste desdobramento do discur-
so - que, portanto, faz-se também reduplicação do discurso da
metafísica - por meio de que a filosofia sempre quis ser seu pró-
prio conceito numa língua que lhe foi própria.
Aqui, este conceito é aquele do "ser". Mas esta língua é
aquela que institui a letra - língua esburacada que divide o ser,
língua que, quando lhe é preciso, para produzir-se, combinar os
termos principais de seu discurso, não consegue, nós o sabemos,
senão proferir-se numa (in)articulação. A (in)articulação é por-
tanto, também, o regime singular desta ontologia inédita que te-
mos acreditado poder (re)articular. E, por aí, o discurso metafísi-
co de Lacan relança-se logo para fora de si mesmo, fora do fe-
chamento ontológico no interior do qual, no entanto, inscreveu-se
rigorosamente. Pelo menos é tempo, agora, de levar em conta
aquilo por que um tal desejo é manifestado.
Pois a letra é aquela de Freud, isto é, de uma potência "sub-
versiva" (E. 517) a respeito da filosofia inteira, e o ser é aquele de
Heidegger, isto é, da empreitada de destruição (Destruktion: ou
seja, antes, segundo o valor deste termo em alemão: descons-
trução) da ontologia.
Resta, portanto, transbordar, ainda, ou deportar-se na di-
O SISTEMA E A COMBINAÇÃO 139

reção desse duplo exterior da ontologia. A menos que não se tra-


te, circularmente, de acabar a releitura de nosso esquema, afive-
lando-o nos nomes de Freud e de Heidegger - deixados, até
aqui, em suspenso?
A duplicidade se repete. A estratégia não acabou. Afinal, ela
não está, talvez, senão começando. Após tudo isto, nada disse-
mos, ainda, de sua verdade.
3
A VERDADE ''HOMOLOGADA''

... Não que se trate, agora, de estabelecer, sobre a estratégia


de Lacan, "toda a verdade". O projeto, em si mesmo, seria assaz
ingênuo; e mesmo que o acreditássemos realizável, seriam ne-
cessários no mínimo tais desvios no conjunto dos Escritos (ou
mesmo alhures) que ele excederia, de qualquer jeito, os limites
que traçamos para este trabalho.
Acontece, porém, e isto dito (ou redito), que, já por duas ve-
zes, nossa leitura, em acompanhando de mais perto a trama deste
texto, reconduziu-nos ao nome de Heidegger. Nada há aqui, de
resto, que seja forçado, uma vez que, se se reserva a subinscrição
enigmática que acontece como menção de origem e que lacra e
oculta (scelle/cele), na evidência um tanto quanto ostentadora de
seu segredo, o inominável do sentido\ o texto acaba e fecha-se,
de fato, numa página totalmente comandada, até em suas últimas

1. "T.t.1•.m.u.p.t. (Tu ty es mis un peu tard = tu te meteste nisto um pouco


tarde) 14-26, maio 1957" (E. 528) - esta cadeia de letras pontuadas estreita mais
justamente o processo pelo qual Lacan "aliviava" já a epígrafe de Function et
champ de la parole para "liberar a pureza de sua mensagem" numa paródia bár-
bara da língua (E. 237 e 299). Tanto aqui como lá, é preciso, quem sabe, enten-
der que o texto "escrito numa língua desconhecida" está "prestes a carregar-se
de significação" (E. 504), como no apólogo das duas crianças.
142 O TÍTULO DA LETRA

linhas, pela temática heideggeriana. Isto é, sabe-se bem, pela


questão da verdade, do ser da verdade e da verdade do ser.
É tempo, afinal, portanto, de interrogar mais precisamente
esta posição de Heidegger.

Pois trata-se, a princípio, de uma posição: pura evocação, se


assim se preferir, puro "apelo"; mas nada aparentemente que se
assemelhe a um uso, isto é, a uma leitura. De fato, apenas evoca-
do o filosofema heideggeriano o "homem no sendo" (E. 527), se
Lacan descarta toda e qualquer referência doutrinal àquilo a que
chama pejorativamente de "heideggerianismo", não é, contraria-
mente, ao que ele declara, ou nome de uma "reflexão" que deve-
ria (ou que poderia) de imediato encetar-se, mas simplesmente
colocar o nome de Heidegger, isto é, o próprio Heidegger, como
aquele de quem é preciso "falar", porque é ele que, de maneira
exemplar, fala:

Quando falo de Heidegger ou, melhor, quando o traduzo, es-


forço-me por não subtrair, à palavra que ele profere, sua significân-
cia soberana. (E. 528)

