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Universidade Federal do Pará

Instituto de Letras e Comunicação


Faculdade de Letras

Sílvio Augusto de Oliveira Holanda (Org.)

LITERATURA PORTUGUESA
CLÁSSICA

Belém
2014
2

SUMÁRIO

PLANO DE CURSO..............................................................................................003
TEXTOS LITERÁRIOS E CRÍTICOS: UNIDADE I..................................... 008
T 01 HAUSER, Arnold — O conceito de Renascença................................................. 009
T 02 VICENTE, Gil — Auto da Barca do Inferno........................................................ 016
T 03 VICENTE, Gil — Pranto de Maria Parda.............................................................046
T 04 MENDES, Margarida Vieira — Maria Parda....................................................... 056

TEXTOS LITERÁRIOS E CRÍTICOS: UNIDADE II.................................... 069


T 05 MIRANDA, Francisco de Sá de — Obras Completas........................................... 069
T 06 FALCÃO, Cristóvão — Crisfal............................................................................. 071
T 07 MARQUES, Costa — Valor e aspectos literários da écloga “Crisfal”.................. 083
T 08 CAMÕES, Luís de — Obras Completas (redondilhas)......................................... 086
T 09 CAMÕES, Luís de — “Junto de um seco, fero e estéril monte” (canção)............ 090
T 10 CAMÕES, Luís de — Sonetos............................................................................... 093
T 11 CAMÕES, Luís de — Os Lusíadas........................................................................ 097
T 12 HOLANDA, Sílvio — O Maneirismo nas canções camonianas........................... 126
T 13 BERARDINELLI, Cleonice — Estudos Camonianos............................................138
T 14 COELHO, Jacinto do Prado — A «Ilha dos Amores»............................................143
T 15 CIDADE, Hernâni — A substância épica n’Os Lusíadas..................................... 148
T 16 FERREIRA, António — Poemas Lusitanos........................................................... 164

TEXTOS LITERÁRIOS E CRÍTICOS: UNIDADE III....................................165


T 17 RIBEIRO, Bernardim — Menina e Moça...............................................................165
T 18 BERNARDES, José Augusto Cardoso — A novelística sentimental.....................175
T 19 SARAIVA, José Hermano — Introdução a Menina e Moça.................................. 178

TEXTOS LITERÁRIOS E CRÍTICOS: UNIDADE IV.....................................180


T 20 CARVALHO, João S. de — Características gerais do Barroco português............ 180
T 21 HAUSER, Arnold — O conceito de Maneirismo...................................................189
T 22 VIEIRA, António — Sermão da Sexagésima......................................................... 194
T 23 BERNARDES, Manuel — Nova Floresta..............................................................210

TEXTOS LITERÁRIOS E CRÍTICOS: UNIDADE V..................................... 213


T 24 CRUZ, Agostinho da — Varias poezias do venerável padre Agostinho da Cruz...213
T 25 MELO, D. Francisco Manuel de — A tuba de Calíope...........................................216
T 26 OLIVEIRA, António Correia de — Ensaio crítico [Melo].................................. 219
T 27 LOBO, Francisco Rodrigues — Poesias.................................................................221
T 28 RAMOS, Feliciano — Rodrigues Lobo e a sua obra..........................................225
T 29 SILVEIRA, Francisco Maciel — Literatura Barroca (Fênix Renascida)..............227
T 30 CIDADE, Hernâni — O formalismo literário na «Fenix Renascida»......................228

TEXTOS LITERÁRIOS E CRÍTICOS: UNIDADE VI....................................237


T 31 BOCAGE, Manuel Maria Barbosa du. Sonetos.......................................................238
T 32 PONTES, Maria do Rosário — Bocage: da poesia como vida...............................255
T 33 CIDADE, Hernâni — Bocage.................................................................................260
T 34 ELÍSIO, Filinto — Poesias......................................................................................266
T 35 SILVA, António José da — Guerras do Alecrim e Mangerona..............................267
T 36 PEREIRA, Paulo Roberto — As comédias de Antônio José, o Judeu....................274
3

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ


INSTITUTO DE LETRAS E COMUNICAÇÃO
FACULDADE DE LETRAS
DISCIPLINA: LITERATURA PORTUGUESA CLÁSSICA
CÓDIGO: LA-01153 CARGA HORÁRIA: 68 h

PLANO DE CURSO

1. EMENTA

O Renascimento português: origens e características. O teatro de Gil Vicente. Poesia


épica e lírica de Camões: importância e influência. Principais representantes do Maneirismo e
do Barroco. O Neoclassicismo e suas repercussões na poesia, na oratória e no teatro.

2. COMPETÊNCIA BÁSICA

Competência(s) básica(s): analisar e interpretar textos literários; reconhecer as


principais características dos diversos estilos literários de cada período (Eixo: reflexão).

3. JUSTIFICATIVA

Este curso volta-se para o estudo dos gêneros literários cultivados na vigência dos
estilos renascentista, maneirista, barroco e neoclássico em Portugal, bem como para a análise
da situação histórico-literária em que tais estilos se desenvolveram.

4. OBJETIVOS

4.1. Levantar a bibliografia teórica sobre o Classicismo, o Maneirismo, o Barroco e o


Neoclassicismo;
4.2. Analisar e interpretar a obra teatral de Gil Vicente;
4.3. Analisar aspectos da narrativa em Bernardim Ribeiro;
4.4. Discutir os aspectos essenciais da poesia clássica com base na obra lírica e épica de
Camões;
4.5. Estudar as poesias maneirista e barroca em Portugal;
4.6. Confrontar o Neoclassicismo e o Pré-Romantismo em Bocage.

5. ESTRATÉGIAS DE ENSINO

5.1. Aulas expositivas


5.2. Discussão de textos
5.3. Seminários e debates

6. CONTEÚDO PROGRAMÁTICO

6.1. O teatro de Gil Vicente: origens e características.


6.2. Classicismo — Poesia: Sá de Miranda, Cristóvão Falcão, Luís de Camões e Antônio
Ferreira.
6.3. Classicismo — Prosa: a novela sentimental de Bernardim Ribeiro.
6.4. Barroco e Maneirismo — Prosa: Padre Manuel Bernardes e Padre Antônio Vieira
4

6.5. Barroco e Maneirismo — Poesia: Agostinho da Cruz, Francisco Manuel de Melo,


Francisco Rodrigues Lobo, a Fênix Renascida e o Postilhão de Apolo.
6.6. Neoclassicismo: Filinto Elísio, Manuel Maria Barbosa du Bocage, Antônio José da Silva.
6.7. Classicismo, Barroco, Maneirismo e Neoclassicismo no ensino de Literatura Portuguesa.

7. CRITÉRIOS DE AVALIAÇÃO

Frequência (no mínimo 75%), provas escritas e participação em seminários.

8. BIBLIOGRAFIA

8.1. Textos teórico-críticos e historiográficos

1. ABDALLA JUNIOR, Benjamin, PASCHOALIN, Maria Aparecida. História Social


da Literatura Portuguesa. 3. ed. São Paulo: Ática, 1990. 240 p.
2. AMADO, Teresa. Menina e Moça de Bernardim Ribeiro. 2. ed. Lisboa: Comunicação,
1994. 273 p.
3. AMORA, Antônio Soares (dir.). Presença da Literatura Portuguesa. 3. ed. São Paulo:
DIFEL, 1974. 5 v.
4. BERARDINELLI, Cleonice. Estudos Camonianos. Ed. rev. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira / Cátedra Pe. Antônio Vieira, 2000. 329 p.
5. BUESCU, Maria Leonor Carvalhão. Literatura Portuguesa Clássica. Lisboa:
Universidade Aberta, 1992. 245 p.
6. CAMPOS, Agostinho de (org.). Camões lírico — Canções. Lisboa: Bertrand, [19--].
315 p.
7. CARVALHO, João Soares et alii. História da Literatura Portuguesa: Renascimento e
Maneirismo. Lisboa: Alfa, 2001. v. 2, 656 p.
8. _______. História da Literatura Portuguesa: da Época Barroca ao Pré-Romantismo.
Lisboa: Alfa, 2002. v. 3, 552 p.
9. CARVALHO, Joaquim Barradas de. O Renascimento Português: em busca de sua
especificidade. Lisboa: IN-CM, 1980. 66 p.
10. CIDADE, Hernâni. Lições de Literatura Portuguesa. 6. ed. Coimbra: Coimbra, 1975.
v. 1, 550 p.
11. _______. Luís de Camões: o épico. Lisboa: Presença, 1985. 194 p.
12. _______. Luís de Camões: o lírico. 3. ed. Lisboa: Presença, 1992. 308 p.
13. COELHO, Jacinto do Prado. O Velho do Restelo e as contradicções camonianas. In:
Camões e Pessoa, poetas da utopia. Lisboa: Europa-América, 1983. p. 69-76.
14. COHEN, Rip. A estrutura formal das Trovas de Chrisfal: epistemologia do sonho ou
cantiga de Is-ão?. Revista Colóquio/Letras, Lisboa, n. 135/136, p. 71-82, jan. 1995.
15. FIGUEIREDO, Fidelino. História da Literatura Clássica. São Paulo: Anchieta, 1946.
3 v.
16. _______, Fidelino. História da Literatura Portuguesa. 3. ed. São Paulo: Nacional,
1966. 540 p.
17. FREIRE, Anselmo Braamcamp. Vida e obras de Gil Vicente. 2. ed. Lisboa: Revista
Ocidente, 1944. 632 p.
18. GUINSBURG, J. (org.). Classicismo. São Paulo: Perspectiva, 1999. 489 p.
19. HATZFELD, Helmut. Estudios sobre el Barroco. 2. ed. Madrid: Gredos, 1973. 561 p.
20. HAUSER, Arnold. Maneirismo: a crise da Renascença e o surgimento da arte
moderna. Trad. Magda França. São Paulo: Perspectiva/Ed. da Universidade de São Paulo,
1976. 463 p.
5

21. _______. História Social da Arte e da Literatura. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo:
Martins Fontes, 1995. 1032 p.
22. HOCKE, Gustav R. Maneirismo: o mundo como labirinto. Trad. Clemente Raphael
Mahl. São Paulo: Perspectiva/Ed. da Universidade de São Paulo, 1974. 337 p.
23. HOLANDA, Sílvio. O Maneirismo nas canções camonianas. In: CONGRESSO
INTERNACIONAL DE ESTUDOS CAMONIANOS, 1, Rio de Janeiro, 1997. Anais... Rio de
Janeiro: UERJ/SBLL, 1999. p. 449-472.
24. LOURENÇO, Eduardo. Poesia e metafísica: Camões, Antero, Pessoa. Lisboa: Sá da
Costa, 1983. 261 p.
25. MACEDO, Hélder. A «Menina e Moça» e o problema do seu significado. Colóquio /
Letras. Lisboa, n. 8, p. 21-31, jul. 1972.
26. MOISÉS, Carlos Felipe. Bocage e o século XVIII. Colóquio/Letras. Lisboa, n. 50, p.
35-42, jul. 1979.
27. MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. 24. ed. São Paulo: Cultrix, 1988. 387 p.
28. MONGELLI, Lênia Márcia. A estética da ilustração. São Paulo: Atlas, 1992. 160 p.
29. _______. Poesia Arcádica. São Paulo: Global, 1986. 133 p.
30. MOREIRA, Zenóbia Collares. A Poesia Maneirista Portuguesa. Natal: EDUFRN,
1999. 188 p.
31. RAMOS, Feliciano. História da Literatura Portuguesa. 6. ed. Braga: Livraria Cruz,
1963. 924 p.
32. SARAIVA, António José. Para a história da cultura em Portugal. 4. ed. Lisboa:
Europa-América, 1972. 2 v.
33. _______. O discurso engenhoso no Sermão da Sexagésima. In: O discurso engenhoso.
Trad. Tereza de Araújo Penna. São Paulo: Perspectiva, 1980. p. 113-124.
34. SARAIVA, António José, LOPES, Óscar. História da Literatura Portuguesa. 15. ed.
Porto: Porto, 1989. 1263 p.
35. _______. Ensaio sobre a poesia de Bernardim Ribeiro. Lisboa: Gradiva, 1990. 144 p.
36. SENA, Jorge de. Uma canção de Camões. Lisboa: Portugália, 1966. 561 p.
37. _______. Trinta Anos de Camões. Lisboa: Edições 70, 1980. 2 v.
38. SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Maneirismo e Barroco na Poesia Lírica
Portuguesa. Coimbra: Centro de Estudos Românicos, 1971. 594 p.
39. SILVEIRA, Francisco Maciel; MONGELLI, Lênia; CUNHA, Maria Helena Ribeiro.
Classicismo, Barroco e Arcadismo. São Paulo: Atlas, 1993. v. 2, 283 p.
40. SILVEIRA, Francisco Maciel. Literatura Barroca. São Paulo: Global, 1987. 170 p.
41. _______. Poesia clássica. São Paulo: Global, 1988. 141 p.
42. SIMÕES, João Gaspar. História da Poesia Portuguesa. Lisboa: Empresa Nacional de
Publicidade, 1955-1959. 3 v.
43. SPINA, Segismundo. Introdução. In: MELO, Francisco Manuel de. A tuba de Calíope.
São Paulo: Brasiliense/EDUSP, 1988. p. 22-62.
44. TEYSSIER, Paul. Gil Vicente: o autor e a obra. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua
Portuguesa, 1982. 177 p.
45. VASCONCELOS, Carolina Michaëlis de. Notas Vicentinas. Lisboa: Império, 1949.
600 p.
46. VIEIRA, Yara Frateschi. Emblema, alegoria e história no episódio da Ilha dos
Amores. Revista Camoniana, São Paulo, n. 4, p. 93-109, 1981.

8.2. Textos literários fundamentais

47. BOCAGE, Manuel Maria Barbosa du. Obras. Porto: Lello & Irmão, 1968. 2050 p.
48. _______. Opera Omnia. Lisboa: Bertrand, 1969-1973. 6 v.
6

49. CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas; ed. org. por Emanuel Paulo Ramos. Porto: Porto,
1985. 642 p.
50. _______. Os Lusíadas; edição organizada por António José Saraiva. Porto:
Figueirinhas, 1978. 558 p.
51. _______. Obra Completa; organização por Antônio Salgado Júnior. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 1988. 1029 p.
52. _______. Obras Completas; prefácio e notas de Hernâni Cidade. Lisboa: Sá da Costa,
1946-1947. 5 v.
53. _______. Lírica Completa; prefácio e notas de Maria de Lurdes Saraiva. Lisboa: IN-
CM, 1981. 600 p.
54. _______. Sonetos; introdução, fixação do texto, comentário e notas de Maria de
Lourdes e José Hermano Saraiva. Lisboa: Europa-América, [19--]. 283 p.
55. FALCÃO, Cristóvão. Crisfal. In: SILVEIRA, Sousa (ed.) da. Textos Quinhentistas.
Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945. p. 59-142.
56. FERREIRA, António. Poemas Lusitanos. Lisboa: Sá da Costa, 1939-1940. 2 v.
57. LOBO, Francisco Rodrigues. Poesias. Lisboa: Sá da Costa, 1940. 191 p.
58. _______. Pastorais e éclogas. Porto: Educação Nacional, 1942. 332 p.
59. MELO, Francisco Manuel de. A tuba de Calíope. São Paulo: Brasiliense/EDUSP,
1988. 253 p.
60. PÉCORA, Alcir (org.). Poesia seiscentista. São Paulo: Hedra, 2002. 302 p.
61. PEREIRA, Paulo Roberto (org.). As comédias de Antônio José, o Judeu. São Paulo:
Martins Fontes, 2007. 429 p.
62. RIBEIRO, Bernardim. Menina e Moça. Lisboa: Sá da Costa, 1949. 335 p.
63. SILVA, António José da. Obras Completas; prefácio e notas do Prof. José Pereira
Tavares. Lisboa: Sá da Costa, 1958. 3 v.
64. SPINA, Segismundo; SANTILLI, Maria Aparecida. Apresentação da poesia barroca
portuguesa. Assis: FFCL, 1967. 404 p.
65. VICENTE, Gil. Obras Completas; ed. de Marques Braga. Lisboa: Sá da Costa, 1942-
1944. 6 v.
66. _______. Obras Completas / coordenação do texto, introdução, notas e glossário de
Álvaro Júlio da Costa Pimpão. Porto: Civilização, 1962. 602 p.
67. _______. Obras Completas. Porto: Lello & Irmão, 1965. 1468 p.
68. _______. Antologia do teatro de Gil Vicente / seleção, introdução, notas e glossários
por Cleonice Berardinelli. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Brasília: INL, 1984. 446 p.
69. _______. Obras de Gil Vicente / direcção científica de José Camões. Lisboa: IN-CM,
2002. 5 v.

8.3. Obras de consulta

70. COELHO, Jacinto do Prado (dir.). Dicionário de Literatura. 3. ed. Porto:


Figueirinhas, 1979. 3 v.
71. DICIONÁRIO Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. 2922 p.
72. SILVA, Antonio de Morais. Diccionario da lingua portugueza. Rio de Janeiro:
Typographia Fluminense, 1922. 2 v. fac-similar.
73. SILVA, Inocêncio Francisco da [1810-1876]. Diccionario bibliographico portuguez.
Lisboa: Imp. Nac.-Casa da Moeda, 1973. 24 v. fac-similar.

8.4. Textos eletrônicos disponíveis na Biblioteca Nacional Digital (www.bn.pt)


7

74. BAHIA, Jeronymo et alii. A Fenis Renascida ou obras poeticas dos melhores
engenhos portuguezes [...] publica-o Mathias Pereyra da Sylva. Lisboa Occidental: Officina
de Antonio Pedrozo Galrão, 1716-1728. 5 v.
75. BERNARDES, Diogo (c. 1530-1596). Varias rimas ao Bom Jesus, e a Virgem
gloriosa sua mãy, & a sanctos particulares [...]. Lisboa: Antonio Alvarez, 1622. 91 f.
76. BERNARDES, Manuel (1644-1710). Nova Floresta ou Sylva de varios apophtegmas
e ditos sentenciosos espirituais, e moraes [...]. Lisboa: Officina de Valentim da Costa
Deslandes, Impressor de Sua Magestade, 1706-1728. 5 v.
77. BOCAGE. Obras Poéticas. Porto: Imprensa Portuguesa, 1875. 7 v.
78. CAMÕES, Luís de. Rimas / de Luis de Camoens: segunda parte. Lisboa: Officina de
Pedro Crasbeeck, 1616. 40 f.
79. _______. Os Lusiadas. Lisboa: em casa de Antonio Gõçaluez, 1572. [2], 186 f.
80. FALCÃO, Cristóvão. Primeira, e segunda parte de Crisfal. Lisboa: por Antonio
Alvarez, 1639. [12] f. il.
81. MIRANDA, Francisco de Sá de. As obras do doutor Francisco de Saa de Miranda.
Lisboa: Antonio Leite, 1677. 346 p.
82. _______. Poesias de Francisco de Sá de Miranda / ed. de Carolina Michaëlis de
Vasconcelos. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, imp. 1989. 949 p.
83. RIBEIRO, Bernardim. Hystoria de menina e moça. Ferrara: [Abramo Usque], 1554.
lrrr f.
84. VICENTE, Gil. Copilacam de todalas obras de Gil Vicente. Lixboa: em casa de Ioam
Aluarez, 1562. CCXLIX f. il.
85. VIEIRA, António. Sermoens. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1682-1699. 7 v.

8.5. Banco de dados

www.ipn.pt/literatura [Projeto Vercial]


www.archive.org
www.instituto-camoes.pt/cvc/literatura
www.bibvirt.futuro.usp.br/acervo/literatura/autores
www.bn.pt [Cf. BND = Biblioteca Nacional Digital]

8.6. Iconografia virtual

www.artchive.com
www.wga.hu

9. CRONOGRAMA DE ATIVIDADES

AULA DATA TEXTO(S) CONTEÚDO / ATIVIDADES


01 ___/___/ 12 T1 Apresentação do curso. O conceito de Renascença.
02 ___/___/ 12 T2 O teatro de Gil Vicente I: Auto da Barca do Inferno.
03 ___/___/ 12 T2 O teatro de Gil Vicente II: Auto da Barca do Inferno.
04 ___/___/ 12 T3 e T4 O teatro de Gil Vicente III: Pranto de Maria Parda.
05 ___/___/ 12 T5 e T6 A poesia clássica: Sá de Miranda e Cristóvão Falcão.
06 ___/___/ 12 T6 e T7 A poesia clássica: Cristóvão Falcão.
07 ___/___/ 12 T8 O lirismo camoniano: redondilhas.
08 ___/___/ 12 T9 O lirismo camoniano: as canções.
8

09 ___/___/ 12 T10 O lirismo camoniano: sonetos.


10 ___/___/ 12 T11 A épica camoniana. Lusíadas, I, 1-19.
11 ___/___/ 12 T11 A épica camoniana. Lusíadas, III, 118-135.
12 ___/___/ 12 T1 e T11 Primeira avaliação.
13 ___/___/ 12 T11 A épica camoniana. Lusíadas, IV, 38-60.
14 ___/___/ 12 T11 A épica camoniana. Lusíadas, IX, 51-95.
15 ___/___/ 12 T11 A épica camoniana. Lusíadas, X, 144-156.
16 ___/___/ 12 T12-15 Os estudos camonianos.
17 ___/___/ 12 T12-15 e 16 Os estudos camonianos. Antônio Ferreira.
18 ___/___/ 12 T17 A novela bernadiana: Menina e Moça.
19 ___/___/ 12 T17-19 A novela bernadiana: Menina e Moça. Estudos.
20 ___/___/ 12 T20 e T21 Estéticas barroca e maneirista.
21 ___/___/ 12 T22 e T23 O Barroco português: Vieira e Bernardes.
22 ___/___/ 12 T22 e T23 O Barroco português: Vieira e Bernardes.
23 ___/___/ 12 T24-T26 D. Francisco Manuel de Melo e Agostinho da Cruz.
24 ___/___/ 12 T27-30 Rodrigues Lobo. Cancioneiros barrocos.
25 ___/___/ 12 T12-T30 Segunda avaliação
26 ___/___/ 12 T29-30 Cancioneiros barrocos.
27 ___/___/ 12 T31 Poesia árcade e neoclássica I: Bocage.
26 ___/___/ 12 T31 e T32 Poesia árcade e neoclássica II: Bocage. Estudo.
27 ___/___/ 12 T31-36 Poesia árcade e neoclássica: Filinto Elísio. O teatro de
Antônio José da Silva.
28 ___/___/ 12 Seminários I1. Entrega de artigo.
29 ___/___/ 12 Seminários II.
30 ___/___/ 12 Seminários III. Encerramento e avaliação. Entrega de
conceitos e provas.

UNIDADE I. O TEATRO DE GIL VICENTE: ORIGENS E CARACTERÍSTICAS:


T1 a T4

OBJETIVOS

Ao final desta unidade, você deverá ser capaz de:

a) definir o conceito de Renascimento sob diversas perspectivas;


b) perceber até que ponto é fluido o conceito de “Renascença”, segundo a perspectiva de
Hauser (1995);
c) ler obras teatrais de Gil Vicente, segundo uma perspectiva crítico-interpretativa;
d) verificar uma tipologia possível das peças vicentinas;
e) examinar aspectos fundamentais das edições quinhentistas de Gil Vicente;
f) ler duas obras selecionadas de Gil Vicente: o Auto da Barca do Inferno e o Pranto de
Maria Parda;
g) discutir a figuração da velhice e da morte no Pranto de Maria Parda, de acordo com a
proposta analítica de Mendes (1988).
1
Cada grupo é responsável por três questões. Cada componente explica uma alternativa. No caso dos grupos de
6 membros, o sexto participante apresenta o comando sozinho e faz a conclusão. São os seguintes os critérios de
avaliação: a) organização e integração do grupo; b) expressividade verbal; c) uso de linguagem acadêmica
adequada; d) uso do tempo; e) estímulo à interação; f) interpretação do texto literário; g) conclusão.
9

INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS

RAMOS, Feliciano. Gil Vicente e o teatro do Renascimento. In: História da Literatura


Portuguesa. 6. ed. Braga: Livraria Cruz, 1963. p. 217-241.
TEYSSIER, Paul. Gil Vicente: o autor e a obra. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua
Portuguesa, 1982. 177 p.
Texto HAUSER, Arnold. O conceito de Renascença. In: História Social da Arte e da
1 Literatura. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 273-285.2

1. [273] A melhor maneira de perceber o que há de arbitrário na usual distinção entre a


Idade Média e a Idade Moderna, e até que ponto é fluido o conceito de “Renascença”, está na
dificuldade em atribuir a uma ou outra dessas categorias personalidades tais como Petrarca e
Boccaccio, Gentile da Fabriano e Pisanello [1395-1455], Jean Fouquet e Jan van Eyck. Se se
quiser, poder-se-á até considerar Dante e Giotto pertencentes à Renascença, Shakespeare e
Molière à Idade Média. Em todo o caso, a idéia de que o verdadeiro ponto de mutação só
ocorreu no século XVIII e de que a era moderna começa realmente com o Iluminismo, com a
idéia de progresso e com a industrialização, não deve ser rejeitada facilmente 3. Mas talvez
seja preferível situar a linha divisória crucial entre a primeira e a segunda metade da Idade
Média, ou seja, no final do século XII, quando a economia monetária é ressuscitada, novas
cidades surgem e a moderna classe média adquire pela primeira vez características que a
distinguem; seria inteiramente errado situá-la no século XV, no qual, é verdade, ocorreu a
realização de muitas coisas mas absolutamente nada de novo começou. Nossa concepção
naturalista e científica do mundo é, por certo, em seus aspectos essenciais, uma criação da
Renascença, mas foi o nominalismo medieval que primeiro inspirou a nova direção de
pensamento em que essa concepção do mundo tem origem. O interesse no objeto individual, a
busca do direito natural, o sentimento de fidelidade à natureza na arte e na literatura nada
disso, de maneira nenhuma, principiou [274] so|mente com a Renascença. O naturalismo do
século XV é meramente a continuação do naturalismo do período gótico, no qual a concepção
individual de coisas individuais já começa a ser claramente manifesta. E se aqueles que
entoam louvores à Renascença afirmam ver nas tendências espontâneas, progressistas e
personalistas da Idade Média um anúncio ou uma protoforma da Renascença, se para
Burckhardt [1818-1897] ]até as canções dos eruditos errantes são proto-renascentistas, e se
Walter Pater vê uma expressão do espírito da Renascença numa criação tão estritamente
medieval quanto o chante-fable Aucassin e Nicolette [chante-fable: conto medieval de
aventuras], então essa concepção apenas projeta mais luz sobre o mesmo estado de coisas, a
mesma continuidade entre a Idade Média e a Renascença, mas do ângulo oposto.
2. Ao descrever a Renascença, Burckhardt deu a maior ênfase ao naturalismo do
período e representou a passagem para a realidade empírica, “a descoberta do mundo e do
homem”, como o fator mais fundamental do “renascimento”. Ao proceder assim, Burckhardt,
como a grande maioria de seus sucessores, não viu que o que era novo na arte da Renascença
não era o naturalismo per se, mas tão-somente o caráter científico, metódico e totalitário do
naturalismo, e que o que significava um avanço em relação às concepções medievais não era a
observação e análise da realidade, mas apenas a deliberação consciente e a consistência com
que os critérios de realidade eram registrados e analisados — que, em suma, o fato
2
Cf. o original: HAUSER, Arnold. Der Begriff der Renaissance. In: Sozialgeschichte der Kunst und Literatur
[História Social da Arte e da Literatura]. München: C. H. Beck, 1973. p. 281-294. Para fins didáticos de
enumeração, as citações serão consideradas parte do parágrafo que as antecede. Manteve-se a grafia original.
3
Cf. J. HUIZINGA: “Das Problem der Renaissance” [O problema da Renascença]. In: Wege der
Kulturgeschichte [Caminhos da História da Cultura], 1930, pp. 134 ss. — G. M. TREVELYAN: English Social
History [História Social da Inglaterra], 1944, p. 97.
10

verdadeiramente notável a respeito da Renascença não era o artista ter-se tornado um


observador da natureza, mas o de ter-se a obra de arte convertido num “estudo da natureza”.
O naturalismo do período gótico principiou quando a pintura e a escultura deixaram de ser
exclusivamente símbolos e começaram a adquirir intenção e valor como meras reproduções
das coisas deste mundo, independentemente de sua conexão com a realidade transcendental.
As esculturas de Chartres e Reims, por mais óbvias que sejam suas relações sobrenaturais,
diferem da arte do período românico em virtude de sua finalidade imanente, a qual é separável
de seu significado metafísico. Por outro lado, a verdadeira mudança suscitada pela Renas-
cença é que o simbolismo metafísico perde vigor, e o [275] obje|tivo do artista está limitado,
de modo cada vez mais decidido e consciente, à representação do mundo empírico. Quanto
mais a sociedade e a vida econômica se emancipam dos grilhões do dogma eclesiástico, mais
livremente a arte se volta para a consideração da realidade imediata; mas o naturalismo é uma
criação da Renascença tanto quanto o é a economia aquisitiva.
3. A descoberta da natureza pela Renascença foi uma invenção do liberalismo do século
XIX, que colocou o deleite renascentista na natureza em contraste com a Idade Média, a fim
de desferir um golpe na filosofia romântica da história. Pois, quando Burckhardt diz que a
“descoberta do mundo e do homem” foi uma realização da Renascença, sua tese é, ao mesmo
tempo, um ataque à reação romântica e uma tentativa de repelir a propaganda destinada à
difusão da idéia romântica de cultura medieval. A doutrina do naturalismo espontâneo da
Renascença provém da mesma fonte que a teoria segundo a qual o combate contra o espírito
de autoridade e hierarquia, o ideal de liberdade de pensamento e de liberdade de consciência,
a emancipação do indivíduo como cidadão e o princípio de democracia são outras tantas
realizações do século XV. Em tudo isso, a luz da Idade Moderna é contrastada com as trevas
da Idade Média.
4. A ligação entre o conceito de Renascença e a ideologia do liberalismo é ainda mais
impressionante na obra de Michelet, criador do slogan da “découverte du monde et de
l’homme” [descoberta do mundo e do homem]4, do que na de Burckhardt. Até o modo como
escolhe seus heróis e reúne Rabelais, Montaigne, Shakespeare e Cervantes com Colombo,
Copérnico, Lutero e Calvino5, sua caracterização de Brunelleschi, por exemplo, como o
destruidor do gótico, e sua concepção da Renascença em geral como o começo de um
desenvolvimento que asseguraria finalmente a vitória da idéia de liberdade e de razão,
mostram que o principal interesse da sua análise consiste no estabelecimento da genealogia do
liberalismo. Está empenhado na mesma luta contra o clericalismo e o autoritarismo intelectual
que tornaram os filósofos do Iluminismo setecentista conscientes de sua oposição à Idade
Média e de sua afinidade com a Renascença.
5. [276] Para Bayle (Dictionnaire historique et critique [Dicionário histórico e crítico],
IV), assim como para Voltaire (Essai sur les mœurs et l’esprit des nations [Ensaio sobre os
costumes e o espírito das nações], cap. 121), o caráter irreligioso da Renascença era um
prejulgamento, e a Renascença manteve-se onerada com essa característica até os nossos dias,
embora fosse, na realidade, meramente anticlerical, antiescolástica e antiascética, mas em
nenhum sentido cética. As idéias sobre salvação, o outro mundo, redenção e pecado original,
que encheram totalmente a vida espiritual do homem medievo, tornaram-se, é certo, meras
“idéias secundárias”6, mas a ausência de todo sentimento religioso na Renascença não tem o
menor fundamento. Pois se, como observa Ernst Walser, “procurarmos investigar a vida e o
pensamento das principais personalidades do Quattrocento [século XV], um Coluccio
Salutati, Poggio Bracciolini, Leonardo Bruni, Lorenzo Valla, Lorenzo o Magnífico ou Luigi
Pulci, de maneira indutiva, então o resultado será sempre que, por muito estranho que pareça,

4
JULES MICHELET: Histoire de la France [História da França], VII, 1855, p. 6.
5
Cf. ADOLF PHILIPPI: Der Begriff der Renaissance [O conceito de Renascença], 1912, p. 111.
6
ERNST TROELTSCH: “Renaissance und Reformation” [Renascença e Reforma]. Hist. Zeitschrift [Revista
Histórica], 1913, vol. 110, p. 530.
11

as características estabelecidas de ceticismo são inteiramente inaplicáveis a eles...” 7 A


Renascença nem mesmo era tão hostil à autoridade quanto asseveraram o Iluminismo e o
liberalismo. Os clérigos eram atacados, mas a Igreja como instituição era poupada, e quando
sua autoridade diminuiu foi substituída pela da Antiguidade clássica.
6. O radicalismo da concepção racionalista de Renascença no século XVIII foi
acentuadamente intensificado pelo espírito da luta pela liberdade em meados do século
passado8. A luta contra a reação renovou nas repúblicas italianas a lembrança da Renascença e
sugeriu a idéia de ligar o esplendor de sua cultura à emancipação de seus cidadãos9. Na
França, foi o jornalismo antinapoleônico, na Itália o jornalismo anticlerical que ajudaram a
dar um apuro final e a propagar a concepção liberal da Renascença10, e tanto os historiadores
liberais de classe média quanto os historiadores socialistas aderiram a essa concepção. Mesmo
hoje, a Renascença ainda é celebrada por ambos os campos como a grande guerra de
libertação da Razão e como o triunfo do individualismo 11, ao passo que, na realidade, a idéia
de “livre pesquisa” não foi uma realização da Renascença 12, nem a idéia de personalidade
absolutamente estranha à Idade Média; o individualismo da Renascença era [277] no|vo
somente como programa consciente, como uma arma e um grito de guerra, não como um
fenômeno em si.
7. Em sua definição da Renascença, Burckhardt combina a idéia de individualismo com
a de sensualismo, a idéia da autodeterminação da personalidade com a ênfase sobre o protesto
contra o ascetismo medieval, a glorificação da natureza com a proclamação do evangelho da
alegria de viver e a “emancipação da carne”. Dessa associação de idéias nasceu, em parte sob
a influência do imoralismo romântico de Heine e como antecipação do culto do herói amoral
de Nietzsche13, a bem conhecida imagem da Renascença como uma era de brutos
inescrupulosos e epicuros — uma imagem cujas características libertinas talvez não estejam
diretamente relacionadas com a concepção liberal da Renascença, mas que seria inconcebível
sem a tendência liberal e a abordagem individualista do século XIX. O mal-estar com o
mundo de moralidade classe-média e a revolta contra ela produziram o exuberante paganismo
que tentou encontrar um substituto para prazeres fora do seu alcance descrevendo os excessos
da Renascença. Nesse quadro, o condottiere [chefe], com sua demoníaca luxúria e
desenfreada ânsia de poder, era a figura estereotipada do pecador irresistível, que cometeu,
como que por procuração, todas as monstruosidades evocadas nos devaneios da classe média
a respeito de uma vida feliz. Pergunta-se, justificadamente, se esse brutamontes infame, tal
como foi descrito nas histórias da moral renascentista, terá alguma vez existido na realidade, e
se esse “tirano perverso” foi algo mais do que o resultado de lembranças derivadas da leitura
clássica dos humanistas14.
8. A concepção sensualista da Renascença baseia-se mais na psicologia do século XIX
do que na da própria Renascença. O esteticismo do movimento romântico foi muito mais do
que um culto do artista e da arte; levou a uma reavaliação de todas as grandes questões da
7
ERNST WALSER: “Studien zur Weltanschauung der Renaissance” [Estudos sobre a cosmovisão
renascentista]. In: Gesammelte Studien zur Geistesgeschichte der Renaissance [Estudos reunidos sobre a história
espiritual da Renascença], 1932, p. 102.
8
Cf. KARL BORINSKI: “Der Streit um die Renaissance und die Entstehungsgeschichte der hist.
Beziehungsbegriffe Renaissance und Mittelalter” [A discussão sobre a Renascença e a história da origem do do
conceito de relação histórica entre a Renascença e a Idade Média], Sitzungsbericbte der Bayr. Akad. d. Wiss.
[Relatório da seção da Academia de Ciências de Bayreuth], 1919, pp. 1 ss.
9
KARL BRANDI: “Die Renaissance” [A Renascença]. In: Propylaen-Weltgeschichte, IV, 1932, p. 160.
10
WERNER KÄGI: “Über die Renaissanceforschung Ernst Walsers” in: ERNST WALSER, Gesammelte
Studien [Estudos reunidos], 1932, p. XXVIII.
11
Assim, por exemplo, em GEORGES RENARD: Histoire du travail à Florence [História do trabalho em
Florença], II, 1914, p. 219.
12
E. WALSER, op. cit., p. 188.
13
Sobre as relações de Nietzsche com Heinse ver WALTER BRECHT: Heinse und der ästhetische
Immoralismus [Heinse e o imoralismo estético], 1911, p. 62.
14
W. KÄGI, loc. cit., p. XLI.
12

vida, de acordo com padrões estéticos. Toda a realidade se converteu no substrato de uma
experiência artística, e a própria vida numa obra de arte, na qual todo e qualquer elemento era
meramente um estímulo dos sentidos. Essa filosofia estética caracterizou os pretensos tiranos
pecadores e vilãos da Renascença como grandes figuras [278] pito|rescas — os protagonistas
adequados para o colorido background da época. A geração que, ébria de beleza e desejosa de
disfarce, queria morrer com “folhas de videira nos cabelos” estava mais do que disposta a
exaltar a época histórica que se vestia de ouro e púrpura, que convertia a vida num
deslumbrante festim, e na qual, como essa geração desejava acreditar, até o povo mais simples
se deleitava com entusiasmo na apreciação das mais requintadas obras de arte. É claro que a
realidade histórica não se harmonizava com o sonho do esteta nem com o retrato do super-
homem na forma de tirano. A Renascença foi prática e implacável, objetiva e nada romântica;
também a esse respeito não foi muito diferente do final da Idade Média.
9. As características da concepção individualista-liberal e sensualista da Renascença
aplicam-se somente em parte à Renascença real, e se lhe aplicam quase na mesma medida em
que também se ajustam ao final da Idade Média. Quanto a isso, a fronteira parece ser mais
geográfica e nacional do que puramente histórica. Nos casos problemáticos como, por
exemplo, no de Pisanello ou dos van Eycks — atribuir-se-á [sic], via de regra, os fenômenos
meridionais à Renascença e os fenômenos nórdicos à Idade Média. As espaçosas
representações da arte italiana, com as figuras movimentando-se livremente e a unidade
espacial das composições, parecem renascentistas no caráter, ao passo que a impressão
causada pelos espaços confinados da antiga pintura holandesa, com suas figuras tímidas um
tanto desgraciosas, seus acessórios laboriosamente reunidos e sua delicada técnica
miniaturista, é inteiramente medieval. Ainda, porém, que se esteja preparado para conceder
certa relevância aos fatores constantes da evolução, em particular o caráter racial e nacional
dos grupos que dão a contribuição decisiva para a cultura da época, não se deve esquecer que,
na medida em que se aceita a validade de tais fatores, está-se renunciando assim à função do
historiador e deve-se lutar por adiar para o mais tarde possível essa abdicação. Pois resulta
usualmente que os fatores supostamente constantes na evolução são o mero desfecho de
estágios no desenvolvimento histórico ou substitutos prematuros para condições históricas até
[279] então inexploradas mas inteiramente exploráveis. Seja como for, o caráter individual de
raças e nações tem significado diferente em diferentes épocas da história. Na Idade Média,
isso dificilmente fazia alguma diferença; nessa época, o grande coletivo da cristandade tem
um grau de realidade incomparavelmente maior do que as individualidades nacionais
separadas. No final da Idade Média, entretanto, o lugar do sistema feudal ocidental universal e
da cavalaria internacional, da Igreja universal e sua cultura uniforme, é tomado pela classe
média nacionalmente e civicamente patriota (com suas formas econômicas e sociais sujeitas
às condições locais), pelas esferas estreitamente confinadas do interesse das cidades e regiões
rurais, pelo particularismo dos principados territoriais e pela variedade de línguas nacionais.
Os elementos nacionais e raciais ganham agora com mais força o primeiro plano do quadro
como fatores diferenciadores, e a Renascença parece ser a forma particular em que o espírito
nacional italiano se emancipa da cultura européia universal.
10. A mais impressionante característica da arte do Quattrocento e, em contraste com a
da Idade Média e a da Europa setentrional, a extraordinária liberdade e ausência de esforço de
expressão, a graça e elegância, o peso estatuesco e a grande, impetuosa linha de suas formas.
Tudo é aí brilhante e sereno, rítmico e melodioso. A solenidade hirta e comedida da arte
medieval desaparece e dá lugar a um idioma formal vívido, claro, bem-articulado, em
comparação com o qual até a arte franco-borgonhesa da época parece ter “um ar sombrio de
fundamental melancolia, um esplendor bárbaro e formas bizarras e sobrecarregadas” 15. Com
essa aguda percepção para relações importantes e simples, para limitação e ordem, para

15
HUIZINGA: The Waning of the Middle Ages [O outono da Idade Média], 1924, p. 298. [Edição brasileira:
HUIZINGA, Johann. O outono da Idade Média. Trad. Francis Janssen. São Paulo: Cosac Naify, 2010. 656 p.]
13

formas monumentais e estruturas firmes, o Quattrocento antecipa, apesar da ocasional


aspereza e de um ludismo freqüentemente incontrolado, os princípios estilísticos da Alta
Renascença. E é precisamente a imanência do elemento “clássico” nessa arte pré-clássica o
que distingue mais incisivamente o estilo do começo da Renascença italiana da arte medieval
tardia e da arte da Europa setentrional contemporânea. O “estilo ideal”, que liga Giotto com
Rafael, domina a arte de [280] Masac|cio e Donatello, Andrea del Castagno e Piero della
Francesca, Signorelli e Perugino; provavelmente nem um só artista italiano do início da
Renascença escapa inteiramente a essa influência. O elemento básico nessa concepção da arte
é o princípio de uniformidade e o poder do efeito total, ou, pelo menos, a tendência para a
uniformidade e o empenho em produzir uma impressão total, apesar da abundância de detalhe
e cor. Vista ao lado de criações artísticas da Idade Média tardia, uma obra da Renascença
sempre parece ser um todo inteiro e perfeito, e, por mais rico que seja seu conteúdo,
fundamentalmente simples e homogênea.
11. A forma básica da arte gótica é a justaposição. Quer a obra individual seja composta
de numerosas partes relativamente independentes ou não seja analisável em tais partes, quer
seja uma representação pictórica ou plástica, épica ou dramática, é sempre dominada pelo
princípio de expansão e não de concentração, de coordenação e não de subordinação, da
seqüência aberta e não da forma geométrica fechada. O observador é, por assim dizer, levado
a percorrer as várias etapas e estações de uma jornada, e o quadro de realidade que ela revela
é como uma vista panorâmica geral, não uma representação unilateral e unificada, dominada
por uma só perspectiva, um único ponto de vista. Em pintura, é o método “contínuo” que é
favorecido; a dramaturgia esforça-se por fazer os episódios tão completos quanto possível e
prefere, em vez da concentração da ação em meia dúzia de situações decisivas, as freqüentes
mudanças de cena, de personagens e de motivos. A coisa importante na arte gótica não é o
ponto de vista subjetivo, não a vontade criativa, formativa, expressa no total domínio do
material, mas o próprio material temático, do qual artistas e público nunca podem ver o
bastante. A arte gótica leva o espectador de detalhe em detalhe, e faz com que ele, como foi
muito bem expresso, “deslinde” as sucessivas partes da obra, uma após outra; a arte da
Renascença, por outro lado, não lhe permite que se demore em qualquer detalhe, que separe
qualquer elemento da composição total, forçando-o, ao contrário, a apreender todas as partes
de uma única vez16. Tal como a perspectiva central em pintura, a cena espacial e [281]
temporalmente concentrada no teatro torna possível realizar essa simultaneidade de visão. A
mudança que ocorre na concepção de espaço, e portanto em toda a concepção de arte, talvez
se expresse de modo mais flagrante no fato de que o cenário do palco, baseado em ambientes
separados e desligados entre si, é subitamente sentido como incompatível com a ilusão
artística17. A Idade Média, que concebia o espaço como algo sintético e analisável, permitia
não só que as diferentes cenas de uma representação teatral fossem montadas a par umas das
outras, mas também que os atores permanecessem no palco mesmo quando não estavam
participando na ação. Pois, assim como o público simplesmente não dava a menor atenção ao
cenário diante do qual não estava acontecendo nada, tampouco reparava naqueles atores que
não estivessem envolvidos na cena representada. Para a Renascença, tal atenção dividida
parece impossível de justificar. A mudança de perspectiva foi expressa com suma clareza por
Scaliger, que acha francamente absurdo que “os personagens nunca deixem o palco e que
aqueles que estão silenciosos sejam considerados ausentes” 18. Para a nova concepção de arte,
a obra forma uma unidade indivisível; o espectador quer estar apto a abranger toda a extensão
do palco num único relance de olhos, tal como abarca todo o espaço de uma pintura
organizada de acordo com os princípios da perspectiva central com uma única olhada 19. Mas o
16
DAGOBERT FREY: Gotik und Renaissance [O gótico e a Renascença], 1929, p. 38.
17
Cf. para o que segue, O. FREY, op. cit., p. 194.
18
J. C. SCALIGER: Poetices libri septem.[Poética em sete livros], 1591, VI, 21.
19
DAGOBERT FREY, que caracteriza a diferença entre a concepção medieval e renascentista de arte pela
distinção entre a interpretação sucessiva e a simultânea do espaço pictórico, apóia-se obviamente na
14

desenvolvimento de uma concepção sucessiva para uma concepção simultânea de arte


implica, ao mesmo tempo, uma apreciação atenuada daquelas “regras do jogo”
silenciosamente aceitas em que, em última análise, se baseia toda a ilusão artística. Pois se a
Renascença considera absurdo “comportar-se no palco como se não se pudesse ouvir o que
uma pessoa está dizendo a respeito de uma outra” 20, embora as pessoas em questão se
encontrem todas próximas umas das outras, isso talvez possa ser descrito como sintoma de
uma abordagem naturalista mais altamente desenvolvida, mas também subentende, sem
dúvida, uma certa atrofia do poder de imaginação. Seja como for, é sobretudo a essa
uniformidade da apresentação artística que a arte da Renascença deve a impressão de
totalidade, ou seja, a aparência de um [282] mun|do autêntico, independente, autônomo — e,
em conseqüência disso, sua maior veracidade em comparação com a Idade Média. Pois a
autenticidade da descrição da realidade, sua confiabilidade e seu poder de convencimento
dependem neste caso, como ocorre com tanta freqüência, da lógica interna do enfoque, da
mútua conformidade dos elementos da obra, num grau muito maior do que da conformidade
desses mesmos elementos com a realidade externa.
12. Com os princípios de unidade que inspiram sua arte, a Itália prenuncia o classicismo
da Renascença, tal como prenuncia o desenvolvimento capitalista do Ocidente com seu
racionalismo econômico. Pois a Renascença, no início, é um movimento essencialmente
italiano, em oposição à Alta Renascença e ao maneirismo, que são movimentos europeus
universais. A nova cultura artística aparece pela primeira vez em cena na Itália, porque esse
país também lidera no Ocidente em questões econômicas e sociais, porque a restauração da
vida econômica começa aí, os recursos financeiros e de transporte das cruzadas são
organizados desde aí21, a livre competição desenvolve-se aí primeiro, em oposição ao ideal
corporativista da Idade Média, e o primeiro sistema bancário europeu também nasce aí22
porque a emancipação da classe média urbana acontece aí antes do que no resto da Europa,
porque desde o começo o feudalismo e a cavalaria tiveram aí um desenvolvimento menor do
que no norte e a aristocracia rural não só tem residências urbanas desde muito cedo, mas
adaptam-se inteiramente à aristocracia financeira urbana, e também, sem dúvida, porque a
tradição da Antiguidade clássica nunca se perdeu inteiramente nesse país, onde ruínas
clássicas são vistas por toda a parte. É bastante conhecida a importância que tem sido
atribuída precisamente a este último fator nas teorias sobre as origens da Renascença. O que
poderia ter sido mais simples do que remontar o começo desse novo estilo a uma influência
uniforme, direta e externa? Mas esqueceu-se que uma influência histórica externa nunca é a
razão final para uma revolução intelectual, pois tal influência só pode ser eficaz se já existem
as condições prévias para sua recepção; o que tem de [283] ser explicado é, de fato, por que
semelhante influência se torna importante num determinado momento, uma vez que não pode
por si mesma explicar a importância tópica dos fenômenos que lhe são concomitantes. Se,
portanto, a partir de um determinado ponto no tempo a Antiguidade clássica começou a ter
uma influência diferente daquela que tivera previamente, a primeira pergunta que deve ser
formulada é: por que essa mudança realmente aconteceu, por que uma atitude diferente foi
adotada de chofre em face da mesma coisa? Essa indagação, no entanto, dificilmente será
respondida com maior facilidade ou em termos mais estritos do que a questão original, ou
seja: por que e em que a Renascença diferiu da Idade Média? A reassimilação da Antiguidade
clássica foi meramente um sintoma; tinha pressupostos sociais, como a rejeição da
Antiguidade clássica nos primórdios da era cristã. Mas não devemos exagerar a importância

diferenciação de ERWIN PANOFSKY de um espaço “agregado” e de um espaço “sistemático” (Die Perspektive


als “symbolische Form” [A perspectiva como forma simbólica], 1927). A tese de PANOFSKY adota, por sua
vez, a teoria de WICKHOFF do modo de representação “contínuo” e “distinto”, no qual o próprio Wickhoff
pode ter sido estimulado pela idéia de LESSING do “momento fértil”.
20
SCALIGER, loc. cit.
21
SCALIGER, loc. cit.
22
JAKOB STRIEDER: Jacob Fugger, 1926, pp. 7-8.
15

sintomática dessa reassimilação. É verdade que os próprios protagonistas da Renascença


tinham a consciência histórica de um renascimento e uma noção profunda do espírito
revitalizador da Antiguidade clássica — mas o Trecento [século XIV] já tivera também essa
percepção23. Portanto, agora, em vez de reivindicar Dante e Petrarca para a Renascença,
faremos melhor em investigar, como os adversários da teoria clássica fizeram, as origens
medievais da idéia de renascimento, elaborando a continuidade entre a Idade Média e a
Renascença. Os mais conhecidos protagonistas da teoria das origens medievais da Renascença
representam o movimento franciscano como a influência decisiva, estabelecem uma conexão
entre a sensibilidade lírica, o amor à natureza e o individualismo de Dante e de Giotto em
particular — depois o dos mestres subseqüentes também — e o subjetivismo e intimismo do
novo espírito religioso. Negam que a “descoberta” da Antiguidade no século XV tenha
causado um hiato num desenvolvimento para o qual o caminho já tinha sido preparado 24.
Também há referências à conexão entre a Renascença e a cultura cristã da Idade Média, e ao
caráter direto da transição da Idade Média para os tempos modernos a partir de pressupos tos
muito diferentes. Konrad Burdach descreve o chamado traço fundamental de paganismo na
Renascença como uma [284] his|tória da carochinha25, e Carl Neumann sustenta não só que a
Renascença está baseada “nos enormes poderes criados pela educação cristã”, que o
individualismo e o realismo do século XV eram “a última palavra a ser dita pelo homem
medieval em sua plena maturidade”, mas também que a imitação da arte e da literatura
clássicas, que já tinha levado à estagnação da cultura em Bizâncio, constituía mais um
obstáculo do que uma ajuda para o progresso renascentista 26. Louis Courajod chega ao ponto,
com efeito, de negar toda a conexão interna entre a Renascença e a Antiguidade clássica, e
representa a Renascença como a restauração espontânea da arte gótica franco-flamenga27. Mas
até mesmo aqueles estudiosos que estão conscientes da continuação direta da Idade Média na
Renascença não reconhecem que a relação entre as duas épocas tem por fundamento a
continuidade de seu desenvolvimento econômico e social, que o espírito franciscano
salientado por Thode, o individualismo medieval enfatizado por Neumann e o naturalismo
sublinhado por Courajod têm origem no dinamismo social que muda a face da Europa
ocidental no fim do período medieval de economia natural.
13. A Renascença aprofunda a influência desse desenvolvimento medieval, com seu
impulso no sentido do sistema econômico e social capitalista, somente na medida em que
confirma o racionalismo que domina agora toda a vida intelectual e material do período. Os
princípios de unidade que se tornam agora imperativos em arte, a unificação do espaço e os
padrões unificados de proporções, a restrição da representação artística a um único tema e a
concentração da composição numa forma imediatamente inteligível estão também em
concordância com o novo racionalismo. Expressam o mesmo desagrado pelo incalculável e
pelo incontrolável que a economia da época, com sua ênfase sobre o planejamento, a
oportunidade e a calculabilidade; são criações do mesmo espírito que abre caminho na
organização do trabalho, nos métodos de comércio, no sistema de crédito e na contabilidade

23
WERNER WEISBACH: “Renaissance als Stilbegriff” [A Renascença como conceito estilístico], Hist.
Zeitschrift, 1919, vol. 120, p. 262.
24
HENRY THODE: Franz von Assisi und die Anfänge der Kunst der Renaissance [Francisco de Assis e o início
da arte da Renascença], 1885. — O mesmo, “Die Renaissance” [A Renascença], Bayreuther Blätter [Gazeta de
Bayreuth], 1899. — ÉMILE GEBHARDT: Origines de la Renaissance en Italie [Origens da Renascença na
Itália], 1879. — O mesmo, Italie mystique [Itália mística], 1890.— PAUL SABATIER: Vie de Saint François
d’Assise [Vida de São Francisco de Assis], 1893.
25
KONRAD BURDACH: Reformation Renaissance Humanismus [Reforma Renascença Humanismo], 1918, p.
138.
26
CARL NEUMANN: “Byzantnische Kultur und Renaissancekultur” [A cultura bizantina e a cultura da
Renascença], Hist. Zeitschr. [Revista Histórica], 1903, vol. 91, pp. 228, 231, 215.
27
LOUIS COURAJOD: Leçons professées à l’École du Louvre [Lições proferidas na Escola do Louvre], 1901,
II, p. 142.
16

de partidas dobradas, nos métodos de administração pública, na diplomacia e na guerra 28.


Todo o desenvolvimento artístico passa a ser [285] par|te do processo total de racionalização.
O irracional deixa de causar qualquer impressão mais profunda. As coisas que são agora
sentidas como “belas” são a conformidade lógica das partes individuais de um todo, a
harmonia aritmeticamente definível das relações e o ritmo calculável de uma composição, a
exclusão de discordâncias na relação das figuras com o espaço que ocupam e o
relacionamento mútuo das várias partes do próprio espaço. E assim como a perspectiva
central é espaço visto a partir de um ponto de vista matemático, e as proporções corretas são
apenas equivalentes à organização sistemática das formas individuais numa pintura, também
no curso do tempo todos os critérios de qualidade artística são submetidos à minuciosa análise
racional, e todas as leis da arte são racionalizadas. Esse racionalismo não se restringe, em
absoluto, à arte italiana, mas no norte adquire características mais triviais do que na Itália,
torna-se mais óbvio, mais simples. Um exemplo típico dessa nova concepção de arte fora da
Itália é a Madonna de Londres, de Robert Campin [1375-1444, Bélgica], no fundo da qual a
borda superior de um guarda-fogo também serve para formar a auréola da Virgem. O pintor
usa uma coincidência formal para colocar um elemento irreal e irracional do quadro em
conformidade com a experiência cotidiana, e, embora ele talvez esteja tão firmemente
convencido da realidade sobrenatural da auréola quanto da realidade natural do guarda-fogo, o
mero fato de que pensa poder aumentar a atração de sua obra pela motivação naturalista desse
fenômeno é o sinal de uma nova, embora anunciada, época.

Texto OBRAS-PRIMAS do teatro vicentino; ed. organizada, prefaciada e comentada pelo


2 Segismundo Spina. 4. ed. São Paulo: DIFEL, 1983. p. 107-134.

2.0.1. Quadro da obra de Gil Vicente (Ed. de 1965)

N.º AUTO ANO PG. VV. TEMA PERSONAGENS


01 Amadis de 1523 1235- 0001- Tragicomédia cavalheiresca, Amadis, Galaor,
Gaula (TC) 1274 1167 foi tirada da novela idealista Florestan e
do mesmo nome. O Gandalin, rei
protagonista é apresentado Lisuarte, d. Dorin,
como o protótipo da honra, Oriana, Mabília,
da cortesia e da fidelidade. Corisanda, etc.
02 Auto da 1518 0073- 001- A Alma na “triste carreira / Alma, Anjo
Alma (D) 1508 0089 825 Desta vida” e a Igreja Custódio, Igreja,
(estalajadeira). Sto. Agostinho. S.
Jerônimo, S.
Tomás, dois
diabos.
03 Auto da 1519 0277- 001- Embarcação da Glória. A Anjo, morte,
Barca da 0307 846 Morte vai trazendo os companheiro do
Glória (D) potentados da Terra, desde o diabo, nobres, rei,
Papa e o Imperador até ao imperador, bispo,
Conde, que o Diabo arcebispo, cardeal,
invectiva. papa e anjos.
28
JAKOB STRIEDER: Studien zur Gesch. der kapit. Organisationsformen [Estudos sobre a história das formas
capitalistas de organização], 1914, II, p. 57.
17

04 Auto da 1516 0217- 001- Penas e prêmios que as Anjo/Diabo,


Barca do 1517 0247 872 almas recebem depois da Fidalgo,
Inferno (D) morte. Veem-se duas barcas; Onzeneiro, Parvo,
a que se dirige para o Céu, Sapateiro, Frade,
guiada por um anjo, e a que Brígida Vaz,
conduz ao Inferno, cujo Judeu, Corregedor,
arrais é o Diabo. 4 cavaleiros.
05 Auto da 1518 0249- 001- Embarcação do Purgatório. Anjo, Diabo,
Barca do 0275 793 A cena apresenta as mesmas companheiro do
Purgatório duas barcas — a do Inferno e Diabo, lavrador,
(D) a da Glória — que é a que se Marta Gil, 3 anjos,
dirige para o Céu. Baseia-se uma regateira, um
na lenda de que, na noite de pastor, uma
Natal, a barca do Diabo esta pastora, um
encalhada para que ninguém menino e um taful.
passe para o Purgatório.

06 Auto da 1534 0463- 001- Tema internacional das três Silvestra — lei da
Cananéia 0488 769 Leis que os medievais natureza, Hebreia
(D) distinguiam: a da Natureza, a— lei da escritura.
da Escritura e a da Graça. Veredina — lei da
Numa cena, Cristo ensina o graça, Satanás,
Pai-Nosso. Cristo. S. Tiago. S.
Pedro, S. João,
Cananeia e
Belzebu.
07 Auto da 1510 0115- 001- A Fama portuguesa: Fama, Joane,
Fama (F) 1520 0135 515 celebram-se os nossos desc. Castela, Fé,
marítimos e as conquistas no Fortaleza, Italiano,
Norte da África. Francês.

08 Auto da Fé 1510 0101- 001- A Fé explica o significado de Fé, Brás, Bento e


(D) 0114 351 objetos religiosos de uma Silvestre
capela. (pastores).
09 Auto da 1526 0399- 001- Mercúrio, deus das Mercúrio, Tempo,
Feira (D) 0421 992 mercadorias, incumbe o Serafim, Diabo,
Tempo de abrir uma tenda. Roma, etc.

10 Auto da 1527 0527- 001- A Verdade esta elogia o A verdade, um


Festa (A) 1535 0561 954 teatro e critica a corrupção vilão, Lucinda e
existente na corte. As duas Graciana, duas
ciganas leem a sina aos ciganas, Graciana,
espectadores em castelhano e um parvo,
pedem-lhes dinheiro ou Janafonso, vilão,
prendas. Uma das ciganas uma velha, um
dirige-se à Verdade, que as rascão, Fernando,
expulsa. Em resposta, a pastor Mécia,
cigana prevê-lhe um futuro Caterina e Filipa,
sombrio. O Parvo propõe moças pastoras.
casamento à Verdade.
Perante a urgência da Velha
18

em realizar o casamento,
Rascão acaba por fugir.

11 Auto da 1509 0309- 001- Adultério Ama, Moça,


Índia (F) 0328 514 Castelhano, Lemos
e marido.

12 Auto da 1532 0423- 0001- Na 1.ª parte descreve-se o lar Lediça,


Lusitânia (F) 0461 1129 duma família judaica de Licenciado,
Lisboa. É nesta farsa que se Portugal,
desenvolve entre as Mercúrio, Todo-o-
personagens Todo-o-Mundo Mundo, Ninguém,
e Ninguém, formidável diá- etc.
logo critico de grande
interesse moral, como a ânsia
de viver e a sacra fames auri
(a terrível ânsia do dinheiro).
13 Auto da 1515 0501- 001- O Auto consta do mistério da A Virgem,
Mofina 1534 0526 741 Anunciação, do passo (cena) Pobreza, Anjo
Mendes da Mofina Mendes e termina Gabriel, Paio Vaz,
[Mistérios da com um mistério da Mofina Mendes,
Virgem] Natividade. etc.
14 Auto da 1509 0137- 001- Sibila Cassandra presumiu Cassandra,
Sibila 1513 0164 794 que ela era a virgem de quem Salomão, Eristeia,
Cassandra o Senhor havia de nascer. Isaías, Moisés,
(D) Por isso, nunca desejou Abraão etc.
casar. Termina com um
Mistério da Natividade.
15 Auto da 1502 0003- 001- Nascimento do Príncipe Vaqueiro.
Visitação (D) 0006 112 Dom João III.
16 Auto das 1521 0639- 001- É um quadro da vida desse Martina, Lucrécia,
Ciganas (A) 0650 222 povo errante em Portugal. Há Cassandra, Giraldo
danças e cantigas (buena Liberto, Cláudio,
dicha) Aurício.
17 Auto das 1511 0165- 001- É rico o material de Feiticeira, diabo,
Fadas (F) 1527 0196 787 superstições que aqui se dois frades e três
encontra; descreve-se o tipo fadas.
da Feiticeira e há referências
às aventuras e intrigas amo-
rosas da Corte de D. Manuel.
18 Auto de São 1504 0041- 001- Vida de São Martinho. São Martinho
Martinho 0047 080 (capa) e um pobre.
(D) Pajens.
19 Auto dos 1513 0049- 001- Nascimento de Cristo; Verão, Estio,
Quatro 0073 655 adoração. Inverno, Outono,
Tempos (D) Júpiter, um
serafim, um
arcanjo, dois
anjos.
20 Auto dos 1503 0025- 001- Reis magos; nasc. de Cristo. Gregório e Valério
Reis Magos 1510 0039 352 (pastores), um
19

(D) ermitão e um
cavaleiro.
21 Auto Pastoril 1502 0007- 001- Nascimento de Cristo. Pastores: Gil,
Castelhano 1509 0024 370 Brás, Lucas,
(D) Silvestre, Gregório
e Mateus.

22 Auto Pastoril 1523 0329 001- Versa sobre os amores Vasco Afonso,
Português discordantes de seis pastores Caterina, Joane,
(A) e pastoras. Alude-se nele à Fernando.
Virgem e ao Menino Jesus. Madanela, Afonso,
Lirismo popular. Os cabrei- Inês, Margarida,
ros referem-se à dissolução clérigos etc.
da disciplina eclesiástica.

23 Breve 1527 0353- 0001- É uma síntese da história Anjo, Lúcifer —


Sumário da 0388 1122 bíblica desde Adão até à maioral do
História de vinda de Cristo, ressurreição inferno, Belial —
Deus (D) e resgate dos presos bem- meirinho da sua
aventurados. corte, Satanás,
anjo, mundo,
tempo — seu
veador, Eva,
Adão, morte,
Abel, Jó, Abraão,
Moisés, David,
Isaías, Belzebu,
São João e Jesus
Cristo.
24 Comédia de 1521 0815- 0001- Comédia sentimental Um licenciado,
Rubena (C) 0875 1732 cavaleiresca. Tema da Rubena, Benita —
enjeitada. criada, uma
parteira, uma
feiticeira, legião,
Plutão, Draguinho
e Caroto (diabos).
25 Comédia do 1524 0779- 0001- Trata-se dum mercador de O viúvo, um frade,
Viúvo (C) 0814 1057 Burgos, que enviuvou, Paula e Melicia,
ficando-lhe duas filhas, filhas do viúvo,
Paula e Melícia, que, roma- compadre do
nescamente, vêm a casar viúvo, d. Rosvel
com o Príncipe D. Rosvel e — príncipe
seu irmão D. Gilberto. disfarçado, d.
Gilberto — seu
irmão.
26 Comédia 1527 0877- 001- Baseia-se num tema arqueo- Lavrador,
sobre a 0907 812 lógico, — a explicação Melidônio,
Divisa da irônica dos emblemas do seu Celipôncio,
Cidade de Brasão, mas nela há ainda a Colimena,
Coimbra (D) persistente tradição da Galameno,
tragédia de Inês de Castro. Belicrasta,
20

Liberata,
Silvenda, Heridea,
Sossideria,
ermitão, Perigéria,
Monderigon e
peregrino.

27 Cortes de 1521 0987- 001- Nesta peça, figura-se que a Providência,


Júpiter (T) 1010 679 Infanta, partindo por mar Júpiter, quatro
para ir para a companhia de ventos, mar, Sol,
seu marido, D. Carlos, duque Lua, Vênus, Marte
de Sabóia, é seguida pelo e uma moura
povo e pelos nobres, encantada.
transformados em peixes.
28 D. Duardos 1522 1011- 0001- É um “delicioso idílio” do D Duardos, o
(T) 1075 2054 protagonista, príncipe de imperador
Inglaterra, com Flérida, filha Plmeirim,
do Imperador de Primalion, seu
Constantinopla. O contraste filho, Flérida.
entre a vida cortesã e a Amandria e
campesina está representado Artada, damas de
por D. Duardos, a quem o Flerida, Camilote
amor de Flérida leva a Maimonda. D.
tornar-se hortelão. Robusto, Olimba,
infante Julião,
hortelão
Constança Roiz,
sua mulher
Francisco e João,
seus filhos, patrão
de galera.
29 Diálogo 1527 0489- 001- Expõe a Redenção e Rabi Levi, Rabi
sobre a 0499 315 apresenta uma pintura Samuel, Rabi Arós
Ressurrei- satírica dos costumes dos e dois centuriões.
ção de Cristo Judeus.
(D)
30 Exortação da 1514 0197- 001- A patriótica obra cênica Um clérigo,
Guerra (J) 1513 0216 587 anima os fidalgos que faziam Zebron e Danor
parte da expedição a partir (diabos), Policena,
para Azamor. Faz-se nela a Pantasilea,
apologia da guerra pela Fé, e Aquiles, Heitor,
evocam-se personagens do Cipião etc.
ciclo greco-romano.

31 Farsa de Inês 1523 0001- 0001- “Mais quero asno que me Inês Pereira,
Pereira (F) 1140 1143 leve do que cavalo que me Lianor Vaz (Alc.),
derrube”. Pero Marques,
Judeus, Escudeiro,
etc.

32 Farsa do 1529 0747- 001- Descreve-se um padre, que Uum clérigo,


21

Clérigo da 1530 0777 906 anda com um filho, Francisco, seu


Beira (F) Francisco, à caça dos coelhosfilho, Gonçalo —
e vai engrolando os ofícios vilão, Almeida e
divinos. Duarte, moços do
paço, um negro,
uma velha e
Cecília Pedreanes.
33 Farsa do Juiz 1525 0691- 001- Depois da chegada de D. Pero Marques,
da Beira (F) 0721 900 Catarina a Portugal, porteiro, ferreiro,
representa Gil Vicente em Vasco Affonso,
Almeirim o Juiz da Beira, Ana Dias,
crítica engraçada dos juízes sapateiro,
populares. escudeiro, moço
do escudeiro,
preguiçoso,
bailador, amador e
brigoso
34 Farsa do 1512 0611- 001- Velho vs. moça. Velho, Moça,
Velho da 0637 782 Parvo, Branca Gil
Horta (F) (Alcov.), etc.
35 Farsa dos 1527 0723- 001- O tipo nacional do fidalgo Fidalgo, Pajem,
Almocreves 0746 714 pobre é desenhado nos Capitão, Pero Vaz,
(F) almocreves, onde há também Almocreves,
o tipo de capelão, a quem o Ourives, etc.
Fidalgo nunca paga.

36 Farsa dos 1524 0585- 001- É um documento capital para Clérigo, moço do
Físicos (F) 0610 720 a história da Medicina por- clérigo, Brasia
tuguesa no séc. XVI. Dias, Mestre
Médicos da corte assistem a Felipe, Mestre
um Clérigo namorado. Fernando, Mestre
Anrique Torres,
Fisico,
padre confessor
e cantores.

37 Floresta de 1536 0943- 0001- “Não havia em Portugal / nos Um filósofo, um


Enganos (C) 0985 1195 tempos mais ancianos / tantas parvo, mercador,
maneiras de enganos, / nem escudeiro
tantos males de um mal...” disfarçado em
viúuva, moça da
fingida viuva,
Cupido, Apolo, rei
tebano, Doutor,
moça,
Velha, pastor,
duque, príncipe, a
ventura.
38 Frágua do 1524 1077- 001- É uma tragicomédia festiva, Um peregrino, um
Amor (T) 1133 699 que mágica se poderia romeiro, Vênus,
chamar em linguagem Mercúrio, Júpiter,
22

moderna; foi destinada à Saturno, Sol,


comemoração do casamento quatro serranas,
de D. João III com a irmã de Cupido, Justiça,
Carlos V, D. Catarina, “em um negro, um
sua ausência”, em Évora. frade, um parvo,
dois pagens.

39 Nau de 1527 1157- 001- Um príncipe da Normandia, A cidade de


Amores (T) 1185 830 atraído pelo renome de Lisboa, príncipe
Lisboa, pede licença para de Normandia,
construir na Ribeira uma pajem do príncipe,
nau, cujo patrão será o Amor, um frade
Amor, por saber que é nesta doido, um pastor,
cidade que se fabricam as um negro, um
melhores. velho, dois fidal-
gos e um parvo.
40 Pranto de 1522 1309- 001-Pranto goliardesco da Maria Parda.
Maria Parda s. d. 1318 368 hilariante Maria Parda,
(OV) cujas disposições
testamentárias foram muito
lidas até o fim do séc. XVIII.
41 Quem tem 1505 0563- 001- Sátira do escudeiro. Aires Rosado,
farelos? (F) 1515 0584 542 Apariço, Velha,
Isabel.
42 Romagem de 1533 0909- 0001- É uma festiva revista de Frei Paço, João da
Agravados 0942 1109 tipos, de figuras, e uma crí- Morteira, Bastião,
(T) tica viva e fina à vida do fidalgos, Fr.
Paço e à sociedade Narciso, etc.
portuguesa da época, em que
vemos desfilar: frades,
fidalgos, lavradores,
regateiras, freiras e pastoras.
Nesta representação
satirizam-se os clérigos
palacianos, representados por
Frei Paço.
43 Sermão 1506 1277- 001- Sermão de homem leigo. —
perante a 1288 379
Rainha D.
Leonor (OV)
44 Templo de 1526 1105- 001- Tragicomédia festiva à Apolo, porteiro do
Apolo (T) 1129 690 Infanta D. Isabel, filha do rei templo, mundo,
D. Manuel, quando, em vencimento, cetro
1526, partiu para casar com onipotente e
o Imperador Carlos V. templo glorioso,
romeiros, flor da
gentileza, fama,
gravidade e sabe-
doria, romeiras e
um vilão
45 Tragicomé- 1527 1131- 001- Os costumes moçárabes da Serra da Estrela,
23

dia Pastoril 1155 721 Beira; forma bucólica, mas é


um parvo, Gonça-
da Serra da esta Tragicomédia a mais lo, Felipa, Cate-
Estrela (TP) pastoril de quantas escreveu.
rina, Fernando,
Nela se encontram mimosas Madanela,
cantigas intercaladas e os Rodrigo, um
“bailos” beirões. ermitão, Jorge e
Lopo.
46 Triunfo do 1529 1187- 0001- Nesta Tragicomédia, em que Parte I: Inverno,
Inverno (T) 1234 1376 o artista foi um pintor da Brisco, Juan
natureza — a que entoa Guijarro, uma
hinos — ele aproveitou os velha, Grumete,
velhos mitos da luta do marinheiro, piloto,
Verão e do Inverno, Gregório, Afonso,
dramatizando o costume Gonçalo, três
popular da expulsão do sereias
Inverno, alegorizado na Parte II: Verão,
Velha, que é obrigada a Serra de Sintra,
passar a serra, personificada uma forneira, um
no tipo de Brásia Caiada. ferreiro e infante.

2.02. Confronto entre três edições

1562 = VICENTE, Gil. Copilacam de todalas obras de Gil Vicente. Lixboa: em casa de Ioam
Aluarez, 1562. CCXLIX f.
1586 = VICENTE, Gil. Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente. Lixboa: por Andres
Lobato, 1586. 280 f.
1962 = Ed. de Costa Pimpão
C = comédia; CL = classificação; D = devoção; F = farsa; M = obras miúdas; TC =
tragicomédia.

AUTO CL LV 1562 1586 1962


Diálogo sobre a Ressurreição de Cristo D 1 — — 121-125
Auto da Visitação / Monólogo da D 1 001r-002r 001v-002v 019-020
Visitação
Auto Pastoril Castelhano / Aqui está D 1 002v-005r 002v-006v 021-026
fuerte
Auto dos Reis Magos / Aqui está D 1 005v-007v 007r-009v 027-031
Auto da Sibila Cassandra D 1 008r-013r 010-016v 047-055
Auto da Fé / Bento, que está D 1 013v-015v 017r-020r 034-038
Auto dos Quatro Tempos / Nuevo goso D 1 016r-020r 020v-026r 039-046
Auto da Mofina Mendes [M. da D 1 020v-025v 026v-032r 149-157
Virgem] / Três cousas acho
Auto Pastoril Português / Pois que já D 1 026r-030r 033r-036r 099-107
Auto da Feira / Pera que me D 1 030v-037v 036v-045r 126-138
Auto da Alma D 1 038r-043v 045v-052v 068-077
Auto da Barca do Inferno D 1 044r-049v 060r-066v 056-067
Auto da Barca do Purgatório D 1 049v-054v 067r-074v 078-087
Auto da Barca da Glória D 1 055r-060v 053r-059v 088-098
Breve Sumário da História de Deus D 1 061r-079r 075r-096v 108-120
Auto da Cananeia / Serra que D 1 079r-084r 097r-103r 139-148
Auto de São Martinho D 1 084r-086r 103v-104v 032-033
24

Comédia de Rubena / En tierra C 2 087v-099r 105v-120v 176-197


Comédia do Viúvo / Esta desastrada C 2 099v-106r 121r-128v 163-175
Comédia sobre a Divisa da Cidade de C 2 106r-113v 129r-138r 198-208
Coimbra
Floresta de Enganos C 2 114r-122r 138v-149v 209-224
Templo de Apolo TC 3 — — 279-287
Dom Duardos TC 3 123v-137r 153r-168r 254-278
Amadis de Gaula TC 3 137r-144r 169r-179v 339-352
Nau de Amores TC 3 145r-151r 180r-186r 288-297
Frágua do Amor TC 3 151r-156r 186v-192r 245-253
Exortação da Guerra TC 3 156r-164r xxx 229-235
Cortes de Júpiter / Eu Providência TC 3 165r-169r 192v-198r 236-244
Tragicomédia Pastoril da Serra da TC 3 169r-174v 198v-203v 288-297
Estrela / Prazer que fez
Triunfo do Inverno TC 3 174v-183v 204r-215r 308-324
Romagem de Agravados TC 3 183v-190r xxx 325-338
Auto da Festa F 4 — — 481-497
Quem tem farelos? F 4 191v-194v 216r-221r 357-364
Auto da Índia F 4 195r-199r 221r-225r 365-372
Auto da Fama / Tange as patas F 4 199v-206v 225r-229r 395-401
Auto das Fadas / Oh, Jesu F 4 207r-213v xxx 373-384
Farsa de Inês Pereira F 4 213v-220v 235v-243v 402-416
Farsa do Juiz da Beira / Olhai-vos F 4 220v-226r 243v-252v 430-441
Auto das Ciganas F 4 226r-228r 253r-255r 426-429
Farsa dos Almocreves / Pois que não... F 4 228r-232r 255r-260v 440-451
Farsa do Clérigo da Beira / Vós haveis F 4 232r-238v xxx 452-463
Auto da Lusitânia F 4 238v-248r 261r-269r 464-477
Farsa dos Físicos F 4 248v-249v xxx 417-425
Farsa do Velho da Horta F 4 249v-259r 230r-235r 385-394
Sermão perante a Rainha D. Leonor M 5 — — 497-501
Pranto de Maria Parda M 5 259v-261v 277r-280v 512-522

2.1. Auto da Barca do Inferno

[107]
Diabo. À barca, à barca, hou-lá!
que temos gentil maré!
— Ora venha a caro29 a ré!
Comp. Feito, feito!
Diabo. Bem está!
Vai tu muitieramá30, 005
e atesa [estica] aquele palanco [corda]
e despeja aquele banco,
para a gente que virá.

À barca, à barca, uuh!


Asinha [depressa], que se quer ir! 010

29
a caro: expressão enigmática. Seria o mesmo que a carom, termo náutico, com o valor de em frente?
30
muitieramá: em hora muito má.
25

Oh, que tempo de partir,


louvores a Berzebu!

— Ora, sus! que fazes tu?


Despeja todo esse leito!
[108]
Comp. Em bonora! Feito, feito! 015
Diabo. Abaixa aramá [em má hora] esse cu [nádega]!
Faze aquela poja lesta
e alija aquela driça31.
Comp. Oh caça! Oh! iça! Iça!
Diabo. Oh, que caravela esta! 020
Põe bandeiras, que é festa.
Verga alta! Âncora a pique!
— Ó preciso dom Anrique,
cá vindes vós?... Que cousa é esta?...

Vem o Fidalgo e, chegando ao batel infernal, diz:

Fidal. Esta barca onde vai ora, 025


que assi’stá apercebida?
Diabo. Vai para a ilha perdida [inferno],
e há-de partir logo ess’ora.
Fidal. Para lá vai a senhora?
Diabo. Senhor, a vosso serviço. 030
Fidal. Parece-me isso cortiço...
Diabo. Porque a vedes lá de fora.

Fidal. Porém, a que terra passais?


Diabo. Para o inferno, senhor.
Fidal. Terra é bem sem-sabor. 035
Diabo. Quê?... E também cá zombais?
Fidal. E passageiros achais
para tal habitação?
Diabo. Vejo-vos eu em feição
para ir ao nosso cais... 040

Fidal. Parece-te a ti assi!...


Diabo Em que esperas ter guarida?
Fidal. Que deixo na outra vida
quem reze sempre por mi.
Diabo. Quem reze sempre por ti?!.. 045
Hi! Hi! Hi! Hi! Hi! Hi! Hi! Hi!...
E tu viveste a teu prazer,
cuidando cá guarecer
por que rezam lá por ti?!...
[109]
Embarca — ou embarcai... 050
que haveis de ir à derradeira [afinal]!
Mandai meter a cadeira,
31
poja: corda que serve para virar a vela; driça: corda para levantar a vela.
26

que assi passou vosso pai.


Fidal. Quê? Quê? Quê? Assi lhe vai?!
Diabo. Vai ou vem! Embarcai prestes! 055
Segundo lá escolhestes,
assi cá vos contentai.

Pois que já a morte passastes,


haveis de passar o rio.
Fidal. Não há aqui outro navio? 060
Diabo. Não, senhor, que este fretastes,
e primeiro que expirastes
me destes logo sinal.
Fidal. Que sinal foi esse tal?
Diabo. Do que vós vos contentastes. 065
Fidal. A estoutra barca me vou.
— Hou da barca! Para onde is?
Ah, barqueiros! Não me ouvis?
Respondei-me! Hou-lá! Hou!...
— Por Deus, aviado estou! 070
Quanto a isto é já pior.
Que gericocins, salvanor!
Cuidam cá que são [sou] eu grou?

Anjo. Que mandais?


Fidal. Que me digais,
pois parti tão sem aviso, 075
se a barca do Paraíso
é esta em que navegais.
Anjo. Esta é; que demandais?
Fidal. Que me deixeis embarcar.
sou fidalgo de solar, 080
é bem que me recolhais.
Anjo. [110] Não se embarca tirania
neste batel divinal.
Fidal. Não sei porque haveis por mal
que entre a minha senhoria... 085
Anjo. Pra vossa fantasia
mui estreita é esta barca.
Fidal. Para senhor de tal marca
não há aqui mais cortesia?

Venha a prancha e atavio! 090


Levai-me desta ribeira!
Anjo. Não vindes vós de maneira
para entrar neste navio.
Essoutro vai mais vazio:
a cadeira entrará 095
e o rabo [cauda] caberá
e todo vosso senhorio.

Ireis lá mais espaçoso,


vós e vossa senhoria,
27

cuidando na tirania 100


do pobre povo queixoso;
e porque, de generoso,
desprezastes os pequenos,
achar-vos-eis tanto menos
quanto mais fostes fumoso. 105

Diabo. À barca, à barca, senhores!


Oh! que maré tão de prata!
Um ventozinho que mata
e valentes remadores!
(cant.): Vós me veniredes a la mano; 110
a la mano me veniredes,
e vos veredes
peixes nas redes.

Fidal. Ao Inferno, todavia!


Inferno há aí para mi?!
Ó triste! Enquanto vivi 115
não cuidei que o aí havia:
Tive que era fantasia!
Folgava ser adorado,
confiei em meu estado
e não vi que me perdia. 120

[111] Venha essa prancha e veremos


esta barca de tristura.
Diabo. Embarque vossa doçura,
que cá nos entenderemos...
Tomareis um par de remos, 130
veremos como remais;
e, chegando ao nosso cais,
todos bem vos desembarcaremos.

Fidal. Mas esperai-me aqui:


tornarei à outra vida, 135
ver minha dama querida
que se quer matar por mi.
Diabo. Que se quer matar por ti?!...
Fidal. Isto bem certo o sei eu.
Diabo. Ó namorado sandeu, 140
o maior que nunca vi!...

Fidal. Era tanto seu querer [amor]


que me escrevia mil dias?
Diabo. Quantas mentiras que lias,
e tu... morto de prazer!... 145
Fidal. Para que é escarnecer,
que não havia mal nem bem?
Diabo. Assim vivas tu, amém,
como te tinha querer!
28

Fidal. Isto quanto ao que eu conheço... 150


Diabo. Pois, estando tu expirando,
se estava ela requebrando
com outro de menos preço.
Fidal. Dá-me licença, te peço,
que vá ver minha mulher. 155
Diabo. E ela, por não te ver,
despenhar-se-á dum cabeço [cume]!

Quanto ela hoje rezou,


entre seus gritos e gritas,
foi dar graças infinitas
a quem na desassombrou. 160
[112]
Fidal. Quanto a ela, bem chorou!
Diabo. Não há aí choro de alegria?!
Fidal. E as lástimas que dizia?
Diabo. Sua mãe lhas ensinou... 165

Entrai, meu senhor, entrai!


— Venha a prancha! — Ponde o pé!
Fidal. Entremos, pois que assim é...
Diabo. Ora, senhor, descansai,
passeai e suspirai; 170
Em tanto virá mais gente.
Fidal. Ó barca, como és ardente!
Maldito quem em ti vai!

Diz o Diabo ao Moço da cadeira:

Diabo. Não entras cá! Vai-te daí,


que a cadeira é cá sobeja. 175
Cousa que esteve na igreja
não se há-de embarcar aqui.
Cá lha darão de marfi,
marchetada de dolores,
com tais modos de lavores, 180
que estará fora de si...

— À barca, à barca, boa gente,


que queremos dar à vela!
Chegar a ela! Chegar a ela!
Muitos e de boa mente! 185
Oh! que barca tão valente!

Vem um Onzeneiro, e pergunta ao Arrais do Inferno, dizendo:

Onzen. Para onde caminhais?


Diabo. Oh! que má-hora venhais,
onzeneiro, meu parente!
29

Como tardastes vós tanto? 190


Onz. Mais quisera eu lá tardar.
Na safra do apanhar
me deu saturno quebranto.
Diabo. Ora mui muito me espanto
não vos livrar o dinheiro!... 195
[113]
Onz. Nem tão só para o barqueiro
não me deixaram nem tanto.

Diabo. Ora entrai, entrai aqui!


Onz. Não hei eu i de embarcar!
Diabo. Oh! que gentil recear, 200
e que cousas para mi!...
Onz. Inda agora faleci,
deixa-me buscar batel!
Diabo. Pesar de João Pimentel!
Porque não irás aqui? 205

Onz. E para onde é a viagem?


Diabo. Para onde tu hás-de ir;
estamos para partir,
não cures de mais linguagem.
Onz. Mas pra onde é a passagem? 210
Diabo. Pera a infernal comarca.
Onz. Disse, não vou em tal barca.
Estoutra tem avantagem.

Vai-se à barca do Anjo., e diz:

Hou da barca! Hou-lá! Hou!


Haveis logo de partir? 215
Anjo. E onde queres tu ir?
Onz. Eu pra o Paraíso vou.
Anjo. Pois quanto eu bem fora estou
de te levar para lá.
Essoutra te levará. 220
Vai para quem te enganou!

Onz. Por que?


Anjo. Porque esse bolsão
tomará todo o navio.
Onz. Juro a Deus que vai vazio!
Anjo. Não já no teu coração. 225
Onz. Lá me ficam de roldão
vinte e seis milhões nũa arca.
Diabo. Pois que onzena tanto abarca
não lhe deis embarcação.
[114]
30

Torna o Onzeneiro à barca do Inferno e diz:

Onz. Hou-lá! Hou Demo barqueiro! 230


Sabeis vós no que me fundo?
Quero lá tornar ao mundo
e trazê-lo meu dinheiro;
que aqueloutro marinheiro,
porque me vê vir sem nada, 235
dá-me tanta borregada [pancada]
como arrais lá do Barreiro.

Diabo. Entra, entra e remarás!


Não percamos mais maré!
Onz. Todavia...
Diabo. Per força é! 240
Que te pês [custe], cá entrarás!
Irás servir Satanás,
pois que sempre te ajudou.
Onz. Oh! Triste, quem me cegou?
Diabo. Cal’te, que cá chorarás. 245

Entrando o Onzeneiro no batel, onde achou o Fidalgo embarcado, diz tirando o


barrete:

Onz. Santa Joana de Valdês!


Cá é vossa senhoria?
Fidal. Dá ao demo a cortesia!
Diabo. Ouvis? Falai vós cortês!
Vós, fidalgo, cuidarês 250
que estais na vossa pousada?
Dar-vos-ei tanta pancada
c’um um remo que arreneguês!

Vem Joane, o Parvo, e diz ao Arrais do Inferno:

Parvo. Hou daquela!


Diabo. Quem é?
Parvo. Eu sô.
É esta a naviarra nossa? 255
Diabo. De quem?
Parvo. Dos tolos.
[115]
Diabo. Vossa,
entrai.
Parvo. De pulo ou de vôo?
Oh! Pesar de meu avô!
Soma [em suma]: vim a adoecer
e fui má-hora morrer; 260
e nela, pera mim só.
Diabo. De que morreste?
Parvo. De quê?
31

Samicas [talvez] de caganeira.


Diabo. De quê?
Parvo. De caga merdeira!
Má rabugem que te dê! 265
Diabo. Entra! Põe aqui o pé!
Parvo. Hou-lá! Não tombe o zambuco [batel]!
Diabo. Entra, tolaço eunuco,
que se nos vai a maré!

Parvo. Aguardai, aguardai, hou-lá! 270


E onde havemos nós de ir ter?
Diabo. Ao porto de Lucifer.
Parvo. Hã?
Diabo. Ao inferno, entra cá.
Parvo. Ao inferno, ieramá?!
Hiu! Hiu! Barca do cornudo, 275
Pero Vinagre, beiçudo,
rachador de Alverca, huhá!

Sapateiro da Candosa!
Entrecosto de carrapato!
Hiu! Hiu! Caga no sapato, 280
filho da grande aleivosa!
Tua mulher é tinhosa
e há-de parir um sapo
chantado [pregado] no guardanapo!
Neto de cagarrinhosa! 285
Furta cebolas! Hiu! Hiu!
’xcomungado nas igrejas!
[116]
Burrela, cornudo sejas!
Toma o pão que te caiu!
a mulher que te fugiu 290
para a Ilha da Madeira!
Ratinho da Giesteira,
o demo que te pariu!

Hiu! Hiu! Lanço-te uma pulha!


De pica naquela! 295
Hiu! Hiu! Caga na vela,
ó dom Cabeça-de-grulha!
Perna de cigarra velha,
caganita de coelha,
pelourinho da Pampulha! 300
rabo de forno de telha!

Chega o Parvo ao batel do Anjo. e diz:

Parvo. Hou da barca!


Anjo. Tu que queres?
Parvo. Queres-me passar além?
32

Anjo. Quem és tu?


Parvo. Não sou ninguém.
Anjo. Tu passarás, se quiseres; 305
porque em todos teus fazeres
por malícia não erraste.
Tua simpleza te baste
para gozar dos prazeres.
Espera entanto por aí: 310
veremos se vem alguém,
merecedor de tal bem,
que deva de entrar aqui.

Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas, e chega ao batel infernal e
diz:

Sapat. Hou da barca!