Verdade é que tal declaração refere-se tifo simplesmente à


tradução dada por Lacan no primeiro número de la Psychanalise
(1956) do texto de Heidegger intitulado Logos2• Pelo mais (e nes-
te lugar), elas mesmas, esta publicação e esta tradução, não são
indiferentes ou desprezíveis. Mas, acima de tudo, não é indiferen-
te - isto é o que de menos se pode dizer - que seja exatamente
esta significíincia que o texto procurará produzir em todo seu de-
correr, e da qual, liberada de repente em sua "soberania", se diga
pertencer à "fala" heideggeriana. Estranho deslocamento do te-
ma para um texto tutor. Dir-se-á ser, evidentemente, uma manei-
ra de não ler esta fala, de evitar ou recursar-se a lê-la (mas, aliás,
a fala pode ela ser lida?) 3• Poder-se-á igualmente dizer que existe

2. De quem poder-se-á ler, também, a tradução por André Préau em Essais


et Conférences (Gallimard, 1958).
3. Se verdade for que Heidegger não tenha sido lido na Instance ou que
não tenha, como se pretenderâ, dominado a escritura por um certo chamamento
deste mesmo texto logos. A decomposição significante da árvore (E. 504), na qual
A VERDADE "HOMOLOGADA" 143

alguma leviandade ( ou habilidade demais) em passar assim, de


maneira fulgurante, de um plano ao outro e em resolver "mila-
grosamente" toda dificuldade da significância numa invocação,
por mais pura que seja. Mas, se há, aqui, algo de um movimento
desse tipo, trata-se, de qualquer forma, de um remate, de uma so-
lução (onde páia e fixa-se toda a extensão diferida do texto), nada
impede que seja, também - pela última vez, sem dúvida, e como
se, paradoxalmente, se pudesse tocar-lhe o fundo - a necessária
repetição deste abísmamento que, como se viu, governa o texto
todo de Lacan em sua estrutura e em seus mais marcados efeitos.
Para este caso, o texto poderia bem apresentar-se, afinal de con-
tas, como a maquinação de um longo encadeamento metonímico
do qual Heidegger seria o último nome - e Logos a última pala-
vra ou, caso se prefira, apalavra-mestre.
Esta é, aliás, a razão pela qual não se deve esquecer de que
seja feita, aqui, referência ao texto Logos - e à sua tradução. Isto
é, de fato - mesmo que implicitamente ou por alusão - aos con-
ceitos de logos e de tradução. Pois a própria significância não é
estranha a nenhum dos dois: talvez só seja pensável, mais exata-
mente, a partir desta relação enigmática que logos, como tal,
sempre manteve com a idéia de tradução. É, sem dúvida, arrisca-
do pretender, sem mais precauções, que a questão do logos ( di-
gamos, sem delongas, do ser e do sentido ou do ser como senti-
do) tenha sido sempre compreendida numa economia geral da
troca, da equivalência, da adequação - numa espécie de sistema,
menos simples, aliás, do que parece, do traduzível e do intraduzí-
vel, da transparência e do obstáculo. Pode-se, no entanto, pelo
menos, relembrar, por ora, que é justamente esta questão da tra-
dução que perpassa, e como uma das questões fundamentais de
sua própria constituição, o conjunto do texto heideggeriano. Isto
não pode deixar-se implicar, por sua vez, na tradução de Logos

já entendemos, por assim dizer, a significância ultrapassar a barra, não se findava


ela numa vocação da "lenta maturação do ser no Ev Ii&v'Ta da linguagem",
fórmula na qual se pode reconhecer, de fato, um eco da tradução e do tratamen-
to heideggerianos de Heráclito ( cf. Essa is et conférences, em particular, pp.
226-271). Heidegger estava, quiçá, se é que se pode arriscar tal expressão, já es-
condido na átvore ...
144 O TÍTULO DA LETRA

por Lacan - ainda mais que Logos é, como se suspeita, um des-


ses textos ocupados totalmente por um (pelo) problema de ( da)
tradução. Ora, sabe-se que é exatamente este problema ( em sua
ambivalência) que obriga Heidegger a pulverizar, por um lado, a
tradução do termo mesmo ( e, aliás, em nome da palavra de
Heráclito que o porta e que efetivamente, de início, trata-se de
traduzir) e, por outro lado e acima de tudo, a neutralizar tal pul-
verização ou este estilhaçar-se, deixando simplesmente não tra-
duzido o termo. Conseqüentemente, quando "ele deixa à fala" de
Heidegger "sua significância soberana", Lacan preserva igual-
mente este suspenso da tradução; e, em traduzindo, é o intraduzí-
vel que ele traduz. Ou, pelo menos, é preciso supor, no final do
percurso, que a tradução erige definitivamente (absolutamente?)
como intraduzível o logos assim retomado do texto heideggeriano.
E é, aliás, para respeitar esta segunda ambivalência que falare-
mos, doravante, da (in)tradução de Heidegger.
Mas traduzir é, também, o trabalho que se tem de realizar
sobre Freud. Aliás, como se pode recordar, isto começa por tra-
duzir Traumdeutung por Significância do sonho (E. 510). É claro
que, aqui, traduzir quer dizer, a princípio, como no que diz res-
peito ao texto de Heidegger, traduzir do alemão. Sabe-se, no en-
tanto, que na inocência aparente ( ou relativa) do gesto residia, de
fato, toda a dificuldade do que pudemos chamar de a (in)articu-
lação do texto, e que resulta um dever traduzir, dentro da concei-
lualidade lingüística (ela mesma já trabalhada por Freud), o con-
junto da conceitualidade freudiana levada em consideração. Ora,
em sua cir.-:ularidade mesma, esta prática da tradução reproduz
efetivamente, mutatis mutandis, a prática heideggeriana da tra-
dução - por exemplo, se é preciso insistir, o "traduzir do grego
no grego" em ação em Logos (e alhures4) que precede, funda-