Diabo. Quem vem aí?
— Santo sapateiro honrado, 315
como vens tão carregado?
Sapat. Mandaram-me vir assi...
[117]
E para onde é a viagem?
Diabo. Para a terra dos danados.
Sapat. E os que morrem confessados 320
onde têm sua passagem?
Diabo. Não cures de mais linguagem,
que esta é a tua barca, esta!
Sapat. Renegaria eu da festa
e da barca e da barcagem! 325

Como poderá isso ser,


confessado e comungado?!
Diabo. Tu morreste excomungado:
Não no quiseste dizer.
Esperavas de viver, 330
calaste dez mil enganos,
tu roubaste bem trinta anos
o povo com teu mester.

Embarca, eramá para ti,


que há já muito que te espero! 335
Sapat. Digo-te que re-não quero!
Diabo. Digo que si, re-si!
Sapat. Quantas missas eu ouvi,
não me hão elas de prestar?
Diabo. Ouvir missa, então roubar — 340
é caminho para aqui.

Sapat. E as ofertas que darão?


E as horas dos finados?
Diabo. E os dinheiros mal levados —
33

que foi da satisfação? 345


Sapat. Oh! Não praza ao cordovão [couro],
nem à puta da badana [couro mole],
se é esta boa traquitana [trapalhada?]
em que se vê João Antão!
Ora juro a Deus que é graça! 350

Vai-se à barca do Anjo e diz:

Hou da santa caravela,


podereis levar-me nela?
Anjo. A cárrega [carga] te embaraça.
Sapat. Não há mercê que me Deus faça?
Isto onde quer irá. 355
Anjo. Essa barca que lá está
Leva quem rouba de praça.
Ó almas embaraçadas!
Sapat. Ora eu me maravilho
haverdes por grão peguilho [estorvo] 360
quatro forminhas cagadas
que podem bem ir chentadas [metidas]
num cantinho desse leito!
Anjo. Se tu viveras direito,
elas foram cá escusadas. 365

Sapat. Assim que determinais


que vá cozer ao inferno?
Anjo. Escrito estás no caderno
das ementas infernais.

Torna-se à barca dos danados e diz o Sapateiro:

Sapat. Pois, diabos, que aguardais? 370


Vamos, venha a prancha logo
e levai-me àquele fogo!
Para que é aguardar mais?

Vem um Frade com ũa Moça pela mão e um broquel e ũa espada na outra, e um casco
debaixo do capelo; e, ele mesmo fazendo a baixa começou de dançar, dizendo:

Frade. Tai-rai-rai-ra-rã; taririrã;


tarai-rai-rai-rã; tairirirã: 375
tã-tã; ta-ri-rim-rim-rã. Huhã!
Diabo. Que é isso, padre?! Que vai lá?
Frade. Deo gratias! Sou cortesão.
Diabo. Sabeis também o tordião [dança]?
Frade. É mal que me esquecerá. 380
Diabo. Essa dama há-de entrar cá?
Frade. Não sei onde embarcarei.
Diabo. Ela é vossa?
Frade. Não sei;
34

por minha a trago eu cá.


[119]
Diabo. E vos punham lá grosa [censura] 385
nesse convento sagrado?
Frade. Assim fui bem açoitado.
Diabo. Que coisa tão preciosa!
Entrai, padre reverendo.
Frade. Para onde levais gente? 390
Diabo. Para aquele fogo ardente
que não temestes vivendo.

Frade. Juro a Deus que não te entendo!


E este hábito no me val’?
Diabo. Gentil padre mundanal, 395
a Belzebu vos encomendo!

Frade. Corpo de Deus consagrado!


Pela fé de Jesus Cristo,
que eu não posso entender isto!
Eu hei-de ser condenado?!... 400

Um padre tão namorado


e tanto dado à virtude?
Assim Deus me dê saúde,
que estou maravilhado!

Diabo. Não façamos mais detença. 405


Embarcai e partiremos:
tomareis um par de ramos.
Frade. Não ficou isso na avença.
Diabo. Pois dada está já a sentença!
Frade. Por Deus! Essa seria ela? 410
Não vai em tal caravela
minha senhora Florença.
Como?! Por ser namorado
e folgar com uma mulher
se há um frade de perder, 415
com tanto salmo rezado?!...
Diabo. Ora estás bem aviado!
Frade. Mais estás bem corrigido!
Diabo. Devoto padre e marido,
haveis de ser cá pingado... 420

[120]
Descobriu o Frade a cabeça tirando o capelo e apareceu o casco, e diz o Frade:

Frade. Mantenha Deus esta c’oroa!


Diabo. Ó padre frei-capacete!
Cuidei que tínheis barrete...
Frade. Sabei que fui da pessoa [importante]!

Esta espada é roloa 425


35

e este broquel rolão32.


Diabo. Dê Vossa Reverença lição
de esgrima, que é cousa boa!

Começou o frade a dar lição de esgrima com a espada e broquel que eram de esgrimir
e diz desta maneira:

Frade. Que me praz! Demos caçada [assalto]!


Então logo um contra, sus! 430
Um fendente [golpe], ora sus!
Esta é a primeira levada [bote].

Alevantai a espada! —
— Metei o diabo na cruz
como o eu agora pus... 435
— Sai coa espada rasgada
e fique anteparada.
Talho largo, um revés [golpe],
e logo colher os pés,
que todo o al no é nada! 440

Quando o recolher se tarda


o ferir não é prudente.
Eia, sus! Mui largamente,
cortai na segunda guarda!
— Guarde-me Deus de espingarda 445
ou de varão denodado
mais aqui estou guardado
como a palha na albarda.
[121]
Saio com meia espada...
Hou-lá! Guardai as queixadas! 450
Diabo. Oh que valentes levadas!
Frade. Inda isto não é nada...
Demos outra vez caçada:
Contra, sus! Ora um fendente!
E, cortando largamente, 455
eis aqui sexta guarda.

Daqui saio c’uma guia


e um revés da primeira.
Esta é a quinta verdadeira.
— Oh! quantos daqui feria!... 460
Padre que tal aprendia
no inferno há-de haver pingos?!
Ah! Não praza a São Domingos
com tanta descortesia!

Tornou a tomar a Moça pela mão, dizendo:

32
Os termos rolão e roloa parecem aludir a Rolando, personagem da gesta francesa, cuja arma (a Durindana) se
tornou famosa.
36

Frade. Prossigamos nossa história, 465


não façamos mais detença.
Daí cá a mão, senhora Florença:
vamos à barca da Glória!

Começou o Frade a fazer o tordião e foram dançando até o batel do Anjo desta
maneira:

Frade. Tarararairão, tariririrão,


tairairão, taririrão, taririrão, 470
huhá! [linha não contada]

Deo gratias! Há lugar cá


para minha reverença?
E a senhora Florença
pelo meu entrará lá!
Parvo. Andar, muitieramá! 475
Furtaste esse trinchão [facão], frade?
[122]
Frade. Senhora, dá-me à vontade
que este feito mal está...

Vamos onde havemos de ir,


não praza a Deus coa a ribeira! 480
Eu não vejo aqui maneira
senão, enfim... concrudir [aceitar].
Diabo. Padre, haveis logo de vir?
Frade. Sim, tomai-me lá Florença,
e cumpramos a sentença: 485
ordenemos de partir.

Tanto que o Frade foi embarcado, veio uma Alcoviteira, per nome Brísida Vaz, a qual
chegando à barca infernal diz desta maneira:

Brís. Hou-lá da barca, hou-lá!


Diabo. Quem chama?
Brís. Brísida Vaz.
Diabo. Eia! Aguarda-me, rapaz!
Por que não vem ela já? 490
Comp. Diz que não há de vir cá
sem Joana de Valdeis.
Diabo. Entrai vós, e remareis.
Brís. Não quero eu entrar lá.

Diabo. Que saboroso arrecear!... 495


Brís. Não é essa barca a que eu cato.
Diabo. E trazeis vós muito fato?
Brís. O que me convém levar.
Diabo. Que é o que haveis de embarcar?
Brís. Seiscentos virgos [himens] postiços 500
e três arcas de feitiços
que não podem mais levar.
37

Três armários de mentir,


e cinco cofres de enleios,
e alguns furtos alheios, 505
assi em jóias de vestir;
guarda-roupa de encobrir,
enfim — casa movediça;
um estrado de cortiça
com dez coxins de embair. 510
[123]
A mor cárrega que é:
essas moças que vendia.
Daquesta mercadoria
trago eu muita, à bofé!
Diabo. Ora ponde aqui o pé. 515
Brís. Hui! E eu vou para o paraíso!
Diabo. E quem te disse a ti isso?
Brís. Lá hei-de ir desta maré.

Eu sou ũa mártir tal,


açoites tenho eu levados 520
e tormentos suportados
que ninguém me foi igual.
Se eu fosse ao fogo infernal,
lá iria todo o mundo!
A estoutra barca cá em fundo, 525
me vou eu, que é mais real.

E chegando à barca da glória diz ao Anjo.:

Brís. Barqueiro mano, meus olhos,


prancha a Brísida Vaz.
Anjo. Eu não sei quem te cá traz...
Brís. Peço-vo-lo de giolhos! 530
Cuidais que trago piolhos,
anjo de Deus, minha rosa?
Eu sou Brísida, a preciosa
que dava as moças a molhos.

A que criava as meninas 535


para os cônegos da Sé...
Passai-me, por vossa fé,
meu amor, minhas boninas,
olho de perlinhas finas!
E eu sou apostolada, 540
angelada e martelada [martirizada],
e fiz obras mui divinas.
Santa Úrsula não converteu
tantas cachopas como eu:
todas salvas pelo meu 545
que nenhuma se perdeu.
38

E prouve àquele do Céu


que todas acharam dono.
[123] Cuidais que dormia eu sono?
Nem ponta!... E não se perdeu! 550

Anjo. Ora vai lá embarcar,


não estês importunando.
Brís. Pois estou-vos alegando
o porque me haveis de levar.
Anjo. Não cures de importunar, 555
que não podes vir aqui.
Brís. E que má-hora eu servi,
pois não me há-de aproveitar!

Torna-se Brísida Vaz à barca do inferno dizendo:

Brís. Hou barqueiros da má-hora,


ponde a prancha, que eis me vou, 560
e tal fada me fadou
e pareço mal cá de fora.
Diabo. Ora entrai, minha senhora,
e sereis bem recebida...
Se vivestes santa vida, 565
vós o sentireis agora...

Tanto que Brísida Vaz se embarcou veio um Judeu com um bode às costas; e chegando
ao batel dos danados, diz:

Judeu. Que vai lá, hou marinheiro!


Diabo. Oh! que má-hora vieste!
Judeu. Cuja [de quem] é esta barca que preste?
Diabo. Esta barca é do barqueiro. 570
Judeu. Passai-me por meu dinheiro.
Diabo. E esse bode há cá de vir?
Judeu. O bode também há-de ir.
Diabo. Oh! Que honrado passageiro!

Judeu. Sem bode, como irei lá? 575


Diabo. Pois eu não passo cá cabrões.
Judeu. Eis aqui quatro tostões
e mais se vos pagará.
Por vida do semifará [nome do Judeu?]
que me passeis o cabrão! 580
Quereis mais outro tostão?
Diabo. Nem tu não hás-de vir cá.
[125]
Judeu. Porque não irá o judeu
onde vai Brísida Vaz?

(Fala ao Fidalgo)

Ao senhor meirinho apraz? 585


39

Senhor meirinho, irei eu?


Diabo. E ao fidalgo quem lhe deu...
o mando, dizeis, do batel?
Judeu. Corregedor, coronel,
castigai este sandeu! 590

Azará, pedra miúda,


lodo, chanto, fogo, lenha,
caganeira que te venha!
Má corrença que te acuda!
Par el deu, que te sacuda 595
com a barca nos focinhos!
Fazes burla dos meirinhos?
Dize, filho da cornuda!

Parvo. Furtaste a chiba [cabra], cabrão?


Pareceis-me vós a mim 600
carrapato de Alcoutim
enxertado em camarão.
Diabo. Judeu, lá te levarão,
porque hão-de ir descarregados.
Parvo. E ele se mijou nos finados 605
no adro de São Gião!

E comia a carne da panela


no dia de Nosso Senhor!
E mais ele, salvanor [com o devido respeito],
cada vez mija naquela! 610
Diabo. Ora, sus! Demos à vela!
Vós, judeu, ireis à toa [sem rumo],
que sois mui ruim pessoa.
Levai o cabrão na trela!

Vem um Corregedor carregado de feitos, com sua vara na mão, e chegando à barca do
inferno diz:
[126]
Corr. Hou da barca!
Diabo. Que quereis? 615
Corr. ’Stá aqui o senhor juiz?
Diabo. Ó amador de perdiz,
quantos feitos que trazeis!
Corr. No meu ar conhecereis
que eles não vêm de meu jeito. 620
Diabo. Como vai lá o direito?
Corr. Nestes feitos o vereis.

Diabo. Ora, pois, entrai, veremos


que diz i nesse papel.
Corr. E onde vai o batel? 625
Diabo. No inferno vos poremos.
Corr. Como?! À terra dos demos
40

há-de ir um corregedor?
Diabo. Santo descorregedor,
embarcai, e remaremos! 630

Ora, entrai, pois que viestes!


Corr. Non est de regulae juris, não!
Diabo. Ita, Ita! Dai cá a mão!
Remaremos um remo destes.
Fazei conta que nascestes 635
para nosso companheiro.
— Que fazes tu, barzoneiro [vadio]?
Faze-lhe essa prancha prestes!

Corr. Oh! Renego da viagem


e de quem me há-de levar! 640
Há aqui meirinho do mar?
Diabo. Não há tal costumagem.
Corr. Não entendo esta barcagem,
nem hoc nom potest esse [Isto não pode ser].
Diabo. Se ora vos parecesse 645
que não sei mais que linguagem [português]!...

Entrai, entrai, corregedor!


Corr. Hou! Videtis qui petatis!
[127] Super jure majestatis
tem vosso mando vigor33? 650
Diabo. Quando éreis ouvidor
non ne accepistis rapina? 34
Pois ireis pela bolina
onde nossa mercê for. 35

Oh! que isca esse papel 655


para um fogo que eu sei!
Correg. Domine, memento mei! 36
Diabo. Non es tempus, bacharel!
Imbarquemini in batel
quia judicastis malitia.37 660
Correg. Sempre ego in justitia
fecit, e bem por nível.38

Diabo. E as peitas dos judeus


que a vossa mulher levava?
Correg. Isso eu não no tomava 665
eram lá percalços seus.
Nom sunt pecatus meus,

33
Vede o que reclamais! — Acaso o vosso poder está acima do direito de majestade?
34
Acaso não recebeste rapina?
35
Para onde nós determinarmos.
36
Senhor: lembra-te de mim!
37
porque sentenciastes com malícia.
38
com justiça e eqüidade
41

peccavit uxore mea.39


Diabo. Et vobis quoque cum ea,
nemo temuistis Deus.40 670

A largo modo adquiristis


sanguinis laboratorum
ignorantis peccatorum.
Ut quid eos non audistis?41
Correg. Vós, arrais, non legistis 675
que o dar quebra os penedos?
[128] Os direitos estão quedos,
sed aliquid tradidistis...

Diabo. Ora entrai, nos negros fados!


Ireis ao lago dos cães 680
e vereis os escrivães
como estão tão prosperados.
Correg. E na terra dos danados
estão os Evangelistas?
Diabo. Os mestres das bulras vistas 685
lá estão bem fragoados.

Estando o Corregedor nesta prática com o Arrais infernal, chegou um Procurador,


carregado de livros, e diz o Corregedor ao Procurador:

Correg. Ó senhor Procurador!


Procur. Beijo-vo-las mãos, juiz!
Que diz esse arrais? Que diz?
Diabo. Que sereis bom remador. 690
Entrai, bacharel doutor,
e ireis dando à bomba.
Procur. E este barqueiro zomba...
Jogatais [gracejais] de zombador?

E essa gente que aí está 695


para onde a levais?
Diabo. Para as penas infernais.
Procur. Disse, não vou eu para lá!
Outro navio está cá,
muito milhor assombrado. 700
Diabo. Ora estás bem aviado!
Entra, muitieramá!

Correg. Confessaste-vos, doutor?


Procur. Bacharel sou... — Dou-me ao demo!:
Não cuidei que era extremo, 705
nem de morte minha dor.
E vós, senhor Corregedor?
39
Minha mulher é que pecava.
40
Tu pecavas com ela e não temias a Deus. Latim macarrônico.
41
O Diabo diz que o Corregedor enriqueceu a valer, à custa do sangue dos lavradores, pecadores ignorantes, sem
atendê-los sequer.
42

[129]
Correg. Eu mui bem me confessei,
mas tudo quanto roubei
encobri ao confessor... 710

Porque, se o não tornais,


não vos querem absolver,
e é mui mau de volver
depois que o apanhais.
Diabo. Pois porque não embarcais? 715
Procur. Quia speramus in Deo.42
Diabo. Imbarquemini in barco meo...
para que esperatis mais?

Vão-se ambos ao batel da glória, e chegando diz o Corregedor ao Anjo:

Correg. Hou arrais dos gloriosos,


passai-nos nesse batel! 720
Anjo. Oh pragas para papel,
para as almas odiosos!
Como vindes preciosos,
sendo filhos da ciência!
Correg. Oh! Habeatis [tenhais] clemência 725
e passai-nos como vossos!
Parvo. Hou, homens dos breviários,
rapinastis coelhorum
et pernis perdigotorum43
e mijais nos campanários! 730
Correg. Anjos, não nos sejais contrários,
pois não temos outra ponte!
Parvo. Belequinis ubi sunt?
Ego latinus macarios.44
Anjo. A justiça divinal 735
vos manda vir carregados
porque vades embarcados
nesse batel infernal.
[129]
Correg. Oh! não praza a São Marçal!
coa ribeira, nem co rio! 740
Cuidam lá [na terra] que é desvario
haver cá tamanho mal!

Procur. Que ribeira é esta tal!


Parvo. Pareceis-me vós a mi
como cagado nebri [falcão], 745
mandado no Sardoal.
Embarquetis in zambuquis!

Correg. Venha a negra prancha cá!


42
Porque esperamos em Deus.
43
Recebestes como propinas coelhos e pernas de perdizes.
44
Onde estão os beleguins?
43

Vamos ver este segredo.


Procur. Diz um texto do degredo... 750
Diabo. Entrai, que cá se dirá!...

E tanto que foram dentro no batel dos condenados, disse o Corregedor a Brísida Vaz,
porque a conhecia:

Correg. Esteis muito aramá,


senhora Brísida Vaz!
Brís. Já sequer estou em paz,
que não me deixáveis lá. 755

Cada hora encoroçada45:


“Justiça que manda fazer...”
Correg. E vós... tornar a tecer
e urdir outra meada...
Brís. Dizede, juiz de alçada: 760
vem lá Pero de Lisboa?
Levá-lo-emos à toa
e irá nesta barcada.

Vem um homem que morreu enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse
o Arrais tanto que chegou:

Diabo. Venhais embora, enforcado!


Que diz lá Garcia Moniz?46 765
[131]
Enforc. Eu vos direi que ele diz:
— que fui bem-aventurado
que, pelos furtos que eu fiz,
sou santo canonizado,
pois morri dependurado 770
como o tordo na boiz.

Diabo. Entra cá, governarás


até às portas do Inferno.
Enforc. Não é essa a nau que eu governo.
Diabo. Entra, que inda caberás. 775
Enforc. Pesar de São Barrabás!
Se Garcia Moniz diz
que os que morrem como eu fiz
são livres de Satanás...

E disse que a Deus prouvera 780


que fora ele o enforcado;
e que fosse Deus louvado
que em boa-hora eu cá nascera;
e que o Senhor me escolhera;
e por bem vi beleguins; 785

45
Com a carocha à cabeça, um barrete de papelão que a justiça impunha como castigo às alcoviteiras.
46
Funcionário da casa da moeda ao tempo de Gil Vicente.
44

e com isto mil latins,


como se eu latim soubera...

E no passo derradeiro
me disse nos meus ouvidos
que o lugar dos escolhidos 790
era a forca e o Limoeiro;
nem guardião do mosteiro
não tinha tão santa gente
como Afonso Valente
o que é agora carcereiro. 795

Diabo. Dava-te consolação


isso, ou algum esforço?
Enforc. Co o baraço [corda] no pescoço,
mui mal presta a pregação...
E ele leva a devoção 800
que há-de tornar a jantar...
Mas quem há-de estar no ar
aborrece-lhe o sermão.
[132]
Diabo. Entra, entra no batel,
que ao inferno hás-de ir! 805
Enforc. O Moniz há-de mentir?
Disse-me: — “Com São Miguel
jantaria pão e mel
como fores enforcado”.
Ora, já passei meu fado, 810
e já feito é o burel.

Agora não sei que é isso.


não me falou em ribeira,
nem barqueiro, nem barqueira,
senão — logo ao paraíso. 815
E isto muito em seu siso,
e que era santo o meu baraço.
Porém não sei que aqui faço,
ou se era mentira isso.

Diabo. Falou-te no Purgatório? 820


Enforc. Diz que foi o Limoeiro,
e ora por ele o salteiro
e o pregão vitatório [pena final];
e que era mui notório
que aqueles disciplinados 825
eram horas dos finados
e missas de São Gregório [Purgatório].

Diabo. Ora entra, pois hás-de entrar,


não esperes por teu pai...
Enforc. Entremos, pois que assim vai... 830
45

Diabo. Este foi bom embarcar!


— Eia! Todos apear,
que está em seco o batel!
Vós, doutor, bota batel!
Fidalgo, saltai ao mar! 835

Vêm Quatro Cavaleiros cantando, os quais trazem cada um a cruz de Cristo, pelo qual
Senhor e acrescentamento de [133] sua santa fé católica morreram em poder dos mouros.
Absoltos a culpa e pena per privilégio que os que assim morrem têm dos mistérios da paixão
daquele por quem padecem, outorgados por todos os Presidentes Sumos Pontífices da Madre
Santa Igreja; e a cantiga que assim cantavam, quanto a palavra dela, é a seguinte:

À barca, à barca segura!


Guardar da barca perdida,
à barca, à barca da vida!

Senhores que trabalhais


pela vida transitória, 840
memória, por Deus, memória
deste temeroso cais!
À barca, à barca, mortais,
Barca bem guarnecida,
à barca, à barca da vida! 845

Vigiai-vos, pecadores,
que, depois da sepultura,
neste rio está a ventura
de prazeres ou dolores!
À barca, à barca, senhores, 850
barca mui nobrecida,
à barca, à barca da vida!

E passando per diante da proa do batel dos danados assim cantando, com suas espadas
e escudos, disse o Arrais da perdição desta maneira:

Diabo. Cavaleiros, vós passais


e não me dizeis para onde is?
Caval. Vós, Satanás, presumis? 855
Atentai com quem falais!
Outro Cav. Vós que nos demandais?
Sequer conheceis-nos bem:
morremos nas partes de Além,
e não queirais saber mais. 860
Diabo. Entrai cá! Que cousa é essa?
Eu não posso entender isto!
Caval. Quem morre por Jesus Cristo
não vai em tal barca como essa!

Tornaram a prosseguir, cantando, seu caminho direito à barca da glória, e tanto que
chegam diz o Anjo.:
[134]
46

Anjo. Ó cavaleiros de Deus, 865


a vós estou esperando,
que morrestes pelejando
por Cristo, Senhor dos Céus!
Sois livres de todo mal,
santos por certo sem falha, 870
que quem morre em tal peleja
merece paz eternal.

E assim embarcam.

Aqui fenece a primeira cena.

VICENTE, Gil. Pranto de Maria Parda. In: Obras. Porto: Lello & Irmão, 1965,
Texto0 p. 1309-1318.
3

[1309] <259c> PRANTO DE MARIA PARDA

por que viu as ruas de Lisboa com tão poucos ramos nas tavernas e o vinho tão caro
e ella não podia viver sem elle.

Eu so quero prantear
Este mal que a muitos toca
Que estou ja como minhoca
Que puzerão a seccar47.
Triste desaventurada48 005
Que tão alta está, a canada
Pera mi como as estrellas;
Oh coitadas das guelas
Oh guelas da coitada!

Triste desdentada escura, 010


Quem me trouxe a taes mazelas
Oh gengivas e arnellas [dentes],
Deitae babas de seccura:
Carpi-vos, beiços coitados,
Que ja lá vão meus toucados, 015
E a cinta e a fraldilha;
Hontem bebi a mantilha,
Que me custou dous cruzados.

Oh Rua de San Gião,


Assi ’stás da sorte mesma 020
Como altares de quaresma49
E as malvas no verão.
Quem levou teus trinta ramos
47
Edição Sá da Costa [EdSC]. Versos 1-4. Maria Parda — boa bebedora e tagarela (“Et multiloqua et multibiba
est anus.”. Plauto, Cistellaria, 1, 3) lamenta-se da falta de vinho.
48
EdSC. Versos 5 e 10, infeliz.
49
EdSC. Verso 21, sem ramos, isto é, sem tabernas.
47

E o meu mana bebamos,


<259d> Isto a cada bocadinho? 025
Ó vinho mano, meu vinho,
Que ma ora te gastamos.

Ó travéssa zanguizarra
De Mata-porcos escura,
Como estás de ma ventura, 030
Sem ramos de barra a barra.
Porque tens ha tantos dias
As tuas pipas vazias,
Os toneis postos em pé?
Ou te tornaste Cuiné 035
Ou o barco das enguias.

Triste quem não cega em ver


Nas carnicerias50 velhas
Muitas sardinhas nas grelhas;
[1310] Mas o demo ha de beber. 040
E agora que estão erguidas
As coitadas doloridas
Das pipas limpas da borra,
Achegou-lhe a paz com porra
De crecerem as medidas. 045

Ó Rua da Ferraria51,
Onde as portas erão mayas52,
Como estás cheia de guaias [prantos],
Com tanta louça vazia!
Ja m’a mim acconteceo 050
Na manhan que Deos naceo,
Á hora do nacimento,
Beber alli hum de cento,
Que nunca mais pareceo.

Rua de Cata-que-farás53, 055


Que farei e que farás!
Quando vos vi taes, chorei,
E tornei-me por detras.
Que foi do vosso bom vinho,
E tanto ramo de pinho54, 060
Laranja, papel e cana,
Onde bebemos Joanna

50
EdSC. As Carnicerias (açougues) ficavam no Terreiro do Paço — “las Carnicerias viejas — le llaman los
naturales, — porque em outra edad primeira — era el rastro de las carnes — alli...” Rodrigues Lobo, Jornada de
D. Filipe, p. 683.
51
EdSC. Ficava na Ribeira.
52
EdSC. Onde havia muitas tabernas (as portas tinham ramos) — “aquelas maias que punham, aquelas lampas,
aquelas alvoradas...” Jorge Ferreira, Ulysippo, III, c. 6.ª —. “Cuando pusimos el mayo...” Encina, Teatro, p. 196.
53
EdSC. Ficava perto do Corpo Santo.
54
EdSC. Tanta taberna.
48

E eu cento e hum cinquinho55.

Ó tavernas da Ribeira56,
Não vos verá a vós ninguem 065
Mosquitos, o verão que vem,
Porque sereis areeira.
<260a>Triste, que será de mi!
Que ma ora vos eu vi!
Que ma ora me vós vistes! 070
Que ma ora me paristes,
Mãe da filha do ruim

Quem vio nunca toda Alfama57


Com quatro ramos cagados58,
Os tornos todos quebrados! 075
Ó bicos de minha mama!59
Bem alli ó Sancto Esprito60
Ia eu sempre dar no fito
N’hum vinho claro rosete.
Oh meu bem doce palhete, 080
Quem pudera dar hum grito!

Ó triste Rua dos Fornos,


Que foi da vossa verdura!
Agora rua d’amargura61
Vos fez a paixão dos tornos. 085
[1311] Quando eu, rua, per vós vou,
Todolos traques que dou
São suspiros de saudade;
Pera vós ventosidade
Naci toda como estou. 090

Fui-me á Poço do chão,


Fui-me á praça dos canos;
Carpi-vos, manas e manos,
Que a dezaseis o dão62.
Ó velhas amarguradas, 095
Que antre tres sete canadas
Sohiamos de beber,
Agora, tristes! remoer
Sete raivas apertadas.

Ó rua da Mouraria, 100

55
EdSC. Cento e cinco reais.
56
EdSC. Recorde-se Gil Vicente, Obras, V, p. 102.
57
EdSC. Alfama era o bairro mais populoso, mais elegante, mas também mais perigoso da antiga Lisboa da
Renascencça. Este bairro turbulento, por causa das Escolas, ficava entre o do Castelo (Alcáçova) e o da Ribeira.
58
EdSC. Versos 74 e 75, quase sem tabernas, e as torneiras quebradas.
59
EdSC. Frase para patentear a admiração da Maria Parda.
60
EdSC. No bairro do Castelo.
61
EdSC. Agora sem tabernas.
62
EdSC. Cf. “vinho a seis, cabra a três.” Gil Vicente, Obras, V, p. 339.
49

Quem vos fez matar a sede


Pela lei de Mafamede
Com a triste d’agua fria?
Ó bebedores irmãos,
Que nos presta ser christãos63, 105
Pois nos Deus tirou o vinho?
Ó anno triste cainho64,
Porque nos fazes pagãos?

Os braços trago cansados


De carpir estas queixadas65, 110
<260b> As orelhas engelhadas
De me ouvir tantos brados.
Quero-mir ás taverneiras,
Taverneiros, medideiras,
Que me dem hũa canada, 115
Sobre meu rosto fiada,
A pagar lá polas [pelas] eiras66.

Pede fiado á Biscainha

Ó Senhora Biscainha,
Fiae-me canada e meia,
Ou me dae hũa candeia67, 120
Que se vai esta alma minha.
Acudi-me dolorida,
Que trago a madre cahida68,
E çarra-se-me o gorgomilo:
Emquanto posso engoli-lo, 125
Soccorei-me minha vida,

[1312] Biscainha

Não dou eu vinho fiado,


Ide vós embora, amiga.
Quereis ora que vos diga?
Não tendes isso aviado. 130
Dizem lá que não he tempo
De pousar o cu ao vento.
Sangrade-vos, Maria Parda
Agora tem vez a Guarda
E a raia no avento69. 135

A João Cavalleiro, Castilhano

63
EdSC. Que nos proveita...
64
EdSC. Ó ano cheio de fome e de miséria.
65
EdSC. As queixadas laceradas de tanto gritar. Recorde Gil Vicente, Obras, V, p. 226.
66
EdSC. A pagar na ocasião das colheitas.
67
EdSC. Porque estou moribunda.
68
EdSC. Recorde-se Gil Vicente, Obras, V, p. 270.
69
EdSC. Gil Vicente combinou dois rifões: Venho de Tomar e vou para a Guarda com Tudo vem a seu tempo e
os nabos — ou a raia — em advento. Not. Vic., IV, p. 291.
50

Devoto João Cavalleiro,


Que pareceis Isaias,
Dae-me de beber tres dias,
E far-vos-hei meu herdeiro.
Não tenho filhas nem filhos, 140
Senao canadas e quartilhos;
Tenho enxoval de guarda,
Se herdardes Maria Parda,
Sereis fora d’empecilhos.

João Cavalleiro

Amiga, dicen por villa 145


Un ejemplo de Pelayo,
Que una cosa piensa el bayo
<260c> Y otra quien lo ensilla70.
Pagad, si quereis beber;
Porque debeis de saber 150
Que quien su yegua mal pea,
Aunque nunca mas la vea,
Él se la quiso perder.

Vai-se a Branca Leda

Branca mana, que fazedes?


Meu amor, Deos vos ajude; 155
[1313] Que estou no ataude,
Se me vós não accorredes71.
Fiade-me ora tres meias,
Que ando por casas alheias
Com esta sede tão viva, 160
Que ja não acho cativa72
Gota de sangue nas veias.

Branca Leda

Olhade, mulher de bem,


Dizem qu’em tempo de figos
Não ha hi nenhuns amigos73, 165
Nem os busque então ninguem.
E diz o exemplo dioso,
Que bem passa de guloso
O que come o que não tem.
Muita agua ha em Boratem74 170
E no poço do tinhoso.

70
EdSC. O cavalo pensa uma coisa e outra coisa o dono (rifão antigo).
71
EdSC. Socorreis.
72
EdSC. Desventurada.
73
EdSC. Provérbio segundo o qual os ingratos, quando têm, não conhecem os benfeitores.
74
EdSC. Referência ao Poço de Borratém, fonte em Lisboa?
51

Vai-se a João do Lumiar

Senhor João do Lumiar,


Lume da minha cegueira,
Esta era a verde pereira
Em que vos eu via estar. 175
Fiae-me hum gentar de vinho,
E pagar-vos-hei em linho,
Que ja minha lan não presta:
Tenho mandada hũa besta
Por elle a antre Douro e Minho. 180

João do Lumiar

Exemplo de mulher honrada,


Que nos ninhos d’ora a hum anno
Não ha passaros oganno75.
I-vos, que sois aviada.
Emquanto isto assi dura, 185
Matae com agua a seccura,
[1314] <260d> Ou ide a outrem enganar,
Que eu não m’hei de fiar.
De mula com matadura.

Indo pera casa de Martim Alho, vai dizendo:

Amara76 aqui hei d’estalar 190


Nesta manta emburilhada:
Oh Maria Parda coitada77,
Que não tens ja que mijar!
Eu não sei que mal foi este,
Peor sem vezes que a peste, 195
Que quando era o trio e o tramo78,
Andava eu de ramo em ramo
Não quero deste, mas deste.

Diz a Martim Alho

Martim Alho, amigo meu,


Martim Alho meu amigo, 200
Tão secco trago o embigo
Como nariz de Judeu.
De sede não sei que faça:
Ou fiado ou de graça,
Mano79, soccorrede-me ora, 205
Que trago ja os olhos fora

75
EdSC. Este ano.
76
EdSC. Infeliz.
77
EdSC. Desgraçada.
78
EdSC. Repete a ideia do verso anterior. Veja João Ribeiro, Frases feitas, v. 1, p. 11.
79
EdSC. Amigo.
52

Como rola da negaça80.

Martim Alho

Diz hum verso81 acostumado:


Quem quer fogo busque a lenha:
E mais seu dono d’acenha 210
Appella de dar fiado82.
Vós quereis, dona, folgar,
E mandais-me a mim fiar?
Pois diz outro exemplo83 antigo,
Quem quizer comer comigo 215
Traga em que se assentar,

[1315] Vai-se á Falula

Amor meu, mana Falula,


Minha gloria84 e meu deleite,
Emprestae-me do85 azeite,
Que se me secca a matula. 220
Até que haja dinheiro,
Fiae, que pouco requeiro,
Duas canadas bem puras,
Por não ficar ás escuras,
<261a> Que se m’arde o candieiro. 225

Falula

Diz Nabucodonosor
No sideraque e miseraque86,
Aquelle que dá gran traque
Atravesse-o no salvanor87.
E diz mais, quem muito pede88, 230
Mana minha, muito fede.
Sete mil custou a pipa;
Se quereis fartar a tripa,
Pagae, que a vinte se mede.

Maria Parda

Raivou tanto sideraque 235


E tanta zarzagania89,
80
EdSC. Como rola na armadilha.
81
EdSC. Provérbio.
82
EdSC. Protesta.
83
EdSC. Provérbio.
84
EdSC. Meu prazer.
85
EdSC. Construção partitiva.
86
EdSC. “Os dois nomes são caldeus e foram impostos, em Babel, a dois companheiros de cativeiro do profeta
Daniel: Sidrach e Misach”. Not. Vic., IV, p. 136.
87
EdSC. Rabo. Recorde Gil Vicente, Obras, I, p. 207 — verso 12.
88
EdSC. É um provérbio.
89
EdSC. Desesperam tantas escapatórias.
53

Vou-me a morrer de sequia


Em cima d’hum almadraque90.
E ante de meu finamento,
Ordeno meu testamento91 240
Desta maneira seguinte,
Na triste era de vinte
E dous desde o nacimento.

Testamento

A minha alma encommendo


A Noé92 e a outrem não, 245
E meu corpo enterrarão
[1316] Onde estão sempre bebendo.
Leixo por minha herdeira
E tambem testamenteira
Lianor Mendes d’Arruda, 250
Que vendeo como sesuda,
Por beber, at’á peneira.

Item93 mais mando levar


Por tochas cepas de vinha,
E hũa borracha minha 255
Com que me hajão d’encensar,
Porque teve malvasia.
Encensem-me assi vazia,
Pois tambem eu assi vou;
E a sede que me matou, 260
Venha pola cleresia.

Levar-me-hão em hum andor


<261b> De dia, ás horas certas
Que estão as portas abertas94
Das tavernas per hu for. 265
E irei, pois mais não pude,
N’hum quarto por ataude95,
Que não tivesse agua pé96
O sovenite97 a Noé
Cantem sempre a meude. 270

90
EdSC. Vou morrer ávida de vinho em cima de uma almofada.
91
EdSC. Faço as minhas disposições.
92
EdSC. “O patriarca bíblico é mencionado sobretudo na sua função mais popular, como plnatador de videiras, e
apreciador do suco das uvas. É a ele que a beberrona Maria Parda entrega a sua alma; a ele que — mais adiante
— faz cantar orações e recomenda os demais filhos de Noé.” Not. Vic., IV, p. 316.
93
EdSC. Também; demais. Item usava-se muito na Península Hispânica nas fórmulas testamentárias.
94
EdSC. Às horas em que estão abertas as tabernas por onde passar o saimento.
95
EdSC. Num quarto de pipa por caixão.
96
EdSC. Que nunca tivesse contido aguapé.
97
EdSC. Alusão ao Responso: Subvenite, sancti Dei, occurrite Angeli Domini, suscipientes animam ejus..., que o
ritual romano manda reciat em seguida ao falecimento de qualquer fiel; e ao entrar o cadáver na igreja para se
lhe fazerem as exéquias. Not. Vic., IV, p. 175.
54

Diante irão mui sem pejo


Trinta e seis odres vazios,
Que despejei nestes frios,
Sem nunca matar desejo98.
Não digão missas rezadas, 275
Todas sejão bem cantadas
Em Framengo e Allemão,
Porque estes me levarão
Ás vinhas mais carregadas.

Item dirão per dó meu 280


Quatro ou cinco ou dez trintairos99,
Cantandos per taes vigairos,
Que não bebão menos que eu100.
[....................................... ada]
Sejão destes tres d’Almada, 285
E cinco daqui da Sé,
Que são filhos de Noé,
A que som encommendada.

Venha todo o sacerdote


A este meu enterramento, 290
Que tiver tão bom alento101
Como eu tive ca de cote102.
Os de Abrantes, e Punhete
[1317] D’Arruda e d’Alcouchete,
D’Alhos-Vedros e Barreiro, 295
Me venhão ca sem dinheiro
Atá cento e vinte e sete.

Item mando vestir logo


O frade allemão vermelho
Daquelle meu manto velho 300
Que tem buracos de fogo.
Item mais, mais mando dar
A quem se bem embebedar
No dia em que eu morrer,
Quanto movel hi houver 305
E quanta raiz se achar.

<261c> Item mando agasalhar103


Das orphans estas nó mais
As que por beber dos paes
Ficão proves por casar. 310
As quaes darão por maridos
Barqueiros bem recozidos
98
EdSC. Sem nunca me saciar.
99
EdSC. Exéquias de trinta dias de falecimento ou trinta missas. Recorde Gil Vicente, Obras, II, p. 96.
100
EdSC. Que são amigas “de boa pinga”.
101
EdSC. Que tiver bom fôlego para beber.
102
EdSC. Como eu tive sempre.
103
EdSC. Que sejam amparadas.
55

Em vinhos de mui bôs cheiros;


Ou busquem taes escudeiros,
Que bebão coma perdidos. 315

Item mais me cumprirão


As seguintes romarias
Com muitas ave-marias,
E não curem de Monção104.
Vão por mim á Sancta Orada 320
D’Atouguia e d’Abrigada105,
E a Curageira sancta,
Que me derão na garganta
Saude a peste passada.

Item mais me prometti 325


Nua á Pedra da Estrema106,
Quando eu tive a postema
No beiço de baixo aqui.
E porque gran gloria107 senta,
Lancem-me muita agua benta 330
Nas vinhas de Caparica,
Onde meu desejo fica
E se vai a ferramenta.

Item me levarão mais


Hum gran cirio pascoal 335
Ao glorioso Seixal,
Senhor dos outros Seixaes:
Sete missas me dirão
E os caliz encherão,
[1318] Não me digao missa secca108; 340
Porque a dor da enchaqueca
Me fez esta devação.

Item mais mando fazer


Hum espaçoso esprital,
Que quem vier de Madrigal109 345
Tenha onde se acolher.
E do termo [arredores] d’Alcobaça
Quem vier dem-lhe em que jaça [deite]:
E dos termos de Leirea
<261d> Dem-lhe pio, vinho e candea, 350
E cama, tudo de graça.

Os d’Obidos e Santarem,

104
EdSC. Os vinhos de Monção são desdenhados.
105
EdSC. Como eu tive sempre.
106
EdSC. Onde havia uma taberna. Recorde Gil Vicente, Obras, IV, p. 182 e VI, p. 146.
107
EdSC. Prazer.
108
EdSC. Em que o sacerdote não consagra.
109
EdSC. Referência a célebre vinho espanhol (cf. Celestina, ato I).
56

Se aqui pedirem pousada,


Dem-lhes de tanta pancada
Como de maos vinhos tem. 355
Homem d’Entre Douro e Minho110
Não lhe darão pão nem vinho
E quem de riba d’Avia111 for
Fazê-lhe por meu amor
Como se fosse vizinho. 360

Assi que por me salvar


Fiz este meu testamento,
Com mais siso e entendimento
Que nunca me sei estar.
Chorae todos meu perigo, 365
Não levo o vinho que digo,
Qu’eu chamava das estrellas112,
Agora m’irei par’ellas
Com grande sede comigo.

MENDES, Margarida Vieira. Maria Parda. Lisboa: Quimera, 1988. 19 p.


Texto0
4

[3] a minhoca que puseram a secar

1. Estará em discussão neste estudo aquilo a que se poderá chamar a teatralidade


intrínseca da obra de Gil Vicente que anda com o nome de Pranto de Maria Parda (PMP).
Maria Parda lamenta-se pela falta de vinho nas tabernas de Lisboa, evocando os tempos em
que ele era abundante e barato. Depois, resolve pedir o vinho fiado a alguns taberneiros que
lho negam. Por fim, decide morrer e pronuncia um extenso testamento que se refere
obsessivamente ao vinho.
2. Sempre esta obra foi designada como trovas, por se aproximar do gênero poético e
burlesco tão frequente já no Cancioneiro Geral de 1516. E nunca foi chamada auto. Óscar de
Pratt considerou-a composição de cancioneiro, publicada por Gil Vicente, e Luciana Stegagno
Picchio, um monólogo dramático, destinado à leitura entre amigos ou à recitação pública.
Todavia, também é possível supor e imaginar para ela outras funções teatrais.
3. Pode parecer académica e mesmo ociosa esta discussão artificial entre literatura e
teatro, se considerarmos que qualquer texto é capaz de se tornar matéria de teatro. Mas se
mesmo assim a proponho é porque ela se me propôs, ou seja, teve e tem ainda uma existência
real. E também porque pode importar decisivamente a quem queira estabelecer um corpus ou
qualquer tipo de dicionário do teatro quinhentista, ou a quem necessite de fixar uma
cronologia da actividade teatral de Gil Vicente: deverá o PMP comparecer ou não, quando
outras trovas do autor (v.g. à morte de D. Manuel) são arredadas naturalmente?
4. Por outro lado, e em forma de quaestio, esta dúvida será a coluna vertebral do
raciocínio aqui empreendido. Finalmente, note-se, as razões que assim se arrumarão, em
controvérsia, terão um valor menos resolutivo do que informativo, pois lêem e interpretam os
significados possíveis desta obra vicentina.

110
EdSC. Homem de muito longe.
111
EdSC. Vinho de Riba-davia.
112
EdSC. “Antes traze mais um pão — e o vinho das estrelas”, Gil Vicente, Obras, V, p. 103.
57

Na Copilaçam

5. Figurando no Quinto Livro e último da Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente


(1562) que inclui, segundo informa o próprio compilador (decerto Luís Vicente), as trovas, e
cousas meúdas, o PMP encontra-se ao lado de textos mais curtos e de espécie aparentemente
diferente da dos autos. Estes haviam sido distribuídos pelos quatro primeiros Livros e, em
quase todos, as notas em epígrafe, ao apresentarem o texto, assinalavam também a sua
representação, com o local, a data e a ocasião. A maioria de tais rubricas relaciona as acções
teatrais com festas e efemérides ligadas à vida da família real e do paço. Assim acontece com
ũa Visitação, que abre o Livro Primeiro e que, com as suas doze estrofes de monólogo, é
cousa bem mais meúda que a maioria das composições do Quinto Livro. No entanto, nunca
lhe poderíamos [4] chamar as trovas do Vaqueiro porque foi texto representado na câmara da
rainha (1502), segundo a didascália inicial.
6. A rubrica do Pranto, que serve de título na Copilaçam, escreve assim:

De Gil Vicente em nome de Maria parda fazendo pranto porque viu as ruas de
Lisboa com tão poucos ramos nas tavernas e o vinho tão caro e ela não podia
viver sem ele 259c

7. Esta redacção, com algumas variantes impertinentes para o caso, está presente nas
folhas volantes de que adiante falarei. Assemelha-se às que vêm no Cancioneiro Geral (1516)
a apresentar as trovas: de fulano em nome de fulano, quando se trata de uma prosopopeia ou
fingimento. Se o fingimento pode ser traço de teatro, não o é nem exclusiva nem
suficientemente. Basta lembrar, no mesmo Cancioneiro, as Trovas à morte de Dona Inês de
Castro, de Garcia de Resende, com fala de D. Inês que narra a sua morte. Na primeira copla
dessa composição, Garcia de Resende escreve, em seu nome e dirigindo-se às damas: s’estas
trovas quereis ler (V, 357). De qualquer modo, todas as prosopopeias do Cancioneiro Geral
indiciam um certo grau de teatralidade.
8. Na Comédia Aulegrafia (1619, 12), o escudeiro Cardoso usa também a designação
trovas: lê pelo conde Partinoples, sabe de cor as trovas de Maria Parda e entra por fegura no
auto do Marquês de Mântua. Curiosamente, as três obras referidas caracterizam o escudeiro
como amante e executante de teatro, como actor.
9. Das demais composições do Quinto Livro, apenas duas vêm acompanhadas de
notícias sobre a função teatral: a Pregação de Abrantes (1506) e a de Santarém (1531), esta
última resumida ou citada numa Carta do punho de Gil Vicente, endereçada a D. João III. No
transunto da fala ou pregação levada a cabo pelo autor, ele mesmo a refere como auto. E da
de Abrantes se diz que foi sermão feito e depois pregado pelo autor — rubrica equivalente à
de certos autos onde está feito e representado — com notícia do local e data. Em ambos os
casos não se trata de trovas nem de cousas meúdas: o sermão de Abrantes tem 373 versos e o
auto de Santarém surge transcrito em prosa.
10. Deste modo, a colocação do PMP no último livro não é argumento para determinar
o seu carácter de trovas escritas para leitura. O Quinto Livro é uma secção sortida de restos,
perdidos e achados felizes de obras que andavam publicadas em folhetos e copiadas em
cancioneiros de mão.
11. Menos significa ainda a omissão do PMP na Taboada: é gralha tal como a que
esquece de indicar a Visitação e o auto dos Físicos. A palavra trovas implícita no título De
Gil Vicente em nome de, embora seja um indicador, não chega por si só. Na época manuelina
eram ténues as fronteiras que separavam a invenção e execução da poesia das do teatro. Basta
lembrar o caso Anrique da Mota, cujas trovas têm sido interpretadas como teatro, por Leite de
Vasconcelos, Andrée Rocha e Neil Miller. E muito haveria a dizer sobre a teatralidade
inerente à produção poética que figura no Cancioneiro Geral.
58

12. [5] A própria Copilaçam de Gil Vicente, tal como a de Juan del Encina, embora não
no título mas sim nos antetextos, é chamada cancioneiro, ou seja, colectânea poética, obra
para ser lida. E é possível que o fosse já então. O que não exclui a representabilidade dos
textos aí coligidos.

Sátira e Datação

13. Se na dispositio do PMP em livro não se acham provas conclusivas respeitantes ao


estatuto da obra, procuremo-las no conhecimento das circunstâncias que envolveram a sua
produção.
14. Vem a obra intratextualmente datada de 1522:

na triste era de vinte


e dous desd’o nascimento 261a

15. Na cronologia vicentina terá sido composição de uma época em que o autor já não
fazia os autos de el-rei D. Manuel (falecido em Dezembro de 1521) e ainda não fazia os de D.
João III. Luciana Stegagno Picchio fala dum Gil Vicente desempregado do paço, devido ao
luto, e actuando nas ruas de Lisboa, mais perto do povo. Em 1521 já Gil Vicente teria
composto uma comédia para o então príncipe D. João, a de Rubena, e nesse mesmo ano de 22
estaria talvez a compor o D. Duardos para enviar e oferecer ao mesmo D. João.
16. Pouco antes — no final de 1521 —, as trovas relativas à aclamação do novo rei e,
sobretudo, as coplas atribuídas fantasiosamente, pela invenção do autor, a certos membros da
nobreza, do clero e do município de Lisboa, eram com certeza destinadas ao soberano, pois
vão carregadas de conselhos para a governação, do tipo dos que figuram nas artes de reinar.
Nessas coplas, transcritas no Quinto Livro, a tónica é posta na necessidade de o jovem
monarca proteger o seu povo, o gado arrepiado, as ovelhas suspirando / sem abrigo, os
lavradores, os povos menores, ou seja, esta manada a que o rei deverá dar pasto

porque o povo coitado


não coma pão de dolor 256c

17. E a última fala trovada é atribuída à própria personagem Povo. Neste contexto, e
como viu Luciana Stegagno Picchio, Maria Parda pode bem ser uma representante deste povo
esfomeado desde finais de 1521, que se queixa da falta e da carestia. Frei Luís de Sousa viria
a descrever com veemência, nos seus Anais de D. João III (L. I, cap. XI), a esterilidade e a
seca de 1521, assim como a fome que Lisboa viveu nos finais desse ano e ao longo do
seguinte. Em começos de 1522 morria-se de fome nas ruas da capital, tal como Maria Parda
vai morrer de sede. O cronista refere-se igualmente ao sofrimento do jovem rei com a
desgraça, e às medidas que tomou para atenuar a calamidade social em Lisboa. Houve
legislação do rei bem como propostas da edilidade, relacionadas com a falta de pão (Freire de
Oliveira, I, 525 s.).
18. [6] Em França, nos séculos XV e XVI, são conhecidas folhas volantes, surgidas em
épocas de carestia, contendo não só queixas (o pranto faceto) mas igualmente sátiras, por
vezes com violentos ataques aos açambarcadores, em grande parte responsáveis pelas subidas
de preços. No PMP, os seis taberneiros que recusam fiar o vinho poderão representar um
mercado lisboeta sovina, nos antípodas da caridade e do espírito das Misericórdias em que se
empenhou a rainha D. Leonor e, com ela, o próprio Gil Vicente. Por encomenda da rainha,
para ajudar as suas instituições e o espírito de caridade cristã que as sustinha, realizara Gil
Vicente uma acção teatral sobre o milagre de S. Martinho, em 1504, na igreja das Caldas, na
procissão do Corpo de Deus.
59

19. Há parentescos entre o auto de S. Martinho e o PMP, e este último apresenta traços
que podem ser vistos como uma inversão parodística e carnavalesca do primeiro: tal como
Maria Parda o pobre (figura do próprio Cristo) começa por lamentar ou prantear a sua falta, a
sua miséria, e também pede. Se S. Martinho, na boa acção que realiza em cena, tematiza a
virtude da caridade institucionalizada (as Misericórdias), os taberneiros poderão representar o
vício da forretice e não apenas a crise económica.
20. Um dos taberneiros é um cristão-novo e todos usam sentenças economicistas,
relativas à poupança e aos preços. Ao colocar programaticamente dois provérbios em cada
uma das coplas correspondente a cada uma das falas dos taberneiros, Gil Vicente conjuga
oportunamente, como é regra na sua produção artística, o virtuosismo retórico do
constrangimento poético, a que se obriga, com a caracterização judaizante e materialista das
personagens dos vendedores.
21. Em obras francesas da mesma altura, são acusados de causadores da artificial subida
de preços, e da falta de pão, não só os taberneiros mas também os astrólogos e os usurários (o
sermão Erreurs du peuple commun qui prenostiquent la famine l’an mil cinq cens vingt et un).
A função satírica e o comentário de factos de política económica (proibição da venda de
vinho, inflação, ou baixa dos preços) encontram-se na raiz de monólogos e prantos destinados
à leitura ou recitação na praça pública (Le monologue d’un clerc de taverne, ou La
complaincte des Monniers aux apprentifz des taverniers).
22. No Cancioneiro Geral (V, 228-248) surge um diálogo com uma mula, de Anrique
da Mota, que alude à miséria real de todo o país (na opinião de Andrée Rocha, 26). O mesmo
se pode dizer do testamento do macho ruço (IV, 268-271). São prosopopeias animais da
tradição medieval. No PMP, mais realista e usando de uma outra invenção ou estratagema
ficcional, igualmente tradicional — o travestissement goliardesco —, é digna de nota a
multiplicação das referências a preços e medidas: tão alta está a canada, de crecerem as
medidas, cento e um cinquinho, a dezasseis o dão, sete mil custou a pipa, etc.
23. Esta será uma hipótese de sentido para a obra vicentina: a sátira à carestia, a queixa
pela fome, o apelo à caridade. Outra se lhe pode opor: em época de escassez, Maria Parda
representa o desgoverno, o gasto excessivo com vícios terrenos, ou mesmo o pecado; os
taberneiros, por oposição, são figuras que [7] representam uma certa prudência, baseada na
sabedoria proverbial popular.
24. A morte final de Maria Parda seria como que o castigo da sua dissipação. A haver
sátira, o PMP terá sido composto nos começos de 1522 ou no fim do mesmo ano, pois é obra
de Inverno: Maria Parda diz que despejei nestes frios (261b), referindo-se ao vinho já bebido
por si, o que lembra um Inverno adiantado. Luciana Stegagno Picchio opta pelo Advento,
dado o passo agora tem vez a guarda / e a raia no avento (260b); mas tal passo testemunha
justamente que o agora não é o Advento, mas uma outra altura: ou o Natal de 1522, a seguir
ao Advento, ou um período anterior, em Novembro de 1522, ou em Janeiro, Fevereiro ou
Março desse mesmo ano. Se realmente o PMP se prestou à actividade teatral, a determinação
da época do ano não é inútil, dado que o teatro vicentino procedia quase sempre de festas e
celebrações, quer extemporâneas e pontuais, quer cíclicas — as de natureza agrária e
religiosa.
25. Mais adiante se voltará a este assunto.
26. Uma anterior composição, também carnavalesca e báquica — o pranto de um
creligo, de Anrique da Mota —, diz: que negra entrada de Março (Canc. Geral, V, 199),
referindo-se à Quaresma ou ao Entrudo. Ora, no ano de 1522, o período de Janeiro a Março
foi aquele em que mais se morreu de fome em Lisboa, segundo Frei Luís de Sousa.
27. Em finais de Dezembro de 1522 andava a Câmara a dialogar com o rei acerca da
imposição nova que até então vigorava sobre o vinho, e que D. João III resolveu retirar (a 30
de Dezembro), mas que a Câmara propôs se mantivesse por troca com o imposto ou sisa sobre
o pão importado. Alegavam os vereadores que a imposição nova sobre o vinho, do tempo de
60

D. Manuel, era mais fácil de suportar que a dita necessidade do pão, já que na cidade de
Lisboa existia abastança de vinho e asy em todas as comarcas e tal imposição havia sempre
sido leve de sofrer aos vereadores (apud Freire de Oliveira, I, 525-527). Terá o PMP algo a
ver com este negócio? É muito possível, sobretudo porque o referente Lisboa está bem patente
ao longo da obra (vinte topónimos). Mas se grassava a abundância de vinho no final de
Dezembro de 1522, que sentido tinha um pranto sobre a sua falta, ainda que facecioso e
alegórico? Mais parece obra de Quaresma ou de Carnaval, época que se iniciava nas matinas
do Natal (de 1521, neste caso) e percorria as festas de Janeiro até à Quaresma, incluindo a
quarta-feira de Cinza e a Mi-carême.
28. Quanto à localização deste eventual auto, a própria Maria Parda a indica, ainda que
de modo impreciso: d’aqui da sé (261b). Não sabemos se aponta para o bairro da Sé, i.e., para
uma rua ou praça dessa zona, se para o adro da Catedral, se para o seu interior, se para um
claustro. Lembro, como sugestão, que uma das capelas do claustro era então a sede da
irmandade da Misericórdia (foi-o até 1534). Sob invocação de N.ª S.ª da Piedade, era essa
capela chamada da Terra Solta, pois nela se praticava a devoção anual do enterro dos pobres
(Júlio de Castilho, VI, 55-61). Note-se que o PMP encena um pedido de piedade e um enterro:
Maria Parda vai morrer e faz as disposições para o seu funeral.
29. [8] A datação intratextual leva a pensar (o que é aceite por Braamcamp Freire, 382,
por Luciana Stegagno Picchio, 33-34, e por Sebastião Pestana) que o mais antigo folheto
conhecido deverá ter circulado exactamente nesse ano de 1522.
30. E que dizer das impressões posteriores em folhas volantes? São ela de 1619
(perdida), de 1643, de 1645 e de 1665. Em todas estas datas faltava o pão na cidade de Lisboa
e a população sofria grande carga tributária, o que mostra bem a oportunidade do PMP em
tempos de crise. Mas, ao contrário do que aconteceu em 1522, em 1619 e ainda em 1665
houve legislação específica sobre o preço do vinho, o que terá favorecido a leitura do PMP à
letra, ou seja, como obra sobre o vinho e não como metáfora carnavalesca. Em 23 de Maio de
1619 foi permitida a subida de preço do vinho, o que conduzia sempre à carestia gananciosa;
em 1643, Dezembro, um decreto sobre o preço do vinho em Lisboa alude à esterilidade geral
das vinhas; a 10 de Novembro de 1665 foi proibida a venda de vinho em Lisboa, até ao
primeiro de Dezembro, por causa das grandes doenças que na cidade se padecem (Freire de
Oliveira, IV, 529; VI, 568, 574; II, 457-459). Havia sempre interesses contraditórios na
fixação do preço do vinho, feita a 10 de Novembro de cada ano, ou seja, na véspera de S.
Martinho: por um lado, o consumidor, por outro, o lavrador, e por outro, o taberneiro, sendo
sempre este o mais interessado no aumento do preço, e defendendo a edilidade geralmente os
primeiros.
32. Ao tematizar a falta e a carestia do vinho, o PMP continuava a fazer sentido em
determinadas circunstâncias. Ao significar, por meio do vinho, a escassez e a falta, quer do
pão, quer de algo essencial à sobrevivência humana, o PMP continua e continuará a fazer
sentido.

Pranto / Diálogo / Testamento

33. O PMP é uma extensa composição, homogénea do ponto de vista da versificação:


369 versos de redondilha maior distribuídos por 41 estâncias ou coplas de 9 versos ou pés, por
sua vez divididas sempre em dois grupos rimáticos: 4+5. Esta regularidade, própria dos
monólogos dramáticos, aproxima-o das trovas e da poesia lírica e distancia-os dos autos, onde
a versificação não é rigorosamente igual do começo ao final. O número em si, 369, é
harmónico (tal como o era o 373 da totalidade dos versos da Pregação de Abrantes).
34. A esta regularidade vêm adicionar-se outras — de estrutura — demonstrativas do
virtuosismo do autor, qualidade que era então muito apreciada no trovador. O PMP foi aliás
composto numa fase da arte vicentina em que o dramaturgo ensaiou o apuro literário,
61

esmerando-se na experimentação da alta retórica e escolhido estilo, como ele próprio disse ao
oferecer o D. Duardos ao jovem rei. É a época dos romances, do diálogo-monólogo em eco da
comédia Rubena (3.ª cena), dos solilóquios líricos, ou árias, de D. Duardos.
35. Embora seja conhecida como o Pranto de Maria Parda, a obra é compósita pois
integra três géneros ou tipos enunciativos imediatamente reconhecíveis:
36. [9] o pranto, nomeado na rubrica, o diálogo com provérbios e o testamento, também
nomeado em rubrica interlinear. São catorze estrofes de pranto — uma delas inserida no meio
do diálogo —, doze de diálogo, no gênero palaciano da pergunta (pedido) / resposta, e quinze
estrofes de testamento, este, tal como o pranto, na voz exclusiva de Maria Parda. Dois
monólogos ligados por um diálogo. Os autos vicentinos apresentam-se frequentemente como
verdadeiros mosaicos de géneros, numa abundância manuelina sem precedentes e sem
sucessão na literatura portuguesa.
37. O pranto ou lamentação é aqui carnavalizado, pois exerce-se sobre a morte do
vinho, e não sobre a do rei, de um nobre, ou do ser amado (lamentação amorosa). Do pranto
ou complaincte goliardesca, frequente noutras literaturas europeias, encontramos um
espécime feito por Anrique da Mota a um clérigo, com uma estrutura tripartida semelhante à
vicentina. Figura ele no Cancioneiro Geral que contém também prantos sérios à morte do
príncipe D. Afonso e do rei D. João II. Gil Vicente abriu com uma lamentação amorosa a
comédia Rubena, de 1521, e esboçou dois curtos prantos fúnebres no interior do seu Romance
à morte de D. Manuel, também de 1521, nas vozes da Infanta e da Rainha estrangeira. Mas o
assunto báquico do PMP é único na obra vicentina — uma experiência do autor. Há que não
esquecer que o velho pranto, ou planh ou planctus, é um dos géneros poéticos mais próximos
do teatro, não só pela actuação ilocutória a ele inerente, mas também pela sua inserção ritual
nos cortejos fúnebres que se seguiam à morte de príncipes e de reis.
38. Quanto ao outro monólogo dramático, o testamento, ele é amostra isolada na
produção de Gil Vicente — outra experiência do autor. Mas é larga e chega aos nossos dias a
sua tradição europeia, em contrafacção paródica. Gil Vicente cumpre as regras e fórmulas
deste género notarial (datação, items, encomenda da alma, nomeação dos testamenteiros,
disposições para o funeral, etc.). Também no Cancioneiro Geral existem dois testamentos,
mas não de vinho: um de amores (II, 161) — como o de Juan del Encina — e outro do macho
ruço (IV, 268), muito mais incipiente do que o de Maria Parda, este sim, um dos mais
extraordinários da literatura europeia da época. Um Testament como o de Villon é obra lírica
e não dramática; outros são monólogos dramáticos assaz monótonos (Le grand Testament de
Taste-Vin, Roy des pions, de 1488) e outros encontram-se no interior de autos e de farsas (v.g.
o de Pathelin), já que a situação do agonizante se tornou frequente no teatro.
39. O diálogo, de doze coplas, onde alternam as vozes de Maria Parda e dos seis
taberneiros, lembra e não lembra os diálogos contidos nos autos. Como neles, surgem
personagens tipificadas; mas não me recordo de encontrar mais nenhum diálogo vicentino
sujeito à regra numérica de uma copla por fala. De notar ainda outras regularidades que
contribuem para a estilização dessa parte mediana do PMP, tornando-a, tal como as duas
restantes que a emolduram, textos autónomos, que poderiam figurar numa antologia poética.
Uma dessas regularidades consiste na presença obrigatória de dois aforismos em cada [10]
fala-estrofe dos seis taberneiros; outra, na referência à morte em cada fala-estrofe de Maria
Parda. O virtuosismo de réthoriqueur fazia parte dos hábitos da produção poética cortesã; a
mestria, a dificuldade lúdica e a ostentação versificatória eram muito apreciadas e louvadas
num trovador. E Gil Vicente soube mostrar-se trovador exímio em muitos dos trechos que
inseriu nos seus autos. Este diálogo com provérbios pertence ao género perguntas e respostas
das tenções poéticas dos serões palacianos, assim como ao sistema das ajudas e demais jogos
florais escritos ou improvisados nesses serões.
40. O artificialismo literário do diálogo denuncia uma intenção cortesã, e pede um
público letrado, mais do que a arraia miúda, um público leitor, mais do que espectador de
62

teatro. O tipo de humor não é tão imediato, excessivo e primário como o de outras obras
vicentinas destinadas à representação cénica. Neste sentido, e paradoxalmente, o diálogo
aproximar-se-ia do estatuto poético das trovas de cancioneiro, enquanto o pranto e o
testamento dele se afastariam.
41. Os monólogos dramáticos encontram-se distribuídos pelo teatro vicentino de
diferentes modos: gozando de alguma autonomia (o do Vaqueiro, por ex.); com uma função
prologal (a pregação na Mofina, o sonho no Templo de Apolo, o Pater Noster trobado no
Velho da Horta, os prognósticos na Exortação); incorporados no interior dos autos (a ladaínha
no Velho, o sermão de amor nas Fadas, as pragas em Quem tem Farelos?). Todas essas falas
monologais são, no entanto, mais breves que as de Maria Parda. O factor memória teria o seu
peso. Para os monólogos dramáticos recomendavam os contemporâneos uma extensão que
não excedesse as cem linhas ou versos (Aubailly, 97). Não é o caso do PMP pois, quer no
pranto quer no testamento, ultrapassa esse número. Não é também o que se passa na Pregação
de Abrantes, com os seus quase quatrocentos versos de arte maior: sabemos, pela rubrica, que
foram recitados de memória pelo autor.
42. Convirá não duvidar das memórias de então, quer as de autor quer as de actor, e Gil
Vicente exerceu ambos os papéis. Também o escudeiro referido na Aulegrafia de J. Ferreira
de Vasconcelos sabia de cor as trovas de Maria Parda. Se Gil Vicente disse o sermão em
Abrantes, afigura-se-me verosímil que possa ter pronunciado com a sua voz a fala de Maria
Parda, com ou sem o seu corpo de actor (um manequim ou bonifrate não é de excluir, neste
caso). Os mecanismos ou as técnicas oratórias de memorização estão patentes em ambos os
textos: a rigorosa divisão macrotextual, o uso dos lugares, e a anáfora sistemática, no início do
verso e no da estrofe, quer literal quer semântica, quer referencial quer discursiva (apóstrofes
às ruas de Lisboa, nomeação dos taberneiros, enumeração das vontades fúnebres e das zonas
de vinho, em parada monumental). Mas o PMP exige talvez um maior grau de fingimento que
o sermão sobre a peste: neste havia apenas uma fala moral, enquanto naquele Maria Parda
existe como personagem em situação, não só enunciativa mas também diegética.

[11] Unidades dramáticas

l. Personagens
43. Maria Parda é personagem feminina, o que é raro no género monólogo dramático de
então — em França, por ex., conhece-se apenas um caso (Aubailly, 111). Ela faz parte das
comadres vicentinas velhas, todas personagens de teatro. A linguagem e a sua posição
enunciativa — um estado elementar de necessidade, uma atitude pulsional — assemelham-se
às da mãe de Isabel em Quem tem Farelos? e às velhas do auto da Festa e do Triunfo do
Inverno. Maria Parda sofre ainda a caracterização de beberrona, o que não acontece com as
suas congéneres, sendo suporte de uma série de traços goliárdicos (a solidariedade das
tabernas, os seus queridos manos e manas).
44. Se juntarmos tudo o que vai caracterizando Maria Parda obteremos um conjunto
extraordinariamente variado: além do traje (a nudez e o manto), e da descrição realista do
corpo velho e doente, existe a linguagem figurativa (repetições, trocadilhos, exageros, ironia),
a mistura de níveis ou registos (da retórica cortesã à mais vernácula obscenidade), a forma
arcaizante da segunda pessoa do plural (socorrede-me), as insistências num campo semântico
muito primário (comida, doenças, preços, roupa), e uma riquíssima variedade ilocutória
(lamento, pragas, apóstrofes animizadoras, exclamações, processos de sedução, pedido, grito,
promessa). Note-se que não se trata de uma personagem de negra, quando muito uma Maria
Mulata, como sugeriu P. Teyssier, pois que não existe qualquer fórmula específica da língua
de preto, já então codificada. Mas o que fica sem resposta segura é o seguinte: terá havido um
corpo de actor (Gil Vicente?) a representar este corpo?
63

45. Se olharmos de perto cada um dos seis taberneiros, com falas de apenas nove versos,
dos quais três ou quatro são obrigatoriamente ocupados com provérbios, deparamos com uma
caracterização bem concreta de alguns deles: a Fala mostra-se grosseira, João Cavaleiro é
cristão-novo, Branca Leda só fala de comida. Estes taberneiros lisboetas funcionam ainda,
note-se, como uma espécie de coro que comenta as súplicas de Maria Parda.

2. Acções

46. O PMP não é apenas uma fala assente numa situação ficcional. A fala vem
acompanhada de acções a delinearem um breve plot, se bem que simplicíssimo, e essas acções
são predominantemente verbais:
l.ª a queixa pelo mal presente, com evocação do bem passado;
2.ª a decisão de pedir fiado;
3.ª o acto de pedir;
4.ª a recusa dos taberneiros (repetição em alternância destas duas acções, por seis
vezes);
5.ª a decisão de morrer;
6.ª a ordenação do testamento.
47. Todas as acções ocorrem in praesentia, tal como o discurso directo das [12]
personagens, e implicam um desfecho no futuro: Maria Parda irá morrer. Prevalece a mimese
e o showing sobre o telling, ao contrário do que acontece em muitos dos monólogos
dramáticos europeus, que são falas narrativas. Assistimos à deambulação e cortejo de Maria
Parda pelas ruas dos bairros orientais de Lisboa, ou, ao invés, ao desfile dessas ruas,
magicamente convocadas pela aflitiva apóstrofe de Maria Parda ao nomeá-las: Rua de S.
Gião, Travessa de Mata-Porcos, Carnecerias, Rua da Ferraria, Biscainha, etc. Usando
máquinas, poder-se-ia fazer rodar diante dos olhos do espectador cada uma das ruas e tabernas
interpeladas em cada estrofe. Seriam as praças e vielas a passar por Maria Parda e não esta a
atravessá-las. Mas também ela se move, segundo informam algumas didascálias, na sequência
da decisão quero m’ir às taverneiras (260b): Vai-se a Branca leda, Vai-se a João do Lumiar,
indo pera casa de Martim alho.
48. Ocorre aqui o argumento de natureza extratextual a favor da teatralidade intrínseca
desta peça vicentina. A similaridade existente entre esta estrutura de deslocação cénica e a
cerimónia dos prantos fúnebres na capital, em Dezembro de 1521, quando morreu D. Manuel:
o cortejo desfilava por certas ruas de Lisboa e parava em pelo menos três lugares definidos,
onde se quebravam os escudos (equivalentes sérios, não carnavalescos, das tabernas que
Maria Parda visita); os trajes eram mantos negros (Maria Parda vai emburilhada numa
manta); e grandes eram as manifestações de dor (não menores que as de Maria Parda). Vem
ao pensamento a comparação entre o PMP e o pranto de D. Manuel, do qual aquele seria
então uma espécie de reverso parodístico, irreverente, cómico e satírico.

3. Dícticos

49. Para lá dos virtuais movimentos cénicos, derivados da intriga, que implicam quer
um espaço visível, quer uma duração, sobressai nos enunciados a presença material do corpo
de Maria Parda, para cujas partes ela mesma chama repetitivamente a atenção e os olhos do
espectador: a falta de dentes, as gengivas, os braços, os beiços, as orelhas, as queixadas.
50. Acresce que esses fragmentos do organismo são animizados, pois tornam-se
eventuais interlocutores, dramaticamente apostrofados. O mesmo acontece com as ruas de
Lisboa, as pipas de vinho ou as manas bebedoras (ausentes): todos são compelidos a gritar e a
64

carpir-se. Também na sua lamentação o pobre do auto de S. Martinho se endereçava às partes


doentes do seu corpo. Maria Parda estimula esse corpo a exprimir-se:

ó gengibas e arnelas
deitai babas de secura.
Carpi-vos beiços coitados 259c

51. Acompanha toda esta agitação dramática, própria do código genológico do pranto, o
efeito de presença criado pelos dícticos estas, esta, estes e aqui, assim como as referências à
indumentária e a alguns adereços cénicos: estas [13] queixadas, esta er’a verde pereira / em
que vos eu via estar, Amara aqui hei d’estalar / nesta manta emburilhada, que despejei nestes
frios, d’aqui da sé, no beiço de baixo aqui.

4. Tempo e ausência

52. Esta tão acentuada presença contrasta significativamente com o tema da falta e da
ausência. Ausentes os tempos passados e as tabernas da Lisboa antiga, cheia de vinho;
ausentes os tempos futuros de ofícios fúnebres, no pós-morte, também eles cheios de vinho.
53. O que está presente em cena é a ausência, o vazio, e a sede — seja no corpo de
Maria Parda, ressequido, sem roupa, sem dentes e tão leve e aéreo, seja no tempo e no espaço:
as pipas ocas, e o momento de necessidade. O que está ausente é o de que Maria Parda
constantemente fala, recordando o passado e incitando a um futuro de plenitude. Ao nomear a
ausência, convoca-a magicamente a uma presença absorvente, excessiva e sobrerreal: o vinho,
os tempos utópicos de abundância, o espaço lisboeta das tabernas e demais territórios
vinícolas de Portugal. Esta presença fantasmagórica do vinho agiganta-se no pranto, e
sobretudo no testamento, verdadeiro triunfo do vinho.
54. No pranto, por três formas:
l.º por nomeação e interpelação directa e afectiva: ó vinho mano meu vinho, ó bicos de
minha mama;
2.º pela metonímia realista, pois todos os objectos chamados à presença são recipientes
ou lugares de vinho, mas sem ele, desde as medidas, às pipas vazias e aos tornos quebrados,
desde os taberneiros que não vendem, às partes do corpo onde devia passar o vinho (goelas,
gorgomilho);
3.º pelo desenvolvimento do topos da passada idade de ouro e de abundância (florebat
olim), um tempo vivido em gloriosa solidariedade: o frenesim da evocação báquica equivale
ao estado lancinante de sede e de secura, a cada passo reiterado dum modo naturalista, como
se vai ver.
55. Quanto ao testamento, nele se visiona um futuro de fartura, pois só o presente é de
crise e de falta, personificadas na própria Maria Parda. Daí a quantificação hiperbólica, a
acumulação cada vez mais excessiva de tudo o que diz respeito ao vinho, no género copioso
do banquete fúnebre, de origem pagã, a contrastar com o grotesco e a escassez dos legados de
Maria Parda — trapos e uma borracha. A estrutura do testamento é enumerativa e
acumulativa; predominam os plurais, assim como o sempre, o ameúde; e o exagero numérico
vai em crescendo (trinta e seis odres, quatro ou cinco ou dez trintairos, cento e vinte e sete
vigários). Também a dessacralização goliárdica atinge, não um ou dois objectos, mas grande
quantidade: os turíbulos, as tochas, o ataúde, a água benta e o próprio Deus convertem-se em
borrachas, cepas, pipas, malvasia e Noé. Maria Parda pinta um universo desmesurado, a
transbordar de vinho: sacerdotes todos bêbedos, escudeiros e barqueiros recozidos, órfãs de
pais alcoólicos, etc.
56. [14] Só numa cena futura o mundo poderá apresentar-se fértil e pujante de vinho. E,
mais importante, só após a morte de Maria Parda, cujo corpo terá de perecer. Trata-se então
65

de uma morte sacrificial, em toda esta paródia de tragédia: a minhoca que puseram a secar no
começo deste auto irá, no final, para as estrelas altas e longínquas — da terra para o céu —
mas com grande sede, como diz o último verso.

Naturalismo e simbolismo

1. O corpo grotesco e pardo da terra

57. No PMP sobressai a figuração da velhice. À personagem convencional do clérigo


beberrão preferiu Gil Vicente a da velha, menos apta para a sátira e mais naturalista.
Personagem da tradição popular (em Itália, por ex., nos cantos de vinho; em Portugal, na festa
de Santa Bebiana), não é aqui apenas um tipo cómico, ou de farsa, semelhante a outras
comadres velhas, mas é essencialmente um corpo seco, pronto para morrer. Dele emana uma
fala que funciona como o seu prolongamento, a sua expressão fisiológica e natural. Este corpo
velho encontramo-lo num outro auto vicentino, o Triunfo do Inverno, onde se evoca um rito
de passagem. A velha que atravessa descalça a serra nevada, para casar com um mancebo tão
bem feito / que é ũa consolação, personifica o Inverno a que se seguirá a Primavera. É
descrita como corcovada e enrugada, com as gengibas inchadas. Dela se diz: No sentis que
sois ya tierra? E ela própria acaba exclamando, tal como a Maria Parda ao ir vazia para as
estrelas: que vou cada vez mais leve (178b).
58. O corpo de Maria Parda mostra-se grotesco; envelhecido (triste desdentada escura,
arnelas, orelhas engelhadas), doente (mazelas, olhos fora, postema no beiço, a dor da
enxaqueca) e, acima de tudo, oco e seco (deitai babas de secura, ventosidade, hei de estalar,
tão seco trago o embigo, morrer de sequia, assi vazia, sem gota de sangue nas veas, não tens
já que mijar).
59. Predomina o motivo da sede e da secura, que se estende a todas as coisas e seres: os
tonéis secos, a louça e as pipas vazias, a Ribeira areeira. Impossível não estabelecer o
paralelo entre as palavras de Frei Luís de Sousa ao evocar tanto a fome de 1522, quanto a seca
e a esterilidade de 1521 que a provocaram: As terras delgadas se desfaziam em cinza; as
grossas se apertavam e abriam em fendas até o centro (Anais, L. I, cap. XI).
60. Assemelham-se as imagens do corpo gretado da terra e do de Maria Parda, até na
cor cinza. Ao evidenciar o corpo da velha, Gil Vicente naturaliza-o e identifica-o
simbolicamente com a própria terra que se encontra velha, doente, seca e parda, a necessitar
de ser renovada com o líquido regenerador: a água.
61. Repare-se que as partes e as funções orgânicas nomeadas são sempre as
correspondentes a necessidades primárias e naturais: as escatológicas (ventosidade, traques,
mijar) e as alimentares (beiço, gorgomilo, engolir, fartar a tripa).
62. [15] Sistemáticas são também as referências vegetais à árvore vital, associada à
presença do vinho nas tabernas, com a nomeação dos seus ramos, da sua verdura e até das
suas espécies (pereira, pinho, maias). Essa árvore aparece gravada nas vinhetas de quase todos
os folhetos impressos. Ela e o corpo de Maria Parda, bem como os seus ditos, assinalam o
ciclo da vida, do nascimento à morte, passando pela doença: que má hora me paristes, bicos
de minha mama, a madre caída, os tramos da peste. Nos três versos que se seguem, patenteia-
se o contraste e a proximidade entre a vida e a morte:

com esta sede tão viva


que já não acho cativa
gota de sangue nas veas. 260c

63. Também a terra não acha o humor, o suco subterrâneo que fará germinar o seu grão,
ou seja, a chuva que terá que cair do céu. O ciclo da vida humana, aqui rematado com a morte
66

de sequia, aparece intimamente ligado com o da vegetação e o das estações do ano, próprios
da natureza agrícola e designados segundo o ciclo litúrgico: avento, nacimento, coresma,
paixão, verão, eiras.

2. A morte da seca e o vinho da vida

64. A tematização da morte, em todos os níveis de elaboração do PMP, afasta esta obra
de outras composições de teor meramente goliárdico ou de sátira social, e aproxima-a das
manifestações simbólicas de origem folclórica e ritual. Em Gil Vicente casam-se certos
comportamentos naturalistas, próprios da festa e do teatro, onde se manifesta a herança
ancestral de ritos que começaram por ser sagrados e agrários, com a mais apurada retórica
cortesã (o virtuosismo do trovador-poeta) e ainda com as necessidades de circunstância,
muitas vezes de intervenção satírica (caso da crítica à carestia ou então ao esbanjamento
financeiro e aos excessos da carne).
65. Encontramos o tema da morte, em primeiro lugar, no plano enunciativo: o pranto, o
diálogo — derradeiro debate ou agon — e o testamento. Em segundo lugar, no plano
narrativo: a doença da falta só acabará com a morte, no pós-morte. Em terceiro lugar, no
plano semântico e vocabular: Maria Parda alude repetidas vezes à morte, pela referência à
candeia de azeite (rito de morte mas também metáfora do vinho), e, no testamento, abunda o
léxico fúnebre.
66. É sabido que o teatro deu continuidade ao simbolismo dos ritos agrários e à sua
imitação lúdica, como a deu aos grandes temas da luta e sucessão entre a morte e a vida, entre
as calamidades e a expulsão do mal pela morte, entendida como sacrifício propiciatório à
resolução de uma grande desgraça colectiva. Neste caso seria a seca da terra e a fome dos
moradores de Lisboa e dos que chegavam à capital em busca de pão, morrendo nas suas ruas.
Se Maria Parda pode figurar um dos esfomeados que Lisboa tem o dever de alimentar ou, pelo
menos, de enterrar, também pode figurar o herói pecador [16] da tragédia, aqui carnavalizado
num pathos sacrificial parodístico. Os manequins de Carnaval funcionavam muitas vezes
como simulacro do bode expiatório dos pecados de uma comunidade.
67. Do cruzamento de todas estas linhas de significação pode concluir-se que o PMP
realiza a personificação alegórica e a dramatização do próprio ciclo da vida e da morte,
incluindo as catástrofes naturais, sociais e económicas: estas últimas como que se
naturalizam. Igual procedimento simbólico encontra-se na raiz da Mofina Mendes,
personificação teatral não só da má sorte natural mas também do desgoverno e esvaziamento
dos cofres reais (a burra, o gado perdido), tudo a necessitar de remédio — neste caso ele virá
da intervenção divina do Redentor, pois o auto de Mofina é de Natal e representa o mistério.
Para que a chuva apareça, a terra frutifique, a vida renasça, Maria Parda terá que perecer, pois
encarna tanto a fome colectiva como a terra velha e exangue, o ano seco e estéril, a própria
morte. Neste sentido, a morte de Maria Parda, no inverno de 1522, adquire o valor catártico
de afastar o mal da seca e de atrair o bem da chuva. Então poderá brotar a abundância, pintada
em dimensão gigante no apoteótico testamento de vinho. O vinho estará pela própria vida —
o sangue nas veas que falta à Maria Parda — e não só pelo pão necessário à vida.
68. O registo goliárdico, factor de carnavalização proveniente da tradição já
popularizada dos cânticos báquicos, possui um valor alegórico e não só literal. O tema
báquico, que tão bem se ajusta a umas trovas e que lhes confere grande coesão teatral e
literária, revela afinal as suas origens teatrais. Não era Dionísio ao mesmo tempo o pai do
teatro e o pai da vinha? E não era o vinho o sangue da terra?

As festas e a paródia
67

69. Ritos e invenções jocosas como a luta entre as estações, ou entre o ano velho e o
novo, ou entre o Carnaval e a Quaresma, vêm sugeridas de forma subliminar neste auto. Em
António Prestes, Maria Parda surge contraposta ao ano bom: n’um [portal] pintar-lhe o ano
bom / n’outro maria parda (1587, 9c).
70. A busca dum futuro de felicidade pela representação duma sociedade em crise,
ruptura ou luta — aqui o drama de Maria Parda, gastadora e necessitada, e a sua discussão
com os taberneiros, sovinas e prudentes — é intenção própria dum teatro cujo fundo é
ritualístico. No testamento, os legados e as vontades fúnebres podem exprimir aspirações
colectivas. Assim acontece nos testamentos facetos e burlescos, lidos em voz alta, que
acompanham, em Portugal, o enterro do João e do Entrudo, ou a serração da Velha (Veiga de
Oliveira, 1984). Apresentam o mesmo carácter excessivo e exuberante, a mesma técnica
acumulativa, a mesma estrutura de desfile, o mesmo registo de licenciosidade e de
transgressão carnavalesca. São ditos em festas que correspondem a ritos de passagem: do
Inverno para a Primavera, do Entrudo — tempo de dissipação, satisfação e desmedida — para
a Quaresma — época [17] em que a semente deverá germinar. Segundo a lógica do
pensamento mágico, a germinação é favorecida pelo fim do desregramento, do tempo dos
prazeres e excessos da carne, e pela abstenção alimentar, pela guarda, às quais podemos
associar Maria Parda e a sua abstinência forçada.
71. Os demais componentes de carácter ritual, cujo fundo pagão e mágico se mistura
com elementos cristãos, vão desde as acções enunciativas — súplicas, lamentações,
maldições, exortações — até às personificações ou às apoteoses e triunfos — aqui os do vinho
e da abundância — e ao sacrifício — a morte de Maria Parda.
72. Ao contrário do que acontece, por ex., com Anrique da Mota, Gil Vicente trabalha
neste, tal como noutros autos, sobre elementos originários das manifestações teatrais de
carácter festivo e colectivo.
73. O modo processional patente em toda a obra, a todos os seus níveis, assim como as
manifestações de pranto e, depois, de últimas vontades são também típicos dessas
festividades. Lembro algumas:
a) o S. Martinho (11/Nov.), festa que inaugurava o Inverno na antiga liturgia moçárabe,
anterior a Gil Vicente: aparece o vinho novo, festejado por vezes com cortejos de bêbedos; na
véspera era decidido pela Câmara de Lisboa o preço da venda do vinho nas tabernas (pelo
menos nos séc. XVI e XVII);
b) a Santa Bebiana (2/Dez.), advogada das mulheres bêbedas: realizam-se, em certas
aldeias, desfiles que afixam as confrarias dos irmãos do vinho;
c) o Natal e a sua oitava, ou os Reis, ocasião em que se bebia bastante e período
de liberdade licenciosa, propício a paródias;
d) a passagem do ano, quando se deixa o velho e se fazem votos para o novo, o ano bom
(o que estaria de acordo com o passo atrás citado de António Prestes);
e) também nas Janeiras se efectuam cortejos e se fazem pedidos;
f) S. Vicente, patrono de Lisboa, com festa em 22 de Janeiro;
g) no Carnaval, a celebração ritual do enterro do Entrudo ou do João, por vezes já na
Quarta-Feira de Cinzas;
h) a serração da Velha, celebrada a meio da Quaresma, é um intervalo festivo em que a
vítima é uma velha; modernamente inclui a leitura dum testamento em verso.
74. Além de conter unidades comuns às invenções que preenchem todas estas festas, o
PMP serve ainda em todas as épocas de aflição, de miséria, de falta de víveres, de aumento
dos preços, ou ainda nas de puro divertimento. A paródia por rebaixamento do sublime, do
trágico, do sério e do sagrado, é ingrediente obrigatório dessas manifestações colectivas, e não
falta no caso do PMP: — o luto que se pranteia não se refere a uma pessoa régia ou nobre,
mas ao vinho, exprimindo uma necessidade carnal, fisiológica e primária; — as fórmulas
literárias próprias das lamentações amorosas e dos prantos régios vêm misturadas com
68

grosserias, pragas e alusões escatológicas: todolos traques que dou / são suspiros de saudade;
[18] — as referências religiosas ao Natal e à Paixão de Cristo trazem a lembrança do vinho (a
paixão dos tornos); — no testamento, a dessacralização pela paródia litúrgica é total: da
tradicional divinização de Noé até às romarias de vinho, à borracha por turíbulo, aos vigários
bêbedos, à água benta nas vinhas. A haver representação destas trovas, ou seja, a haver acto
ou auto, ele ocorreria certamente num período de permissividade e de festa.
75. Tudo isto nos fala de teatro. Não significa que o PMP tenha constituído uma acção
teatral vicentina, ainda que fosse texto praticado então, ou pelo menos sabido de cor por
escudeiros amantes de teatro. Mas significa que tinha, e tem, todas as condições para ser
teatro, pois, como aqui tentei mostrar, exibe a presença dum corpo, que tanto pode representar
um triunfo báquico, como a falta de vinho, tanto a fome, como a sátira à carestia e à ganância,
tanto a abstinência quaresmal, como o castigo dos excessos perdulários da carne, tanto a
caridade, como a necessidade de contenção económica, e ainda a terra exangue, a seca, a
velhice, a morte, a doença, o ano velho, a cidade de Lisboa, ou um sacrifício fúnebre ritual,
carnavalizado. Além disso é eminentemente adaptável às festas e funções colectivas, quer
cíclicas quer críticas. Nelas, a natureza primária, a organização social e as práticas culturais e
simbólicas intervêm conjugadamente, mostrando o ser humano em toda a plenitude da sua
crise e da sua necessidade. Tal como Maria Parda — a minhoca que puseram a secar.

[19] Referências
Aubailly, Jean-Claude, Le monologue, le dialogue et la sottie, Paris, Honoré Champion, 1976.
Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, Lisboa, Centro do Livro Brasileiro (5 volumes),
1973.
Castilho, Júlio de, Lisboa antiga — Bairros orientais, 3.ª ed., Lisboa, Imprensa Municipal da
CML, volume VI, 1975.
Comedia Aulegrafia, feita por Jorge Ferreira de Vasconcelos, Lisboa, Pedro Craesbeeck,
1619.
Freire, Anselmo Braamcamp, Vida e obras de Gil Vicente, «Trovador, mestre de balança», 2.ª
ed., Lisboa, Ocidente, 1944.
Obras completas de Gil Vicente. Reimpressão «fac-similada» da edição de 1562, Lisboa,
Biblioteca Nacional, 1928.
Oliveira, Eduardo Freire de, Elementos para a história do município de Lisboa, Lisboa,
Tipografia Universal (17 volumes), 1882-1911.
Oliveira, Ernesto Veiga de, Festividades cíclicas em Portugal, Lisboa, Dom Quixote, 1984.
Pestana, Sebastião, O Pranto de Maria Parda de Gil Vicente (com fac-símiles de exemplares
de todas as lições conhecidas), Sá da Bandeira, 1975.
Pratt, Óscar de, Gil Vicente — Notas e comentários, 2.ª ed., Lisboa, Livraria Clássica, 1931.
Primeira Parte dos Autos e Comédias Portuguesas, por António Prestes, Luís de Camões e
outros autores (Lisboa, 1587), Lisboa, Lysia, 1973.
Rocha, Andrée Crabbé, Esboços dramáticos no Cancioneiro Geral, Coimbra, Coimbra
Editora, 1951.
Sousa, Frei Luís de, Anais de D. João III, Lisboa, Sá da Costa (2 volumes), 1938.
Stegagno Picchio, Luciana, Il «Pranto de Maria Parda» di Gil Vicente, Napoli, Instituto
Universitario Orientale, 1963.
Teyssier, Paul, Gil Vicente — o autor e a obra, Lisboa, ICLP, «Biblioteca Breve», 1982.