4. Encontrar-se-á também, entre outras, uma longa justificação "teórica"


(ou uma longa "meditação", a se escolher) na parte do curso Qu'appellet-on pen-
ser? consagrada a Parmênides. Assim, por exemplo, neste texto: "A questão que
se assenta sobre Aquilo que apela ao pensamento coloca em nossos ombros tra-
duções dos vocábulos Éov !fµµeva.L . Mas, há muito tempo, eles são traduzi-
dos pelo latim como ens e esse, por nosso étant e être, "sendo" e "ser"? Supér-
fluo, de fato, é traduzir Éov ɵµevcn em latim ou em nossa língua. É-nos
necessário, no entanto, traduzir finalmente estes termos gregos. Tal tradução não
A VERDADE "HOMOLOGADA" 145

menta e, ao final de tudo, torna impossível, como acabamos de


ver, a tradução do grego para o alemão. Pelo resto, na violência
feita por Lacan ao texto freudiano, no arbitrário aparente ou na
·liberdade do tratamento ao qual o submete, não há exagero em
reconhecer o jogo do próprio modelo heideggeriano. Na realida-
de, o que está em jogo ali é toda uma prática da leitura comanda-
da pelo motivo do impensado. Como Heidegger tenta decifrar o
impensado da filosofia, Lacan esforça-se por reparar em Saussure
e Freud (em alguns outros também) o impensado comum que
fundamenta a possibilidade de estabelecer relação entre eles. E
isto, com tanto mais disposição, sem dúvida - aqui, também, o
paradigma especular está atuante - em razão de não haver do
impensado ao inconsciente (ou do inconsciente ao impensado?),
se assim se pode dizê-lo, senão um passas.
O resultado muito simples ao qual se chega é que é preciso,
portanto, complicar ainda o dispositivo da (in)articulação. Intro-
duzir, entre Freud e Saussure, um terceiro "personagem" - para
não dizer, mais estritamente talvez, o Deus ex machina. E de tal
forma que a traduzibilidade recíproca de Freud e de Saussure as-
senta-se definitivamente sobre esta (in)tradução de Heidegger da
qual acabamos de falar.
Na posição de Heidegger pode-se, pois, reconhecer a última
repetição da (in)articulação, isto é, último efeito da queimadura6•
E é do buraco do texto assim queimado que se "profere", afinal, o
que doravante é preciso compreender como "a significância sobe-
rana". Voz de além-texto que não é, no entanto, inteiramente "a

é possível a não ser como Tra-dução para aquilo que sc·expressa e cm tais pala-
vras. Esta Tra-dução só dá certo através de um salto, um tipo de salto em que
aquilo salte aos olhos num instante - o que as paiavras ÊÔv lµµi;va.t. escu-
tadas como gregas querem dizer (Tradução Beckcr-Granel, P.U.F., 1960, p. 213).
5. Para que, no entanto, a analogia não seja aqui "esmagadora" faltaria
marcar bem suas diferenças: por exemplo, a recusa heideggeriana, sem apelo ao
nosso conhecimento, de ler Freud ou, mesmo, de ter qualquer consideração que
seja pela aparição e pela existência da psicanálise; inversamente, o acento que
Lacan coloca sobre os motivos epistemológico e científico em prejuízo da ontolo-
gia (explicitamente, pelo menos, ou, antes, oficialmente). Mas tais diferenças são
por demais visíveis e conhecidas demais para que nisso insistamos mais.
6. Cf. supra, pp. 79-80.
146 O TfTULO DA LETRA