UNIDADE II: CLASSICISMO — POESIA: SÁ DE MIRANDA, CRISTÓVÃO


FALCÃO, LUÍS DE CAMÕES E ANTÔNIO FERREIRA.TEXTOS 5 a 16

OBJETIVOS
69

Ao final desta unidade, você deverá ser capaz de:

a) ler poemas de Sá de Miranda, Cristóvão Falcão, Camões e Antônio Ferreira, segundo uma
perspectiva crítico-interpretativa;
b) examinar aspectos fundamentais das edições quinhentistas de Camões;
c) descrever a organização formal de Os Lusíadas (Camões);
d) discutir a presença do Maneirismo na canção camoniana, de acordo com a proposta
analítica de Holanda (1999);
e) examinar o processo narrativo e a substância épica no poema camoniano, segundo
Berardinelli (1973) e Cidade (1975);
f) discutir a presença de uma dimensão utópica em Camões segundo Coelho (1983).

INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS

RAMOS, Feliciano. “Os poetas líricos” e “Camões e a poesia épica”. In: História da
Literatura Portuguesa. 6. ed. Braga: Livraria Cruz, 1963, p. 250-277 e 279-302.

Texto MIRANDA, Francisco de Sá de [1481-1558]. Obras Completas; texto fixado, notas


5 e prefácio pelo prof. M. Rodrigues Lapa. Lisboa: Sá da Costa, 1942. v. 1, 328 p.

T 5.1
[306] 107.
Alma, que fica por fazer desd’hoje
na vida mais, se a vã minha esperança,
que sempre sigo, que me sempre foge,
já quanto a vista alcança a não alcança?

Fortuna que fará? Roube, despoje,


prometa doutra parte em abastança,
que tem com que m’alegre, ou com que anoje?
tanto tempo há que dei mão à balança.

Chorei dias e noites, chorei anos,


e fui ouvido ao longe, pelo escuro
gritando, acrecentar muito em meus danos.

Agora, que farei? Por amor juro


de tornar a cantar fora d’enganos
e, por muito do mal, posto em seguro.

T 5.2
[307] 108.
Aquela fé tam clara e verdadeira,
a vontade tam limpa e tam sem mágua,
tantas vezes provada em viva frágua
de fogo, i apurada, e sempre inteira;

Aquela confiança, de maneira


qu’encheu de fogo o peito, os olhos d’água,
por que eu ledo passei por tanta mágua,
culpa primeira minha e derradeira
70

De que me aproveitou? Não de al por certo


que dum só nome tam leve e tam vão,
custoso ao rosto, tam custoso à vida.

Dei de mim que falar ao longe e ao perto;


ria, a si se consola a alma perdida,
se não achar piedade, ache perdão.

T 5.3
[309] 111.
Em tormentos cruéis, tal sofrimento,
em tam contínua dor, que nunca aliva,
chamar a morte sempre, e que ela, altiva,
se ria dos meus rogos, no tormento!

E ver no mal que todo entendimento


naturalmente foge, e quanto aviva
a dor mais o vagar da alma cativa,
a quem não fará crer que é tudo um vento?

Bem sei uns olhos, que tem toda a culpa,


e são os meus, que a toda a parte vem
após o que vêm sempre e os desculpa,

Ó minhas visões altas, meu só bem,


quem vos a vós não vê, esse me culpa,
e eu sou o só que as vejo, outrem ninguém!

T 5.4
[310] 112.
Desarrazoado amor, dentro em meu peito,
tem guerra com a razão. Amor, que jaz
i já de muitos dias, manda e faz
tudo o que quer, a torto e a direito.

Não espera razões, tudo é despeito,


tudo soberba e força; faz, desfaz,
sem respeito nenhum; e quando em paz
cuidais que sois, então tudo é desfeito.

Doutra parte, a Razão tempos espia,


espia ocasiões de tarde em tarde,
que ajunta o tempo; enfim vem o seu dia:

Então não tem lugar certo onde aguarde


Amor; trata treições, que não confia
nem dos seus. Que farei quando tudo arde?
71

Texto FALCÃO, Cristóvão. Crisfal. 3. ed. Lisboa: Sá da Costa, 1978. 90 p.


6

[19] I V
Antre Sintra, a mui prezada, A qual [Joana], logo aquele dia
e [a] serra de Ribatejo que soube de seus amores,
que Arrábeda é chamada, aos parentes de Maria
perto donde o rio Tejo fez certos e sabedores
5 se mete n’água salgada, 45 [22] de tudo quanto sabia.
houve um pastor e pastora, Crisfal não era então
que com tanto amor se amarom dos bens do mundo abastado
como males lhe causarom tanto como do cuidado;
este [= a este é] bem, que nunca fora, que, por curar da paixão,
10 pois foi o que não cuidarom. 50 não curava do seu gado.

II VI
A ela [ou Ela] chamavam Maria E como em a baixeza
e ao pastor Crisfal, do sangue e pensamento
[20] ao qual, de dia em dia, é certa esta certeza —
o bem se tornou em mal, cuidar que o mericimento
15 que ele tam mal merecia. 55 está só em ter riqueza —
Sendo de pouca idade, enquerirom que teria[m]
não se ver tanto sentiam, [23] e do amor não curarom;
que o dia que não se viam, em que bem se descontarom
se viam na saudade riquezas, se faleciam [faltavam],
20 o que ambos se queriam. 60 por males que sobejarom.

III VII
Algũas horas falavam, Então, descontentes disto,
andando o gado pascendo, levarom-na a longes terras,
e então se apascentavam esconderom-na antre ũas serras,
os olhos, que, em se vendo, onde o sol não era visto,
25 mais famintos lhe[s] ficavam. 65 e a Crisfal deixarom guerras [angúst.].
E com quanto era Maria [24] Além da dor principal,
piquena, tinha cuidado pera mor pena lhe dar,
de guardar milhor o gado puserom-na em lugar
[21] o que lhe Crisfal dezia; mau para dizer seu mal,
30 mas, em fim, foi mal guardado; 70 mas bom pera o chorar.

IV VIII
Que, depois de assi viver Ali os dias passava
nesta vida e neste amor, em mágoas, da alma saídas,
depois de alcançado ter dizer a quem longe estava,
maior bem pera mor dor, e chorava por perdidas
35 em fim se houve de saber 75 as horas que não chorava.
72

por Joana, outra pastora, Em vale mui solitário e


que a Crisfal queria bem; sombrio e saudoso,
(mas o bem que de tal vem [25] sendo [o] monte temeroso,
não ser bem maior bem fora, pera o choro necessário [acomodado],
40 por não ser mal a ninguém). 80 pera a vida mui danoso.

IX XIII
Dizer o que ele [Crisfal] sentia, Minhas lágrimas cansadas [hipálage],
em que queira, não me atrevo, sem descanso nem folgança,
nem o chorar que fazia; [28] a minha triste lembrança
mas as palavras que escrevo vos tem tam aviventadas
85 são as que ele dezia. 125 como morta a esperança.
Ali sobre ũa ribeira Correi de toda vontade,
de mui alta penedia, que esta vos não faltará.
donde a água d’alto caía, Mas isto como será?
dizendo desta maneira Pedi-la-ei à saudade,
90 estava a noite e o dia: 130 e a saudade ma dará.

X XIV
“Os tempos mudam ventura Todos os contentamentos
bem o sei, pelo passar [per + o]; da minha vida passarom,
[26] mas, por minha gram tristura, e em fim não me ficarom
nenhuns puderam mudar senão descontentamentos
95 a minha desaventura. 135 que de mim se contentarom.
Não mudam tempos nem anos Destes, polo meu pecado,
ao triste a tristeza; (inda que nunca pequei
antes tenho por certeza a e quem amo e amarei),
que o longo uso dos danos nunca desacompanhado
100 se converte em natureza. 140 me vejo nem me verei.

XI [29] XV
Coitado de mim, cuitado, Faz-me esta desconfiança
pois meu mal não se amansa ver meu remédio tardar,
com choro nem com cuidado! e já agora esperar
Quem diz que o chorar descansa não ousa minha esperança,
105 é de ter pouco chorado; 145 por me mais não magoar.
que, quando as lágrimas são Se por isto desmereço,
por igual da causa delas, dê-se-me a culpa assim
[27] virá descanso por elas; e seja só com a fim,
mas como descansar hão, que há muito que me conheço
110 pois que são mais as querelas? 150 aborrecido de mim.

XII XVI
Com tudo, olhos de quem Meu coração, vós abristes
não vive fazendo al [outra coisa], caminho a meus cuidados,
chorai mais que os de ninguém, pera virem a ser banhados
que o que é para maior mal na água de meus olhos tristes,
115 tenho já para maior bem. 155 tristes, mal galardoados.
73

Lágrimas, manso e manso, Necessário é que vamos


prossigam em seu ofício: [30] algum remédio buscar
que não façam benefício: para se a vida acabar:
não servindo de descanso, est’ é [o] bem que dessejamos,
120 servirão de sacrefício. 160 est’é [o] nosso dessejar [sic].

XVI I [33] XXI


Iremos pela estrada Não devo eu mal querer
por onde os tristes vão, a quem me aqui deixou;
porque nela, por rezão que ouvido nom possa ser,
deve ser de nós achada, já me algum bem ficou,
165 achada consolação. 205 que é meu mal poder dizer.
Soir-me-ei ao pensamento, Mas, triste, não sei que digo;
qu’é alto; de ali verei, isto é falar a esmo [à toa]:
verei eu se poderei que assaz me foi enemigo
ver algum contentamento quem se vingou de mim mesmo
170 de quantos perdidos hei. 210 com me só deixar comigo.

[31] XVIII XXII


Mas o que poderá ver Que me queira consolar,
quem já da vista cegou? o meu mal não tem conforto
Porque quem me a mim levou nem eu lho posso buscar:
meu alongado prazer para o prazer sou morto
175 nenhum bem ver me deixou. 215 e vivo para o pesar.
Deixou-me em escuridade, [34] Quanto mal tam desvairado
um mal sobre outro sobejo, e todos para dar fim!
pelo que triste me vejo Tudo me é contrairo, assim:
tam longe de liberdade descuido matou meu gado,
180 como do bem que dessejo. 220 cuidado matou a mim.

XIX XXIII
Verei a vida, que em vida Vida de tam longos males,
bem vista tanto aborrece, como não cansa de ser!
aborrece a quem padece que eu canso já de viver,
tristeza mal merecida, e o eco destes vales
185 [32] que minha fé mal merece. 225 cansa de me responder.
Levarom-me toda a glória, As ribeiras, em eu vê-las,
com quanto bem dessejei, correm mais do que é seu foro [uso],
dessejei e alcancei; entrando meu chorar nelas;
ficou-me só a memória, e pois ajudam meu choro,
190 por dor, de quanto passei. 230 quero só falar com elas.

XX [35] XXIV
Lembrança do bem passado, Companheiras do meu mal,
que não devera passar, águas que d’alto correis,
esta me há-de matar; onde caís desigual,
74

dá-me tal dor o cuidado, parece que me dizeis:


195 que se não pode cuidar. 235 — Porque não choras, Crisfal?
Nada, se não for a morte, Contar-vos quero, amigas,
me dará contentamento: o que esta noute sonhei,
segundo sei do que sento [sinto], com o qual tal dor me dei,
não sento prazer tão forte que minhas muitas fadigas
200 que conforte meu tormento. 240 em mais fadigas dobrei.

XXV XIX
Despois de ontem deixar Vendo-me em lugar tal,
de vos contar os meus males, baixei os olhos a terra,
fui-me cá baixo jeitar [lançar] vi craro dia, não al,
no mais baixo destes vales, e os vales e a serra
245 antre pesar e pesar; 285 tudo julguei ser igual;
onde, despois que aos ventos mas como aborrecido
descobri minhas paixões, tanto da vida andasse,
[36] gastadas muitas rezões, que meu mal já dessejasse,
mudei os meus pensamentos temor tam pouco temido
250 em minhas contemplações. 290 não creo eu que se achasse.

XXVI [39] XXX


Contente de descontente, Depois de me ser mostrado
a noute sendo calada, este perigo de morte,
como é certo em quem sente, a terra mais abaixado,
não ficou cousa passada contra a parte do norte
255 que me não fosse presente. 295 sonhava que era levado.
Vindo-me à memória dar, Entre Tejo e Odiana
quando andava com o gado, era o meu caminhar,
ter com Maria sonhado, donde poderei contar,
fez-me o dormir dessejar, se o que notei nom me engana,
260 de mim pouco dessejado. 300 cousas bem pera notar.

[37] XXVII XXXI


E crendo que aproveitasse Porque vi muitos pastores
pera meu contentamento andar guardando seus gados,
se eu com ela sonhasse, vestidos d’alegres cores,
deu-me logar meu tromento bem fora dos meus cuidados
265 que algum pouco respousasse. 305 mas não dos de seus amores
E como cansada estava (não querendo mais haveres
do que no dia passei, nem querendo mais riqueza,
a dormir pouco tardei; porque amor tudo despreza);
e adormecido sonhava mas todos os seus prazeres
270 o que vos ora direi: 310 foram pera mim tristeza.

XXVIII [40] XXXII


Sonhava, em meu sonhar, Em um vale, descontente
75

onde dormindo estava estar Natónio vi,


ali velando estar, destes assaz diferente,
quando da parte do mar que cási não conheci,
275 gram vento se alevantava, 315 sendo bem meu conhecente.
[38] o qual com tal sobressalto Aqueste é o pastor
chegava onde eu jazia, que já veo aqui buscar-me,
e que da terra me erguia não mais que por consolar-me;
em tanto extremo alto e vi-o com tanta dor,
280 que a vista me falecia [faltava]. 320 que dor me dá o lembrar-me.

XXXIII XXXVII
Chorando lágrimas mil, Posto no seu alto cume,
estava consigo só deixarom-me ali estar.
ao modo pastoril O meu coração presume
[41] de dó, bem pera haver dó, que foi por me magoar,
325 tinto o hábito vil. 365 como tinham por costume.
Em ũa frauta tangendo, Dali os pães [grãos] semeados
ao pé de uma árvore estava; ver a meus olhos deixarom,
dês que da boca a tirava, que por não grados julgarom;
de dentro d’alma gemendo, mas, posto que foram grados,
330 em vez de cantar, chorava. 370 eu sei que não me agradarom.

XXXIV [44] XXXVIII


Quisera-o eu consolar, Já o sol se encobria
mas em cujo poder ia a este tempo, e mais
não me deu a mais lugar ficando a terra sombria,
que ouvir-lhe kque dezia: e o gado aos currais
335 Oh! Guiomar! Guiomar! 375 já então se recolhia;
Em vós pus minha esperança, ouvi cães longe ladrar,
e quanto ela encobre e os chocalhos do gado
agora em dor se descobre: com um tom tam concertado,
perigos de confiança que me fizerom lembrar
340 fizerom do rico pobre. 380 de quanto tinha passado.

[42] XXXV XXXIX


Assi, por ele passando, Por mais minhas queixas vãs,
— Natónio, tenhas prazer! vi berrar o gado moucho,
lhe dixe, gram brado dando, coberto das finas lãs,
té o da vista perder, [45] e assoviar o moucho
345 os olhos nele deixando. 385 com o triste cantar das rãs.
Deus lhe dê contentamento, Já as serranas ao [a]brigo
pois que nos fez a ventura se iam, os prados deixando,
companheiros na tristura, as mais delas suspirando:
em que seu e meu tormento ũa dezia: — Ai, Rodrigo!
350 cada vez tem menos cura. 390 outra dezia: — Ai, Fernando!

XXXVI XL
76

Daqui fomos descorrendo Ũa ciúmes temia,


até o Tejo passar, outra de si tem receo;
a água de quem eu vendo, ũa ouvi que dezia:
me foi dor sobre dor dar, — Quanasinha a noute veo!
indo já dor padescendo. Outra: — Já tarda o dia!
355 [43] Chorando a lembrança dela, 395 E por este esperimento
virada foi minha face foi Amor de mim julgado
pera onde o gado pasce por nom menos ocupado
da grande Serra da Estrela, do que [é] o pensamento,
da qual o Zêzare nasce. que nunca está descansado.
360 400

[46] XLI [49] XLV


Antre estas, só, saudosa, Não tenho que lhe falar
vi antre duas ribeiras se não sam cousas passadas;
ũa serrana queixosa se lhe estas quero contar,
cercando ũas cordeiras, vam ser todas namoradas
sendo cordeira fermosa, pera o pouco namorar.
405 como ali tem por uso, 445 Fora ele o meu amor
em ũa roca fiando; e vivera eu pobremente!...
mas, como que ia cuidando, Que grande engano de gente!:
caía-se-lhe o fuso que pobreza há i maior
da mão de quando em quando. que a vida descontente?
410 450

XLII XLVI
Tendo parecer devino, Quando com ele me assento,
pera que milhor lhe quadre, mil vezes caio em míngoa,
[47] cantar cantou dele dino: porque, por esquecimento,
Yo me iva, la mi madre, [50] falando, descobre a língua
a Sancta Maria del Pino. o que está no pensamento.
415 O vestido lhe oulhei 455 Faz-nos isto então ficar
e vi que era um brial eu muda e ele mudado;
de seda e não de saial, ama-me como é amado;
a qual eu afigurei pera me disto guardar
a Menga, la del Boscal. por bom hei guardar o gado.
420 460

XLIII XLVII
Depois d’acabar seu canto, Maria perdi — mesquinha!
dezia: — Ninguém me crea Logo em sermos apartadas,
por me ver alegre tanto: do meu mal fui adevinha;
visto-me à vontade alhea milhor sejam suas fadas
e o meu cantar é pranto. do que foi a fada minha.
425 [48] Anda a dor dessimulada, 465 Deus a dê ao seu Crisfal,
mas ela dará seu fruito; por ambos contentes ter,
a minha alma traz o luito: e mais não lhe quero ver,
de pouco sam esposada, [51] mas já sei, pelo meu mal,
mas descontente de muito. o bem d’outrem escolher.
430 470
77

XLIV XLVIII
Troquei amor por riqueza, Quando a eu assi ouvi
porque mo trocar fizerom; doer-se de minha pena,
mas bem pago esta crueza, com novos olhos a vi,
que, em que cem contos me derom, e então que era Helena,
435 descontaram-se em tristeza. minha amiga, conheci.
Meu esposo aborreço 475 Esta pastora e dama
quando me à lembrança vem certo que milhor lhe ia
do primeiro querer bem: quando a cantar ouvia,
ninguém venda amor por preço, dando fé que em sua cama
440 pois ele preço não tem. o velho não dormiria.
480

[52] XLIX [55] LIII


Pena me deu de não crer Coberta era a fonte
vê-la em tal tristeza posta; de tam fresco arvoredo,
quisera-lhe eu responder, que não sei como o conte,
mas trespôs ũa tresposta, mui quieto e mui quedo,
485 pelo qual não pôde ser. por ser antre monte e monte.
Depois de ver-me sem ela, 525 A noite, de ventos muda,
os meus olhos me chorarom: como saudade escolha;
quantas cousas lhe lembrarom e, por que mais prazer tolha,
que antre mim, Maria e ela chovia água miúda
490 em outros tempos passarom! por cima da verde folha.
530

L [56] LIV
Dês que aqui, com meu cuidado, Depois que ali chegava,
me estive fazendo guerra, ou depois que ali cheguei,
sendo o dia já passado, sonhava que acordava;
vi-me levado da terra, e do que atrás passei
495 contra as nuvens alçado. de ser sonho me lembrava.
[53] Então, como que voante, 535 O que então me era mostrado
de quem me ali trouxera tendo só por verdadeiro,
sonhei que levado era ao pé de um castanheiro
contra onde, a tarde ante, me pus, triste, assentado,
500 o sol vi que se pusera. ouvindo o tom de um ribeiro.
540

LI LV
Indo não com menos dor, Meus olhos e eu passamos
em que já com mais sossego, ali a noute em clamores,
os ventos me foram pôr, até que ao tempo chegamos
depois de passar Mondego, a que nós outros, pastores,
505 sobre as serras de Loor. o dilúculo chamamos.
Vão ali grandes montanhas 545 [57] Naqueste tempo corrompe
de alguns vales abertas, a ave que chamam leal
[54] todas de soutos cobertas, o silêncio de seu mal,
aos naturais estranhas, que é quando a alva rompe
510
78

mas à saudade certas. e o dia faz sinal.


550

LII LVI
Junto de ũa fonte era Então, por que tudo fale,
o lugar onde fui posto, contanto as mais paixões
onde sê-lo não quisera, que rezão é que não cale,
515 sendo bem lugar de gosto ouvi gritar uns pavões
para quem gosto tivera; lá no mais baixo do vale.
mas a mim nem o passado 555 Trás isto, pouco tardando,
nem o que me era presente um doce cantar ouvia
nada me não fez contente, que na minha alma caía,
520 que nisto o magoado o qual eu, bem escutando,
é como o muito doente. entendi que assi dezia:
560

[59] LVII LXIII


Não sei para que vos quero, Como dormirão meus olhos?
pois me d’olhos não servis, Não sei como dormirão,
olhos a que eu tanto quis! pois que vela o coração.

LVIII LXIV
565 Pera ver me fostes dados, Toda esta noite passada,
vós só a chorar vos destes; 605 que eu passe em sentir,
e se eu tenho cuidados, [61] nunca a pude dormir,
meus olhos, vós mos fizestes: de ser muito acordada.
dês que neles me pusestes, Dos meus olhos foi velada;
570 de descanso me fugis, mas como não velarão,
olhos a quem eu tanto quis! 610 pois que vela o coração?

LIX LXV
Meus olhos, por muitas vias As horas dela cuidei
usais comigo cruezas; dormi-las, foram veladas;
tomais as minhas tristezas pois tão bem as empreguei,
575 pera vossas alegrias. dou-as por bem empregadas.
[59] Então noites, então dias, 615 Todas as noutes passadas
olhos, nunca me dormis: neste pensamento vão,
olhos a quem eu tanto quis! pois que vela o coração.

LX LXVI
Quando vós primeiro vistes, Pássaros, que namorados
580 que não me era bom sabíeis; pareceis no que cantais,
mas, por gozar do que víeis, 620 não ameis, que, se amais,
em meu dano consentistes. de vós sereis desarmados.
O que então me encobristes, E em meus olhos agravados
agora mo descobris, vereis se tenho rezão,
olhos a quem eu tanto quis! pois que vela o coração.
625
585 LXI [62] LXVII
Ando-vos a vós buscando Como a cantiga mostrava,
79

cousas que vos dêm prazer, femenil, a meu cuidar [ver],


e vós, quando podeis ver, era a voz de quem cantava,
590 tristezas me andais tornando. qu’em, por mais de bem cantar,
Agora vou-vos cantando, eu ouvir me contentava;
vós a mim chorando me is, 630 por que de quem ser podia
olhos a que eu tanto quis! então sospeita me deu,
que todo o cantar seu
[60] LXII era o da minha Maria
Quem o que digo cantava, ou a do dessejo meu.
595 dês que o cantado teve, 635
não sei o que o causava,
mas espaço se deteve
assi como que cuidava.
Depois de cuidado ter,
600 a voz de novo alçou;
este cantar começou,
o qual devia de ser
aquilo em que cuidou:

LXVIII LXXII
Com um temeroso prazer, Ao que eu responder
que soe ter quem recea, me lembra: — São agravados?
640 dessejava eu de ver Podem logo os meus dizer
a quem eu ainda veja, que são bem-aventurados,
antes da vida perder. pois que vos puderom ver.
[63] Neste dessejo, de cima 680 Como ela em me ouvir
estando-a eu ouvindo, gram sobressalto sentisse,
645 a Deus ser ela pedindo, quis fugir; mas quem lhe disse
vi-a vir o vale acima que se pusesse em fugir
em seu cantar prossiguindo. lhe fez com que não fugisse.
685

LXIX [66] LXXIII


Muito a vi eu mudada; Nas mulheres o temor
mas, com tudo, conheci tanto o poder empede
650 ser a minha dessejada, quanto o medo maior for,
a quem , assi vendo, vi, e contra [direção] donde procede
a vista no chão pregada, os olhos costumam pôr.
com o seu cantar pensoso 690 Ela fazendo-o assi,
e passadas esquecidas, vendo-me, ficou mudada;
655 ao tom dele medidas, depois, já em si tornada,
vestida vir de arenoso, se chegou mais pera mim,
as mãos nas mangas metidas. a ser bem certificada.
695

[64] LXX LXXIV


Ũa coifa não lavrada, Depois de me visto ter
antes sem nenhum lavor; e já que me conhecia,
660 e em cima, por mais dor, lágrimas lhe vi correr
ũa talhinha pedrada dos olhos, que não movia
ou um pedrado arenor. de mim, sem nada dizer.
80

Quisera-a ir receber, 700 Eu lhe disse: — Meu dessejo,


vendo-a ante mim presente, — vendo-a tal com assaz dor —
665 mas não pude, de contente, dessejo do meu amor,
que, indo pera me erguer, crerei eu ao que vejo
de prazer me achei doente. ou crerei ao meu temor.
705

LXXI [67] LXXV


Vendo então que me forçava A isto, bem sem prazer,
o prazer fazer demora, me tornou então assi,
670 olhei o que mais passava com voz de pouco poder:
[65] e vi-a, que àquela hora — Crisfal, que vês tu em mim
comigo emparelhava. que não seja pera crer?
Dando uns mui doces brados, 710 Eu lhe respondi: — Perder-vos
saídos do coração, de vos ver, por tanto ano,
675 a cantiga vinha então: faz-me assim temer meu dano,
“em meus olhos agravados que vejo meus olhos ver-vos
vereis se tenho rezão”. e temo que me engano.
715

LXXVI LXXX
— Pois crê certo que esta sam — E, Crisfal, é-me forçado
deu a isto por resposta, fazer a vontade sua,
720 ainda que alegre não. — porque lho tenha jurado
E quem em tal dor é posta e também porque da rua
o que dela não crerão? o certo me têm mostrado:
[68] Bem é de crer o meu choro, 760 que me dam certa certeza,
a que tu causa me deste; porque fazem conhecer-me
725 não t’espante o que fizeste, (o que eu hei por gram crueza)
que quem me pôs neste foro [71] o amor que mostras ter-me
tu és o que me puseste. ser só por minha riqueza.
765

LXXVII LXXXI
Por ti vim eu desterrada Ouvir-lhe eu isto me era
a estas estranhas terras passar o trago mortal,
730 de donde eu fui criada; que não há cousa tam fera
e por ti, antre estas serras, como é achar-se o mal
em vida sam sepultada, onde o bem achar se espera.
onde a se me perderom 770 Vendo já que estava posta
a frol dos anos se vão; em o que eu não esperei,
735 ora julga se é rezão com minha dor, trabalhei
d’as minhas lágrimas serem por lhe dar esta reposta
menos daquestas que são. que me lembra que lhe dei:
775

[69] LXXVIII LXXXII


Despois que isto falou, — Ó Maria, ó Maria,
como quem em si respeita, brando achara meu mal,
740 as mãos ambas ajuntou, se, para minha alegria,
81

e, postas na face direita, [72] vos vira a vontade tal


dizer assim começou: como me ela ser devia;
— Sobre o muito que perdi, 780 mas não é nova usança
nenhũa cousa duvido quem grande bem esperou
745 em ter o saber perdido, não ver o que dessejou.
pois tam mal me defendi Muito pode a mudança,
do que me era defendido. pois que vos tanto mudou!
785

LXXIX LXXXIII
Eu lhe perguntei a hora, Quem pudera sospeitar
mui triste de assm a ver: que no amor e na fé
750 — Quem teve tanto poder me havíeis de faltar!
[70] que tenha poder, senhora, Mas pois já isto assi é,
de nada vos defender? tudo é pera cuidar;
Respondeu por antre dentes, 790 pois, por mais mal que se guarde,
como fala quem se peja: sempre será meu amor
755 — Dir-to-ei, em que erro seja: como a sombra, em quanto eu for:
defendem-me meus parentes quanto vai sendo mais tarde,
que te não fale nem veja, tanto vai sendo maior.
795

[73] LXXXIV LXXXVIII


Quando vos dei a vontade, Mas, que fosse assi e mais,
inda vós éreis menina que remédio vos dão
800 e eu de pouca idade; com quem conselho tomais
mas caíu minha mofina à grande obrigaçào
sobre a minha verdade. em que, quanto a Deus, me estais?
Muito vos quis bem, primeiro 840 Que não são casos pequenos
que de riquezas soubesse, pera que se a alma não doa...
805 pois meu amor verdadeiro, [76] Respondeu: — Essa é boa:
de quem só sois interesse dizem que isso é o menos,
[é] quem me faz interesseiro. que Deus que tudo perdoa.
845

LXXXV LXXXIX
Sobre a terra anda o gado E dizem que eu moça era
e sobre ela ouro e riqueza; ao tempo que isso foi ser;
810 mas pera que é dessejado, e como tempo de crescer
que em fim não tira tristeza tinha, que assi justo me era
e acrescenta cuidado? tê-lo de me arrepender.
Não sei em que se encerra 850 Isto e mais se me diz
[74] ser esquecida e estranha: — crê que te falo verdade —
815 esta verdade tamanha: que não tinha liberdade
cá fica o haver na terra, pera fazer o que fiz,
o amor a alma acompanha. por minha pouca idade.
855

LXXXVI XC
Nus neste mundo nascemos Então me mandam que meça
e nus sairemos dele;
82

neste meio que vivemos, amor com quam longe estamos,


820 só o rico é aquele pera que mais não me empeça;
que ser contente sabemos. [77] e se prazeres passamos,
E que grandes bens vos dessem os dessemule e esqueça;
aqueles que vo-los derom, 860 e que então me buscarão
eu sei bem que nus nascerom, um mui grande casamento,
825 e antes que os tivessem tam de meu contentamento
é certo que não tiverom. quanto meus olhos verão;
e que o mais crea [creia] que é vento.
865
LXXXVII
Pois se isto é assi XCI [estrofe suprimida]
e o eu tam bem conheço, Muitos pastores buscaram;
como se crerá de mim mas um pastor, por ser-te amigo,
830 [75] que sofrer o que padeço e outro, por ser-te enemigo,
pode ser a este fim? um e outro se escusaram;
Cuidar que cuidado tinha e dão-lhe logo comigo
das vossas riquezas grossas!... 870 gado, que farão mil queijos;
Nas cousas passadas nossas, mas o com que se despediram
835 vereis ser riqueza minha é já mostrar que temiam
vós, que não riquezas vossas. que o sabor dos teus beijos
na minha boca achariam.
875

[78] XCII
E eu, de mui esquecida XCVI
vou-lhe fazer o contrairo! Soltei as minhas então,
A ser tal culpa sabida, com muitas palavras tristes,
880 sei certo que este desvairo e tomei por concrusão:
pagarei com minha vida. — Alma, porque não partistes,
E em isto ser assi que bem tínheis de rezão?
assaz de razão seria, 920 Então ela, assi chorosa
pois tam mal naqueste dia de tam choroso me ver,
885 o seu mandado compri já pera me socorrer,
como o que a mim cumpria. com ũa voz piadosa
começou-me assi dizer:
925
XCIII
Não te veja aqui ninguém, XCVII
vai-te, Crisfal, desta terra; — Amor de minha vontade,
não quero teu querer bem, ora nom mais! Crisfal manso,
890 por que me não dê mais guerra bem sei tua lealdade:
da que já dado me tem. [81] ai, que grande descanso
Em lhe isto eu ouvindo, é falar com a verdade!
fui para lhe responder; 930 Eu sei bem que não me mentes,
mas, depois de o dizer, que o mentir é diferente:
895 contra donde tinha vindo não fala d’alma quem mente.
se me tornou a volver. Crisfal, não te descontentes,
se me queres ver contente.
935
[79] XCIV
83

Dei ũa voz mui dorida: XCVIII


— Porque me negais conforto, Quando contigo falei
alma desagradecida? aquela última vez,
900 Então caí como morto, o choro que então chorei
oxalá perdera a vida. que o teu chorar me fez,
Não sei eu o que passou, nunca o eu esquecerei.
em quanto isto passei, 940 Foi esta a vez derradeira
mas junto comigo achei mas começo de paixão,
905 quem me este mal causou, passando-me eu então
depois já que em mim tornei. para o casal da Figueira,
do Val de Pantalião.
945
XCV
E dizendo: — Ó mesquinha, XCIX
como pude ser tam crua! — Minha fé te é verdadeira,
bem abraçado me tinha, no mal que te fiz o vi;
910 a minha boca na sua porque, em fim, à derradeira,
e a sua face na minha. [82] não quero mal contra ti
Lágrimas tinha choradas que o meu coração queira.
que com a boca gostei; 950 Por me ver livre de dor,
mas, com quanto certo sei deixara eu de te querer,
915 [80] que as lágrimas são salgadas, se o pudera fazer;
aquelas doces achei. mas poder e mais amor
não podem estar num poder.
955

C
Neste passo acordei eu, que, em que cem olhos tivera,
e o meu contentamento, como teve Argos pastor,
que eu cuidava que era meu, da vaca Io guardador,
960 deu-me depois tal romento [84] mais olhos mister houvera
qual nunca cousa me deu. para chorar minha dor”.
Não sei eu que a Deus custava, 985
porque não me outorgara
que nesta glória ficara, CIII
965 ou pois que já acordava, Isto que Crisfal dezia,
que disto não me acordara. assi como o contava
ũa ninfa o escrevia
[83] CI num álemo que ali estava,
Assi como nos lugares, que ainda então crescia.
em morte e enterramento, 990 Dizem que foi seu intento
os sinos dobram a pares, de escrevê-lo em tal lugar,
970 morreu meu contentamento, pera por tempo se alçar
dobrarom-se meus pesares. onde baixo pensamento
Por quem grande dita tivera, lhe não pudesse chegar.
se, por dar fim a tristura, 995
eu neste tempo morrera! [85] CIV
975 Sabe Deus que eu be quisera, Eu o treladei dali,
mas não quis minha ventura. donde mais estava escrito
que aqui não escrevi,
CII porque mal tam infinito
84

Não vos posso mais contar, 1000 não se lhe pode dar fim.
águas minhas, minhas águas, O que se fez de Crisfal
980 que me não deixa pesar. não sabe certo ninguém;
Ora chorai minhas mágoas, muitos por morto o tem,
que bem são pera chorar; mas quem vive em tanto mal
1005 nunca vê tamanho bem. [ou 995]

7.2. Edições de Crisfal

Estrofe 1536 / Rip 1915 1945 1978 Observações


s
001-009 033r-034v 065-068 061-067 019-025 N3.
010-027 034v-035r 068-074 067-079 025-037 N1.
028-099 035r-040v 074-096 079-129 037-081 N1. Sonho.
100-102 040v-040v 097-098 129-131 082-083 N1. Crisfal acorda.
103-104 040v-040v 099-099 131-132 084-085 N3. A ninfa escrevia.

Texto MARQUES, F. Costa. Valor e aspectos literários da écloga “Crisfal”. In: FALCÃO,
7 Cristóvão. Crisfal. Coimbra: Atlântida, 1964. p. 15-26.

[15] VALOR E ASPECTOS LITERÁRIOS DA ÉCLOGA «CRISFAL»

1. Resumido assim nas suas linhas gerais o problema da autoria de tão celebrada écloga
e afirmada mais uma vez a sua actual insolubilidade, mais útil será abeirarmo-nos da própria
composição literária e vermos o que ela representa dentro do género pastoril.
2. Alguma coisa se poderá concluir do que, de passagem, dissemos atrás. Mas convém,
estabelecer agora até que ponto a Crisfal se enquadra no género bucólico e quais os aspectos
de carácter particular que a distinguem de outras composições análogas.
3. Sabido é como o Renascimento trouxe consigo a ressurreição e desenvolvimento dos
géneros literários greco-latinos; e igualmente se sabe que o género pastoril ou bucólico foi dos
mais cultivados pelos escritores clássicos das literaturas novilatinas, apesar do seu carácter
artificial, e apesar também dos moldes apertados e convencionais a que o poeta estava
obrigado.
4. Inicialmente, o género saíra da inspiração de Teócrito, como fusão de elementos
líricos e dramáticos da escola de Alexandria, e adquirira com Virgílio um tom de
subjectividade e de sentimental devaneio, que mal o distinguiam, nos seus aspectos
intrínsecos, de outros géneros líricos. Muitas vezes só os quadros exteriores, o cenário
campestre, as personagens imaginosamente pastoris e as alusões e comparações de valor
campesino lhe davam carácter diferente.
5. Com tais características foi ele mais geralmente cultivado pelos poetas do
Renascimento. Algumas vezes, porém, o elemento dramático triunfava sobre o elemento
lírico. A rusticidade, a acção, o conflito das ideias e dos sentimentos, a narrativa levavam de
vencida os longos devaneios, o cogitar platónico e o requinte da paixão amorosa. [16] A
mitologia, as reminiscências clássicas, o filosofar perene e contemplativo davam lugar
primacial à progressão dos sentimentos e à narrativa mais viva e personalizada. Com a écloga
lírica concorria a écloga dramática.
6. A primeira manifestou em Portugal tendências humanistas, eruditas. A outra adquiriu
leve forma e jeito de representação teatral. Entre estes dois tipos estremes, as éclogas de
Bernardim, talvez porque se trata de um poeta inovador, ocupam situação intermédia. A
85

ausência de mitologia, a medida velha e certo jeito palaciano de exprimir conceitos e


desenvolver os temas dão-lhes carácter medieval; mas a passividade contemplativa, o
convencionalismo das atitudes, o inquieto filosofar e a ausência de acção aproximam-nas
nitidamente das de Camões ou de António Ferreira, poetas bucólicos de feição humanista.
7. A écloga Crisfal ocupa igualmente um lugar intermédio, mas de outro carácter.
Apresenta como as éclogas de Bernardim o mesmo metro tradicional e o mesmo esquema
estrófico (ababacddcd) da terceira delas. Adopta igualmente os. motes e cantigas palacianos,
e a mesma dialéctica medieval. Como as de Bernardim (e ao contrário das éclogas de Camões
e de António Ferreira), não adquire a gravidade e o vigor expressivo do verso clássico. Será
nela patente o mesmo gosto da poesia tradicional revelado por Bernardim. Mas distingue-se
das éclogas bernardinianas pela maior largueza da concepção e pela feição dramática da
narrativa.
8. Inicialmente, as lamentações de Crisfal parecem anunciar uma écloga também
estática, dada a exprimir, em monocórdio, males de amor e queixumes de ausência. Mas logo
se ergue à interpretação do mundo externo, à expressão de sentimentos alheios, para descrever
finalmente o sonho [17] final da reconciliação amorosa. A Écloga tem assim o seu movimento
próprio: — marcha direita a um fim; exprime o amargo e o doce; o cauteloso e o veemente do
diálogo entre os dois principais interlocutores; acrescenta-lhe discretos apartes interpretativos
de situações morais, e tudo nela converge para o arrebatamento do último quadro e para o
doloroso despertar do protagonista.
9. É esta contextura e progressão dramática que particularmente caracterizam a Crisfal,
e que tanto a distinguem das éclogas de Bernardim (apesar de tantas semelhanças), como das
de António Ferreira e Camões.
10. Como nestas últimas, patenteia-se na Crisfal o novo sentimento estético da natureza
trazido pelo sopro lírico do Renascimento. Também para este autor ela serve de confidente ou
é o agente suscitador de saudades. Mas o quadro bucólico é diferente e os elementos
sentimentais são vistos a outra luz.
11. Em vez da variedade de tintas, do colorido e frescor da écloga camoniana, mais
imaginados do que observados, o quadro campestre é sugerido aqui por meio de imagens ou
referências de sabor rústico e popular, que lhe dão maior cor local. A ingenuidade narrativa é
maior. Os conceitos de filosofia popular são mais frequentes e as realidades campestres
surpreendidas com maior justeza. Por isso também, a rusticidade e propriedade pastoris são
maiores do que, por exemplo, em Luís de Camões.
12. Por sua vez, o amor é mais emotivo e não tão essencialmente raciocinado como nas
éclogas camonianas. O filosofar, ora petrarquista ora platónico, dos seus pastores (reflexo de
um inesgotável talento de cerebrinas divagações) assume na Crisfal um aspecto mais
sentimentalmente humano. Não há nesta écloga o idealismo platónico que vive para além do
amor [18] terreno, nem sequer o retraimento e cortês adoração de Petrarca. Há simplesmente
um amor individual e particular, que é feito de afeição, de ternura e de instinto. A
sensualidade aflora em alguns passos da Crisfal. O dinamismo dos sentimentos é mais aberto
e visível. E, embora no plano da arte literária esta concepção seja inferior à que era corrente
no século (pelo menos no que toca ao género pastoril), a écloga adquiriu por isso mesmo uma
sinceridade maior e uma afectuosidade mais vibrante.
13. Poderá por tudo isto concluir-se que a Crisfal está mais ligada à literatura pré-
renascentista do Cancioneiro de Resende do que à poesia abertamente petrarquista e erudita,
dos poetas clássicos do século XVI.
14. Obra subjectiva de Cristóvão Falcão ou obra objectiva de Bernardim Ribeiro, é
evidente que o género bucólico importado de Itália veio dar estrutura à sua original
inspiração; que o disfarce pastoril e o sentimento estético da natureza nela existentes se não
explicam sem a influência dos novos géneros e gostos literários. Mas nem a natureza tem a
alacridade e o colorido das composições clássicas, nem o disfarce pastoril adquire um tom
86

convencional e filosofante igual ao de outras éclogas do mesmo século. Sem falarmos


novamente nas fórmulas métricas tradicionais e no jeito de dialéctica medieval patentes nesta
composição, possível é ainda sua imaginação poética e a sua expressão realista do amor com
idênticos aspectos do Cancioneiro de Resende.
15. O sonho de Crisfal, de visão pré-romântica e ao mesmo tempo dantesca, será
inspirado de composições do repositório de Resende, em que tal processo se documenta. A
feição mais realista do amor, se bem que tendo base no carácter objectivo dá narrativa, não
deixará de ser estranha ao ambiente erótico tão desabaladamente documentado no mesmo
Cancioneiro. Por sua vez, o sabor da paisagem rústica e a nota campesina e aldeã que se
registam na Cristal, denunciam também [19] que o Autor se não deixara influenciar ainda
pelo gosto da natureza estilizada e aprendida, característico da écloga clássica.
16. A despeito de tudo isto, a influência literária desta composição poética foi grande.
Apreciada desde logo pelos seus contemporâneos, como se infere das indicações da edição de
Ferrara, alguns dos seus passos foram mais tarde citados por Camões numa carta escrita de
Ceuta; e também não parece exagero afirmar que existem nas suas éclogas, apesar do que
delas o distingue, algumas reminiscências da Crisfal.
17. Rodrigues Lobo glosou o mesmo mote da estrofe LVII, cuja primeira volta já corria
também traduzida em castelhano, talvez ainda antes de sair a edição de Ferrara. Ferreira de
Vasconcelos e Faria e Sousa denunciam a sua leitura; e pelo menos em 1597, se não já em
1571, apareceu uma composição poética intitulada Sonho de Lisardo que é quase como a
Segunda Parte de Crisfal, atribuída, sem grande probabilidade, a Frei Bernardo de Brito, e
mais tarde integrada na edição de 1619.
18. [20] Pela sua feição dramática, pelos aspectos particulares dos seus elementos
estéticos combinados de modo independente e pela expressão realista dos seus ingredientes
sentimentais a Crisfal é, portanto, uma composição literária invulgar, dentro do género
bucólico.
19. Poderíamos dizer também que o seu valor documental é importantíssimo e único,
pela equilibrada simbiose dos seus aspectos artísticos é pelo carácter excepcional que adquire
no meio da produção quinhentista pastoril. E isto porque, se em outros autores é possível
verificar maior beleza formal, melhor sentido estético ou mais alto voo lírico, em nenhum
deles se encontram igualmente combinados todos esses elementos, e em nenhum deles se
revela, como dissemos, o mesmo sentido dramático que se regista na Crisfal113.

Texto CAMÕES, Luís de. Obras Completas: redondilhas e sonetos; prefácio e notas de
08 Hernâni Cidade. 3. ed. Lisboa: Sá da Costa, 1962. v. 1, 357 p.

T 8.0. LIRISMO CAMONIANO

8.1. TABELA DA LÍRICA

INCIPIT G 15 15 16 16 16 18 19
95 98 16 68 85 60 32
A instabilidade da Fortuna CA X X X X X X
A vida já passei assaz contente, CA X X
Bem aventurado aquele, que ausente CA X X
Com força desusada CA X X X X X X
Crescendo vai meu mal de hora em hora CA X X
Fermosa e gentil Dama, quando vejo CA X X X X X X
Já a roxa manhã clara CA X X X X X X
Junto de um seco, duro, estéril monte CA X X X X X X
113
Cf. SAMPAIO, Albino Forjaz (dir.). História Ilustrada da Literatura Portuguesa. Lisboa: Bertrand; Paris:
Aillaud, 1929. v. 2, p. 221-248. (Org.)
87

Manda-me Amor que cante docemente CA X X X X X X


Manda-me Amor que cante docemente / O que ele já CA X X
Manda-me Amor que cante o que a alma sente CA X X X
Nem roxa flor de Abril CA X X X
Oh pomar venturoso CA X X X
Por meio de umas serras mui fragosas CA X X X X
Por que vossa beleza a si se vença CA X X
Que é isto? Sonho? Ou vejo a Ninfa pura CA X X X
Quem com sólido intento CA X X X X
Se este meu pensamento CA X X X X X X
Tomei a triste pena CA X X X X X X
Vão as serenas águas CA X X X X X X
Vinde cá, meu tão certo secretário CA X X X X X X
Ao longo do sereno EC X X X X
Arde por Galateia branca e loura EC X X X X
A quem darei queixumes namorados EC X X X X
A rústica contenda desusada EC X X X X
As doces cantilenas que cantavam EC X X X X
Cantando por um vale docemente EC X X X X
Nas ribeiras do Tejo, a uma área EC X
Passado já algum tempo que os amores EC X X X X
Que grande variedade vão fazendo EC X X X X
Ao pé de uma alta faia vi sentado EL X X
Aquela que de amor descomedido EL X X X X
Aquele mover de olhos excelente EL X X X X
A Aónio que de amor solto fugia EL X
A vida me aborrece, a morte quero EL X X
Belisa, único bem desta alma triste EL X X
De peña en peña nuevo las pasadas EL X X X
Despois que Magalhães teve tecida EL X X X
Divino, alma pastor, Délio dourado EL X X X
Eu só perdi o verdadeiro amigo EL X
Foi-me alegre o viver, já me é pesado EL X X X
Ganhei, Senhora, tanto em querer-vos EL X X
Ilustre e nobre Silva, descendido EL X X
Juízo extremo, horrífico e tremendo EL X X
La sierra fatigando de contino EL X X X
Não me julgueis, Senhora, a atrevimento EL X X X X
Não porque de algum bem tenha esperança EL X X
Nunca um apetite mostra o dano EL X X
O poeta Simónides, falando EL X X X X X
O Sulmonense Ovídio desterrado EL X X X X X
Quando os passados bens me representa EL X
Que novas tristes são, que novo dano EL X X X
Quem poderá passar tão triste vida EL X
Rei bem aventurado, em quem parece EL X X
Saião desta alma, triste e magoada EL X X X X
Se obrigações de fama podem tanto, EL X X
Se quando contemplamos as secretas EL X X X
A quem darão de Pindo as moradoras OD X X X X
Aquele moço fero OD X X X X
Aquele único exemplo OD X X X X X
Detém um pouco, Musa, o largo pranto OD X X X X X X
Fermosa fera humana OD X X X X X X
88

Fogem as neves frias OD X


Fora conveniente OD X X
Já a calma nos deixou OD X X X
Naquele tempo brando OD X X X
Nunca manhã suave OD X X X X X
Pode um desejo imenso OD X X X X
Se de meu pensamento OD X X X X X X
Tão crua Ninfa, nem tão fugitiva OD X X X X X X
Tão suave, tão fresca e tão fermosa OD X X X X X X
Cá nesta Babilónia adonde mana OT X X
Como nos vossos ombros tão constantes OT X X X X X X
Despois que a clara aurora a noute escura OT X X
De uma formosa virgem desposada, OT X X
Duro fado, duro amor nunca cuidado OT X
Esprito valeroso, cujo estado [Petição] OT X X X
Mui alto rei, a quem os Céus em sorte OT X X X X
Quem pôde ser no mundo tão quieto OT X X X X
Senhora, se encobrir por algũa arte OT X X X
Redondilhas [=RE] RE 075 108 105 112 120 147 127
A culpa de meu mal só têm meus olhos, SE X X
Foge-me pouco a pouco a curta vida SE X X X X
Foge-me pouco a pouco a curta vida (variante) SE X
Oh triste, oh tenebroso, oh cruel dia. SE X X
Quanto tempo ter posso de vida SE X
Sempre me queixarei desta crueza SE X X
Sonetos SO 66 95 33 106 264 353 166
Triunfos de Petrarca [TD = tradução] TD X
Criação do homem [CT = canto] CT X X

Ano Editor dos sonetos


1595 Lobo Soropita
1598 Estevão Lopes
1616 Domingos Fernandes
1668 António Álvares da Cunha
1685 Faria e Sousa
1860 Juromenha/Franco Correia
1860 Juromenha/Ms. Cecília de Portugal
1932 José Maria Rodrigues

GÊNERO SALGADO CIDADE PIMPÃO JUROMENHA RODRIGUES


Sonetos 211 204 166 352 197
Canções 015 011 010 021 013
Sextinas 002 001 001 005 002
Odes 013 013 013 014 013
Elegias 011 010 007 027 011
Oitavas 005 005 004 009 005
Églogas 009 008 008 009 008
Redondilhas 142 129 131 147 127

8.2. INFLUÊNCIAS
8.2.1. Poética tradicional
a) sugestão temática das cantigas medievais
b) expressão da vassalagem amorosa
c) estilo engenhoso
89

8.2.2. Influência clássica


a) Antiguidade clássica (Neoplatonismo, Ovídio, Virgílio e Horácio)
b) sugestão petrarquista
c) cultura humanística

8.2.3. Estilo maneirista

8.3. TEMÁTICA
a) temática amorosa (amor erótico, amor sublimado, conceito de amor, separação amorosa e
firmeza do amor)
b) o tema da natureza
c) poemas de circunstância
d) religiosidade
e) saudade e desconcerto do mundo

T 8.1 [1] MOTE ALHEIO

Minina dos olhos verdes,


Porque me não vedes?

VOLTAS

Eles verdes são,


E têm por usança
Na cor, esperança
E nas obras, não.
Vossa condição
Não é d’olhos verdes,
Porque me não vedes.

Isenções a molhos
Que eles dizem terdes,
Não são d’olhos verdes,
Nem de verdes olhos.
Sirvo de giolhos,
E vós não me credes
Porque me não vedes.

[2] Haviam de ser,


Porque possa vê-los,
Que uns olhos tão belos
Não se hão-de esconder;
Mas fazeis-me crer
Que já não são verdes,
Porque me não vedes.

Verdes não o são


No que alcanço deles;
Verdes são aqueles
Que esperança dão.
90

Se na condição
Está serem verdes,
Porque me não vedes?

T 8.2 [133] MOTE ALHEIO

Perdigão perdeu a pena, [= Per + di + gão + per + deu + a + pe- / 7 sílabas]


não há mal que lhe não venha.

VOLTAS
Perdigão, que o pensamento
subiu em alto lugar,
perde a pena do voar,
ganha a pena do tormento.
Não tem no ar nem no vento
asas, com que se sustenha:
não há mal que lhe não venha.

Quis voar a ũa alta torre


mas achou-se desasado;
e, vendo-se depenado,
de puro penado morre.
Se a queixumes se socorre,
lança no fogo mais lenha:
não há mal que lhe não venha.

T 8.3 [154] MOTE


Descalça vai para a fonte
Lianor pela verdura;
vai fermosa, e não segura.

VOLTAS
Leva na cabeça o pote,
o testo nas mãos de prata,
cinta de fina escarlata,
sainho de chamalote;
traz a vasquinha de cote,
mais branca que a neve pura;
vai fermosa, e não segura.

Descobre a touca a garganta,


cabelos d’ouro o trançado,
fita, de cor d’encarnado,
tão linda que o mundo espanta.
chove nela graça tanta
que dá graça à fermosura;
vai fermosa, e não segura.

Texto CAMÕES, Luís de. Gêneros líricos maiores. In: Obras Completas. Lisboa: Sá da
09 Costa, 1946, v. 2, p. 289-293.
91

[289] CANÇÃO IX.

Junto de um seco, fero e estéril monte,


Inútil e despido, calvo, informe,
Da Natureza em tudo aborrecido;
Onde nem ave voa, ou fera dorme,
Nem rio claro corre ou ferve fonte,
Nem verde ramo faz doce ruído;
Cujo nome, do vulgo introduzido,
É Felix, por antífrase, infelice114;
O qual a Natureza
Situou junto à parte
Onde um braço de mar alto reparte
Abássia, da arábica aspereza,
Onde fundada já foi Berenice115,
Ficando a parte donde
O Sol, que nela ferve, se lhe esconde;

Nele aparece o Cabo com que a costa


Africana, que vem do Austro correndo,
Limite faz, Arómata chamado
Arómata, outro tempo; que, volvendo
Os céus, a ruda língua mal composta
Dos próprios outro nome lhe tem dado116.
Aqui, no mar, que quer apressurado
Entrar pela garganta deste braço,
Me trouxe um tempo e teve
Minha fera ventura.
[290] Aqui, nesta remota, áspera e dura
Parte do mundo, quis que a vida breve
Também de si deixasse um breve espaço,
Porque ficasse a vida
Pelo mundo em pedaços repartida.

Aqui me achei gastando uns tristes dias,


Tristes, forçados, maus e solitários,
Trabalhosos, de dor e de ira cheios,
Não tendo tão somente por contrários
A vida, o sol ardente e águas frias,
Os ares grossos, férvidos e feios,
Mas os meus pensamentos, que são meios
Para enganar a própria natureza.
Também vi contra mi,
Trazendo-me à memória
Algũa já passada e breve glória,
Que eu já no mundo vi, quando vivi,
Por me dobrar dos males a aspereza,
Por me mostrar que havia
No mundo muitas horas de alegria.
114
Correção da ed. de 1598. Na de 1595 — Por antífrase é felix, infelice.
115
Cidade fundada por Ptolomeu, em memória de sua mulher, deste nome.
116
O nome que lhe dão os próprios (indígenas) é Guardafui ou Guardafu.
92

Aqui estive eu com estes pensamentos


Gastando o tempo e a vida; os quais tão alto
Me subiam nas asas, que cala
(E vede se seria leve o salto!)
De sonhados e vãos contentamentos
Em desesperação de ver um dia.
Aqui o imaginar se convertia
Num súbito chorar e nuns suspiros
Que rompiam os ares.
Aqui, a alma cativa,
[291] Chagada toda, estava em carne viva,
De dores rodeada e de pesares,
Desamparada e descoberta aos tiros
Da soberba Fortuna;
Soberba, inexorável e importuna.

Não tinha parte donde se deitasse,


Nem esperança algũa onde a cabeça
Um pouco reclinasse, por descanso.
Tudo dor lhe era117 e causa que padeça,
Mas que pereça não, porque passasse
O que quis o Destino nunca manso.
Oh! que este irado mar, gritando, amanso!
Estes ventos, da voz importunados,
Parece que se enfreiam!
Somente o Céu severo,
As Estrelas e o Fado sempre fero,
Com meu perpétuo dano se recreiam,
Mostrando-se potentes e indignados
Contra um corpo terreno,
Bicho da terra vil e tão pequeno.

Se de tantos trabalhos só tirasse


Saber inda por certo que algũa hora
Lembrava a uns claros olhos que já vi;
E se esta triste voz, rompendo fora,
[292] As orelhas angélicas tocasse
Daquela em cujo riso já vivi118;
A qual, tornada um pouco sobre si,
Revolvendo na mente pressurosa
Os tempos já passados
De meus doces errores,
De meus suaves males e furores,
Por ela padecidos e buscados,
Tornada (inda que tarde) piadosa,
Um pouco lhe pesasse
E consigo por dura se julgasse;

117
Na edição de 1595: “Tudo lhe é dor...”.
118
Na edição de 1598: “em cuja vista”.
93

Isto só que soubesse, me seria


Descanso para a vida que me fica;
Com isto afagaria o sofrimento.
Ah! Senhora, Senhora, que tão rica
Estais, que cá tão longe, de alegria,
Me sustentais cum doce fingimento!
Em vos afigurando o pensamento,
Foge todo o trabalho e toda a pena.
Só com vossas lembranças
Me acho seguro e forte
Contra o rosto feroz da fera Morte,
E logo se me ajuntam esperanças
Com que a fronte, tornada mais serena,
Torna os tormentos graves
Em saudades brandas e suaves.

[293] Aqui com elas fico, perguntando


Aos ventos amorosos, que respiram
Da parte donde estais, por vós, Senhora;
Às aves que ali voam, se vos viram,
Que fazíeis, que estáveis praticando,
Onde, como, com quem, que dia e que hora?
Ali a vida cansada, que se melhora119,
Toma novos esp’ritos , com que vença
A Fortuna e Trabalho,
Só por tornar a vervos,
Só por ir a servir-vos e querer-vos.
Diz-me o Tempo, que a tudo dará talho;
Mas o Desejo ardente, que detença
Nunca sofreu, sem tento
Me abre as chagas de novo ao sofrimento.

Assi vivo; e se alguém te perguntasse,


Canção, como não mouro,
Podes-lhe responder que porque mouro.

Texto CAMÕES, Luís Vaz de. Sonetos; fixação do texto de Maria de Lourdes e José
10 Hermano Saraiva. Lisboa: Europa-América, [19--]. 283 p. São 214 sonetos.

T 10.1 [29] Soneto 1 Assim que a vida e alma e esperança


Enquanto quis Fortuna que tivesse e tudo quanto tenho, tudo é vosso,
esperança de algum contentamento, e o proveito disso eu só o levo.
o gosto de um suave pensamento
me fez que seus efeitos escrevesse. Porque é tamanha bem aventurança
o dar vos quanto tenho e quanto posso
Porém, temendo Amor que aviso desse que, quanto mais vos pago, mais vos devo.
minha escritura a algum juízo isento,
escureceu-me o engenho co tormento, T 10.4 [53] Soneto 23
para que seus enganos não dissesse. Amor que o gesto humano n’alma escreve,
vivas faíscas me mostrou um dia,
119
Na edição de 1595: “que melhora”.
94

Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos donde um puro cristal se derretia
a diversas vontades! Quando lerdes por entre vivas rosas e alva neve.
num breve livro casos tão diversos,
A vista, que em si mesma não se atreve,
Verdades puras são, e não defeitos... por se certificar do que ali via,
E sabei que, segundo o amor tiverdes, foi convertida em fonte, que fazia
tereis o entendimento de meus versos! a dor ao sofrimento doce e leve.

T 10.2 [30] Soneto 2 Jura Amor que brandura de vontade


Eu cantarei de amor tão docemente causa o primeiro efeito; o pensamento
por uns termos em si tão concertados, endoudece, se cuida que é verdade.
que dous mil acidentes namorados
faça sentir ao peito que não sente. Olhai como Amor gera, num momento,
de lágrimas de honesta piedade,
Farei que amor a todos avivente, lágrimas de imortal contentamento!
pintando mil segredos delicados,
brandas iras, suspiros magoados,
temerosa ousadia e pena ausente. T 9.5 [53] Soneto 38
Um mover de olhos, brando e piadoso,
Também, Senhora, do desprezo honesto sem ver de quê; um riso brando e honesto,
de vossa vista branda e rigorosa, quase forçado; um doce e humilde gesto,
contentar-me-ei dizendo a menos parte. de qualquer alegria duvidoso;

Porém, para cantar de vosso gesto um despejo quieto e vergonhoso;


a composição alta e milagrosa, um repouso gravíssimo e modesto;
aqui falta saber, engenho e arte. uma pura bondade, manifesto
indício da alma, limpo e gracioso;
T 10.3 [38] Soneto 9
Quem vê, Senhora, claro e manifesto um encolhido ousar; ũa brandura;
o lindo ser de vossos olhos belos, um medo sem ter culpa; um ar sereno;
se não perder a vista só em vê-los, um longo e obediente sofrimento;
já não paga o que deve a vosso gesto.
esta foi a celeste fermosura
Este me parecia preço honesto; da minha Circe, e o mágico veneno
mas eu, por de vantagem merecê los, que pôde transformar meu pensamento.
dei mais a vida e alma por querê los,
donde já me não fica mais de resto.

T 10.6 [74] Soneto 43 Mas este puro afeito em mim se dana;


Amor é [um] fogo que arde sem se ver, que, como a grave pedra tem por arte
é ferida que dói e não se sente; o centro desejar da natureza,
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer; assim o pensamento (pela parte que
que vai tomar de mim, terreste, humana)
é um não querer mais que bem querer; foi, Senhora, pedir esta baixeza.
é solitário andar por entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder, T 9.9 [102] Soneto 64
Transforma-se o amador na cousa amada,
é querer estar preso por vontade; por virtude do muito imaginar;
é servir a quem vence o vencedor; não tenho, logo, mais que desejar,
pois em mim tenho a parte desejada.
95

é ter com quem nos mata lealdade.


Se nela está minh’alma transformada,
Mas como causar pode seu favor que mais deseja o corpo de alcançar?
nos corações humanos amizade, em si somente pode descansar,
se tão contrário a si é o mesmo Amor? pois consigo tal alma está liada.

Mas esta linda e pura semideia,


T 10.7 [85] Soneto 54 que, como um acidente em seu sujeito,
O cisne, quando sente ser chegada assim co a alma minha se conforma,
a hora que põe termo a sua vida,
música com voz alta e mui subida Está no pensamento como ideia:
levanta pela praia inabitada. o vivo e puro amor de que sou feito,
como a matéria simples busca a forma.
Deseja ter a vida prolongada,
chorando do viver a despedida;
com grande saudade da partida, T 9.10 [110] Soneto 72
celebra o triste fim desta jornada.
Vós que, de olhos suaves e serenos,
Assim, Senhora minha, quando via com justa causa a vida cativais,
o triste fim que davam meus amores, e que os outros cuidados condenais
estando posto já no extremo fio, por indevidos, baixos e pequenos;

Com mais suave canto e harmonia Se ainda do Amor domésticos venenos


Descantei pelos vossos desfavores nunca provastes, quero que saibais
La vuestra falsa fe y el amor mío. que é tanto mais o amor despois que amais,
quanto são mais as causas de ser menos.
T 10.8 [101] Soneto 63
Pede-me o desejo, Dama, que vos veja, E não cuide ninguém que algum defeito,
não entende o que pede; está enganado. quando na cousa amada se apresenta,
É este amor tão fino e tão delgado, possa deminuir o amor perfeito;
que quem o tem não sabe o que deseja.
Antes o dobra mais e se atormenta,
Não há cousa a qual natural seja pouco e pouco o desculpa o brando peito;
que não queira perpétuo seu estado; que Amor com seus contrairos se acrescenta.
não quer logo o desejo o desejado,
por que não falte nunca onde sobeja.

Ah! quanto milhor fora não vos ver,


T 10.11 [119] Soneto 80 gostos, que assi passais tão de corrida,
que fico duvidoso se vos vi:
Presença bela, angélica figura,
em quem, quanto o Céu tinha, nos tem dado; Sem vós já me não fica que perder,
gesto alegre, de rosas semeado, se não se for esta cansada vida,
entre as quais se está rindo a Fermosura; que por mor perda minha não perdi!

Olhos, onde tem feito tal mistura T 9.14 [209] Soneto 155
em cristal branco o preto marchetado, No mundo quis um tempo que se achasse
que vemos já no verde delicado o bem que por acerto ou sorte vinha;
não esperança, mas enveja escura; e, por exp’rimentar que dita tinha,
quis que a Fortuna em mim se exprimentasse.
96

brandura, aviso e graça, que aumentando Mas, por que meu destino me mostrasse
a natural beleza cum desprezo, que nem ter esperanças me convinha,
com que, mais desprezada, mais se aumenta; nunca nesta tão longa vida minha
cousa me deixou ver que desejasse.
são as prisões de um coração que, preso,
seu mal ao som dos ferros vai cantando, Mudando andei costume, terra e estado,
como faz a sereia na tormenta. por ver se se mudava a sorte dura;
a vida pus nas mãos de um leve lenho.
T 10.12 [163] Soneto 116
mas — segundo o que o Céu me tem
Aquela triste e leda madrugada, [mostrado —
cheia toda de mágoa e de piedade, já sei que deste meu buscar ventura,
enquanto houver no mundo saudade achado tenho já, que não a tenho.
quero que seja sempre celebrada.

Ela só, quando amena e marchetada T 9.15 [219] 106


saía, dando ao mundo claridade, Mudam se os tempos, mudam-se as vontades,
viu apartar-se de uma outra vontade, muda-se o ser, muda-se a confiança;
que nunca poderá ver-se apartada. todo o mundo é composto de mudança,
tomando sempre novas qualidades.
Ela só viu as lágrimas em fio
que, de uns e de outros olhos derivadas, continuamente vemos novidades,
se acrescentaram em grande e largo rio. Diferentes em tudo da esperança;
do mal ficam as mágoas na lembrança,
Ela viu as palavras magoadas e do bem — se algum houve — as saudades.
que puderam tornar o fogo frio,
e dar descanso às almas condenadas. o tempo cobre o chão de verde manto,
que já coberto foi de neve fria,
T 10.13 [196] Soneto 144 e em mim converte em choro o doce canto.

Ah! Fortuna cruel! Ah! duros Fados e, afora este mudar se cada dia,
quão asinha em meu dano vos mudastes! outra mudança faz de mor espanto,
passou o tempo que me descansastes, que não se muda já como soía.
agora descansais com meus cuidados.

Deixastes-me sentir os bens passados,


para mor dor da dor que me ordenastes;
então nũa hora juntos mos levastes,
deixando em seu lugar males dobrados.
Mas mostre a sua imperial potência
a Morte em apartar dum corpo a alma,
T 10.16 [225] Soneto 170 duas num corpo o Amor ajunte e una;
Busque Amor novas artes, novo engenho,
para matar-me, e novas esquivanças; porque assim leve triunfante a palma,
que não pode tirar me as esperanças, amor da Morte, apesar da Ausência,
que mal me tirará o que eu não tenho. do Tempo, da Razão e da Fortuna.

Olhai de que esperanças me mantenho! T 10.19 [270] Soneto 204


vede que perigosas seguranças!
que não temo contrastes nem mudanças, Cá nesta Babilónia, donde mana
97

andando em bravo mar, perdido o lenho. matéria a quanto mal o mundo cria;
cá onde o puro Amor não tem valia,
Mas, conquanto não pode haver desgosto que a Mãe, que manda mais, tudo profana;
onde esperança falta, lá me esconde
amor um mal, que mata e não se vê. Cá, onde o mal se afina, e o bem se dana,
e pode mais que a honra a tirania;
Que dias há que n’alma me tem posto cá, onde a errada e cega Monarquia
um não sei quê, que nasce não sei onde, cuida que um nome vão a desengana;
vem não sei como, e dói não sei porquê.
Cá, neste labirinto, onde a nobreza
T 10.17 [228] 76 com esforço e saber pedindo vão
Erros meus, má fortuna, amor ardente às portas da cobiça e da vileza;
em minha perdição se conjuraram;
os erros e a fortuna sobejaram, cá neste escuro caos de confusão,
que para mim bastava o amor somente. cumprindo o curso estou da natureza.
Vê se me esquecerei de ti, Sião!
Tudo passei; mas tenho tão presente
a grande dor das cousas que passaram,
que as magoadas iras me ensinaram T 10.20 [270] Soneto 207
a não querer já nunca ser contente.
Verdade, Amor, Razão, Merecimento,
errei todo o discurso de meus anos; qualquer alma farão segura e forte;
dei causa que a Fortuna castigasse porém, Fortuna, Caso, Tempo e Sorte,
as minhas mal fundadas esperanças. têm do confuso mundo o regimento.

se amor não vi senão breves enganos. Efeitos mil revolve o pensamento


oh! quem tanto pudesse que fartasse e não sabe a que causa se reporte;
este meu duro génio de vinganças! mas sabe que o que é mais que vida e morte,
que não o alcança humano entendimento.
T 10.18 [229] Soneto 174
A Morte, que da vida o nó desata, Doutos varões darão razões subidas,
os nós, que dá o Amor, cortar quisera mas são experiências mais provadas,
na Ausência, que é contra ele espada fera, e por isso é melhor ter muito visto.
e co Tempo, que tudo desbarata.
Cousas há i que passam sem ser cridas
Duas contrárias, que ũa a outra mata, e cousas cridas há sem ser passadas,
a Morte contra o Amor ajunta e altera: mas o melhor de tudo é crer em Cristo.
uma é Razão contra a Fortuna austera,
outra, contra a Razão, Fortuna ingrata.

Texto CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas / leitura, prefácio e notas de Álvaro Júlio da Costa
11 Pimpão. 4. ed. Lisboa: Instituto Camões, 2000. 642 p.

T11.0. Orientações gerais

CANTO 1.º ciclo épico CANTO 2.º ciclo épico


I Proposição, invocação, dedi- VI Narração da viagem Melinde-
98

catória, narração da viagem Calecut


Narração da viagem Moçam-
bique-Melinde
II Narração da viagem Moçam- VII Estada na Índia
bique-Melinde
III Estada em Melinde e narração da VIII Estada na Índia
História de Portugal
IV Estada em Melinde e narração da IX Regresso e estada na Ilha dos
História de Portugal Amores
V Narração da viagem Belém-Me- X Estada na Ilha dos Amores,
linde regresso e invectiva a D.
Sebastião

ÉPICA CAMONIANA

1. ORIGEM
1531 — Erasmi Encomion, de André de Resende.

2. EPOPEIA (discurso em 3.a pessoa)


2.1. Clássica
2.1.1. Estrutura

Proposição I, 1-3120
Invocação I, 4-5
Dedicatória I, 6-18
Narração I, 19 — X, 144
Epílogo X, 145-156

2.1.2. In medias res121


2.1.3. Intervenção dos deuses (maravilhoso)
2.1.4. Processo narrativo122

2.2. Renascentista

Saraiva, em Para a História da Cultura em Portugal, 1972, v. 1, p. 91-181, faz


considerações sobre a obra camoniana, considerando que os gêneros podem ser considerados
quer do ponto de vista formal, quer do ponto de vista genético (Vico), e rediscutindo a
classificação d’Os Lusíadas123. Inicialmente o crítico indaga se há uma ambiência lendária
(Adamastor — pseudomito não integrado na ação —, os Doze de Inglaterra — lenda
descentrada —, o Velho do Restelo) que justifique a classificação d’Os Lusíadas como
epopéia e demonstre que, na literatura popular legendária, o que se relaciona com os episódios
d’Os Lusíadas é pouca coisa. Quanto à unidade do poema, declarou Saraiva: “Os Lusíadas
são obra construída com materiais heterogêneos. São uma reunião de episódios sabiamente

120
Pode-se grafar também: I, 1 (4,5) ou I, 1: 4,5.
121
Canto V: há uma coincidência de narrativa e narração.
122
Há um narrador global e vários narradores secundários (personagens). Vasco da Gama, por exemplo, é um
narrador (secundário) da segunda metade de III, 3 a V, 90.
123
Há, segundo Saraiva, dois conceitos históricos de epopéia: 1) epopeia propriamente dita — poema narrativo
em torno de um herói de certas características, próprio de uma civilização que literariamente está ainda na fase
oral; 2) imitação de epopeia — certo tipo de composição literária vazado nos cânones determinados por aquela e
produto de uma literatura escrita correspondente a um estado civilizacional muito posterior.
99

sobrepostos, com uma unidade meramente geométrica.”124

3. OBJETIVO
3.1. Histórico125
3.2. Heróico126
3.3. Mítico127

4. ELEMENTOS SUBSTANCIAIS
4.1. Substância épica
4.1.1. Batalhas (Ourique, Salado, Aljubarrota128)
4.1.2. Heróis129
4.2. Substância trágica
4.3. Substância lírica

Segundo Saraiva, a verdadeira ação da obra — com princípio, meio e fim — é dada pela
comédia dos deuses: “Fora dela, há n’Os Lusíadas episódios soltos. Se não fosse a comédia
dos deuses, o poema não seria mais que uma miscelânea de assuntos variados.”130

5. MITOLOGIA

“Se n’Os Lusíadas suprimíssimos a fábula mitológica, só restariam fragmentos de


crónica rimada.”131

T11.1. Orientações gerais

[1] Canto Primeiro

1
As armas e os Barões assinalados
Que da Ocidental praia Lusitana
Por mares nunca de antes navegados
Passaram ainda132 além da Taprobana133,

124
SARAIVA, António José. Para a História da Cultura em Portugal. 4. ed. Lisboa: Europa-América, 1972. v.
l, p. 122: “Os Lusíadas são uma obra construída com materiais heterogéneos. São uma reunião de episódios
sabiamente sobrepostos, com uma unidade meramente geométrica.”
125
Idem, ibidem, v. l, p. 134: “[...] o plano dos acontecimentos históricos, sem unidade e autonomia, só se
organiza vertebrando-se dentro do esquema da comédia dos deuses.”
126
SIMÕES, João Gaspar. História da Poesia Portuguesa. Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, 1955-
1959, v. 1, p. 331: “A Providência — no plano do poema, Vénus — trabalha pelo poeta e reduz a quase nada a
acção da sua gente heróica por definição, não por conduta.”
127
Na epopeia propriamente dita, a mitologia é organicamente homogênea com ação do poema, o mito é o
objeto, o próprio assunto da narrativa. Na imitação da epopéia (Os Lusíadas), a mitologia sobrepõe-se à ação do
poema (função ornamental), sendo o mito um recurso de estilo. “O mundo lendário é função do mundo histórico:
um explica, delimita e determina o outro.” (SARAIVA, António José, Op. cit., v. l, p. 139).
128
Cf. Lusíadas, IV, 28-45.
129
SARAIVA, António José, Op. cit., v. l, p. 140-1: “Mas a história de Portugal que o Gama narra reduz o
narrador a um papel secundário, de mero intérprete, aniquilando-o.”
130
Idem, ibidem, v. l, p. 123.
131
Idem, ibidem, v. 2, p. 155.
132
Lê-se como inda.
133
Taprobana: nome antigo do Ceilão. Cf. BARROS, João de. Décadas. Lisboa: Sá da Costa, 1945, v. 2, p. 168:
“... na ilha Ceilão, a que os antigos chamam Taprobana,”.
100

Em perigos e guerras esforçados


Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino134, que tanto sublimaram;

2
E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando,
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

3
Cessem do sábio Grego135 e do Troiano136
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandro e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que137 outro valor mais alto se alevanta.

[2] 4138
E vós, Tágides139 minhas, pois criado
Tendes140 em mi um novo engenho ardente,
Se sempre em verso humilde celebrado
Foi de mi vosso rio alegremente,
Dai-me agora um som alto e sublimado,
Um estilo grandíloco e corrente,
Por que141 de vossas águas Febo ordene
Que não tenham enveja às de Hipocrene142.

5
Dai-me ũa fúria143 grande e sonorosa,
E não de agreste avena144 ou frauta ruda,

134
O império português na Ásia e na África. Cf. COUTO, Diogo do. Décadas; selecção, pref. e notas de António
Baião. Lisboa: Sá da Costa, 1947, v. 2, p. 77: “Não pelejavam os Portugueses na Índia com homens nus e
despidos, e tão bárbaros como alguns o trazem, senão contra tão grandes Capitães, como foram os Cartagineses,
e contra mais bombardas das com que os Romanos nunca pelejaram.”
135
Ulisses.
136
Eneias.
137
Pois, porque.
138
Invocação: estrofes 4 e 5.
139
Ninfas do Tejo.
140
Criado tendes: criastes.
141
Para que.
142
Fonte mitológica, que o cavalo Pégaso fez brotar, cujas águas tinham o dom da inspiração poética.
143
Delírio poético.
144
Flauta pastoril. Segundo a edição de Saraiva (CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas; edição organizada por
António José Saraiva. Porto: Figueirinhas, 1978.) agreste avena designa aqui o estilo lírico.
101

Mas de tuba [= trombeta] canora e belicosa,


Que o peito acende e a cor ao gesto muda;
Dai-me igual canto145 aos feitos da famosa
Gente vossa, que a Marte tanto ajuda,
Que se espalhe e se cante no universo,
Se tão sublime preço cabe em verso.

6146
E, vós, ó bem nascida segurança
Da Lusitana antiga liberdade,
E não menos certíssima esperança
De aumento da pequena Cristandade;
Vós, ó novo temor da Maura lança,
Maravilha fatal da nossa idade [=época],
(Dada ao mundo por Deus, que todo o mande,
Pera do mundo a Deus dar parte grande);

7
Vós, tenro e novo ramo florecente
De ũa árvore, de Cristo mais amada
Que nenhũa nascida no Ocidente,
Cesárea147 ou Cristianíssima chamada
(Vede-o no vosso escudo, que presente
Vos amostra a vitória já passada148,
Na qual vos deu por armas e deixou
As que Ele pera si na Cruz tomou);

[3] 8
Vós, poderoso Rei, cujo alto Império
O Sol, logo em nascendo, vê primeiro,
Vê-o também no meio do Hemisfério149,
E quando dece o deixa derradeiro;
Vós, que esperamos jugo e vitupério
Do torpe Ismaelita150 cavaleiro,
Do Turco Oriental e do Gentio
Que inda bebe o licor do santo rio151:

9
Inclinai por um pouco a majestade
Que nesse tenro gesto [rosto] vos contemplo,
Que já se mostra qual na inteira [adulta] idade,
Quando subindo ireis ao eterno templo;
Os olhos da real benignidade
Ponde no chão: vereis um novo exemplo

145
Sujeito de “espalhe e cante”.
146
Dedicatória [a D. Sebastião]: Estrofes 6 a 18.
147
Imperadores da Alemanha.
148
Alusão à Batalha de Ourique. Cinco escudetes = cinco chagas de Cristo.
149
Segundo a edição de Saraiva (CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas; edição organizada por António José Saraiva.
Porto: Figueirinhas, 1978.), hemisfério, aqui, designa abóbada celeste, que cobre a terra como se ela fosse plana.
150
Descendente de Ismael, filho de Abraão e da escrava Agar.
151
Ganges.
102

De amor dos pátrios feitos valerosos,


Em versos divulgado numerosos [harmoniosos].

10
Vereis amor da pátria, não movido
De prêmio vil, mas alto e quase eterno;
Que não é prêmio vil ser conhecido
Por um pregão do ninho meu paterno.
Ouvi: vereis o nome engrandecido
Daqueles de quem sois senhor superno [= superior],
E julgareis qual é mais excelente,
Se ser do mundo Rei, se de tal gente.

11
Ouvi, que não vereis com vãs [=irreais] façanhas,
Fantásticas, fingidas, mentirosas,
Louvar os vossos, como nas estranhas [= estrangeiras]
Musas, de engrandecer-se desejosas:
As verdadeiras vossas são tamanhas
Que excedem as sonhadas, fabulosas,
Que excedem Rodamonte152 e o vão Rugeiro153
E Orlando, inda que fora verdadeiro.

[4] 12
Por estes vos darei um Nuno fero,
Que fez ao Rei e ao Reino tal serviço,
Um Egas154 e um Dom Fuas155, que de Homero
A cítara [=inspiração] par’eles só cobiço;
Pois polos Doze Pares dar-vos quero
Os Doze de Inglaterra e o seu Magriço156;
Dou-vos também aquele ilustre Gama,
Que para si de Eneas toma a fama.

13
Pois se a troco de Carlos, Rei de França,
Ou de César, quereis igual memória,
Vede o primeiro Afonso [Henriques], cuja lança
Escura faz qualquer estranha glória;
E aquele157 que a seu Reino a segurança
Deixou, com a [= co’a] grande e próspera vitória;
Outro Joane [II], invicto cavaleiro;
O quarto e quinto Afonsos e o terceiro.

14

152
(Rodomonte). Personagem do Orlando Innamorato, de Boiardo.
153
Rolando, um dos doze pares de Carlos Magno.
154
Egas Moniz (1080-1146), escudeiro de Afonso Henriques, quando príncipe.
155
v. VIII, est. 16.
156
Cf. Canto VI, 43-69.
157
D. João I e a vitória contra D. Juan em Aljubarrota, batalha na estrada da Leiria para Lisboa, 14.08.1385.
103

Nem deixarão meus versos esquecidos


Aqueles que nos Reinos lá da Aurora
Se fizeram por armas tão subidos [=ilustres],
Vossa bandeira sempre vencedora:
Um Pacheco [= Duarte Pacheco] fortíssimo e os temidos
Almeidas158, por quem sempre o Tejo chora,
Albuquerque terríbil, Castro159 forte,
E outros em quem poder não teve a morte.

15
E, em quanto eu estes canto e a vós não posso,
Sublime Rei, que não me atrevo a tanto,
Tomai as rédeas vós do Reino vosso,
Dareis matéria a nunca ouvido canto:
Comecem a sentir o peso grosso
(Que polo mundo todo faça espanto)
De exércitos e feitos singulares
De África as terras e do Oriente os mares.

[5] 16
Em vós os olhos tem o mouro frio,
Em quem vê seu exício afigurado;
Só com vos ver, o bárbaro gentio
Mostra o pescoço ao jugo já inclinado;
Tétis160 todo o cerúleo senhorio [= mar]
Tem pera vós por dote [= genro] aparelhado,
Que, afeiçoada ao gesto belo e tenro,
Deseja de comprar-vos pera genro.

17
Em vós se vem, da olímpica morada,
Dos dous avós161 as almas cá famosas;
Ũa, na paz angélica dourada,
Outra, pelas batalhas sanguinosas.
Em vós esperam ver-se renovada
Sua memória e obras valerosas;
E lá vos tem lugar, no fim da idade,
No templo da suprema Eternidade.

18
Mas, enquanto este tempo passa lento
De regerdes os povos, que o desejam,
Dai vós favor ao novo atrevimento,
Pera que estes meus versos vossos sejam,
E vereis ir [argonautas] cortando [sulcando] o salso argento [= mar]
Os vossos Argonautas, por que vejam
Que são vistos de vós no mar irado,

158
D. Francisco de Almeida e D. Lourenço, ambos mortos em combate, longe da pátria.
159
D. João de Castro, que tomou a defesa de Dio.
160
Tétis (Thetis), filha de Nereu e Dóris, difere de Tethys, esposa do Oceano.
161
D. João III (avô paterno) e Carlos V (avô materno).
104

E costumai-vos já a ser invocado.

19162
Já no largo oceano navegavam
As inquietas ondas apartando;
Os ventos brandamente respiravam [= sopravam]
Das naus as velas côncavas inchando;
Da branca escuma os mares se mostravam
Cubertos, onde as proas vão cortando
As marítimas águas consagradas,
Que do gado de Próteu são cortadas.

Canto Terceiro

[88] 118
Passada esta tão prospera vitória163,
Tornado Afonso à Lusitana terra,
A se lograr da paz com tanta glória
Quanta soube ganhar na dura guerra,
O caso triste, e dino da memória
Que do sepulcro os homens desenterra.
Aconteceu da mísera e mesquinha164
Que despois de ser morta foi Rainha.

119
Tu só, tu, puro Amor, com força crua,
Que os corações humanos tanto obriga [=sujeita],
Deste causa à molesta [= funesta] morte sua,
Como se fora pérfida inimiga.
Se dizem, fero Amor, que a sede tua
Nem com lágrimas tristes se mitiga,
É porque queres, áspero e tirano,
Tuas aras banhar em sangue humano.

[89] 120
Estavas, linda lnês, posta em sossego,
De teus anos colhendo doce fructo [ou fruito],
Naquele engano da alma, ledo e cego,
Que a Fortuna não deixa durar muito,
Nos saüdosos campos do Mondego,
De teus fermosos olhos nunca enxu[i]to,
Aos montes ensinando e às ervinhas
O nome que no peito escripto tinhas.

121
Do teu Príncipe ali te respondiam
As lembranças que na alma lhe moravam,
Que sempre ante seus [= dele] olhos te traziam,

162
Começa a narração da viagem de Vasco da Gama.
163
Batalha do Salado.
164
Infeliz e desgraçada.
105

Quando dos teus fermosos se apartavam;


De noite, em doces sonhos que mentiam,
De dia, em pensamentos que voavam.
E quanto, em fim, cuidava e quanto via
Eram tudo memórias de alegria.

122
De outras belas senhoras e Princesas
Os desejados tálamos165enjeita,
Que tudo, enfim, tu, puro amor, desprezas
Quando um gesto suave te sujeita.
Vendo estas namoradas estranhezas,
O velho pai sesudo, que respeita
O murmurar do povo e a fantasia
Do filho, que casar-se não queria,

123
Tirar Inês ao mundo determina,
Por [= para] lhe tirar o filho que tem preso,
Crendo co sangue só da morte indina
Matar do firme amor o fogo aceso.
Que furor [= loucura] consentiu que a espada fina
Que pôde sustentar o grande peso
Do furor Mauro, fosse alevantada
Contra ũa fraca dama delicada?

[90] 124
Traziam-[n]a os horríficos algozes
Ante o Rei, já movido a piedade;
Mas o povo, com falsas e ferozes
Razões, à morte crua o persuade.
Ela, com tristes e piedosas vozes,
Saídas só da mágoa e saüdade
Do seu Príncipe e filhos, que deixava,
Que [o que] mais que a própria morte a magoava,

125
Pera o céu cristalino alevantando,
Com lágrimas, os olhos piedosos
(Os olhos, porque as mãos lhe estava atando
Um dos duros ministros rigorosos);
E despois nos mininos atentando,
Que tão queridos tinha e tão mimosos,
Cuja orfindade como mãe temia,
Pera o avô cruel assi dizia:

126
— Se já nas brutas feras, cuja mente166

165
Leitos nupciais ambicionados por outros.
166
Índole, condição.
106

Natura fez cruel de nascimento,


E nas aves agrestes, que somente
Nas rapinas aéreas têm o intento,
Com pequenas crianças viu a gente
Terem tão piadoso sentimento
Como co a mãe de Nino167 já mostraram,
E cos irmãos que Roma edificaram:

127
Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito
(Se de humano é matar ũa donzela168,
Fraca e sem força, só por ter subjeito
O coração a quem soube vencê-la),
A estas criancinhas tem respeito,
Pois o não tens à morte escura dela;
Mova-te a piedade sua e minha169,
Pois te não move a culpa que não tinha [= tenho].

[91] 128
E se, vencendo a Maura resistência,
A morte sabes dar com fogo e ferro,
Sabe também dar vida com clemência
A quem pera perdê-la não fez erro.
Mas, se to assi merece esta inocência,
Põe-me em perpétuo e mísero desterro,
Na Cítia170 fria ou lá na Líbia171 ardente,
Onde em lágrimas viva eternamente.

129
Põe-me onde se use toda a feridade,
Entre liões e tigres, e verei
Se neles achar posso a piedade
Que entre peitos humanos não achei.
Ali, co amor intrínseco e vontade [= coração, alma]
Naquele por quem mouro, criarei
Estas relíquias suas, que aqui viste,
Que refrigério sejam da mãe triste.

130
Queria perdoar-lhe o rei benino,
Movido das palavras que o magoam;
Mas o pertinaz povo e seu destino
(Que desta sorte o quis) lhe não perdoam.
Arrancam das espadas de aço fino
Os que por bom tal feito ali apregoam.

167
Semíramis, que, segundo a lenda, foi alimentada por pombas no deserto.
168
Dama ainda nova.
169
A compaixão delas e de mim.
170
A Cítia era para os antigos a região de mais frio.
171
A África setentrional.
107

Contra ũa dama, ó peitos carniceiros,


Feros vos amostrais, e cavaleiros?

131
Qual contra a linda moça Policena172,
Consolação extrema da mãe velha,
Porque a sombra de Aquiles a condena,
Co ferro o duro Pirro se aparelha;
Mas ela, os olhos com que o ar serena
(Bem como paciente e mansa ovelha)
Na mísera mãe postos, que endoudece,
Ao duro sacrifício se oferece:

[92] 132
Tais contra Inês os brutos matadores,
No colo173 de alabastro, que sustinha
As obras174 com que Amor matou de amores
Aquele que despois a fez rainha175,
As espadas banhando, e as brancas flores,
Que ela dos olhos seus regadas tinha,
Se encarniçavam, férvidos e irosos
No futuro castigo não cuidosos.

133
Bem poderas, ó Sol, da vista destes176,
Teus raios apartar aquele dia,
Como da seva mesa de Tiestes177,
Quando os filhos por mão de Atreu comia!
Vós, ó côncavos vales, que pudestes
A voz [= palavra] extrema ouvir da boca fria,
O nome do seu Pedro, que lhe ouvistes,
Por muito grande espaço repetistes!

134
Assi como a bonina, que cortada
Antes do tempo foi, cândida e bela,
Sendo das mãos lacivas maltratada
Da minina que a trouxe na capela,
O cheiro traz perdido e a cor murchada:
Tal está, morta, a pálida donzela,
Secas do rosto as rosas e perdida

172
Filha de Príamo, rei de Tróia, que apareceu depois de morto a seu filho Pirro e exigiu que este a matasse em
sacrifício.
173
Segundo a edição de Saraiva (CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas; edição organizada por António José Saraiva.
Porto: Figueirinhas, 1978.), o colo é o pescoço que sustém as obras, isto é, os movimentos do rosto.
174
O conjunto de encantos do rosto, do semblante. Objeto direto de “sostinha”.
175
D. Pedro, cinco anos depois da tragédia, com toda a pompa, em solene procissão, transportou o corpo da
esposa, desde Coimbra até o Mosteiro de Alcobaça.
176
Algozes.
177
Atreu, rei de Micenas, para se vingar do irmão Tiestes que tivera amores com sua mulher, ofereceu-lhe um
banquete, onde lhe deu a comer a carne dos próprios filhos. Segundo uma antiga lenda, o sol, horrorizado,
escondeu-se nessa ocasião.
108

A branca e viva cor, coa doce vida.

135
As filhas do Mondego a morte escura [= triste]
Longo tempo chorando memoraram,
E, por memória eterna, em fonte pura178
As lágrimas choradas transformaram.
O nome lhe puseram, que inda dura,
Dos amores de Inês, que ali passaram.
Vede que fresca fonte rega as flores,
Que lágrimas são a água e o nome Amores!

Canto Quarto

[118] 94
Mas um velho, de aspeito venerando179,
Que ficava nas praias180, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
Cum saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito181:

95
«Ó glória de mandar, ó vã cobiça
Desta vaidade a quem [que] chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
Cũa aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles esprimentas!

[119] 96
Dura inquietação d’alma e da vida
Fonte de desemparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida

178
Fontes dos Amores, na Quinta das Lágrimas (Coimbra).
179
BERARDINELLI, Cleonice. Estudos Camonianos. Ed. rev. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Cátedra Pe.
Antônio Vieira, 2000. p. 51: “Assim, pois, para estes dois ilustres camonistas o Velho é o próprio Camões. E
também o que achamos, corroborando essa aproximação pelo confronto entre a qualificação atribuída ao Velho e
a que o Poeta se atribui e aos que mais devem merecer do rei, no canto X. Além de alguma coisa do aspecto e
atitude exterior do Velho do Restelo, só nos diz o narrador que “Cum saber só d’experiências feito / Tais
palavras tirou do experto peito” (IV, 94); pois nos conselhos que dá a d. Sebastião no Epílogo do poema, vemos:
“Os mais exp’rimentados levantai-os, / Se com a experiência têm bondade” (X, 149);”.
180
Cf. BARROS, João de. Décadas; selecção, prefácio e notas de António Baião. Lisboa: Sá da Costa, 1945.
v. 1, p. 9 ss.
181
BUENO, Francisco da Silveira. Notas. In: CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. 11. ed. Rio de Janeiro: Ediouro,
[19--]. p. 207: “experto peito — Do coração experimentado.”
109

De fazendas, de reinos e de impérios!


Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo dina de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana,

97
A que novos desastres determinas
De levar estes Reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas,
Debaixo dalgum nome preminente?
Que promessas de reinos e de minas
D’ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? Que histórias?
Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?182

98
Mas, ó tu, gèração daquele insano [Adão]
Cujo pecado e desobediência
Não somente do Reino soberano
Te pôs neste desterro e triste ausência,
Mas inda doutro estado mais que humano,
Da quieta e da simpres inocência,
Idade d’ouro, tanto te privou,
Que na de ferro e d’armas [guerras] te deitou [lançou]:

99
Já que nesta gostosa vaïdade
Tanto enlevas a leve fantasia,
Já que à bruta crueza e feridade
Puseste nome [chamaste], esforço e valentia,
Já que prezas em tanta quantidade :
O desprezo da vida, que devia
De ser sempre estimada, pois que já
Temeu tanto perdê-la Quem a dá183:

[120] 100
Não tens junto contigo o Ismaelita [os mouros],
Com quem sempre terás guerras sobejas?
Não segue ele do Arábio [Maomé] a lei maldita [Islamismo],
Se tu pola de Cristo só pelejas?
182
Cf. PESSOA, Fernando. “Mar Portuguez”. In: Obra Poética. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986,
p. 82:

Ó MAR SALGADO, quanto do teu sal Valeu a pena? Tudo vale a pena
São lagrimas de Portugal! Se a alma não é pequena.
Por te cruzarmos, quantas mães choraram, Quem quere passar além do Bojador
Quantos filhos em vão resaram! Tem que passar além da dor.
Quantas noivas ficaram por casar Deus ao mar o perigo e o abysmo deu,
Para que fosses nosso, ó mar! Mas nelle é que espelhou o céu.
183
Referência ao pedido de Jesus, no Horto, ao Pai: “se é possível, passe de mim este cálice” (S. Mateus, XXVI,
39 e 42).
110

Não tem cidades mil, terra infinita,


Se terras e riqueza mais desejas?
Não é ele [o Ismaelita] por armas esforçado,
Se queres por vitórias ser louvado?

101
Deixas criar às portas o inimigo,
Por ires buscar outro de tão longe,
Por quem se despovoe o Reino antigo,
Se enfraqueça e se vá deitando a longe [a perder];
Buscas o incerto e incógnito perigo
Por que a Fama te exalte e te lisonje
Chamando-te senhor, com larga cópia [abundância],
Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia.

102
Oh, maldito o primeiro que, no mundo,
Nas ondas vela pôs em seco lenho [navio]!
Dino da eterna pena do Profundo [Inferno],
Se é justa a justa Lei que sigo e tenho!
Nunca juízo algum, alto e profundo,
Nem cítara sonora ou vivo engenho
Te dê por isso fama nem memória,
Mas contigo se acabe o nome e glória!

103
Trouxe o filho de Jápeto do Céu [Prometeu]
O fogo que ajuntou ao peito humano,
Fogo que o mundo em armas acendeu,
Em mortes, em desonras (grande engano!).
Quanto milhor nos fora, Prometeu,
E quanto pera o mundo menos dano,
Que a tua estátua [o homem] ilustre não tivera
Fogo de altos desejos, que a movera!

[121] 104
Não cometera o moço miserando [Faetonte, filho do Sol]
O carro alto do pai, nem o ar vazio
O grande arquitector [Dédalo] co filho [Ícaro], dando,
Um, nome ao mar [Egeu, mar Icário], e o outro, fama ao rio [Pó] .
Nenhum cometimento alto e nefando184
Por fogo, ferro, água, calma e frio,
Deixa intentado [por tentar] a humana gèração.
Mísera sorte! Estranha condição!»

Canto Quinto185

[132] 38
Tão temerosa vinha e carregada186,
184
Nefando: coisa ou fato que não deve ser narrado.
185
Cf. tromba d’água, V, 19-23.
186
De cor escura.
111

Que pôs nos corações um grande medo;


Bramindo, o negro mar de longe brada,
Como se desse em vão nalgum rochedo.
— Ó Potestade (disse) sublimada [= poder de Deus]:
Que ameaço divino ou que segredo
Este clima [= região] e este mar nos apresenta,
Que mor cousa parece que tormenta?

39
Não acabava, quando ũa figura
Se nos mostra no ar, robusta e válida,
De disforme e grandíssima estatura;
O rosto carregado, a barba esquálida [= hirta, suja],
Os olhos encovados, e a postura
Medonha e má e a cor terrena [= terroso] e pálida;
Cheos de terra e crespos os cabelos,
A boca negra, os dentes amarelos.

[133] 40
Tão grande era de membros que bem posso
Certificar-te que este era o segundo
De Rodes estranhíssimo Colosso,
Que um dos sete milagres foi do mundo.
Cum tom de voz nos fala, horrendo e grosso,
Que pareceu sair do mar profundo.
Arrepiam-se as carnes e o cabelo,
A mi e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo!

41
E disse: — Ó gente ousada, mais que quantas
No mundo cometeram grandes cousas,
Tu, que por guerras cruas, tais e tantas,
E por trabalhos vãos nunca repousas,
Pois os vedados términos quebrantas
E navegar meus longos [distantes] mares ousas,
Que eu tanto tempo há já que guardo e tenho,
Nunca arados d’estranho ou próprio lenho;

42
Pois vens ver os segredos escondidos
Da natureza e do húmido elemento,
A nenhum grande humano concedidos
De nobre ou de imortal merecimento,
Ouve os danos de mi que apercebidos
Estão a teu sobejo atrevimento,
Por todo o largo mar e pola terra
Que inda hás-de sojugar com dura guerra.

43
112

Sabe que quantas naus esta viagem


Que tu fazes, fizerem, de atrevidas,
Inimiga terão esta paragem,
Com ventos e tormentas desmedidas;
E da primeira armada que passagem
Fizer por estas ondas insofridas,
Eu farei d’ improviso tal castigo
Que seja mor o dano que o perigo!187

[134] 44
Aqui espero tomar, se não me engano,
De quem me descobriu suma vingança;
E não se acabará só nisto o dano
De vossa pertinace confiança:
Antes, em vossas naus vereis, cada ano,
Se é verdade o que meu juízo alcança,
Naufrágios, perdições de toda sorte,
Que188 o menor mal de todos seja a morte!

45
E do primeiro Ilustre189, que a ventura
Com fama alta fizer tocar os Céus,
Serei eterna e nova sepultura,
Por juízos incógnitos de Deus.
Aqui porá da Turca armada dura
Os soberbos e prósperos troféus;
Comigo de seus danos o ameaça
A destruída Quíloa com Mombaça190.

46
Outro também virá191, de honrada fama,
Liberal, cavaleiro, enamorado,
E consigo trará a fermosa dama
Que Amor por grão mercê lhe terá dado.
Triste ventura e negro fado os chama
Neste terreno meu, que, duro e irado,
Os deixará dum cru naufrágio vivos,
Pera verem trabalhos excessivos.

47
Verão morrer com fome os filhos caros,
Em tanto amor gerados e nacidos;
Verão os Cafres, ásperos [= rudes] e avaros,

187
Segundo a edição de Saraiva (Figueirinhas, 1978), os cronistas contam que quatro navios da expedição de
Pedro Álvares Cabral se afundaram repentinamente por efeito de um tufão que apanhou os marinheiros de
surpresa. Entre os desaparecidos contou-se Bartomeu Dias, o descobridor do Cabo.
188
De tal modo que...
189
Morte do primeiro vice-rei da Índia, D. Francisco de Almeida.
190
Mombaça fica no atual Quênia. Cf. BARROS, João de. Décadas. Lisboa: Sá da Costa, 1945. v. 1, p. 38-39. v.
2, p. 97-98: “Esta ilha jaz metida dentro na terra firme torneada de outro esteiro de água...”
191
Vaticínio do desastre que sofreria outro cavaleiro português, Manuel de Souza de Sepúlveda, juntamente com
sua esposa, salvos dum naufrágio, mas submetidos a duras provações nos areais da África.
113

Tirar à linda dama seus vestidos;


Os cristalinos membros e perclaros
À calma, ao frio, ao ar, verão despidos,
Despois de ter pisada, longamente,
Cos delicados pés a areia ardente.

[135] 48
E verão mais os olhos que escaparem
De tanto mal, de tanta desventura,
Os dous amantes míseros ficarem
Na férvida, implacábil espessura [= mata].
Ali, despois que as pedras abrandarem
Com lágrimas de dor, de mágoa pura,
Abraçados, as almas soltarão
Da fermosa e misérrima prisão.

49
Mais ia por diante o monstro horrendo,
Dizendo nossos Fados, quando, alçado,
Lhe disse eu: — Quem és tu? Que esse estupendo
Corpo, certo me tem maravilhado!
A boca e os olhos negros retorcendo
E dando um espantoso e grande brado,
Me respondeu, com voz pesada e amara,
Como quem da pergunta lhe pesara:

50
— Eu sou aquele oculto e grande Cabo
A quem chamais vós outros Tormentório,
Que nunca a Ptolomeu, Pompónio, Estrabo,
Plinio e quantos passaram fui notório.
Aqui toda a Africana costa acabo
Neste meu nunca visto Promontório,
Que pera o Pólo Antártico se estende,
A quem vossa ousadia tanto ofende.

51
Fui dos filhos aspérrimos da Terra,
Qual Encélado, Egeu e o Centimano;
Chamei-me Adamastor, e fui [= estive] na guerra
Contra o que vibra os raios de Vulcano;
Não que posesse serra sobre serra,
Mas, conquistando as ondas do Oceano,
Fui capitão do mar, por onde andava
A armada de Neptuno, que eu buscava192.

[136] 52
Amores da alta esposa de Peleu [= Tétis]
Me fizeram tomar tamanha empresa;
Todas as Deusas desprezei do Céu,
192
... que eu buscava = para destruir.
114

Só por amar das águas a Princesa.


Um dia a vi, co as filhas de Nereu,
Sair nua na praia e logo presa
A vontade senti de tal maneira
Que inda não sinto cousa que mais queira.

53
Como fosse impossíbil alcançá-la,
Pola grandeza fea de meu gesto,
Determinei por armas de tomá-la
E a Dóris este caso manifesto.
De medo a Deusa então por mi lhe fala;
Mas ela, cum fermoso riso honesto,
Respondeu: — Qual será o amor bastante
De Ninfa, que sustente o dum Gigante?

54
Com tudo, por livrarmos o Oceano
De tanta guerra, eu buscarei maneira
Com que, com minha honra, escuse o dano:
Tal resposta me torna a mensageira.
Eu, que cair não pude neste engano
(Que é grande dos amantes a cegueira),
Encheram-me, com grandes abondanças,
O peito de desejos e esperanças.

55
Já néscio, já da guerra desistindo,
Ũa noite, de Dóris prometida,
Me aparece de longe o gesto lindo
Da branca Tétis, única, despida.
Como doudo corri de longe, abrindo
Os braços pera aquela que era vida
Deste corpo, e começo os olhos belos
A lhe beijar, as faces e os cabelos.

[137] 56
Oh que não sei de nojo193 como o conte!
Que, crendo ter nos braços quem amava,
Abraçado me achei cum duro monte
De áspero mato e de espessura brava.
Estando cum penedo fronte a fronte,
Qu’eu polo rosto angélico apertava,
Não fiquei homem, não; mas mudo e quedo
E, junto dum penedo, outro penedo!

57
Ó Ninfa, a mais fermosa do Oceano,
Já que minha presença não te agrada,
Que te custava ter-me neste engano,
193
Tristeza, dor.
115

Ou fosse monte, nuvem, sonho ou nada?


Daqui me parto, irado e quási insano
Da mágoa e da desonra ali passada,
A buscar outro mundo, onde não visse
Quem de meu pranto e de meu mal se risse.

58
Eram [estavam] já neste tempo meus Irmãos
Vencidos e em miséria extrema postos,
E, por mais segurar-se os Deuses vãos,
Alguns a vários montes sotopostos.
E, como contra o Céu não valem mãos,
Eu, que chorando andava meus desgostos,
Comecei a sentir do Fado imigo,
Por meus atrevimentos, o castigo:

59
Converte-se-me a carne em terra dura;
Em penedos os ossos se fizeram;
Estes membros que vês, e esta figura,
Por estas longas águas se estenderam.
Enfim, minha grandíssima estatura
Neste remoto Cabo converteram
Os Deuses; e, por mais dobradas mágoas,
Me anda Tétis cercando destas águas.

[138] 60
Assi contava; e, cum medonho choro,
Súbito d’ante os olhos se apartou;
Desfez-se a nuvem negra, e cum sonoro
Bramido muito longe o mar soou.
Eu194, levantando as mãos ao santo coro
Dos Anjos, que tão longe nos guiou,
A Deus pedi que removesse os duros
Casos, que Adamastor contou futuros.

Canto Nono195

[235] 51
Cortando vão as naus a larga via
Do mar ingente pera a pátria amada,
Desejando prover-se de água fria
Pera a grande viagem prolongada,
Quando, juntas, com súbita alegria,
Houveram vista da Ilha namorada,
Rompendo pelo céu a mãe fermosa
De Menônio, suave e deleitosa196.

194
Vasco da Gama.
195
Cf. VIEIRA, Yara Frateschi. Emblema, alegoria e história no episódio da Ilha dos Amores. Revista
Camoniana, São Paulo, n. 4, p. 93-109, 1981. O episódio vai de IX, 18-95 até X, 1-143.
196
A mãe de Menônio era a Aurora.
116

[236] 52
De longe a Ilha viram, fresca e bela,
Que Vênus pelas ondas lha levava
(Bem como o vento leva branca vela)
Pera onde a forte armada se enxergava;
Que, por que não passassem, sem que nela
Tomassem porto, como desejava,
Pera onde as naus navegam a movia
A Acidália, que tudo, enfim, podia.

53
Mas firme a fez e imóbil, como viu
Que era dos Nautas vista e demandada,
Qual ficou Delos, tanto que pariu
Latona Febo e a Deusa à caça usada.
Pera lá logo a proa o mar abriu,
Onde a costa fazia ũa enseada
Curva e quieta, cuja branca areia
Pintou [Enfeitou] de ruivas conchas Citereia197.

54
Três fermosos outeiros se mostravam,
Erguidos com soberba graciosa,
Que de gramíneo esmalte se adornavam,
Na fermosa Ilha, alegre e deleitosa.
Claras fontes e límpidas manavam
Do cume, que a verdura tem viçosa;
Por entre pedras alvas se deriva
A sonorosa linfa fugitiva.

55
Num vale ameno, que os outeiros fende.
Vinham as claras águas ajuntar-se,
Onde ũa mesa [lago] fazem, que se estende
Tão bela quanto pode imaginar-se.
Arvoredo gentil sobre ela pende,
Como que [se] pronto está pera afeitar-se,
Vendo-se no cristal resplandecente,
Que em si o está pintando propriamente198.

[237] 56
Mil árvores estão ao céu subindo,
Com pomos [frutos] odoríferos e belos;
A laranjeira tem no fruto lindo
A cor [loura] que tinha Dafne nos cabelos.
Encosta-se no chão, que está caindo,

197
Virgílio conta na Eneida (III, 73-77) que a ilha de Delos, primeiramente errática, se fixou quando Latona nela
deu à luz a Febo e Diana.
198
Tal qual é.
117

A cidreira cos pesos amarelos;


Os fermosos limões ali cheirando,
Estão virgíneas tetas imitando.

57
As árvores agrestes, que os outeiros
Têm com frondente coma enobrecidos,
Álemos são de Alcides [Hércules], e os loureiros
Do louro Deus [Apolo] amados e queridos;
Mirtos de Citerea [Vênus], cos pinheiros
De Cibele199, por outro amor vencidos;
Está apontando o agudo cipariso [cipreste]
Pera onde é posto o etéreo Paraíso.

58
Os dões que dá Pomona [deusa das árvores] ali Natura
Produze, diferentes nos sabores,
Sem ter necessidade de cultura,
Que sem ela se dão muito milhores:
As cereijas, porpúreas na pintura,
As amoras, que o nome têm de amores,
O pomo [pêssego] que da pátria Pérsia veio,
Milhor tornado no terreno alheio.

59
Abre [está aberta] a romã, mostrando a rubicunda
Cor, com que tu, rubi, teu preço perdes,
Entre os braços do ulmeiro está a jocunda
Vide, cuns cachos roxos [maduros] e outros verdes;
E vós, se na vossa árvore fecunda,
Peras piramidais [enormes], viver quiserdes,
Entregai-vos ao dano que cos bicos
Em vós fazem os pássaros inicos.

[238] 60
Pois a tapeçaria bela e fina
Com que se cobre o rústico terreno,
Faz ser a de Aquemênia [distrito da Pérsia] menos dina,
Mas o sombrio vale mais ameno.
Ali a cabeça a flor cifísia [o narciso] inclina
Sôbolo [sobre o] tanque lúcido e sereno;
Florece o filho e neto [Adônis] de Ciniras,
Por quem tu, Deusa Páfia [Vênus], inda suspiras.

61
Pera julgar, difícil cousa fora,
No céu vendo e na terra as mesmas cores,
Se dava às flores cor a bela Aurora,
Ou se lha dão a ela as belas flores.

199
Cibele, amante de Atis; atraída por outros amores (os da ninfa Sangaris), foi por ciúmes daquela transformado
em pinheiro.
118

Pintando estava ali Zéfiro [aragem primaveril] e Flora


As violas da cor dos amadores200,
O lírio roxo [vermelho], a fresca rosa bela,
Qual reluze nas faces da donzela;

62
A cândida cecém, das matutinas
Lágrimas rociada, e a manjarona,
Vem-se [vêem-se] as letras nas flores hiacintinas [de Jacinto],
Tão queridas do filho de Latona [Apolo],
Bem se enxerga nos pomos e boninas
Que competia Clóris com Pomona.
Pois, se as aves no ar cantando voam,
Alegres animais o chão povoam.

63
Ao longo da água o níveo cisne canta,
Responde-lhe do ramo filomela [rouxinol];
Da sombra de seus cornos não se espanta
Acteon n’água cristalina e bela;
Aqui a fugace lebre se levanta [sai]
Da espessa mata, ou tímida gazela;
Ali no bico traz ao caro ninho
O mantimento o leve passarinho.

[239] 64
Nesta frescura tal desembarcavam
Já das naus os segundos Argonautas,
Onde pela floresta se deixavam
Andar as belas Deusas, como incautas.
Algũas, doces cítaras tocavam,
Algũas, harpas e sonoras frautas;
Outras, cos arcos de ouro, se fingiam
Seguir os animais, que não seguiam.

65
Assi lho aconselhara a mestra experta:
Que andassem pelos campos espalhadas;
Que, vista dos barões [varões] a presa incerta,
Se fizessem primeiro desejadas.
Algũas, que na forma descoberta
Do belo corpo estavam confiadas,
Posta [= deposta] a artificiosa fermosura,
Nuas lavar se deixam na água pura.

66
Mas os fortes mancebos, que na praia
Punham os pés, de terra cobiçosos
(Que não há nenhum deles que não saia),

200
As violetas.
119

De acharem caça agreste desejosos,


Não cuidam que, sem laço ou redes, caia
Caça naqueles montes deleitosos,
Tão suave, doméstica e benina,
Qual ferida lha tinha já Ericina [Vênus].

67
Alguns, que em espingardas e nas bestas
Pera ferir os cervos, se fiavam,
Pelos sombrios matos e florestas
Determinadamente se lançavam;
Outros, nas sombras, que de as altas sestas201
Defendem a verdura [vegetação], passeavam
Ao longo da água, que, suave e queda [mansa],
Por alvas pedras corre à praia leda.

[240] 68
Começam de enxergar subitamente,
Por entre verdes ramos, várias cores,
Cores de quem a vista julga e sente
Que não eram das rosas ou das flores,
Mas da lã fina e seda diferente,
Que mais incita a força dos amores,
De que se vestem as humanas rosas,
Fazendo-se por arte mais fermosas.

69
Dá Veloso, espantado, um grande grito:
— Senhores, caça estranha, disse, é esta!
Se inda dura o Gentio antigo rito,
A deusas é sagrada [consagrada] esta floresta,
Mais descobrimos do que humano esprito
Desejou nunca, e bem se manifesta
Que são grandes as cousas e excelentes
Que o mundo encobre aos homens imprudentes [ignorantes].

70
Sigamos estas Deusas e vejamos
Se fantásticas são, se verdadeiras.
Isto dito, veloces mais que gamos,
Se lançam a correr pelas ribeiras.
Fugindo as Ninfas vão por entre os ramos,
Mas, mais industriosas que ligeiras,
Pouco e pouco, sorrindo e gritos dando,
Se deixam ir dos galgos [mancebos] alcançando

71
De ũa os cabelos de ouro o vento leva,
Correndo, e da outra as fraldas [fímbrias] delicadas;
Acende-se o desejo, que se ceva
201
Ardor do sol quando vai alto.
120

Nas alvas carnes, súbito mostradas.


Ũa de indústria [propósito] cai, e já releva,
Com mostras mais macias que indinadas,
Que sobre ela, empecendo, também caia
Quem a seguiu pela arenosa praia.

[241] 72
Outros, por outra parte, vão topar
Com as Deusas despidas, que se lavam;
Elas começam súbito a gritar,
Como que assalto tal não esperavam;
Ũas, fingindo menos estimar
A vergonha que a força [violência], se lançavam
Nuas por entre o mato, aos olhos dando
O que às mãos cobiçosas vão negando;

73
Outra, como acudindo mais depressa
À vergonha da deusa caçadora [Diana],
Esconde o corpo nágua, outra se apressa
Por tomar os vestidos que tem fora.
Tal dos mancebos há que se arremessa,
Vestido assi e calçado (que, co a mora [demora]
De se despir, há medo que inda tarde)
A matar na água o fogo que nele arde.

74
Qual cão de caçador, sagaz e ardido [ousado],
Usado a tomar na água a ave ferida,
Vendo [ò]202 rosto o férreo cano erguido
Pera a garcenha [garça] ou pata conhecida,
Antes que soe o estouro, mal sofrido [impaciente]
Salta nágua e da presa não duvida,
Nadando vai e latindo; assi o mancebo
Remete à que não era irmã de Febo.

75
Leonardo, soldado bem disposto,
Manhoso, cavaleiro e namorado,
A quem Amor não dera um só desgosto
Mas sempre fora dele mal tratado,
E tinha já por firme prosuposto
Ser com amores mal afortunado,
Porém não que perdesse a esperança
De inda poder seu fado ter mudança,

[242] 76
Quis aqui sua ventura que corria
Após Efire203, exemplo de beleza,

202
Segundo a edição de Saraiva (Figueirinhas, 1978), “Vendo no rosto o férreo cano erguido”.
203
Filha do Oceano e de Tétis, ninfa de rara beleza.
121

Que mais caro que as outras dar queria


O que deu, pera dar-se, a natureza.
Já cansado, correndo, lhe dizia:
«Ó fermosura indina de aspereza,
Pois desta vida te concedo a palma,
Espera um corpo de quem levas a alma!

77
Todas de correr cansam, Ninfa pura.
Rendendo-se à vontade do inimigo;
Tu só de mi só foges na espessura?
Quem te disse que eu era o que te sigo?
Se to tem dito já aquela ventura
Que em toda a parte sempre anda comigo,
Oh, não na creias, porque eu, quando a cria,
Mil vezes cada hora me mentia.

78
Não canses, que me cansas! E se queres
Fugir-me, por que não possa tocar-te,
Minha ventura é tal que, inda que esperes,
Ela fará que não possa alcançar-te.
Espera; quero ver, se tu quiseres,
Que sutil modo busca de escapar-te;
E notarás, no fim deste sucesso,
Tra la spica e la man qual muro he messo204.

79
«Oh! Não me fujas! Assi nunca o breve
Tempo fuja de tua fermosura;
Que, só com refrear o passo leve,
Vencerás da fortuna a força dura.
Que Emperador, que exército se atreve
A quebrantar a fúria da ventura
Que, em quanto desejei, me vai seguindo,
O que tu só farás não me fugindo?

[243] 80
Pões-te da parte da desdita minha?

204
Cf. o soneto “Ce col cieco desir, che’l cor distrugge...” (Petrarca). Tradução: Que muro está posto entre a
espiga e a mão. Cf. PETRARCA, Francesco. Il Canzoniere e I Trionfi. Milano: Francesco Vallardi, 1924. 517 p.
p. 71. Eis a íntegra do soneto 56:

Se col cieco desir che ’l cor distrugge Lasso, nol so; ma sí conosco io bene
contando l’ore no m’inganno io stesso, che per far piú dogliosa la mia vita
ora mentre ch’io parlo il tempo fugge amor m’addusse in sí gioiosa spene.
ch’a me fu inseme et a mercé promesso.
Et or di quel ch’i’ ò lecto mi sovene,
Qual ombra è sí crudel che ’l seme adugge, che ’nanzi al dí de l’ultima partita
Ch’al disïato frutto era sí presso? huom beato chiamar non si convene.
et dentro dal mio ovil qual fera rugge?
tra la spiga et la man qual muro è messo?
122

Fraqueza é dar ajuda ao mais potente.


Levas-me um coração que livre tinha?
Solta-mo e correrás mais levemente.
Não te carrega essa alma tão mesquinha
Que nesses fios de ouro reluzente
Atada levas? Ou, despois de presa,
Lhe mudaste a ventura e menos pesa?

81
Nesta esperança só te vou seguindo:
Que ou tu não sofrerás o peso dela,
Ou na virtude de teu gesto lindo
Lhe mudarás a triste e dura estrela.
E se se lhe mudar, não vás fugindo,
Que Amor te ferirá, gentil donzela,
E tu me esperarás, se Amor te fere;
E se me esperas, não há mais que espere.»

82
Já não fugia a bela Ninfa tanto,
Por se dar cara ao triste que a seguia,
Como por ir ouvindo o doce canto,
As namoradas mágoas que dizia.
Volvendo o rosto, já sereno e santo,
Toda banhada em riso e alegria,
Cair se deixa aos pés do vencedor,
Que todo se desfaz em puro amor.

83
Oh, que famintos beijos na floresta,
E que mimoso choro que soava!
Que afagos tão suaves! Que ira honesta,
Que em risinhos alegres se tornava!
O que mais passam na manhã e na sesta [tarde],
Que Vênus com prazeres inflamava,
Milhor é exprimentá-lo que julgá-lo;
Mas julgue-o quem não pode exprimentá-lo.

[244] 84
Destarte, enfim, conformes já as fermosas
Ninfas cos seus amados navegantes,
Os ornam de capelas deleitosas
De louro e de ouro e flores abundantes.
As mãos alvas lhe davam como esposas;
Com palavras formais e estipulantes
Se prometem eterna companhia,
Em vida e morte, de honra e alegria.

85
Hũa delas, maior, a quem se humilha
Todo o coro das Ninfas e obedece,
123

Que dizem ser de Celo e Vesta Filha,


O que no gesto belo se parece,
Enchendo a terra e o mar de maravilha,
O capitão ilustre, que o merece,
Recebe ali com pompa honesta [nobre] e régia,
Mostrando-se senhora grande e egrégia.

86
Que, despois de lhe ter dito quem era,
Cum alto exórdio, de alta graça ornado,
Dando-lhe a entender que ali viera
Por alta influição do imobil fado,
Pera lhe descobrir da unida esfera
Da terra imensa e mar não navegado
Os segredos, por alta profecia,
O que esta sua nação só merecia,

87
Tomando-o pela mão, o leva e guia
Pera o cume dum monte alto e divino,
No qual hũa rica fábrica se erguia,
De cristal toda e de ouro puro e fino.
A maior parte aqui passam do dia,
Em doces jogos e em prazer contino.
Ela nos paços logra seus amores,
As outras pelas sombras, entre as flores.

[245] 88
Assi a fermosa e a forte companhia
O dia quase todo estão passando
Nũa alma [alentador] , doce, incógnita alegria,
Os trabalhos tão longos compensando.
Porque dos feitos grandes, da ousadia
Forte e famosa, o mundo está guardando
O prémio lá no fim, bem merecido,
Com fama grande e nome alto e subido.

89
Que as Ninfas do Oceano, tão fermosas,
Tétis e a Ilha angélica pintada,
Outra cousa não é que as deleitosas
Honras que a vida fazem sublimada.
Aquelas preminencias gloriosas,
Os triunfos, a fronte coroada
De palma e louro, a glória e maravilha,
Estes são os deleites desta Ilha.

90
Que as imortalidades que fingia
A antiguidade, que os Ilustres ama,
124

Lá no estelante Olimpo, a quem subia


Sobre as asas ínclitas da Fama,
Por obras valorosas que fazia,
Pelo trabalho imenso que se chama
Caminho da virtude, alto e fragoso,
Mas, no fim, doce, alegre e deleitoso,

91
Não eram senão prémios que reparte,
Por feitos imortais e soberanos,
O mundo cos varões que esforço e arte
Divinos os fizeram, sendo humanos.
Que Júpiter, Mercúrio, Febo e Marte,
Eneias e Quirino e os dous Tebanos,
Ceres, Palas e Juno com Diana,
Todos foram de fraca carne humana205.

[246] 92
Mas a Fama, trombeta de obras tais,
Lhe deu no Mundo nomes tão estranhos
De Deuses, Semideuses, Imortais,
Indígetes [heróis nacionais], Heróicos e de Magnos.
Por isso, ó vós que as famas estimais,
Se quiserdes no mundo ser tamanhos,
Despertai já do sono do ócio ignavo,
Que o ânimo, de livre, faz escravo.

93
E ponde na cobiça um freio duro,
E na ambição também, que indignamente
Tomais mil vezes, e no torpe e escuro
Vício da tirania infame e urgente;
Porque essas honras vãs, esse ouro puro,
Verdadeiro valor não dão à gente:
Milhor é merecê-los sem os ter,
Que possuí-los sem os merecer.

94
Ou dai na paz as leis iguais, constantes,
Que aos grandes não dêem o dos pequenos,
Ou vos vesti nas armas rutilantes,
Contra a lei dos immigos Sarracenos:
Fareis os Reinos grandes e possantes,
E todos tereis mais e nenhum menos:
Possuireis riquezas merecidas,
Com as honras que ilustram tanto as vidas.

95
E fareis claro o Rei que tanto amais,

205
Segundo Hernani Cidade, Camões aqui aceita a doutrina do evhemerismo (de Evhémero, IV séc. A. C.)
125

Agora cos conselhos bem cuidados,


Agora co as espadas, que imortais
Vos farão, como os vossos já passados.
Impossibilidades não façais,
Que quem quis, sempre pôde; e numerados
Sereis entre os Heróis esclarecidos
E nesta «Ilha de Vénus» recebidos.

Canto Décimo

[283] 144
Assi foram cortando o mar sereno,
Com vento sempre manso e nunca irado,
Até que houveram vista do terreno
Em que naceram, sempre desejado.
Entraram pela foz do Tejo ameno206,
E à sua pátria e rei temido e amado
O prêmio e glória dão por que mandou,
E com títulos novos se ilustrou.

145
No mais, Musa, no mais, que a Lira tenho
Destemperada [= desafinada] e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
Dũa austera, apagada e vil [= deprimente] tristeza.

146
E não sei por que influxo de destino
Não tem um ledo orgulho e geral gosto,
Que os ânimos levanta de contino [continuamente]
A ter pera trabalhos ledo o rosto.
Por isso vós, ó Rei, que por divino
Conselho [providência divina] estais no régio sólio posto,
Olhai que sois (e vede as outras gentes)
Senhor só de vassalos excelentes.

147
Olhai que ledos vão, por várias vias,
Quais rompentes liões e bravos touros,
Dando os corpos a fomes e vigias,
A ferro, a fogo, a setas e pilouros,
A quentes regiões, a plagas frias,
A golpes de idolatras e de mouros,
A perigos incógnitos do mundo,
A naufrágios, a pexes, ao profundo.
206
Volta a Lisboa — 5 de outubro de 1498 a agosto de 1499.
126

[284] 148
Por vos servir, a tudo aparelhados [dispostos];
De vós tão longe, sempre obedientes;
A quaisquer vossos ásperos mandados,
Sem dar resposta [sem protesto], prontos e contentes.
Só com saber que são de vós olhados,
Demónios infernais, negros e ardentes,
Cometerão [afrontarão] convosco, e não duvido
Que vencedor vos façam, não vencido.

149
Favorecei-os logo [portanto], e alegrai-os
Com a presença e leda humanidade;
De rigorosas leis desalivai-os,
Que assi se abre o caminho à santidade.
Os mais exprimentados levantai-os,
Se, com a experiência, tem [têm] bondade
Pera vosso conselho, pois que sabem
O como, o quando, e onde as cousas cabem.

150
Todos favorecei em seus ofícios,
Segundo tem das vidas o talento;
Tenham religiosos exercícios
De rogarem, por vosso regimento,
Com jejuns, disciplina, pelos vícios
Comuns; toda ambição terão por vento [vã],
Que o bom Religioso verdadeiro
Glória vã não pretende nem dinheiro.

151
Os cavaleiros tende em muita estima,
Pois com seu sangue intrépido e fervente
Estendem não somente a Lei de cima [do Céu],
Mas inda vosso império preminente.
Pois aqueles que a tão remoto clima
Vos vão servir, com passo diligente,
Dous inimigos vencem: uns, os vivos,
E (o que é mais) os trabalhos excessivos.

[285] 152
Fazei, Senhor, que nunca os admirados
Alemães, galos, ítalos e ingleses,
Possam dizer que são pera [= serem] mandados,
Mais que pera mandar, os portugueses.
Tomai conselho só de exprimentados
Que viram largos anos, largos meses,
Que, posto que em cientes muito cabe,
Mais em particular o experto sabe.
127

[601] 153
De Formião207, filósofo elegante,
Vereis como Anibal escarnecia,
Quando das artes bélicas, diante
Dele, com larga voz tratava e lia.
A disciplina militar prestante
Não se aprende, Senhor, na fantasia,
Sonhando, imaginando ou estudando,
Senão vendo, tratando e pelejando.

154
Mas eu que falo, humilde, baxo e rudo,
De vós não conhecido nem sonhado?
Da boca dos pequenos sei, contudo,
Que o louvor sai às vezes acabado [= perfeito].
Nem me falta na vida honesto estudo,
Com longa experiência misturado,
Nem engenho [talento], que aqui vereis presente,
Cousas que juntas se acham raramente.

155
Pera servir-vos, braço às armas feito,
Pera cantar-vos, mente às musas dada;
Só me falece [falta] ser a vós aceito,
De quem virtude deve ser prezada.
Se me isto o Céu concede, e o vosso peito
Dina empresa tomar de ser cantada,
Como a pressaga mente vaticina
Olhando a vossa inclinação divina.

156208
Ou fazendo que, mais que a de Medusa,
A vista vossa tema o monte Atlante [Atlas],
Ou rompendo nos campos de Ampelusa209
Os muros de Marrocos e Trudante210,
A minha já estimada e leda musa
Fico [= garanto] que em todo o mundo de vós cante,
De sorte que Alexandro [Magno] em vós se veja,
Sem à dita [glória] de Aquiles ter enveja.

Texto HOLANDA, Sílvio. O Maneirismo nas canções camonianas. In: CONGRESSO


14 INTERNACIONAL DE ESTUDOS CAMONIANOS, 1, Rio de Janeiro, 1997.
Anais... Rio de Janeiro: UERJ/SBLL, 1999. p. 449-472.

1. [449] O estudo da canção camoniana, em seus aspectos temáticos, ao lado da fixação


crítica dos textos, é relevante para a interpretação da obra lírica de Camões, pelas
207
Filósofo grego.
208
Camões incita o rei à aventura marroquina, que terminaria desastradamente.
209
O cabo Espartel.
210
Região a sudoeste de Marrocos.
128

possibilidades rítmicas oferecidas por essa forma e pela aproximação a uma temática
maneirista, há muito já assinalada. A Literatura Comparada tradicional já levantou todas as
fontes desses textos: Bembo, Sanazzaro, Petrarca, Boscán, entre outros.
2. Alguns estudos tentaram comprovar a existência de um estilo maneirista em Camões.
Tal estilo já foi apontado por Helmut Hatzfeld 211, um dos maiores especialistas em Barroco e
Maneirismo, em sua leitura dos sonetos camonianos. Este autor resume em cinco tópicos o
estilo manuelino [maneirista] no sonetos camonianos: 1) enlace diante da individualização
isolada (ecos, metáforas, etc.); 2) entrecruzar sentimental diante do esquematismo linear e
racional (moral vs espiritual), intelectual vs sensorial; 3) mescla realista-fantástica de estilos
diante da pureza estilística ideal — “Alma minha gentil, que te partiste”; 4) valores
transcendentais em face de valores imanentes — “Em prisões baixas fui atado”; 5)
sentimentos velados que culminam em paradoxo em face de sentimentos não velados que
culminam em antítese — “Tanto do meu estado me acho incerto”. Em síntese: enlace,
entrelaçamento, mescla, valorização transcendente e encobrimento [450] paradoxal. Aguiar e
Silva defende a tese de um estilo maneirista a marcar toda a Lírica camoniana 212.
3. Apesar de superada em alguns aspectos, a obra de Agostinho de Campos 213 — que
escreveu entre 1927 e 1935 — sobre as canções é um dos trabalhos mais detalhados e longos
sobre essa parte da Lírica camoniana, tendo relativizado a importância dos dados biográficos.
O crítico lusitano analisou as canções sob os seguintes aspectos: assunto, construção estrófica,
confronto, fontes, sentido biográfico e apreciação. Ao analisar a forma da canção camoniana,
ele chega à seguinte definição:

A canção, no sentido e do tipo das de Camões [...] poderá definir-se como


poemeto lírico, mais longo que o soneto e como ele sistemático, de assunto em
regra amoroso, com arbitrário número de estrofes, de composição métrica
idêntica, salvo a última, que é mais curta, tem o nome de envio, cabo ou remate e
apostrofa a própria canção, servindo-lhe de síntese e fecho ao mesmo tempo214.

4. [451] O manual de Teoria Literária de Hênio Tavares apresenta a seguinte definição


de canção:

De um modo geral, compõem-se de três partes: a introdução (o poeta se serve para


indicar uma situação circunstancial ou o lugar em que está no momento da
composição), o texto (encerra propriamente o desenvolvimento do poema) e a ata
(estrofe menor, semelhante ao ofertório das baladas). Quanto à forma, na estrutura
métrica usa-se o decassílabo alternado com o hexassílabo; as estrofes são longas e
a disposição rímica obedece a um esquema simétrico regular e igual215.
211
HATZFELD, Helmut. Estudos sobre o Barroco. São Paulo: Perspectiva/Ed. da Universidade de São Paulo,
1988. p. 156-71.
212
Vítor Manuel de Aguiar e SILVA. Maneirismo e Barroco na Poesia Lírica Portuguesa. Coimbra: Centro de
Estudos Românicos, 1971. p. 502: “Mantendo-nos firmemente no campo da história e fugindo de apriorismos
traiçoeiros, cremos ter demonstrado que não existem razões para designar e conceituar como renascentista a
poesia de um Camões, de um Bernardes [...]”.
213
CAMÕES LÍRICO; ed. org. e anotada por Agostinho de Campos. Lisboa: Bertrand, s. d. v. 5, p. 23: “E tudo
isto aconselha prudência no empenho de tirar biografia de poesia.”
214
Ibidem, v. 5, p. 11. Quanto à forma da canção, v. também: SILVEIRA, Francisco Maciel, MONGELLI,
Lênia, CUNHA, Maria Helena Ribeiro da. A Literatura Portuguesa em Perspectiva. São Paulo: Atlas, 1993. v.
2, p. 41: “Na maior parte delas, a exemplo de Petrarca, a estrofe divide-se em fronte de dois pés (rimas ABC,
BAC ou ABC, ABC) ligados à sirima (cauda) pela chave (verso quebrado, de seis sílabas). Ao final da canção,
vem o commiato ou envio, de três a nove versos, de rimas diferentes da sirima. Quanto ao metro, emprega ora o
decassílabo, ora o verso de pé quebrado (de 6 a 8 sílabas).”
215
TAVARES, Hênio. Teoria Literária. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989. p. 273. Cf. também MOISÉS, Massaud.
Dicionário de Termos Literários. 5. ed. São Paulo: Cultrix, 1988. p. 68, s. v. CANÇÃO: “De modo genérico,
designa toda composição poética destinada ao canto ou que encerra nítida aliança com a música.”
129

5. António José Saraiva, estudando os aspectos formais da Lírica, caracteriza a canção


camoniana, ressaltando-lhe o caráter reflexivo:

[...] o terreno eleito da meditação de largo fôlego é, em Camões, a canção, forma a


que deu uma cerrada contextura reflexiva muito sua, sem deixar de aproveitar
nisso todos os materiais da escola petrarquista italiana, espanhola e portuguesa. A
canção é um desabafo a sós, que, nem apóstrofes nem, por vezes, as convenções
epistolares romanas (tempos verbais determinados sob o ponto de vista do
destinatário e não do redactor: estive em vez de estou, ali em vez de aqui)
conseguem disfarçar, pois o remate, ou commiato, onde o poeta acaba por se
dirigir à própria canção, se encarrega de sublinhar o seu isolamento, e até a
gratuidade de um tal desafogo entregue aos ventos. Não admira, pois, [452] que a
canção, Vinda cá, meu tão certo secretário, fale ao próprio papel onde é escrita e
assuma o carácter de um balanço autobiográfico em busca de um sentido para a
vida; e que outra das mais conhecidas, Junto de um seco, fero, estéril monte,
muito circunstanciadamente localizada junto do mar Vermelho, aprofunde a
inquietação bernardiana acerca das razões, sucessivamente mais radicais, do seu
sentir-se muito infeliz216.

6. A canção, segundo o padrão adotado por Dante e por Petrarca, culmina no ofertório,
isto é, estrofe menor “correspondente ao envoi da balada francesa, através da qual o poeta
dedica o poema à bem-amada ou condensa a matéria das estâncias.” 217 Sem pretender mais
que apontar algumas linhas de leitura das canções, comentemos brevemente algumas delas:

CANÇÃO I218:

7. Arrebatado pelo lindo gesto, o eu lírico procura manter-se dentro de uma pureza
ideal, mas sabe que não é isento aos desatinos do amor:

Se, por algum acerto, Amor vos erra


por parte do desejo, cometendo
[453] algum nefando e torpe desatino,
se ainda mais que ver, enfim, pretendo,
fraquezas são do corpo, que é de terra,
mas não do pensamento, que é divino. (I, iii, 27-32) 219

8. O corpo só é admitido como a contraparte terrena do pensamento. O corpo feminino,


apesar da censura, é descrito:

Das delicadas sobrancelhas pretas


os arcos com que fere, Amor tomou,
e fez a linda corda dos cabelos. (I, iv, 40-42)

9. e
216
SARAIVA, António José, LOPES, Óscar. História da Literatura Portuguesa. Porto: Porto, 1989. p. 331-2.
217
MOISÉS, Massaud, op. cit., p. 68, s. v. CANÇÃO: “De modo genérico, designa toda composição poética
destinada ao canto ou que encerra nítida aliança com a música.”
218
Esquema estrófico: (6 x 13) + 3 (envio) = 81 versos; esquema rímico: abc abc cde deff.
219
As citações são extraídas da seguinte edição: CAMÕES, Luís de. Rimas; texto estabelecido e prefaciado por
Álvaro J. da Costa Pimpão. Coimbra: Almedina, 1994. Os números indicados após a citação referem-se,
respectivamente, à canção, à estrofe e aos versos.
130

a testa d’ouro e neve, o lindo aspeito,


a boca graciosa, o riso honesto,
o colo de cristal, o branco peito. (I, i, 2-4)

10. Pelo conflito estabelecido entre o corpo e a alma, entre a razão e a natureza, pode-se
ler o poema como maneirista. Aguiar e Silva sintetiza esse aspecto do Maneirismo:

[...] a Reforma luterana e calvinista, o maquiavelismo e o maneirismo corroem os


fundamentos dessa crença [optimista] apresentando o homem como um ser
miserável e radicalmente corrupto, apenas redimível através de acto da Graça de
Deus; defendendo a existência de uma dupla moral; opondo o corpo ao espírito,
acentuando [454] dramaticamente a insegurança e a efemeridade da vida,
descobrindo em tudo, no universo e no homem, a incoerência, o conflito, a
contradição220.

11. Amante refinado, ele não apenas tolera a dor, mas a ela se entrega prazerosamente:

Que maior bem deseja quem vos ama


que estar desabafando seus tormentos,
chorando, imaginando docemente?
Quem vive descontente,
não há-de dar alívio a seu desgosto,
porque se lhe agradeça,
mas com alegre rosto
sofra seus males, para que os mereça (I, v, 56-64)

12. O envio da canção reafirma a recusa ao bálsamo contra a dor, envolvendo com
palavras o desejo:

Se com razões escuso meu remédio,


sabe, Canção, que porque não vejo,221
engano com palavras o desejo. (I, vii, 79-81)

CANÇÃO II222:

13. Nessa canção, o acaso e o desengano são objeto de um dizer imposto pela pena que
se apossa do eu lírico, dividido entre o passado e o presente, sendo retomado o tema da
contradição do amor, presente em outros [455] passos da Lírica 223: “Saiba o mundo d’Amor o
desconcerto”(II, i, 14). Através de metáforas maneiristas que se encadeiam, expressa-se a
punição que o eu lírico recebe do Amor:

ao monte de aspereza que em vós vejo,


co pesado penedo do desejo,
que do cume do bem me vai cair;
torno a subi-lo ao desejado assento,
220
SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Teoria da Literatura. 3. ed. rev. Coimbra: Almedina, 1979. p. 394.
221
Variante proposta por A. Salgado Júnior: “sabe, Canção, que é porque [o] não vejo”.
222
Esquema rímico: abc bac cddeedffef.
223
O soneto Tempo é já que minha confiança, verso 3, coloca, por exemplo, o amor fora do domínio da razão:
“Mas Amor não se rege por razão”.
131

torna a cair-me; embalde, enfim, pelejo.


Não te espantes, Sísifo, deste alento,
que às costas o subi do sofrimento. (II, vi, 88-94)

14. A canção II apresenta típicos recursos da poética maneirista, como o enlace de


metáforas: Tântalo224 (estrofe III), Ixião (estrofe IV), Tício (estrofe V) e Sísifo (estrofe VI), a
harmonia em a) p:p: “a perda de perdê-lo mais penosa” (estrofe VII, verso 96), b) t:t:
“Importune meu canto a toda a gente” (II, i, 6) e entrelaçamento sentimental diante do
esquematismo linear e racional (moral vs espiritual, intelectual vs sensorial): “os enganos
suaves d’Amor cego” (II, 2, 2). Há também a valorização do transcendente:

Quando a vista suave e inhuma


meu humano desejo, de atrevido,
[456] cometeu, sem saber o que fazia
([que de sua beleza foi nacido]) (II, v, 63-65)

Amor — cego e arrazoado ao mesmo tempo — leva-o à dor, cuja expressão hiperbólica
é devedora da imagística maneirista: “... para derrubar-me / no abismo infernal de meu
tormento”(II, ii, 25-26). À hipérbole e à metáfora, acrescente-se o paradoxo:

saiba o mundo d’Amor o desconcerto,


que já coa a Razão se fez amigo,
só por não deixar culpa sem castigo. (II, i, 14-16)

Já Amor fez leis, sem ter comigo algũa;


já se tornou, de cego, arrazoado,
só por usar comigo sem-razões. (II, ii, 17-19)

15. Movido por baixo pensamento, ele quer alcançar aquela em quem sua alma vive,
erra e, por castigo, é colocado, sedento, num rio, à maneira de Tântalo: “... foge-me a água, se
beber porfio; / assi que em fome e sede me mantenho” (II, iii, 45-46). Seguindo a técnica
maneirista do enlace, depois de referir-se a Tântalo, o eu lírico, qual novo Adamastor, sofre o
engano que lhe permite tocar o objeto de seu desejo, sendo novamente castigado, dessa vez
com a pena de Ixião:

a nuvem do contino pensamento


m’afigurou nos braços, e assi a tive,

224
BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário Mítico-Etimológico da Mitologia Grega. Petrópolis: Vozes, 1991.
v. 2, p. 400-1: “Desejando saber se os olímpicos eram oniscientes, sacrificou o próprio filho Pélops e ofereceu-o
aos imortais como saborosa iguaria. Os deuses reconheceram, todavia, o que lhes era servido, exceto Deméter
[...] Mergulhado até o pescoço em água límpida e fresca, quando ele tenta beber, o líquido começa a baixar
rapidamente e se lhe escoa por entre os dedos. Árvores repletas de frutos saborosos pendem sobre sua cabeça;
faminto, o herói estende as mãos crispadas para apanhá-los, mas os ramos bruscamente se erguem.”
132

sonhando o que acordado desejei. (II, iv, 51-53)

16. O mito de Ixião225 — além de traduzir a experiência atormentada do amor —


permite ao autor tematizar a mudança:

[457] atado em ũa roda estou penando,


que em mil mudanças me anda rodeando,
onde, se algum bem subo, logo deço,
e assi ganho e perco a confiança;
e assi me tem atado ũa vingança,
como Ixião, tão firme na mudança.(II, iv, 57-62)

17. O último termo do enlace (Tântalo Þ Ixião Þ Tício Þ Sísifo226) é Tício227.


Atormentado pelo pensamento, vivendo para a dor, o eu [458] lírico a essa entidade se
identificará pela dor: “sou outro novo Tício, e não m’entendo” (II, v, 79).
18. O eu lírico traduz a sua experiência amorosa de uma dialética de proximidade/
afastamento recorrendo a termos mitológicos:

Destarte o sumo bem se me oferece


ao faminto desejo, porque sinta
a perda de perdê-lo mais penosa. (II, vi, 95-97)

19. Leia-se o commiato da canção em foco, em que se enfatiza a expressão de uma dor
sobre-humana:

Canção, nô mais, que já não sei que digo;


mas porque a dor me seja menos forte,
diga o pregão a causa desta morte. (II, viii, 111-113)

CANÇÃO III:

225
BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário Mítico-Etimológico da Mitologia Grega. Petrópolis: Vozes, 1991.
v. 1, p. 620-621: “Ixíon era o rei dos lápitas, na Tessália. Para obter a mão da jovem Dia, fez grandes promessas
ao futuro sogro Dioneu. Quando este, após as núpcias, reclamou os presentes, o genro criminoso lançou-o
traiçoeiramente numa fossa cheia de carvões ardentes, introduzindo, assim, o homicídio parental no mito. [...] A
hýbris do rei dos lápitas foi tão grave, que nenhum outro soberano ou herói atreveu-se a purificá-lo [...] Zeus, no
entanto, condoeu-se do neto (afinal passava por ser filho de Ares) e o purificou. Ixíon, porém, mordido pela
hýbris praticada contra Dioneu, ousou um sacrilégio maior: apaixonou-se por Hera e tentou violentá-la. Zeus,
outros afirmam que foi a própria rainha dos deuses, confeccionou em nuvens um eídolon de Hera, que o ingrato
rei da Tessália envolveu imediatamente em seus braços [...]. Para castigar tamanha afronta, Zeus fê-lo alimentar-
se de ambrosia e depois o amarrou com serpentes, à guisa de corda, a uma roda de fogo e lançou-o nos ares ou
no Tártaro, onde para sempre o pai de Pirítoo há de girar dentro de um arco incandescente.”
226
Idem, ibidem,. v. 2, p. 390: “O rei [Sísifo] culpou a esposa de impiedade e, à força de súplicas, conseguiu
permissão para voltar rapidamente [ao Hades], a fim de castigar severamente a companheira.
Uma vez em seu reino, Sísifo não mais se preocupou em cumprir a palavra empenhada e deixou-se ficar,
vivendo até idade avançada. Um dia, porém, Tânatos veio buscá-lo em definitivo e os deuses o castigaram
impiedosamente, condenando-o a rolar um bloco de pedra montanha acima. Mal chegando ao cume, o bloco rola
montanha abaixo, puxado por seu próprio peso.”
227
Idem, ibidem, v. 2, p. 456: “Títio é um gigante, filho de Zeus e de Elara. Temendo os ciúmes de Hera, o deus
escondeu a amante nas entranhas da terra. Foi lá que nasceu Títio. Dele se serviu Hera para perseguir Leto,
inspirando no gigante um violento desejo de possuí-la. Tendo mesmo tentado violentá-la, foi fulminado por Zeus
ou, segundo uma variante, foi liquidado a flechadas pelos gêmeos de Leto, Apolo e Ártemis. Ao tombar no solo,
seu corpanzil ocupou nove jeiras de terra. Lançado no Tártaro, foi condenado a ter o fígado roído por duas
serpentes ou duas águias, mas o órgão renasce conforme as fases da lua.”
133

20. Distribuída por 6 estrofes e regida pelo esquema rímico abba accd dceefe, a canção
III apresenta nas primeiras estrofes uma descrição de uma natureza 228 luminosa: “Já a roxa
manhã clara / do Oriente as portas vem abrindo” (III, i, 1-2). Tal natureza, ainda que
deleitosamente contemplada em luz, cor e canto, impõe-lhe uma pena:

Ó efeito de Amor tão preeminente!


Que permite e consente
que onde quer que me ache, e onde esteja
[459] o seráfico gesto sempre veja,
por quem de viver triste sou contente!
(III, ii, 20-24)

21. Recorrendo a certos lugares-comuns do petrarquismo, o eu lírico descreve o gesto


seráfico —

A luz suave e leda


a meus olhos me mostra por quem mouro,
e os cabe/os d’ouro
não igual aos que vi, mas arremeda (III, iii, 29-32)

22. A visão da amada transfigurada em natureza harmoniosa 229 é fonte de dor para cuja
expressão o autor emprega um dos mais marcantes traços estilísticos do Maneirismo — o
concetto230:

o orvalho das flores delicadas


são nos meus olhos lágrimas cansadas,
que eu choro co prazer de meu tormento (III, iii, 36-38)

23. A metáfora é também usada para traduzir uma visão do real em devir: “os pássaros
que cantam / os meus espritos são” (III, iii, 40-42). Aguiar e Silva enfatiza esse aspecto da
poética maneirista: “A metáfora [460] avulta na linguagem poética maneirista e a sua
freqüência e a sua importância devem relacionar-se com a visão maneirista da realidade como
fluência e transformação contínuas”231.

228
A leitura da IV estrofe que a Aurora (roxa manhã) é um representação da Amada: “vos estais juntamente
apresentando / em forma de fermosa e roxa Aurora” (III, iv, 51-52).
229
Na canção IV — Vão as serenas águas — estabelece-se contraste semelhante de uma natureza harmoniosa
(locus amoenus) com a mágoa humana; nesta canção. a mudança que altera relação amorosa (com Isabel
Tavares, segundo a tradição biografista) é prefigurada pelo movimento das águas. Sobre esta canção, cf.
CIDADE, Hernâni. Luís de Camões — O Lírico. 3. ed. Lisboa: Presença, 1992. p. 137 ss.
230
HAUSER, Arnold. Maneirismo: a crise da Renascença e o surgimento da arte moderna. São Paulo:
Perspectiva/Ed. da Universidade de São Paulo, 1976. p. 393-394: “O concetto, esta quinta-essência de tudo o que
é compreendido pela alusão bizarra e obscura, pela agudeza e espírito e acima de tudo por todas as associações
paradoxais dos opostos, é um elemento formal da escrita maneirista quase tão importante quanto a metáfora.” O
conceptismo — jogo virtuoso acerca das palavras e idéias — difere do concetto (mais abstrato). São exemplos de
concetto: a) “Doce tormento do amor” (Tasso); b) “fogo gelado” (Góngora); c) “Appuyé sur le plaisir de ma
propre tristesse” (Maurice Scève).
231
SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Teoria da Literatura. 3. ed. rev. Coimbra: Almedina, 1979. p. 402.
134

24. A metamorfose tipicamente maneirista da Amada em Aurora, deusa da 1 a geração


divina e irmã de Hélio, recupera um mito um tanto quanto incompatível com o retrato
idealista da mulher camoniana nas canções:

Com seus dedos cor-de-rosa, (rhododáktylos) como lhe chama Homero, é ela que
abre todas as manhas as portas do céu para o carro do Sol [...] Eos [Aurora] foi
uma grande amante, mas sempre insatisfeita, por castigo de Afrodite. É que tendo
Aurora se enamorado de Ares, a deusa do amor não lhe perdoou a “ofensa” e fê-la
apaixonar-se seguidamente por várias personagens, que jamais lhe completaram o
apetite amoroso232.

25. A morte, símbolo maior da efemeridade da vida, é outro tema maneirista presente na
canção, que é assim uma canção de cisne233, feita n’ hora extrema (envio), enlace de Eros e
Tânatos:

Que se viver não posso,


um homem sou de carne e osso,
esta vida, que perco, Amor ma deu,
que não sou meu: se mouro, o dano é vosso. (III, iv, 67-70)

[461] CANÇÃO V:

26. Esta canção apresenta 93 versos distribuídos da seguinte forma: (6 x 15) + 3 (envio),
adotando o esquema rímico abc abc cdeeddeff — forma modificada do modelo que Bembo
utilizou em Se’l pensier che m’ingombra [Se o pensamento que me atrapalha].
27. Madrigal234 como outras canções, a canção V expressa a dor de amar uma senhora
altiva de “peito duro”: “[...] tormento / cruel, áspero e grave / diante de vós só, minha
Senhora” (V, i, 4-6).
28. É de destacar o processo metafórico associado à metamorfose, tal como ocorre em
V, i, 10-15):

E eu que sempre ando


pássaro235 solitário, humilde, escuro,
tornado um cisne puro,
brando e sonoro pelo ar voando,
com canto manifesto
pintara meu tormento e vosso gesto.

29. O poeta-cisne traça o retrato da mulher amada, valendo-se do topos dos olhos e da
metáfora de cunho maneirista (Cf. IV, ii, 1 9; VI, ii, 24):

Pintara os olhos belos

232
BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário Mítico-Etimológico da Mitologia Grega. Petrópolis: Vozes, 1991.
v. 1, p. 388.
233
Idem, ibidem, v. 1, p. 210: “Cicnos [Cisne] é um herói da Ligúria, na península itálica. Amigo de Faetonte,
fulminado por Zeus, chorou-lhe tanto a morte trágica, que foi metamorfoseado cm cisne. Apolo concedeu-lhe
uma voz melodiosa, o que explica o canto do cisne ao morrer”. Cf. também: V, i, 12.
234
CAMÕES LÍRICO; ed. org. e anotada por Agostinho de Campos. Lisboa: Bertrand, s. d. v. 5, p. 225:
“Madrigal feito a uma esquiva formosura, entretecido de queixumes, implorações e alguma de abrandar a
aspereza da beldade.”
235
Cf. Salmos, CI, 8: “Vigiei, e estou feito como pássaro solitário no telhado.”
135

.................................
e os dourados cabelos
[462] em tranças d’ouro finas
... enfim, é um tesouro:
os dentes, perlas; as palavras, ouro. (V, ii, 16-30)

30. Apesar de a beleza natural atormentá-lo (“trouxera [eu] trasladada / em meu


tormento vossa gentileza.” — V, iii, 36-37), as palavras estão aquém da beleza de que, por
mimese, elas deveriam dar conta, o que revela que a canção camoniana não é só,
petrarquianamente, o elogio da mulher como fontana di beltate, mas uma tematização dos
poderes da linguagem poética:

Más quem terá, Senhora,


palavra com que iguale
com vossa fermosura minha pena; (V, vi, 76-78)

31. O remate da canção, um terceto cujo esquema rímico é abb, retoma esses aspectos,
reafimando a desarmonia entre o canto e o objeto a ser cantado:

Canção, não digas mais; e se teus versos


à pena vêm pequenos,
não queiram de ti mais, que dirás menos. (V, vii, 91-93)

CANÇÃO VI:

32. Regida pelo esquema rítmico abc abc cdeedff e estruturada em 107 versos — (9 X
13) + 3 (envio) —, a canção VI segue o modelo de Garcilaso em Con un manso ruido. Como
a canção IV, que abre com a descrição do rio Mondego, a canção VI descreve uma ilha nas
partes do Oriente, possessão portuguesa e, em seguida, dirige-se à amada e desabafa as suas
queixas e saudades.
33. [463] Diferenciando-se das canções mais madrigalescas, nesta canção o eu lírico
sente-se invadido pela dor e pelo desengano236. Esse último tema destaca-se a partir de VI, iii,
27: “Mas este fingimento, / por minha dura sorte, / com falsas esperanças me convida”. A
canção assinala o contraste maneirista entre a esperança e o desespero. Veja-se como exemplo
o contraste ter x perder que acentua o desengano:

Quem tem que perder possa


se pode recear.
Mas triste quem não pode já perder! (VI, v, 53-55)

34. A pena que o eu lírico curte no exílio é injusta, mas é aceita pelo consumado amante
petrarquizante, porque nela se compraz a amada:

236
CIDADE, Hernâni. Luís de Camões — O Lírico. 3. ed. Lisboa: Presença, 1992. p. 44: “Ferido, de começo,
esta una melancólica, toda a poesia lhe mantém e aviva a ressonância, apesar do jogo de paradoxos sobre a
esperança e o desespero, através dos quais define o seu estado de alma. É-lhe vedado desesperar [...]”
136

[...] se tão longo e mísero desterro


vos dá contentamento,
nunca se acabe nele meu tormento. (VI, vii, 89-91)

35. O terceto em abb que serve de remate à canção pode ser interpretado como niilista;
a canção voz da solidão e do desterro — não celebra, à maneira renascentista, o amor, mas
entoa o desengano, a dor e a desesperança:

Canção, neste desterro viverás,


Voz nua e descoberta,
até que o tempo em Eco237 te converta.(VI, ix, 105-107)

[464] CANÇÃO VII238:

36. Ao comentar a canção Manda-me Amor que cante docemente, Saraiva & Lopes
afirmam:

[...] é nas três versões, mais complementares do que jerarquizáveis segundo uma
ordem de aperfeiçoamento, de Manda-me Amor que cante docemente (ou Manda-
me Amor que cante e a alma sente) — é aí que o poeta melhor apura a intensidade
e os resultados da sua reflexão sobre o amor. Camões não elimina os lugares-
comuns, motivos e figuras retóricas da tradição petrarquista e neoplatônica...239

37. A canção VII distingue-se entre as demais por apontar, não a diferença entre os
limites do ato de cantar (poesia) e o ilimitado da beleza feminina. mas entre cantar e entender:

[...] se é mais que canto que o qu’entendo,


invoco o lindo aspeito,
que pode mais Amor em defeito. (VII, i, 13-15)

38. Na estrofe ii recorre-se a um enlace240 (no sentido hatzfeldiano) mitológico como


preparação para o retrato da amada:

... o Amor soltava


os fios d’ouro, as tranças encrespadas,
ao doce vento esquivas,
[465] dos olhos rutilando chamas vivas,
e as rosas antre a neve semeadas,
co riso galante (VII, ii, 24-29)

237
CAMÕES LÍRICO; ed. org. e anotada por Agostinho de Campos. Lisboa: Bertrand, s. d. v. 5, p. 76: “A ninfa
Eco, desprezada por Narciso, morreu de dor, e as suas queixas amorosas continuaram a ouvir-se por montes e
vales.”
238
Esquema estrófico: (6 x 15) + 7 (envio) = 97 versos. Esquema rímico inspirado em Bembo, Gli Asolani, p.
546 ss): abc abc cddeffegg.
239
SARAIVA, António José, LOPES, Óscar. História da Literatura Portuguesa. Porto: Porto, 1989. p. 332.
240
Touro ® Febo ® Progne ® Aquelôo ® Amor.
137

39. A potência do Amor —

As fontes cristalinas não corriam,


inflamadas na linda vista pura;
floresce a verdura
que, andando, cos divinos pés tocava;
os ramos se abaixavam,
tendo enveja das ervas que pisavam (VII, iii, 37-42)

—, revelada nas formas da mulher quase divinizada, impõe-se ao eu lírico, operando a vitória
do apetite, isto é, da atração inconsciente, sobre a razão (VII, v, 72-75).
40. O envio da canção retoma essa polarização maneirista apetite/razão, afirmando a
inescrutabilidade do divino241 pelo humano:

os sentimentos humanos [...]


não podem dos divinos ser juízes. (VII, vii, 94-95)

CANÇÃO IX242:

41. Em meio a uma natureza inóspita, — “[...] nesta remota, áspera e dura / parte do
mundo” — , o sujeito poético é tomado pela memória [466] de uma passada e breve glória, o
que leva a sentir paroxisticamente a dor243, qual novo Jó:

Aqui, a alma cativa,


chagada toda, estava em carne viva,
de dores rodeada e descoberta aos tiros
da soberba Fortuna,
soberba, inexorável e importuna. (IX, iv, 56-60)

42. A estrofe v tematiza o choque entre a esperança e o Destino ironicamente folgazão,


noção impensável para o racionalismo renascentista, entre a impotência humana — bicho da
terra vil e tão pequeno244 — e a inexorabilidade do Fado245:

Não tinha parte donde se deitasse,


nem esperança algũa onde a cabeça

241
Cf. SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Maneirismo e Barroco na Poesia Lírica Portuguesa. Coimbra: Centro
de Estudos Românicos, 1971.p. 213: “Camões é, efectiva e profundamente, um lírico do desengano e do
transcendente.”
242
Esquema estrófico: (8 x 15) + 3 (envio) = 123 versos. Esquema rímico: abc bac cdeffedgg (3 + 3 + 9 = 15
versos). Sobre esta canção, v. CIDADE, Hernâni. Luís de Camões — O Lírico. 3. ed. Lisboa: Presença, 1992. p.
175.
243
SILVA, op. cit., p. 255: “Dramaticamente conscientes da natureza miserável do homem e das dolorosas
condições da vida, os maneiristas desconhecem a alegria e o riso como atitudes existenciais. Inquietos e
inseguros, apresentam-se como seres melancólicos e cansados da vida, ou, de modo mais sombrio, como seres
martirizados pelo sofrimento e roídos pela angústia.”
244
Cf. Salmos, XXI, 7: “Mas eu sou bichinho, e não homem; o opróbrio dos homens, e a objeção da plebe.”
245
Ocupamo-nos aqui das canções, porém a idéia de acaso a reger o mundo está presente em outras formas da
lírica. Cf., por exemplo, o soneto 166 (Verdade, Amor, Razão, Merecimento), vv. 3-4: “Fortuna, Caso, Tempo e
Sorte, / têm do confuso mundo o regimento.”
138

um pouso reclinasse, por descanso.


Tudo dor lhe era e causa que padeça (IX, v, 61-64)

43. A imagem da Senhora — doce fingimento —, apesar de ilusória, sustenta-o em meio


a tantas privações do desterro, como a indicar [467] que o homem, na visão maneirista, vive
sob o império do engano e da sombra platônica:

Só com vossas lembranças


me acho seguro e forte
contra o rosto feroz da Morte (IX, vi, 99-101)

44. O remate da canção (um terceto em abb), num exercício de ludismo semântico,
brinca com a ambigüidade da palavra morrer.
45. Para concluir, leia-se a interpretação de Massaud Moisés desta canção como
renascentista:

[...] na Canção n.o IX o poeta plasma, em solidão, desesperação e angústia


sentimental, o drama do próprio Homem perante o destino e o anseio da
comunicar-se e permanecer para além da “fera morte”. Que se trata dum poema de
feição clássica, parece não haver a menor dúvida: basta ter corrido os olhos pelo
comentário aos sonetos para percebê-lo. Na sua falta, notem-se, como claros
índices, o racionalismo estóico e o universalismo alegórico assumido pela
palavras em maiúsculas, como Destino, Fado, Fortuna, Trabalho, Morte, Estrelas,
Céu.246

[468] CANÇÃO X:

46. Distribuída por 249 versos247, a canção X é a que mais tem recebido a atenção da
crítica de orientação de cunho biográfico, que nesse poema encontra, contra o valor ficcional,
uma referencialidade absoluta. O texto camoniano, assim, será tanto melhor quanto mais
biográfico. Daí a importância do conhecimento minudente da vida de Camões e das amadas:
Infanta D. Maria, Isabel Tavares, etc. Um dos maiores camonistas deste século, Hernâni
Cidade, considerando a fusão do homem e do artista na mesma dramática emoção, afirma que
a canção X é “[...] uma das mais impressionantes confidências da grande e trabalhada alma do
Poeta mais do que nenhum desafortunado”.248
47. Na impossibilidade de comentá-la com mais vagar, apontemos em direção de uma
leitura menos colada à letra do texto camoniano e menos tributária de uma hermenêutica que
só visa ao sentido autoral. Em relação à temática maneirista, observa-se que na canção, desde
a 1a estrofe, se expressa uma dor incontível — mas quem pena, / forçado lhe é grifar, se a dor
é grande (X, ii, 22-23) — que se deve à ação de um Destino irracional e inelutável:

As sem razões digamos que, vivendo,


me faz o inexorável e contrário

246
Massaud MOISÉS, A Literatura Portuguesa através dos textos. São Paulo: Cultrix, 1993. p. 78.
247
Esquema estrófico: (12 x 20) + 9 = 249 versos. Esquema rímico: abc abc cdeedfghhgffii (3 + 3 + 14 = 20).
248
CIDADE, Hernâni. Luís de Camões — O Lírico. 3. ed. Lisboa: Presença, 1992. p. 139.
139

Destino, surdo a lágrimas e a rogo (X, i, 4-6)

48. Mesmo a lembrança249, como em outras canções, é dolorosa: “[...] a lembrança, / que
é outra dor por si, mais dura e firme.”(X, ii, 33-34). A [469] canção dá voz ao desespero e,
assim, aproxima-se do leitor que estiver vivendo experiência parecida. A canção exigiria,
segundo o sujeito poético, uma recepção vivida com igual angústia:

Chegai, desesperados, par ouvir-me,


e fujam os que vivem de esperança
ou aqueles que nela se imaginam (X, ii, 35-37)

49. As estrofes iii e iv são menos memórias poetizadas do homem Luís de Camões que
uma leitura maneirista de uma vida vivida sob a égide do Fado, do exílio, do desengano e da
dor:

Enfim, não houve transe de fortuna


nem perigos, nem casos duvidosos,
injustiças daqueles, que o confuso
regimento do mundo, antigo abuso,
faz sobre os outros homens poderosos,
que eu não passasse [...] (X, x, 192-197)

50. O Maneirismo250, afirmando a natureza ilusória — sombras fantásticas — da


existência humana (Este curso contino de tristeza), é uma denúncia contra o simulacro, o
fingido, o pintado. Mesmo o retrato da amada — gesto puro, doce e piadoso mover de olhos
— é realizado na consciência de que, entre o mundo e o homem, há um véu de enganos, um
mal velado.
51. O breve comentário de algumas canções permitiu a identificação de recursos
estilísticos do Maneirismo (enlace, entrelaçamento, mescla, [470] valorização transcendente e
encobrimento paradoxal, o concetto). A canção camoniana, lida à luz do Maneirismo, não é
só, petrarquianamente, o elogio da mulher como fontana di beltate [fonte de beleza] e a
celebração do amor, é também uma tematização dos poderes da linguagem poética.
52. A leitura demorada desses textos poderá identificar as características mais relevantes
do Maneirismo, tais como: a enumeração de formas extremas, as alusões clássicas de caráter
sério (Tântalo, Ixião, Sísifo, etc.), a alusão e designação críptica, as antinomias do amor e da
morte, o sentimento trágico da vida, o antinaturalismo, o intelectualismo, o gosto pelo difícil e
pelo paradoxal. A canção é conflito (corpo x alma, razão x natureza), desengano, voz da
solidão e do desterro.

[471] Referências Bibliográficas

Bíblia Sagrada. Tradução por P.e Antônio Pereira de Figueiredo. Erechim: EDELBRA, s. d.
1102 p.
CAMÕES, Luís de. Rimas. Texto estabelecido e prefaciado por Álvaro J. da Costa Pimpão.
Coimbra: Almedina, 1994. 429 p.
BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário Mítico-Etimológico da Mitologia Grega.
Petrópolis: Vozes, 1991. 2 v.
249
Cf. “[...] a saudade do passado / tormento, puro, doce e magoado” (X, ii, 137-138).
250
SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Maneirismo e Barroco na Poesia Lírica Portuguesa. Coimbra: Centro de
Estudos Românicos, 1971. p. 293-294: “O homem vive inevitavelmente enleado no engano, embaído por
apetites, desejos e falsas esperanças, mas chega um momento em que desperta do sonho e em que reconhece o
seu erro [...]”.
140

CAMÕES LÍRICO; ed. org. e anotada por Agostinho de Campos. Lisboa: Bertrand, [19--]. v.
5, 256 p.
CAMÕES, Luís de. Obras Completas. Prefácio e notas do Prof. Hemâni Cidade. Lisboa: Sá
da Costa, 1946-1947. 5 v.
CAMPOS, Agostinho de. Canções. In: Camões Lírico. Lisboa: Bertrand, s.d. 315 p.
CIDADE, Hernâni. Luís de Camões — O Lírico. 3. ed. Lisboa: Presença, 1992. 308 p.
HATZFELD, Helmut. Estilo manuelino [maneirista] nos Sonetos de Camões. In: —. Estudos
sobre o Barroco. Trad. Célia Berretini. São Paulo: Perspectiva/Ed. da Universidade de São
Paulo, 1988. p. 156-71.
[472] HAUSER, Arnold. Maneirismo: a crise da Renascença e o surgimento da arte
moderna. Trad. J. Guinsburg e Magda França. São Paulo: Perspectiva/Ed. da Universidade de
São Paulo, 1976. 463 p.
MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. 5. ed. São Paulo: Cultrix, 1988. 520 p.
SARAIVA, António José, LOPES, Óscar. História da Literatura Portuguesa. Porto: Porto,
1989. 1263 p.
SENA, Jorge de. Uma Canção de Camões. Lisboa: Portugália, 1966. 235 p.
SENA, Jorge de. Camões e os maneiristas. O Comércio do Porto, 12-12-61 e 27-12-61.
SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Maneirismo e Barroco na Poesia Lírica Portuguesa.
Coimbra: Centro de Estudos Românicos, 1971. 594 p.
SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Teoria da Literatura. 3. ed. rev. Coimbra: Almedina,
1979. 711 p.
SILVEIRA, Francisco Maciel, MONGELLI, Lênia, CUNHA, Maria Helena Ribeiro da. A
Literatura Portuguesa em Perspectiva. São Paulo: Atlas, 1993. v. 2, 283 p.

Texto BERARDINELLI, Cleonice. Estudos Camonianos. Brasília: MEC, 1973. p. 33-40.


13

1. [33] Seguindo a tradição épica, Camões utiliza n’Os Lusíadas mais de um narrador.
Um narrador global (que chamaremos Narrador1) introduz os narradores secundários,
narradores-personagens (Narrador 2, 3, etc.), os quais assumem temporariamente a narração. O
narrador secundário mais importante é Vasco da Gama, a quem é dado narrar três cantos
quase inteiros: da segunda metade da terceira estrofe do canto III, à estrofe 90 do canto V. E,
note-se, sem nenhuma interrupção. Outros narradores são: Paulo da Gama, a Ninfa da Ilha dos
Amores, Tétis, etc.
2. Qual a intenção do Poeta ao variar o emissor da narrativa? Parece-nos podermos
responder que mais de um motivo o teria levado a tal. No caso específico de Vasco da Gama,
obedeceu ao que a epopéia antiga lhe ensinava, iniciando o poema “in medias res” 251 e em
seguida retornando ao passado, através da palavra do herói, fosse ele Ulisses, Enéias ou Vasco
da Gama. No caso de Tétis e da Ninfa, pôde, sem inverossimilhança interna, prever o futuro
(que o era, em relação à viagem, mas passado em relação ao poema); na apresentação das
bandeiras por Paulo da Gama, insistiu sobre o que, em grande parte, tinha sido dito por Vasco,
sem que um deles se repetisse.
3. Em nenhum momento, porém, a mudança do foco narrativo acarreta uma nova visão.

251
HORACE, “Art poétique” [Arte poética]. In: Oeuvres d’ [Obras de]; texte latin [texto latino]. 13 e. éd. Paris,
Hachette, s.d., p. 599, v. 148. [“semper ad eventum festinat et in medias res / non secus ac notas auditorem
rapit...” = “sempre se apressa para o desenlace e arrebata o ouvinte para o meio da ação”.
141

4. Não há como considerar no poema várias visões (V 1, V2, V3, etc.), cuja soma daria
uma visão estereoscópica252 da narrativa, que poderíamos representar por

V1+ V2 + V3 + . .. + Vn = V

mas a mesma visão, só aparentemente mudada (V 1 = V2 = V3 = V4 = V5) por ter mudado o


narrador. A soma se transformaria num produto do único elemento real V 1 pelo número de
vezes em que [34] aparece, como ele mesmo ou disfarçado em outros (V2, V3, V4. etc.):

V1 + V2 + V3 + ... + V n = n V1

e na multiplicidade de narradores haveria apenas intensificação da única visão da narrativa —


a do Narrador 1.
5. Embora dotados da mesma visão, os narradores se distinguem entre si por vários
aspectos, inclusive pela matéria que lhes cabe narrar. Vejamos, por exemplo, como e por
quem são apresentados os personagens mitológicos, que Camões, com muita propriedade, só
faz intervir na ação quando as naus se encontram no Oceano Índico, e isso porque a costa
ocidental da África já tinha sido percorrida até ao Cabo das Tormentas, onde chegara
Bartolomeu Dias. Até aí havia roteiros, o oceano se tornara possível” 253; aí começava, para os
homens do fim do século XV, quase XVI, o desconhecido. Do outro lado do cabo, havia que
contar com mais que a força humana. É então que acima dos homens, no Olimpo, os deuses
sentem que devem intervir: é o momento de Baco armar ciladas que serão destruídas por
Vênus, uma a uma.
6. Toda a primeira parte da viagem, até à passagem do cabo, e mais um pouco, até
Moçambique, é narrada por Vasco da Gama ao rei de Melinde.
7. Durante o percurso ao longo do Oceano Atlântico, nenhuma intervenção humana
obstará a passagem aos portugueses; já na costa oriental suportam a dura provação do
escorbuto e logo a seguir começarão os ataques dos nativos. Às falsidades dos habitantes de
Moçambique e de Mombaça Vasco da Gama apenas alude, lembrando que o Melindano já
tinha notícias delas. De fato, nos cantos I e II, tinha-as contado o Narrador1, que retomará a
palavra, no início do canto VI, para levar os navegantes à Índia e de lá trazê-los de volta,
premiando-os na Ilha dos Amores.
8. Ora, se a intervenção dos deuses só vai surgir quando estiverem as naus no Oceano
Índico, só o Narrador1 falará deles. Assim é, e assim deve ser, para que se preserve a
verossimilhança do texto: em nenhum momento, durante a viagem, os homens se dão conta de
que estejam sendo perseguidos por Baco ou ajudados por Vênus. Vasco da Gama, diante de
cada perigo que o assalta, vê apenas os elementos da natureza ou os nativos que lhe são
adversos; implora a Providência Divina e a ela agradece, logo que o perigo [35] é removido.
O Narrador2, onisciente, é o único que sabe — e informa o leitor — do que está por trás das
aparências.
9. Uma vez, porém, Vasco da Gama se viu diante de um personagem mitológico, falou-
lhe e ouviu-lhe a voz. Como explicar a aparente incoerência do geralmente chamado Episódio
do Adamastor?
10. Comecemos por dizer que não nos parece que se trate de um episódio, pois que tal
palavra (do grego epeisodion, “o que vem de fora”) designa uma ação incidente, ligada à ação
principal, algo que não se poderia incluir nas funções cardinais, consecutivas e conseqüentes,
de que fala Barthes254, e que abrem sempre uma alternativa, possibilitando a opção por um de
252
TODOROV, Tzvetan. “Les catégories du récit littéraire” [As categorias da narrativa literária]. In:
Communications (8), Paris, Seuil, 1966, p. 142.
253
PESSOA, Fernando. Mensagem. 4. ed., Lisboa: Ática, 1950, p. 54.
254
BARTHES, Roland. “lntroduction à l’analyse structurale des récits” [Introdução à análise estrutural da
narrativa]. In:Communications (8). Paris, Seuil, 1966, p. 10.
142

dois caminhos. No caso, o gigante poderia ou não ter deixado passar a armada; se sobre ela —
e não sobre armadas futuras — se abatesse a sua fúria, ainda dessa vez a Índia não teria sido
alcançada. Por isso, julgamos que não se trata de um episódio, mas de um conjunto de
funções, uma das micro-seqüências da narrativa.
11. A esquadra de Vasco da Gama era mais uma que tentava os mares, alguns “nunca
dantes navegados”, outros “nunca de outrem navegados”, porque por lá “passara a lusitana
gente”. Quando os primeiros navegadores, partindo de Sagres, se aventuraram nos caminhos
do mar, os medos começavam muito perto, pois muito perto era o desconhecido. Pouco a
pouco, foram vendo que seus medos “tinham corais e praias e arvoredos” 255 e foram-nos
empurrando para o sul, até que todos se concentraram naquele cabo do fim, onde se escorriam
“os medos do mar sem fundo”256. Para ali se transferira o desconhecido.
12. Vasco da Gama seria o primeiro a transpô-lo. De mistura com o desejo de glória,
com a ambição, legítima ou não, de lucro e mando, ela traria o temor da grande aventura: o
seu e o que lhe legara um longo passado trágico-marítimo. É ele mesmo que diz que a
aparição lhes “pôs nos corações um grande medo” (V, 38, v. 2) e mais: que se arrepiaram “as
carnes e o cabelo / A mi e a todos só de ouvi-lo e vê-lo” (V, 40, vv. 7-8). Ao aproximar-se do
cabo,

... ũa noite, estando descuidados


Na cortadora proa vigiando,
Ũa nuvem que os ares escurece,
Sobre nossas cabeças aparece.