voz de ninguém"; e senão a do próprio Deus ex machina ao me-


nos a do ponto... Mais seriamente, tudo isto equivale a dizer que
aquilo que temos acreditado poder retomar sob o conceito de
desvio é, pois, regido, de longe e do alto, pelo próprio Heidegger.
Ou, para ser mais preciso, equivale a dizer que é a operação mon-
tada sobre Heidegger que, a uma só vez, regula e desvia o próprio
desvio, uma vez que, no fundo, chega a reabsorver toda a dificul-
dade da traduzibilidade e, reduzindo-se à pura nominação do ges-
to heideggeriano, remete, pois, como que a uma espécie de língua
primeira garantindo todas as trocas - remete como que a esta
transparência - para-si, a esta presença sem sombra do próprio
logos designado por Heidegger. Em seu princípio, o desvio é,
pois, anulado: a resolução da tradução suprime qualquer possibi-
lidade de mensurar o afastamento de uma fraude desviante, de
uma infidelidade, sejam elas quais forem. Reina, sem restrição,
nada mais que o princípio de uma pura fidelidade na transparên-
cia e na in-diferença.
Aqui, porém, indiferença nada designa que possa parecer-se
com não sei que prática "anárquica" dos textos. Pelo contrário.
Trata-se, antes, de reservar rigorosamente, nesta invocação ao lo-
gos (e, iremos vê-lo, à verdade), a possibilidade, além-texto (e~
pois, também, além-sistema), de um tipo de "meio" de equivalên-
cia onde se suprime toda questão de tradução de Saussure para
Freud, de Freud para Hegel (ou para Rousseau ou Descartes), de
cada um dos nomes (ou, melhor, de cada um dos textos) para to-
dos os outros. E no "texto" mesmo, doravante, o além-texto, isto
é, a significância autoriza todas as operações. A estratégia, em
todo seu movimento, terá, pois, pelo fato de anular o desvio que
faz da lógica simbólica, conseguido reproduzir o ideal da lógica,
isto é, da üngua transparente de uma troca universal e sem resto.
Por isto é que tudo funciona e funciona perfeitamente.
Mas isto não é tudo. Freud, por sua vez, se dá além-texto; ou,
bem cobre, mais exatamente, urna operação também ela, nesta
última página, sem leitura propriamente falando - que permane-
ce na ordem ou no registro da simples designação. Imediatamen-
te após ter apelado a Heidegger, Lacan diz da mesma maneira -
mas, desta vez, para exceder qualquer relação com o texto de
Freud:
A VERDADE "HOMOLOGADA" 147

Se falo da letra e do ser, se distingo o outro e o Outro, é por-


que Freud nos indica como os termos em que se referem estes efei-
tos de resistência e de transferência pelos quais, de maneira desi-
gual, tive que me medir desde há vinte anos que exerço esta prática
- impossível, cada um se compraz em repetir após ele, da psicanáli-
se. (E. 528)

O além-texto é, portanto, aqui, a expenencia ou a prática


(analíticas). Mas que relação mantêm elas com o logos, a verda-
de? Por que introduzem aqui? Será preciso concluir que Heideg-
ger não desempenha o papel que acreditáramos poder atribuir-
lhe? Ou, então, este retorno de Freud (se ele complica, se acaba
ou, mesmo, se explica este dispositivo) deixa, no fundo, não-mu-
dada a posição de Heidegger?
Pôde-se observar (pelo menos duas vezes) que é em lugares
estratégicos bem precisos que a experiência foi invocada ( quando
seu motivo não serviu, como o observamos, para evocar um mo-
delo bem pouco preciso da cientificidade experimental) e invoca-
da para quebrar, com autoridade, a resistência de um texto. Na
primeira vez, tratava-se de contornar a difícil questão do recorte
simultâneo dos dois "reinos" do significante e do significado que
Saussure postulava no princípio do funcionamento da língua. E
era para introduzir a teoria do ponto de basta (E. 503)7. Na se-
gunda vez, era o caso de "subverter" a segurança da identidade-
para-si trazida até nós pelo cogito cartesiano e era, então, a empi-
ricidade do próprio desejo que acabava de romper esta "evidên-
cia" (E. 517) 8 • No texto da lingüística, como no da filosofia, a
erupção da experiência (e a experiência é aqui - sempre - o dese-
jo) se fez, cada vez, no mesmo ponto ou no mesmo momento
quando era preciso garantir a transposição da barra, isto é, de fa-
to, sabe-se bem, quando era necessário, para atravessar a barra
em a mantendo, produzir a própria significância.
Mas, se é assim, isto não pode querer dizer, agora, senão
uma coisa: como o logos (a verdade), a experiência (o desejo) é,
também ela (também ele), perfeitamente (in)traduzível, isto é,
imediatamente equivalente à sua pura proferição ou à sua pura

7. Cf. supra, pp. 52-53.


8. Cf. supra, p. 95.
148 O TÍTULO DA LETRA

enunciação. O desejo (freudiano) ocupa, por conseguinte, a


mesma posição que a verdade (heideggeriana): o além-texto é o
lugar (melhor, o não-lugar) onde se reúnem e compõem-se juntos
desejo e verdade. Duplo (in)traduzível que, no entanto, arti-
cula ao discurso de Lacan, porquanto, neste discurso, se "articu-
la", "fala" a verdadeira voz do desejo (ou a voz desejante da ver-
dade).
Vê-se, contudo, que este "aparelho" só pode funcionar sob a
condição não somente de supor, na invocação ao logos, a pro-
blemática da verdade e, no apelo à experiência, a questão do de-
sejo (o que é relativamente fácil), mas, ainda (e acima de tudo),
de identificar um com outro, desejo e verdade, e de ouvi-los falar
juntos (sem que a sua emissão sofra interferência) como a pró-
pria significância cuja liberação final fecha o texto e decide, re-
trospectivamente, sua economia de conjunto e a estrutura. Mas,
antes de poder afirmar de maneira tão categórica (ou sumária)
que o desejo e a verdade ( até que ponto, de fato, pode-se deduzir
a essência da posição, o conceito da estrutura?) seria, quem sabe,
bom escutar ainda um pouco esta voz do desejo. Pois acontece,
precisamente, que esta voz não fala. Ela não articula de verdade.
Ela grita. Isto, certamente, poderia ainda ouvir-se (senão, pro-
priamente, escutar-se). Ora, acontece ainda que este grito não
pode ouvir-se porque é, improferível, o grito do sintoma (E.
519)9 • A voz do desejo é, então, áfona. O desejo não fala, manifes-
ta-se. A partir disto, pode-se falar, então, do grito do sintoma?
Como podem juntar-se aqui o audível e o visível eco-incidir (sin-
toma obriga) "a voz e o fenômeno" 1º?