[36] Tão temerosa vinha e carregada,


Que pôs nos corações um grande medo:
Bramindo o negro mar de longe brada
Como se desse em vão nalgum rochedo
(V, 37, vv. 5-8 — 38, vv. 1-4)

13. Estando descuidados, “diz Vasco da Gama, surge-lhes diante — visível e audível —
alguma coisa maior que tormenta, com terríveis feições humanas e voz “que pareceu sair do
mar profundo” (V, 40, v. 6). E que diz essa voz? Faz ameaças de “Naufrágios, perdições de
toda sorte, / Que o menor mal de todos seja a morte” (V, 44, vv. 7-8), isto é, as ameaças que o
“grande medo” preveria, as que estariam à espreita no “nunca visto promontório” (V, 50, v.
6).
14. Profetizadas as desgraças que os portugueses iriam atrair por sua ousadia, “mais ia
por diante o monstro horrendo” (V, 49, v. 1), quando o capitão o interrompe.
15. Mas voltemos atrás, para melhor apreender a estrutura desta importante passagem
d’Os Lusíadas, que se compõe de vinte e quatro estrofes (canto V, 37-60), assim distribuídas:

Estrofes 37-38: introdução (2)


Estrofes 39-48: Adamastor 1 (10)
Estrofe 49: transição (1)
Estrofes 50-59: Adamastor 2 (10)
Estrofe 60: epílogo (1)

16. Como se vê, há uma distribuição muito equilibrada das partes: das vinte e quatro
estrofes, quatro se destinam à introdução, transição e epílogo; as vinte restantes, divididas ao
meio, apresentam o herói da seqüência. Tanto Vasco da Gama como o Adamastor aparecem

255
PESSOA, op. cit., p. 52. .
256
Id., ibid., p. 57.
143

como narradores e como personagens. Pelo mesmo sistema de encaixe 257 que inseriu a
narrativa de Vasco da Gama (Narrador 2) na grande narrativa do Narrador1, a do Adamastor
(Narrador 1) se insere naquela. Um simples gráfico no-lo mostrará:

I II III IV V
N1

N2

N3

17. [37] O Narrador2, depois de uma indicação perifrástica do tempo, começa a


descrever a espantosa figura que se agiganta à frente das naus. (V, 39-40, vv. 1-4): surgida da
noite e da nuvem tempestuosa, ao som do mar, é disforme em sua grandeza e fealdade. Passa-
lhe Vasco da Gama a palavra e ouve-lhe profecias e maldições. Da ameaça geral a todos que
ali vieram passa à ameaça nominal a Bartolomeu Dias, D. Francisco de Almeida e Sepúlveda;
abranda-se um pouco a cólera inicial ao prever o infortúnio deste último, “cavaleiro e
namorado”, que “consigo trará a fermosa dama / Que Amor por grão merco lhe terá dado” (V,
46, vv. 8.4). Os adjetivos com que qualifica Leonor de Sepúlveda pertencem à área semântica
da beleza, da suavidade: “fermosa dama”, “linda dama”, “delicados pés”, “cristalinos
membros e perclaros”, os que se aplicam ao cabo e seus habitantes ou ao que eles causam aos
dois amantes são da área da aspereza e da desgraça: “triste ventura e negro fado”, “terreno
meu, [...] duro e irado”, “Cafres ásperos e avaros”, “férvida e implacábil espessura”. Tal
adjetivação, reveladora da emotividade do narrador (e neste momento podemos considerar o
gigante como Narrador 3), prepara a passagem do primeiro ao segundo Adamastor; a
capacidade de enternecer-se com o triste fim de dois amantes lhe vem da própria capacidade
de amar, no seu caso, de amar sem ser amado. É a estória de seu amor infeliz que contará a
Vasco da Gama em resposta ao “Quem és tu?”, apresentando-se outro, tão outro que a sua
resposta surpreende a quantos o ouvem.
18. Com a previsão do naufrágio de Sepúlveda terminam, pois, as dez estrofes que
caracterizam a primeira face do Adamastor. Depois de nova interferência do Narrador 2 a
interpelá-lo, temos a nova fala, expressão de uma outra face — inesperada, como dissemos.
Transforma-se o gigante. E a sua primeira transformação claramente sensível (o seu
abrandamento diante dos Sepúlvedas era pouco mais que um índice) vem no nível do
significante,258 isto é, no tom da voz: o primeiro Adamastor falara “c’um tom de voz [...]
horrendo e grosso”, o segundo falará “com voz pesada e amara, / Como quem da pergunta lhe
pesara”. A voz da ameaça passou a voz do pesar, da amargura. É pesada bissemicamente —
porque reveladora de pesar e porque dificultosa. Através da nova voz, um novo tipo de
discurso surgirá: no primeiro, a função dominante da linguagem era a conativa, pois que o
locutor se dirigia a seu alocutário, tentando intimidá-lo, desviá-lo do seu caminho. O discurso
versava sobre o relacionamento entre os dois interlocutores: os feitos de um — “pois os
vedados términos quebrantas / E [38] na|vegar meus longos mares ousas” (V, 41, vv. 5-6),
“pois vens ver os segredos escondidos / Da natureza e do úmido elemento, / A nenhum grande
humano concedidos / De nobre ou de imortal merecimento” (V. 42, vv. 1-4) — e a reação de
cólera e a promessa de vingança do outro — “Ouve os danos de mi, que apercebidos / Es tão a
teu sobejo atrevimento” (V, 42, vv. 5-6) e “Sabe que quantas naus esta viagem / Que tu fazes,
fizerem, de atrevidas, / Inimiga terão esta paragem / Com ventos e tormentas desmedidas” (V,

257
TODOROV, Tzvetan. Op. cit., p. 140.
258
Usamos significante no sentido saussuriano do termo.
144

43, vv. 1-4). E nos damos conta de que o emissor da mensagem é, simultaneamente, sujeito da
ação a ser realizada, enquanto que o receptor é o destinatário da mesma.
19. Isso acontece por estarmos diante de um enunciado performativo (segundo
Austin)259, que se caracteriza por descrever uma ação do seu locutor e ao mesmo tempo ter
esta ação cumprida pela sua enunciação. É o caso das frases que começam por “eu prometo”
que, no texto que estamos estudando; está implícito. Neste tipo de discurso é muito
importante o ato ilocutório260 que se realiza, pois que altera a situação dos interlocutores: o
gigante assume um compromisso, acrescenta-se uma obrigação; Vasco da Gama (sintetizando
os navegantes portugueses) encontra-se diante da alternativa de obedecer ou não. Assim se
cria a necessidade de opção de que falávamos atrás, ao considerar o Adamastor como uma
seqüência da narrativa.
20. Pressentida a primeira transformação pelo Narrador 2 assume o Narrador3 a narrativa,
uma autobiografia em que principia por dizer o que é — um promontório — e o que foi — um
Titã, um dos filhos aspérrimos da terra. Como seus irmãos, revoltou-se contra Júpiter; mas,
diferente deles, seu ato de rebeldia foi buscar a armada de Netuno, pois que era “capitão do
mar”. Seu infortúnio foi amar demais a quem o não amava; desamado, ludibriado,
escarnecido, viu-se ainda castigado pelos deuses e metamorfoseado em “terra dura” e
“penedos”.
21. Retoma Vasco da Gama a palavra para pôr o fecho à seqüência, descrevendo a
última atitude do Adamastor:

Assi contava, e c’um medonho choro


Súbito de ante os olhos se apartou:
Desfez-se a nuvem negra e c’um sonoro
Bramido muito longe o mar soou.
(V, 60, vv. 1-4)

22. [39] Repassando os pontos essenciais do que ressaltamos, até aqui, lembremos as
circunstâncias em que se dá o aparecimento e o desaparecimento do gigante: surge de “ũa
nuvem que os ares escurece” (V, 37, v. 7) enquanto, na tensão da expectativa, só se ouve a
voz do mar (“Bramindo o negro mar de longe brada” — (V, 38, v. 3); quando fala o
Adamastor, sua voz “pareceu sair do mar profundo” (V, 40, v. 6) e quando desaparece,
desfaz-se a nuvem negra (V. 60, vv. 3-4) e outra vez, cessada a sua voz, só se ouve a voz do
mar (“c’um sonoro / Bramido muito longe o mar soou”) (V, 60, vv. 3-4). Além disso, quando
responde a Vasco da Gama, o gigante se identifica como “aquele oculto e grande cabo / A
quem chamais vós outros Tormentório” (V, 50, vv. 1-2), e logo adiante como o “nunca visto
promontório” (V, 50, v. 6). Sua caracterização, pois, está muito longe de ter a autonomia e a
nitidez da das outras divindades mitológicas: parece ter sido gerado na escuridão da noite
tempestuosa e também — passe a ousadia — na obscuridade do inconsciente individual de
Vasco da Gama (e do Narrador 1?) onde se projetava o inconsciente coletivo do povo
português.261 Como dissemos atrás, no Cabo se refugiavam os medos perseguidos pelas naus,
mas conservados no fundo de cada um dos que partiam ou ficavam. E esses medos
assumiram, dentro da tempestade, forma sobre-humana grande bastante para se opor à
259
DUCROT, Oswald et TODOROV, Tzvetan, Dictionnaire encyclopédique des sciences du langages
[Dicionário enciclopédico de ciências da linguagem], Paris, Seuil, 1972, pp. 427-429.
260
Id., ibid., p. 428.
261
Cf. FRÉTIGNY, Roger et VIREL, André. “L’apport des techniques d’imagerie mentale à l’étude de
l’imaginaire” [Contribuição das técnicas de imagética mental ao estudo do imaginário]. In: CIRCÉ (1); études et
recherches sur l’Imaginaire réunies par Jean Burgos [estudos e pesquisas sobre o imaginário runidos por Jean
Burgos]. Paris, Lettres Modernes, 1969, p. 141: “[L’Imaginaire] rétablit la perméabilité entre l’individu et le
collectif et ce n’est pas là sa moindre fonction — car I’Imaginaire est, avant tout, collectif” [O imaginário
restabelece a permeabilidade entre o indivíduo e o coletivo e essa não é a sua menor função]. Cf. também p. 142
e 144.
145

passagem dos navegantes. Só um semideus, um Titã capaz de lutar contra o “que vibra os
raios do Vulcano” (V, 51, v. 4) poderia enfrentar a gente “ousada mais que quantas / No
mundo cometeram grandes cousas” (V, 41, vv. 1-2). Essa face temerosa, a única que se
conhecia até então, voltada para o Ocidente, era a projeção da imagem ancestral dos perigos.
Como a Esfinge, ali estava o colosso a propor aos que tentavam passagem o enigma e a
alternativa por ele criada: “Decifra-me ou te devoro”. O enigma era a sua força; decifrada, a
Esfinge perdeu-a e matou-se. Assim também o Adamastor, desvendado, revelou a outra face,
a face da fraqueza, até aí irrevelada. Não se mata, na verdade, mas perde a sua unidade
aparente, passa a ser a imagem do povo que o decifra e que nela se projeta para nela se
reconhecer.262 É o momento da criação do mito: “en bref projection inconsciente de
l’explication des choses, [40] par une societé donnée. [...] créer un mythe nouveau, c’est
projeter par refraction l’image d’une société nouvelle apte à se conformer au mythe
nouveau”.263
23. O novo Adamastor foi capitão do mar, buscou a armada de Netuno, mas deixou-se
perder por amor. Enganado, sofre, mas já agora prefere o engano à desilusão total:

O Ninfa, a mais fermosa do Oceano.


Já que minha presença não te agrada,
Que te custava ter-me neste engano
Ou fosse monte, nuvem, sonho ou nada?
(V, 57, vv. 1-4)

24. Não difere muito deste apelo patético o do fado popular:

Não digas não, dize sim


Inda que amor não sintas:
Não digas não, dize sim,
Dize sim inda que mintas.

ou o desejo expresso pelo próprio Camões, sabedor de que os amores são falsos:

oxalá que enganadores!”264

25. Será demais insistir nas semelhanças entre o gigante e o povo que o afronta? Ambos
são capitães do mar, ambos defendem com bravura o próprio solo, ambos sabem fazer a crua
guerra, mas também são ambos sensíveis à beleza feminina, capazes de amar com extremos e
contentar-se com enganos de amor.
26. Parece-nos que assim se resolve a incoerência a que nos referimos atrás, da presença
de um ser mitológico no discurso de Vasco da Gama, a qual seria agravada pelas últimas
palavras deste ao rei de Melinde, confrontando a verdade que conta “nua e pura” (V, 89, v. 7)
com os fingidos semideuses, Circes e Polifemos (V, 88, vv. 2.3). O Adamastor é mais que um
ser mitológico, pré-existente ao poema: é o mito, que se manifesta através da criação artística,
ao nível da enunciação265.

262
Cf. PALMIER, Jean-Michel. Lacan; le Symbolique et l’Imaginaire [Lacan; o Simbólico e o Imaginário]. 2.
éd., Paris, Editions Universitaires, 1970, p. 20 ss.
263
DUROZOI, Gérard et LECHERBONNIER. Le Surréalisme [O Surrealismo]. Paris, Larousse, 1972, p. 147.
Tradução: “em síntese projeção inconsciente da explicação das coisas por uma sociedade dada. [...] criar um
mito novo é projetar por refração a imagem de uma sociedade nova apta a se conformar ao mito novo”.
264
CAMÕES, Luís de. Obras escolhidas, com prefácio e notas do Prof. Hernâni Cidade. V. I: Redondilhas e
sonetos. 2. ed., Lisboa, Sá da Costa, 1954, p. 10.
265
Cf. nota 11.
146

Texto COELHO, Jacinto do Prado. A «Ilha dos Amores»: conjunções e dissonâncias. In:
14 Camões e Pessoa, poetas da utopia. Lisboa: Europa-América, 1983. p. 59-68. 266

[59] A «ILHA DOS AMORES»: CONJUNÇÕES E DISSONÂNCIAS

1. «Ilha do Amor» — e não «Ilha dos Amores» — seria porventura a designação exacta
para o célebre episódio d’Os Lusíadas, porque o tema central é aqui o Amor considerado em
suas várias espécies e funções, embora a ele se aglutinem os temas do Conhecimento e do
Heroísmo bélico, e conquanto, por um processo característico do modo de organização do
poema, nessa longa sequência compósita haja relações de oposição, expressas ou implícitas;
entre os elementos combinados ou justapostos, nomeadamente entre amor certo e amor errado
e entre amor e guerra. Aquilo a que chamamos a «Ilha dos Amores», como observou Aguiar e
Silva num dos melhores estudos que lhe foram consagrados (Função e Significado do
Episódio da «Ilha dos Amores» na Estrutura de «Os Lusíadas», Lisboa, 1972) é um bloco
«constituído, na sua totalidade, por duzentas e vinte estâncias, representando assim, quase
rigorosamente, vinte por cento de todo o poema.» Pode-se cortar o episódio no final do Canto
IX, como se fez na edição de A Ilha dos Amores267, enriquecida com um estudo de David
Mourão-Ferreira; mas ficam assim omitidos segmentos extremamente significativos, em
particular o do banquete para celebrar as bodas de nautas e ninfas e o da partida para a «pátria
amada», em que eles

Levam a companhia desejada


Das Ninfas, que hão-de ter eternamente,
Por mais tempo que o Sol o mundo aquente (X, 143);

e, além disso, suprimidas a revelação da máquina do mundo e a das futuras façanhas dos
Portugueses no Oriente — uma e outra partes integrantes do prémio concedido aos heróis na
«Insula divina».
2. [60] A palavra amor surge no episódio 24 vezes, oito no plural e 16 no singular. No
plural designa um número indefinido de casos ou experiências de amor; por exemplo: os
cupidos

«[...] cantando estão de amores,


Vários casos em verso modulando» (IX, 30);

«Destes tiros assi desordenados,


Que estes moços mal destros vão tirando,
Nascem amores mil desconcertados» (IX, 34);

3. Lionardo

«[...] tinha já por firme pressuposto


Ser com amores mal afortunado» (IX, 75).

Vem também o plural numa explicação parentética pseudo-etimológica:

266
Uma versão resumida deste trabalho foi apresentada em “The Second Louisiana Conference on Hispanic
Languages and Literatures”, Tulane University, New Orleans, 26 a 28 de fev. de 1981.
267
Ática, 1980.
147

«As amoras, que o nome têm de amores» (IX, 58).

4. Há um passo em que se refere ao desejo (ou desejos) eróticos:

«Cores [...]
Que não eram das rosas ou das flores
Mas da lã fina e seda diferente
Que mais incita a força dos amores» (IX, 68).

5. Se Vénus é chamada «a Deusa dos Amores» (a rimar com outro plural, servidores),
talvez o facto tenha esta explicação: a causa dos amores apenas sensuais, como notou Faria e
Sousa, a propósito do verso «É mais culpa a da mãe que a do menino», «no es el Amor puro
[Cupido] sino la lascivia representada en Venus su madre.» Uma só vez o plural designa ainda
os prazeres sensuais, sem excluir os da sensibilidade, no longo encontro de Tétis com o
Gama:

«Ela nos paços logra seus amores» (IX, 87).


(dans son palais, la déesse goûte les plaisirs de l’amour», traduz Roger Bismut).

6. Finalmente amores denomina os cupidos emblemáticos:

«E Vénus, que os amores traz consigo» (X, 89).

7. Amor, no singular, e várias vezes com maiúscula, significa antes o princípio, a


essência do amor tanto carnal como afectivo: as ninfas que esperam os heróis na ilha
imaginária estão «feridas», «encendidas» de amor, «do doce amor vencidas». E os heróis
deverão corresponder com «ardente amor» «à flama feminina» (IX, 49). Embora sensual,
nessa ilha o amor é inocente, sincero, autêntico: Lionardo, perante a ninfa que lhe cabe em
sorte, «todo se desfaz em puro amor» (IX, 82). Só no mundo real, terreno, se vêem «exemplos
mil» «de amor nefando» de «amor indino» (IX, 34 e 35). Num dos segmentos do episódio
toma-se amor num sentido mais amplo, de amor do próximo: é quando se censura a falta do
«amor divino» devido à pobreza (amor-caridade) e se condenam aqueles que, possessos de
filáucia, apenas se amam a si (IX, 27 e 28). A maiúscula pode indicar o Amor entificado,
como em «Que Amor te ferirá, gentil donzela» (IX, 81).
8. Estas observações sobre o vocabulário conduzem-nos a uma análise global do
episódio na interdependência das suas partes, nos seus vários planos narrativo-conceptuais e
em seus contrastes e dissonâncias. Tanto as acções narradas, sejam fictícias ou históricas,
como as palavras do narrador e das personagens servem para expor um pensamento sobre o
Amor e a Justiça. O projecto generoso de Vénus — colocar uma ilha móvel, povoada de
ninfas sedutoras e complacentes, na rota dos navegadores portugueses — tem uma finalidade
— compensar, premiar, logo fazer justiça — que se desdobra em dois níveis: Vénus quer dar
aos heróis, cansados de tantos trabalhos, «algum deleite» (IX, 19), «algum repouso enfim com
que pudesse/Refocilar a lassa humanidade/Dos navegantes seus» (IX, 20) — este é, digamos,
o nível realista —, mas esta primeira leitura vem a ser anulada pela explicação da ficção como
alegoria:

Que as Ninfas do Oceano tão fermosas,


Tétis e a ilha angélica pintada
Outra co usa não é que as deleitosas
Honras que a vida fazem sublimada (IX, 89).
148

9. Na segunda isotopia, o prémio da imortalidade torna-se estímulo para os heróis


vindouros, o que permite retomar a história dos feitos portugueses no Oriente em tom
glorificante. E ao nível realista, e em referência ao que David Mourão-Ferreira chama o
«micro-episódio», [62] que se fala com propriedade de uma «Ilha dos Amores», que não do
Amor; entretanto, como o citado ensaísta é o primeiro a advertir, «os ‘amores’ que lá
ocorrem, embora uma só vez na vida, constituem a indispensável antecâmara para o que de
mais importante lá vem depois a ocorrer.»
10. Entrando na execução do projecto, Vénus vai a Chipre a fim de solicitar ao filho
que, com o seu exército de «meninos voadores», influa nas ninfas «secretas afeições» (IX,
22), preparando assim a feliz união das ninfas e dos flautas. Surge então uma sequência que,
digressiva do ponto de vista diegético, desempenha uma função evidente na arquitectura
conceptual do «macro-episódio». Trata-se da expedição de Cupido «contra o mundo revelde»
(IX, 25), que ficará interrompida para se levar a cabo a preparação das ninfas para as núpcias
naturais com os portugueses, com a intervenção da Fama e a intervenção de Cupido. Note-se
que estas duas operações — a que visa o «mundo revelde» e a que visa os amores na «insula
divina» — se articulam por contiguidade no tempo e por oposição funcional: a primeira é
punitiva, a segunda gratificante; aquela apenas começada, e mal começada; esta bem
sucedida. Ambas mostram que o amor transcende a vontade dos homens, é inspirado, imposto
por forças que os subjugam (donde a indulgência que tantas vezes o poeta manifesta e
preconiza em relação a culpas de amor). Ressalta, porém, o contraste entre o amor
«desconcertado», «nefando», e o amor bem ordenado, puro ainda que sensual. A motivação
da expedição promovida pelo «filho mico» é um pretexto para Camões, num lance de poeta
cívico, empenhado, denunciar os males que corroem a sociedade sua contemporânea,
descrevendo um mundo sem amor ou que desvirtua o amor.
11. Ora não é por acaso que o poeta introduz neste passo do «macro-episódio» uma
invectiva Contra os «erros grandes» que lavram no mundo. Ela tem o seu papel na
interpretação da Ilha dos Amores como lugar de produção de sentidos. Aponta para uma
ideia-mestra: a do valor social, cívico, do amor. Qual é o espectáculo que indigna Cupido? A
primeira imagem revoltante, note-se, é a de Actéon, que, na versão camoniana, absorvido na
«alegria bruta, insana», da caça foge das pessoas e fica indiferente perante a beleza de um
corpo feminino. Sem rejeitar a leitura de Faria e Sousa, que viu na alusão a Actéon uma
censura a D.. Sebastião, Aguiar e Silva propõe outra leitura, mais concordante «com o tema
do desconcerto do mundo e com a concepção neoplatónica do amor subjacente à estância 25.
Actéon aparece à cabeça dos desconcertos do mundo porque ele é réu, efectivamente, do
primeiro e fundamental pecado contra o amor: a repulsa do próprio amor, corporizada na
repulsa da mulher.» (ob. cit., p. 11). Sem dúvida, é isto o que mais importa para a
compreensão do episódio na sua [63] totalidade. O que me permito acentuar é a íntima ligação
que, no pensamento de Camões, se verifica entre amores e Amor, entre a experiência erótica e
a plena realização do homem, inclusive na dimensão social. Após a oitava consagrada a
Actéon vem aquela que começa:

E vê do mundo todo os principais


Que nenhum no bem púbrico imagina,
Vê neles que não tem amor a mais
Que a si somente, e a quem Filducia ensina. (IX, 27)

12. O salto de uma estância para a outra torna-se transição fácil se nos lembrarmos de
um trecho do discurso de Fedro no Banquete de Platão:
13. «Se houvesse, pois, processo de constituir um Estado ou um exército só de amantes
e amados, que organização melhor poderia supor-se do que a destes homens, desviados de
149

toda a espécie de infâmia e rivalizando em mérito entre si?» 268 Mario Meunier comenta assim
este passo, evocando opinião semelhante de Aristófanes: «O laço que une a justiça ao amor é
pois apertado, e o poder dos condutores dos homens tem a raiz e a base no seu poder de
amar.»269 Por seu lado, na introdução à Ilha dos Amores, David Mourão-Ferreira aduz
reflexões de Montherland acerca da «respeitabilidade» e da «generosidade» da Volúpia:
«Généreuse Volupté: notre plaisir, c’est le plaisir de l’autre. O merveille! on se donne du
plaisir, et il semble qu’on ait commis une bonne action.» [“Generosa Volúpia: nosso prazerr, é
o prazer do outro. Ó maravilha! Nós nos damos prazer, e parece que praticamos uma boa
ação.” ] Refractário ao amor sensual, seco, desumano, doente de «filáucia», um D. Sebastião-
Actéon seria necessariamente um mau governante.
14. Vemos em confronto no episódio da Ilha do(s) Amor(es) um ataque ao «mundo vil,
malino» (IX, 42), mundo de egoísmo, simulação, cobiça, injustiça, «feia tirania» (IX, 27 e
28), e a descrição do seu reverso ideal, visão encorajante de um futuro utópico, o reino do
Amor onde, sem peias nem hipocrisia, o homem se realiza em plenitude. Eis o sonho de
Vénus, transmitido por ela ao «amado filho» e concretizado por obra e graça da imaginação
estética:

Quero que haja nó reino Neptunino,


Onde eu nasci, progénie forte e bela,
E tome exemplo o mundo vil, malino,
[64] Que contra tua potência se revela,
Porque entendam que muro adamantino
Nem triste hipocrisia vai contra ela;
Mal haverá na terra quem se guarde,
Se teu fogo imortal nas águas arde. (IX, 42)

15. Infere-se desta oitava fundamental a função político-pedagógica da ilha fantástica.


Por uma feliz aliança de Natureza e Cultura, «a fermosa, e a forte companhia», heróis e ninfas
ensinados pelo Amor e por ele humanizados, constituem já uma sociedade exemplar,
espontaneamente organizada270. Note-se que as ninfas «de amor feridas» pelas setas de
Cupido obedecem a um desejo (»flama feminina») que se desdobra em afeição: nelas influi
Vénus

[.........] secretas aflições


Pera com mais vontade trabalharem
De contentar a quem se afeiçoarem (IX, 22)

16. Formam-se pares harmoniosos, fazem-se promessas de eterna fidelidade, «palavras


formais» como num casamento sem padre:

As mãos alvas lhe davam como esposas,


Com palavras formais e estipulantes
Se prometem eterna companhia,
Em vida e morte, de honra e alegria (IX, 84)

17. Além disso, respeita-se uma hierarquia: Tétis e o Gama têm tratamento à parte; «Ó
Capitão ilustre, que o merece», é recebido pela maior das Ninfas «com pompa honesta e
268
Tradução de Maria Teresa Schiappa de Azevedo, ed. Verbo, Lisboa, 1973. p. 218. Mais adiante (p. 219) lê-se:
«na verdade, o amante tem em si qualquer coisa de mais divino, é a divindade que o inspira».
269
Edição francesa com versão de Mario Meunier, Albin Michel, Paris, 1949, p. 158.
270
Durante o debate que se seguiu a esta comunicação. Roger Bismut aproximaria a Ilha do Amor de outra
representação renascentista de uma sociedade utópica: a da abadia de Thélème em Rabelais.
150

régia» (IX, 85); esta, «tomando-o pela mão o leva e guia/Pera o cume: de um monte alto e
divino», onde se ergue um edifício de cristal e «ouro puro»; os diferentes locais destinados
aos «doces jogos» de amor correspondem a uma ordem pré-estabelecida:

Ela nos paços logra seus amores,


As outras pelas sombras entre as flores (IX, 87).

18. [65] Ainda no banquete das bodas, em que se trocam «mil práticas alegres», «risos
doces, sutis e argutos ditos» (X, 5), as precedências sociais são estritamente observadas:

Ali em cadeiras ricas, cristalinas,


Se assentam dous e dous, amante e dama,
Noutras, à cabeceira, de ouro finas,
Está co a bela Deusa o claro Gama (X, 3).

19. Um movimento ascensional, simbolicamente anunciado na própria paisagem da ilha


(«Mil árvores estão ao céo subindo», IX, 56), leva, sem rupturas, do amor carnal, ainda que
«puro», até ao cume do «monte espesso», árduo, escabroso, onde Vasco da Gama frui a
suprema alegria do conhecimento da «máquina do mundo»:

Vendo o Gama este globo, comovido


De espanto e de desejo ali ficou (X, 79).

No alto do monte,
um campo se esmaltava
De esmeraldas, rubis, tais que presume
A vista que divino chão pisava (X, 77).

20. Junte-se, a propósito, que o adjectivo divino ocorre onze vezes no «macro-
episódio», onde se fala de «ínsula divina», de «amor divino» que é devido à pobreza, de
«iguarias suaves e divinas», dos homens cujos feitos heróicos tornaram divinos, etc. Nos seus
vários sentidos e cambiantes, o termo conota uma atmosfera rarefeita, de maravilha e
sublimação, abrangendo tanto o naturalismo pagão como a ética cristã, o amor do próximo
sob a forma da «caridade».
21. Assim entendido, como apologia do Amor verdadeiro em seus vários níveis e
exemplo paradigmático para um mundo corrupto, o «macro-episódio» justifica-se por si
próprio, emergindo do mais íntimo da alma do poeta, profundamente decepcionado, magoado,
mas ainda movido pela aspiração a um mundo outro, mais humano, mais justo, que se
configura na «ínsula divina». Mundo outro com que sonha um Camões outro. [...] [66] O
enigma da Ilha dos Amores (melhor dizendo: da Ilha do Amor) reside aqui: no embate do
ideal com o real, nas sombras do conflito entre o espírito de cruzada, ao serviço dum
nacionalismo dogmático; prepotente, e o caloroso humanismo de um grande espírito do
Renascimento, aberto, generoso, lúcido, como foi Camões. Espírito de um clerc vocacionado
para intervir como pedagogo, porque a fantasia deleitosa vem acompanhada, no macro-
episódio, da invectiva e da exortação, que ligam a ucronia à historicidade. Sinal do aludido
conflito será enfim a crise depressiva que transparece das oitavas 8 e 9 do Canto X: terminada
a incomparável experiência, o poeta-narrador perde o gosto de escrever, sente-se envelhecido,
vislumbra perto «o rio do negro esquecimento», pede à Rainha das Musas a ajuda
indispensável para cumprir um encargo que se tornou penoso: o de pôr em verso altissonante
a continuação da História pátria, apesar (diria eu) da revelação decisiva que teve como cenário
e instrumento a «ínsula divina».
151

Texto CIDADE, Hernâni. A substância épica n’Os Lusíadas. In: Luís de Camões: o épico.
15 Lisboa: Presença, 1985, cap. 7, p. 115-134.

[115] A SUBSTÂNCIA ÉPICA N’OS LUSÍADAS

1. Como, depois deste capítulo, se consagrará outro à substância lírica do poema, é o


ensejo de encarar o problema da existência dos dois géneros poéticos — lírico e épico — e
ainda o problema, levantado pelo saudoso crítico inglês Aubrey Bell, que afirma serem Os
Lusíadas um grandioso hino lírico em louvor de Portugal.
2. Sem dúvida toda a poesia é essencialmente lírica, enquanto dá expressão a um estado
subjectivo, a um facto de consciência, que põe, mesmo na narrativa de acontecimento
exterior, o calor, a cor, o tom inconfundíveis da subjectividade do poeta. Se, no que se narra,
em vez de se exprimir o próprio eu, este se comprime para dar lugar quase exclusivo à
realidade objectiva, far-se-á crónica e escrever-se-á prosa, qualquer que seja o carácter dessa
realidade e qualquer que seja a técnica da expressão usada. Sem lirismo, isto é, sem a
presença do eu do poeta na obra realizada, não há poesia. Lirismo vem de lira, instrumento
que acompanhava o canto. E o poeta, mesmo quando conta acontecimento alheio à sua
interferência, canta e, cantando, empresta à narrativa, não apenas a vibração musical da sua
voz, senão também a comoção que engrandece, embeleza, transfigura, segundo a sua visão
subjectiva, a realidade tratada.
3. Mas atentemos na relação subjectividade — objectividade, para melhor compreender
a relação lirismo — epopeia.
4. É claro que toda a realidade exterior e alheia, de que se dá uma imagem em arte, se
subjectivou, para que tal imagem tenha sido possível. Assim o mostrou B. Croce, ao
fundamentar a sua negação dos géneros literários. Mas não é menos claro que a imagem
produzida, por muito que o eu do seu criador lhe empreste, não é independente da realidade
objectiva que a produziu e podem seu vigor e brilho resultar do esforço de a acomodar à
representação de uma grandeza a cujo ser ou surgir se foi alheio. O choque emotivo que tal
grandeza provocou no poeta pode ter sido a repercussão de uma larga vibração comum,
extensa no espaço e no tempo, à qual se contentasse de abrir a alma para receber o estímulo e
dar-lhe expressão adequada. O canto pode assim elevar-se ou o jacto lírico surgir, jorrando
imagens e símbolos, todos convergindo no sentido de exprimir a grandeza que produziu a
[116] emoção, mais do que a emoção por ela produzida. A intensidade desta pode ser a
mesma medida que patenteia a grandeza daquela.
5. Este caso é claramente diferente daquele em que a imagem exterioriza emoção que
surge quase espontânea, ou melhor, sem proporção com o excitante exterior. Todo um mundo
de delicadas imagens e expressões harmoniosas deixa a perder de vista o incidente
provocador, para nos mostrar apenas a riqueza interior, de cujo fluxo tal incidente não passou
de pretexto.
6. É lógico que a estas atitudes fundamentalmente diferentes hajam correspondido,
através do tempo, expressões literárias, que, em suas formas extremas, pelo menos, se não
podem confundir. Camões exemplifica-as a ambas. O poeta dos Sonetos e Canções, o criador
admirável do poema Sôbolos rios que vão..., sendo fundamentalmente o mesmo,
suficientemente se diferencia do autor das estrofes relativas à batalha de Aljubarrota ou
mesmo das profecias do Adamastor. Ao primeiro chamamos poeta lírico, ao segundo não se
lhe poderá recusar o qualificativo de épico.
7. Atentemos no que este criou de específico n’Os Lusíadas. Depois veremos qual foi a
colaboração do primeiro na realização do poema.
152

A) As Batalhas

8. Dizia Homero que os deuses provocavam as guerras para dar matéria ao canto dos
poetas. De quantas considerações a frase pode suscitar, fixemos a que vem ao talho do
assunto: a batalha, pela tensão de esforço em que anormaliza o homem, pela explosão das
energias necessárias a impor a vontade de triunfo e a ambição de glória a todos os
retraimentos do medo e da piedade, suscita, naturalmente, a exaltação das emoções fortes:
espanto, entusiasmo, anseio de superação heróica, que é ao mesmo tempo o estímulo e o
objectivo do canto épico.
9. Não faltam descrições de recontros bélicos e silhuetas de heróis nas estrofes d’Os
Lusíadas, mas não vale a pena fazer delas o inventário. Atentemos nas que o Poeta com mais
viva e comunicativa emoção tratou, por seu maior relevo na história, por suas consequências
de maior eficiência nos nossos destinos. São, como já dissemos, os grandes quadros das
batalhas de Ourique [III, 42-54], do Salado [III, 107-115] e de Aljubarrota — três momentos
críticos na história de Portugal e da Península.
10. Antes da descrição da batalha de Ourique, já o Poeta nos tinha dado um feito de
armas num dos incidentes da costa oriental da África — o castigo da traição de Moçambique.
Fizera-o em traços nervosos e rápidos, adequadamente à reduzidíssima importância do feito.
Nas estrofes sobre a batalha de Ourique, porém, o acontecimento é-nos dado em sua
preparação e catástrofe, como tragédia em mais de um acto. Assim, temos, em primeiro lugar,
o espectáculo da força de Ismar e dos quatro reis a quem ele chefia — para fazer sentir a
necessidade da intervenção miraculosa, unânime ansiedade no arraial lusitano:

[117] Em nenhũa outra cousa confiado,


Senão no Sumo Deus que o Céu regia,
Que tão pouco era o povo baptizado,
Que pera um só cem mouros haveria. (III, 43).

11. Dá-se o milagre, quando

A matutina luz, serena e fria,


As estrelas do Pólo já apartava...

12. Retumba diante do exército dos Mouros, tocando o Céu, a grita unânime:

. . . . . . Real! Real!
Por Afonso, alto Rei de Portugal!

13. Eis o momento da explosão das fúrias, assim redobradas. O Poeta não receia
representar, no ímpeto inicial do ataque, o jovem rei, acendido o estômago por Deus e pelo
seu povo, acometendo o Bárbaro, como um rábido moloso:

Qual co’os gritos e vozes incitado


Pola montanha, o rábido moloso
Contra o touro remete, que fiado
Na força está do corno temeroso;
Ora pega a orelha, ora no lado,
Latindo, mais ligeiro que forçoso,
Até que, enfim, rompendo-lhe a garganta,
Do bravo a força horrenda se quebranta... (III, 47).
153

14. O vigor da comparação e o próprio movimento com que a frase — o rábido


moloso / contra o touro remete, irrompendo, brusca, em meio do verso e saltando sem pausa
para o verso seguinte — se adequa ao desencadear dos embates, torna ansiosa a expectativa
do resultado; e logo, à luz de outra comparação — a do incêndio que de improviso alastra e
desperta, ao estridor do jogo que se ateia, a pastoral campanha, que prestes recolhe o fato e
foge para a aldeia — facilmente nos representamos o mover-se atónito e torvado do Mouro,
colhido de surpresa no descanso nocturno. Deflagra o combate de que o Poeta agora, em
poderosa síntese, nos dá como que a rápida visão directa:

Ali se vêem encontros temerosos,


Pera se desfazer ũa alta serra;
E os animais correndo furiosos,
Que Neptuno encontrou, ferindo a terra.
Golpes se dão medonhos e forçosos;
Por toda a parte andava acesa a guerra,
Mas o de Luso arnês, couraça e malha,
Rompe, corta, desfaz, abola e talha.

[118] Cabeças pelo campo vão saltando,


Braços, pernas, sem dono e sem sentido,
E de outros as entranhas palpitando,
Pálida a cor, o gesto amortecido.
Já perde o campo o exército nefando,
Correm rios de sangue desparzido,
Com que também do campo a cor se perde,
Tornada carmesi de branco e verde. (III, 51 e 52).

15. Um artifício retórico: A perífrase dos animais que Neptuno encontrou, ferindo a
terra, em vez de cavalos. Mas não ocupa mais do que um verso, em duas estrofes todas
trepidantes da violência dos golpes e dos embates. Os dois versos:

Cabeças pelo campo vão saltando,


Braços, pernas, sem dono e sem sentido...

são belo exemplo de como tudo no metro e na frase pode convergir em eficiência
representativa ou sugestiva. O movimento do primeiro verso, todo em quase perfeito ritmo
jâmbico: v-v-v-v-v-v... presta-se a representar a sucessão dos saltos; mas o movimento
irregular do segundo, cortado de pausas e iniciado em ritmo diferente (-v-v: braços, pernas),
perturbando tal regularidade, sacudindo a sensibilidade pelo atropelar das sensações — as
expressas e as que estas sugerem à imaginação — é adequado a acrescentar a impressão da
dispersão e do despedaçamento, que na última cláusula se acentua. E não parece que a
disposição sintática dos elementos significantes surge espontaneamente com o máximo de
intensidade expressiva?
16. Cabeças pelo campo... Braços, pernas...
17. Primeiro as coisas, por si mesmas, de macabras, impressionantes; depois os
movimentos, aspecto secundário, relativamente ao facto horrível da mesma decepação, que os
permite.
18. A batalha do Salado teve na história consequências de transcendente importância. Se
Ourique se pode considerar o baptismo de sangue do novo Reino, em Salado é o próprio
Cristianismo na Península que se consolida, desopresso da ameaça maometana. O Poeta dá ao
154

acontecimento maior relevo e mais espectaculoso dramatismo. É, em primeiro lugar, a


grandiosa visão da gravidade do perigo, pela enormidade das forças inimigas:

[119] Nunca com Semirâmis gente tanta


Veio os campos hidáspicos enchendo,
Nem Átila, que Itália toda espanta,
Chamando-se de Deus açoute horrendo,
Gótica gente trouxe tanta, quanta
Do Sarraceno bárbaro estupendo
Co’o poder excessivo de Granada
Foi nos campos tartésios ajuntada. (III, 100).

19. Primeiro, dilata-se a visão espantada nos imensos exércitos do passado — a gente de
Semíramis enchendo os campos hidáspicos, a gente gótica de Atila espantando toda Itália; só
depois se fala do Sarracena bárbaro, estupendo, do poder excessivo de Granada.
20. Esta enormidade do perigo e a ansiosa expectativa que empolga o leitor são ainda
avivadas pelo espectáculo da fermosissima Maria, implorando em lágrimas o socorro do rei:

Entrava a fermosíssima Maria


Pelos paternais paços sublimados,
Lindo o gesto, mas fora de alegria,
E os seus olhos em lágrimas banhados;
Os cabelos angélicos trazia
Pelos ebúrneos ombros espalhados;
Diante do pai, ledo, que a agasalha,
Estas palavras tais chorando espalha:

«Quantos povos a terra produziu


De África toda, gente fera e estranha,
O grão rei de Marrocos conduziu
Pera vir possuir a nobre Espanha.
Poder tamanho junto não se viu,
Despois que o salso mar a terra banha;
Trazem ferocidade e furor tanto,
Que a vivos medo, e a mortos faz espanto.

Aquele que me deste por marido,


Por defender sua terra amedrontada,
Co’o pequeno poder oferecido
Ao duro golpe está da maura espada;
E se não for contigo socorrido,
Ver-me-ás dele e do Reino ser privada,
Viúva e triste, e posta em vida escura,
Sem marido, sem reino e sem ventura.

Portanto, ó Rei, de quem com puro medo


O corrente Muluca se congela,
Rompe toda a tardança e acude cedo
Á miseranda gente de Castela.
Se esse gesto que mostras claro e ledo,
De pai o verdadeiro amor asseia,
Acude e corre, Pai, que, se não corres,
155

Pode ser que não aches quem socorres.» (III, 102-105).

21. Atentemos na estrofe que nos dá o seu retrato, entrando pelos paternais paços
sublimados: não falta nela a grave expressão de solenidade, que resulta da própria lentidão do
movimento da frase, nem a da majestosa grandeza dos paços, que o predomínio de timbres
muito abertos e claros — paternais, paços, sublimados — mais parece dilatar em amplidão
magnífica. E não parece que se sente a própria impressão húmida do choro, no verso cheio de
fonemas molhados — E seus olhos em lágrimas banhados?
22. Depois deste belo retrato, a estrofe que abruptamente expõe o perigo resultante da
imensidade das forças e da tensão da ferocidade e do furor, e logo a que, em contraste, expõe
a fraqueza do pequeno poder que oferecido ao duro golpe está da maura espada, e o
inevitável desenlace, se o pai não acode — fúnebre tragédia a que se adaptam os timbres dos
dois últimos versos:

Ver-me-ás dele e do reino ser privada,


Viúva e triste, e posta em vida escura,
Sem marido, sem reino e sem ventura.

23. Viúva e triste; vida escura; sem marido, sem reino e sem ventura — tudo palavras
de sons amortecidos e flébeis, a nasal em repetida, uu e ii, e tudo morrendo na funérea
plangência dos sufixos em ura. Finalmente, segundo as boas regras da oratória, a peroração,
sugestiva em sua nervosa insistência:

Rompe toda a tardança, acude cedo


À miseranda gente de Castela.
Acude e corre, Pai, que, se não corres,
Talvez que não encontres quem socorres!

24. Para além dos versos que estremecem do apelo angustioso: rompe toda a tardança,
acude, acude e corre, atente-se nos que dão relevo à obrigação que ao Pai incorre de o fazer;
porque possui a força: ó Rei, de quem, com puro medo, o corrente Muluca se congela; porque
é miseranda a gente de Castela; porque a paternidade impõe a obrigação do auxílio, que, se
não for imediato, será inútil.
25. À súplica da fermosíssima Maria — primeira tábua do tríptico — segue-se o desfilar
dos esquadrões da gente armada, coalhando os campos eborenses. É um breve mas belo
quadro, todo fulgurante do esplendor das armas, a que o Sol arranca fulgentes reflexos,
vibrante de rinchos de cavalos e música de canoras trombetas, às fulgentes armas incitando.
Depois da visão de conjunto, é natural que a vista fixe a figura do chefe, e ei-lo:

Entre todos, no meio se sublima


Das insígnias reais acompanhado,
O valeroso Afonso, que por cima
De todos leva o colo alevantado
E somente co’o gesto esforça e anima
A qualquer coração amedrontado. (III, 108)

26. [121] Finalmente, depois de comparada a desproporção entre as forças cristãs e


maometanas, com a desproporção entre o pastor David e o gigante Golias — comparação que
põe quase todos os valores expressivos de duas estrofes e meia a engrandecer a superioridade
numérica dos filhos de Agar — desdobra-se a terceira tábua do tríptico — a descrição da
batalha.
156

27. Camões é aqui mais rápido e menos directo. Para evitar repetir-se? Depois dos dois
versos:

Eis as espadas e as lanças retiniam


Por cima dos arneses — bravo estrago!

fortes e belos, e no segundo a adequada rudeza dos sons — arneses e o explosivo fragor final-
bravo estrago — aquilo em que o Poeta põe o acento, mais do que nos ásperos ruídos das
armas, é nos gritos dos guerreiros, muitos dos quais morrem afogados no lago de sangue dos
mortos e feridos. Tantos os mortos — e eis outro processo indirecto de dar a grandeza da
refrega — que o seu número excede os números históricos de outras batalhas da Antiguidade
— as do forte Mário, de Aníbal, de Tito.
28. Resta atentar na batalha de Aljubarrota.
29. Lembrando a sua importância nos destinos de Portugal e a crise política a que pôs
feliz remate, bem se compreende o Poeta haja aqui ampliado o quadro em políptico: a pintura
que representa a desproporção das forças; a que ergue a figura do Condestável, afrontando as
hesitações covardes; a que nos apresenta a disposição das tropas e o estado das almas, e,
finalmente, a que toda se anima do colorido e movimento das batalhas antigas e retumba dos
embates rudes e sangrentos.
30. É proporcional a diferença no tratamento das partes análogas às das batalhas
anteriores. Veja-se, por exemplo, o modo como agora dá a desigualdade das forças que o
Castelhano

... ajunta pera as guerras


De várias regiões e várias terras.

31. É uma enumeração que lembra as da Chanson de Roland, e sugere-a igual intuição
do poder expressivo do processo:

Vêm os exércitos das terras de Leão e Castela; e


Não estimam das armas o perigo
Os que cortando vão co’o duro arado
Os campos lioneses... (IV, 8).

32. Vêm os Vândalos, como ele chama aos habitantes da Andaluzia; e vêm os
Gaditanos, os primeiros na antiga valentia ainda confiados; e [122] vêm os do antigo Reino
de Toledo e os da Galiza; e vem, animada das negras fúrias da guerra, a gente biscainha. E a
terra de Guipúscua e Astúrias,

Que com minas de ferro se enobrece,


Armou dele os soberbos moradores,
Pera ajudar na guerra a seus senhores. (IV, 11).

33. Decorre, espaçadamente, a enumeração, e a cada nome, reforçando a ideia da


formidanda desproporção, junta o qualificativo que lhe assinala a valentia, por forma que se
acrescente, à grandeza do número, a temibilidade das virtudes guerreiras.
34. Os corações dos nossos entorpecem, aterrados, e assim mais avulta a figura do
segundo quadro — Nun’Álvares — irradiando energia heróica: do gesto e da palavra com que
se dirige àquelas duvidosas gentes.
35. O discurso é uma excelente peça oratória, como todas as d’Os Lusíadas. Basta
salientar o que nele marca a impetuosidade do homem de acção, que mais explode suas
157

emoções de espanto indignado e decisão heróica, do que expõe razões de agir. Eficaz,
veemente apelo à coragem adormecida: — Como é possível a covardia entre os Portugueses,
na iminência de ver sujeito o Reino?! Como?! Não sois vós os descendentes daqueles que
sempre venceram os Castelhanos?!

Pois se com seus descuidos ou pecados


Fernando em tal fraqueza assi vos pôs,
Torne-vos vossas forças o Rei novo,
Se é certo que co’o rei se muda o povo, (IV, 17).

36. E no fim, a apóstrofe-chicotada, a explosão do homem de armas que estava sob o


tribuno de ocasião:

E se com isto, enfim, vos não moverdes,


Do penetrante medo que tomastes,
Atai as mãos a vosso vão receio,
Que eu só resistirei ao jugo alheio.

Eu só com meus vassalos e com esta


(E dizendo isto arranca meia espada)...
Defenderei da força dura e infesta
A terra nunca doutrem subjugada.
Em virtude do Rei, da Pátria mesta,
Da lealdade já por vós negada,
Vencerei não só estes adversários,
Mas quantos a meu Rei forem contrários. (IV, 18 e 19).

37. [123] Triunfo imediato. E eis virada a terceira tábua do políptico: todos se aprestam
para a batalha, e o Poeta demora-se na preparação e disposição das forças, mas atentando,
pela primeira vez, no estado das almas, nelas subtilmente notando e em perfeita síntese
exprimindo o complexo, contraditório alegre medo:

Estavam pelos muros, temerosas


E de um alegre medo quase frias,
Rezando as mães, irmãs, damas e esposas,
Prometendo jejuns e romarias. (IV, 26).

38. Clangores de trombetas, sibilar de pífaros, retumbância de tambores, movimento de


bandeiras — toda a trepidação e todo o colorido das batalhas. Enfim,

Começa-se a travar a incerta guerra:


De ambas partes se move a primeira ala;
Uns leva a defensão da própria terra,
Outros as esperanças de ganhá-la.
Logo o grande Pereira, em quem se encerra
Todo o valor, primeiro se assinala.
Derruba e encontra, e a terra, enfim, semeia
Dos que a tanto desejam, sendo alheia. (IV, 30).

39. Notemos a diferença entre o movimento lento e regular dos quatro primeiros versos
e o movimento mais sacudido dos restantes. O primeiro grupo é todo ritmado pelo 2.° verso,
tão natural na sucessão dos elementos que o constituem: a massa dos exércitos (ambas
158

partes), o movimento que deles destaca a 1. a ala e a colocação desta ao fim da frase — como
ao cabo da táctica que a cada uma situou onde eram necessárias. O 2.° grupo é a descrição do
tumulto dos combates, cessando a regularidade do ritmo. E continua a orquestração de ruídos
e movimentos:

Já pelo espesso ar os estridentes


Farpões, setas e vários tiros voam;
Debaixo dos pés duros dos ardentes
Cavalos, treme a terra, os vales soam.
Espedaçam-se as lanças, e as frequentes
Quedas co’as duras armas tudo atroam;
Recrecem os inimigos sobre a pouca
Gente do fero Nuno, que os apouca. (IV, 31).

40. Não é preciso sublinhar o que esta estrofe tem de poder representativo, nas sibilantes
dos dois primeiros versos, destinadas a imitar ruídos de setas, farpões e tiros como fundindo-
se no expressivo voam, por que termina a frase, e ainda na trepidação do dístico [124]

Debaixo dos pés duros dos ardentes


Cavalos, treme a terra, os vales soam.

em que bem parece não ser sem intenção o predomínio das explosivas dd e tt, secas e duras
como tropear de quadrúpedes.
41. Outro quadro: a comparação de D. Nuno com o lião de Ceita, arremessando-se às
lanças dos cavaleiros que o cercam, e a comparação de D. João I com a lioa parida, correndo
raivosa e atroando com seus bramidos os montes Sete-Irmãos. Já vimos como Camões, na
comparação de D. Afonso Henriques com o rábido moloso, não receia sacrificar a delicadeza
ao vigor. Aqui, por exemplo, não haveria melhor processo de representar o ímpeto na
arremetida do Condestabre, o ansioso acorrer do rei ao exército em perigo. lmpressivas, até
pelo que têm de rápido e como fulminante, as palavras do rei acordando os brios dos fortes
cavaleiros, a quem nenhum se iguala, lembrando a sua presença de companheiro, que vai
primeiro entre as lanças, setas e os arneses. Ouvindo-as, acesos de uma nobre vergonha e
honroso jogo, os Portugueses uns com os outros têm competência sobre qual será o primeiro
no ataque.
42. Mas deixemos a luta e reparemos no que, nas estrofes relativas a Aljubarrota,
surpreende o lado moral do acontecimento, a sua vária repercussão nas almas: em primeiro
lugar, a própria oscilação moral das hostes, agora de corações gelados pelo temor frio e
importuno (21), logo todos reacesos de uma nobre vergonha e honroso fogo (39). Depois,
faz-nos Camões ver pelos muros as mães, irmãs, damas e esposas, rezando temerosas,
prometendo jejuns e romarias; e sabe notar, em sua atenção às realidades tantas vezes
ocultadas pela retórica, que estão quase frias de medo, de que — já o notámos — não lhe
escapa a complicação; e não esqueçamos o que da subtileza do psicólogo já observámos na
pág.80. Quando dá sinal a trombeta castelhana, a hipérbole que lhe aviva o que tem de
horrendo, fero, ingente e temeroso, é a bela criação poética a que já me referi (pág. 39):

Deu sinal a trombeta castelhana


Horrenda, fero, ingente e temeroso;
Ouviu-o monte Artabro, e Guadiana
Atrás tornou as ondas de medroso;
Ouviu o Douro e a terra Transtagana,
Correu ao mar o Tejo duvidoso;
159

E as mães que o som terríbil escuitaram,


Aos peitos os filhinhos apertaram. (IV, 28).

43. Mas há quem dê expressão a pensamento que mais de uma vez aflora na obra
camoniana. Faz coro com o Velho do Restelo aquele que, entre os vencidos, maldiz e
blasfema

Do primeiro que guerra fez no Mundo,

[125] e pronuncia a condenação da sede dura

Do peito cobiçoso e sitibundo,


Que, por tomar o alheio, o miserando
Povo aventura às penas do Profundo,
Deixando tantas mães, tantas esposas,
Sem filhos, sem maridos, desditosas. (IV, 44).

44. Porque exprime o Poeta, na batalha de Aljubarrota, um pensamento que lhe não
acudiu nas batalhas anteriormente descritas? Porque a batalha é entre Espanhóis e
Portugueses, ou seja entre cristãos, mas sobretudo porque é movida pelo peito cobiçoso e
sitibundo, é guerra de agressão e conquista. Isto nos abre perspectivas sobre o ideário de
Camões, atrás estudado (pág. 61-75).

B) O Retrato dos Heróis

45. Além das estrofes que descrevem as grandes batalhas de que falámos, outras n’Os
Lusíadas estremecem de embates heróicos. Toda uma galaria de guerreiros é apresentada por
Paulo da Gama ao catual; e, porque não podiam ficar esquecidos os que, posteriormente ao
descobrimento do caminho marítimo para a índia, pelo Oriente os igualaram em destemido
esforço bélico, é a sua exaltação confiada a Tétis, no banquete na Ilha dos Amores, pois só
profeticamente poderiam ser vistos. Ainda o poema insere, com largueza de peça
independente, aquele episódio de romance de cavalaria, que se designa pelos Doze de
Inglaterra.
46. Já acima foi dito quanto fará compreender que o Poeta se não demore em nos dar
retratos minuciosos dos seus heróis. Eles não são rodas que girem sobre si mesmas, como os
super-homens de Nietzsche, antes seu valor se mede pela contribuição que oferecem à
empresa do seu rei, à glória da sua Pátria. Daí o carácter de mera legenda, apontamento rápido
que de cada um deles nos é dado, sobretudo quando figuras secundárias na economia do
poema.
47. Uma galaria formada pelas bandeiras, que de cada herói apenas ilustrassem a acção
de mais relevo e a que o cicerone que as mostrasse se contentasse de em breves palavras
indicar os traços essenciais, seria o adequadíssimo processo. Começa ela nos tempos
mitológicos, que para o Poeta, como para os historiógrafos e eruditos dos séculos XVI e
XVII, a história sem protesto anexava. André de Resende ou Fr. Bernardo de Brito incluíam
igualmente, entre os reis peninsulares, Baco e Luso, além de Hércules e Brigo; e para todos
Ulisses fora o fundador de Lisboa. As figuras, porém, que as bandeiras representam não são
os reis (abre-se excepção para D. Afonso Henriques, por quem o Poeta mantém nítida
predilecção), mas os barões assinalados, pois dos reis [126] se ocupou Vasco da Gama,
apenas, como já o dissemos, também excepcionalmente incluindo a Egas Moniz e a
Nun’Álvares.
160

48. Em duas figuras Paulo da Gama mais se detém — Afonso Henriques e Nun’Álvares
Pereira, o que fundou e o que consolidou a Nação. Quanto ao primeiro, representa-se-lhe a
grandeza heróica pelo processo indirecto da notação das reacções emotivas que desperta no
catual, expressas em exclamações e interrogações. A rapidíssima alusão ao juramento da
Fama no Estígio Lago — que nenhum outro celebrará de Roma — inculca-o, por processo
igualmente indirecto, como maior do que todos os antigos, César ou Alexandre: Deus faz dele
o braço da sua luta contra o Mouro. Não obstante, mantém-se no poema a realidade histórica
do herói, e o mesmo sucede na representação da de Nun’Álvares. Pinta-o a bandeira na
véspera de Aljubarrota, repreendendo a vil desconfiança inerte e lenta do povo, sustentando
sobre seus duros ombros a Pátria que de um fraco fio pende, e em Valverde, no êxtase
místico que prepara a vitória militar. Este último episódio não fora exposto na narrativa
histórica de Vasco da Gama ao rei de Melinde. Por isso o irmão Paulo faz dele a síntese, que
não seria fácil aumentar em densidade. Já a ele nos referimos nas págs. 78 e 79 e reparámos
que não haveria modo de concentrar o prodigioso episódio em mais breves palavras. O
quantum satis para se saber que, tendo desaparecido durante a batalha, foi encontrado a rezar,
e à pressa angustiosa dos seus respondeu com as serenas palavras da sua confiança em Deus.
49. Camões sentiu a força e a densidade dramática do quadro de Fernão Lopes. Figura-o
representado na bandeira e dispensa-se de parafrasear o passo do cronista. Nas palavras de
Paulo da Gama, entende serem inoportunas as amplificações retóricas. A tal calculada
sobriedade clássica, prefere o nosso gosto ou o que o cronista ainda conserva da ingénua
simplicidade primitiva ou o que lhe acrescentou outro dramaturgo da história, de mais
complicada e sábia técnica — Oliveira Martins. Importa, porém reconhecer que, na breve
indicação cicerónica de Paulo da Gama, estão todos os elementos essenciais do patético.
50. Sucede isto a todas as descrições por ele feitas, e em nenhum episódio o processo é
tão visível como na descrição da tomada de Évora por Geraldo sem Pavor, reduzida a uma
estrofe. Era impossível, no aperto de tal espaço, que se pudesse ir além da legenda. O
narrador, segundo a ficção, confiava pormenores à eloquência da pintura, e, em harmonia com
uma técnica de sobriedade, passava a outras bandeiras. O Poeta encarregava-o da missão de
não omitir nenhum dos episódios mais demonstrativos dos valores individuais de uma história
de que seu irmão dera, a largos traços, a linha evolutiva, na cronológica sucessão dos seus
reis. Tudo cumpria tivesse a brevidade do secundário, num poema consagrado à viagem
marítima e aos momentos críticos da formação do país que a empreendera. Eram, como já
dissemos, altares laterais no templo magnífico, breves anotações, perspectivas fugidias [127]
de último plano, no quadro esplêndido. Só excepcionalmente um ou outro desses episódios ou
figuras secundárias poderia merecer mais longa demora. Era necessário que empolgasse a
sensibilidade do Poeta, como, por exemplo, o episódio de Inês de Castro, de que adiante se
falará.
51. As profecias de Tétis sobre os heróis do Oriente têm composição diferente das
rápidas legendas com que Paulo da Gama mostra as figuras das bandeiras. Não é um homem
que fala, completando com anotações sumárias a eloquência da pintura; é uma ninfa que
canta, erguendo em sua voz altos barões que estão por vir ao mundo. Por isso o Poeta como a
si próprio se excita para estilo condigno:

Matéria é de coturno e não de soco


A que a ninfa aprendeu no imenso lago,
Aqui, minha Calíope, te invoco,
Neste trabalho extremo... (X, 8).

52. Na verdade, as figuras de todos os vice-reis e governadores da Ir.dia, salientando


Duarte Pacheco, D. Francisco e D. Lourenço de Almeida, Afonso de Albuquerque, D. João de
Castro e seus filhos, Martim Afonso de Sousa, são-nos dadas em estilo grandíloquo que,
161

todavia, lhes não deforma a fundamental realidade. Os grandes modelos antigos estão sempre
presentes, para os confrontos por que os nossos são exaltados, e quase sempre a plano
superior no heroísmo. O grão-Pacheco é Aquiles Lusitano:

Nenhum claro barão no márcio jogo


Que nas asas da fama se sustenha,
Chega a este, que a palma a todos toma,
E perdoe-me a ilustre Grécia ou Roma. (X, 19).

53. E logo ocorre, entre outras, a lembrança d’Aquele que nos campos maratônios / O
grão poder de Dário estrui e rende (Milcíades), / / Ou quem com quatro mil Lacedemónios /
O passo das Termópilas defende (Leónidas). A respeito de D. Lourenço de Almeida, que em
luta contra as armadas do Egipto e de Cambaia se ilustra tanto como romano antigo, exclama
a ninfa, desafiando a História, na competência, a que mais de uma vez já nos referimos, entre
os valores da Lusitânia e os do Lácio:

Aqui ressurjam todos os antigos


A ver o nobre ardor que aqui se aprende;
Outro Sceva verão que, espedaçado,
Não sabe ser rendido nem domado. (X, 30).

54. [128] Heitor da Silveira é o Heitor português,

Que na costa cambaica sempre armada


Será aos Guzarates tanto dano,
Quanto já foi aos Gregos o Troiano. (X, 60).

55. E todos com Martim Afonso de Sousa, que de Marte / O nome tem co’as obras
derivado, são na terra bravos Martes, dignos de fama e maravilha.
56. Mas ficam todos, apesar destas hipérboles do tempo, dentro das essenciais
dimensões que a história lhes atribui. Mesmo quando ao grão-Pacheco, entrando no mar das
índias, o férvido Oceano, tanto como o curvo lenho, lhe sente o peso; mesmo quando, para
anunciar Afonso de Albuquerque, a ninfa alevanta mais a voz:

Mas oh que luz tamanha que abrir sinto (X, 33). [...]
Lá no mar de Melinde, em sangue tinto,
Das cidades de Lamo, de Oja e Brava... [...]
Esta luz é do fogo e das luzentes
Armas com que Albuquerque irá amansando
De Ormuz os Párseos... (X, 39-40).

57. Quando a ninfa, depois da morte de D. Lourenço de Almeida, cuja heróica mocidade
profundamente a enternece, reza o solene e plangente responso:

Vai-te, alma, em paz, da guerra turbulenta,


Na Qual. tu mereceste paz serena,

ouve rebentar a grão tormenta da vingança paterna. E nada poderia anunciá-la com mais
vigorosa e majestosa eloquência do que versos como:

Eis vem o pai com ânimo estupendo.


Trazendo fúria e mágoa por antolhos,
162

Com que o paterno amor o está movendo


Fogo no coração, água nos olhos;
A nobre ira lhe vinha prometendo
Que o sangue fará dar pelos giolhos
Nas inimigas naus; senti-lo-á o Nilo,
Podê-lo-á o Indo ver e o Ganges ouvi-lo.

58. E tal como aquelas comparações em que atrás vimos sacrificar-se a delicadeza ao
vigor expressivo, também aqui o Poeta entende mostrar o crescendo da vingança de D.
Francisco de Almeida com esta estrofe soberba:

[129] Qual o touro cioso que se ensaia


Pera a crua peleja, os cornos tenta
No tronco dum carvalho ou alta faia
E o ar ferindo as forças exp’rimenta:
Tal, antes que no seio de Cambaia
Entre Francisco irado, na opulenta
Cidade de Dabul a espada afia,
Abaxando-lhe a túmida ousadia. (X, 34).

59. Mas não é apenas com imagens assim vigorosas que dá expressividade épica ao seu
estilo. Vem-lhe esta mais frequentemente da tensão de estrofes onde não há lugar para
palavras inúteis, como esta:

Das grandes naus do Samorim potente


Que encherão todo o mar, co’a férrea péla,
Que sai com trovão do cobre ardente,
Fará pedaços leme, mastro e vela;
Despois, lançando arpéus ousadamente
Na capitaina inimiga, dentro nela
Saltando, a fará, só com lança e espada,
De quatrocentos mouros despejada. (X, 28).

60. Esta expansão do heroísmo luso abrange vastíssimo teatro e cumpria que esse
motivo de espanto não faltasse à sugestão épica. Por isso Tétis fala de Soares de Albergaria,

... que as bandeiras


Faria tremular e pôr espanto
Pelas roxas, arábicas ribeiras.
Medina abominável teme tanto,
Quanto Meca e Gidá co’as derradeiras
Praias de Abássia; Barborá se teme
Do mal, de que o empório Zeila geme. (X, 50).

61. Em suma torre de Columbo se erguerá a excelsa bandeira lusitana. Sequeira, por seu
turno, dividirá as águas eritreias, abrirá novo caminho para o grande Império que se arreia de
ser de Candace e Sabá ninho, perífrase culta em que, dir-se-ia, se esfumam no mistério os
contornos precisos da geografia. Finalmente, há sínteses desta eloquência, a respeito de
Duarte Pacheco:

Porque tantas batalhas sustentadas,


163

Com muito pouco mais de cem soldados,


Com tantas manhas e artes inventadas,
Tantos cães, não imbeles, profligados,
Ou parecerão fábulas sonhadas
Ou que os celestes coros, invocados,
Decerão a ajudá-lo e lhe darão
Esforço, força, ardil e coração. (X, 20).

62. [130] Se juntarmos a rápida alusão à aparência de milagre das vitórias de Duarte
Pacheco — parece que decem os celestes coros invocados a dar-lhe esforço, força, ardil e
coração — àquela a respeito de Albuquerque,

Que gloriosas palmas tecer vejo


Com que a Vitória a fronte lhe coroa,
Quando, sem sombra vã de medo ou pejo,
Toma a ilha ilustríssima de Goa!, (X, 42).

temos tudo quanto, no canto da ninfa, transcende os limites humanos.


63. O Poeta mantém-se fiel ao seu programa: as verdadeiras façanhas dos seus heróis
excedem as sonhadas, fabulosas. Apenas lhes dá relevo a magnificência do estilo.
64. No II Canto do poema, Vénus, vendo os Portugueses sem a defesa de Júpiter, que
permite que Baco os persiga, dirige-se ao Olimpo, e, acrescentando às palavras a sedução das
formas tentadoras e dos olhos chorosos, queixa-se ao pai e amante de que assim seja tanto
contra o seu desejo:

«Ora, pois, porque o amo, é mal tratado,


Quero-lhe querer mal, será guardado.
Mas moura enfim nas mãos de brutas gentes,
Que pois eu fui...» E nisto, de mimosa,
O rosto banha em lágrimas ardentes,
Como co’o orvalho fica a fresca rosa.
Calada um pouco, como se entre dentes
Lhe impedira a fala piedosa,
Torna a segui-Ia, e indo por diante,
Lhe atalha o poderoso e grão Tonante. (II, 40-41).

65. Atalha Júpiter, para assegurar à fermosa filha sua que nada tem a temer pelos
destinos dos Portugueses, pois os fermosos olhos soberanos dela ainda verão

Esquecerem-se Gregos e Romanos,


Pelos ilustres feitos que esta gente
Há-de fazer nas partes do Oriente. (II, 44).

66. Uma consolação a Vénus, protectora de Ulisses e Eneias, necessariamente


importaria confrontos de que Júpiter concluirá, acentuando a ideia a cada passo expressa:

Os vossos, mores cousas atentando,


Novos mundos ao Mundo irão mostrando. (II, 45).

67. [131] A linguagem do Pai dos Deuses é nobre. Como quem olha de muito alto,
apenas, sem os nomear, alude ao futuro do Gama e ao herói do Passo de Cambalão, Duarte
164

Pacheco, por quem o Poeta tem a admiração mais cheia de assombro. Fala de feitos, mais do
que de heróis. O herói é o Luso. O Luso horrendo, que edificará fortalezas, cidades e altos
muros; desbaratará os Turcos belacíssimos e duros; tornará o Mar Roxo amarelo, de enfiado;
subjugará o poderoso reino de Ormuz, duas vezes tomado; mostrará seu preço na defesa em
dois cercos da inexpugnábil Dio, com feitos que farão invejoso o grão Mavorte e blasfemo
contra o Céu o Maometano moribundo; conquistará Goa, desbaratará Calecut, sustentará
Cananor com pouca gente, subjugará os reis da Índia, ao mesmo tempo que a todos há-de
libertar e segurar contra as tiranias com que uns aos outros se oprimem, pois que, pelos
Portugueses,

... de tudo, enfim, senhores,


Serão dadas na terra leis milhores. (II, 46).

68. Tudo isto prepara uma síntese toda sonora de claros termos e heróis da antiguidade
clássica, que é uma deslumbrada visão da glória portuguesa, iluminada no confronto vitorioso
com a romana:

Nunca com Marte instructo e furioso,


Se viu ferver Leucate, quando Augusto
Nas civis áctias guerras animoso
O capitão venceu romano injusto, [...]

Como vereis o mar fervendo aceso


Co’os incêndios dos vossos; pelejando,
Levando o Idolatra e o Mouro preso,
De nações diferentes triunfando,
E, sujeita a rica áurea Quersoneso,
Até o longinco China navegando,
E as ilhas mais remotas do Oriente,
Ser-lhe-á todo o Oceano obediente.

De modo, filha minha, que de jeito,


Amostrarão esforço mais que humano,
Que nunca se verá tão forte peito
Do gangético mar ao gaditano,
Nem das boreais ondas ao Estreito,
Que mostrou o agravado Lusitano,
Posto que em todo o Mundo, de afrontados,
Ressuscitassem todos os passados. (II, 53-55).

69. Perspectiva geral do passado, dada na narrativa perante o rei de Melinde,


completada pela galaria dos barões assinalados, exposta ao catual; perspectiva do nosso futuro
na Índia como no Mundo, [132] profeticamente descerrado por Tétis e em resumo anunciado,
numa grandiosa visão de conjunto, pelo Pai dos Deuses; visão de conjunto — e exaltação dos
méritos para além da medida até então atingida: ainda que, de afrontados, ressuscitassem
todos os passados.

C) Os Doze de Inglaterra
165

70. Para pôr termo ao estudo deste aspecto do poema, cumpre atentar no pequeno e
formoso episódio de romance de cavalaria que Fernão Veloso conta aos companheiros, na
travessia do Índico.
71. A brevíssima novelazinha é enxertada no poema de modo que, variando-lhe os
aspectos e enriquecendo-lhe o conteúdo, sem lhe perturbar a unidade, constitui mais um
capítulo, senão da história portuguesa, ao menos da biografia espiritual da Nação. Encontrara-
o Camões, porventura, no Memorial das Proezas da Távola Redonda (1567), de J. Ferreira de
Vasconcelos. Assim, ainda aqui o Poeta, a quem repugna louvar os seus com façanhas
fantásticas, fingidas, mentirosas, / Como nas estranhas musas, de engrandecer-se desejosas,
se não afasta da história nacional. Nem nos traços estruturais do episódio, nem nos
pormenores da sua elaboração. Nada que se não pudesse ter realizado. Nada que não pudesse
ser representado como história — e como história não ocorra no livro citado. Porque é, com
efeito, na realidade histórica, ou que muito bem o poderia ter sido, que o Poeta encontra a sua
matéria épica, mesmo quando, como neste episódio, mais fácil lhe era inventar errores por
onde a fantasia, desprendendo o voo, criasse maravilhas como as que então se saboreavam,
não apenas nos romances do ciclo dos Amadises e Palmeirins, senão também nos poemas de
Boiardo ou Ariosto, enquanto não vinha o Tasso.
72. Mas atentemos no episódio.
73. Nos longos lazeres do tombadilho, nas horas calmas da navegação, era natural a
narrativa cavalheiresca, como a que o Poeta põe nos lábios eloquentes de Veloso, com
admirável mestria de narrador. Doze cavaleiros portugueses vão à corte inglesa defender
damas injuriadas por cavaleiros poderosos, seus compatriotas. Assim se havia resolvido, a
pedido do Duque de Lencastre, que, tendo conhecido as virtudes cavalheirescas da nossa
gente, no tempo em que fizera guerra na Península, via nelas a melhor garantia de triunfo na
justa.
74. À justa, nada falta a realizá-la, na vivacidade do colorido, como no animado do
movimento. O Poeta, que pode servir de modelo a oradores, na arte perfeita de compor os
discursos dos seus heróis ou dos seus mitos, adaptando a Nun’Álvares, heróico e não facundo,
o discurso de homem de acção, com mais explosões emotivas do que razões dialécticas, ao
Gama o discurso de um hábil diplomata, e a Baco, o discurso de um astuto causídico,
exemplifica na narrativa de Veloso a arte de contar. Nenhum superior modelo se encontrará
na nossa literatura clássica de conciliação entre o estilo narrativo e o estilo [133] épico, entre a
brevidade pela redução ao essencial e o enobrecimento pelos ornatos adequados.

No tempo que do reino a rédea leve


João, filho de Pedro, moderava,
Despois que sossegado e livre o teve
Do vizinho poder que o molestava,
Lá na grande Inglaterra, que da neve
Boreal sempre abunda, semeava
A fera Erínis dura e má cisânia,
Que lustre fosse a nossa Lusitânia. (VI, 43).

75. A fera Erínis, a neve boreal — eis as brevíssimas concessões à convencional


grandiloquência do estilo épico, que logo flui corrente, directo, nervoso, nas estrofes
imediatas:

Entre as damas gentis da corte inglesa,


E nobres cortesãos a caso um dia
Se levantou discórdia em ira acesa
— Ou foi opinião ou foi porfia—
166

Os cortesãos a quem tão pouco pesa


Soltar palavras graves de ousadia
Dizem que provarão, que honras e famas
Em tais damas não há pera ser damas. (VI, 44).

76. E segue nesta nobre simplicidade a narrativa de Veloso, pelo caminho mais curto, ao
episódio nuclear — a justa que há-de ilibar as damas da infâmia ou nela as deixar humilhadas.
77. Os cavaleiros armam-se de elmos, grevas e arneses; as damas vestem-se de cores e
de sedas, de ouro e jóias mil, ricas e ledas, à excepção daquela a quem falta Magriço.
78. O rei, a corte e as damas ofendidas esperam no púbrico teatro, enquanto:

Mastigam os cavalos escumando


Os áureos freios com feroz sembrante;
Estava o Sol nas armas rutilando
Como em cristal ou rígido diamante... (Ib., 61).

79. Nisto aparece Magriço, e a todos alvoroça a chegada do herói, e é nesta nervosa
rapidez que nos é dado o espectáculo do combate:

... o som da tuba impele


Os belicosos ânimos, que inflama;
Picam de esporas, largam rédeas logo,
Abaxam lanças, fere a terra fogo.

[134] Dos cavalos o estrépito parece


Que faz que o chão debaixo todo treme;
O coração no peito que estremece
De quem os olha, se alvoroça e teme.
Qual co’o cavalo, em terra dando, geme;
Qual vermelhas as armas faz de brancas;
Qual co’os penachos do elmo açouta as ancas.

Algum dali tomou perpétuo sono


E fez da vida ao fim breve intervalo;
Correndo, algum cavalo vai sem dono
E noutra parte o dono sem cavalo. (VI, 63-65).

80. A luta é de cavaleiros; não admira, pois, que sejam cavalos, o seu estrépito, o faiscar
e estremecer do solo ferido de suas patas, que tomem a retina, ao mesmo tempo que o ouvido
do leitor. A palavra cavalo quase aparece a cada volta do verso e o próprio movimento deste
bem parece que o sacode o estrépito do seu correr. No verso: — Qual co’o cavalo em. terra
dando, geme — não parece que há, na irregularidade do seu ritmo, a representação de
movimento interrompido antes da meta — a que sucede um gemido?...
81. Mas como também a nós pode caber a censura do Poeta aos maus gastadores do
tempo com fábulas sonhadas, fiquemos por aqui. Imitemos a sobriedade com que ele nos dá
em estrofe e meia as andanças do aventureiro Magriço depois da justa, como em dez versos
nos resumira as que na ida o haviam demorado.
82. Duvidaremos, em face do que neste capítulo se mostra, que ao poema falte o espírito
épico? Se grosseiramente nos não enganamos sobre o em que consiste tal espírito,
continuaremos a considerar errada a classificação que Aubrey Bell dá a Os Lusíadas: «Mais
que uma epopeia, Os Lusíadas são um grande hino lírico em louvor de Portugal».
167

83. Não lhe falta, como veremos adiante, matéria lírica, mas fica demonstrado que a tem
épica em densidade que baste a manter-lhe a classificação tradicional.

Texto FERREIRA, António [1528-1569]. Poemas Lusitanos. Lisboa: Sá da Costa, 1939-


16 1940. 2 v.271

[17] v. 1, XIV [22] v. 1, XX


Ó olhos, donde Amor suas frechas tira Donde tomou Amor, e de qual veia
Contra mim, cuja luz me espanta, e cega, O ouro tam fino, e puro para aquelas
Ó olhos, onde Amor se esconde, e prega Tranças louras? de que esfera, ou estrelas
As almas, e em pregando-as, se retira! A luz, e o fogo que assi em mim se ateia?

Ó olhos, onde Amor amor inspira, Donde as perlas? a voz de que serea?
E amor promete a todos, e amor nega, Os brancos lírios donde, e as rosas belas,
Ó olhos, onde Amor também se emprega. Aquele vivo esprito pondo nelas,
Por quem tam bem se chora, e se suspira! De que formou ũa nova ao Mundo idea?

Ó olhos, cujo fogo a neve fria Antes a neve, a alvura, a cor, as rosas
Acende, e queima; ó olhos poderosos Do seu rosto tomaram, e a harmonia
De dar à noite luz, e vida à morte! As aves da voz doce, suave, e branda.

Olhos por quem mais claro nasce o dia, Não são ante ela as estrelas mais fermosas.
Por quem são os meus olhos tão ditosos, Nem mais sereno o Céu, ou claro dia.
Que de chorar por vós lhes coube em sorte! Nem mais fermoso o Sol na sua esfera anda.

[23] v. 1, XXI [64] v. 2, II


Sai minha alma às vezes a buscar-vos Ó alma pura, em quanto cá vivias,
Tão apressadamente, que parece Alma lá onde vives já mais pura.
Que algũa estrela a força, e se oferece Porque, me desprezaste? quem tam dura
Encaminha-la lá, onde possa achar-vos. Te tornou ao amor, que me devias?

Mas quando vos não vê, e vê que deixar-vos Isto era, o que mil vezes prometias,
De buscar lhe é forçado, assi esmorece. Em que minh’alma estava tam segura,
Que quando Amor já acode, a não conhece, Que ambos juntos ũa hora desta escura
271
Cf. a edição crítica de T. F. Earle: Poemas Lusitanos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2000. 675 p. 102 sonetos.
168

Senão polos sinais, que traz de amar vos. Noite nos subiria aos claros dias?

E no tempo, em que está mais descuidada Como em tam triste cárcere me deixaste?
No perigo inda, em que se vio, cuidando. Como pude eu sem mim deixar partir-te?
Então subitamente a salteais. Como vive este corpo sem sua alma?

Querei-la andar, senhora, assi enganando, Ah! que o caminho tu bem mo mostraste,
Para que viva; e assi vive enganada: Porque correste à gloriosa palma!
Assi entre morte, e vida a sustentais. Triste de quem não mereceu seguir-te!

UNIDADE III: CLASSICISMO — PROSA: A NOVELA SENTIMENTAL DE


BERNARDIM RIBEIRO. TEXTOS 17 a 19

OBJETIVOS

Ao final desta unidade, você deverá ser capaz de:

a) ler a narrativa de Bernardim Ribeiro, segundo uma perspectiva crítico-interpretativa;


b) compreender a organização formal de Menina e Moça, com base na leitura de Saraiva
(1996, p. 9-13);
c) deprender os romances que compõem a narrativa bernadiana: o romance de Belisa e
Lamentor, o romance de Aônia e Binmarder, o romance de Arima e Avalor e as aventuras de
Avalor;
d) comprovar as quatro grandes sequências narrativas de Menina e Moça, em consonância
com Bernardes (2001, v. 2, p. 448-453).

INDICAÇÃO BIBLIOGRÁFICA

MACEDO, Hélder. A «Menina e Moça» e o problema do seu significado. Colóquio / Letras.


Lisboa, n. 8, p. 21-31, jul. 1972.

Texto RIBEIRO, Bernardim. Menina e Moça. In: Obras Completas. Lisboa: Sá da Costa,
17 1982. v. 1. Trechos.272

T17.0. Orientações gerais de leitura

272
AUTORIA DE BERNARDIM RIBEIRO:

II, 11 Álvaro Júlio da Costa Pimpão


II, 17 Carolina Michäelis de Vasconcelos
II, 25 António Salgado Júnior
169

MENINA E MOÇA: BERNARDIM RIBEIRO (ED . SÁ DA COSTA)


PARTE CAPS. TEMA /ASPECTOS DA NARRATIVA PÁGINAS
I 01-04 Introdução. Monólogo / solidão. “Das tristezas não se 001-024
pode contar nada ordenadamente...”. A morte do
rouxinol.
I 05-11 Lamentor e Belisa (romance I), irmã de Aónia. Batalha 025-052
entre Lamentor e o cavaleiro da ponte. Belisa morre de
parto.
I 12-31 Aónia e Bimnarder (romance II); Aónia casa-se com 053-115
Orfileno.
II 01-11 Arima, filha de Lamentor, e Avalor (romance III). 119-155

II 12-24 Aventuras de Avalor. Batalha entre Avalor e Donanfer. 156-198


Avalor ouve a voz de Arima em uma fonte.
II 25 Cruélcia, irmã de Narbindel. (Pausa) 199-200

II 26-30 Castelo da Dona: os amigos Tasbião e Narbindel. Belisa 201-221


em poder de Fabudarão. Libertação. (Romance de
cavalaria da edição de Évora = II, 26-48).
II 31 Batalha entre Fabudarão e o cavaleiro das águias. 222-227

II 32-40 Bimnarder sem Aónia. Ermitão. Suicídio? 228-245

II 41 Cruélcia e Romabisa, irmãs. 246-247

II 42 Em busca de Narbindel e Tasbião. 248

II 43 Cruélcia sem Romabisa. 249

II 44-45 Enis, criada de Aónia. 250-254

II 46 Cruélcia se informa sobre Bimnarder. 255-256

II 47 Bimnarder é encontrado. Batalha dele e Godivo com os 257-263


selvagens.
II 48-50 Aónia, Bimnarder e Orfileno. Morte do casal (exéquias). 264-269
Cruélcia, ao saber da morte do irmão, morre.
II 51-56 Romabisa em busca de Tasbião. Ela o socorre com a 270-282
ajuda de Lamentor.
II 57 Morte de Lamentor. 283-284

II 58 O casamento de Romabisa e Tasbião e de Jenao e 285-287


Loribaina.

T17.1. Texto

CAPÍTULO I

1. [1] Menina e moça me levaram de casa de meu pai para longes terras: qual fosse
170

então a causa daquela minha levada [= mudança], era pequena, não na soube. Agora não lhe
ponho outra, senão que já então parece havia de ser o que depois foi. Vivi ali tanto tempo
quanto foi necessário para não poder viver em outra parte. Muito contente fui eu naquela
terra; mas coitada de mim, que em breve espaço se mudou tudo aquilo que longo tempo se
buscou e para longo tempo se buscava. Grande desaventura foi a que me fez ser triste, ou que
pela ventura [= talvez] me fez ser leda. Mas depois que eu vi tantas cousas trocadas por outras
e o prazer feito mágoa maior, a tanta paixão vim, que mais me pesava do bem que tive que do
mal que tinha. Escolhi para meu contentamento [= alívio] (se entre tristezas e saudades há
algum) vir-me viver a este monte, onde o lugar e míngua da conversação da gente fosse como
para meu cuidado cumpria — porque grande erro fora depois de tantos [2] nojos [=
desgostos], quantos eu com estes meus olhos vi, aventurar-me ainda esperar do mundo o
descanso, que ele nunca deu a ninguém — estando eu aqui só, tão longe de toda a outra gente,
e de mim ainda mais longe, donde não vejo senão serras de um cabo, que se não mudam
nunca273, e de outro águas do mar, que nunca estão quedas, onde cuidava eu já que esquecia à
desaventura, porque ela e depois eu, a todo poder que ambas pudemos, não leixamos em mim
nada em que pudesse nova mágoa ter lugar. Antes havia muito tempo que é povoada de
tristezas, e com razão. Mas parece que em desaventuras há mudanças para outras
desaventuras, porque do bem não na havia para outro bem. E foi assim que, por caso estranho,
fui levada em parte [= para lugar] onde me foram ante os meus olhos apresentadas em cousas
alheias todas minhas angústias: e o meu sentido de ouvir não ficou sem sua parte de dor. Ali
vi então na piedade, que houve [= tive] doutrem, camanha [quão grande] a devera ter de mim,
se não fora tão demasiadamente mais amiga de minha dor do que parece que foi de mim quem
me é causa dela: mas camanha é a razão porque sou triste, que nunca me veio mal nenhum,
que eu não andasse em busca dele. Daqui me vem a mim a parecer que esta mudança, em que
me eu vi, já [3] então começava a buscar, quando me este terra, onde me ela aconteceu,
aprouve mais que outra nenhuma para vir aqui acabar os poucos dias de vida, que eu cuidei
que me sobejavam. Mas nisto, como em outras cousas muitas, me enganei eu. Agora há já
dois anos que estou aqui, e não sei ainda tão somente determinar para quando me guarda a
derradeira hora: não pode já vir longe. Isto me pôs em dúvida de começar a escrever as cousas
que vi e ouvi.
2. Mas depois, cuidando comigo, disse eu que arrecear de não acabar de escrever o que
vi não era cousa para o leixar de fazer: pois não havia de escrever para ninguém, senão para
mim só. Quanto mais que em cousas não acabadas não havia de ser nova: que quando vi eu
prazer acabado, ou mal que tivesse fim! Antes me pareceu que este tempo que hei-de estar
aqui neste ermo (como a meu mal aprouve) não o podia empregar em cousa que mais de
minha vontade fosse: pois Deus quis que assim minha vontade seja, se em algum tempo se
achar este livrinho de pessoas alegres, não o leiam, que porventura, parecendo-lhes que seus
casos serão mudáveis, como os aqui contados, o seu prazer lhes será menos prazer. Isto, onde
eu estivesse, me doeria porque assaz bastava eu. nascer para minhas mágoas, e não ainda para
as de outrem. Os tristes o poderão ler: mas aí não os houve mais homens depois que [4] nas
mulheres houve piedade: mulheres sim, porque sempre nos homens houve desamor. Mas para
elas não no faço eu. Que pois o seu mal é camanho, que se não pode conformar com outro
nenhum para as mais entristecer, sem razão seria querer eu que o lessem elas; mas antes lhes
peço muito que fujam dele e de todas as cousas de tristeza, que ainda com isto poucos serão
os dias que hão-de poder ser ledas: porque assim está ordenado pela desaventura com que elas
nascem. Para uma só pessoa podia ele ser; mas desta não soube eu mais parte [= notícia] dele,
pois que as suas desditas, e as minhas, o levaram para longes terras estranhas, onde bem sei eu
que, vivo ou morto, o possui a terra sem prazer nenhum.
3. Meu amigo verdadeiro, quem me a vós levou tão longe? Que vós comigo e eu
convosco, sós, soíamos a passar nossos nojos grandes, e tão pequenos para os de depois! A
273
Ressalte-se o contraste das serras com as águas quanto à mobilidade.
171

vós contava eu tudo. Como [= quando] vós vos fostes, tudo se tornou tristeza: nem parece
ainda senão que estava espreitando já que vos fósseis.
4. E porque tudo mais me magoasse, tão-somente me não foi leixado em vossa partida o
conforto de saber para que parte da terra íeis. Cá descansarão os meus olhos em levarem para
lá a vista. Tudo me foi tirado no meu mal: remédio nem conforto nenhum houve aí. Para
morrer asinha [= depressa], me pudera isto aproveitar: mas para isto não me aproveitou.
Ainda convosco usou a vossa desaventura algum modo de piedade (das que não acostuma
fazer com nenhuma pessoa) em vos alongar [= distanciar] da vista desta terra; que pois para
[5] não sentirdes mágoas não havia remédio, para as não ouvirdes vo-lo deu. Coitada de mim,
que estou falando, e não vejo eu ora que leva o vento as minhas palavras; e que me não pode
ouvir a quem eu falo!
5. Bem sei eu que não era, para isto a que me eu ora quero pôr [= consagrar], que o
escrever alguma cousa pede muito repouso; e a mim as minhas mágoas ora me levam para um
cabo, ora para outro: trazem-me assim, que me é forçado tomar as palavras que me elas dão,
porque não sou tão constrangida a servir o engano, como a minha dor. Destas culpas me
acharão muitas neste livrinho, mas da minha ventura foram elas. Ainda que quem me manda a
mim olhar por culpas, nem por desculpas? O livro há-de ser do que vai escrito nele. Das
tristezas não se pode contar nada ordenadamente, porque desordenadamente acontecem elas.
Também por outra parte não me dá nada [= nada me importa] que o não leia ninguém, que eu
o não faço senão para um só, ou para nenhum, pois dele, como disse, não sei parte tanto há.
Mas se ainda me está guardado, para me ser em algum tempo outorgado, que este pequeno
penhor de meus longos suspiros vá ante os seus olhos, muitas outras cousas desejo, mas esta
me seria assaz.

CAPÍTULO II
Em que a donzela vai prosseguindo sua história.