9. "É a verdade daquilo que este desejo tem sido em sua história que o su-
jeito grita por seu sintoma, como Cristo disse que as pedras o teriam feito se os
filhos de Israel não lhes tivessem emprestado sua voz."
10. Esta co-incidência faria, de fato, coincidir, paradoxalmente, a afonia do
desejo com a idealidade da voz pura, da foné e do fonema, tal como J. Derrida
pôde esclarecê-la em La voix et le phénomene - onde se pode ler, por exemplo,
isto aqui: "Sendo a idealidade do objeto apenas seu ser-para uma consciência
não-empírica, não pode ser expressa senão em um elemento cuja fenomenalidade
não tenha a forma da mundanidade. A voz é o nóme deste elemento. A voz se ouve.
Os signos fônicos (as imagens acústicas no sentido de Saussure, a voz fenome-
nológica) são ouvidos de parte do sujeito que os profere na proximidade absolu-
A VERDADE "HOMOLOGADA" 149

Conhecida é a resposta: o sintoma é uma metáfora: "metáfo-


ra em que a carne ou, então, a função são tomadas como elemen-
to significante" (E. 518). Mas esta resposta, na realidade, nos faz
regredir - para aquém do momento último em que se libera a
própria significância. A menor que se acrescente, como se faz nas
últimas linhas do texto, que "se o sintoma é uma metáfora, não é
uma metáfora senão por dizê-lo, também por dizer que o desejo
do homem é uma metonímia" (E. 528). Ou mesmo, bem mais,
que "o sintoma é uma metáfora, quer a si se queira ou não dizê-
lo, como o desejo é uma metonímia, mesmo que o homem escar-
neça disso" (id. ). Pois, neste verbo sublinhado ao qual, de um
golpe, retira-se todo seu poder metafórico (mais ainda que na
vantagem, no entanto necessária, dada aqui à metáfora sobre a
metonímia), pode-se ver aparecer, "o lampejo de um instante"
(E. 520), o próprio ser em sua pura e literal significância - isto é,
em sua verdade. Isto é o que, aliás, Lacan não deixa de destacar
imediatamente:

Como também, para que vos convide a vos indignardes que,


após tantos séculos de hipocrisia religiosa e de bazófia filosófica, na-
da tenha sido, ainda, validamente articulado daquilo que liga a metá-
fora à questão do ser e a metonímia à sua falta etc. (E. 528 - grifo
nosso).

Fórmula notável por seu desequilíbrio mesmo, pois se a me-


tonímia é ligada como tal à falta do ser, a questão do ser à qual
ela, a metáfora, está ligada, outra coisa não é, então, senão apre-
sença do ser - fosse ela aqui pensada, como se verá, na sua du-
plicidade fundamental (presença não simples, incluindo a falta,
assim como a metáfora domina, fundamenta e precede a me-
tonímia).

ta do presente deles. O sujeito não tem que passar por fora de si para ser imedia-
tamente afetado por sua atividade de expressão" (p. 85). Mas tal paradoxo está,
sem dúvida, prestes a resolver-se, como todo paradoxo, se se pensa na importân-
cia decisiva, até capital, no sentido próprio do termo, que a fala assume em todo
o dispositivo lacaniano - esta fala em que se decide tão bem, já se viu o privilé-
gio de um certo modelo lingüístico, o modo de exposição necessário para o dis-
curso "de formação" que Lacan mantém e, afinal, a verdade de que fala este dis-
curso e que é a verdade que "fala".
150 O TÍTULO DA LETRA