6. [6] Neste monte mais alto de todos, que eu vim buscar pela suavidade [Ed. Ferrara,
soidade, solidão] diferente dos outros que nele achei, passava eu a minha vida como podia:
ora em me ir pelos fundos vales que os cingem derredor, ora em me pôr do mais alto deles a
olhar a terra como ia acabar ao mar, e depois o mar como se estendia logo após ela, para
acabar onde o ninguém visse. Mas quando vinha a noite, acepta a meus pensamentos, que via
as aves buscarem seus pousos, umas chamarem as outras, parecendo que queria assossegar a
terra mesma, então eu, triste com os cuidados dobrados com que amanhecia, me recolhia para
a minha pobre casa, onde Deus me é boa testemunha de como as noites dormia. Assim
passava eu o tempo, quando uma das passadas pouco há, levantando-me eu, vi a manhã como
se erguia formosa e se estendia graciosamente por entre os [7] vales e leixar ainda os altos. Cá
o sol, já levantado até os peitos [metade acima da linha do horizonte], vinha tomando posse
dos outeiros, como quem se queria senhorear da terra. As doces aves batendo as asas andavam
buscando umas às outras; os pastores, tangendo as suas flautas e rodeados dos seus gados,
começavam a assomar pelas cumeadas. Para todos parecia que vinha aquele dia assim ledo.
Os meus cuidados sós vendo como vinha seu contrário (ao parecer poderoso) recolhiam-se a
mim, pondo-me ante os meus olhos para quanto prazer e contentamento pudera aquele dia vir,
se não fora tudo tão mudado; donde o que fazia alegre a todas as cousas, a mim só teve causa
de fazer triste. E como os meus cuidados, para o que tinha a ventura ordenada, me
começassem de entrar pela lembrança de algum tempo que foi, e que nunca fora,
senhorearam-se assim de mim que me não podia já sofrer a par de minha casa, e desejava ir-
me por lugares sós, onde desabafasse em suspirar. E ainda bem não foi alto dia quando eu
(parece que acinte) determinei ir-me para o pé deste monte, que de arvoredos grandes e verdes
ervas e deleitosas sombras é cheio, por onde corre um pequeno ribeiro de água de todo o ano
que, nas noites caladas, o rugido [= ruído brando] dele faz no mais alto deste monte um
172

saudoso tom, que muitas vezes me tolhe o sono; onde outras muitas vou eu lavar minhas
lágrimas e onde muitas infinitas as torno a beber. Começava [8] então de querer cair a calma
[= calor], e no caminho, com a pressa por fugir dela ou pela desaventura que me levava a
mim. três ou quatro vezes caí ali. Mas eu (que depois de triste cuidei que não tinha mais que
temer) não olhei nada por aquilo em que perece que Deus me queria avisar da mudança que
depois havia de vir. Chegando à borda do rio, olhei para onde havia melhores sombras:
pereceram-me as que estavam além do rio. Disse então que naquilo se enxergava que era
desejado tudo o que com mais trabalho se podia haver, porque não se podia ir além sem se
passar a água que corria ali mansa e mais alta que na outra parte. Mas eu que sempre folguei
de buscar meu dano, passei além e fui-me assentar de sob a espessa sombra de um verde
freixo, que pera baixo um pouco estava, e algumas das ramas estendia por cima de água, que
ali fazia tamalavez [= um pouco] de corrente e, impedida de um penedo que no meio dela
estava, se partia para um e outro cabo, murmurando. Eu que os olhos levava ali postos,
comecei a cuidar que também nas cousas que não tinham entendimento havia fazerem-se nojo
umas às outras. Estava de ali aprendendo tomar algum conforto no meu mal: que assim aquele
penedo estava anojando aquela água que queria ir seu caminho, como minhas desaventuras no
outro tempo soíam fazer a tudo o que eu mais queria, que já agora não quero nada. E crescia-
me daquilo um pesar; porque a cabo do penedo tornava a água a juntar-se e ir seu caminho
sem estrondo algum, mas [9] antes parecia que corria ali mais depressa que pela outra parte. E
dizia eu que sempre aquilo por se apartar mais asinha daquele penedo, inimigo de seu curso
natural, que como por força ali estava. Não tardou muito que, estando eu assim cuidando,
sobre um verde ramo que por cima da água se estendia se veio pousar um rouxinol. Começou
a cantar tão docemente que de todo me levou após si o meu sentido de ouvir. E ele cada vez
crescia mais em seus queixumes, que parecia, que como cansado, queria acabar, senão quando
tornava como que começava. Então, triste da avezinha, que estando-se assim queixando, não
sei como se caiu morta sobre aquela água. Caindo por entre as ramas, muitas folhas caíram
também com ela. Pareceu aquilo sinal de pesar naquele arvoredo de caso tão desastrado.
Levava-a após si a água e as folhas após ela, e quisera-a eu ir tomar; mas pela corrente que ali
fazia e pelo mato que de ali para baixo acerca do rio logo estava, prestesmente [=
rapidamente] se alongou da vista. O coração me doeu tanto então em ver tão asinha morto
quem dantes tão pouco havia que vira estar cantando, que não pude ter as lágrimas.
Certamente que por cousa do mundo, depois que perdi outra cousa, me não pareceu a mim
que assim chorasse de vontade; mas em parte este meu cuidado não foi em vão, porque ainda
que a desventura daquela avezinha fosse causa de minhas lágrimas, lá ao sair delas foram
juntas outras muitas lembranças tristes. Grande pedaço de tempo estive assim embargada dos
meus olhos, [10] en|tre os cuidados que muito havia que me tinham já então, e ainda terão até
que venha o tempo que alguma pessoa estranha, de dó de mim, com as suas mãos cerre estes
meus olhos, que nunca foram fartos de me mostrarem mágoas de si. E, estando assim olhando
para onde corria a água, ouvi bulir o arvoredo. Cuidando que fosse outra cousa, tomou-me
medo. Mas olhando para ali vi que vinha uma mulher e, pondo nela bem os olhos, vi que era
de corpo alto, disposição boa, e o rosto de dona, senhora do tempo antigo; vestida toda de
preto, no seu manso andar e meneios seguros do corpo e do rosto e do olhar, parecia de
acatamento. Vinha só, na semelhança [= aspecto] tão cuidadosa, que não apartava os ramos de
si, senão quando lhe impediam o caminho, ou lhe feriam o rosto. Os seus pés trazia por entre
as frescas ervas, e parte do vestido estendido por elas. E entre uns vagarosos passos que ela
dava, de quando em quando colhia um cansado fôlego, como que lhe queria falecer a alma.
Sendo acerca de mim e me viu, ajuntando as mãos (à maneira de medo de mulher) um pouco
como que vira cousa desacostumada, ficou. E eu também assim estava, não de medo, que a
sua boa sombra [= aspecto] logo me o não consentiu, mas da novidade daquilo que ainda ali
não vira, havendo muito que por meu mal tinha continuado aquele lugar e toda aquela ribeira
[= margem]. Mas não [11] esteve ela muito que, parece conhecendo também como eu estava,
173

com uma boa sombra começou a dizer, vindo contra mim:


7. — Maravilha é ver donzela em ermo depois que a minha grande desventura levou a
todo o mundo o meu.
8. E daí a grande pedaço, misturado já com lágrimas, disse:
9. — Filho!
10. Depois, tirando um lenço, começou a limpar o rosto, e a chegar-se para onde eu
estava. Levantei-me eu então, fazendo-lhe aquela cortesia, que me ela com a sua e consigo
mesma obrigava. E ela:
11. — O descostume grande — me disse — que há grande tempo que vivo neste ermo
de ver pessoa alguma me faz, senhora, desejai saber quem sois e que fazeis aqui, ou que
viestes a fazer, formosa e só.
12. Eu que um pouco tardava em lhe responder, pela dúvida em que estava do que lhe
diria (parece-me que entendendo-me ela).
13. — A mim podereis dizer tudo — me tornou — que eu sou mulher como vós e,
segundo vossa presença, vos devo ainda ser muito conforme [= semelhante], porque me
parece (agora que vos olho de mais perto) que deveis ser triste, que vossos olhos têm vossa
formosura desfeita, e ao longe não se enxergava.
14. — Pareceis vós logo ao longe — respondi eu — o que sois ao perto. E não vos
saberia negar cousa em que de mim vos servísseis, que os vossos [12] tra|jos e tudo o que vos
eu olho vem cheio de tristeza, cousa a que eu sou há muito tempo conforme. E porque posso
mal encobrir o senhorio que eu mesma às longas mágoas sobre mim tenho dado, não me
quero rogar, mas antes vos devia ainda de agradecer quererdes saber de mim o que quereis,
para ser ao menos meu mal escuitado alguma hora.
15. — Pois dizei-mo, — me tornou ela — que ficardes-me devendo ouvir-vos eu, nova
maneira é também de me obrigardes. Mas assim me pareceis vós que, de vos ser obrigada,
folgo muito ainda.
16. Satisfazendo-lhe eu então, disse:
17. — Fui uma donzela que neste monte da banda de além deste ribeiro pouco há que
vivo, e não posso viver muito; noutra terra nasci; noutra, de muita gente, me criei, donde vim
fugindo para esta despovoada de tudo, senão de só as mágoas que eu trouxe comigo. Este vale
por onde correm estas águas claras que vedes, os altos arvoredos de espessas sombras sobre a
verde erva, as flores que por aqui aparecem e a seu prazer se estendem, ribeiras desta água
fria, doces moradas e pousos das sós deleitosas aves, são tão conformes a meus cuidados, que
o mais do tempo, que o sol assegura à terra, passo aqui; que, em que me vejais só,
acompanhada estou. Muito há que tenho andado este caminho: nunca vi senão agora a vós. A
grande saudade deste vale e de toda esta terra por aqui derredor me faz ousar vir, assim
mulher (formosa bem vedes já que não) e pois não tenho armas para [13] ofender, pera me
defender já para que me seriam necessárias? A toda parte posso já ir segura de tudo, senão só
de meu cuidado, que não vou a nenhum cabo que ele não vá após mim. Agora dantes estava
eu aqui só, olhando pera aquele penedo, mas tirando eu então dali como estava anojando [=
contrariando] aquela água, que queria ir seu caminho, ante os meus olhos, sobre aquele ramo
que a cobre, se veio pôr um rouxinol docemente cantando. De quando em quando parecia que
lhe respondia outro lá de muito longe. Estando ele assim no melhor do canto, caiu morto
sobre aquela água, que o levava tão asinha, que o não pude eu ir tomar. Camanha mágoa me
cresceu disto, que me acordei [= recordei] de outras minhas, de que também grandes desastres
causa foram, e levaram-me onde me eu também não podia ir tomar.
18. A estas palavras se me arrasaram os olhos de águas e fui com as mãos a eles.
19. — Isto, senhora, fazia quando vós aparecestes, e o faço as mais das vezes: porque
sempre eu choro ou estou para chorar.
20. Eu, que lhe tinha já respondido, detive-me um pouco cuidando como lhe perguntaria
outro tanto dela, maiormente [= principalmente] da causa que foi das suas lágrimas, quando
174

não pôde senão muito tarde dizer: filho! Ela, cuidando que porventura eu não queria dizer
mais disse:
21. [14] — Bem se vê nisso, senhora, que sois doutra parte e há pouco que estais nesta,
pois dos desastres que neste ribeiro acontecem vos espantais. Cá uma história, muito falada
nesta terra por aqui derredor, muito há que aconteceu; lembra-me, menina, e ouvia-a já então
contar a meu pai por história. Agora ainda folgo de cuidar nela pelos grandes acontecimentos
e desventuras que nela houve. E ainda que nenhum mal alheio possa confortar o próprio de
cada um, parte de ajuda me é saber para o sofrimento, que antigo é fazerem-se as cousas sem
razão e contra razão. De boa vontade, pois parece ainda que a não ouvistes, vo-la contarei;
que segundo entendo devem-vos dar prazer as cousas tristes, como me vós a mim dizeis.
22. — O sol — lhe respondi eu — vai alto, e eu folgaria muito de a ouvir, pela ouvir a
vós, e depois por saber como não busquei embalde esta terra para minhas tristezas, pois tanto
há que se costumam nela. Outra cousa, senhora, vos quisera eu agora perguntar; mas fique
para depois, que para tudo haverá tempo, ainda que pois a história dizeis que é de tristezas,
não poderá durar tão pouco como o dia.
23. — Os dias são agora grandes — me tornou ela e não poderão eles nunca ser tão
pequenos, que vos eu a todo meu poder não fizesse a vontade neles; ainda sou, senhora,
pagada de vós [= saldarei a dívida]: mas olhai o que quereis antes.
24. — Porque é cousa em que vós folgais ainda [15] agora de cuidar — lhe respondi eu
— não pode ser pouco para desejar de ouvir; fique o que eu dantes quisera para depois ou
para sempre [= para nunca mais]; que só de o eu querer lhe deve vir isto. Não tomeis [= tirar
conclusão] de aqui que eu não folgarei de ouvir a história, porque isto pudera ser se não fora
de tristezas para que eu vou achando já agora o tempo curto, tanto folgo com ela; por isso
contai-a, senhora, contai-a, pois é de tristezas; gastaremos o tempo naquilo para que me
parece que vo-lo deram, a vós e a mim.

[40] CAPÍTULO VIII


De como a Belisa vieram em crescimento as dores do parto e,
parindo uma criança, faleceu.

25. Vinda a noite, repousando já todos, Belisa se começou a agastar levemente. Mas,
crescendo-lhe a dor cada vez mais, houve de chamar por sua irmã. Acordando ela, que perto
em uma cama dormia, lhe contou Belisa de como a dor lhe ia em crescimento. A senhora
Aónia (que assim se chamava a irmã) acordou as mulheres de casa e uma dona honrada que
de parteira sabia muito, e para isso a trouxera Lamentor, porque, quando já partira, Belisa era
prenhe; e, senão fora porque se não podia já encobrir, não a trouxera ele assim a terras
estranhas. Mas na necessidade o amor não achou outro melhor remédio que desterro. Belisa,
que a Lamentor queria sobre todas as cousas do mundo, disse escontra as outras, que a
ajudassem a tirar do leito em que jazia para a camilha de sua irmã, pelo não acordarem, que
estava cansado do caminho. Assim se fez o mais manso que puderam. Grã parte da noite
passaram em fazer remédios para a dor de [41] Belisa; mas a senhora Aónia, que via sua cada
vez com mais agastamento:
26. — Quereis, senhora irmã, lhe disse, que chamemos meu irmão?
27. — Para tomar paixão, lhe disse ela, não o chameis vós, que prazerá a Deus que se
me irá esta dor; e isto ao menos ganharemos dela.
28. — Assim praza a Deus — falou a. dona honrada de acolá donde estava — porque
não me perece nenhum sinal, senhora, de parirdes tão cedo; deve ser isto do caminho ou
mudança da terra. Porém era já manhã quase e a dor não amansava, antes se fazia maior e
começavam-lhe vir uns agastamentos e desmaios ao coração. A primeira vez que lhe isto veio,
suportou-o ela e a outra vez também; mas quando veio a terceira, em camanho crescimento
175

lhe veio, que lhe tolheu a fala um pouca. Tornando ela em si, olhou pela sua irmã, dizendo-lhe
que já agora lhe pesara de o não chamarem. E porque nisto se começou a sentir melhor,
tornou asinha escontra sua irmã, que já ia para o chamar, dizendo:
29. — Mas não no chameis, que parece que me acho melhor.
30. Um pedaço grande esteve então Belisa desagastada. E, porque uma rica camisa que
tinha vestida estava mal tratada dos remédios que sobre o coração lhe punham, escontra as
mulheres disse:
31. — Vistam-me a mim outra camisa, que se morrer, não vá sequer assim.
32. A senhora Aónia se pôs a. chorar com estas palavras. E olhando para ela Belisa lhe
vieram as [42] lá|grimas aos olhos e, querendo-lhe dizer alguma coisa a dor não a leixou, que
então começou mais apertadamente que dantes. Aquela dona honrada, que a via mais agastada
que nunca, disse que seria bom erguerem-na de todo. E querendo-a sua irmã tomar por um
cabo, se virou Belisa a ela dizendo-lhe:
33. — Não sei que há-de ser isto.
34. Mas camanbos foram os agastamentos e tão apressados que não houve aí acordo
para a erguerem de todo, e ficou como assentada. E enfim foi assim a desaventura que em
breve espaço a pôs no extremo da morte e que já a ela lhe ia falecendo a fala. Levantando os
olhos para sua irmã, como forçadamente, disse:
35. — Chamem-no, chamem-no.
36. Foi a senhora Aónia, rijo chorando, chamar Lamentor, que no mais alto sono
dormia, dizendo-lhe:
37. — Acordai, senhor; acordai, que vos levam Belisa.
38. Ergueu-se apressadamente Lamentor, levando a mão a um terçado que a par da
cabeceira tinha. Mas vendo chorar todos derredor da cama de Aónia, e Belisa, a que tinham
erguida até os peitos, como passada deste mundo, abraçando-a se chegou para ela, dizendo:
39. — Que cousa foi esta, senhora?
40. E as lágrimas lhe enchiam com estas palavras todo o rosto seu e dela. Levantou
então Belisa cansadamente uma mão, caiu a manga da camisa tomada, para lhe alimpar os
olhos; mas não [43] seguin|do ela. já a vontade, se lhe leixou tornar a cair para baixo. E ela
pondo os olhos fitos nele:
41. — Não mais... — disse. — Para sempre!... — e daí os foi cerrando vagarosamente,
como que lhe pesava de o leixar assim.
42. Lamentor, que isto não pôde ver, caiu doutro cabo como morto, e assim esteve um
grã pedaço. Neste meio tempo, ouvindo a dona honrada chorar uma criança na cama e
cuidando o que era, atentou e achou uma menina nascida que chorava muito. E tomando-a
então nos braços (com os olhos não enxutos) disse assim:
43. Ó coitadinha de vós, menina, que, chorando vossa mãe, nasceis. Como vos criarei a
vós, filha estrangeira, em terras estranhas? Mal vá ao dia que assim saímos do mar para passar
toda a tormenta na Terra!
44. Mas como sabia o que era, ordenou de a curar, tomando o negócio todo sobre si: que
Lamentor e a irmã, bem via que outro mor carrego tinham. E assim mandou o que se havia de
fazer, e proveu sobre tudo.

[44] CAPÍTULO IX
Do pranto que Aónia fez pela morte de sua irmã Belisa.

45. A senhora Aónia, lembrando-lhe do que vira fazer à dona viúva sobre o corpo de seu
morto irmão, que o devido costume ao tempo do luto lhe parecia então, posto que em sua terra
se não usasse, pondo-se sobre o corpo de sua irmã; rasgando os toucados dos seus formosos
cabelos, que longos eram à maravilha, a cobriu toda e também a Lamentor, que ela também
cuidou que era falecido, que, pelo grande bem que ele queria a sua irmã, leve lhe foi isto de
176

crer, vendo-o da maneira que via. Depois de muito cansada, em alta e dorida voz, começou
por estas palavras:
46. — Triste de mim, donzela, de pouco tempo desamparada em terra alheia, sem
parente e sem ninguém e sem prazer. Como vós, senhora irmã, me pudestes leixar só, tão
longe, em tal lugar? Para vos tirar a saudade me dizíeis vós que vinha eu cá; e vós para ma dar
a mim vínheis, malaventurada de mim! Para outras fadas cuidava eu que me criava a mim
minha mãe, e ela foi a enganada, [45] e eu a que hei-de pagar agora o engano. Que sem-razão
camanha, senhor cavaleiro, me é feita diante de vós! E de quantas donzelas de vós foram já
emparadas, eu só estava para o não ser! Coitada de mim, que farei, onde me irei?
47. E assim se lançou sobre o corpo de sua irmã. Mas, ao mentar do cavaleiro que ela
fez, Lamentor a ouviu como por sonhos e, tornando em si que viu diante tantas mágoas, ficou
sem fala um pouco e, vendo logo como se matava, toda a senhora Aónia, esforçou-se para a ir
ajudar, que tão cruelmente se não matasse, dizendo:
48. — Esforçai, senhora, pois a fortuna quis que um tão desconsolado vos console.
49. E foi-a a erguer; e, querendo-lhe falar, lhe faleceu a fala.
50. Ali houveram ambos mui triste pranto. e entre si se diziam um ao outro palavras de
muita mágoa, começadas pela dor, rotas pelo pranto. E era já manhã clara. Acertou assim que
àquela hora chegava um cavaleiro à ponte e vinha de longes terras buscar aquela aventura por
mandado de uma senhora que lhe queria bem a ele: mas ele a ela devia-lhe mais do que lhe
queria. Não achando ninguém na ponte e ouvindo perto dali tão grã pranto, pareceu-lhe algum
mistério ou cousa alguma de dor: e deu a andar para onde era e, vendo uma rica tenda e
ouvindo muita gente dentro e fora chorando; perguntou a um servidor, que topou, [46] que
cousa era aquela; e ele lho contou. E apeando-se ele então (mandando primeiro diante ao
escudeiro de Lamentor) muito mesurado e humildemente entrou após ele. E entrando, que viu
a senhora Aónia, que em grande extremo era formosa, soltos os seus longos cabelos que toda
a cobriam, e parte deles molhados em lágrimas, que o seu rosto por alguma parte descobriam,
foi logo trespassado do amor dela, sem haver quem por parte doutrem fizesse defesa alguma:
que como o amor viesse juntamente com a piedade, parecia que vinha só; mas tanto que se
descobriu, eram já conhecidas tantas razões por parte da senhora Aónia, que não tão somente
lhe esqueceu a outra, mas não lhe lembrou mais, senão para lhe pesar do tempo que gastara
em seu serviço. Nesta maneira foi ele preso do amor da senhora Aónia, e depois veio a morrer
por ela. Este foi um dos dois amigos de que é a nossa história. E por isto soía meu pai dizer
que tornara o amor deste cavaleiro a morrer na paixão onde se levantara. Mas para isto seu
tempo lhe virá.

[47] CAPÍTULO X
De como Narbindel, vindo-se combater com o cavaleiro da ponte, vendo o pranto
que se fazia na tenda de Lamentor, entrou dentro ao consolar.

51. Dito era já a Lamentor como o cavaleiro entrara, mas ele não no viu senão quando já
o achou a par de si, dizendo-lhe palavras de consolação. Lamentor as recebeu dele o melhor
que pôde, mais por lhe não dar causa de se deter muito, que por estar para isso. Mas depois de
estarem um pouco, vendo Lamentor como ele não fazia menção de se ir, forçadamente lhe
disse:
52. — Senhor cavaleiro, a vossa visitação vos tenho em mercê. Prazerá a Deus que em
outra mais alegre vo-la pague. Nós vimos de caminho, como sabereis, as pousadas não são
mores do que vedes; não há aí outra casa senão esta, pequena para a tristeza e para nós.
Deveis-vos, senhor, ir para onde íeis; não tomareis ao menos parte de tanto nojo, porque as
mágoas alheias também doem a quem as vê. Perdoai-me que não tenho agora outra cousa em
que vos sirva vossa boa vontade.
53. O cavaleiro, passando, pôs os olhos na senhora Aónia.
177

54. — Eu não tenho donde ir daqui — lhe disse.


55. [48] E parece que lembrando-lhe que a havia de leixar, caíram-lhe umas ralas
lágrimas pelos peitos. Mas, como ele visse que ali não tinham mais que aquela tenda e outra
pequena, bem lhe pareceu que não podia caber naquele tempo ali gente estrangeira, ainda que
ele no seu coração já o não era. Erguendo-se então, seguiu sua fala dizendo:
56. — Deste nojo, senhor, não me pode a mim caber já pequena parte por onde quer que
vá; de boa mente vo-lo ajudara a passar; mas enfim vós, senhor, cavaleiro sois, e mais pois
vindes de longe terra (como soube de um servidor vosso) não deve ser este o primeiro que
tendes visto, porque, nas suas mesmas terras, os que nunca se mudam delas não se podem
escusar de ver nojo cada dia e cada hora do dia.
57. Dizendo-lhe mais que visse o que lhe mandava, se despediu dele. com os olhos
postos na senhora Aónia; e assim foi um pouquichinho, que a tenda não lhe deu mais lugar.
Mas quando se houve de virar todo, com muita dor sua, os arrancou dali. Assim se saiu da
tenda, e assim o leixaremos para seu tempo.

[49] CAPÍTULO XI
De como se deu sepultura ao corpo de Belisa, e do pranto que
com ele fez Lamentor.

58. Lamentor se tornou a seu pranto, que muita causa tinha para ele. Mas estando ele e a
irmã assim por um grande espaço de tempo, que ia já o Sol contra o meio-dia, a dona honrada
(que ama se chamou depois pela criação da menina) como era já de dias, era de muito saber, e
chegando-se para onde ambos estavam no seu pranto:
59. — Senhores, — começou a dizer — para o pranto muito tempo nos ficará, que a
desaventura. Parece que é nesta terra como na nossa. Leixai as lágrimas que não é agora
tempo para vós, senhor, não parecerdes cavaleiro, nem vás, senhora, para parecerdes tanto
mulher. Lembre-vos que a tristeza é de todos, que camanho mal foi o nosso que não tão
somente o hemos de ter, mas ainda nos havemos de consolar uns aos outros. E, pois temos a
dor para sempre, doamo-nos sequer como de nós que ficamos vivos. A sepultura é devida aos
mortos, hão-se de fazer as cousas necessárias. Olhai que é o derradeiro dom da vida. Termos o
corpo da senhora Belisa mais sobre a terra parecerá fazermo-lhe força no mais pouco de sua
partida. [50] E porventura se deve ela anojar negarmos-lhe o seu, quando não nos há-de pedir
mais em outra cousa.
60. Acabadas estas palavras, que não foram ditas sem muita dor de todos, tomou ela a
senhora Aónia como sobraçada, e a levou para a tenda pequena, que chegada àquela estava. E
daí tomou por Lamentor, e também o ajudou a ir para lá; e depois entendeu em concertar o
necessário. Mas Lamentor não quis que levassem o corpo de Belisa para outra parte, antes
mandou que ali, onde falecera, fosse a sua sepultura: porque logo assentara em sua vontade de
nunca mais, enquanto vivesse, se mudar daquele lugar. E assim o fez. E porque nos reinos
donde eles vinham se costumava, antes que mandassem os corpos mortos à terra, virem todos
os parentes a beijarem-nos nas faces, e os familiares nos pés, e o parente mais chegado por
derradeiro de todos (parece que faziam aquilo como saudação, porque aquela transmigração
fosse como em boa hora) como tudo foi acabado, a ama, veio chamar a Lamentor e a senhora
Aónia, que foi rijo lançar-se sobre as faces de sua irmã. E, beijando-a muitas vezes, levantou a
voz dizendo:
61. — Noutra terra muitas tivéreis vós que fizeram isto mais que nesta.
62. E aqui começou a rasgar o seu formoso rosto, e todas alevantaram um triste pranto à
maravilha. Cada um lembrava a sua dor, e assim a iam beijar nos pés. Lamentor, a quem mais
doía onde ainda nunca outra cousa lhe doem, depois de muitos [51] suspiros arrancados de
alma, olhando pelo que devia fazer pelo costume, desta maneira disse:
178

63. — Senhora Belisa, como vos hei-de saudar eu? Por mim leixastes vós vossa mãe,
vossa terra, vossos amigos e parentes; quem vos pode apartar de mim em terras estranhas para
me fazerdes tão triste? Não me quereis vós a mim camanho bem? Como me leixastes só? Mas
alguma desaventura me houve inveja, que o que me vós fazíeis para ser o mais ledo cavaleiro
do mundo, para eu ser o mais enojado o fazeis vós. Malaventurado cavaleiro, que para vós,
senhora, estava ordenado uma sepultura em terra alheia, e para minha vida duas: mas a vossa
terá o corpo; e a minha, vida e alma. Não era mais rijo, senhora, o fio que nos a nós tinha a
ambos? Como o cortastes vós sem mim? Não vos lembrou que era eu o que vos não havia de
ver mais? Mas pedistes, senhora, me disseram, que vos levassem de a par de mim por me não
tirarem do repouso. e outrem tirava-mo estando a furto de vós. Não abastou a minha
desaventura haver de ser a mais triste do mundo, mas ainda a maneira de como me veio o
havia também de ser? Não me chamaram senão para vos não ver; e ainda então vos doestes de
mim, que quiséreis alimpar-me as lágrimas, e a minha desaventura não queria. Faleceu-vos a
mãe, como que vos leixava sendo já senhora da vontade a morte, e com os olhos derradeiros
postos em mim me fostes mostrando que com a alma se vos ia [52] tam|bém a vontade. Mais
devidos eram os meus anos a este vosso caminho, mas mais o era eu às tristezas. E pois fico
para elas, o melhor é ficar sem vós. E com isto compriu o costume. Mas a ama, que via não
haver aí outrem sobre quem carregasse o cuidado das honras derradeiras senão nela,
arredando a Lamentor e a senhora Aónia, tomou uma rica toalha nas mãos, e lançando-a por
cima do rosto de Belisa:
64. — Agora jamais, disse, vos cumpre olhar para o céu onde ela bem-aventuradamente
está, que isto é terra. Quem a amar, pois já ela a leixou, parece que errará ao bem que lhe
quiser.
65. Palavras eram estas de muita consolação, se soubera a dor presente consolar-se. Mas
assim a enterraram.
66. Leixemos aqui as cousas de Lamentor (que foram muitas e extremadas que ele fez,
pelo muito que a Belisa queria) porque como este conto seja dos dois amigos, agravo se lhes
fará, ao muito que deles há para dizer, gastar-se noutrem parte alguma do tempo..

[53] CAPÍTULO XII


Do que sucedeu ao cavaleiro que saiu da tenda, vencido do parecer
e fermosura da senhora Aónia.

67. Torno-vos ao cavaleiro que saiu da tenda tão triste, que não pôde alongar-se muito
dali, e, apeando-se, assentou-se ao pé de um freixo que acerca daquele ribeiro e da ponte
estava; e por cuidar mais à sua vontade mandou ao seu escudeiro, arredado dali, que desse de
comer ao seu cavalo ribeira daquele rio: que logo se temeu de o ele ver assim, e cair em
alguma suspeita que fosse contar a Cruélcia (que era aquela por quem viera ali, como ou-
vistes) porque muito lhe eram todos os seus afeiçoados; que como ela quisesse a ele muito
grande bem, a eles não se podia ter que lho não mostrasse tudo em as obras. Donde nascia
irem lhe eles dizer e contar tudo o que ele passava, assim que o que ele fazia por bem lhe saía
às vezes em mal, que para [54] camanho bem lhe ela queria, não podia leixar de ouvir pelo
tempo cousas que a magoassem, nem também ele não as podia leixar de fazer, pelo pouco que
lhe queria. Como de feito, assim por derradeiro, lhe foi isto causa a ele de triste fim. Mas
assentado o cavaleiro ao pé do freixo, esteve por longo espaço revolvendo muitas cousas na
fantasia. E, quando se lembrava do que a Cruélcia devia, parecia-lhe sem razão leixá-la: por
outra parte, lembrando-se de quão bem lhe parecera Aónia, parecia-lhe desamor não lhe
querer bem. Tinham-no assim entre ambas, formosura e obrigação, a ver quem o levaria: mas
179

por derradeiro pôde mais o de mais perto. Soía dizer meu pai que fora vencida a obrigação,
como cousa que lhe não vinha de direito o pago no amor, e vencera a formosura, como de
quem de só o amor, se pagava.

Texto BERNARDES, José Augusto Cardoso. A novelística sentimental. In: CARVALHO,


18 João Soares et alii. História da Literatura Portuguesa: Renascimento e Maneirismo.
Lisboa: Alfa, 2001. v. 2, p. 448-453.

[448] As circunstâncias da enunciação

1. Em termos de estrutura, o texto da Menina e Moça (considerando apenas, pelas


razões apontadas, aquele que é comum à edição de Ferrara e ao manuscrito Asensio)
apresenta quatro grandes sequências narrativas que [449] integram / por encaixe, outras
unidades de menor dimensão. Pode, assim, falar-se de uma primeira sequência protagonizada
por uma narradora feminina desterrada que, depois de presenciar a morte de um rouxinol que
dialogava com outro (episódio que constitui, por sua vez, uma microssequência de importante
alcance sintáctico e semântico), encontra uma dona de tempo antigo que assume, a partir
desse momento, a enunciação narrativa. É sob a sua responsabilidade enunciativa que
decorrem as outras três grandes sequências: uma protagonizada por Lamentor e Belisa, que
termina com a morte desta; outra por Aónia e Binmarder, que conclui com o casamento
forçado da primeira e o desaparecimento do segundo, e, por último, uma sequência em que
Arima (filha de Lamentor e de Belisa) recusa a corte de Avalor e renuncia à vida do Paço,
obrigando mais um cavaleiro (cavaleiros são também Lamentor e Binmarder) à dispersão.
Temos, assim, dois níveis distintos de narração e duas narradoras, embora exista
comunicabilidade entre ambos: num primeiro nível, a narradora fala essencialmente de si
própria e, num segundo, a narradora fala de histórias alheias que lhe haviam sido confiadas.
2. A narração das duas mulheres enquadra-se num tempo ulterior em relação aos
eventos narrados — a primeira mulher refere inicialmente um acontecimento distante no
tempo e no espaço: «Menina e Moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe.»
Essa distância é, aliás, sublinhada pelo desconhecimento, no passado, das causas do desterro.
Na medida em que só o decorrer do tempo permite a apreensão da sua lógica, só no presente
se podem conhecer as causas do passado (p. 55) 274: «Que causa fosse então daquela minha
levada, era ainda pequena, não a soube. Agora não lhe ponho outra senão que parece que já
então havia de ser o que depois foi.»
3. Ainda mais ulterior é a narração da dona de tempo antigo, se considerarmos que, à
excepção de alguns acontecimentos ocorridos consigo própria (narrados de forma esparsa),
ela conta histórias ouvidas a seu pai.
4. Esta primeira sequência serve, pois, para caracterizar as narradoras sintonizadas na
desdita e na interpretação que dela fazem, para definir o tempo da enunciação, demarcando-o
do tempo do enunciado, e para enquadrar a narração num espaço adequado: um local ermo,
perto de um rio onde outrora tinham decorrido os casos que a dona irá contar. Dessa forma, o
espaço mantém uma relação de clara contiguidade com o próprio tempo que corre e avassala
os desejos humanos (as águas arrastam o corpo do [450] rouxinol juntamente com as folhas
que com ele solidariamente haviam caído), além de representar a possibilidade de encontro
(ou de reencontro) de personagens irmanadas pelo infortúnio.
5. Trata-se de uma situação enunciativa que faz lembrar os diálogos bucólicos: o espaço
ermo, a confissão das desditas por parte do enunciador mais novo e as estratégias
empreendidas pelo enunciador mais experiente e que neste caso se traduzem na narração de

274
As citações do texto da Menina e Moça reportar-se-ão sempre à edição de Teresa Amado [Lisboa:
Comunicação, 1984].
180

histórias de amor inconseguido por acção do destino ou da sociedade, para consolo do


interlocutor. E também, como muitas vezes sucede nas éclogas, assistimos a um diálogo
cooperante, ou seja, semanticamente coincidente. Apenas as circunstâncias temporais afastam
as interlocutoras: uma, embora mais nova, passou já a juventude — «Molher fermosa bem
vedes que o não sou já...» (p. 66) —, e a outra, a dona de tempo antigo, é mãe lutuosa
avançada no tempo e nos desgostos, e com sinais evidentes de desgaste físico e psicológico
{p. 64): «E antre uns vagarosos passos que ela dava, de quando em quando colhia um cansado
fôlego, como que lhe queria falecer a alma...»
6. A idade traduz-se, assim, num saber que vai ser actualizado em termos de enunciação
narrativa.
7. Abundam os indícios de uma sintonia completa, facto que, só por si, facilita e
potência o diálogo (p. 65): «Podeis dizer tudo — me tornou — que eu sou molher como vós, e
segundo sigo vossa presença, vos devo ainda ser mais conforme porque me pareceis triste.»
8. Além das circunstâncias, impõem-se, pois, desde logo, dois tipos de afinidade que
vão aparecer, doravante, sempre fundidas: o ser mulher e o ser triste. Ao contrário do que
acontece em outros textos de enunciação feminina (lembremo-nos das cantigas de amigo), no
caso da Menina e Moça verifica-se também a instauração do ponto de vista feminino. Este
facto, longe de ser uma mera casualidade, assume os contornos de um verdadeiro princípio
estruturante, já que nada do que é dito pode ser interpretado sem se ter em conta que a fonte
enunciativa é sempre uma mulher. E isto quer consideremos a dona, narradora de um segundo
nível (intradiegético), quer [451] consideremos a mulher mais jovem, que não chega a contar
a sua própria história e problematiza inicialmente a natureza do livro e os seus efeitos nos
potenciais leitores. Assim se compreende a selecção dos destinatários da escrita. O amigo
ausente em primeiro lugar (p. 60):

Das tristezas não se pode contar nada ordenadamente porque desordenadamente


acontecem elas, e também por outra parte não se me dá não o lea [leia] ninguém,
que eu não o faço senão para um só, ou para nenhum, pois dele, como disse, não
sei parte tanto há.

9. E seguem-se, por ordem de prioridades, as mulheres. Embora retoricamente lhes


desaconselhe a leitura, a narradora admite que também elas estarão em condições de o
entender (p. 58):

Os tristes o poderão ler, mas aí não os houve mais depois que nas mulheres houve
piedade. Nas mulheres, sim, porque sempre nos homens houve desamor. Mas para
elas não o faço eu, que, pois que o seu mal é tamanho que se não pode confortar
com outro nenhum, é para as mais entristecer. Sem razão seria querer eu que o
lessem elas, mas antes lhes peço muito que fujam dele e de todalas cousas de
tristezas.

10. Configura-se, portanto, desde o início uma oposição entre o que poderíamos
designar por paradigma masculino, caracterizado por um grau mais reduzido de sensibilidade,
e um paradigma feminino, marcado pela sensibilidade e pelo estigma da tristeza. Deve notar-
se, porém, que, ao contrário do que parece, os dois paradigmas não são absolutamente
incomunicáveis: o caminho ascensional do primeiro para o segundo é percorrido por várias
personagens masculinas, a começar pelo próprio amigo da menina, apto a compreendê-la no
momento da separação. E é útil assinalar que a compreensão, enquanto fusão de consciências,
é, no universo bernardiniano, uma das principais componentes da felicidade. Assim se explica
a sistemática intervenção do destino no momento da compreensão (p. 58-59):
181

Meu amigo verdadeiro, quem me vos levou tão longe? Que vós amigo e eu
convosco, sós soíamos passar nossos nojos grandes, e tão pequenos como os de
despois! A vós contava eu tudo. Como vós vos fostes, tudo se tornou tristeza, nem
parece ainda senão que estava espreitando já que vos fôsseis.

11. Mas o carácter preditivo desta sequência é ainda reforçado pela presença funcional
de alguns símbolos. De entre estes merece destaque a morte do [452] rouxinol, cuja
importância é desde logo denunciada pelo facto de ser narrado duas vezes. Na primeira vez, a
mulher assiste ao acontecimento e a narração é praticamente simultânea e, da segunda vez,
trata-se de uma evocação feita perante a dona, complementada com alguns pormenores antes
omitidos. Aí se diz que se trata de um diálogo entre dois rouxinóis separados pelo espaço (p.
67): «De quando em quando parecia que lhe respondia outro lá muito longe [...]». sublinha-se
o tom lamentoso do canto (p. 63): «E ele cada vez cre[s]cia mais em seus queixumes [...]», o
carácter súbito e inexplicado da morte da ave (p. 63): «[...] estando-se assi queixando, não sei
como, caío morta sobre a ágoa.», a simpatia da Natureza, simbolizada pela queda das folhas
(p. 63): «[...] e caindo por entre as ramas, muitas folhas caíram também com ela.» e,
finalmente, a frustrada tentativa da mulher que presenciara a cena para recolher o rouxinol. O
malogro dessa tentativa deve-se, significativamente, à grande força da corrente e à rapidez
com que tudo acontece (p. 63): «Quisera-a eu tomar, mas por a corrente que ali fazia grande, e
por o mato que dali para baixo acerca do rio logo estava, prestesmente se me alongou da
vista.»
12. A importância do episódio é também reforçada pelos efeitos que provoca na
memória da narradora (p. 63):

Certo que por cousa deste mundo, depois que eu perdi outra cousa, não me
pareceo a mim que chorasse assi de vontade. Mas em parte este meu cuidado não
foi em vão porque, ainda que por a desaventura daquela avezinha fossem causadas
minhas lágrimas, lá ao sair delas foram juntas outras minhas lembranças tristes.

13. [453] Parece tratar-se, em clave simbólica, de uma síntese antecipada de toda a
trama novelesca. A separação forçada e inexplicada de dois seres que se entendem (isso quer
dizer, em Bernardim, que se amam) por força de entidades poderosas contra as quais qualquer
tentativa de resistência se revela vã. Este é, basicamente, o travejamento fabular de toda a
novela.
14. Na Menina e Moça, porém, a importância do dizer ultrapassa a importância do
acontecer e revela-se fundamental averiguar os pressupostos éticos em que assenta a acção
que, em st é relativamente simples. Longe de se revelarem enunciadores neutros, a dona de
tempo antigo e a mulher que com ela se encontra à beira do ribeiro interrogam os
acontecimentos tentando descobrir-lhes as causas e coincidindo de forma invariável na
interpretação que deles propõe.

Texto SARAIVA. José Hermano. Introdução. In: RIBEIRO, Bernardim. Menina e Moça.
19 Lisboa: Europa-América, 1996. p. 9-13.

[9] Que é a «Menina e Moça»?

1. Não existe em Portugal nenhuma obra semelhante, o que torna muito difícil
classificar, ou incluir dentro de um determinado género, o livro de Bernardim.
2. Essa dificuldade é agravada por um outro facto: a Menina e Moça não constitui uma
unidade (nem do ponto de vista do tema, nem do ponto de vista da forma literária), parecendo
182

antes resultar da adição de várias partes, cada uma das quais pertencentes a seu género.
3. Penso que se devem distinguir:

a) O romance de Belisa e Lamentor;


b) O romance de Aónia e Binmarder;
c) O romance de Arima e Avalor;
d) As aventuras de Avalor;
e) O romance de cavalaria da edição de Évora.

4. a) O romance de Belisa e Lamentor compreende a introdução (formada pelo


monólogo da Menina, morte do rouxinol e encontro com a velha senhora, dona do tempo
antigo) e os dois episódios da morte do cavaleiro da ponte e da morte de Belisa. É a parte
mais notável do livro e a ela se deve que a obra se tenha justamente celebrizado. A
diversidade dos temas não prejudica a unidade profunda de toda esta primeira parte, cujo
verdadeiro pensamento é o do absurdo da vida e da morte, da inanidade do esforço humano
perante a força inexorável do destino. A linguagem utilizada é diferente da de todas as partes
seguintes; dir-se-ia que, nestas últimas, há uma imitação voluntária do modelo, mas que o
estilo inicial se vai progressivamente desnaturando A linguagem vale sempre mais pelo que
sugere que pelo que explicita; tudo — natureza e acções — está impregnado de subjectivismo
e de simbolismo. As anotações intercaladas no diálogo têm uma riqueza psicológica que
depois não volta a ser atingida. Toda a realidade é vista a partir de dentro: nunca há relato,
sempre meditação.
5. A narradora é uma jovem que se refugiou na solidão e que dialoga com uma outra
mulher, representante de um outro tempo. São portanto vozes femininas as que escutamos.
Mas essas vozes não se limitam a falar como se fossem de mulher. A sensibilidade, o critério
no julgamento das cousas, a escala de valores de harmonia com a qual julgam, são
profundamente femininos. O leitor chega a ficar perplexo perante tão espantosa capacidade de
fingimento. E a perplexidade aumenta quando verifica que, nas partes seguintes, essa
veracidade desaparece e se torna bem clara a atitude masculina por detrás da expressão
feminil.
6. b) O romance de Aónia e Binmarder inicia-se com o pranto sobre a morte de Belisa.
É curioso verificar que este pranto repete, como uma glosa, tudo quanto se escreveu no
episódio glosado; dir-se-ia que o autor, deslumbrado, repete o que acaba de ler. Mas o estilo
perdeu a tonalidade elegíaca, plangente. A frase é mais denotante, a conotação menor. A
acção é cada vez mais descrita pela acção. Há preocupação pela verosimilhança e pela
continuidade: o tempo recupera o seu poder sobre a narrativa.
7. O romance é simples: durante o pranto, um cavaleiro viu Aónia, irmã de Belisa, a
chorar, e apaixonou-se por ela. Ficou por ali, trocados os fatos de cavaleiro pelos de pastor e
trocadas também as letras do seu nome: vê passar por ele um desgraçado que por um pouco
não foi queimado vivo (num fogo da floresta) e que diz: ‘«Bin m’arder!» São as próprias
letras do seu nome (que nos não diz qual fosse, mas com tais letras se escreve Bernardim), e
por isso o adopta. Sob essa faixa identidade logra o amor da donzela, abandonando Aquelísia
(Eclésia?) a quem tem obrigação, mas por quem não sente devoção. Mas Aónia casa com um
outro cavaleiro, convencida de que a situação de casada lhe vai dar maior liberdade para os
seus amores no bosque. [11] Binmarder, que ignora essa terna intenção, foge desesperado e
perde-se-lhe o rasto.
8. Duas notas me parecem especialmente características deste segundo conto: o
bucolismo e o criptojudaísmo. Há grandes rebanhos, cães, lobos vorazes, velhos pastores,
combates entre touros, bardos rústicos, flautas e cantilenas. E é muito curioso que o autor
julga necessário explicar ao leitor o que é e para que serve o estilo bucólico: cousas de alto
engenho postas por outras palavras rústicas; a utilidade estava em que, falando assim comovia
183

mais asinha (depressa) a compaixão. Isto parece indicar que, na altura em que o conto foi
escrito, o uso do estilo bucólico ainda não estaria generalizado, pois, se o estivesse, não era
preciso explicá-lo.
9. O criptojudaísmo transparece nos rituais funerários (que os capitulas aditados na
edição de Évora tiveram a preocupação de cristianizar com uma trasladação e solenes
exéquias...), na contraposição entre amor por obrigação e amor por devoção e sobretudo na
fala do velho maioral, de sentido tão transparente que o autor chega a perguntar a si próprio se
aquilo seriam mesmo palavras de pastor.
10. Nem o estilo bucólico nem as referências às perseguições se encontram em qualquer
das outras partes que integram o livro.
11. c) O romance de Arima e Avalor decorre todo no ambiente palaciano e a sua ligação
com o anterior romance consiste apenas em que Arima é filha de Belisa.
12. Arima cresceu entretanto, foi viver para a corte de um grande rei e por ela se
apaixonou perdidamente o cavaleiro Avalor. Durante um ano, amou-a ele em silêncio, sem
nunca lho ousar dizer. Na verdade, não era apenas timidez: existia qualquer misteriosa razão
que tornava impossível amar Arima com amor deste mundo, ou talvez daquele mundo. Mas aí
está uma questão que o leitor não poderá decifrar: se deste, se daquele. Isto é: se Arima era de
uma ordem sobrenatural (sua mansidão nos seus ditos e nos seus feitos não eram de cousa
mortal. A sua fala, e o tom dela, soava de outra maneira que voz humana), ou se isso não
significa apenas que aquele amor era interdito a Avalor, como sucederia, por exemplo, se
Arima fosse judia, visto o casamento entre cristãos e judeus ser rigorosamente proibido. A
história, admiravelmente narrada, deixa-nos afogados [12] em dúvidas. Ao contrário do
primeiro conto, em que a veracidade psicológica é unicamente feminina e os homens são
ingénuos e quase irresponsáveis, aqui a exactidão está toda do lado de Avalor, cujas reacções
são admiravelmente descritas. Mas as mulheres são enigmáticas e distantes, não têm outra
realidade que a de ideal de cavaleiros. Qualquer que fosse a terrível verdade, Avalor acabou
por sabê-la, porque uma indiscreta amiga de Arima lha disse. Mas disse-lha falando-lhe ao
ouvido, de modo que nós ficamos sem a saber.
13. De comum com o episódio anterior há que também aqui se assistiu à luta entre duas
fidelidades, a que vem de dentro e a que é imposta de fora, e também aqui o cavaleiro,
desiludido e sem esperança, foge e se perde no mistério do admirável romance poético «Vai o
triste de Avalor...»
14. d) As aventuras de Avalor começam depois de o seu corpo ser arremessado pelas
ondas a uma praia deserta. O seu próprio espectro o visita e parece dizer-lhe que não pertence
mais a este mundo. Mas não tarda que não ouça a voz de uma donzela que pede a sua ajuda. É
um dos pontos mais obscuros de todo o enredo. É a sua alma que está condenada a partir de
agora a errar pelo mundo, como aconteceu com o Judeu Errante? (porque ele, do mesmo
modo que o da lenda, não aceitara partilhar com A rima do peso da sua cruz?). A primeira
aventura é a de vingar aquela dona, abandonado no bosque com as mãos atadas por uma rede
de caça. Antes de se meter a caminho, conta uma aventura semelhante, acontecida com seu
pai. Também ele encontrara uma formosa dona perdida nos montes e prometera vingá-la.
Dirigiu-se ao castelo, desafiou o adversário para o combate e, quando o adversário apareceu,
montado num soberbo cavalo, disse estas palavras:
15. Não espere, leitor, ouvir as palavras que os dois pontos imediatamente anteriores
anunciam, porque elas nunca chegaram a ser ditas. É exactamente neste ponto que se
interrompe a história, pelo menos na edição de Ferrara.
16. e) O romance de cavalaria que, na edição feita em Évora em 1557, continua a
novela, começa realmente por um discurso. Mas dir-se-ia que o escritor se enganou. Quem o
diz não é o cavaleiro que acaba de aparecer, como tudo fazia prever; e, tendo-se prometido
palavras irosas, ouvem-se afinal expressões de diplomacia cortês e apaziguadora.
17. [13] A donzela é reposta nos seus direitos de castelã, Avalor continua a sua vida de
184

cavaleiro andante, mas a partir de certo momento o herói passa a ser Tasbião e o enredo
degrada-se numa confusão de combates sangrentos, grandes golpes, traições, lutas com feras e
até com selvagens, piedosas intervenções de um santo ermitão que comparece às solenes
exéquias pela alma de Aónia e Binmarder, que entretanto se reencontraram e foram
surpreendidos pelo marido da donzela a abraçar-se na relva do bosque. Nessa última parte o
tratamento estilístico é rude, falta completamente a verosimilhança psicológica, saltam a cada
momento as contradições com os capítulos anteriores e estamos perante a aventura pela
aventura, sem simbolismo e sem verdade.
18. Esta a estrutura visível da obra. Talvez obedecesse a algum plano que hoje mal
podemos conjecturar, por não ter sido completada por quem começou a escrevê-la. A diversi-
dade dos temas fez surgir a hipótese de que o livro seria uma colecção de contos, como o é o
Decâmeron de Boccaccio (1313-1375); mas não fica assim suficientemente explicada a
evidente diversidade estilística das partes que formam o livro no seu conjunto. Uma outra
hipótese que não se pode excluir é a de a Menina e Moça ser uma colectânea de escritos,
produzidos em diversas épocas da vida, remodelados e cerzidos de modo a parecerem formar
um conjunto, e onde nem indo será da mesma mão a primeira parte e a última poderiam não
ser de Bernardim, não sendo de excluir a autoria feminina da primeira.

UNIDADE IV: BARROCO E MANEIRISMO — PROSA: PADRE MANUEL


BERNARDES E PADRE ANTÔNIO VIEIRA. TEXTOS 20 a 23

OBJETIVOS

Ao final desta unidade, você deverá ser capaz de:

a) ler textos de Bernardes e Antônio Vieira, segundo uma perspectiva crítico-interpretativa;


b) examinar as características fundamentais do Barroco português;
c) discutir a concepção de discurso engenhoso em Vieira.

INDICAÇÃO BIBLIOGRÁFICA

SARAIVA, António José. O discurso engenhoso no Sermão da Sexagésima. In: O discurso


engenhoso. Trad. Tereza de Araújo Penna. São Paulo: Perspectiva, 1980. p. 113-124.
________; LOPES, Óscar. Padre António Vieira. In: História da Literatura Portuguesa. 15.
ed. Porto: Porto, 1989. p. 549-565.

Texto CARVALHO, João Soares de. Características gerais do Barroco português. In:
20 História da Literatura Portuguesa: da Época Barroca ao Pré-Romantismo. Lisboa:
Alfa, 2002. v. 3, p. 23-36.275

1. [23] A palavra barroco, ou baroco, cuja origem os italianos, os franceses os ingleses


nunca reivindicaram como sua, parece ser oriunda do português ou do espanhol, a partir da
palavra árabe burka, com o significado de «pérola irregular». Da forma peninsular terá saído a
palavra baroque, primeiro em francês e depois em inglês, e, por fim, barock, em alemão.
Como expressão artística, o Barroco, com todo o seu dramatismo sensacional e emotivo,
começou por ser uma atitude premeditada e opressiva de cariz [feição] sócio-religioso, mais

275
Cf., quanto a Vieira, CIDADE, Hernâni. Pe. António Vieira e a Oratória Sagrada. In: Lições de Literatura
Portuguesa. 6. ed. Coimbra: Coimbra, 1975. v. 1. p. 468-500.
185

religioso do que social, e até filosófico, contra todas as formas artísticas afectadas ou apoiadas
pela Reforma religiosa do século XVI, que tantas querelas gerou, não só ao nível teológico e
bíblico, como também ao nível político e até filosófico. É por essa razão que a Companhia de
Jesus esteve sempre na vanguarda de todo o movimento barroquista, a partir de Itália, com
nítidos reflexos em Portugal, o que levou a classificar o Barroco de estilo jesuíta.
2. Tendo-se tornado, por aquelas razões, a arte privilegiada da Contra-Reforma e
aparecendo como um esforço de reacção intelectual às mudanças operadas nos movimentos
religiosos do século xvi, e como tentativa de captar por esse meio a atenção dos desviados da
fé católica, quis-se dar ao mundo cristão e não cristão um sinal poderoso da forma de adorar
Deus por meio da arte, do modo mais elevado e espectacular possível, como então se julgava.
Por essa razão, o Barroco seguiu inicialmente as normas preconizadas pelo Concílio de
Trento, onde as doutrinas luteranas e todas as suas práticas e interpretações consideradas
heréticas e contrárias à Igreja estabelecida, foram fortemente atacadas e condenadas,
acabando por dar largas, na sua exaltada reacção, à imaginação mais fértil e requintada da
expressão emotiva, exagerada, e a uma tensão interior que gerou e exibiu gostos patéticos e
inebriantes. Dá-se ênfase especial, no campo da literatura, particularmente da poesia lírica, ao
uso de antíteses, onde, intencionalmente, o real e o ilusório se defrontam e confundem, e onde
o tema da morte é representado com um cortejo de motivos alegóricos, salientando-se a ilusão
do mundo e o desengano [24] da vida humana. São também constantes os anacolutos, contra
as regras normais da sintaxe, onde o aposto e o nome, ou o relativo e o antecedente, são
ligados por estranhas formas elípticas, criando um efeito de rotura, de interrupção. As
combinações vocabulares extravagantes e gongóricas abundam igualmente em toda essa
poesia, a par de jogos de palavras e trocadilhos, ao serviço do jocoso, do burlesco e do
satírico. Também não faltam as aliterações, com os seus efeitos tónicos e formais, em busca
de uma beleza estonteante de imagens deslumbrantes, presentes não só na poesia lírica como
também na oratória sagrada.
3. O Barroco nasceu, portanto, de uma reacção da Igreja Católica contra o aparecimento
do protestantismo, desenvolvido a partir da Reforma luterana e calvinista, na Alemanha, em
França e na Suíça, alastrando-se rapidamente a outros países europeus, que inspirou, no
período renascentista, a imitação dos estilos clássicos greco-latinos e o renascer de toda essa
arte literária que buscava a perfeição, na forma e no conteúdo, e se projectava no infinito
literário e científico, adoptando como padrão filosófico as doutrinas de Platão e, em parte, dos
neoplatonistas, largamente divulgadas durante o Humanismo quatrocentista, e como padrão
religioso as doutrinas de Santo Agostinho de Hipona, um dos mais devotos platonistas de toda
a Patrística.
4. Não queremos deixar de lembrar aqui um pormenor, muitas vezes esquecido ou
pouco valorizado pelos historiadores da Reforma, que é o facto notável de Martinho Lutero
ter sido um teólogo de formação agostinha, tal como Erasmo, o que lhes permitia um
extraordinário à-vontade na discussão do pensamento do célebre bispo de Hipona. Deste
modo, os cultores da Reforma, optando por Platão, opunham-se, naturalmente, à filosofia de
Aristóteles, naquilo em que o filósofo idolatrado pela Escolástica se desviava do pensamento
platónico, e a S. Tomás de Aquino, mentor aristotélico dos escolásticos e criador do tomismo.
Daí, o facto de a habitual imitação dos padrões ciceronianos, tão eloquentemente expressos
em Orator e De Oratore, e horacianos, em De Arte Poética, ou melhor Epistola ad Pisones,
ou quintilianos, em De Institutione Oratoria, muito cedo teriam cedido lugar às doutrinas
aristotélicas expressas na Poética, sem dúvida um dos primeiros monumentos da ciência
literária.
5. O Barroco floresceu entre o classicismo do século XVI e o neoclassicismo do século
XVIII, tendo atingido o seu mais esplendoroso apogeu no século XVII. Alguns estudiosos da
literatura hesitam ainda em considerar o barroco um estilo literário, preferindo chamar-lhe
«doença de estilo».
186

6. Permita-se-nos, num brevíssimo excurso, recordar que, nas artes não literárias, o
Barroco expandiu-se espantosamente, por exemplo, na arquitectura e na escultura italianas,
com relevo para João Lourenço Bernini, sucessor de Miguel Ângelo, e criador da bela
colunata da Praça de S. Pedro, com efeitos de ilusão óptica, criando surpresa, encanto e
deslumbramento, como fora previsto pelos mentores da Contra-Reforma, e a magnífica capela
[25] Cornaro, esculpida em mármore branco, com efeitos que parecem sobrenaturais,
produzidos com luz natural, aparecendo por cima do altar, a imagem de Santa Teresa de
Ávila, desfalecida em êxtase num banco de nuvens, tendo junto de si um anjo sorridente que a
vai ferir com uma flecha, como a famosa mística tinha sonhado. Em Inglaterra, testemunham
a presença do Barroco as duas torres da frontaria da catedral de S. Paulo, em Londres; na
Rússia, em Sampetersburgo (antiga Leninegrado), pode admirar-se a arte arquitectónica
barroca na igreja do mosteiro de Smolny. Em Portugal, também o barroco deixou, em várias
igrejas, magníficas obras de talha dourada, com arcos de volta perfeita, folhas de acanto em
alto-relevo e flores de carrancas, como, por exemplo, na igreja do convento de S. Bento da
Vitória, no Porto, na Igreja da Conceição dos Cardeais, em Lisboa, e na igreja do convento de
Jesus, em Aveiro, para só citar as principais, bem como manifestações arquitectónicas, como
a igreja de S. Vicente, em Braga.
7. A fantasia extrema do Barroco, chamada Rococó, foi também cultivada em Portugal,
de que são testemunho as torres e as cúpulas da basílica da Estrela, em Lisboa, o edifício da
câmara de Braga, o coche de gala de D. João V, no Museu dos Coches, em Lisboa, e a
fachada da capela de Santa Maria Madalena, em Braga. Em Paris basta referir o magnífico
salão oval do Hotel Soubise e as suas pinturas, os estuques, os ornamentos esculpidos e o
mobiliário. Da Alemanha citaremos apenas o santuário de Vierzehnheiligen (catorze santos),
de Baltazar Neumann, na Alta Francónia, um dos mais belos exemplos do rococó alemão.
8. A arte da pintura barroca teve também os seus cultores italianos, como Guerchino, na
sua Inumação de Santa Petronilha, com um enorme sentido de perspectiva e grande
profundidade, evidenciando um gosto sensacionalista. Andrea Pozo, padre jesuíta e pintor, foi
outro artista barroco de efeitos espectaculares, como os que deixou na sua pintura do tecto da
igreja de Santo Inácio, em Roma, evocando a entrada no Paraíso do santo fundador da
Companhia de Jesus. Em França, salientaremos de entre as pinturas de estilo rococó, a Diana
Depois da Caçada, de Boucher. Mais tarde, é na escola veneziana que aparecerão os mais
famosos artistas barrocos, magnificamente representados por Tiepolo na pintura do tecto da
igreja dos Jesuítas, em Veneza. Mas a grande revelação da pintura barroca deu-se entre os
flamengos, a começar pelo famosíssimo Pedro Paulo Rubens, na espectacular pintura A
Descida da Cruz, cheia de dramatismo e movimento, com alucinantes efeitos luminosos nos
braços de Cristo e no lençol que desce sobre Maria Madalena ajoelhada. Sendo amigo dos
Jesuítas, Rubens traduziu em belíssimas pinturas o pensamento da Contra-Reforma, como
Milagres de Santo Inácio de Loyola, em Viena, e o conjunto de trinta e nove pinturas para os
tectos das igrejas da Companhia de Jesus em Antuérpia (todas destruídas no século XVIII) e
dois retábulos, ainda existentes.
9. [26] Na arte musical, o barroco começou no último terço do século XVI, com o
aparecimento de um novo estilo, seguindo rigorosamente os preceitos canónicos tridentinos,
que permitiram o desenvolvimento do cântico secular, devidamente adaptado aos padrões
religiosos, passando a uma segunda fase, que abrange todo o século XVII, o século barroco
por excelência nas outras artes, que permitiu a criação de novas formas musicais, incluindo a
ópera, a sonata, o concerto e o oratório. Finalmente, numa terceira fase, que vai até meados do
século XVIII, surge o barroco mais elaborado, período em que brilharam com grande fulgor
Johann Sebastian Bach e Jörg Friedrich Haendel. Talvez por ironia do destino, estes dois
grandes compositores estão do lado de lá da Contra-Reforma: Bach era luterano e Haendel era
luterano-anglicano. Bach, o compositor que com maior engenho cultivou a arte dos prelúdios
e fugas, em que se movem livremente, entre estranhas e arrebatadas harmonias, frases
187

melódicas de grande beleza, ficou para sempre vinculado ao estilo barroco da Paixão segundo
São João e, principalmente, da Paixão Segundo São Mateus, na nossa opinião, uma das suas
obras mais requintadas. Haendel, que se fixou em Inglaterra e se naturalizou, depois de o
eleitor de Hanover ter subido ao trono inglês, sob o nome de Jorge I, deixou-nos, entre outras,
uma das mais belas peças barrocas, o Messias, curiosamente estreado em Dublin, capital da
Irlanda, então criptocatólica.
10. Quer aceitemos o Barroco como estilo, como escola ou como movimento literário, é
inegável que ele foi adoptado e efusivamente exercido literariamente por muitos escritores de
primeira grandeza, durante um período bastante dilatado. A capacidade com que foi exercida
em Portugal a experiência barroca está bem patente na prolífera criação de uma sintaxe
literária sui generis, utilizando com grande mestria as mais vibrantes e exaltadas figuras de
palavras em sentido figurado, daí surgindo uma riquíssima imagética, que teve por epicentro a
metáfora, com recurso permanente à alegoria, à catacrese, à metonímia, à sinédoque e à
antonomásia. Alguns historiadores da literatura, como Feliciano Ramos, ao referirem-se à
poesia desta época, preferem falar de estilos cultista e conceptista, em vez de gongórico e
barroco. Hernâni Cidade diz também, em relação a essa poesia, que ela é «uma brilhante
convenção a que ninguém se lembra de exigir conteúdo moral, verdade de conceitos ou
sentimentos». A parte positiva do comentário reside no uso do termo «convenção»; o resto
integra-se numa curiosa declaração de deleite passivo de quem escreveu e leu poesia «barroca
ou gongórica, ou «cultista e conceptista». Permitindo-nos humildemente usar um pouco do
espírito parodístico e satírico dos cultores dessa poesia, poderíamos dizer que não acreditamos
que haja «estilo barroco», mas que o há, há.
11. Ao pormos em alternativa estilo, escola e movimento, para a classificação do
Barroco literário, esclarecemos que a nossa opção vai obviamente para estilo, dada a
característica pessoal deste termo, historicamente associado ao instrumento pontiagudo com
que cada um antigamente escrevia em [27] tabuinhas enceradas. Ainda hoje, a noção que
temos de estilo é predominantemente individual, sendo, portanto, a forma ou o modo como
cada escritor exprime os seus pensamentos, embora admitamos que possa haver estilos
culturalmente recriados, quer por imitação quer por fascínio. Daí a diversidade de estilos
individuais, desde o conciso ao prolixo, ou, como pensavam os antigos, simples, temperado e
sublime (humilis, mediocrus, gravis). Sem querermos ser tão radicais como Buffon, que dizia
que le style est l’homme même [O estilo é o próprio homem], admitimos, como Saussure e
outros, que há estilos colectivos, que vão do forense ao parlamentar, passando pelo militar e o
académico.
12. Quanto ao termo escola, no pressuposto de alternativa para estilo, ao contrário deste,
ela sugere-nos à partida um aspecto colectivo. A escola é, na conotação que optámos para este
estudo, um conjunto de imitadores ou seguidores de um determinado escritor, ou da sua forma
de escrever, isto é das suas qualidades estilísticas. É nesse sentido que falamos, por exemplo,
de escola clássica ou escola romântica, termos mais aceitáveis, talvez devido ao seu uso, do
que «escola barroca».
13. O movimento, neste contexto literário, pressupõe muito mais do que uma simples
imitação estilística ou a integração numa determinada escola, arrastando os imitadores ou
seguidores para um conjunto de ideias e sentimentos que se tornam de algum modo comuns.
Não nos será, no entanto, difícil de admitir que o barroco tem, de certa maneira, as três
referidas características, a que alguns chamam virtudes e, outros, malefícios.
14. Na concepção poética do Barroco está subjacente a transfiguração da realidade,
criada através de figuras de discurso e de retórica, podendo dizer-se que não é o motivo que
conta na criação de um poema, mas sim as técnicas utilizadas, a capacidade de exibição de
efeitos estéticos e o jogo verbal dos conceitos, de modo a deslumbrar o leitor. Isto é, o mais
importante não é o fim, mas sim o meio. Cremos não ser ocioso repetir que a figura
dominante da poesia barroca é a metáfora artisticamente formulada. Também a hipérbole tem
188

o seu lugar privilegiado nas técnicas do Barroco, dado o gosto desenfreado pelo exagero e o
excesso, o arrebatado e o maravilhoso. A antítese, figura utilizada pelos clássicos (recorde-se
Camões: «Amor é fogo que arde sem se ver; / É ferida que dói e não se sente; / É um
contentamento descontente; / É dor que desatina sem doer»), é igualmente adoptada pelos
poetas barrocos, com o simples propósito de gerar conflitos intelectuais, pela justaposição dos
contrários, ou simplesmente para exibição de exercícios lúdicos. A metáfora, a hipérbole e a
antítese, como diz Maria Lucília Pires, «são figuras nucleares na poética barroca,
concretizando vectores relevantes da sensibilidade estética da época».
15. Outras características da poesia barroca são os subtemas da efemeridade e da
transitoriedade da vida humana e as mais variadas representações da morte, que roça por
vezes o chamado estilo ultra-romântico. A exploração temática da transitoriedade, que é um
tema de cariz medieval gera imagens [28] angustiantes que no barroco se multiplicam num
doloroso percurso ao encontro da morte, temas gongóricos desenvolvidos por muitos poetas
portugueses. De facto, encontramos, na maioria deles, o tema da morte muitas vezes
envolvido em estranhas auréolas e visões luminosas, onde o conceito de beleza se instala e
actua de modo espectacular. A contradição do tratamento barroco da morte reside na euforia
deslumbrante com que se fala dela como intérprete final do desengano e da transitoriedade,
exaltando-se a vida no mundo a que aparentemente se deseja renunciar. A ilusão é igualmente
uma das características barrocas mais comuns entre os vários poetas, que a envolvem no
conceito de aparência e engano. Tudo para eles é engano e ilusão, tudo é irreal e transitório;
tudo se desfaz em nada. No entanto, mais uma vez devemos estar atentos a tais expressões
intelectuais, que não mergulham profundamente a sua raiz no sentimento de qualquer tipo de
niilismo filosófico ou de pessimismo antropológico. Os motivos mais usados nessas temáticas
são o sonho, incontrolado pelo homem, envolvido em mistérios existenciais, mas
dolorosamente determinante de um estado de alma vazio e aniquilado. Outras vezes recorrem
à imagem virtual, ilusória, do espelho, que reflecte na alma imagens da ilusão da vida e do seu
desengano, sem que seja apresentado qualquer tipo de preocupação de mudança, ou de cura
espiritual.
16. O barroquismo manifestou-se entre nós em dois géneros literários distintos: na
poesia lírica e na oratória, dois campos propícios para o culto da exaltação literária, para a
prática de construções sintácticas de grande engenho, nas quais a metáfora fantasista reina
com a maior exuberância à margem das regras preestabelecidas pelos renascentistas, e de
articulações semânticas que imprimem exuberância ao discurso, mas que muitas vezes o
esvaziam de qualquer sentido científico. A beleza literária do Barroco deixou de buscar as
clássicas formas cristalinas e as expressões claras e harmoniosas, para se envolver em
exercícios prolixos de sentido obscuro, com recurso permanente ao empolamento metafórico
e jocoso, quando não burlesco. As características temáticas do Barroco, quer na prosa
empolada da oratória quer na expressão lírica, religiosa ou profana, são muitas vezes
inspiradas em Camões e Petrarca, que aparecem parodiados em linguagem exuberante. O
engenho a que Camões se referia na segunda estrofe do canto primeiro («Cantando espalharei
por toda a parte, / Se a tanto me ajudar engenho e arte») nada tem a ver com o engenho
barroco, que nele busca apenas a agudeza dos conceitos e a subtileza das ideias.
17. Na Península Ibérica, o maior mestre do estilo barroco e o que mais influenciou os
nossos escritores, principalmente os poetas, foi o espanhol Luís Argote e Góngora (1561-
1627), de cuja imitação surgiram os termos portugueses gongórico e gongorismo, uma forma
de Barroco literário. Entre nós, a experiência na lírica barroca começa no primeiro quartel do
século XVII, com livros de poemas característicos, como o de Manuel da Veiga Tagarro, [29]
intitulado Laura de Anfriso, um volume de éclogas e odes, publicado em 1627.
18. Muitos dos poemas burlescos inéditos escritos ao longo do século XVII foram
reunidos por Matias Pereira da Silva, num cancioneiro de cinco volumes, publicados entre
1716 e 1728, sob o título genérico Fénix Renascida ou Obras dos Melhores Engenhos
189

Portugueses, contendo poemas de cerca de quarenta poetas, na segunda edição aumentada de


1746, tendo muitos deles adaptado textos camonianos que transformaram no novo estilo,
meditando sobre a morte a que ninguém escapa, sobre as glórias deste mundo e sobre os bens
efémeros, invocando o velho dito sic transit gloria mundi (pronunciado três vezes diante do
Sumo Pontífice que acaba de ser eleito), aos quais muitas vezes nos agarramos: uma poesia
que roça um misticismo literário bastante contagiante para a época. Estes poetas cantam
igualmente, imitando Petrarca, as suas penas de amor, a beleza da amada que não corresponde
aos sentimentos expressos em verso pelo poeta, aparecendo também muitos poemas jocosos e
falsos panegíricos, onde é cultivada a arte literária de carácter lúdico, como é o caso de
António Barbosa Bacelar (1610-63). Entre esses poetas aparecem também religiosos, como,
por exemplo, o frade beneditino Jerónimo Baía (c. 1620-88), grande mestre na arte burlesca
do trocadilho, em divertidos jogos verbais, usando umas vezes linguagem religiosa, outras,
profana, mas sempre com espírito ora satírico ora panegírico, nos cerca de cento e cinquenta
poemas que foram incluídos no cancioneiro Fénix Renascida.
19. Sóror Violante do Céu (no século: Violante Montesino, 1601-93), freira dominicana,
«uma das vozes mais notáveis da nossa poesia barroca», como diz Maria Lucília Pires — no
trabalho sobre «Poesia lírica do período barroco», influído neste volume —, aparece no
referido cancioneiro com vinte e oito poemas panegíricos, devidamente identificados com o
seu nome, e trinta e três poemas de amor, ali atribuídos a uma «poetisa anónima».
20. Alguns poetas do cancioneiro Fénix Renascida são exímios na arte humorística e
caricatural, troçando de tudo e de todos, de si próprios. Do franciscano Frei António das
Chagas (no século: António da Fonseca Soares, 1631-82), aparecem também no cancioneiro
vários poemas «anónimos», diz-se que por ordem da censura inquisitorial. O mesmo terá
acontecido em relação aos poemas ali incluídos de António Serrão de Castro (1610-85),
acusado de praticar o judaísmo. Apreciemos o efeito fónico, repetitivo, quase litânico e
responsivo, de um soneto sem grande valor literário, mas representativo da época barroca,
incluído na Fénix Renascida, em que o autor, D. Tomaz de Noronha, parodia «uns noivos que
se foram receber, levando ele os vestidos emprestados e indo ela muito doente e chagada».

[30] Saiu a noiva muito bem trajada,


Saiu o noivo muito bem trajado,
O noivo em tudo muito conchegado,
A noiva em tudo muito conchagada.

Ela uma anágua muito bem bordada,


Ele um capote muito bem bordado,
Do mais do noivo tudo de emprestado,
Do mais da noiva tudo de emprestado

Folgámos todos os amigos seus


De ver o noivo assim com tanto brio,
De ver a noiva assim com tantos brios.

Disse-lhe o cura então: «Confio em Deus»,


E respondeu o noivo «e eu confio»,
E respondeu a noiva «e eu com fios». [V.234]

21. Em 1762, foi publicado outro cancioneiro, ou antologia de poesia barroca, com
muitos poemas já saídos na Fénix Renascida, referido habitualmente com a designação de
Postilhão de Apolo, que foi compilado por José Ângelo de Morais, mas cujo título completo,
onde está bem patente o gosto barroco pela paródia, é: Ecos que o clarim da Fama dá,
190

Postilhão de Apolo, montado no cavalo Pégaso, girando o universo para divulgar ao orbe
literário as peregrinas flores da poesia portuguesa com que vistosamente se esmaltam os
jardins das Musas do Parnaso. Academia universal em a qual se recolhem os cristais mais
puros que os famigerados engenhos lusitanos beberam nas fontes de Hipocrene, Helicona e
Aganipe. A colectânea inclui sonetos barrocos de António Barbosa Bacelar e de Sóror
Violante do Céu. Entre as novidades há um poema de Francisco de Vasconcelos, intitulado
«À vaidade do mundo», escrito em tercetos.
22. Foram publicadas também outras antologias, conhecidas como Cancioneiros
académicos, que incluem poemas barrocos dos membros das várias academias literárias, cujos
títulos manifestam geralmente o nome da academia, como é o caso das colectâneas Academia
dos Singulares de Lisboa, Progressos académicos dos Anónimos de Lisboa e Aplausos
académicos. Há igualmente vários cancioneiros manuscritos inéditos, repletos de poesia
barroca muito irreverente e grosseira, por vezes obscena, que a censura inquisítorial nunca
permitiu que se imprimisse, neste caso por razões éticas.
23. Entre as figuras mais destacadas do período barroco evidencia-se o polígrafo D.
Francisco Manuel de Melo, escritor, aristocrata, militar, cortesão e diplomata, que escreveu
poemas para a Academia dos Generosos, de que foi presidente. As suas obras, embora
seguindo o processo vigente da exibição lúdica de formas paradoxais e, principalmente,
metafóricas, e ainda o uso de expressões de aparente emoção religiosa, falam abundantemente
de problemas afectos [relacionados] ao vulgar sentido cristão da contrição ou de uma
consciência [31] atormentada pelo peso do pecado. Estes estados de alma do poeta barroco
exprimem um certo tipo de arrependimento, confessando os desenganos a que estão sujeitos
neste mundo, enquanto buscam refrigério no amor de Deus e na sua capacidade para perdoar.
A partir destes jogos verbais geram-se excelentes conceitos antitéticos entre o estado
degradado e miserável do homem e a grandeza ou a misericórdia de Deus.
24. A obra de D. Francisco Manuel de Melo é das mais multifacetadas da literatura
portuguesa, devendo a sua fama a algumas obras barrocas de carácter didáctico e moral, como
a Carta de Guia de Casados, numa linguagem de estilo coloquial, mas de elevado nível
literário. Os assuntos que aborda são frequentemente adornados com narrativas jocosas de
estilo barroco, recorrendo muitas vezes ao tom proverbial. Uma outra das obras que o
tornaram conhecido foi o Hospital das Letras, que faz parte de Apólogos Dialogais, editado
juntamente com outros três apólogos: Relógios Falantes, Escritório Avarento e Visita das
Fontes. Nos quatro apólogos, D. Francisco Manuel põe relógios (de origens sociais
extremadas), moedas (de diferentes valores), fontes (de diferente localização) e livros (de
diferentes autores) a dialogar com muito calor e a criticar a vida social em que estão
envolvidos e que as suas posições e condições permitem observar. É comum nos quatro
apólogos o tom jocoso usado principalmente pelas figuras personificadas, enquanto dialogam
e fazem críticas aos vícios e aos maus costumes da época. A crítica literária aparece, como é
óbvio, no Hospital das Letras, cujo ideário constitui uma excelente teorização literária dos
escritores da época.
25. Os principais poemas de D. Francisco Manuel de Melo foram por ele próprio
reunidos num volume que intitulou Obras Métricas. Nele estão incluídos sonetos, romances,
cartas em verso e outros géneros usados na época. Na maioria dos poemas aparece o sentido
lúdico da poesia barroca, a transfiguração literária de ideias e toda a temática habitual, onde
não falta a originalidade no uso da ironia e do protagonismo religioso.
26. Sem trair o estilo das outras obras, D. Francisco Manuel de Melo escreveu cinco o
textos historiográficos, que reuniu num volume a que deu o título de Epanáforas de Vária
História Portuguesa, sendo a mais conhecida a que relata o descobrimento da ilha da
Madeira, que intitulou de «Epanáfora amorosa».
27. Na área do teatro, D. Francisco Manuel ficou conhecido principalmente pela peça na
linha vicentina, em estilo barroco, Auto do Fidalgo Aprendiz. Nele o cortesão, o aristocrata, o
191

poeta-dramaturgo. Pensam alguns eruditos o autor, preso por ordem do rei D. João IV, quis
satirizá-lo na personagem D. Gil Cogominho, tal como fizeram outros satiristas em relação a
outras figuras ilustres ou reais. De facto, as características da personagem do auto
correspondem em muitos pormenores às do monarca. Em toda a peça, as críticas dirigem-se
particularmente aos cortesãos e aos seus vícios comuns. Vejam-se a seguir alguns excertos de
«Lição de dança», do Auto do Fidalgo Aprendiz.[...]
28. [34] Em toda a sua obra, D. Francisco Manuel usou um estilo próprio de linguagem
requintada, capaz de por meio dela transmitir ideias subtis e conceitos agudos, duas formas
paradigmáticas do estilo barroco, que adopta como primeira finalidade divertir, deleitar,
impressionar os leitores, principalmente nas obras poéticas. Por isso, repetimos que a poesia é
para o poeta barroco essencialmente um exercício de técnicas literárias e de jogos de palavras,
de exaltação verbal, de engenho retórico e afirmação intelectual do autor, o que lhe exige
obviamente muito saber e arte.
29. Na oratória sagrada, pontificou em Portugal o padre jesuíta António Vieira, na qual
representa o mais acabado protótipo do Barroco português. Formado pela Companhia de Jesus
no Brasil, Vieira bebeu na mais caudalosa fonte o espírito barroco que moldara os pregadores
da Contra-Reforma no século anterior. São prova disso alguns dos sermões que pregou no
Brasil, como o Sermão pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as da Holanda,
pregado na igreja de Nossa Senhora da Ajuda, da cidade da Baía [Salvador], em 1640.
30. Nesse sermão, além do virtuosismo verbal e dos jogos de conceitos, ao gosto
barroco, Vieira revela um patriotismo de sabor profético, que o leva a um estranho alegorismo
e uma arrebatada interpretação exegética, habitualmente seguida pelos calvinistas, que ele no
sermão acusa e condena, exigindo de Deus a sua punição. O próprio tema do sermão é já por
si um apelo judaico, que os calvinistas, considerando-se também um povo escolhido,
costumam aproveitar para proclamar a soberania de Deus (na versão actual: Salmo 44, 24-27):

Acorda, Senhor, por que dormes? Desperta e não nos rejeites para sempre! Por
que desvias de nós o teu olhar e te esqueces dos nossos sofrimentos e aflições?
Nós estamos humilhados e caídos por terra. Levanta-te e vem ajudar-nos; salva-
nos pelo teu grande amor!

31. Nas notas ao sermão (de António Sérgio e Hernâni Cidade, na edição da Livraria Sá
da Costa), diz-se que o padre Raynal considerou o discurso de Vieira «o mais veemente e
extraordinário que se tem ouvido em púlpito cristão». E o anotador acrescenta:

Extraordinário em tudo, mas principalmente na atitude que assume perante Deus,


quase de acusador que mais lhe pede contas do que lhe implora socorro. O patriota
junta as suas queixas e dolorosas estranhezas ao católico, e a crença sem restrições
a um Deus atento aos destinos do seu segundo povo eleito, que se sente
incompreensivelmente preterido a favor do herege holandês, encontra nos profetas
bíblicos, cuja fé o jesuíta recebia intacta na substância como na letra, a plena
justificação de quanto diz, E o que no sermão há de estranho [35] resulta mais do
conceito contemporâneo da Providência e da Divindade, do que da atitude literária
da época barroca.

32. A doutrina anticalvinista de Vieira, usando estranhamente as mesmas armas e uma


argumentação demasiado judaizante, prossegue num discurso em que denuncia, com base no
Antigo Testamento, o abandono a que Deus tinha aparentemente condenado os católicos,
para, em seguida, com base no Novo Testamento, reconhecer que «querer argumentar com
Deus e convencê-lo com razões, não só dificultoso assunto parece, mas empresa
declaradamente impossível, sobre arrojada temeridade».
192

33. Toda essa dialéctica e o facto de ter atacado em Lisboa, no Sermão da Sexagésima,
os pregadores da corte, o que desagradou aos Dominicanos, ajudou a aumentar o número dos
seus inimigos, tendo acabado por ser expulso do Maranhão e preso, em 1663, pela Inquisição
em Lisboa, que o condenou como heterodoxo e judaizante, proibindo-o de pregar. Amnistiado
em 1668, recomeçou em Lisboa a sua extraordinária arte parenética, em tons mais moderados
e panegíricos da família real, não deixando de atacar alguns letrados e eclesiásticos com
influência na corte de D. Pedro. Acabou por conseguir um breve papal que o desvinculava da
jurisdição inquisitorial, por isso, muitos dos seus sermões dessa época são ataques ao Santo
Ofício português.
34. Iluminaremos estas considerações sobre o barroco português com um pequeno
excerto do padre António Vieira, no qual encontraremos bastantes jogos verbais de grande
requinte ao serviço dum discurso por vezes irónico, mas que assume sempre um ar grave, e
abundantes figuras comuns na literatura barroca, como é o caso da repetição de palavras e
conceitos, que dão virtude a uma estilística fortemente tautológica. O excerto é tirado do seu
Sermão da Cinza, pregado em Roma, em 1672, sobre o tema de Génesis 3, 19: Quia pulvis es
et in pulverem reverteris [Na verdade, tu és pó e em pó te hás-de transformar de novo].

Enfim, Senhores, que não só havemos de ser pó, mas já somos pó: Pulvis es. Essa
sentença pronunciada definitiva e declaradamente por Deus ao primeiro homem, e
a todos os seus descendentes, nem admite interpretação, nem pode ter dúvida. Mas
como pode ser? como pode ser que eu que o digo, vós que o ouvis, e todos os que
vivemos, sejamos já pó? Pulvis es? A razão é esta. O homem, em qualquer estado
que esteja, é certo que foi pó e que há-de tornar a ser pó. Foi pó, e há-de tornar a
ser pó? logo, é pó. Porque tudo o que vive nesta vida não é o que é: é o que foi e o
que há-de ser.
Ora, suposto que já somos pó — e não pode deixar de ser, pois Deus o disse —
perguntar-me-eis, e com muita razão, em que nos distinguimos logo os vivos dos
mortos. Os mortos são pó, nós também somos pó: em que nos [36] distinguimos
uns dos outros7 Distinguimo-nos os vivos dos mortos assim como se distingue o
pó do pó. Os vivos são pó levantado, os mortos são pó caído: os vivos são pó que
anda, os mortos são pó que jaz: Hic jacet [Aqui jaz].
Então essas praças no Verão cobertas de pó, dá um pé de vento: levanta-se o pó no
ar, e que faz? O que fazem os vivos e muito vivos. Não aquieta o pó, nem pode
estar quedo: anda, corre, voa; entra por esta rua, sai por aquela; já vai adiante, já
torna atrás; tudo enche, tudo cobre, tudo envolve, tudo perturba, tudo toma, tudo
cega, tudo penetra, em tudo e por tudo se mete, sem aquietar nem sossegar um
momento, enquanto o vento dura. Acalmou o vento, cai o pó, e, onde o vento
parou, ali fica: ou dentro de casa, ou na rua, ou em cima dum telhado, ou no mar,
ou no rio, ou no monte, ou na campanha. Não é assim?
E que pó e que vento é este? O pó somos nós: Quia pulvis; o vento é a nossa vida:
Quia ventus est vita mea (Job 7, 7), Deu o vento, levantou-se o pó: parou o vento,
caiu. Deu o vento, eis pó levantado: estes são os vivos. Parou o vento, eis o pó
caído: estes são os mortos. Os vivos, pó; os mortos, pó: os vivos, pó levantado; os
mortos pó caído; as vivos, pó com vento, e, por isso, vãos; os mortos, pó sem
vento, e, por isso, sem vaidade. Esta é a distinção, e não há outra.
193

Texto HAUSER, Arnold. O conceito de Maneirismo. In: História Social da Arte e da


21 Literatura. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 367-376276.

[367] 5. O CONCEITO DE MANEIRISMO

1. O maneirismo chegou tão tarde ao primeiro plano da investigação sobre a história da


arte, que o veredicto depreciativo implícito em seu próprio nome ainda é, com freqüência,
aceito como adequado, o que tornou deveras difícil uma concepção isenta de preconceitos
desse estilo como uma categoria puramente histórica. No caso de outros nomes dados a estilos
históricos, como gótico e Renascença, barroco e classicismo, a apreciação original — positiva
ou negativa — já ficou totalmente obliterada; no caso, porem, do maneirismo, por outro lado,
a atitude negativa ainda está tão fortemente ativa, que se tem de lutar contra uma certa
resistência íntima, antes de poder armar-se de coragem bastante para qualificar os grandes
artistas e escritores desse período de “maneiristas”. Só depois que o conceito de maneirista
estiver completamente separado do de “afetado” ou “amaneirado” é que obteremos uma
categoria que possa ser usada na investigação histórica desses fenômenos. O conceito
puramente descritivo da espécie e o conceito qualitativo, que têm de ser aqui distinguidos um
do outro, coincidem em certos trechos, mas, intrinsecamente, quase nada têm em comum.
2. [368] A concepção de arte pós-clássica como um processo de declínio, e da prática
maneirista de arte como uma rígida rotina de imitação servil dos grandes mestres, é derivada
do século XVII e foi desenvolvida em primeiro lugar por Bellori, em sua biografia de
Annibale Carracci277. Vasari ainda usa maniera para designar individualidade artística, um
modo de expressão histórica, pessoal ou tecnicamente condicionado, logo “estilo”, no mais
amplo sentido da palavra. Fala de uma gran’ maniera e alude a algo inteiramente positivo. O
termo maniera tem um significado totalmente positivo em Borghini, que até lamenta a
ausência dessa qualidade em certos artistas 278, e assim antecipa a distinção moderna entre
estilo e falta de estilo. Os classicistas do século XVII — Bellori e Malvasia — são os
primeiros a ligar ao conceito de maniera a idéia de um estilo afetado e trivial de arte, redutível
a uma série de fórmulas; são os primeiros a aperceber-se da ruptura que o maneirismo
introduz no desenvolvimento da arte e os primeiros a ter consciência do afastamento do
classicismo que se faz sentir na arte depois de 1520.
3. Mas por que esse distanciamento realmente ocorre tão cedo? Por que a Alta
Renascença constitui um “cume estreito” — como diz Wölfflin — que é transposto no mesmo
instante em que é alcançada? Um cume que é mais estreito ainda do que Wölfflin nos
induziria a pensar. Pois não só as obras de Michelangelo mas até mesmo as de Rafael já
contêm em si as sementes da dissolução. A expulsão de Heliodoro e a Transfiguração estão
repletas de tendências anticlássicas que irrompem com ímpeto da estrutura renascentista em
mais de uma direção. Qual é a explicação para a brevidade do tempo em que princípios
clássicos, conservadores e rigorosamente formais tiveram uma preponderância imperturbada?
Por que o classicismo, que na Antiguidade era um estilo baseado na serenidade e
permanência, apresenta-se agora como um “estágio transitório”? Por que degenera tão
rapidamente, dessa vez, numa imitação puramente externa de modelos clássicos, por um lado,
e num alheamento espiritual em relação a eles, por outro? Talvez porque o equilíbrio que
encontrou expressão artística no classicismo do Cinquecento fosse desde o início [369] mais
um ideal e uma ficção do que uma realidade, e porque a Renascença, como sabemos,
276
Cf. o original: HAUSER, Arnold. Der Begriff des Manierismus. In: Sozialgeschichte der Kunst und Literatur
[História Social da Arte e da Literatura]. München: C. H. Beck, 1973. p. 377-387.
277
BELLORI: Vitta dei pittori [Vida dos pintores], etc., 1672. — Cf. WERNER WEISBACH: “Der
Manierismus” [O Maneirismo], Zeitschr. F. bild. Kunst [Revista de Artes Plásticas], 1918-19, vol. 54, pp. 162-
63.
278
R. BORGHINI: Il Riposo [O Repouso], 1584.— Cf. A. BLUNT, op. cit., p. 154.
194

permaneceu até o último instante uma época essencialmente dinâmica, incapaz de encontrar
satisfação completa em qualquer solução proposta para seus problemas. A tentativa que se faz
de dominar a natureza cambiante da mente capitalista e a natureza dialética da concepção
científica não teve mais êxito, de qualquer modo, do que as tentativas análogas realizadas em
períodos subseqüentes do moderno desenvolvimento cultural. Um estado de constante
serenidade social nunca mais voltou a ser alcançado desde a Idade Média; portanto, acima de
tudo, os movimentos classicistas dos tempos modernos são mais o resultado de um programa
e o reflexo de uma esperança do que a expressão de um estado de calma segurança. Mesmo o
precário equilíbrio que surgiu por volta da virada do Quattrocento, com a formação da
abastada classe média alta, que macaqueava as maneiras cortesãs, e da cúria capitalistamente
forte e politicamente ambiciosa, foi de curta duração. Depois da perda da supremacia
econômica da Itália, do profundo choque sofrido pela Igreja com a Reforma, da invasão do
país pelos franceses e espanhóis e do saque de Roma, nem mesmo a ficção de um estado de
coisas bem-equilibrado e estável podia continuar a ser mantida. O estudo de ânimo
predominante na Itália é o de iminente descalabro, que logo se propaga a toda a Europa
ocidental, embora a Itália não fosse o único ponto de origem.
4. As fórmulas de equilíbrio isentas de tensão propostas pela arte clássica já não são
adequadas; no entanto, ainda recebem a adesão de muitos — por vezes, de um modo até mais
fiel, mais ansioso e mais desesperado do que seria o caso num relacionamento que é dado por
garantido. A atitude dos jovens artistas para com a Alta Renascença é extraordinariamente
complicada; não podem simplesmente renunciar às realizações artísticas do classicismo,
apesar de a filosofia harmoniosa dessa arte lhes ser agora completamente estranha. Entretanto,
o desejo de manterem a continuidade ininterrupta do processo artístico dificilmente poderia
ter sido satisfeito, a menos que a continuidade do desenvolvimento social tivesse sustentado
tais esforços. Pois os artistas, como corpo coletivo, e o público [370] são constituídos, em
seus aspectos essenciais, tal como o eram na época da Renascença, embora o terreno sob seus
pés já esteja começando a tremer. O sentimento de insegurança explica a natureza
ambivalente de suas relações com a arte clássica. Os críticos de arte do século XVII já tinham
sentido essa ambivalência, mas não viram que a imitação e distorção simultâneas dos modelos
clássicos eram condicionadas não pela falta de inteligência, mas pelo novo espírito,
profundamente não-clássico, dos maneiristas.
5. Foi deixado para nossa própria época, que está numa relação tão problemática com
suas ancestrais quanto o maneirismo em face da arte clássica, entender a natureza criativa
desse estilo e reconhecer na freqüentemente ansiosa imitação de modelos clássicos uma
supercompensação para a distância espiritual que o separou deles. Somos os primeiros a
compreender o fato de que os esforços estilísticos de todos os principais artistas do
maneirismo, de Pontormo e Parmigianino tanto quanto de Bronzino e Beccafumi, de
Tintoretto e El Greco tanto quanto de Bruegel e Spränger, estavam concentrados, sobretudo,
na dissolução da por demais óbvia regularidade e harmonia da arte clássica e na substituição
de sua normatividade superpessoal por características mais subjetivas e mais sugestivas. Num
momento, é o aprofundamento e a espiritualização da experiência religiosa e a visão de um
novo conteúdo espiritual na vida; noutro, um intelectualismo exagerado, consciente e
deliberadamente deformando a realidade, com alguns laivos de bizarro e abstruso; às vezes,
porém, redunda num epicurismo impertinente e afetado, traduzindo tudo em sutileza e
elegância, o que culmina em abandono de formas clássicas. Mas a solução artística é sempre
um derivativo, uma estrutura dependente, em última análise, do classicismo, e com origem
numa experiência cultural, não natural, quer se expresse na forma de um protesto contra a arte
clássica ou procure preservar as realizações formais dessa arte. Por outras palavras, estamos
lidando aqui com um estilo completamente autoconsciente279, que baseia suas formas não
279
WILHELM PINDER: “Zur Physiognomik des Manierismus” [A fisiognômica do Maneirismo]. In: Die
Wissenschaft am Scheidewege [A ciência nos caminhos do rio Escalda], Ludwig-Klages-Festschrift, 1932, p.
149.
195

tanto num determinado objeto quanto na arte da época precedente, e numa medida muito
maior do que no caso de qualquer das anteriores [371] ten|dências significativas da arte. A
atenção consciente do artista já não está dirigida apenas para a escolha dos meios que melhor
se adaptam a seu propósito artístico, mas também para a definição do próprio propósito
artístico — o programa teórico já não está meramente preocupado com métodos, mas também
com objetivos. Desse ponto de vista, o maneirismo é o primeiro estilo moderno, o primeiro
preocupado com um problema cultural e que encara as relações entre tradição e inovação
como um problema a ser solucionado por meios racionais. A tradição, nesse caso, nada mais é
do que um baluarte contra todas as tempestades iminentes e excessivamente violentas do
desconhecido, do não-familiar, um elemento que é sentido como um princípio de vida, mas
também de destruição. É impossível entender o maneirismo se não se percebe o fato de que
sua imitação dos modelos clássicos é uma fuga diante do caos ameaçador, e que a subjetiva e
exagerada distorção de suas formas é a expressão do medo de que a forma possa fracassar na
luta com a vida e a arte esvair-se numa beleza sem alma.
6. O interesse tópico do maneirismo para nós, a revisão a que foi recentemente
submetida a arte de Tintoretto, El Greco, Bruegel e do Michelangelo tardio, é tão sintomático
do clima intelectual dos nossos dias quanto o foi a reavaliação da Renascença para a geração
de Burckhardt e a defesa do barroco para a de Riegl e Wölfflin. Burckhardt considerou
Parmigianino afetado e repulsivo, e Wölfflin ainda viu no maneirismo algo da natureza de um
distúrbio no desenvolvimento natural e saudável da arte — um intermezzo supérfluo entre a
Renascença e o barroco. Somente uma época que tinha vivenciado a tensão entre forma e
conteúdo, entre beleza e expressão, como seu próprio problema vital, podia fazer justiça ao
maneirismo e desvendar a verdadeira natureza de sua individualidade, em contraste com a
Renascença e o barroco. A Wölfflin ainda faltava a experiência direta e genuína da arte pós-
impressionista — a experiência que permitiu a Dvorak avaliar a importância das tendências
espiritualistas na história da arte e ver no maneirismo a vitória de uma tal tendência. Dvorak
sabia perfeitamente que o espiritualismo não esgota o [372] signifi|cado da arte maneirista e
que não representa, como o transcendentalismo da Idade Média, uma completa renúncia do
mundo; não esqueceu o fato de que além de um Greco havia também um Bruegel, e de que ao
lado de um Tasso havia um Shakespearee um Cervantes280. O principal problema a interessá-
lo parece ter sido precisamente o relacionamento mútuo, o denominador comum e o princípio
de diferenciação entre os vários fenômenos — espiritualistas e naturalistas — dentro do
maneirismo. As análises desse erudito, que morreu prematuramente, não vão muito além,
lamentavelmente, do enunciado dessas duas tendências, por ele qualificadas de “dedutiva e
indutiva”, as quais fazem com que seja ainda mais deplorável o fato de a vida de Dvorak ter
sido tão cedo cerceada.
7. As duas correntes opostas no maneirismo — o espiritualismo místico de El Greco e o
naturalismo panteísta de Bruegel — nem sempre se confrontam mutuamente, porém, como
tendências estilísticas distintas personificadas por diferentes artistas, pois estão, de fato,
usualmente interligadas de forma indissolúvel. Pontormo e Rosso, Tintoretto e Parmigianino,
Mor e Bruegel, Heemskerck e Callot são realistas tão indiscutíveis quanto idealistas, e a
complexa e dificilmente diferenciável unidade de naturalismo e espiritualismo, formalismo e
ausência de forma, concretitude e abstração, na arte deles é a fórmula básica do estilo que lhes
é comum. Mas essa heterogeneidade de tendências não sugere um mero subjetivismo e uma
pura arbitrariedade na escolha do grau de realidade a ser atingido na obra de arte, como até o
próprio Dvorak pensou281, mas trata-se antes de um sinal da fragmentação de todos os critérios
de realidade e o resultado da tentativa, freqüentemente desesperada, de harmonizar a
espiritualidade medieval com o realismo renascentista.
8. Nada caracteriza melhor a perturbação da harmonia clássica do que a desintegração
280
MAX DVORAK: “Über Greco und den Manierismus” [Sobre El Greco e o Maneirismo]. In: Kunstgeschichte
als Geistesgeschichte [História da arte como ciência do espírito], 1924, p. 271.
281
MAX DVORAK: “Pieter Bruegel der Altere” [Peter Bruegel da Antigüidade], idem, p. 222.
196

daquela unidade espacial que era a mais fecunda expressão da concepção renascentista de
arte. A uniformidade de cena, a coerência topográfica da composição, a consistente lógica da
estrutura espacial estavam para a Renascença entre as mais importantes condições prévias do
efeito artístico de uma pintura. Todo o sistema de desenho em [373] perspectiva, todas as
regras de proporção e de tectônica eram simplesmente meios a serviço de um objetivo
supremo de lógica e unidade espaciais. O maneirismo começa decompondo a estrutura
renascentista de espaço e desmembrando a cena a ser representada em partes separadas, não
apenas externamente separadas, mas também internamente organizadas de modo diferente.
Isso permite que diferentes valores espaciais, diferentes padrões, diferentes possibilidades de
movimento predominem nas várias seções do quadro: numa, o princípio de economia, noutra
o de extravagância no tratamento do espaço. Essa decomposição da unidade espacial do
quadro expressa-se de modo notável no fato de não existir relacionamento capaz de
formulação lógica entre o tamanho e a importância temática das figuras. Motivos que parecem
ser de significação apenas secundária para o tema real da pintura são, com freqüência,
arbitrariamente proeminentes, ao passo que o que é manifestamente o tema principal é
desvalorizado e suprimido. É como se o artista estivesse tentando dizer: Não está decidido, de
maneira nenhuma, quem são os principais atores e quem são meros figurantes em minha peça!
O efeito final é o de figuras reais movimentando-se num espaço irreal, arbitrariamente
construído, a combinação de detalhes reais numa estrutura imaginária, a livre manipulação
dos coeficientes espaciais puramente de acordo com o propósito do momento. A mais
próxima analogia com esse mundo de confusa realidade é o sonho, no qual as conexões reais
são abolidas e as coisas colocadas em abstrata relação recíproca, mas no qual os próprios
objetos individuais são descritos com a maior exatidão e a mais rigorosa fidelidade à natureza.
Ao mesmo tempo, lembra a arte contemporânea, tal como é expressa na descrição de
associações na pintura surrealista, no mundo onírico de Franz Kafka, na técnica de montagem
dos romances de Joyce e no tratamento autocrático do espaço no filme. Sem a experiência
dessas tendências recentes, o maneirismo dificilmente poderia ter adquirido seu atual
significado para nós.
9. Até mesmo a caracterização mais genérica do maneirismo contém aspectos muito
variáveis, difíceis de reunir num conceito uniforme. Uma dificuldade especial reside no fato
de que [374] o maneirismo não cobre um período histórico particular, estritamente delimitado.
Representa certamente o principal estilo entre a terceira década e o final do século, mas não
domina o século sem oposição, e, sobretudo no começo e no fim do período, mistura-se com
tendências barrocas. As duas linhas já estão estreitamente interligadas nas últimas obras de
Rafael e Michelangelo. Nessas obras já existe uma competição entre os propósitos
veementemente expressionistas do barroco e a concepção intelectualmente “surrealista” do
maneirismo. Os dois estilos pós-clássicos surgem quase ao mesmo tempo como fruto da crise
intelectual das primeiras décadas do século: o maneirismo como a expressão do antagonismo
entre as tendências espiritualistas e sensualistas da época, e o barroco como a solução
temporária do conflito na base do sentimento espontâneo. Após o saque de Roma, a tendência
barroca em arte é gradualmente reprimida, e segue-se um período de mais de 60 anos em que
o maneirismo predomina. Alguns estudiosos interpretam o maneirismo como uma reação ao
barroco inicial, e o barroco tardio como o contramovimento que supera então o maneirismo 282.
A história da arte do século XVI consistiria, pois, em repetidos choques entre maneirismo e
barroco, com a vitória temporária da tendência maneirista e a vitória final da tendência
barroca — semelhante teoria, contudo, marca o início do barroco antes do maneirismo e
exagera o caráter transitório deste último283 — o que não se justifica. O conflito entre os dois
282
W. PINDER: Das Problem der Generation [O problema da geração], p. 140. — O mesmo, Die deutsche
Plastik vom ausgebenden Mittelalter bis zum Ende der Renaissance [As artes plásticas alemãs da Idade Média
até o fim da Renascença], 1928, II, p. 252.
283
Isso ocorre sobretudo em W. WEISBACH: “Der Manierismus” [O Maneirismo], p. 162, e MARGARETE
HÖRNER: “Der Manierismus als künstlerische Anschaungsform” [O Maneirismo como forma de intuição
197

estilos é, na realidade, mais sociológico do que puramente histórico. O maneirismo é o estilo


artístico de uma classe aristocrática, essencialmente culta e Internacional, o barroco inicial a
expressão de uma tendência mais popular, mais emocional e nacionalista. O barroco maduro
triunfa sobre o estilo mais refinado do maneirismo à medida que a propaganda eclesiástica da
Contra-Reforma se difunde e o catolicismo volta a ser uma religião do povo. A arte palaciana
do século XVII adapta o barroco a suas necessidades específicas; por um lado, elabora o
emocionalismo barroco até convertê-lo numa opulenta teatralidade e, por outro, transforma
seu classicismo latente na expressão de um autoritarismo austero e lúcido. No século XVI,
porém, [375] o maneirismo é o estilo palaciano por excelência. Em todas as cortes influentes
da Europa, é a tendência predileta em detrimento de quaisquer outras. Os pintores da corte dos
Medici em Florença, de Francisco I em Fontainebleau, de Filipe II em Madri, de Rodolfo II
em Praga e de Alberto V em Munique são maneiristas. Com as maneiras e os costumes das
cortes italianas, o mecenato principesco propaga-se por toda a Europa ocidental e é, inclusive,
intensificado em certas cortes, por exemplo em Fontainebleau. A corte dos Valois já é muito
grande e pretensiosa, e exibe características que lembram as da ulterior corte de Versalhes 284.
O ambiente das cortes menores é menos deslumbrante, menos público e, em alguns aspectos,
mais de acordo com a natureza intimista e intelectualista do maneirismo. Bronzino e Vasari
em Florença, Adriaen de Vries, Bartolomeu Spränger, Hans van Aachen e Josef Heinz em
Praga, Sustris e Candid em Munique desfrutam, além da generosidade de seus mecenas, a
intimidade de um ambiente menos pretensioso. Existe afeição até no relacionamento de Filipe
II com seus artistas, o que é surpreendente em virtude do caráter taciturno desse monarca. O
pintor português Cláudio Coelho é um dos amigos mais íntimos do rei, um corredor especial
liga os aposentos reais aos ateliês dos artistas da corte, e diz-se que ele próprio teria sido
pintor285. Quando se torna Imperador, Rodolfo II muda-se para o Hradshin em Praga, exclui-
se do mundo com seus astrólogos, alquimistas e artistas, e tem quadros pintados, cujo refinado
erotismo e mordaz elegância sugerem mais a atmosfera hedonista de um ambiente rococó do
que a solitária e desolada residência de um maníaco. Os dois primos, Filipe e Rodolfo, têm
sempre dinheiro de sobra para gastar em obras de arte e tempo de sobra para artistas e
marchands; uma obra de arte é o meio mais seguro de conseguir uma audiência com eles 286.
Há um impulso furtivo e ciumento desses governantes em seu afã de colecionar obras de arte;
os motivos de propaganda e exibicionismo dissipam-se quase por completo cru contraste com
o motivo supremo de hedonismo estético.
10. O maneirismo da corte é, especialmente em sua forma ulterior, um movimento
uniforme e universalmente europeu — [376] o primeiro grande estilo internacional desde o
gótico. A fonte de sua influência universal é o absolutismo que se propaga a toda a Europa
ocidental e a voga das cortes intelectualmente interessadas e artisticamente ambiciosas. No
século XVI, a língua e a arte italianas alcançam uma influência universal que lembra a
autoridade do latim na Idade Média; o maneirismo é a forma particular em que se disseminam
no estrangeiro as realizações artísticas da Renascença italiana. Esse caráter internacional,
entretanto, não é a única coisa que o maneirismo tem em comum com o gótico. A
revivificação religiosa do período, o novo misticismo, a busca ansiosa do espiritual, a
depreciação do corpo e a absorção na experiência do sobrenatural, tudo isso leva a uma
renovação dos valores góticos, a qual só encontra expressão exterior e freqüentemente
exagerada nas formas esguias do estilo maneirista. O novo espiritualismo manifesta-se mais
na tensão entre os elementos espirituais e físicos do que na completa superação da
kalokagathia [fusão do belo e do bom] clássica. Os novos ideais formais não implicam, de
forma alguma, a renúncia aos encantos da beleza física, mas retratam a luta do corpo para dar
artística], Zeitschr. F. Ästh. u. allg. Kunstwiss. [Revista estética e científica], vol, 22, 1926, p. 200.
284
ERNEST LAVISSE: Histoire de France [História da França], V, I, 1903, p. 208.
285
LUDWIG PFÄNDL: Spanische Kultur un Sitte des XVI. u. XVII. Jahrhunderts [A cultura espanhola nos
séculos XVI e XVII], 1924, p. 5.
286
L. BRIEGER, op. cit., pp. 109-10.
198

expressão ao espírito; mostram-no, por assim dizer, contorcendo-se e dobrando-se sob a


pressão do espírito, e projetado para o alto por uma excitação reminiscente dos êxtases da arte
gótica. Mediante a espiritualização da figura humana, o gótico deu o primeiro grande passo no
desenvolvimento do expressionismo moderno, e agora o maneirismo dá o segundo ao
dissolver o objetivismo da Renascença, enfatizar a atitude pessoal do artista e apelar para a
experiência pessoal do espectador.

Texto VIEIRA, António. Sermão da Sexagésima. In: Sermões. Porto: Lello & Irmão, 1959.
22 v. 1. p. 3-38.287

[3] Semen est verbum Dei288.


Luc., VIII, 11.

1. E se quisesse Deus que este tão ilustre e tão numeroso auditório saísse hoje tão
desenganado da pregação, como vem enganado com o pregador! Ouçamos o Evangelho, e
ouçamo-lo todo, que todo é do caso que me levou e trouxe de tão longe289.
2. Ecce exiit qui seminat, seminare290. Diz Cristo que «saiu o pregador evangélico a
semear a palavra divina. [4] Bem parece este texto dos livros de Deus. Não só faz menção do
semear, mas também faz caso do sair: Exiit, porque no dia da messe hão-nos de medir a
semeadura e hão-nos de contar os passos. O Mundo, aos que lavrais com ele, nem vos satisfaz
o que dispendeis, nem vos paga o que andais. Deus não é assim. Para quem lavra com Deus
até o sair é semear, porque também das passadas colhe fruto. Entre os semeadores do
Evangelho há uns que saem a semear, há outros que semeiam sem sair. Os que saem a semear
são os que vão pregar à Índia, à China, ao Japão; os que semeiam sem sair, são os que se
contentam com pregar na Pátria. Todos terão sua razão, mas tudo tem sua conta. Aos que têm
a seara em casa, pagar-lhes-ão a semeadura; aos que vão buscar a seara tão longe, hão-lhes de
medir a semeadura e hão-lhes de contar os passos. Ah Dia do Juízo! Ah pregadores! Os de cá,
achar-vos-eis com mais paço; os de lá, com mais passos: Exiit seminare.
3. Mas daqui mesmo vejo que notais (e me notais) que diz Cristo que o semeador do
Evangelho saiu, porém não diz que tornou porque os pregadores evangélicos, os homens que
professam pregar e propagar a Fé, é bem que saiam, mas não é bem que tornem. Aqueles
animais de Ezequiel291, que tiravam pelo carro triunfal da glória de Deus e significavam os
pregadores do Evangelho que propriedades tinham? Nec revertebantur, cum ambularent292:
Uma vez que iam, não tornavam. As rédeas por que se governavam era o ímpeto do espírito,
287
VIEIRA, Pe. António. Sermões. Porto: Lello, 1959. 15 tomos em 5 v. Trata-se de uma edição que contém 208
sermões. Foram pregados em Belém (Pará) os seguintes textos: “Sermão na Madrugada da Ressurreição (v. 2, t.
5, p. 119-132); “Sermão da Ressurreição de Cristo” (v. 2, t. 5, p. 175-193); “Sermão da Primeira Oitava da
Páscoa” (v. 2, t. 5, p. 219-255) e “Sermão de Nossa Senhora da Graça” (v. 4, t. 10, p. 165-201). Cf. na BND as
preciosas edições seiscentistas: VIEIRA, António. Sermoens. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1682-1699.
7 v. e VIEIRA, António. Sermoens, primeyra parte. Lisboa: Officina de Joam da Costa, 1679. 689 p.
288
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Trad. Antônio Pereira de Figueiredo. Erechim: Edelbra, 1985. 1102 p.
Sigla BS. Cf. “A semente é a palavra de Deus.” (p. 926). Todas as indicações e traduções foram feitas pelo
Organizador.
289
Este Sermão magistral foi pregado por Vieira, no seu regresso das Missões longínquas do Maranhão, na
Capela Real, em 1655. O grande orador verbera nele os desvarios da linguagem dos pregadores do seu tempo. É
uma das peças mais brilhantes da eloquência vieirense, onde fica definitivamente traçada a teoria da unidade
oratória que deve resplandecer na pregação apostólica. § As comparações e alegorias que revestem este Sermão,
resumem os símbolos mais perfeitos, os exemplos mais clássicos que até hoje se têm apresentado da aliança que
deve existir num sermão entre a variedade e a unidade.
290
Mat., XIII, 3. [BS, p. 880 = “Eis aí que saiu o que semeia, a semear.”]
291
Ezequ., I, 12. [BS, p. 708]
292
S. Greg., in Ezequiel. [BS, p. 708 = “... nem se voltavam quando iam andando.”]
199

como diz o mesmo texto: mas esse espírito tinha impulsos para os levar, não tinha regresso
para os trazer; porque sair para tornar melhor é não sair. Assim arguis com muita razão, e eu
também assim o digo. Mas pergunto: E se esse semeador evangélico, quando saiu, achasse o
campo tomado; se se armassem contra ele os espinhos; se se levantassem contra ele as [5]
pedras, e se lhe fechassem os caminhos que havia de fazer?
4. Todos estes contrários que digo e todas estas contradições experimentou o semeador
do nosso Evangelho. Começou ele a semear (diz Cristo), mas com pouca ventura. «Uma parte
do trigo caiu entre espinhos, e afogaram-no os espinhos: Aliud cecidit inter spinas et simul
exortae spinae suffocaverunt illud293. Outra parte caiu sobre pedras, e secou-se nas pedras por
falta de humidade: Aliud cecidit super petram, et natum aruit, quia non habebat humorem 294.
Outra parte caiu no caminho, e pisaram-no os homens e comeram-no as aves: Aliud cecidit
secus viam, et conculcatum est, et volucres coeli comederunt illud 295. Ora vede como todas as
criaturas do Mundo se armaram contra esta sementeira. Todas as criaturas quantas há no
Mundo se reduzem a quatro géneros: criaturas racionais, como os homens; criaturas
sensitivas, como os animais; criaturas vegetativas, como as plantas; criaturas insensíveis,
como as pedras; e não há mais. Faltou alguma destas que se não armasse contra o semeador?
Nenhuma. A natureza insensível o perseguiu nas pedras, a vegetativa nos espinhos, a sensitiva
nas aves, a racional nos homens. E notai a desgraça do trigo, que onde só podia esperar razão,
ali achou maior agravo. As pedras secaram-no, os espinhos afogaram-no, as aves comeram-
no; e os homens? Pisaram-no: Conculcatum est. Ab hominibus [... e foi pisada. Pelos homens]
(diz a Glossa). Quando Cristo mandou pregar os Apóstolos pelo Mundo, disse-lhes desta
maneira: Euntes in mundum universum, praedicate omni creaturae:296 Ide, e pregai a toda a
criatura. Como assim, Senhor?! Os animais não são criaturas?! As árvores não são criaturas?!
As pedras não são criaturas?! Pois hão os Apóstolos de pregar às pedras?! Hão-de pregar aos
troncos?! Hão-de pregar aos animais?! Sim, diz S. Gregório, depois de Santo Agostinho.
Porque como os Apóstolos iam pregar [6] a todas as nações do Mundo, muitas delas bárbaras
e incultas, haviam de achar os homens degenerados em todas as espécies de criaturas: haviam
de achar homens homens, haviam de achar homens brutos, haviam de achar homens troncos,
haviam de achar homens pedras. E quando os pregadores evangélicos vão pregar ar a toda a
criatura, que se armem contra eles todas as criaturas?! Grande desgraça!
5. Mas ainda a do semeador do nosso Evangelho não foi a maior. A maior é a que se
tem experimentado na seara aonde eu fui, e para onde venho. Tudo o que aqui padeceu o
trigo, padeceram lá os semeadores. Se bem advertirdes, houve aqui trigo mirrado, trigo
afogado, trigo comido e trigo pisado. Trigo mirrado: Natum aruit, quia non habebat
humorem297; trigo afogado: Exortae spinae suffocaverunt illud298; trigo comido: Volucres caeli
comederunt illud299; trigo pisado: Conculcutum est300. Tudo isto padeceram os semeadores
evangélicos da missão do Maranhão de doze anos a esta parte. Houve missionários afogados,
porque uns se afogaram na boca do grande rio das Amazonas; houve missionários comidos,
porque a outros comeram os bárbaros na ilha dos Arnãs: houve missionários mirrados, porque
tais tornaram os da jornada dos Tocantins, mirrados da fome e da doença, onde tal houve, que
andando vinte e dois dias perdido nas brenhas matou somente a sede com o orvalho que
lambia das folhas. Vede se lhe quadra bem o Natum aruit, quia non habebant humorem?301 E
293
[BS, Lucas, 8: 7, p. 926 = “E a outra caiu entre espinhos, e logo os espinhos que nasceram com ela, a
afogaram.”]
294
[BS, Lucas, 8: 6, p. 926 = “E a outra caiu sobre pedregulho: e quando foi nascida se secou, porque não tinha
umidade. ”]
295
[BS, Lucas, 8: 5, p. 926 = “uma parte caiu junto ao caminho, e foi pisada, e a comeram as aves do céu.”]
296
Marc., XVI, 15. [BS, p. 916 = “Ide por todo o mundo, pregai o Evangelho a toda a criatura.”]
297
[BS, Lucas, 8: 6, p. 926 = “e quando foi nascida se secou, porque não tinha umidade. ”]
298
[BS, Lucas, 8: 7, p. 926 = “e logo os espinhos que nasceram com ela, a afogaram.”]
299
[BS, Lucas, 8: 5, p. 926 = “e a comeram as aves do céu.”]
300
[BS, Lucas, 8: 5, p. 926 = “uma parte caiu junto ao caminho, e foi pisada...”]
301
[BS, Lucas, 8: 6, p. 926 = “e quando foi nascida se secou, porque não tinha umidade. ”]
200

que sobre mirrados, sobre afogados, sobre comidos, ainda se vejam pisados e perseguidos dos
homens: Conculcatum est! [Foi pisada] Não me queixo nem o digo, Senhor, pelos
semeadores; só pela seara o digo, só pela seara o sinto. Para os semeadores, isto são glórias:
mirrados sim, mas por amor de vós mirrados; afogados sim, mas por amor de vós afogados;
comidos sim, mas por amor de vós comidos; pisados e perseguidos sim, mas por amor de vós
perseguidos e pisados.
6. Agora torna a minha pergunta: E que faria neste caso, ou que devia fazer o semeador
evangélico, vendo [7] tão mal logrados seus primeiros trabalhos? Deixaria a lavoura?
Desistiria da sementeira? Ficar-se-ia ocioso no campo, só porque tinha lá ido? Parece que não.
Mas se tornasse muito depressa a buscar alguns instrumentos com que alimpar a terra das
pedras e dos espinhos, seria isto desistir? Seria isto tornar atrás? Não por certo. No mesmo
texto de Ezequiel com que arguistes, temos a prova. Já vimos como dizia o texto, que aqueles
animais da carroça de Deus, quando iam não tornavam: Nec revertebantur, cum
ambularent302. Lede agora dois versos mais abaixo, e vereis que diz o mesmo texto que
aqueles animais tornavam, e semelhança de um raio ou corisco: Ibant et revertebantur in
similitudinem fulgoris coruscantis303. Pois se os animais iam e tornavam à semelhança de um
raio, como diz o texto que quando iam não tornavam? Porque quem vai e volta como um raio,
não torna. Ir e voltar como raio, não é tornar, é ir por diante. Assim o fez o semeador do nosso
Evangelho. Não o desanimou nem a primeira nem a segunda nem a terceira perda; continuou
por diante no semear, e foi com tanta felicidade, que nesta quarta e última parte do trigo se
restauraram com vantagem as perdas do demais: nasceu, cresceu, espigou, amadureceu,
colheu-se, mediu-se, achou-se que por um grão multiplicara cento: Et fecit fructum
centuplum304.
7. Oh que grandes esperanças me dá esta sementeira! Oh que grande exemplo me dá
este semeador! Dá-me grandes esperanças a sementeira porque, ainda que se perderam os
primeiros trabalhos, lograr-se-ão os últimos. Dá-me grande exemplo o semeador, porque,
depois de perder a primeira, a segunda e a terceira parte do trigo, aproveitou a quarta e última,
e colheu dela muito fruto. Já que se perderam as três partes da vida, já que uma parte da idade
a levaram os espinhos, já que outra [8] parte a levaram es pedras, já que outra parte a levaram
os caminhos, e tantos caminhos, esta quarta e última parte, este último quartel da vida, porque
se perderá também? Porque não dará fruto? Porque não terão também os anos o que tem o
ano? O ano tem tempo para as flores e tempo para os frutos. Porque não terá também o seu
Outono a vida? As flores, umas caem, outras secam, outras murcham, outras leva o vento;
aquelas poucas que se pegam ao tronco e se convertem em fruto, só essas são as venturosas,
só essas são as que aproveitam, só essas são as que sustentam o mundo. Será bem que o
Mundo morra à fome? Será bem que os últimos dias se passem em flores? Não será bem, nem
Deus quer que seja, nem há-de ser. Eis aqui porque eu dizia ao princípio, que vindes
enganados com o pregador. Mas para que possais ir desenganados com o sermão, tratarei nele
uma matéria de grande peso e importância. Servirá como de prólogo aos sermões que vos hei-
de pregar, e aos mais que ouvirdes esta Quaresma.

II
Semen est verbum Dei305.

8. O trigo que semeou o pregador evangélico, diz Cristo que é a palavra de Deus. Os
espinhos, as pedras, o caminho e a terra boa em que o trigo caiu, são os diversos corações dos
homens. Os espinhos são os corações embaraçados com cuidados, com riquezas, com delícias;
e nestes afoga-se a palavra de Deus. As pedras são os corações duros e obstinados; e nestes
302
[BS, Ezequiel, 1: 12, p. 708 = “... nem se voltavam quando iam andando.”]
303
Ezequ., I, 14. [BS, p. 708 = “E os animais iam, e voltavam à semelhança de relâmpagos coruscantes.”]
304
[BS, Lucas, 8: 8, p. 926 = “... deu fruto, cento por um.”]
305
[BS, Lucas, 8: 11, p. 926 = “A semente é a palavra de Deus.”]
201

seca-se a palavra de Deus, e se nasce, não cria raízes. Os caminhos são os corações inquietos
e perturbados com a passagem e tropel das coisas do Mundo, umas que vão, outras que vêm,
outras que atravessam, e todas passam; e nestes é pisada a palavra de Deus, porque a
desatendem ou a desprezam. Finalmente, a terra boa são os corações [9] bons ou os homens
de bom coração; e nestes prende e frutifica a palavra divina, com tanta fecundidade e
abundância, que se colhe cento por um: Et fructum fecit centuplum306.
9. Este grande frutificar da palavra de Deus é o em que reparo hoje; e é uma dúvida ou
admiração que me traz suspenso e confuso, depois que subo ao púlpito. Se a palavra de Deus
é tão eficaz e tão poderosa, como vemos tão pouco fruto da palavra de Deus? Diz Cristo que a
palavra de Deus frutifica cento por um, e já eu me contentara com que frutificasse um por
cento. Se com cada cem sermões se convertera e emendara um homem, já o Mundo fora
santo. Este argumento de fé, fundado na autoridade de Cristo, se aperta ainda mais na
experiência, comparando os tempos passados com os presentes. Lede as histórias
eclesiásticas, e achá-las-eis todas cheias de admiráveis efeitos da pregação da palavra de
Deus. Tantos pecadores convertidos, tanta mudança de vida, tanta reformação de costumes; os
grandes desprezando as riquezas e vaidades do Mundo; os reis renunciando os ceptros e as
coroas; as mocidades e as gentilezas metendo-se pelos desertos e pelas covas; e hoje? Nada
disto. Nunca na Igreja de Deus houve tantas pregações, nem tantos pregadores como hoje.
Pois se tanto se semeia a palavra de Deus, como é tão pouco o fruto? Não há um homem que
em um sermão entre em si e se resolva, não há um moço que se arrependa, não há um velho
que se desengane. Que é isto? Assim como Deus não é hoje menos omnipotente, assim a sua
palavra não é hoje menos poderosa do que dantes era. Pois se a palavra de Deus é tão
poderosa; se a palavra de Deus tem hoje tantos pregadores, porque não vemos hoje nenhum
fruto da palavra de Deus? Esta, tão grande e tão importante dúvida, será a matéria do sermão.
Quero começar pregando-me a mim. A mim será, e também a vós; a mim, para aprender a
pregar; a vós, que aprendais a ouvir.

[10] III

10. Fazer pouco fruto a palavra de Deus no Mundo, pode proceder de um de três
princípios: ou da parte do pregador, ou da parte do ouvinte, ou da parte de Deus. Para uma
alma se converter por meio de um sermão, há-de haver três concursos: há-de concorrer o
pregador com a doutrina, persuadindo; há-de concorrer o ouvinte com o entendimento,
percebendo; há-de concorrer Deus com a graça, alumiando. Para um homem se ver a si
mesmo, são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego, não se pode
ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz.
Logo, há mister luz, há mister espelho e há mister olhos. Que coisa é a conversão de uma
alma, senão entrar um homem dentro em si e ver-se a si mesmo? Para esta vista são
necessários olhos, e necessária luz e é necessário espelho. O pregador concorre com o
espelho, que é a doutrina; Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os
olhos, que é o conhecimento. Ora suposto que a conversão das almas por meio da pregação
depende destes três concursos: de Deus, do pregador e do ouvinte, por qual deles devemos
entender que falta? Por parte do ouvinte, ou por parte do pregador, ou por parte de Deus?
11. Primeiramente, por parte de Deus, não falta nem pode faltar. Esta proposição é de
fé, definida no Concílio Tridentino, e no nosso Evangelho a temos. Do trigo que deitou à terra
o semeador, uma parte se logrou e três se perderam. E porque se perderam estas três? A
primeira perdeu-se, porque a afogaram os espinhos; a segunda, porque a secaram as pedras; a
terceira, porque a pisaram os homens e a comeram as aves. Isto é o que diz Cristo; mas notai o
que não diz. Não diz que parte alguma daquele trigo se perdesse por causa do sol ou da chuva.
A causa por que ordinariamente se perdem as sementeiras, é pela desigualdade e pela [11]
306
[BS, Lucas, 8: 8, p. 926 = “... deu fruto, cento por um. ”]
202

intemperança dos tempos, ou porque falta ou sobeja a chuva, ou porque falta ou sobeja o sol.
Pois porque não introduz Cristo na parábola do Evangelho algum trigo que se perdesse por
causa do sol ou da chuva? Porque o sol e a chuva são as afluências da parte do Céu, e deixar
de frutificar a semente da palavra de Deus, nunca é por falta: do Céu, sempre é por culpa
nossa. Deixará de frutificar a sementeira, ou pelo embaraço dos espinhos, ou pela dureza das
pedras, ou pelos descaminhos dos caminhos; mas por falta das influências do Céu, isso nunca
é nem pode ser. Sempre Deus está pronto da sua parte, com o sol para aquentar e com a chuva
para regar; com o sol para alumiar e com a chuva para amolecer, se os nossos corações
quiserem: Qui solem suum oriri facit super bonos et malos, et pluit super justos et injustos 307.
Se Deus dá o seu sol e a sua chuva aos bons e aos maus; aos maus que se quiserem fazer bons,
como a negará? Este ponto é tão claro que não há para que nos determos em mais prova. Quid
debui facere vineae meae, et non feci? 308 Disse o mesmo Deus por Isaías.
12. Sendo, pois, certo que a palavra divina não deixa de frutificar por parte de Deus,
segue-se que ou é por falta do pregador ou por falta dos ouvintes. Por qual será? Os
pregadores deitam a culpa aos ouvintes, mas não é assim. Se fora por parte dos ouvintes, não
fizera a palavra de Deus muito grande fruto, mas não fazer nenhum fruto e nenhum efeito, não
é por parte dos ouvintes. Provo. Os ouvintes ou são maus ou são bons; se são bons, faz neles
fruto a palavra de Deus; se são maus, ainda que não faça neles fruto, faz efeito. No Evangelho
o temos. O trigo que caiu nos espinhos, nasceu, mas afogaram-no: Simul exortae spinae
suffocaverunt illud309. O trigo que caiu nas pedras, nasceu também, mas secou-se: Et natum
aruit310. O trigo que caiu na terra boa, nasceu e frutificou com grande [12] multiplicação: Et
natum fecit fructum centuplum311. De maneira que o trigo que caiu na boa terra, nasceu e
frutificou; o trigo que caiu na má terra, não frutificou, mas nasceu; porque a palavra de Deus é
tão funda, que nos bons faz muito fruto e é tão eficaz que nos maus ainda que não faça fruto,
faz efeito; lançada nos espinhos, não frutificou, mas nasceu até nos espinhos; lançada nas
pedras, não frutificou, mas nasceu até nas pedras. Os piores ouvintes que há na Igreja de
Deus, são as pedras e os espinhos. E porquê? Os espinhos por agudos, as pedras por duras.
Ouvintes de entendimentos agudos e ouvintes de vontades endurecidas são os piores que há.
Os ouvintes de entendimentos agudos são maus ouvintes, porque vêm só a ouvir sutilezas, a
esperar galantarias, a avaliar pensamentos, e às vezes também a picar a quem os não pica.
Aliud cecidit inter spinas312: O trigo não picou os espinhos, antes os espinhos o picaram a ele;
e o mesmo sucede cá. Cuidais que o sermão vos picou e vós, e não é assim; vós sois os que
picais o sermão. Por isto são maus ouvintes os de entendimentos agudos. Mas os de vontades
endurecidas ainda são piores, porque um entendimento agudo pode ferir pelos mesmos fios, e
vencer-se uma agudeza com outra maior; mas contra vontades endurecidas nenhuma coisa
aproveita a agudeza, antes dana mais, porque quanto as setas são mais agudas, tanto mais
facilmente se despontam na pedra. Oh! Deus nos livre de vontades endurecidas, que ainda são
piores que as pedras! A vara de Moisés abrandou as pedras, e não pôde abrandar uma vontade
endurecida: Percutiens virga bis silicem, et egressae sunt aquae largissimae 313. Induratum est
cor Pharaonis314. E com os ouvintes de entendimentos agudos e os ouvintes de vontades
endurecidas serem os mais rebeldes, é tanta a força da divina palavra, que, apesar da agudeza,
nasce nos espinhos, e [13] apesar da dureza nasce nas pedras.
13. Pudéramos arguir ao lavrador do Evangelho de não cortar os espinhos e de não

307
Mat., V, 45. [BS, p. 873 = “o qual fez nascer o seu sol sobre bons e maus; e vir chuva sobre justos e injustos.”]
308
Isaías, V, 4. [BS, p. 605 = “Que coisa há que eu devesse ainda fazer à minha vinha, que não tenha feito?]
309
[BS, Lucas, 8: 7, p. 926 = “e logo os espinhos que nasceram com ela, a afogaram.”]
310
[BS, Lucas, 8: 6, p. 926 = “e quando foi nascida se secou... ”]
311
[BS, Lucas, 8: 8, p. 926 = “... deu fruto, cento por um. ”]
312
[BS, Lucas, 8: 7, p. 926 = “E a outra caiu entre espinhos...”]
313
Núm., XX, 11. [BS, p. 127 = “... ferindo duas vezes com a vara a pederneira, saíram dela águas
copiosíssimas.]
314
Êxod., VII, 13. [BS, p. 52 = “E o coração de Faraó se endureceu.”]
203

arrancar as pedras antes de semear, mas de indústria deixou no campo as pedras e os espinhos,
para que se visse a força do que semeava. E tanta a força da divina palavra, que, sem cortar
nem despontar espinhos, nasce entre espinhos. É tanta a força da divina palavra, que, sem
arrancar nem abrandar pedras, nasce nas pedras. Corações embaraçados como espinhos
corações secos e duros como pedras, ouvi a palavra de Deus e tende confiança! Tomai
exemplo nessas mesmas pedras e nesses espinhos! Esses espinhos e essas pedras agora
resistem ao semeador do Céu; mas virá tempo em que essas mesmas pedras o aclamem e
esses mesmos espinhos o coroem.
14. Quando o semeador do Céu deixou o campo, saindo deste Mundo, as pedras se
quebraram para lhe fazerem aclamações, e os espinhos se teceram para lhe fazerem coroa. E
se a palavra de Deus até dos espinhos e das pedras triunfa; se a palavra de Deus até nas
pedras, até nos espinhos nasce; não triunfar dos alvedrios hoje a palavra de Deus, nem nascer
nos corações, não é por culpa, nem por indisposição dos ouvintes. Supostas estas duas
demonstrações; suposto que o fruto e efeitos da palavra de Deus, não fica, nem por parte de
Deus, nem por parte dos ouvintes, segue-se por consequência clara, que fica por parte do
pregador. E assim é. Sabeis, cristãos, porque não faz fruto a palavra de Deus? Por culpa dos
pregadores. Sabeis, pregadores, porque não faz fruto a palavra de Deus? Por culpa nossa.

IV

15. Mas como em um pregador há tantas qualidades, e em uma pregação tantas leis, e os
pregadores podem [14] ser culpados em todas, em qual consistirá esta culpa? No pregador
podem-se considerar cinco circunstâncias: a pessoa, a ciência, a matéria, o estilo, a voz. A
pessoa que é, e ciência que tem, a matéria que trata, o estilo que segue, a voz com que fala.
Todas estas circunstâncias temos no Evangelho. Vamo-las examinando uma por uma e
buscando esta causa.
16. Será porventura o não fazer fruto hoje a palavra de Deus, pela circunstância da
pessoa? Será porque antigamente os pregadores eram santos eram varões apostólicos e
exemplares, e hoje os pregadores são eu e outros como eu? Boa razão é esta. A definição do
pregador é a vida e o exemplo. Por isso Cristo no Evangelho não o comparou ao semeador,
senão ao que semeia. Reparai. Não diz Cristo: saiu a semear o semeador, senão, saiu a semear
o que semeia: Ecce exiit, qui seminat, seminare 315. Entre o semeador e o que semeia há muita
diferença. Uma coisa é o soldado e outra coisa o que peleja; uma coisa é o governador e outra
o que governa. Da mesma maneira, uma coisa é o semeador e outra o que semeia; uma coisa é
o pregador e outra o que prega. O semeador e o pregador é nome; o que saneia e o que prega é
ação; e as ações são as que dão o ser ao pregador. Ter o nome de pregador, ou ser pregador de
nome, não importa nada; as ações, a vida, o exemplo, as obras, são as que convertem o
Mundo. O melhor conceito que o pregador leva ao púlpito, qual cuidais que é? É o conceito
que de sua vida têm os ouvintes. Antigamente convertia-se o Mundo, hoje porque se não
converte ninguém? Porque hoje pregam-se palavras e pensamentos, antigamente pregavam-se
palavras e obras. Palavras sem obra são tiros sem bala; atroam, mas não ferem. A funda de
David derrubou o gigante, mas não o derrubou com o estalo, senão com a pedra: Infixus est
lapis in fronte ejus.316 As vozes da harpa de David lançavam fora os demónios do corpo de
Saul, mas não eram [15] vozes pronunciadas com a boca, eram vozes formadas com a mão:
David tollebat citharam, et percutiebat manu sua.317 Por isso Cristo comparou o pregador ao
semeador. O pregar que é falar faz-se com a boca; o pregar que é semear, faz-se com a mão.
Para falar ao vento, bastam palavras; para falar ao coração, são necessárias obras. Diz o
Evangelho que a palavra de Deus frutificou cento por um. Que quer isto dizer? Quer dizer que
315
Mat., XIII, 3. [BS, p. 880 = “Eis aí que saiu o que semeia, a semear.”]
316
1.º Livro dos Reis, XVII, 49. [BS, 1 Samuel, 17: 49, p. 232 = “e a pedra se encravou na sua testa”.]
317
1.º Livro dos Reis, XVI, 23. [BS, 1 Samuel, 16: 23, p. 230 = “Davi tomava a harpa, e a tocava com a sua
mão...”
204

de uma palavra nasceram em palavras? Não. Quer dizer que de poucas palavras nasceram
muitas obras. Pois palavras que frutificam obras, vede se podem ser só palavras! Quis Deus
converter o Mundo, e que fez? Mandou ao Mundo seu Filho feito homem. Notai. O Filho de
Deus, enquanto Deus, é palavra de Deus, não é obra de Deus: Genitum non factum [Gerado,
não feito]. O Filho de Deus, enquanto Deus e Homem, é palavra de Deus e obra de Deus
juntamente: Verbum caro factum est318. De maneira que até de sua palavra desacompanhada
de obras não fiou Deus a conversão dos homens. Na união da palavra de Deus com a maior
obra de Deus consistiu a eficácia da salvação do Mundo. Verbo Divino é palavra divina; mas
importa pouco que as nossas palavras sejam divinas, se forem desacompanhadas de obras. A
razão disto é porque as palavras ouvem-se, as obras vêem-se; as palavras entram pelos
ouvidos, as obras entram pelos olhos, e a nossa alma rende-se muito mais pelos olhos que
pelos ouvidos. No Céu ninguém há que não ame a Deus, nem possa deixar de o amar. Na terra
há tão poucos que o amem, todos o ofendem. Deus não é o mesmo, e tão digno de ser amado
no Céu e na Terra? Pois como no Céu obriga e necessita a todos a o amarem, e na terra não?
A razão é porque Deus no Céu é Deus visto; Deus na terra é Deus ouvido. No Céu entra o
conhecimento de Deus à alma pelos olhos: Videbimus eum sicut est;319 na terra entra-lhe o
conhecimento [16] de Deus pelos ouvidos: Fides ex auditu;320 e o que entra pelos ouvidos crê-
se, o que entra pelos olhos necessita. Viram os ouvintes em nós o que nos ouvem a nós, e o
abalo e os efeitos do sermão seriam muito outros.
17. Vai um pregador pregando a Paixão, chega ao pretório de Pilatos, conta como a
Cristo o fizeram rei de zombaria, diz que tomaram uma púrpura e lha puseram aos ombros;
ouve aquilo o auditório muito atento. Diz que teceram uma coroa de pinhos e que lha
pregaram na cabeça; ouvem todos com a mesma atenção. Diz mais que lhe ataram as mãos e
lhe meteram nelas uma cana por ceptro; continua o mesmo silêncio e a mesma suspensão nos
ouvintes. Corre-se neste espaço uma cortina aparece a imagem do Ecce Homo; eis todos
prostrados por terra, eis todos a bater no peito eis as lágrimas, eis os gritos, eis os alaridos, eis
as bofetadas. Que é isto? Que apareceu de novo nesta igreja? Tudo o que descobriu aquela
cortina, tinha já dito o pregador. Já tinha dito daquela púrpura, já tinha dito daquela coma e
daqueles espinhos, já tinha dito daquele ceptro e daquela cana. Pois se isto então não fez abalo
nenhum, como faz agora tanto? Porque então era Ecce Homo ouvido, e agora é Ecce Homo
visto; a relação do pregador entrava pelos ouvidos a representação daquela figura entra pelos
olhos. Sabem, Padres pregadores, porque fazem pouco abalo os nossos sermões? Porque não
pregamos aos olhos, pregamos só aos ouvidos. Porque convertia o Baptista tantos pecadores?
-- Porque assim como as suas palavras pregavam aos ouvidos, o seu exemplo pregava aos
olhos. As palavras do Baptista pregavam penitência: Agite poenitentiam.321 Homens, fazei
penitência; e o exemplo clamava: Ecce Homo [Eis o homem]: eis aqui está o homem que é o
retrato da penitência e da aspereza. As palavras do Baptista pregavam jejum e repreendiam os
regalos e demasias da [17] gula; e o exemplo clamava: Ecce Homo: eis aqui está o homem
que se sustenta de gafanhotos e mel silvestre. As palavras do Baptista pregavam composição e
modéstia, e condenavam a soberba e a vaidade das galas; e o exemplo clamava: Ecce Homo:
eis aqui está o homem vestido de peles de camelo, com as cordas e cilício à raiz da carne. As
palavras do Baptista pregavam despegos e retiros do Mundo, e fugir das ocasiões e dos
homens; e o exemplo clamava: Ecce Homo [Eis o homem]: eis aqui o homem que deixou as
cortes e as sociedades, e vive num deserto e numa cova. Se os ouvintes ouvem uma coisa e
vêem outra, como se hão-de converter? Jacob punha as varas manchadas diante das ovelhas
quando concebiam, e daqui procedia que os cordeiros nasciam manchados. 322 Se quando os
318
João, I, 14. [BS, p. 948 = “E o Verbo se fez carne...”]
319
João, III, 2. [BS, 1.º Epístola de S. João, p. 1082 = “veremos bem como ele é.”]
320
Rom., X, 16. [BS, Romanos, 10: 17, p. 1007 = “a fé é pelo ouvido”. ]
321
Mat., III, 2. [BS, p. 870 = “Fazer penitência”. ]
322
Factumque est ut oves intuerentur virgas er parerent maculosa. (Génes., XXX, 39). [BS, p. 26 = “Com efeito
sucedeu, que estando as ovelhas no fervor do coito, olhando para estas varas, conceberam uns cordeiros
205

ouvintes percebem os nossos conceitos, têm diante dos olhos as nossas manchas, como hão-de
conceber virtudes? Se a minha vida é apologia contra a minha doutrina, se as minhas palavras
vão já refutadas nas minhas obras, se uma cousa é o semeador e outra o que semeia, como se
há-de fazer fruto?
18. Muito boa e muito forte razão era esta de não fazer fruto a palavra de Deus; mas tem
contra si o exemplo e experiência de Jonas. 323 Jonas fugitivo de Deus, desobediente,
contumaz, e, ainda depois de engolido e vomitado iracundo, impaciente, pouco caritativo,
pouco misericordioso, e mais zeloso e amigo da própria estimação que da honra de Deus e
salvação das almas, desejoso de ver subvertida a Nínive e de a ver subverter com seus olhos,
havendo nela tantos mil inocentes; contudo este mesmo homem com um sermão converteu o
maior rei, a maior corte e o maior reinado do Mundo, e não de homens fiéis senão de gentios
idólatras. Outra é logo a causa que buscamos. Qual será?

[18] V

19. Será porventura o estilo que hoje se usa nos púlpitos? Um estilo tão empeçado, um
estilo tão dificultoso, um estilo tão afectado, um estilo tão encontrado a toda a arte e a toda a
natureza? Boa razão é também esta. O estilo há-de ser muito fácil e muito natural. Por isso
Cristo comparou o pregar ao semear: Exiit, qui seminat, seminare324. Compara Cristo o pregar
ao semear, porque o semear é uma arte que tem mais de natureza que de arte. Nas outras artes
tudo é arte: na música tudo se faz por compasso, na arquitectura tudo se faz por regra, na
aritmética tudo se faz por conta, na geometria tudo se faz por medida. O semear não é assim.
É uma arte sem arte caia onde cair. Vede como semeava o nosso lavrador do Evangelho. Caía
o trigo nos espinhos e nascia Aliud cecidit inter spinas, et simul exortae spinae 325. Caía o trigo
nas pedras e nascia: Aliud cecidit super petram, et ortum326. Caía o trigo na terra boa e nascia:
Aliud cecidit in terram bonam, et natum327. Ia o trigo caindo e ia nascendo.
20. Assim há-de ser o pregar. Hão-de cair as coisas hão-de nascer; tão naturais que vão
caindo, tão próprias que venham nascendo. Que diferente é o estilo violento e tirânico que
hoje se usa! Ver vir os tristes passos da Escritura, como quem vem ao martírio; uns vêm
acarretados, outros vêm arrastados, outros vêm estirados, outros vêm torcidos, outros vêm
despedaçados; só atados não vêm! Há tal tirania? Então no meio disto, que bem levantado está
aquilo! Não está a coisa no levantar, está no cair: Cecidit [caiu]. Notai uma alegoria própria
da nossa língua. O trigo do semeador, ainda que caiu quatro vezes, só de três nasceu; para o
sermão vir nascendo, há-de ter três modos de cair: há-de cair com queda, há-de cair com
cadência há-de cair com caso. A queda é para as coisas, a cadência para as palavras, o caso
para a disposição. A queda é para as coisas porque hão-de vir bem trazidas e em seu lugar;
hão-de ter queda. A cadência é para as [19] palavras, porque não hão-de ser escabrosas nem
dissonantes; hão-de ter cadência. O caso é para a disposição, porque há-de ser tão natural e
tão desafectada que pareça caso e não estudo: Cecidit, cecidit, cecidit [caiu, caiu, caiu].
21. Já que falo contra os estilos modernos, quero alegar por mim o estilo do mais antigo
pregador que houve no Mundo. E qual foi ele? O mais antigo pregador que houve no Mundo
foi o céu. Coeli enarrant gloriam Dei et opera manuum ejus annuntiat Firmamentum, diz
David.328 Suposto que o céu é pregador, deve de ter sermões e deve de ter: palavras. Sim, tem,

malhados, vários, e de diversas cores.”]


323
Jonas, 1, 2, 3 e 4. [BS, p. 789-790]
324
Mat., XIII, 3. [BS, p. 880 = “Eis aí que saiu o que semeia, a semear.”]
325
[BS, Lucas, 8: 7, p. 926 = “E a outra caiu entre espinhos, e logo os espinhos que nasceram com ela, a
afogaram.”]
326
[BS, Lucas, 8: 6, p. 926 = “E a outra caiu sobre pedregulho: e quando foi nascida...”]
327
[BS, Lucas, 8: 8, p. 926 = “E a outra caiu em boa terra: e depois de nascer...”]
328
Sal., XVIII, 1. [BS, p. 453 = “Os céus publicam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras das suas
mãos.”
206

diz o mesmo David; tem palavras e tem sermões; e mais, muito bem ouvidos. Non sunt
loquellae, nec sermones, quorum non audiantur voces eorum 329. E quais são estes sermões e
estas palavras do céu? As palavras são as estrelas, os sermões são a composição, a ordem, a
harmonia e o curso delas. Vede como diz o estilo de pregar do céu, com o estilo que Cristo
ensinou na terra. Um e outro é semear; a terra semeada de trigo, o céu semeado de estrelas. O
pregar há-de ser como quem semeia, e não como quem ladrilha ou azuleja. Ordenado, mas
como as estrelas: Stellae manentes in ordine suo330. Todas as estrelas estão por sua ordem;
mas é ordem que faz influência, não é ordem que faça lavor. Não fez Deus o céu em xadrez de
estrelas, como os pregadores fazem o sermão em xadrez de palavras. Se de uma parte há-de
estar branco, da outra há-de estar negro; se de uma parte dizem luz, da outra hão-de dizer
sombra; se de uma parte dizem desceu, da outra hão-de dizer subiu. Basta que não havemos
de ver num sermão duas palavras em paz? Todas hão-de estar sempre em fronteira com o seu
contrário? Aprendamos do céu o estilo da disposição, e também o das palavras. As estrelas
são muito distintas e [20] muito claras. Assim há-de ser o estilo da pregação; muito distinto e
muito claro. E nem por isso temais que pareça o estilo baixo; as estrelas são muito distintas e
muito claras, e altíssimas. O estilo pode ser muito claro e muito alto; tão claro que o entendam
os que não sabem e tão alto que tenham muito que entender os que sabem. O rústico acha
documentos nas estrelas para sua lavoura e o mareante para sua navegação e o matemático
para as suas observações e para os seus juízos. De maneira que o rústico e o mareante, que
não sabem ler nem escrever entendem as estrelas; e o matemático, que tem lido quantos
escreveram, não alcança a entender quanto nelas há. Tal pode ser o sermão: estrelas que todos
vêem, e muito poucos as medem.
22. Sim, Padre; porém esse estilo de pregar não é pregar culto. Mas fosse! Este
desventurado estilo que hoje se usa, os que o querem honrar chamam-lhe culto, os que o
condenam chamam-lhe escuro, mas ainda lhe fazem muita honra. O estilo culto não é escuro,
é negro, e negro boçal e muito cerrado. E possível que somos portugueses e havemos de ouvir
um pregador em português e não havemos de entender o que diz?! Assim como há Lexicon
para o grego e Calepino para o latim, assim é necessário haver um vocabulário do púlpito. Eu
ao menos o tomara para os nomes próprios, porque os cultos têm desbaptizados os santos, e
cada autor que alegam é um enigma. Assim o disse o Ceptro Penitente, assim o disse o
Evangelista Apeles, assim o disse a Águia de África, o Favo de Claraval, a Púrpura de Belém,
a Boca de Ouro. Há tal modo de alegar! O Ceptro Penitente dizem que é David, como se
todos os ceptros não foram penitência; o Evangelista Apeles, que é S. Lucas; o Favo de
Claraval, S. Bernardo; a Águia de África, Santo Agostinho; a Púrpura de Belém, S. Jerónimo;
a Boca de Ouro, S. Crisóstomo. E quem quitaria ao outro cuidar que a Púrpura de Belém é
Herodes que a Águia de África é Cipião, e que a Boca de Ouro é Midas? Se houvesse um
advogado [21] que alegasse assim a Bártolo e Baldo, havíeis de fiar dele o vosso pleito? Se
houvesse um homem que assim falasse na conversação, não o havíeis de ter por néscio? Pois
o que na conversação seria necessidade, como há-de ser discrição no púlpito?
23. Boa me parecia também esta razão; mas como os cultos pelo polido e estudado se
defendem com o grande Nazianzeno, com Ambrósio, com Crisólogo, com Leão, e pelo escuro
e duro com Clemente Alexandrino, com Tertuliano, com Basílio de Selêucia, com Zeno
Veronense e outros, não podemos negar a reverência a tamanhos autores posto que
desejáramos nos que se prezam de beber destes rios, a sua profundidade. Qual será logo a
causa de nossa queixa?

VI

24. Será pela matéria ou matérias que tomam os pregadores? Usa-se hoje o modo que

329
Sal., XVIII, 4. [BS, p. 453 = “Não há linguagem, nem fala, por quem não sejam entendidas as suas vozes.”
330
Juízes, V, 20. [BS, p. 197 = “as estrelas persistindo na sua ordem...”]
207

chamam de apostilar o Evangelho, em que tomam muitas matérias, levantam muitos assuntos
e quem levanta muita caça e não segue nenhuma não é muito que se recolha com as mãos
vazias. Boa razão é também esta. O sermão há-de ter um só assunto e uma só matéria. Por isso
Cristo disse que o lavrador do Evangelho não semeara muitos géneros de sementes, senão
uma só: Exiit, qui seminat, seminare semen331. Semeou uma semente só, e não muitas, porque
o sermão há-de ter uma só matéria, e não muitas matérias. Se o lavrador semeara primeiro
trigo, e sobre o trigo semeara centeio, e sobre o centeio semeara milho grosso e miúdo, e
sobre o milho semeara cevada, que havia de nascer? Uma mata brava, uma confusão verde.
Eis aqui o que acontece aos sermões deste género. Como semeiam tanta variedade, não
podem colher coisa certa. Quem semeia misturas, mal pode colher trigo. Se uma nau fizesse
um bordo para o norte, outro para o sul, outro para leste, outro para oeste, como poderia fazer
viagem? Por isso nos púlpitos se trabalha tanto e se navega tão pouco. Um assunto vai para
um vento, [22] outro assunto vai para outro vento; que se há-de colher senão vento? O
Baptista convertia muitos em Judeia; mas quantas matérias tomava? Uma só matéria: Parate
viam Domini;332 a preparação para o Reino de Cristo. Jonas converteu os Ninivitas; mas
quantos assuntos tomou? Um só assunto: Adhuc quadraginta dies, et Ninive subvertetur:333 a
subversão da cidade. De maneira que Jonas em quarenta dias pregou um só assunto; e nós
queremos pregar quarenta assuntos em uma hora? Por isso não pregamos nenhum. O sermão
há-de ser de uma só cor, há-de ter um só objecto, um só assunto, uma só matéria.
25. Há-de tomar o pregador uma só matéria; há-de defini-la, para que se conheça; há-de
dividi-la, para que se distinga; há-de prová-la com a Escritura; há-de declará-la com a razão;
há-de confirmá-la com o exemplo; há-de amplificá-la com as causas, com os efeitos, com as
circunstâncias, com as conveniências que se hão-de seguir, com os inconvenientes que se
devem evitar; há-de responder às dúvidas, há-de satisfazer às dificuldades; há-de impugnar e
refutar com toda a força da eloquência os argumentos contrários; e depois disto há-de colher,
há-de apertar, há-de concluir, há-de persuadir, há-de acabar. Isto é sermão, isto é pregar; e o
que não é isto, é falar de mais alto.
26. Não nego nem quero dizer que o sermão não haja de ter variedade de discursos, mas
esses hão-de nascer todos da mesma [23] matéria e continuar e acabar nela. Quereis ver tudo
isto com os olhos? Ora vede. Uma árvore tem raízes, tem tronco, tem ramos, tem folhas, tem
varas, tem flores, tem frutos. Assim há-de ser o sermão: há-de ter raízes fortes e sólidas,
porque há-de ser fundado no Evangelho; há-de ter um tronco, porque há-de ter um só assunto
e tratar uma só matéria; deste tronco hão-de nascer diversos ramos, que são diversos
discursos, mas nascidos da mesma matéria e continuados nela; estes ramos hão-de ser secos,
senão cobertos de folhas, porque os discursos hão-de ser vestidos e ornados de palavras. Há-
de ter esta árvore varas, que são a repreensão dos vícios; há-de ter flores, que são as
sentenças; e por remate de tudo, há-de ter frutos, que é o fruto e o fim a que se há-de ordenar
o sermão. De maneira que há-de haver frutos, há-de haver flores, há-de haver varas, há-de
haver folhas, há-de haver ramos; mas tudo nascido e fundado em um só tronco, que é uma só
matéria. Se tudo são troncos, não é sermão, é madeira. Se tudo são ramos, não é sermão, são
maravalhas. Se tudo são folhas, não é sermão, são versas. Se tudo são varas, não é sermão, é
feixe. Se tudo são flores, não é sermão, é ramalhete. Serem tudo frutos, não pode ser; porque
não há frutos sem árvore. Assim que nesta árvore, à que podemos chamar «árvore da vida»,
há-de haver o proveitoso do fruto, o formoso das flores, o rigoroso das varas, o vestido das
folhas, o estendido dos ramos; mas tudo isto nascido e formado de um só tronco e esse não
levantado no ar, senão fundado nas raízes do Evangelho: Seminare semen. Eis aqui como hão-
de ser os sermões, eis aqui como não são. E assim não é muito que se não faça fruto com eles.
27. Tudo o que tenho dito pudera demonstrar largamente, não só com os preceitos dos
Aristóteles, dos Túlios, dos Quintilianos, mas com a prática observada do príncipe dos
331
Mat., XIII, 3. [BS, p. 880 = “Eis aí que saiu o que semeia, a semear.”]
332
Mat., III, 3. [BS, p. 870 = “preparai o caminho do Senhor!”]
333
Jonas, III, 4. [BS, p. 790 = “Daqui a quarenta dias será Nínive subvertida.”]
208

oradores evangélicos, S. João Crisóstomo, de S. Basílio Magno, S. Bernardo, S. Cipriano, e


com as famosíssimas orações de S. Gregório Nazianzeno, mestre de ambas as Igrejas. E posto
que nestes mesmos Padres, como em Santo Agostinho, S. Gregório e muitos outros, se acham
os Evangelhos apostilados com nomes de sermão e homilias, uma coisa é expor, e outra
pregar; uma ensinar e outra persuadir, desta última é que eu falo, com a qual tanto fruto
fizeram no mundo Santo António de Pádua e S. Vicente Ferrer. Mas nem por isso entendo que
seja ainda esta a verdadeira causa que busco.

[24] VII

28. Será porventura a falta de ciência que há em muitos pregadores? Muitos pregadores
há que vivem do que não colheram e semeiam o que não trabalharam. Depois da sentença de
Adão, a terra não costuma dar fruto, senão a quem come o seu pão com o suor do seu rosto.
Boa razão parece também esta. O pregador há-de pregar o seu, e não o alheio. Por isso diz
Cristo que semeou o lavrador do Evangelho o trigo seu: Semen suum [semente sua]. Semeou o
seu, e não o alheio, porque o alheio e, o furtado não é bom para semear, ainda que o furto seja
de ciência. Comeu Eva o pomo da ciência, e queixava-me eu antigamente desta nossa mãe; já
que comeu o pomo, por que lhe não guardou as pevides? Não seria bem que chegasse a nós a
árvore, já que nos chegaram os encargos dela? Pois por que não o fez assim Eva? Porque o
pomo era furtado, e o alheio é bom para comer, mas não é bom para semear: é bom para
comer, porque dizem que é saboroso; não é bom para semear, porque não nasce. Alguém terá
experimentado que o alheio lhe nasce em casa, mas esteja certo, que se nasce, não há-de deitar
raízes, e o que não tem raízes não pode dar fruto. Eis aqui por que muitos pregadores não
fazem fruto; porque pregam o alheio, e não o seu: Semen suum. O pregar é entrar em batalha
com os vícios; e armas alheias, ainda que sejam as de Aquiles, a ninguém deram vitória 334.
Quando David saiu a campo com o gigante, ofereceu-lhe Saul as suas armas, mas ele não as
quis aceitar. Com armas alheias ninguém pode vencer, ainda que seja David. As armas de
Saul só servem a Saul, e as de David a David; e mais aproveita um cajado e uma funda
própria, que a espada e a lança alheia. Pregador que peleja com as armas alheias, não hajais
medo que derrube gigante.
29. [25] Fez Cristo aos Apóstolos pescadores de homens335, que foi ordená-los de
pregadores; e que faziam os Apóstolos? Diz o texto que estavam: Reficientes retia sua336 [BS,
Mateus, 4: 21]; refazendo as redes suas; eram as redes dos Apóstolos, e não eram alheias.
Notai: Retia sua [as suas redes]: Não diz que eram suas porque as compraram, senão que eram
suas porque as faziam; não eram suas porque lhes custaram o seu dinheiro, senão porque lhes
custavam o seu trabalho. Desta maneira eram as redes suas; e porque desta maneira eram suas,
por isso eram redes de pescadores que haviam de pescar homens. Com redes alheias, ou feitas
por mão alheia, podem-se pescar peixes, homens não se podem pescar. A razão disto é porque
nesta pesca de entendimentos só quem sabe fazer a rede sabe fazer o lanço. Como se faz uma
rede? Do fio e do nó se compõe a malha; quem não enfia nem ata, como há-de fazer rede? E
quem não sabe enfiar nem sabe atar, como há-de pescar homens? A rede tem chumbada que
vai ao fundo, e tem cortiça que nada em cima da água. A pregação tem umas coisas de mais
peso e de mais fundo, e tem outras mais superficiais e mais leves; e governar o leve e o
pesado, só o sabe fazer quem faz a rede. Na boca de quem não faz a pregação, até o chumbo é
cortiça. As razões não hão-de ser enxertadas, hão-de ser nascidas. O pregar não é recitar. As
razões próprias nascem do entendimento, as alheias vão pegadas à memória, e os homens não
se convencem pela memória, senão pelo entendimento.
30. Veio o Espírito Santo sobre os Apóstolos, e quando as línguas desciam do Céu,
334
Pátroclo com as armas de Aquiles foi vencido e morto.
335
Faciam vos fieri piscatores hominum. (Mat., IV, 21). [BS, Mateus, 4: 19, p. 871 = “Farei que vós sejais
pescadores de homens.”]
336
[BS, Mateus, 4: 21, p. 871 = “que consertavam as suas redes.”]
209

cuidava eu que se lhes haviam de pôr na boca; mas elas foram-se pôr na cabeça. Pois por que
na cabeça e não na boca, que é o lugar da língua? Porque o que há-de dizer o pregador, não
lhe há-de sair só da boca; há-lhe de sair pela boca, mas da cabeça. O que sai só da boca pára
nos ouvidos; o que nasce do juízo penetra e convence o entendimento. [26] Ainda tem mais
mistério estas línguas do Espírito Santo. Diz o texto que não se puseram todas as línguas
sobre todos os Apóstolos, senão cada uma sobre cada um: Apparuerunt dispertitae linguae
tanquam ignis, seditque supra singulos eorum337. E por que cada uma sobre cada um, e não
todas sobre todos? Porque não servem todas as línguas a todos, senão a cada um a sua. Uma
língua só sobre Pedro, porque a língua de Pedro não serve a André; outra língua só sobre
André, porque a língua de André não serve a Filipe; outra língua só sobre Filipe, porque a
língua de Filipe não serve a Bartolomeu, e assim dos mais. E senão vede-o no estilo de cada
um dos Apóstolos, sobre que desceu o Espírito Santo. Só de cinco temos escrituras; mas a
diferença com que escreveram, como sabem os doutos, é admirável. As penas todas eram
tiradas das asas daquela pomba divina; mas o estilo tão diverso, tão particular e tão próprio de
cada um, que bem mostra que era seu. Mateus fácil, João misterioso, Pedro grave, Jacob forte,
Tadeu sublime, e todos com tal valentia no dizer, que cada palavra era um trovão, cada
cláusula um raio e cada razão um triunfo. Ajuntai a estes cinco S. Lucas e S. Marcos, que
também ali estavam, e achareis o número daqueles sete trovões que ouviu S. João no
Apocalipse. Locuta sunt septem tonitrua voces suas 338. Eram trovões que falavam e
desarticulavam as vozes, mas essas vozes eram suas: Voces suas [as suas vozes]; suas, e não
alheias, como notou Ansberto: Non alienas, sed suas [não alheias, mas suas]. Enfim, pregar o
alheio é pregar o alheio, e com o alheio nunca se fez coisa boa.
31. Contudo eu não me firmo de todo nesta razão, porque do grande Baptista sabemos
que pregou o que tinha pregado Isaías, como notou S. Lucas, e não com outro nome, senão de
sermões: Praedicans baptismum poenitentiae in remissionem peccatorum, sicut scriptum est
[27] in libro sermonum Isaiae prophetae339. Deixo o que tomou Santo Ambrósio de S. Basílio;
S. Próspero e Beda de Santo Agostinho; Teofilato e Eutímio de S. João Crisóstomo.

VIII

32. Será finalmente a causa, que tanto há buscamos, a voz com que hoje falam os
pregadores? Antigamente pregavam bradando, hoje pregam conversando. Antigamente a
primeira parte do pregador era boa voz e bom peito. E verdadeiramente, como o mundo se
governa tanto pelos sentidos, podem às vezes mais os brados que a razão. Boa era também
esta, mas não a podemos provar com o semeador, porque já dissemos que não era ofício de
boca. Porém o que nos negou o Evangelho no semeador metafórico, nos deu no semeador
verdadeiro, que é Cristo. Tanto que Cristo acabou a parábola, diz o Evangelho que começou o
Senhor a bradar: Haec dicens clamabat.340 Bradou o Senhor, e não arrazoou sobre a parábola,
porque era tal o auditório, que fiou mais dos brados que da razão.
33. Perguntaram ao Baptista quem era? Respondeu ele: Ego vox clamantis in deserto341.
Eu sou uma voz que anda bradando neste deserto. Desta maneira se definiu o Baptista. A
definição do pregador, cuidava eu que era: voz que arrazoa e não voz que brada. Pois por que
se definiu o Baptista pelo bradar e não pelo arrazoar; não pela razão, senão pelos brados?
Porque há muita gente neste mundo com quem podem mais os brados que a razão, e tais eram
aqueles a quem o Baptista pregava. Vede-o claramente em Cristo. Depois que Pilatos
examinou as acusações que contra ele se davam, lavou as mãos e disse: Ego nullam causam
337
Act., II, 3. [BS, p. 972 = “E lhes apareceram repartidas umas como línguas de fogo, que repousou sobre cada
um deles.”]
338
Apoc., X, 3. [BS, p. 1094 = “fizeram sete trovões soar as suas vozes.”]
339
Luc., III, 3. [BS, p. 920 = “pregando o batismo de penitência para remissão de pecados.”]
340
Luc., VIII, 8. [BS, p. 926 = “dito isto, começou a dizer em alta voz.”]
341
João, I, 23. [BS, p. 948 = “Eu sou a voz do que clama no deserto.”]
210

[28] invenio in homine isto:342 Eu nenhuma causa acho neste homem. Neste tempo todo o
povo e os escribas bradavam de fora, que fosse crucificado: At illi magis clamabant,
crucifigatur343. De maneira que Cristo tinha por si a razão e tinha contra si os brados. E qual
pôde mais? Puderam mais os brados que a razão. A razão não valeu para o livrar, os brados
bastaram para o pôr na Cruz. E como os brados no Mundo podem tanto, bem é que bradem
alguma vez os pregadores, bem é que gritem. Por isso Isaías chamou aos pregadores
«nuvens»: Qui sunt isti, qui ut nubes volant?344 A nuvem tem relâmpago, tem trovão e tem
raio: relâmpago para os olhos, trovão para os ouvidos, raio para o coração; com o relâmpago
alumia, com o trovão assombra, com o raio mata. Mas o raio fere a um, o relâmpago a muitos,
o trovão a todos. Assim há-de ser a voz do pregador, um trovão do Céu, que assombre e faça
tremer o Mundo.
34. Mas que diremos à oração de Moisés? Concrescat ut pluvia doctrina mea: fluat ut
ros eloquim meum?345 Desça minha doutrina como chuva do céu, e a minha voz e as minhas
palavras como orvalho que se destila brandamente e sem ruído. Que diremos ao exemplo
ordinário de Cristo, tão celebrado por Isaías: Non clamabit neque audietur vox ejus foris? 346
Não clamará, não bradará, mas falará com uma voz tão moderada que se não possa ouvir fora.
E não há dúvida que o praticar familiarmente, e o falar mais ao ouvido que aos ouvidos, não
só concilia maior atenção, mas naturalmente e sem força se insinua, entra, penetra e se mete
na alma.
35. Em conclusão que a causa de não fazerem hoje fruto os pregadores com a palavra de
Deus, nem é a circunstância da pessoa: Qui seminat; nem a do estilo: Seminare; nem a da
matéria: Semen; nem a da ciência: [29] suum; nem a da voz: Clamabat. Moisés tinha fraca
voz;347 Amós tinha grosseiro estilo;348 Salamão multiplicava e variava os assuntos;349 Balaão
não tinha exemplo de vida;350 o seu animal não tinha ciência; e contudo todos estes, falando,
persuadiam e convenciam. Pois se nenhuma destas razões que discorremos, nem todas elas
juntas são a causa principal nem bastante do pouco fruto que hoje faz a palavra de Deus, qual
diremos finalmente que é a verdadeira causa?

IX

36. As palavras que tomei por tema o dizem. Semen est verbum Dei351. Sabeis, Cristãos,
a causa por que se faz hoje tão pouco fruto com tantas pregações? É porque as palavras dos
pregadores são palavras, mas não são palavras de Deus. Falo do que ordinariamente se ouve.
A palavra de Deus (como diria) é tão poderosa e tão eficaz, que não só na boa terra faz fruto,
mas até nas pedras e nos espinhos nasce. Mas se as palavras dos pregadores não são palavras
de Deus, que muito que não tenham a eficácia e os efeitos da palavra de Deus? Ventum
seminabunt, et turbinem colligent,352 diz o Espírito Santo: quem semeia ventos, colhe
tempestades. Se os pregadores semeiam vento, se o que se prega é vaidade, se não se prega a
palavra de Deus, como não há a Igreja de Deus de correr tormenta, em vez de colher fruto?
37. Mas dir-me-eis: Padre, os pregadores de hoje não pregam do Evangelho, não
342
Luc., XXIII, 14. [BS, p. 945 = “não achei neste homem culpa alguma daquelas de que o acusais.”]
343
Mat., XVII, 23. [BS, Mateus, 27: 23, p. 895 = “Responderam todos: Seja crucificado.”]
344
Isaías, LV, 8. [BS, Isaías, 60: 8, p. 642 = “Quem estes que voam como nuvens?”]
345
Deut., XXXII, 2. [BS, p. 169 = Cresça como chuva a minha doutrina, distilem como orvalho as minhas
palavras…”]
346
Isaías, XLII, 2. [BS, p. 630 = “Não clamará, nem fará acepção de pessoas, nem a sua voz se ouvirá fora.”]
347
Êxod., IV, 10 (Voce gracili [voz grácil], segundo os Setenta). [BS, p. 49 = “língua mais embaraçada, e mais
tarda.”
348
Amós, I, 1. [BS, p. 782]
349
Ecles., I. [BS, p. 558-559]
350
Núm., XXII e XXIII. [BS, p. 129 e 130-131]
351
[BS, p. 926 = “A semente é a palavra de Deus.”]
352
Oseias, VIII, 7. [BS, p. 775 = “Porque eles semearão vento e segarão torvelinho.”
211

pregam das Sagradas Escrituras? Pois como não pregam a palavra de Deus? Esse é o mal.
Pregam palavras de Deus, mas não pregam a palavra de Deus: Qui habet sermonem meum,
[30] loquatur sermonem meum vere, 353 disse Deus por Jeremias. As palavras de Deus,
pregadas no sentido em que Deus as disse, são palavras de Deus; mas pregadas no sentido que
nós queremos, não são palavras de Deus, antes podem ser palavras do Demónio. Tentou o
Demónio a Cristo a que fizesse das pedras pão. Respondeu-lhe o Senhor: Non in solo pane
vivit homo, sed in omni verbo, quod procedit de ore Dei.354 Esta sentença era tirada do
capítulo VIII do Deuteronómio. Vendo o Demónio que o Senhor se defendia da tentação com
a Escritura, leva-o ao Templo, e alegando o lugar do Salmo noventa, diz-lhe desta maneira:
Mitte te deorsum; scriptum est enim, quia Angelis suis Deus mandavit de te, ut custodiant te
in omnibus viis tuis355. Deita-te daí abaixo, porque prometido está nas Sagradas Escrituras que
os anjos te tomarão nos braços, para que te não faças mal. De sorte que Cristo defendeu-se do
Diabo com a Escritura, e o Diabo tentou a Cristo com a Escritura. Todas as Escrituras são
palavra de Deus: pois se Cristo toma a Escritura para se defender do Diabo, como toma o
Diabo a Escritura para tentar a Cristo? A razão é porque Cristo tomava as palavras da
Escritura em seu verdadeiro sentido, e o Diabo tomava as palavras da Escritura em sentido
alheio e torcido; e as mesmas palavras, que tomadas em verdadeiro sentido são palavras de
Deus, tomadas em sentido alheio, são armas do Diabo. As mesmas palavras que, tomadas no
sentido em que Deus as disse, são defesa, tomadas no sentido em que Deus as não disse, são
tentação. Eis aqui a tentação com que então quis o Diabo derrubar a Cristo, e com que hoje
Lhe faz a mesma guerra do pináculo do Templo. O pináculo do Templo é o púlpito, porque é
o lugar mais alto dele. O Diabo tentou a Cristo no deserto, tentou-O no monte, tentou-O no
templo: no [31] deserto, tentou-O com a gula; no monte, tentou-O com a ambição; no templo,
tentou-O com as Escrituras mal interpretadas, e essa é a tentação de que mais padece hoje a
Igreja, e que em muitas partes tem derrubado dela, senão a Cristo, a sua fé.
38. Dizei-me, pregadores (aqueles com quem eu falo indignos verdadeiramente de tão
sagrado nome), dizei-me: esses assuntos inúteis que tantas vezes levantais, essas empresas ao
vosso parecer agudas que prosseguis, achaste-las alguma vez nos Profetas do Testamento
Velho, ou nos Apóstolos e Evangelistas do Testamento Novo, ou no autor de ambos os
Testamentos, Cristo?356 É certo que não, porque desde a primeira palavra do Génesis até à
última do Apocalipse, não há tal coisa em todas as Escrituras. Pois se nas Escrituras não há o
que dizeis e o que pregais, como cuidais que pregais a palavra de Deus? Mais: nesses lugares,
nesses textos que alegais para prova do que dizeis, é esse o sentido em que Deus os disse? É
esse o sentido em que os entendem os padres da Igreja? É esse o sentido da mesma gramática
das palavras? Não, por certo; porque muitas vezes as tomais pelo que toam e não pelo que
significam, e talvez nem pelo que toam. Pois se não é esse o sentido das palavras de Deus,
segue-se que não são palavras de Deus. E se não são palavras de Deus, que nos queixamos
que não façam fruto as pregações? Basta que havemos de trazer as palavras de Deus a que
digam o que nós queremos, e não havemos de querer dizer o que elas dizem?! E então ver
cabecear o auditório a estas coisas, quando devíamos de dar com a cabeça pelas paredes de as
ouvir! [32] Verda|deiramente não sei de que mais me espante, se dos nossos conceitos, se dos
vossos aplausos? Oh, que bem levantou o pregador! Assim é; mas que levantou? Um falso
353
Jerem., XXIII, 28. [BS, p. 666 = “e o que tem a minha palavra, anuncie a minha palavra verdadeiramente.”
354
Mat., IV, 4. [BS, p. 871 = “Não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus.”]
355
Sal., XC, 11. [BS, p. 484 = “Porquanto mandou aos seus anjos, acerca de ti, que te guardem em todos os teus
caminhos.”]
356
D. Hieronymus in Prologo Galeato Sola seripturarum ars est quam sibi passim omnes venditant, et cum aures
populi sermone composite mulserint, hoc legem Dei putant; nec scire dignantur, quid Prophetae, quid Apostoli
senserint; sed ad sensum suum incongrua aptant testimonia; quasi grande sit, et non vitiosissimum dicendi genus,
depravare sententias, et ad voluntatem suam scripturam trahere repugnantem. [São Jerônimo, no Prologo Galeato
Sola a arte das escrituras vendem para que todos possam para si, e quando os ouvidos do povo com sermões
compósitos, julgam isso lei de Deus; nem se dignam de saber o que os profetas e os Apóstolos sentiram; mas
para o seu senso coisas incongruentes são boas testemunhas: ...........................]
212

testemunho ao texto, outro falso testemunho ao santo, outro ao entendimento e ao sentido de


ambos. Então que se converta o mundo com falsos testemunhos da palavra de Deus? Se a
alguém parecer demasiada a censura, ouça-me.
39. Estava Cristo acusado diante de Caifás, e diz o Evangelista S. Mateus que por fim
vieram duas testemunhas falsas: Novissime venerunt duo falsi testes357. Estas testemunhas
referiram que ouviram dizer a Cristo que, se os Judeus destruíssem o templo, ele o tornaria a
reedificar em três dias. Se lermos o Evangelista S. João, acharemos que Cristo
verdadeiramente tinha dito as palavras referidas. Pois se Cristo tinha dito que havia de
reedificar o templo dentro em três dias, e isto mesmo é o que referiram as testemunhas, como
lhes chama o Evangelista testemunhas falsas: Duo falsi testes [duas testemunhas falsas]? O
mesmo S. João deu a razão: Loquebatur de templo corporis sui358. Quando Cristo disse que
em três dias reedificaria o templo, falava o Senhor do templo místico de seu corpo, o qual os
Judeus destruíram pela morte e o Senhor o reedificou pela ressurreição; e como Cristo falava
do templo místico e as testemunhas o referiram ao templo material de Jerusalém, ainda que as
palavras eram verdadeiras, as testemunhas eram falsas. Eram falsas, porque Cristo as dissera
em um sentido, e eles as referiram em outro; e referir as palavras de Deus em diferente
sentido do que foram ditas, é levantar falso testemunho a Deus, é levantar falso testemunho às
Escrituras. Ah, Senhor, quantos falsos testemunhos vos levantam! Quantas vezes ouço dizer
que dizeis o que nunca dissestes! Quantas vezes ouço dizer que são palavras vossas, o que são
imaginações minhas, que me [33] não quero excluir deste número! Que muito logo que as
nossas imaginações, e as nossas vaidades, e as nossas fábulas não tenham a eficácia de
palavra de Deus!
40. Miseráveis de nós, e miseráveis dos nossos tempos! Pois neles se veio a cumprir a
profecia de S. Paulo: Erit tempus, cum sanam doctrinam non sustinebunt 359. Virá tempo, diz
S. Paulo, em que os homens não sofrerão a doutrina sã. Sed ad sua desideria coacervabunt
sibi magistros prurientes auribus360; mas para seu apetite terão grande número de pregadores
feitos a montão e sem escolha, os quais não façam mais que adular-lhes as orelhas: A veritate
quidem auditum avertent, ad fabulas auten convertentur361: Fecharão os ouvidos à verdade, e
abri-los-ão às fábulas. Fábula tem duas significações: quer dizer fingimento e quer dizer
comédia; e tudo são muitas pregações deste tempo. São fingimento, porque são sutilezas e
pensamentos aéreos, sem fundamento de verdade; são comédia, porque os ouvintes vêm à
pregação como à comédia; e há pregadores que vêm ao púlpito como comediantes. Uma das
felicidades que se contava entre as do tempo presente era acabarem-se as comédias em
Portugal; mas não foi assim. Não se acabaram, mudaram-se; passaram-se do teatro ao púlpito.
Não cuideis que encareço em chamar comédias a muitas pregações das que hoje se usam.
Tomara ter aqui as comédias de Plauto, de Terêncio, de Séneca, e veríeis se não acháveis
nelas muitos desenganos da vida e vaidade do Mundo, muitos pontos de doutrina moral,
muito mais verdadeiros, e muito mais sólidos, do que hoje se ouvem nos púlpitos. Grande
miséria por certo, que se achem maiores documentos para a vida nos versos de um poeta
profano, e gentio, que nas pregações de um orador cristão, e muitas vezes, sobre cristão,
religioso!
41. Pouco disse S. Paulo em lhe chamar comédia, porque muitos sermões há que não
são comédia, são farsa. [34] Sobe talvez ao púlpito um pregador dos que professam ser mortos
ao mundo, vestido ou amortalhado em um hábito de penitência (que todos, mais ou menos
ásperos, são de penitência; e todos, desde o dia que os professamos, mortalhas); a vista é de
357
Mat., XXVI, 60. [BS, p. 894 = “Mas por último chegaram duas testemunhas falsas.”]
358
João, II, 21. [BS, p. 949 = “Mas ele falava do Templo de seu corpo.”]
359
2.ª ad Timoth., IV, 3. [BS, p. 1056-1057 = “Porque virá tempo em que muitos homens não sofrerão a sã
doutrina.”
360
[BS, 2.º Timóteo, 4: 3, p. 1057 = “mas tendo comichão nos ouvidos, acumularão para si mestres conforme aos
seus desejos.”]
361
[BS, 2.º Timóteo, 4: 3, p. 1057 = “E assim apartarão os ouvidos da verdade e os aplicarão às fábulas.”]
213

horror, o nome de reverência, a matéria de compunção, a dignidade de oráculo, o lugar e a


expectação de silêncio; e quando este se rompeu, que é o que se ouve? Se neste auditório
estivesse um estrangeiro que nos não conhecesse e visse entrar este homem a falar em público
naqueles trajos e em tal lugar, cuidaria que havia de ouvir uma trombeta do Céu; que cada
palavra sua havia de ser um raio para os corações, que havia de pregar com o zelo e com o
fervor de um Elias, que com a voz, com o gesto e com as ações havia de fazer em pó e em
cinza os vícios. Isto havia de cuidar o estrangeiro. E nós que é o que vemos? Vemos sair da
boca daquele homem, assim naqueles trajos, uma voz muito afectada e muito polida, e logo
começar com muito desgarro, a quê? A motivar desvelos, a acreditar empenhos, a requintar
finezas, a lisonjear precipícios, a brilhar auroras, a derreter cristais, a desmaiar jasmins, a
toucar primaveras, e outras mil indignidades destas. Não é isto farsa a mais digna de riso, se
não fora tanto para chorar? Na comédia o rei veste como rei, e fala como rei; o lacaio, veste
como lacaio, e fala como lacaio; o rústico veste como rústico, e fala como rústico; mas um
pregador, vestir como religioso e falar como... não o quero dizer, por reverência do lugar. Já
que o púlpito é teatro, e o sermão comédia se quer, não faremos bem a figura? Não dirão as
palavras com o vestido e com o ofício? Assim pregava S. Paulo, assim pregavam aqueles
patriarcas que se vestiram e nos vestiram destes hábitos? Não louvamos e não admiramos o
seu pregar? Não nos prezamos de seus filhos? Pois por que não os imitamos? Por que não
pregamos como eles pregavam? Neste mesmo púlpito pregou S. Francisco Xavier, neste
mesmo púlpito pregou S. Francisco de Borja; e eu, que tenho o mesmo hábito, por que não
pregarei a sua doutrina, já que me falta o seu espírito?

[35] X

42. Dir-me-eis o que a mim me dizem, e o que já tenho experimentado, que, se


pregamos assim, zombam de nós os ouvintes, e não gostam de ouvir. Oh, boa razão para um
servo de Jesus Cristo! Zombem e não gostem embora, e façamos nós nosso ofício! A doutrina
de que eles zombam, a doutrina que eles desestimam, essa é a que lhes devemos pregar, e por
isso mesmo, porque é mais proveitosa e a que mais hão mister. O trigo que caiu no caminho
comeram-no as aves. Estas aves, como explicou o mesmo Cristo, são os demónios, que tiram
a palavra de Deus dos corações dos homens: Venit Diabolus, et tollit verbum de corde
eorum!362 Pois por que não comeu o Diabo o trigo que caiu entre os espinhos, ou o trigo que
caiu nas pedras, senão o trigo que caiu no caminho? Porque o trigo que caiu no caminho:
Conculcatum est ab hominibus363: Pisaram-no os homens; e a doutrina que os homens pisam,
a doutrina que os homens desprezam, essa é a de que o Diabo se teme. Dessoutros conceitos,
dessoutros pensamentos, dessoutras sutilezas que os homens estimam e prezam, dessas não se
teme nem se acautela o Diabo, porque sabe que não são essas as pregações que lhe hão-de
tirar as almas das unhas. Mas daquela doutrina que cai: Secus viam364; daquela doutrina que
parece comum: Secus viam; daquela doutrina que parece trivial: Secus viam; daquela doutrina
que parece trilhada: Secus viam; daquela doutrina que nos põe em caminho e em via da nossa
salvação (que é a que os homens pisam e a que os homens desprezam), essa é a de que o
Demónio se receia e se acautela, essa é a que procura comer e tirar do Mundo; e por isso
mesmo essa é a que deviam pregar os pregadores, e a que deviam buscar os ouvintes. Mas se
eles não o fizerem assim e zombarem de nós, zombemos nós tanto de suas zombarias como
dos seus aplausos. Per infamiam et bonam famam365, [36] diz S. Paulo: O pregador há-de
saber pregar com fama e sem fama. Mais diz o Apóstolo: Há-de pregar com fama e com
infâmia. Pregar o pregador para ser afamado, isso é mundo: mas infamado, e pregar o que
convém, ainda que seja com descrédito de sua fama?, isso é ser pregador de Jesus Cristo.
362
[BS, Lucas, 8: 12, p. 926 = “vem o diabo, e tira a palavra do coração deles.”]
363
[BS, Lucas, 8: 5, p. 926 = “e foi pisada (pelos homens)”]
364
[BS, Lucas, 8: 5, p. 926 = “uma parte caiu junto ao caminho...”]
365
2.ª ad Corint., XIV, 27. [BS, 2 Coríntios, 6: 8, p. 1027 = “por infâmia, e por boa fama”.]
214

43. Pois o gostarem ou não gostarem os ouvintes! Oh, que advertência tão digna! Que
médico há que repare no gosto do enfermo, quando trata de lhe dar saúde? Sarem e não
gostem; salvem-se e amargue-lhes, que para isso somos médicos das almas. Quais vos parece
que são as pedras sobre que caiu parte do trigo do Evangelho? Explicando Cristo a parábola,
diz que as pedras são aqueles que ouvem a pregação com gosto: Hi sunt, qui cum gaudio
suscipiunt verbum366. Pois será bem que os ouvintes gostem e que no cabo fiquem pedras?!
Não gostem e abrandem-se; não gostem e quebrem-se; não gostem e frutifiquem. Este é o
modo com que frutificou o trigo que caiu na boa terra: Et fructum afferunt in patientia367,
conclui Cristo. De maneira que o frutificar não se ajunta com o gostar, senão com o padecer;
frutifiquemos nós, e tenham eles paciência. A pregação que frutifica, a pregação que
aproveita, não é aquela que dá gosto ao ouvinte, é aquela que lhe dá pena. Quando o ouvinte a
cada palavra do pregador treme; quando cada palavra do pregador é um torcedor para o
coração do ouvinte; quando o ouvinte vai do sermão para casa confuso e atónito, sem saber
parte de si, então é a preparação qual convém, então se pode esperar que faça fruto: Et
fructum afferunt in patientia368.
44. Enfim, para que os pregadores saibam como hão-de pregar e os ouvintes a quem
hão-de ouvir, acabo com um exemplo do nosso Reino, e quase dos nossos tempos. Pregavam
em Coimbra dois famosos pregadores, ambos bem conhecidos por seus escritos; não os
nomeio, porque os hei-de desigualar. Altercou-se entre alguns doutores da Universidade qual
dos dois fosse maior pregador; e como não há juízo sem inclinação, uns diziam [37] este,
outros, aquele. Mas um lente, que entre os mais tinha maior autoridade, concluiu desta
maneira: «entre dois sujeitos tão grandes não me atrevo a interpor juízo; só direi uma
diferença, que sempre experimento: quando ouço um, saio do sermão muito contente do
pregador; quando ouço outro, saio muito descontente de mim.» Com isto tenho acabado.
Algum dia vos enganastes tanto comigo, que saíeis do sermão muito contentes do pregador;
agora quisera eu desenganar-vos tanto, que saíreis muito descontentes de vós. Semeadores do
Evangelho, eis aqui o que devemos pretender nos nossos sermões: não que os homens saiam
contentes de nós, senão que saiam muito descontentes de si; não que lhes pareçam bem os
nossos conceitos, mas que lhes pareçam mal os seus costumes, as suas vidas, os seus
passatempos, as suas ambições e, enfim, todos os seus pecados. Contanto que se
descontentem de si, descontentem-se embora de nós. Si hominibus placerem, Christus servus
non essem369, dizia o maior de todos os pregadores, S. Paulo: Se eu contentara aos homens,
não seria servo de Deus. Oh, contentemos a Deus, e acabemos de não fazer caso dos homens!
Advirtamos que nesta mesma Igreja há tribunas mais altas que as que vemos: Spectaculum
facti sumus Deo, Angelis et hominibus.370 Acima das tribunas dos reis, estão as tribunas dos
anjos, está a tribuna e o tribunal de Deus, que nos ouve e nos há-de julgar. Que conta há-de
dar a Deus um pregador no Dia do Juízo? O ouvinte dirá: Não mo disseram. Mas o pregador?
Vae mihi, quia tacui.371 Ai de mim, que não disse o que convinha! Não seja mais assim, por
amor de Deus e de nós. Estamos às portas da Quaresma, que é o tempo em que principalmente
se semeia a palavra de Deus na Igreja, e em que ela se arma contra os vícios. Preguemos e
armemo-nos todos contra os pecados, contra as [38] soberbas, contra os ódios, contra as
ambições, contra as invejas, contra as cobiças, contra as sensualidades. Veja o Céu que ainda
tem na terra quem se põe da sua parte. Saiba o Inferno que ainda há na terra quem lhe faça
guerra com a palavra de Deus, e saiba a mesma terra que ainda está em estado de reverdecer e

366
[BS, Lucas, 8: 13, p. 926 = “os que recebem com gosto a a palavra.”]
367
[BS, Lucas, 8: 15, p. 926 = “e dão fruto pela paciência.”]
368
[BS, Lucas, 8: 15, p. 926 = “e dão fruto pela paciência.”]
369
Galat., I, 10. [BS, p. 1032 = “Se agradasse ainda aos homens, não seria servo de Cristo.”
370
1.ª ad Corint., IV, 9. (No texto lê-se mundo e não Deo). [BS, p. 1014 = “somos feitos espetáculo ao mundo, e
aos anjos, e aos homens.”]
371
Isaías, VI, 5. [BS, p. 606 = “Ai de mim porque me calei...”
215

dar muito fruto: Et fecit fructum centuplum372.