Conseqüentemente, na medida em que é pensado segundo a


oposição (não simples) da metáfora e da metonímia, o desejo é,
de fato, compreendido dentro de uma ontologia geral e pensado,
no fim das contas, segundo as oposições clássicas: ausência/pre-
sença, manifestação/recolhimento etc. Sem dúvida, o desejo não
é para ser pensado como a verdade. O desejo é a verdade ( da
mesma forma que o sintoma é a metáfora). Mas isto equivale,
mesmo assim, a dizer que, em última instância, é preciso referir o
desejo à verdade.
Esta é a razão pela qual, na realidade, Freud não ocupa exa-
tamente a mesma posição que Heidegger neste dispositivo final.
Se, como vimos, o princípio que regula no fundo este dispositivo
(e, por conseguinte, o texto inteiro) é aquele do abismamento,
nada de espantoso então - mas é particularmente revelador -
que, nesta mesma página, "a revolução imperceptível mas radi-
cal" de Freud seja dada como "o sintoma... de um novo questio-
namento do homem no sendo" (E. 527). Pois, se "o homem no
sendo" é filosofema heideggeriano (como o é, ainda no modo crí-
tico, a referência das últimas linhas ao "homem do humanismo"),
isto equivale simplesmente a dizer: Freud, sintoma de Heidegger.
Menos, por certo, naquilo que Freud designa ( ou permitiria de-
~ignar) em Heidegger o vestígio, o eco ou o trabalho do desejo,
mas porque a verdade heideggeriana permite, de fato, "decifrar"
(traduzir), em Freud, o sintoma como "língua" ou voz verdadeira,
fosse ela áfona, do desejo. E uma vez que não há, no fundo (isto
é, se se é fiel a Heidegger) 11 , funcionamento metafórico da metá-
fora, dizer que Freud é o sintoma (a metáfora) de Heidegger é
reconhecer, afinal, que Heidegger mesmo é, literalmente, a verda-
de de Freud ou, se se preferir, o próprio da letra freudiana.

11. Ou, mais precisamente, e para explicitar o mais brevemente possível es-
ta indicação, se se retêm antes de tudo (sendo fiel, desta vez, ao que Lacan dá a
entender por sua maneira de evocar Heidegger) nos textos de Heidegger tudo o
que põe seu empreendimento de releitura (por meio da "etimologia" da "tra-
dução" etc.) da língua filosófica "original", do grego, sob o signo de uma literali-
dade radical que se trata de entender de novo, antes que sob o signo de uma me-
taforicidade que seria preciso decifrar. Seria testemunha disto, entre tantos ou-
tros, precisamente o texto Logos.
A VERDADE "HOMOLOGADA" 151

Todo movimento que acabamos de percorrer concentra-se


pois, in extremis, na ponta de uma "palavra" sobre a metáfora -
sobre a impossibilidade que existe, quando é o caso do desejo (da
verdade), de tratar metaforicamente a metáfora. Isto é, também,
na tese da verdade heidêggeriana. E por aí, afinal, o texto se ata
em ponto de basta12•

Resta saber porém o que é, aqui, tal verdade. Não que seja
preciso perguntar-se se é, ou não, a verdade de Heidegger (ainda
que, se Heidegger serve para fundamentar a prática do desvio, es-
ta questão da fidelidade ao texto de Heidegger não seja indiferen-
te). Mas, antes, para compreender que tipo de leitura está impli-
cado aqui, isto é, sustenta silenciosamente este tipo de encanta-
mento final.
A esta questão poder-se-ia certamente propor uma resposta
brutal. Se podemos mostrar, de fato, que Heidegger domina, em
última instância (e dar-se-ão crédito de pensar que não empre-
gamos esta palavra por acaso), toda a estratégia de Lacan e se es-
ta estratégia consiste finalmente em uma "destruição" da ontolo-
gia do próprio signo (após e mediante uma reconstituição desvia-

12. O atado em ponto de basta do discurso que, desde então, faz sistema,
pelo viés da preferência outorgada (contra a diferença, em suma) à metáfora,
com a escolha do eixo paradigmático (vertical) da linguagem contra a linearidade
sintagmática - e, por conseguinte, com a referência fundamental à poesia - ou
o recurso, não menos fundamental, a um estilo poético (cf. supra, pp. 54-55 e 71).
A poesia é este desejo, ou esta vontade, de uma linguagem em ponto de basta. De
onde, ainda, o desvio final do desvio (isto é, seu re-tomo e sua anulação) que,
como se irá ver, corresponde ao movimento reapropriação que se inicia e se fun-
da aqui - e graças ao qual o deslizamento/conotatim que constitui o desvio que
se abate sobre uma pura denotação. Observar-se-á que um privilégio análogo é
outorgado por Heidegger à poesia. Análogo a não ser por esta diferença, no en-
tanto - e é aí, sem dúvida, que seria preciso levar em conta a "questão" do texlo
heideggeriano - é que Heidegger se recusa a, mesmo simplesmente, usar o ftlo-
sofema: metáfora (cf., por exemplo, Príncipe de raison, trad. Préau, Gallimard,
1962, p. 126): "O metafórico existe tão-somente no interior das fronteiras da me-
tafísica". Quanto a tudo isto, remetemos a Mythologie blanche de J. Derrida
(Poétique nº 5, 1971 - retomado em Marges de la philosophie, éd. de Minuit,
1972).
152 O TÍTULO DA LETRA

da ou desviante de todo sistema da ontologia), trata-se, então,


não só de uma leitura fiel, mas de uma leitura que vai até o ponto
de acompanhar, num de seus mais decisivos avanços, todo o em-
preendimento da "destruição" hcideggeriana da metafísica. Pelo
menos de um certo ponto de vista. E na medida em que, a princí-
pio, a estratégia heideggeriana implica, abertamente, na "des-
truição da sistemática do signo como tal (o que não pode dizer-se
sem tomar cuidado, sabe-se bem, tal o empenho com que o traba-
lho efetuado por Heidegger sobre a questão da linguágem evita o
ataque frontal da questão do signo). Pode-se, em todo o caso, ler
em toda a operação montada por Lacan sobre o signo saussuria-
no, uma operação dirigida contra a verdade determinada como
homoiosis ou adaequatio - e destinada a desfazê-la. Barrar o
signo equivale a barrar a adequação do significante ao significado,
isto é, de fato, como se viu, ao referente. É o que o apólogo das
duas crianças, apresentado, aliás, como "o vivido da verdade" (E.
500) ilustrava perfeitamente: porque se, apesar dos trilhos, uma
verdade (a verdade, aquela do buraco) podia apresentar-se, ela
não se apresentava segundo a lei da re-presentação, isto é, segun-
do a lei da inteligibilidade. Ora, esta verdade, em sua pura apre-
sentação - como apresentação ou, se se prefere, como presença
que se dá no movimento de furtar-se à representação - , que é
senão, de fato, a à.À,í8ELo. mesma, o velamento/desvelamento,
que Heidegger sempre oporá (ou quase sempre) àquilo que nada
mais é que uma determinação "tardia", de época, uma interpre-
tação (a respeito da qual sabe-se, aliás, que Platão é essencial-
mente o seu responsável)? Interpretação "homoiótica" da verda-
de que se fundamenta precisamente sobre uma consideração
"prévia" dos problemas colocados pela verdade do discurso (isto
é, pela mentira), sobre um encarar da alêtheia a partir da preocu-
pação com a "justeza da enunciação". 13

Isto é o que, pelo menos, se pode fazer Heidegger dizer - e


não sem motivos, é verdade, uma vez que um bom número de

13. Célebre tese cuja colocação em prática pode ser lida na leitura heideg-
geriana da alegoria da caverna ("La doctrine de Platon sur la vérité", in Ques-
tions II, Gallimard, 1968).
A VERDADE "HOMOLOGADA" I\ 1

textos parecem falar neste sentido. Mas isto tudo sob a condição,
também, de não cair em detalhes, de negligenciar a extrema
prudência de Heidegger e de passar por cima das hesitações ou
dos arrependimentos, as retratações mais ou menos explícitas que
pontuam o texto.
Pois o que este texto acaba dando a ler e mesmo (se é que o
aumentativo convém aqui, todavia) acaba por fazer claramente
ouvir no discurso é que a alêtheia, de um lado, nunca se reduz,
sem dúvida, à simples unidade do claro e da reserva do velamento
e do desvelamento etc.14 e, por outro lado, não é, também, aquilo
que um "acidente histórico determinado sobrevindo teria depor-
tado para a homoiosis. É, por outro lado, pelo fato de, como tal
(se isto pode ainda querer dizer algo aqui), a verdade (a alêtheia)
ter "sempre" sido captada na interpretação homoiótica - ou, pe-
lo menos, compreendida nesta interpretação - que ela é, de fato,
até nós, o impensado da filosofia (incluindo aí o pensamento gre-
go, pré-filosófico no sentido estrito, isto é, pré-platônico) e aquilo
a partir de que precisamente a desconstrução da ontologia15 pode
engajar-se na repetição da metafísica.
É bem por isto que, aliás, poder-se-ia dizer que, na leitura
que Lacan pratica de Freud, ele refere o inconsciente ao impen-
sado (assim definido) na exata medida com que refere o desejo à
verdade. No entanto, Lacan não segue Heidegger até este espa-
lhamento laborioso, mas sistemático, da oposição homoiosis/alê-
theia. Muito pelo contrário, ela o endurece - pois do rigor desta
posição depende, pelo menos para ele, a destruição do signo. Em
outras palavras, Lacan limita-se, se se prefere, à determinação (a

14. Não é o momento, aqui, para se fazer sua demonstração. Mas, ao me-
nos, pode-se indicar que, em se lendo de perto os textos mais "audaciosos" de
Heidegger, salta aos olhos, sempre, que entre o claro e a reserva, em (entre) sua
unidade, vem introduzir-se um traço suplementar, nomeadamente designado, por
exemplo, para remeter a um texto conhecido, na terceira parte de Origine de
l'oeuvre d'an: é a atração (Zug) da verdade em direção à obra que está "na
essência da verdade" (Chemins quine menent nulle pan, trad. Brockmeier, Gal-
limard, 1962, p. 49).
15. Far-se-á referência, entre outras, às "correções" feitas ao texto sobre
Platão que citávamos mais acima, na conferência intitulada: "La fin de la philo-
sophie et la tâche de la pensée (in Kierkegaard vivant, ldées/Gallimard, 1966).
154 O TfTULO DA LETRA

mais) simples da alêtheia: a unidade da diferença venda/não-ven-


da - isto é, igualmente, à determinação (a ma.is) dialética, no
sentido hegeliano, da verdade. Não é de espantar, então, no pro-
cesso final da literalização (da apresentação) de se ver a metáfo-
ra, porque ela se anula ao se redobrar, levar a melhor sobre a
metonímia. Não é de espantar, também, da mesma forma, que se
possa inscrever sobre o círculo do sistema duas "instâncias" da
verdade - uma que é a própria homoiosis que garante o contrato
(o Outro) e a segunda que é a alêtheia na presença-para-si da pu-
ra concordância da enunciação ("Eu, a verdade, eu falo ..."), isto
é, em sua presença além-da-linguagem. Sobretudo, não é de es-
pantar que se possa, aliás, ler em A carta roubada uma propo-
sição deste gênero:

Igualmente, quando nos abrimos para entender a maneira co-


mo Martin Heidegger nos descobre na palavra lx>,:r10,íc; o jogo
da verdade, nada mais fazemos que reencontrar um segredo no qual
esta sempre iniciou seus amantes e onde se asseguram que é, naquilo
que ela se oculta que se lhes oferece o mais verdadeiramente. (E. 21)

Em repetindo em si sua própria verdade, a alêtheia deixa-se,


pois, propriamente identificar como homoi'osis. O que vem a ser
coisa completamente diferente, vê-se bem, do que pensar (ou
produzir na borda extrema do pensamento) a alêtheia como não
tendo "nunca" escapado à determinação metafísica da homoi'osis.
Por conseguinte, é bem "ela mesma", a homoi'osis, a alêtheia ho-
moiótica, se se pode dizer assim, que terá de parte à parte gover-
nado a Instância da letra. No apólogo das duas crianças, é ela que
lhes consignara, ao irmão e à irmã, o justo lugar. É ela, também,
que, em instituindo o signo como algoritmo, inscrevia-o desta
forma no discurso da ciência. É por meio dela que a "verdade"
do discurso de Lacan - que enuncia ou que anuncia, através do
modelo lingüístico do shifter, o desvio irremediável do sujeito de
si mesmo - profere-se a si mesma (sem o saber?) em, como uma
perfeita adequação de seu enunciado à sua enunciação (" ... eu fa-
lo ...", e o próprio Lacan: "Se falo da letra e do ser... [E. 528))" 16,
É ela, por fim, que assegurava, apesar de tudo, a reapropriação

16. Cf. supra, pp. 65-66.


A VERDADE "HOMOLOGADA"

do sentido na metáfora, pois, se o feixe não é Booz, a almliçüo do


nome é literalmente o assassinato do pai. E o título da letra é hem
exatamente esta verdade.

Vê-se, talvez, daqui em diante, que tal reapropriação, só po-


deria, de fato, desconsertá-la, paradoxalmente, aquilo mesmo que
foi preciso inscrever à parte, fora do sistema: isto é, a
á>..,í8eux que, desde o texto de Heidegger, inquieta, corta ou
racha o discurso todo da metafísica.
Mas não é mais de verdade que se trata então. Impossível é,
sem dúvida, aliás, dizer ao certo do que se trata. Falaremos,
então, para encerrar, de texto - se exatamente o texto (é o que)
não se deixa compreender na economia da verdade. Nada que se
refira, pois, a este "texto" que, pelo sentido que Lacan lhe dá, ti-
vemos que qualificar como discurso. Mas o texto que, apesar de
todas as rupturas de sua enunciação, apesar dos desvios de sua
linguagem, das voltas de seu processo, o discurso de Lacan não
consegue juntar de novo - ou, antes, no qual jamais se perde.
Sem dúvida alguma, todo discurso é sempre, também, um texto.
Mas, como discurso, não pode "ser" este texto senão na medida
em que não pare de dizer do texto nele implicado: não quero
sabê-lo, se é que se pode permitir-se aqui demarcar o texto freu-
diano no discurso que agarramos (inevitavelmente) e ao qual es-
tamos (inevitavelmente) agarrados. E esta "denegação" não é
exatamente o que fecha o texto (o discurso) de Lacan sobre a
fórmula mesma da ontologia, isto é, sobre a identificação da
metáfora - o que nenhuma metonímia, se é verdade que aquilo
que se diz da metonímia não se diz, também, por metáfora, seria
capaz de reabrir sobre a "falta" do ser?

Que, no entanto, a retoricidade do retórico não possa negar-


se17, que a metaforicidade, em geral, deva ser deportada - que
nunca possa fixar-se ou ser detida - é bem isto que era indicado

17. Denegação que, aliás, retoma, muitas vezes, em Lacan: cf., por exem-
plo, E. 260, "Radiophonie" (Scilicet 2/3), p. 72.
156 O TÍTULO DA LETRA

no texto de Freud que, por esta razão, cremos poder pôr em epí-
grafe. Texto este que será preciso, também, por conseguinte, re-
ler ...

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