Texto BERNARDES, Manuel [1644-1710]. Nova Floresta. Porto: Lello & Irmão, 1949.
23 v. 1, p. 291-295. Oratoriano.

[291] XLIV
De Clemente VIII, sumo pontífice.

1. Em presença sua se lastimaram alguns de várias perdas e infortúnios, que lhes tinham
proximamente acontecido. Dizia um, v. g., que perdera a novidade dos seus campos; dizia
outro que se lhe perdera no mar uma boa encomenda; acudia outro que já perdera o valimento
com tal personagem, etc. O papa, vendo que nisto gastavam muito tempo, os atalhou, dizendo:
Nada disso importa muito; a perda que é para sentir, é da coisa que se não pode recuperar,
que é o tempo.

CONFIRMAÇÃO E AVISO

2. Assim como a eternidade não seria eternidade, se pudesse perder-se, assim o tempo
não seria tempo, se pudesse recobrar-se. No relógio de areia, a ampulheta debaixo guarda o
que vai perdendo a de cima, para tornar a medir outra hora; porém no tempo medido o
presente se vaza no passado, sem nunca tornar a ser presente. Bem disse um poeta:

Fugiu a hora? já agora


Não volverá mais a ser,
Que em fugir, e não volver,
Consiste o mesmo ser hora.

3. E outro mais engenhosamente:

Hæc quæ adest hodie, quod nomen habebat heri? Cras.


Cras Hodie quodnam nomen habebit? Heri.
Cras lentum quod adest nunquam, nec abest proculunquam
Quonam appelletur nomine cras? Hodie.

Ovídio, com a sua clareza elegante:

[292] .......... Nec enim consistere flumen,


Nec levis hora potest; sed unda impellitur unda,
Urgeturque prior veniente, urget que priorem,
Tempora sic fugiunt pariter, pariterque sequuntur [Metamorfoses, XV, 180].

4. Por onde, disse Aristóteles373 que o tempo, constando do pretérito, que não é já, e do
futuro, que não é ainda, parece ser uma coisa que não é, pois tudo se lhe vai em ir-se. Este é o
verdadeiro Saturno que come seus próprios filhos, porque (como notou Lactâncio 374) os
antigos mitólogos mentiam nos nomes, mas falavam verdade nas coisas, Saturno quer dizer o

372
[BS, Lucas, 8: 8, p. 926 = “... deu fruto, cento por um. ”]
373
Fisic., 4, text. 88: «Tempus, cum constet ex præterito, quod non est, et ex futuro, quod non adhuc est, videtur
esse non ens.» Tradução: “O tempo, que consta do pretérito, que não é já, e do futuro, que não é ainda, parece ser
uma coisa que não é.”
374
Lactant., l. I,. c. 11 et 19.
216

tempo375, e quem duvida que o tempo vai devorando os mesmos dias e anos que vai
formando?
5. Daqui se infere que quanto a nossa indústria não pode ser útil, para reparar o tempo,
tanto nosso cuidado deve ser solícito para o conservar, não deixando passar sem fruto a
mínima parte dele. É conselho do Espírito Santo pelo Eclesiástico 376: Fili, conserva tempus, et
devita a malo. Particula boni diei non et prætereat. E como se pode conservar o tempo, se o
tempo, como essencialmente fluido, sempre vai passando? O mesmo texto que nos dá o
conselho, nos ensina a praxe dele. Conserva tempus, conserva o tempo; este é o conselho;
Devita a malo: foge do mal; esta é a praxe. O tempo que se emprega em fugir do mal gasta-se
quanto ao uso, mas conserva-se quanto ao fruto. Assim passa, como se não passara, porque
fica na mão de Deus posto a juro, para nos vencer os réditos da eternidade. E tempo que nos
rende uma duração maior que todos os tempos, tão longe está de ser perdido que ainda excede
ao ser conservado. Se Deus nos desse aos homens neste mundo uma duração fixa e
consistente, a modo dos que chamam instantes [293] angélicos, que podem durar muito sem
movimento e inovação de outro acto interior, porém juntamente nos negasse o merecer, não
nos daria tanto como faz em dar tempo, que qualquer partezinha dele pode render-nos a
participação de sua divina eternidade. Logo, empregar bem o tempo é muito mais que
conservá-lo, e bom é para nós ser fluido, com tanto que pare em ser eterno. Logo, uma vez
que o tempo, e qualquer partezinha dele, é bom para isto, não é bom o deixá-lo passar sem
fruto: Particula boni diei non te prætereat.
6. Mas oh! advirtamos bem que, se o tempo bem empregado nos lucra uma eternidade
de glória, também, deixado passar em culpas, nos precipita em outra de tormentos, Boécio
definiu o tempo: Nunc fluens: agora correndo, e definiu a eternidade: Nunc stans; agora
parado, como se o tempo fosse rio, e a eternidade mar, para onde corre e onde pára este rio.
Este, pois, Nunc fluens do tempo, para um de dois mares é preciso faça sua corrente,
conforme nossas obras lhe abrirem o caminho; se são santas, estas o levam para o Nunc stans
da eternidade .do glórias; porém, se perversas, estas o levam para o Nunc stans da eternidade
de penas. Oh! quanto vai de um mar a outro mar! Mas na nossa mão está encaminhar o rio
para onde nos convém: Dum tempus habemus, operemur bonum ad omnes 377: Enquanto temos
tempo, obremos bom para todos. Não guardemos estas contas para quando não teremos tempo
de as fazer sem ficar nelas alcançados, como discretamente disse Lope:

Pídeme de mi mismo el tiempo cuenta;


Si a darla voy, la cuenta pide tiempo;
Que quien gastó sin cuenta largo tiempo
Como dará mis tiempo buena cuenta?

7. Um espantoso caso a este propósito refere Tomás Cantipratense, da sagrada família


dos Pregadores, fiel historiador das coisas do seu tempo378. Passou assim: Havia em Alemanha
certo príncipe eclesiástico, de alto sangue e baixíssimos costumes, e particularmente contra o
sexto e sétimo preceitos divinos. Que maior baixeza que cobiçar o alheio quem tinha
obrigação de distribuir o próprio? Que maior baixeza que servir à lascívia quem votara
continência? Não se fez péssimo de repente; mas, pedra sobre pedra, edificou uma torre, tão
firme, de malícia, caldeada com o costume, que depois as balas dos avisos de Deus ressurtiam
sem efeito e ainda sem abalo. Entrou, pois, a justiça de Deus por força aonde não deixaram
entrar sua misericórdia por vontade. Conrado, bispo hildemense, tinha-se uma noite
levantado, a rezar matinas, e, acabada esta tarefa, se ocupou com a dos estudos, porque havia
375
Dempsterus, lib. II, Antiq. Rom., c. 4.
376
Ecles., IV, 23 et XIV, 14. [Filho, aproveita o tempo e guarda-te do mal.] [Não deixes passar uma partezinha
do bem que te é concedido.]
377
Ad Galat., VI, 10. [Enquanto temos tempo, façamos bem a todos.]
378
Lib. I, c. 13. Drexel, t. I. Damnrog., c. 7. § 6.
217

do pregar no seguinte dia. Quando de repente se sentiu como alheado de seus sentidos, e seu
espírito obrigado a atender a esta visão. Entrava no tribunal um juiz de grande majestade; seus
ministros lhe apresentavam um réu, vestido de pontifical e com mitra na cabeça, porém
coberto. o rosto. Apareceram logo ali muitos fiscais, que com intrépida liberdade o acusavam
daquelas duas espécies de delitos. E então disso o juiz para os seus assessores que
examinassem e sentenciassem aquele réu. O que sem demora alguma fizeram o lhe
notificaram a sentença de condenação eterna, e o despojaram de mitra, anel e mais insígnias
pontificiais, lançando-as todas aos pés do juiz. E logo, levantando-se dos seus lugares, iam
dizendo: Dum tempus habemus, operemur bonum ad omnes: Enquanto temos tempo, obremos
bem para todos. Neste tempo tornou em si Conrado e, reflectindo sobre o que [205] vira,
discorria consigo: Quem seria aquele miserável sobre quem tão dura sentença tinha caído? Eis
que lhe bate à porta um criado daqueloutro bispo, o qual com muitas lágrimas lhe deu por
nova que seu senhor, havendo-se retirado à sua quinta e casa de prazer na tarde antecedente,
morrera aquela noite de repente. Conrado, entendida a visão e todo traspassado de medo e
espanto, se aplicou dali por diante com maior cuidado a empregar os dias e as noites nas suas
obrigações e, para se espertar a isso, repetia frequentemente: Dum tempus habemus, operemur
bonum ad omnes [Enquanto temos tempo, façamos bem a todos].

UNIDADE V: BARROCO E MANEIRISMO — POESIA: AGOSTINHO DA CRUZ,


FRANCISCO MANUEL DE MELO, FRANCISCO RODRIGUES LOBO, A FÊNIX
RENASCIDA E O POSTILHÃO DE APOLO. TEXTOS 24 a 30

OBJETIVOS

Ao final desta unidade, você deverá ser capaz de:

a) ler textos de Agostinho da Cruz, Francisco Manuel de Melo e Rodrigues Lobo, segundo
uma perspectiva crítico-interpretativa;
b) examinar as características fundamentais do Barroco na poesia portuguesa, compilada nos
volumes Fênix Renascida e Postilhão de Apolo;
c) discutir a presença aspectos da poética barroca segundo os autores Oliveira (1944), Ramos
(1963) e Cidade (1975).

INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS

SARAIVA, António José; LOPES, Óscar. Poesia cultista e conceptista. História da Literatura
Portuguesa. 15. ed. Porto: Porto, 1989. p. 505-521.

Texto CRUZ, Agostinho da. Varias poezias do venerável padre Agostinho da Cruz.
24 Lisboa: Officina de Miguel Rodrigues, 1771. 163 p.

[1] Ao triste estado.

Passa por este vale a primavera,


As aves cantam, plantas reverdecem,
As flores pelos campos aparecem,
O mais alto do louro abraça a hera,
[2] O brando mar menos tributo espera
Dos rios, que mais brandamente decem,
218

Os dias mais fermosos amanhecem,


Não para mim, pois sou quem dantes era.
Espanta-me o porvir, temo o passado;
A mágoa choro de um, doutro a lembrança,
Sem ter já que esperar, nem que perder.
Mal se pode mudar tão triste estado;
Pois para bem não pode haver mudança,
E para maior mal não pode ser.

[7] Da Oração.

Doce quietação de quem vos ama,


Em serviços, Senhor, que tanto quanto
Amado sois, tão longe o fim de tanto,
Subindo mais, e mais, mais se derrama:
Ardendo por arder em viva chama
De amor do vosso amor, a voz levanto;
Sinto, suspiro, choro, colho, e planto
Ao som doutra suave que me chama.
Onde se vai, Senhor, quem vos ofende?
Donde levais, Deus meu, a quem vos segue?
Onde fugir se pode uma de duas?
Morto por quem o mata que pretende,
Ou que extremos de amor há que nos negue
Quem culpas nossas chama ofensas suas?

[96] ELEGIA VII.


Ao fim da vida.

Como Cisne, que canta na ribeira, 1


O repouso da vida festejando,
Que sente naquela hora derradeira;
Eu que da minha já me vou cercando
Aqui quero cantar (se cantar deve 5
Quem deve dentro d’alma andar chorando.)
Adonde vai parar a vida breve,
Convertida a velhice em mocidade,
Uma pesada tanto, outra tão leve?
Com quanta confusão se persuade 10
A nossa depravada natureza
A seguir a mundana vaidade:
Oh quão cega se deixa levar presa
De um falso gosto seu, de um vão desejo!
Qual convertido em dor, qual em tristeza: 15
Eu do Lima me vim pastar ao Tejo;
Depois detrás da Serra nas salgadas
Águas que para mim tão doces vejo:
Ajudam-me a chorar culpas passadas;
Das que se representam me defendem 20
Nas lapas, que por tempo tem lavradas.
As suas roucas ondas me reprendem
219

De não considerar tais aposentos,


Quais levar, e lavrar sempre pertendem.
Convida-me a criar remordimentos 25
[97] A limpeza daquelas penedias,
Mais limpas do que são meus pensamentos.
Em quantas cousas mais por tantas vias
Acho tantos motivos de afrontar-me
Por ser que todas mais de entranhas frias? 30
Pode quem tudo pode melhorar-me,
Tanto no que pertendo, inda que indigno,
Que sinta de amor seu todo abrasar-me.
Suave, doce meu Amor Divino,
Aqui donde vim ter, como sabeis, 35
Acabar suspirando determino.
Suspiro porque nunca me deixeis
Apartar-me de Vós um só momento,
Nem já mais Vós de mim vos aparteis.
Bem vos posso alegar merecimento 40
Da morte, e paixão vossa, antes da minha,
Da minha redenção, vosso tormento.
Inda vossa bondade me não tinha
Formado, Senhor meu, quando morrestes
Por me salvar na Cruz, que vos sostinha. 45
Ali, manso Cordeiro, oferecestes
Nas mãos dos cruéis lobos vossa vida,
Que tirada, tirar-lha não quisestes.
Abriram-vos no peito uma ferida;
Quatro nos pés, e mãos, depois que estava 50
Vossa carne de açoutes já delida.
A piedade então donde morava
Aquela, que quebrou as pedras duras,
Que corações humanos não quebrava?
Eis o Sol perde a luz, fica às escuras: 55
[98] Rompe-se o véu do Templo; a terra treme;
Os mortos vivos saem das sepulturas.
Quem não chora, Deus meu, suspira, e geme!
Ó quem de pura dor não arrebenta!
Quem toma mais na mão remo, nem leme! 60
Que me colha no mar uma tormenta,
Ficando a salvação posta em perigo,
Podendo lograr pobre vida isenta?
Desde hoje mais parente, nem amigo
Me busque, nem me fale, nem me veja; 65
Tanto me dá moderno como antigo:
Tudo me cancã já, tudo me peja,
E pouco basta já para soster
O pouco que da vida me sobeja.
A praia tem marisco que comer 70
Amêijoas, bribigões na branca areia,
Que facilmente posso revolver.
A pedra que dos mares se rodeia,
220

Cheia de lapas pardas aparece,


De negros mexilhões inda mais cheia. 75
A vermelha santola não falece [falta],
Outro com seu pé curto revirado,
Seu não, antes de cabra me parece.
E quando se mostrar muito alterado
O mar, que seu marisco me defenda, 80
O bosque está daqui pouco afastado.
Quer suba a planta nele, quer se estenda,
Escolherei no ramo o mais maduro
Fruto sem dano alheio, e sem contenda.
[99] E se caçar quiser eu pelo escuro 85
(Deixo na arribação dos passarinhos)
A pouco na pobreza me aventuro.
Que bem sei enlaçar pelos caminhos
Uns animais que trazem na cabeça.
Dois ramos cada qual cheios de espinhos. 90
E se na larga praia, ou mata espessa
O prêmio falecer do meu trabalho;
Não temo que de cima me faleça.
Não me posso perder por este atalho;
Posto que tarde vou, que não perderão 95
Por tarde os desta vinha, em que trabalho,
Na qual os derradeiros precederão. 97
Texto MELO, D. Francisco Manuel de. A tuba de Calíope. São Paulo: Brasiliense/EDUSP,
25 1988. 253 p.379

T25.1 [81] Saudades

Serei eu algũa hora tão ditoso,


Que os cabelos, que Amor laços fazia,
Por prêmio de o esperar, veja algum dia
Soltos ao brando vento buliçoso?

Verei os olhos, donde o Sol fermoso


As portas da manhã mais cedo abria,
Mas, em chegando a vê-los, se partia
Ou cego, ou lisonjeiro, ou temeroso?

Verei a limpa testa, a quem a Aurora


Graça sempre pediu? E os brancos dentes,
Por quem trocara as pérolas, que chora?

Mas que espero de ver dias contentes,


Se para se pagar de gosto ũa hora,
Não bastam mil idades diferentes?

T25.2 [96] Cada um é fado de si mesmo

379
Cf. PIRES, Maria Lucília Gonçalves. D. Francisco Manuel de Melo. In: CARVALHO, João Soares et alii.
História da Literatura Portuguesa. Lisboa: Alfa, 2002. v. 3, p. 101-118.
221

Mas adonde irei eu, que este não seja,


Se a causa deste ser levo comigo?
E se eu próprio me perco, e me persigo,
Quem será que me poupe ou que me reja?

Porque me hei-de queixar do Tempo e Inveja,


Se eu a quis mais fiel ou mais amigo?
Fui deixado em si mesmo por castigo:
Triste serei em quanto em mi me veja.

Esta empresa que em mi tanto em vão tomo,


Esta sorte que em mi seu dano ensaia,
Esta dor que minha Alma em mi cativa.

Vós só podeis mudar. Mas isto como?


Como? — Fazendo que a minha alma saia
De mi, senhora e dentro de vós viva.

T25.3 [108] Desgraça, inveja de tudo

Junto do manso Tejo, que corria


Para o Mar, que nos braços o esperava,
Jaz um Pastor, que no semblante dava
Mostras da dor que o coração cobria.

Falava o gesto quanto n’alma havia,


Que, quiçá por ser muito, ela o calava:
Mas, vencido do mal, que o atormentava,
Sem licença do mal, assi dezia:

“Corre alegre e soberbo, ó doce Tejo,


Pois vives sem fortuna, de que esperes
Que encaminhe teu passo a teu desejo.

Vás, e tornas, e irás como vieres.


Ditoso tu, que vês o que eu não vejo!
Ditoso tu, que vás adonde queres!”

T25.4 [115] Medo e obediência

Quantas vezes conheço o meu cuidado


E contemplo na dúvida que o espera!
Tantas e muitas mais dele quisera
Antes ser despedido que enganado.

Torno a cuidar despois que inda apartado


Quem me assegura a mi, de que o estivera?
Se para sempre amar sempre é ũa era.
Para sempre temer sempre um estado.

Já propus de passar o mundo a esmo,


222

Pois no Tempo, Lugar, Fé, Gosto e Morte,


A fraude é certa e nunca conhecida.

Vós que sabeis de mi mais do que eu mesmo,


Ensinai-me a viver com minha sorte:
Fareis de todo vossas Sorte e Vida.

T25.5 [136] Responde a um amigo que mandava


perguntar a vida que fazia em sua prisão

Casinha desprezível mal forrada,


Furna lá dentro mais que inferno escura;
Fresta pequena, grade bem segura,
Porta só para entrar, logo fechada;

Cama que é potro, mesa destroncada;


Pulga que, por picar, faz matadura;
Cão só para agourar; rato que fura;
Candeia nem c’os dedos atiçada;

Grilhão que vos assusta eternamente;


Negro boçal, e mais boçal ratinho
Que mais vos leva que vos traz da praça;

Sem Amor, sem amigo, sem parente!


Quem mais se dói de vós diz: — “Coitadinho!”
Tal vida levo, santo prol me faça!
T25.6 [169] Antes da confissão

Eu que faço? Que sei? Que vou buscando?


Conto, lugar, ou tempo, a esta fraqueza?
Tenho eu mais que acusar, por mais firmeza,
Toda a vida sem mais como nem quando?

Se cuidando, Senhor, falando, obrando,


Te ofenda minha ingrata natureza,
Nascer, viver, morrer, tudo é torpeza.
Donde vou? donde venho? donde ando?

Tudo é culpa, ó bom Deus! Não ũa e ũa


Descubro ante os teus olhos. Toda a vida
Se conte por delito e por ofensa.

Mas que fora de nós, se esta, se algũa,


Fora mais que ũa gota, a ser medida
C’o largo mar de tua Graça imensa?

T25.7 [195] Em dia de Cinza sobre as palavras: “quia pulvis es”380

380
Gênesis, 3: 19 — “Tu comerás o teu pão no suor do teu rosto, até que te tornes na terra de que foste formado.
Porque tu és pó, e em pó te hás de tornar.”
223

Melhor há de mil anos que me grita


Ũa voz que me diz: És pó da terra.
Melhor há de mil anos que a desterra
Um sono, que esta voz desacredita.

Diz-me o pó que sou pó, e a crer me incita


Que é vento quanto neste pó se encerra;
Diz-me outro vento que esse pó vil erra...
Qual destes a verdade solicita?

Pois, se mente este pó, que foi do Mundo?


Que é do gosto? Que é do ócio? Que é da idade?
Que é do vigor constante e amor jocundo?

Que é da velhice? que é da mocidade?


Tragou-me a vida inteira o mar profundo!
Ora quem diz — “sou pó” — falou verdade.

T25.8 [208] Apólogo da morte

Vi eu um dia a Morte andar folgando


Por um campo de vivos que a não viam,
Os velhos, sem saber o que faziam,
A cada passo nela iam topando.

Na mocidade os moços confiando,


Ignorantes da Morte, a não temiam,
Todos cegos, nenhuns se lhe desviam:
Ela a todos c’o dedo os vai contando.

Então quis disparar, e os olhos cerra:


Tirou e errou. Eu, vendo seus empregos,
Tão sem ordem, bradei: “— Tem-te, homicida!”

Voltou-se e respondeu: “— Tal vai de guerra;


Se vós todos andais comigo cegos,
Que esperais que convosco ande advertida?

T25.9 [212] Mundo incerto


Eis aqui mil caminhos: Porventura
Qual destes leva a gente ao povoado?
Todos vão sós: só este vai trilhado;
Mas se, por ser trilhado, me assegura?

Não: que desd’o princípio há que lhe dura


Do erro este costume, ao mundo dado;
Ser aquele caminho mais errado,
O que é de mais passage e fermosura.

Em fim não passarei, temendo a sorte?


Também, tanto temor é desconcerto:
224

A quem passar avante, assi lhe importe.

Que farei logo, incerto em mundo incerto?


— Buscar nos Céus o verdadeiro Norte,
Pois na terra não há caminho certo.

Texto OLIVEIRA, António Correia de A. e. Ensaio crítico. In: MELO, D. Francisco


26 Manuel de. As segundas três musas. Lisboa: Livraria Clássica 1944. p. 60-66.

[60] Os sonetos. — A Tuba de Calíope, a primeira das Segundas Três Musas,


compõe-se de cem sonetos. A centúria era de praxe, como afirmação de abundância do
caudal poético do autor...
Gênero de sua natureza conceituoso, inclinava especialmente o poeta para a
proposição de problemas subtis e para o jogo de palavras, imagens e conceitos, que
[61] constituíam para a época um dos mais delicados prazeres intelectuais. O costume
seiscentista, por Lope de Vega documentado nos próprios sonetos sacros, de tomar
todos os assuntos como motivos de arte, e até de alterar o sentido dos textos
bíblicos381, torna os sonetos do Melodino não raro desagradáveis ao nosso gosto
moderno. E a preocupação das metáforas peregrinas, das imagens e dos conceitos
originais levou-o por vezes à frieza, e também à obscuridade. Mas, para não se
afastar, ainda aqui, do que se verifica nos maiores poetas da época, há na Tuba de
Calíope notável desigualdade — a par de verdadeiras humildades, verdadeiras belezas.
São deste último quilate alguns sonetos de assunto moral ou de carácter biográfico. É
por eles que se deve avaliar em que grau possuía D. Francisco Manuel esse dom de
poesia que, no dizer de J. O. Picón, tão mal aproveitou. O inconstante da fortuna, a
vaidade das glórias mundanas, o desencanto, a brevidade da vida e a certeza da morte,
o culto do mérito deram-lhe o tema para os melhores de entre eles 382. Temas comuns,
exaustivamente tratados, mas harmónicos com a realidade íntima do poeta. E D.
Francisco Manuel excedeu tudo o que o lirismo português produziu no século XVII nos
dois sonetos Em dia de cinza, sobre as palavras Quia pulvis es e Apólogo da morte383, que,
como notou F. de Fígueiredo, são de um cambiante até então desconhecido na opulenta
evolução do género e nas suas lôbregas personificações parece haver um prenúncio da lira
antereana384). Dos autobiográficos, o mais representativo é o soneto Casinha
desprezível, mal forrada385, perfeito exemplar de clássico humorismo, escrito na [62]
prisão da Torre Velha e em resposta à carta de um amigo que lhe pedia notícias da
vida que levava. Sob a aparência de serena resignação, pressente-se o drama íntimo
do autor. Há também sonetos amorosos elegantes de forma e de conceito 386. Em
alguns deles personifica-se a natureza, para lhe confiar, em felizes comparações,
estados de alma, à maneira tradicional, ou melhor à maneira de Herrera e da escola
de Salamanca387. E aqui e ali, uma ou outra estrofe, um ou outro verso, uma ou outra
imagem a revelarem o poeta388. Mas a leitura da Tuba de Calíope é na verdade um
381
V., adiante, quintilhas Em graça de ũa Lianor.
382
Sonetos X [“Eu vir rir esta fonte; e deste rio”], XV [“Melhor há de mil anos que me grita”] e XVII
[“Eis aqui mil caminhos. Por ventura”] deste volume.
383
Sonetos XV [“Melhor há de mil anos que me grita”] e XVI [“Vi eu um dia a Morte andar
folgando”] deste volume.
384
História da literatura clássica, 2.a época, pág. 105.
385
Soneto XI [Casinha desprezível, mal forrada] deste volume.
386
Sonetos II [“Serei algũa hora tão ditoso”], VII [“Pois se para os amar não foram feitos”] e VIII
[“Quantas vezes conheço o meu cuidado”] deste volume.
387
Junto do manso Tejo que corria (XXII), Eu vi vir esta fonte, e deste rio (XXIX), Paredes, vós
guardais os resplendores (LII).
388
Cf. as duas primeiras quadras do soneto Quando pelas florestas passa o vento (LXXXVII).
225

pouco fatigante. D. Francisco Manuel pensava os seus sonetos tão bem como
Quevedo, mas, ao dar-lhes forma, ficava-lhe geralmente inferior.
Exemplo típico de soneto conceituoso389 é o soneto [63] Domine, tu mihi lavas
pedes? (LXV), em que se põe o problema do contraste entre a hesitação de Pedro em
obedecer a Jesus na cena do lava-pés e a sua pronta [64] obediência, quando da
tempestade no lago de Tiberíades, para dele tirar uma conclusão deduzida do
conceito de amor.

[65] Ousado Pescador, que é da tormenta


Nas mansas águas desse breve vaso?
Duvidais vós de entrar, tímido, acaso,
Quando que nele entreis o Mestre intenta?

Como, se antes ousada, hoje avarenta


Se mostra a planta que por longo prazo
O bravo mar pisou, qual campo raso,
Em virtude do braço que a sustenta?

Então lhe obedeceis os pensamentos,


Porque se mostrou Deus; e hoje, vestido
De escravo, duvidais seus mandamentos?

Pois diz o amor: que para obedecido


mais é, que quando nos pés rende elementos,
quando Ele o põe a vossos pés rendido.390

Provoca-se o reparo pela oposição ou dissonância entre os dois termos


correlatos, que o poeta soluciona tirando da aparente ausência de relação dos textos
uma conclusão, um desempeño. Pedro, que obedecera prontamente a Jesus revestido
da divindade, já hesita agora, ainda que por humildade, em cumprir a sua ordem,
ao vê-lo vestido de escravo e rendido a seus pés. Ora é da própria essência do amor a
renúncia a tudo que não seja a vontade do amado. Nem soberba, nem humildade
por considerações sociais ou respeitos humanos, mas a entrega total, em todas as
circunstâncias, a adesão integral, abdicação tanto mais pura e conforme às
exigências do amor, quanto mais despido de qualquer prestígio ou mais rendido
este se apresente. A humildade de Pedro é vã, e redunda em soberba, porque, como
389
Baltazar Gracián, autor do Criticon, que Schopenhauer tinha por um dos melhores livros da
humanidade, criou na Agudeza y arte de ingenio (a primeira edição é talvez a de Madride, 1642),
com larga e superior visão estética, a teoria do conceito, Não se trata apenas da teoria do
conceptismo, como geralmente se diz, nem do cultismo, como já se pretendeu, mas de todo o
artifício literário que se destina a realizar superlativos de beleza. Note-se, porém, que Gracián
prefere ao artifício a naturalidade, sempre que a matéria o permita: Nas coisas formosas em si, a
verdadeira arte será evitar a arte e a afectação. // Para Gracián, o acto por excelência do espírito é o
conceito e o seu objecto por excelência é a agudeza. O conceito é um acto de entendimento que
exprime uma correspondência, uma harmoniosa correlação entre os objectos ou cognoscíveis
extremos. A mesma consonância ou correlação artificiosa expressa é a subtileza objectiva. [...] Esta
correspondência é genérica a todos os conceitos, e abraça todo o artifício do engenho, que, ainda
quando este seja uma ou outra vez por contraposição e dissonância, isso mesmo é artificiosa conexão dos
objectos. // Da essência da agudeza, diz: É este ser um daqueles que mais se sentem que se precisam;
deixa-se perceber, não definir; e em tão remoto assunto é de admitir qualquer tentativa de
esclarecimento. O que para os olhos é a formosura e para os ouvidos a consonância, é para o
entendimento o conceito. Agudeza e subtileza objectiva são expressões equivalentes.
390
Note-se a dureza de algumas expressões, como desse breu e vaso e qual campo raso, e o que há de
contrafeito, rebuscado, nos dois primeiros versos da segunda quadra.
226

diz Fr. António das Chagas, assim como o barro nas mãos do oleiro está disposto para
que faça um púcaro, um brinco ou um vaso [66] gros|seiro; e pois fora grande soberba do
barro dizer que se fizesse dele isto ou aquilo, também em vós seria algum modo de pouca
humildade, dar razões a Deus, ou querer dele mais que o que ele quiser de vós.391

Texto LOBO, Francisco Rodrigues. Poesias. Lisboa: Sá da Costa, 1940. 191 p.392
27

T 27.1
[8] ADEUS DE LERENO AO LIS

Fermoso rio Lis, que de contente


Estais detendo as águas vagarosas,
Por não passar daqui vossa corrente,

[9] Entre essas ondas claras, duvidosas,


Levai ao largo mar, com turva vela,
Tristes queixumes, lágrimas queixosas.

Enquanto descansais na branca areia,


Ouvi um pastor triste e magoado
Que vai perder a vida em terra alheia.

Sua ventura o manda desterrado;


Não se pode saber que culpas teve,
Que amor, que foi juiz, era o culpado.

Se a tanta sem-razão mágoa se deve,


Ouvi a voz de cisne derradeira
Que inda que é grande a dor, há de ser breve.

Vós ninfas que morais nesta ribeira,


Nessas lapas cobertas e escondidas
Do mirto, faias, freixos e aveleira,

Se já de amor sentistes as feridas,


E quanto crista um triste apartamento
Que, para dar mil mortes, dá mil vidas,

Agora que se cala o surdo vento


E o rio enternecido com meu pranto
Detém seu vagaroso movimento,

[10] Vinde a gozar da terra o verde manto,


Vereis da natureza o mor tesouro
E ouvireis as tristezas de meu canto,

Enquanto Apolo com seus raios de ouro


391
Cartas Espirituais, ed. Sá da Costa, prefácio e notas de R. Lapa, pág. 228-229.
392
Cf., quanto a Francisco Rodrigues Lobo e o bucolismo seiscentista, cf. SIMÕES, João Gaspar. História da
Poesia Portuguesa. Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, 1955-1959. v. 1, p. 471-492; MOREIRA,
Zenóbia Collares. A poesia maneirista portuguesa. Natal: EDUFRN, 1999. 188 p.
227

Enxugando estará com nova inveja


Vosso brando cabelo crespo e louro.

Antes que o descontente esprito seja


Apartado da doce companhia,
Consenti, ninfas belas, que vos veja.

Não vos verei porém como vos via,


Ora fugindo às feras na montanha,
Ora prendendo os peixes na água fria.

Chorando vos verei, pois dor tamanha


Não há como deixar a própria terra
Por ir buscar a morte em terra estranha.

Penedos, que pendeis desta alta serra,


De verde erva e de musgo revestidos,
A que os ventos em vão moverão guerra:

Vós declives outeiros repartidos


Com longes amorosos, ledos pertos,
Só pela saudade conhecidos;

[11] Vales, que de mil árvores cobertos


Abris caminho às cristalinas fontes
Que os alvos seixos deixam descobertos;

Vós, ladeiras incultas, e altos montes


Que coroados sois de altos pinheiros
E a cor tomando estais aos horizontes;

Pastos, cabanas, gados, pegureiros,


Pastores deste vale verde, ameno,
Doces amigos, doces companheiros

Aparta-se de vós, triste, Lereno,


Forçado dos poderes da ventura,
Contra quem seu poder foi tão pequeno.

A Deus o monte, o prado, a espessura,


A Deus o rio, a fonte cristalina,
A Deus as plantas, flores e a verdura.

Já no vale, no monte e na campina


Os pastores tanger não me ouvirão
A minha desejada sanfonina.

[12] Já nas ardentes sestas do verão


As ovelhas à sombra do arvoredo
O pasto por me ouvir não deixarão.
228

Já debaixo do vão deste penedo,


Olhando os cordeirinhos que pastavam,
Não cantarei de amor contente e ledo.

E as pastoras que a ouvir-me se ajuntavam,


Já me não tecerão verdes capelas
Com que por vencedor me coroavam.

Já nem na noite à vista das estrelas.


Nem quando o belo Sol claro aparece
Louvores me ouvirão das ninfas belas.

Já o vento que. ouvindo-te, emudece,


Entre os ecos da doce Filomena
Não levará meus ais donde os ofreço.

[13] Tornai o curso atrás, águas do Lena,


Apesar dessa rocha que ameaça
Vossa clara corrente tão serena.

Que não vos tirará de vossa graça


A sombra desse outeiro tão temido,
Como me tira a vida a sorte escassa.

De vós, serenas águas, me despido,


De vós não perderei nunca a lembrança,
Fazendo desmentir nesta mudança
“Quien dixo que la ausencia causa olvido” [...]

T26.2.
[31] Se emudece no mal o sentimento
A que memórias tristes me obrigais!
A dor, que é como a causa, pode mais
Do que me val contra ela o sofrimento.

Se noite imagino em meu tormento


E vos contemplo na alma, onde morais,
Tão viva cá na ideia me ficais
Que inda temo de um sonho o pensamento.

Vede o mal, que da fé Amor me ordena


Que de dia nos olhos ponho estudo,
E de noite, velando, a língua guarda.

Grande mal, novo amor, estranha pena:


Que, por não contentar-me de ser mudo,
Até no imaginar fiquei cobarde! [...]

T26.3
[72] Vou a falar, e Amor não mo consente,
Mas sai do peito a voz com força tanta,
229

Que inda detida, e presa na garganta,


Se me entende nos olhos claramente.

Ah! que cifra de amor tão diferente


Para mostrar um mal que a terra espanta,
Que ele mesmo o declara, e me alevanta
Por culpa o que eu pequei como inocente!

Se dos suspiros meus tanto se ofende


Quem é a causa deles, ¿que esperança
Terei de a merecer com meus cuidados?

Sirvo a um surdo que o falar defende,


Mas nem de quem, se cala tem lembrança,
Nem do que grita a lágrimas e brados! [...]

T26.4
[75] Penhores que já fostes algum dia,
Línguas de Amor e extremos da vontade,
Fiadores do tempo sem verdade,
Que por vós me falava e me mentia.

Fogo amoroso em que meu peito ardia


Consumindo, inquieta a liberdade,
Amor, que pode e quis, me persuade
Pagar tão mal tão doce companhia.

Ardei agora, ó falsas mensageiras


Do bem que pôs por terra uma mudança,
Nesta conjuração de Amor tirano.

Do morto Rei arrastam-se as bandeiras:


Reinou, porém morreu minha esperança,
Ardei, que vive e reina o desengano! [...]

T26.5
[82] Mil anos há que busco a minha estrela
E os Fados dizem que ma têm guardada;
Levantei-me de noite e madrugada,
Por mais que madruguei, não pude vê-la.

Já não espero haver alcance dela


Senão depois da vida rematada,
Que deve estar nos céus tão remontada
Que só lá poderei gozá-la e tê-la.

Pensamentos, desejos, esperança,


Não vos canseis em vão, não movais guerra,
Façamos entre os mais uma mudança:

Para me procurar vida segura


230

Deixemos tudo aquilo que há na terra,


Vamos para onde temos a ventura.

T26.6
[83] Fermoso Tejo meu, quão diferente
Te vejo e vi, me vês agora e viste:
Turvo te vejo a ti, tu a mim triste,
Claro te vi eu já, tu a mim contente.

A ti foi-te trocando a grossa enchente


A quem teu largo campo não resiste:
A mim trocou-me a vista em que consiste
O meu viver contente ou descontente.

Já que somos no mal participantes,


Sejamo-lo no bem. Oh! quem me dera
Que fôramos em tudo semelhantes!

Mas lá virá a fresca primavera:


Tu tornarás a ser quem eras de antes,
Eu não sei se serei quem de antes era.

Texto RAMOS, Feliciano. História da Literatura Portuguesa. 6. ed. Braga: Livraria Cruz,
28 1963. p. 387-389.393

RODRIGUES LOBO E A SUA OBRA

1. [387] Biografia. É mal conhecida a vida de Francisco Rodrigues Lobo.


Nasceu em Leiria provavelmente em 1580. Frequentou a Universidade de Coimbra e
era bacharel em Direito no ano de 1602. Manteve as melhores relações com algumas
figuras da nobreza. Frequentou a casa do Marquês de Vila Real, em Leiria.
Encontrou ainda bom acolhimento nos Paços do Duque de Bragança, em Vila
Viçosa, onde ia amiudadas vezes. Prezou enternecidamente a terra natal,
homenageando nos seus versos o rio Lis, que a banha. Desde verdes anos que se
dedicou às letras: estrela-se possivelmente aos 16 anos, data em que escreve os
Romances. Parece que morre afogado no Tejo, em 1622.
2. O Poeta. É muito natural que a circunstância de viver em plena monarquia
dualista houvesse influído na sua psicologia literária. Em Vila Viçosa, na convivência
com o Duque de Bragança, D. Teodósio, tomou o hábito de rememorar os tempos
saudosos de Portugal independente, e à figura de Nun’Álvares acudir-lhe-ia
naturalmente à lembrança. O poema Condestobre, que em 1603 se achava concluído, é
também fruto de uma forte aspiração de autonomia política: sentiu prazer, durante o
domínio castelhano, em escrever sobre o homem que havia contribuído
poderosamente para que, antes [388] e findar a Meia Idade, se consolidasse a
independência de Portugal. Pensando em Nun’Álvares, aspira naturalmente a
uma nova Aljubarrota. O poema do Condestabre, portanto, é falho de inspiração

393
Cf., quanto a Rodrigues Lobo, SARAIVA, Antônio José, LOPES, Óscar. História da Literatura Portuguesa.
15. ed. Porto: Porto, 1989. p. 422-432 e SILVEIRA, Francisco Maciel. Francisco Rodrigues Lobo. In: Literatura
Barroca. São Paulo: Global, 1987. p. 29-31.
231

poética, tem, contudo, especial significação, no conjunto da literatura autonomista,


sob o governo dos Filipes.
3. O talento poético manifesta-se-lhe ainda nas Éclogas, composições bucólicas,
onde não se alheia da herança clássica. Não iguala, no género, Bernardim ou
Camões. Fica mesmo bastante distanciado do bucolismo quinhentista. A écloga de
Rodrigues Lobo é predominantemente discursiva e moralista. Na Écloga VI, por
exemplo, expede conceitos moralizantes. O bucolismo de Bernardim e Camões,
essencialmente lírico, torna-se agora normativo.
4. As mais perfeitas composições líricas de Rodrigues Lobo estão disseminadas
pelas novelas bucólicas, e foram compiladas, em parte, pelo escritor Afonso Lopes
Vieira, em volume intitulado Poesias, que contém: elegias e canções, sonetos e
redondilhas. Revelam estas espécies poéticas um autêntico lírico, com pronunciada
influência métrica dos quinhentístas, designadamente de Camões, cuja influência é
uma constante da poesia de Rodrigues Lobo. Mas, mesmo utilizando elementos da
época antecedente, chega a elaborar uma poesia diferente e pessoal. Contribuem para
exuberantemente documentar uma tal asserção crítica a composição Elogio da vida
campesina e a cantiga Descalça vai para a fonte, que são também boas amostras da
sobrevivência da arte renascentista no século XVII394.
5. Não se isolou Rodrigues Lobo completamente da natureza e do mundo
exterior, à semelhança de outros escritores do tempo, mas, pelo contrário, manteve
plena comunicação com a vida campestre. Depara-se em Lobo um vivo amor dos
campos e da vida pastoril, mas é nas prosas bucólicas que [389] mais vastamente se
evidencia esse pendor do seu pensamento literário.
6. Em correlação com essa vocação pastoralista, e até como derivante dela,
afirma-se no lirismo de Rodrigues Lobo paixão pela cor, pela claridade solar, pela
alacridade da Natureza. Desce à contemplação da vida concreta: os encantos da
paisagem, a beleza da Primavera e do Verão, o canto das aves entre o arvoredo. O
céu coberto de nuvens, o pôr do sol, o crepúsculo, a noite, não lhe causam reacções
de simpatia e entristecem-no. Além de outras composições, traduzem esta tendência
da sua sensibilidade, as líricas seguintes: Já nasce o belo dia, Já vai fugindo o dia,
Noite escura, etc. Nesta última poesia, acusa a noite de vestir a terra de tristeza, de
encobrir a beleza das flores, de ocultar a verdura dos campos e a limpidez cristalina
da água; vê ainda na noite uma «mãe de enganos ocultos» e «a mor confusão da vida
humana». Esta atitude aproxima-o de Cesário Verde, assim como o distancia, em
parte, do Hino da Manhã, de Antero.
7. Na sua produção poética encontram-se composições sacras, como o Canto
Elegíaco, que parece se perdeu. Mas integra-se o poeta no ambiente literário do seu
tempo? A Prof. Dr.a Maria de Lourdes Belchior Pontes propõe esta resposta: «A
traject6ria poética de Rodrigues Lobo, lírico do século XVII, opõe-se, de certo
modo, à da evolução da poesia portuguesa do seu tempo». Esta dá prevalência ao
barroquismo, esquecendo os mestres do Renascimento.

Texto SILVEIRA, Francisco Maciel. Literatura Barroca. São Paulo: Global, 1987. 170 p.
29 [Fênix Renascida]

[137] A UMAS SAUDADES


António Barbosa Bacelar

394
Maria de Lourdes Belchior Pontes, Itinerário Poético de Rodrigues Lobo, Lisboa, 1959, págs.
149-166, cap. III, estuda o reflexo de Camões na poesia de Lobo.
232

Saudades de meu bem, que noite e dia


A alma atormentais, se é vosso intento
Acabardes-me a vida com tormento,
Mais lisonja será que tirania.

Mas, quando me matar vossa porfia,


De morrer tenho tal contentamento,
Que, em me matando vosso sentimento,
Me há de ressuscitar minha alegria.

Porém matai-me embora, que pretendo


Satisfazer com mortes repetidas
O que à beleza sua estou devendo.

Vidas me dai para tirar-me vidas,


Que ao grande gosto com que as for perdendo,
Serão todas as mortes bem devidas.

[138] A UMA AUSÊNCIA


António Barbosa Bacelar

Sinto-me, sem sentir, todo abrasado


No rigoroso fogo que me alenta;
O mal, que me consome, me sustenta;
O bem, que me entretém, me dá cuidado.

Ando sem me mover, falo calado;


O que mais perto vejo, se me ausenta,
E o que estou sem ver, mais me atormenta;
Alegro-me de ver-me atormentado.

Choro no mesmo ponto em que me rio;


No mor risco me anima a confiança;
Do que menos se espera estou mais certo.

Mas se de confiado desconfio,


É porque entre os receios da mudança
Ando perdido em mim como em deserto.

[139] FALANDO COM DEUS


Baltasar Estaço

Só vos conhece, Amor, quem se conhece,


Só vos entende bem quem bem se entende,
Só quem se ofende a si não vos ofende,
E só vos pode amar quem se aborrece.

Só quem se mortifica em Vós floresce,


Só é senhor de si quem se vos rende,
Só sabe pretender quem vos pretende,
233

E só sobe por Vós quem por Vós desce.

Quem tudo por Vós perde, tudo ganha,


Pois tudo quanto há, tudo em Vós cabe.
Ditoso quem no vosso amor se inflama,

Pois faz troca tão alta e tão estranha;


Mas só vos pode amar o que vos sabe,
Só vos pode saber o que vos ama.

Texto CIDADE, Hernâni. O formalismo literário na «Fenix Renascida». In: Lições de


30 Literatura Portuguesa. 6. ed. Coimbra: Coimbra, 1975. v. 1, p. 440-457.

[440] O formalismo literário na «Fenix Renascida»

1. Se a poesia é, essencialmente, libertação, pela palavra, de íntimas emoções,


ou comunicação de ideias com certo grau de tonalidade emotiva, é-o na medida em
que tal se fizer segundo formas expressivas com poder de insinuação de agrado e
sugestividade mais ou menos generalizáveis.
2. Ora, é sabido que há momentos em que a preocupação de tais formas, o
como, ou seja o modo da comunicação com que se obtém o prazer alheio ou próprio,
substitui, como impulso criador, o aquilo que, quero dizer, a substância que por
necessidade de libertação emocional se pretende comunicar. (Traduzo o que os
Alemães designam por wie e was). Então, a poesia converte-se em mero luxo
intelectual, completamente alheia às fundas necessidades espirituais.
3. Erudição e esquisita suavidade — eis as qualidades com que o coleccionador da
Fenix Renascida procura o agrado dos leitores. Percorramo-Ia para o demonstrar.
4. A Fénix Renascida foi coleccionada e publicada por Matias Pereira da Silva:
o primeiro volume em 1716 e o último em 1728. Seguiu-se mais uma edição, em
1746. Na publicação de cada volume, que saía separadamente, jamais o editor
deixava de, em bela pompa retórica, salientar o agrado que acolhia os anteriores.
5. [442] A colectânea, de lição incorrecta e composições alheias a qualquer
ordem, abrange poesia épica, lírica, satírica, burlesca e puramente descritiva.
6. Épica, era natural que existisse. Porque, não obstante ser a publicação do
século XVIII, a elaboração das poesias que constituem o seu conteúdo é, em geral,
muito anterior, em boa parte coincide em as guerras da Restauração. De maneira
que D. Afonso VI, o Conde de Castelo Melhor, o Marquês de Marialva, as batalhas
de Montes Claros, Elvas, Canal, etc., não deixam de pôr em vibração o sentimento
patriótico — ou de estimular o hiperbolismo poético da escola.
7. A poesia satírica, como a burlesca, está largamente representada, apenas,
porém, a compatível com o rigorismo moral de editor que se propunha não destruir
(com a própria casa...) os bons costumes, pois a modéstia também pode andar de capa e
espada. O que notaremos sobre tal matéria da colecção, é que é escrita, em geral, em
frase clara e não confusa, como redundantemente se exprime um dos autores. Sucede
isto igualmente com todos os géneros inferiores, pois lendo, por exemplo, as poesias
puramente descritivas em que se conta o casamento de D. Afonso VI e se dá relação
da festa de touros que se fez na praça do Rossio no ano de 1644, surpreende-nos certa
frescura de realidade que não deixa de ser grata e útil ao que, à falta de poesia
propriamente dita, procura em tal leitura o quadro dos costumes da época.
8. Mas só quando o género implique uma disposição moral e mental que é, por
natureza, a antítese da atitude poética, ele é tratado em frase clara. O mesmo se não
234

verifica nos que são elaborados para exaltação ou encarecimento do objecto cantado
— o género épico e lírico. Falemos deste.
9. [442] Está cheia a colecção de produções elaboradas, já no intuito de brilhar
quer pelo brincado, quer pelo faustoso da forma nova, que possa impor à admiração
a subtileza do conceito imprevisto, da forma inaudita da maraviglia. No primeiro
caso, deparam-se-nos artifícios na utilização do duplo sentido das palavras (jogo de
palavras), na construção amaneirada da frase (jogo de construções), na ornamentação
excessiva da expressão (jogo de imagens). No segundo caso, é a capacidade analítica
e discursiva que se põe à prova (jogo de conceitos); a forma é mais directa e simples,
todo o artifício consistindo na invenção e encadeamento dos conceitos: por
exemplo, uma premissa em que se toma como realidade uma metáfora — e logo o
encadeamento conceptual que vai dar ao absurdo do paradoxo.
10. Os exemplos de jogos de palavras são numerosíssimos. Assim a poesia de
Jerónimo Baía Ao menino Deus em metáfora de doce ou A Santo Antônio alistando-se por
soldado:

Ide, que, sem quebrar votos,


Sereis um rico soldado,
E posto sois remendado,
Nunca nó seremos rotos.
Ide certo que nas linhas
Lhe heis-de dar golpes tremendos,
Pois só com vossos remendos
Lhe haveis de gastar as linhas. Tomo IV, 74

11. Como artifício de técnica construtiva, é difícil encontrar nada mais curioso
do que o soneto seguinte, onde duas imagens, como dois fios de filigrana, ora
seguem [443] paralelas, ora se entrelaçam e se prendem, ao capricho de quem os
manuseia:

Quando o Sol nasce / e a sombra principia,


A doce abelha, / a borboleta airosa,
Procura luz ardente / e fresca rosa,
Que faz a terra céu / e a noite dia.
Mas quando.à flor se entrega, / à luz do dia,
Uma fica infeliz, / outra ditosa,
Pois vive a abelha / e morre a mariposa,
Na favorável rosa / e chama impia.
Filis, abelha sou, / sou borboleta,
Que com afecto igual, / com igual sorte,
Busco em vós melhor luz, / flor mais selecta.
Mas quando a flor é branda / a chama é forte
Néctar acho na flor, / na luz cometa;
A boca me dá vida, / os olhos morte. III, vol. 195

12. Exceptuando o 3.° e 6.° versos, em que se inverte a ordem adoptada, em


todos os outros as duas imagens — a da abelha, expressa na primeira parte de cada
verso, e a da borboleta, na segunda parte — seguem tão a par, que não é difícil, com
pequenos acrescentamentos, a decomposição do soneto longitudinalmente em dois
sonetilhos.
13. Outro processo de arquitectura, exemplifica-o o Soneto que começa:
235

Quando o bronze, entre horrores desatado,


Quando a tuba, entre aplausos fementida,
Mostra em línguas de horror sombras da vida,
Doura em mimos de voz ânsias de agrado... III, ver., 248

14. [444] Além da alternância da construção — o 1.° verso continuando-se no 3.°


e o 2.° no 4.° — notai a perfeita simetria construtiva e a antítese que opõe cada um dos
elementos de uma das ideias a cada um dos elementos da outra.
15. Eis processos de técnica construtiva, que não confundiremos com a imaginação
propriamente dita, criadora de símbolos e imagens, transposições do mundo das
realidades morais para o mundo das realidades físicas e vice-versa, no intuito de
aumentar a beleza, o vigor, a graça nova da expressão. .
16. Nada mais audacioso, como revelação de capacidade imagística, do que estes
versos, de autor desconhecido, a respeito de um papagaio:

lris parlero, Abril organizado,


Ramillete de plumas con sentido,
Hybla con habla, irracional florido,
Primavera con pies, jardin alado... III, 54

17. Às rosas chamou outro poeta alardes do campo, mariposas do Sol, e na rebusca
da novidade metafórica, escreve, não sem beleza:

O Sol as mancha, quando as enamora,


Pois cada rosa que em luz se doura,
É borboleta que nas chamas arde.

18. Mas nada mais expressivo dos recursos retóricos e dos valores poéticos da
escola, do que a poesia de Jerónimo Baía — Lampadário de Cristal — feita a um
lampadário oferecido pela duquesa de Sabóia à rainha de Portugal, sua irmã, D. Maria
Francisca.
19. [445] E vede, nos versos que seguem, entre os brincados da forma, os
elementos de construção nela preferidos:

Cantem com verso digno


De celebrar mil Troias,
Levando a Esmirna o louro, a Mântua a palma,
Estas aves com alma,
Com pena estes mancebos [os poetas]
A um céu, tesouro, prado,
Luminoso, magnífico, bricado,
Que em corpo cristalino
Ostenta mais que belas
Boninas, mas de jóias,
Jóias, porém de estrelas,
Estrelas, mas de Febos;
Porém vencem tais luzes, tais primores,
Mil sóis, mil astros, brincos mil, mil flores,
Ficando locuções menos condignas
Febos e estrelas, jóias e boninas. III, vol. 7
236

20. Não é preciso entrar nas subtilezas da hipérbole: um lampadário que é um


céu, um tesouro, um prado, prado que não ostenta boninas, senão jóias, tesouro que não
encerra jóias, senão estrelas, céu que não brilha de estrelas, senão de sóis — para se ficar
com a impressão, que é comum a quase toda esta poesia, não apenas do jogo de
fulgores, mas sobretudo do ansioso esforço de os buscar novos e sempre mais
deslumbradores. São palavras como fogos de artifício em linhas sucessivas de
superação no fulgor e na magnificência, para corresponder a uma crescente ansiedade
pelo mais belo, fracassada porque não se atinge a sublimação que se procura, segundo
os dois últimos versos citados, que sublinho.
21. O propósito de fascinar pelo jogo dos esplendores denuncia-o esta
complacente demora de Baía, quando [446] ima|gina as mãos cristalinas da rainha e o
cristal do lampadário espelhando-se reciprocamente:

Vê-se (as mãos debuxando)


Vê-se o brado cristal em cristal duro,
Mas, espelho alternando,
Também, se puro um tempo, agora impuro
Se vê duro cristal em cristal brando;
Porque o brando cristal brilha tão puro.
Que a quem. o está pintando está pintando;
Porém luzido sempre, nunca escuro,
E com termo encontrado,
Uma vez de pedido, outra de dado;
Dando ao pedir, pedindo ao dar conselho;
É cristal do cristal, do espelho espelho. Ibid. 42-43

22. A desmesurada desproporção entre a realidade e a radiosa imagem em que


ela se transfigura, não pensemos que derive de uma atitude de êxtase ante os
poderosos. E processo, da técnica da escola, que estimula à visão magnificante de
quanto é objecto de poesia. Tudo envolve no halo sublimador — o lampadário, os
reis, a vasta monarquia, que

Tanto mar prende, tanto mundo encerra


Que a não vê, que a não acha o Céu e a Terra,
Ou só num Universo ou só num dia.

23. O seu valor militar é tão grande, que

... faz aos Castelhanos, nas fronteiras,


Tremer os corações mais que as bandeiras.

24. Nem a estes os deve humilhar a derrota sofrida,

Porque mais é de Lísia ser vencidos


Do que ser do Universo vencedores.

25. [447] Reparemos, porém, em outro aspecto desta poesia, bem diferente do até
aqui estudado, menos grato à imaginação construtiva, ou à voluptuosidade sensual,
do que à volúpia mais fina da razão dialéctica. Exemplifica-o o soneto seguinte:

Amor, se uma mudança imaginada


237

É com tanto rigor minha homicida,


Que fará, se passar de ser temida,
A ser, como temida, averiguada?
Se só por ser de mim tão receada,
Com dura execução me tira a vida,
Que fará, se chegar a ser sabida?
Que fará, se passar de suspeitada?
Porém, já que me mata, sendo incerta,
Somente o imaginá-la e presumi-Ia,
Claro está, pois da vida o fio corta,
Que me fará depois, quando for certa,
Ou tornar a viver para senti-Ia,
Ou senti-Ia também depois de morta. III, vol. 256

26. O P.e António Vieira — hemos de vê-lo adiante — frequentemente


argumentava assim. A traça lógica, fundada sobre a premissa hiperbólica da morte
pela ausência, simula habilidosamente a legitimidade da absurda conclusão, como no
sermão pela vitória das nossas armas contra a Holanda, a aceitação, como linguagem
exacta, do metaforismo poético da Bíblia, autoriza as inferências quase blasfemas do
patriotismo desesperado. E no poeta, como no orador, não se pode fugir a ver, não
tanto a projecção da poesia gongórica, caracterizada pela sobrecarga de ornatos,
como a influência dos hábitos dilécticos das escolas peripatéticas, onde
analogamente se erguiam construções de igual valor de verdade, pelo puro prazer de
patentear argúcia de inteligência.
27. [448] Vede ainda, no Lampadário de Cristal, a maneira como Jerónimo Baía
pretende provar a superioridade de D. Pedro relativamente a Alexandre Magno, e
concluireis que o processo é o mesmo por que o P. e Vieira prova que a vitória, sobre
os Espanhóis, dos Portugueses que lhe são vizinhos, é superior à vitória dos
Flamengos, que deles estão longe: David pôs no templo a espada com que degolara
Golias, e não a funda com que o derribara de longe.
28. É a este aspecto da poesia seiscentista que melhor cabe a designação de
conceptista, porque nele domina o jogo dos conceitos, convindo ao que anteriormente
se exemplificou a designação de cultista395, caracterizada pelo jogo de palavras, de
construções ou de imagens396.
29. «Cultismo ou conceptismo são, contudo, duas faces da mesma realidade, dois
aspectos de um conceito único da poesia — o que a reduz a uma actividade puramente
lúdica. Não exprime a vida; distrai da vida; sobrepõe ao plano da realidade o plano do
ideal, ou melhor — do fantástico, construí do com o que nela haja de mais [449] for|
moso e puro, fulgurante e nobre, para ele provocando a evasão da sensibilidade,
imaginação e inteligência»397.
30. Bóia a poesia seiscentista num esplendor que é feito de quanto sobre a terra
formosamente reluz. Vede este soneto, de autor desconhecido:

No verdor da floresta deleitosa,


Quando de Abril a Aurora é mais serena,
395
Nas Saudades de Apolo, da mesma colectânea, imita Diogo Camacho o estilo cultista: “De
quanto globo a gema nunca avara / Que tem por casca o Céu, nuvens por clara... // E logo, fingindo
dar-se conta da extravagância da metáfora escreve: “Nunca ninguém tal disse! ... Grande coisa é ser
culto / Fingir quimeras e falar a vulto!”
396
Vide Ensaios, de António Sérgio, tomo v — Salada de, conjecturas a propósito de dois jesuítas.
397
Do meu Prefácio à colectânea — A Poesia Lírica cultista e c:onceptista, da colecção Textos Literários
— Seara Nova.
238

Reclinado nos braços da açucena,


Vi o purpúreo carmim da mesma rosa.
Essa de âmbar fragrante mariposa
Vi bordar de escarlata a selva amena,
E em quebros vi cantar a filomena,
Entre as ramas de Daíne mais frondosa.
De, Flora o campo cheio de harmonias,
De aljôfar guarnecendo os verdes prados,
Essas de Tétis líquidas sangrias,
Tudo em fragrâncias concedia agrados
Mas, ah! que, entre tão doces melodias,
Somente me enlevaram meus cuidados. III, 264

31. E sob esta iluminação que surgem transfiguradas as próprias sombras


trágicas da morte. Vede como, no seguinte soneto, fica mais nítida, na nossa retina,
a impressão das coisas, belas, do que na nossa emotividade o sentimento
melancólico da morte:

Esse baixeI nas praias derrotado,


Foi nas ondas Narciso presumido;
Esse farol nos céus escurecido,
Foi do monte libré, gala do prado.
[450] Esse nácar em cinzas desatado,
Foi vistoso pavão de Abril florido.
Esse Estio em Vesúvios incendido,
Foi Zéfiro suave em doce prado.
Se a nau, o Sol, a rosa, a Primavera,
Estrago, eclipse, cinza, ardor cruel
Sentem nos auges de um alento vago,
Olha, cego mortal, e considera
Que és rosa, Primavera, Sol, baixel,
Para ser cinza, eclipse, incêndio, estrago. III, 246

32. Não há, porém, nesta poesia aspecto que melhor demonstre que ela acima
de tudo procura entretenimentos voluptuosos para a sensibilidade ou para a
inteligência do que a maneira como nela são tratados os temas religiosos.
33. Os versos de Baía, — Ao menino Deus, em metáfora de doce398, Ao nascimento
do menino Deus399, Ao Santíssimo Sacramento400, são, como aquele soneto, atrás citado,
de D. Francisco Manuel de Melo (pág. 430), significativos da incompatibilidade, por
este mesmo autor apontada, entre a atitude poética do tempo e a atitude seriamente
religiosa. Todos os poemas citados são desenfadados artifícios verbais, para exibição
de engenho e entretenimento de desocupados sobre o que a religião continha de mais
grave.
34. Quanto à poesia pessoal, não podia deixar de ser repelida. A sociedade
praxista, para a qual era feita toda a literatura, não prescindia, nas relações com os
poetas, de [451] uma grande compostura na convivência pessoal, como na
convivência literária. A dor íntima só interessava quando convertida em realização
artística e o melhor meio de despertar o interesse era saber fazer sorrir perante a
facécia ou admirar as audácias de engenho. Assim, nem uma lágrima molha, nem
398
I, pág. 362
399
VI, pág. 365.
400
II, pág. 303.
239

uma palpitação de funda ternura estremece esta colectânea pagã — braçada de


heráldicas flores... de papel...
35. É preciso dizer que há, mesmo entre os colaboradores da Fénix Renascida,
quem trate os seus confrades por bem mais duro modo do que nós... Mete-os a
ridículo D. Tomás de Noronha, que a propósito, por exemplo, das poesias que se
fizeram a uma queimadura da mão de uma senhora, escreve:

Ó mão não de cristal, não mão nevada,


Mão de relógio, sim, pois que pudeste,
Nesta mísera terra em que nasceste,
Fazer dar tanta infinda badalada.

36. Mas é Diogo Camacho, na Jornada e no Pegureiro do Parnaso, que lhe vibra
golpe mais duro. Para este espírito cheio de bom-senso, que se liberta pelo burlesco,
a poesia culterana

... vestido de imagens parecia,


Pois, quando vemos o que dentro encobre,
Quatro paus carunchosos nos descobre.

37. E pondo ponto no riso faceto, preceitua, cheio de seriedade — e de razão:

Quem quer fazer escura uma poesia


Tem mais amor à noite do que ao dia;
São lastimosas mágoas
Turbar as fontes e beber das águas.
[452] Seja o conceito fundo.
Mas que possa entendê-lo todo o mundo,
Que não perde a beldade
O Sol por ter mais luz ou claridade.
Por escárnio somente ou zombaria
Se pode escurecer qualquer poesia. V, 47

38. O poeta tinha razão, mas a sua acusação de obscuridade era, porventura,
menos exemplificável que a acusação de falta de autenticidade, quando não de conteúdo,
comum à prosa dos panegíricos, dos prefácios laudatórios, da oratória sagrada, etc.
39. Toda essa literatura participa da natureza do trajo feminino, a que ninguém
impõe se amolde às curvas do corpo; da arquitectura barroca, da qual se não exige que
se adapte à gravidade solene ou à mística exaltação da Fé; e tem íntimas afinidades
com aquela pintura, que da vida e da realidade não procura surpreender senão os
aspectos de mais luminosa, artificiosa beleza.
40. Não esqueçamos também que, sendo tudo as subtilezas do conceito ou os
ornatos da forma, qualquer fútil incidente da vida amorosa ou cortesanesca podia ser
poetizável. Sublinhava-se pela hipérbole o banal, requintava-se o insignificante pelas
quimeras escuras, quando mais não fosse pelas complicações verbais ou sintácticas.
Assim, cantou-se em verso o caso da menina que, tocando cítara, lhe pousa no braço um
rouxinol; de uma outra, junto de cujos olhos voa uma borboleta; de uma terceira que,
tocando citara, fez morrer um cisne; de uma Nise que, tendo dado um retrato a Fábio,
achando-o a dormir, tirou-lho. Fizeram-se versos a um javali morto pela sereníssima
Infanta de Portugal; a um pintassilgo morto por um gato; a um desmaio por uma sangria; a
um tal [453] Fábio que, sabendo que Clóris a quem amava lhe era ingrata, tendo um retrato
240

seu em lâmina de bronze, o lançou em uma fundição de artilharia; a uma dama que deu uma
queda, indo espevitar uma vela; e até uma freira indo parar às Caldas, suscita uma
amorosa versalhada, que, parece, ninguém no tempo acusaria de indiscreta.
41. E quereis ver um exemplo de sonetos mandados à Academia? Ei-lo: — A um
amante que à vista de sua dama adormeceu. Exemplo de assuntos de discussão
académica, em verso: Se os favores de Nise eram concedidos de graça ou de justiça ao
amor de Fábio.
42. Todos aceitavam tal convenção, até os mais ligados à tradição quinhentista,
como o autor da Corte na Aldeia, Francisco Rodrigues Lobo. Mais poeta do que D.
Francisco Manuel de Melo, sobre o assunto gozava de especial autoridade. No
Diálogo V — Dos Encarecimentos — um dos interlocutores, D. Júlio, gaba, segundo o
formulário do tempo, uma peregrina beleza que nessa manhã encontrara:

«Os olhos eram duas estrelas de diamantes, em cujo fundo um verde


escuro de esmeraldas aparecia, que, comunicando àquela fermosa cor a
claridade dos raios que despediam, roubariam as almas de quem os
olhasse [...] A boca era um laço de todos os pensamentos amorosos, e
nunca vi coisa tão piquena, em que coubessem tantas grandezas;
pareceu-me um rubi partido pelo meio, que com um perfil o aleonado se
dividia, e por detrás luziam como por vidraças as perlas, que até então
me. não descobria o pejo com que ficou de haver visto. A coluna que
sustentava este edifício era um pescoço de cristal, jaspeado de umas
veias roxas e azuis muito delgadas, que me representaram naquela hora
a cor do céu sereno, que pela rotura de duas [454] nuvens brancas
aparece, a que fazia parecer mais fermoso o círculo da sombra com que
se engastava do áspero burel da esclavina que a romeira vestia ... ».
Diálogo V

43. Comentando estes encarecimentos de D. Júlio, os interlocutores tecem um


diálogo que muito a propósito vem citar:

«os encarecimentos nascidos de amor — diz Feliciano — não devem


parecer estranhos (por desiguais que sejam) a nenhum juízo afeiçoado;
porque o amante, para pintar a fermosura de uma dama, que satisfaz a
seus olhos e pensamentos, dificultosamente achará nas cousas criadas a
que a compare, que lhe fique parecendo que a encarece; porque, ainda
que sejam fermosas as estrelas, lhe não agradam tanto como os seus
olhos; e sendo o Sol tão belo, se alegra menos com a claridade de sua
luz, que com ver o rosto de quem ama; e são de menos valia para seu
gosto e desejo o ouro, as perlas, rubis, esmeraldas e safiras, que o riso
da sua boca e a graça da sua vista; e de não imaginar na terra um amante
cousa que se iguale ao objecto da sua afeição, dá em o desvario de a
comparar aos espíritos que não alcança com o entendimento, subindo
como ele polas hierarquias mais levantadas...»401.

44. E como Leonardo objecte que são uniformes os louvores, pois «os que são
menos lapidários empeçam em coral, marfim, pórfiro, alabastros, rosas, neve, ouro,
quando [...] a paixão não havia de guardar regra certa nas palavras e louvores», replica
Pelício «que para louvar não há tantos caminhos como para ter afeição, porque logo dais

401
Ibid.
241

com uma estrada coimbrã, que é tão bela como [455] o Sol, tão clara como a Lua, tão alva
como a neve, tão loura como o ouro»402.
45. Solino concorda com este argumento.
46. Em seu juízo, não seguir o trilho, é correr o risco de «vir a meter os louvores de
uma dama em exemplos caseiros». E é curioso: os exemplos que aponta para os repelir,
como opostos aos legados pelos poetas clássicos, que «como retratadores das obras
excelentes da natureza, buscaram tão altivos materiais para darem vivas cores à fermosura»,
são precisamente comparações que mais tarde haviam de ser gratas ao naturalismo
pinturesco dos românticos: «fresca como o seu pomar, linda como o seu jardim, clara como
a sua fonte e alta como a sua faia». Como homem do seu tempo, entende que é fonte de
beleza superior aquele rebuscar da expressão hiperbólica para o sentimento raro. «Do
pensamento e juízo dos amantes, saíram ao mundo as empresas discretas, as quimeras
escuras, os versos excelentes, os enredos subtis, as cartas galantes, as fábulas bem
fingidas, os primores e os extremos e as finezas, tudo doutrina tirada das escolas de
amor».
47. É preciso, contudo, confessar:
48. Esta tendência para o cultivo quase exclusivo da forma não poderia ser sem
resultado para atingir, além do vivo esmalte que lhe davam as imagens, às vezes tão
belas, faiscando como jóias caras que muito parnasiano gostaria de subscrever, a
fluência límpida do verso, a melodia impecável do ritmo.
49. Na verdade, Jamais com superior mestria se ajustou [456] a construção da
frase ao recorte poético, sem nele magoar ou mutilar a ideia; se distribuiu e
equilibrou a matéria na estrofe, de modo a produzir o balanço rítmico já acima
notado; se meteu o conceito no molde vigoroso, exacto de uma frase, que a memória
retém, porque os ouvidos gostosamente a acolhem. Vede neste soneto de Jerónimo
Baía — Falando com Deus — para além do artifício dos paradoxos, a perfeita
adequação da frase à ideia — e de tudo ao metro:

Só vos conhece, Amor, quem se conhece;


Só vos entende bem quem bem se entende;
Só quem se ofende a si, não vos ofende,
E só vos pode amar quem se aborrece.
Só quem se modifica em vós florece:
Só é senhor de si quem se vos rende;
Só sabe pretender quem vos pretende,
E só sobe por vós quem por vós dece.
Quem tudo por vós perde, tudo ganha,
Pois tudo quanto há, tudo em vós cabe.
Ditoso quem no vosso amor se inflama,
Pois faz troca tão alta e tão estranha.
Mas só vos pode amar o que vos sabe,
Só vos pode saber o que vos ama. III, 213

50. Tal esforço no aperfeiçoamento da poesia não podia deixar de se fazer


sentir no aperfeiçoamento da prosa, porque fundamentalmente se exercia no domínio
da língua — e o exerciam artistas hábeis no manejo de uma e outra forma de
expressão, como Bernardo de Brito, Rodrigues Lobo, Faria e Sousa, Manuel de
Melo, e até Vieira e Bernardes...

402
Ibid.
242

51. Perante estes exemplos — e os exemplos constituídos por muitos dos


versos citados neste estudo — a conclusão [457] a tirar creio bem que pode ser esta:
Os poetas do século XVII, à- força de cuidados aplicados à forma, dominam melhor a
língua e a técnica poética, são mais artistas do que a generalidade dos seus confrades
do século XVI. Se uma ou outra vez são obscuros, é porque a obscuridade constituía
valor poético. Precediam o hermetismo-valor poético no nosso tempo...
52. Não haverá que duvidar: o formalismo seiscentista, pelas tendências que o
definem, aperfeiçoou o instrumento com que mais tarde, depois de terminado este
amável parêntesis de sibaritismo intelectual, se hão-de exprimir o pensamento e a
emoção, analisar a vida e pintar a natureza. Mas, por enquanto, está-se praticando
com a língua semelhantemente ao que se fez com o espírito dialéctico — afia-se a
faca não para nada cortar, como foi julgado e expressivamente dito pela crítica de
Setecentos, mas para cortar no futuro...
53. Em tempo algum, na verdade, a poesia e a arte mais se distanciaram do real,
subjectivo ou objectivo, e melhor puderam ser definidas pelo conceito que da arte
clássica formulou Maurras:

«L’art est une fiction à laquelle l’ esprit s’ égaie en liberté. Plaire au public, se
divertir entre eux, c’est le but unique».403

UNIDADE VI: NEOCLASSICISMO: FILINTO ELÍSIO, MANUEL MARIA BARBOSA


DU BOCAGE, ANTÔNIO JOSÉ DA SILVA. Textos 31 a 34.

OBJETIVOS

Ao final desta unidade, você deverá ser capaz de:

a) ler textos de Filinto Elísio, Bocage e Antônio José da Silva, segundo uma perspectiva
crítico-interpretativa;
b) examinar as características fundamentais do Barroco português;
c) discutir aspectos da poética neoclássica em Bocage segundo Cidade (1975) e Pontes
(2002).

INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS

MOISÉS, Carlos Felipe. Bocage e o século XVIII. Colóquio/Letras. Lisboa, n. 50, p. 35-42,
jul. 1979.
SARAIVA, António José, LOPES, Óscar. Bocage. In: História da Literatura Portuguesa. 15.
ed. Porto: Porto, 1989. p. 698-701.

Texto BOCAGE, Manuel Maria Barbosa du. Sonetos. In: Opera Omnia. Lisboa: Bertrand,

403
Barbarie et Poésie. [A arte é uma ficção, com a qual o espírito se alegra com liberdade. Agradar ao
público, divertir-se eles, é o fim único.]
243

31 1969. v. 1, 245 p. Trechos.404

31.0. Tabela de sonetos

TABELA DE SONETOS BOCAGEANOS

SIGLAS

AMC = Edição de Antônio Maria do Couto


CNI = Colecção dos Novos Improvisos de Bocage na sua moléstia
CS = Edição de Costa e Silva
IB = Improvisos de Bocage na sua mui perigosa enfermidade
IFS = Edição de Inocêncio Francisco da Silva
LCP = Livraria Clássica Portuguesa
1791 = Só na edição de 1791
T4 = tomo 4.º das Rimas
TB = Edição de Teófilo Braga
HC = 376 sonetos + 1 em francês (La Cochonille) + 1 tradução
1968 = BOCAGE, Manuel Maria Barbosa du. Obras. Porto: Lello & Irmão, 1968. 2050 p.

N.o INCIPIT 1800-1806 1807-75 1968 1969


001 A certo genealógico de tretas — T4 297 I.112
002 A frente, que de loiro ergui cingida 2.066 — 373 1.157
003 A frouxidão no amor é uma ofensa 2.043 — 233 1.057
004 A loira Fílis, na estação das flores 1.010 — 137 1.009
005 A prole de Antenor degenerada — 1791 336 1.057
006 A teus mimosos pés, meu bem, rendido 1.054 — 156 1.019
007 Aceso no almo ardor, que a mente 2.024 — 348 1.154
008 Adamastor cruel! De teus furores 1.077 — 289 1.089
009 Adeja, coração, vai ter aos lares, 1.100 — 268 1.081
010 Aflito coração, que o teu tormento 1.034 — 146 1.014
011 Agora, que a seu lôbrego retiro — IB 465 1.198
012 Ah!, que fazes, Elmano? Ah!, não te ausentes 1.101 — 269 1.075
013 Ah, meu Gastão!, o Pindo senhoreia — IB 504 1.112
014 Altas filhas do génio, irmãs formosas — CNI 459 1.182
015 Alva Gertrúria minha, a quem, saudoso 1.058 — 261 1.082
016 Amigo Frei João, cuidas que é barro — CS, T6 304 1.116
017 Amor, que o pensamento me salteias 2.018 — 421 1.069
018 Ânsias inda teu metro, e raivas custa — CNI 461 1.184
019 Ânsias terríveis, íntimos tormentos 1.045 — 151 1.016
020 Antes eu visse matador cutelo — P1 200 1.041
021 Ao crebro som do lúgubre instrumento 2.044 — 391 1.119
022 Ao templo do propício Desengano 1.007 — 135 1.008
023 Apenas vi do dia a luz brilhante 1.038 — 277 1.076
024 Apertando de Nise a mão nevada — LCP 495 1.071
025 Aquela que na esfera luminosa 1.121 — 184 1.033
026 Aquele que ali vês, rosto maldito — AMC 252 1.136
027 Aquele que domina os céus brilhantes 2.064 — 372 1.157
028 Aquele, a quem mil bens outorga o Fado 1.018 — 273 1.083
029 Aqui, onde, arquejando, estou curvado 2.052 — 374 1.159
404
Cf. MOURÃO-FERREIRA, David. O drama de Bocage. In: Hospital das Letras. 2. ed. Lisboa: Guimarães,
[19--], p. 57-62.
244

030 Arde em vão por Elisa, em vão porfia 1.051 — 154 1.018
031 Às águas e às areias deste rio 2.029 — 222 1.052
032 Às margens do Regaça cristalino 2.012 — 211 1.046
033 Às rígidas lições do férreo Zeno — CNI 434 1.180
034 Áureo fio subtil, que teve unida 2.021 — 217 1.049
035 Ave da morte, que piando agoiros — CNI 479 1.178
036 Belmiro, que entre os pâmpanos farfalha — AMC 318 1.101
037 Bem hajas, ó Morfeu! À fantasia 2.058 — 349 1.155
038 Bem que do eterno luto ameaçada — CNI 464 1.189
039 Blasfema Rumecão, jura vingança 1.113 — 284 1.084
040 Brandamente extraiu co’a mão sagrada 3.014 — 403 1.122
041 Busquei num ermo Algânia feiticeira 1.103 — 171 1.026
042 Cala a boca, satírico poeta 1.085 — 290 1.086
043 Camões, grande Camões, quão semelhante 1.079 — 267 1.085
044 Canta ao som dos grilhões o prisioneiro 1.082 — 167 1.024
045 Cantemos todos lúgubres endechas — IFS 489 1.132
046 Cantor, que a fronte erguia engrinaldada — IB 429 1.200
047 Cara de réu, com fumos de juiz 1.123 — 483 1.113
048 Caro a Febo, a Filinto, a Lísia, à Fama — IB 482 1.197
049 Cesarões, Viriatos, Apimanos 1.036 — 279 1.114
050 Chalaça minha, que chibavas tanto — T5 503 1.170
051 Chorosos versos meus desentoados 1.002 — 130 1.005
052 Cisne gentil, que modulava implume — CNI 469 1.187
053 Co’a mente juvenil, sublime, alada — IB 453 1.200
054 Co’um diadema de luz no Elísio entrava — T4 443 1.128
055 Com ampla mão, benéfica largueza — T4 405 1.125
056 Com hábito de fora e de capote — T5 486 1.130
057 Com pena de latão atrás da orelha — CS, T6 253 1.136
058 Com rosto Guarda-Mor, mesto e medonho — T5 487 1.131
059 Conhecem um vigário de chorina, — CNI 309 1.096
060 Contigo, alma suave, alma formosa, — CNI 428 1.178
061 Contra Elmano Sadino, urrando, avança — AMC 323 1.103
062 Contra o drama “O Recife Restaurado” — T5 501 1.111
063 Corre furioso o episcopal repolho — AMC 492 1.134
064 Da fria habitação, da vítrea gruta 1.042 — 248 1.135
065 Da glória, que não morde, à roda zune — T4 404 1.110
066 Da minha ingrata Flérida gentil 1.125 — 187 1.034
067 Da pérfida Gertrúria o juramento 1.014 — 257 1.077
068 Da rama escura de letal cipreste 2.048 — 236 1.059
069 Da triste, bela Inês, inda os clamores 1.059 — 249 1.141
070 Das faixas infantis despido apenas, 2.002 — 202 1.042
071 Das Petas o Almocreve é obra tua, — AMC 331 1.107
072 Das terras a pior tu és, ó Goa, 1.126 — 293 1.087
073 De cerúleo gabão não bem coberto — 1791 498 1.004
074 De cima destas penhas escabrosas — 1791 199 1.040
075 De Elmano a Musa, que entre imagens vela — CNI 450 1.176
076 De Elmano antes da morte é morto o canto — CNI 462 1.189
077 De emaranhadas cãs o rosto cheio — 1791 201 1.041
078 De férreo julgador não vem contigo 1.139 — 387 1.165
079 De homens e numes suspirado encanto — IB 247 1.201
080 De insípida sessão no inútil dia — AMC 324 1.104
081 De nocturno, horroroso pesadelo 2.053 — 345 1.066
082 De Ontânio choras, e de Ontânio cantas — CNI 473 1.188
083 De Pafos o menino ardendo em ira 1.015 — 140 1.011
245

084 De peito impenetrável sempre ao susto — T4 441 1.127


085 De radiosas virtudes escoltada 1.119 — 250 1.072
086 De suspirar em vão já fatigado 1.003 — 131 1.006
087 De um nume aos ais de Elmano, oh dom... — CNI 426 1.179
088 De Zargo o heróico ardor, que luz na fama — T5 472 1.169
089 Debalde contra Amor seu fel derrama 2.014 — 213 1.047
090 Debalde um véu cioso, ó Nise, encobre — 1791 201 1.042
091 Deitado sobre a relva Amor estava — 1791 198 1.040
092 Deixa, insigne Bocage, insulsos vates — AMC 327 1.105
093 Deixar, amado bem, teu rosto lindo — LCP 270 1.074
094 Demanda-me usurário senhorio — T4 491 1.133
095 Deploro, caro amigo, o que deploras — CNI 413 1.182
096 Desejo iluso e vão! Para que traças — IB 424 1.197
097 Desprega as asas, tímida Esperança 1.129 — 189 1.035
098 Distrai, meu coração, tua amargura 2.010 — 419 1.067
099 Do arbusto, ó Nise, a Vénus consagrado 1.075 — 164 1.023
100 Do cárcere materno em hora escura 2.026 — 219 1.050
101 Do coro arguto de febeus cantores — CNI 474 1.185
102 Do Fado vencedor, que o prostra fero — IFS 452 1.169
103 Do Mandovi na margem reclinado 1.074 — 265 1.081
104 Do Tempo sobre as asas volve o dia 2.070 — 380 1.158
105 Do velho Ertílio, mágico afamado 1.116 — 343 1.065
106 Doce Nume de amor, se à bela Armia 2.009 — 209 1.045
107 Dor que afiada o coração golpeia — CNI 478 1.186
108 Dos negros mausoléus a Deusa escura 3.012 — 400 1.121
109 Dos tórridos sertões, pejados de oiro — LCP 303 1.096
110 Dura filosofia audaz forceja — IB 433 1.198
111 É mentira, não foi o vil coveiro — AMC 308 1.117
112 Egrégio benfeitor de um desgraçado — IFS 414 1.126
113 Eis da virtude o templo rutilante 1.130 — 386 1.140
114 Elmano, de teus mimos anelante 2.051 — 344 1.065
115 Em bando espesso, em número infinito 1.102 — 283 1.084
116 Em deserta masmorra, ao Sol, odiosa — T4 408 1.124
117 Em ermo cemitério, em hora escura — IFS 307 1.094
118 Em frágil lenho o pélago cruzando — LCP 242 1.062
119 Em que estado, meu bem, por ti me vejo 1.094 — 191 1.036
120 Em sonhos na escaldada fantasia 2.008 — 208 1.045
121 Em sórdida masmorra aferrolhado 1.009 — 352 1.137
122 Em vão, Padre José, padre ou sacrista — AMC 499 1.163
123 Em vão, para tecer-me um ledo engano — LCP 435 1.168
124 Em veneno letífero nadando 1.069 — 163 1.022
125 Em vermelho cartaz propôs-se à cena — T5 302 1.095
126 Em verso torneado ao som da lira 2.038 — 228 1.055
127 Embora torpes gralhas esvoacem 3.007 — 398 1.109
128 Encantador Garção, tu me arrebatas 2.003 — 391 1.108
129 Enquanto muda jaz, e jaz vencida 2.004 — 204 1.043
130 Enquanto o sábio arreiga o pensamento 1.032 — 145 1.013
131 Enquanto os bravos, formidáveis Notos 1.025 — 259 1.078
132 Entre as tartáreas forjas, sempre acesas 1.083 — 168 1.025
133 Esse cabra, ou cabrão, que anda na berra — IFS 305 1.093
134 Esse cantor de chá, manteiga e queijo — LCP 316 1.100
135 Esses tesoiros, esses bens sagrados 1.056 — 158 1.020
136 Eu cantava de Amor; eis negro agoiro — CNI 460 1.191
137 Eu deliro, Gertrúria, eu desespero 1.092 — 192 1.037
246

138 Eu me ausento de ti, meu pátrio Sado 1.064 — 264 1.073


139 Eu vim c’roar em ti minhas desgraças 1.127 — 294 1.088
140 Eu, esse cujos dons medraram tanto — CNI 458 1.183
141 Eurindo, caro às Musas, e aos Amores 1.117 — 385 1.109
142 Excedo lustros seis por mais três anos 2.067 — 351 1.156
143 Famosa geração de faladores 3.009 — 496 1.134
144 Fatais memórias da traidora Alcina, 2.033 — 225 1.053
145 Febo no etéreo plaustro omnifulgente — CNI 475 1.190
146 Fiei-me nos sorrisos de Ventura, 1.050 — 153 1.017
147 Figueira que o não é, planta não planta, [Td] — T4 446 1.203
148 Filhas do Tejo, as águas transparentes — 1791 390 1.118
149 Filho, Espírito e Pai, três e um somente, 1.052 — 355 1.080
150 Folheando os anais da antiguidade, 1.095 — 340 1.071
151 Geme Barroco; a fraca Humanidade — 1791 389 1.118
152 Grato silêncio, trémulo arvoredo, 1.024 — 143 1.012
153 Gritava mestre Brás: “Filha traidora!... — T5 300 1.094
154 Guiou-me ao Templo do letal Ciúme 1.044 — 150 1.016
155 Há pouco, a mãe das Graças, dos Amores 1.053 — 155 1.018
156 Há um medonho abismo, onde baqueia 2.028 — 221 1.051
157 Havendo sobre a Terra derramado — T4 409 1.124
158 Havia mais de um mês que o bom... — LCP 311 1.097
159 Honroso loiro o capitão valente [lauro, HC] — 1791 197 1.039
160 Idosa fada, que nos astros lia 1.097 — 341 1.068
161 Igual ingratidão e igual vileza 2.027 — 220 1.051
162 Importuna Razão, não me persigas 1.104 — 172 1.027
163 Incense da Fortuna os vãos altares 2.005 — 205 1.043
164 Incultas produções da mocidade 1.001 — 129 1.004
165 Inda em meu frágil coração fumega 1.107 — 175 1.028
166 Indígena imortal do Pindo ingente, — CNI 467 1.190
167 Intruso no Apolíneo santuário, — T5 317 1.100
168 Já Bocage não sou!... À cova escura — LCP 439 1.202
169 Já com ténue clarão, já quase escura 1.131 — 417 1.066
170 Já de novo a meus olhos aparecem 2.041 — 231 1.056
171 Já no calado monumento escuro 1.111 — 179 1.030
172 Já o Inverno, espremendo as cãs nevosas 1.108 — 176 1.029
173 Já por bárbaros climas entranhado 1.017 — 272 1.089
174 Já que grita a barriga e a ceia tarda, — LCP 490 1.132
175 Já se afastou de nós o Inverno agreste 1.021 — 142 1.012
176 Já sobre o coche de ébano estrelado 1.005 — 133 1.007
177 Jónio meu, ainda meu (porque o jazigo — CNI 477 1.181
178 José, sangue de heróis, Príncipe amado 1.039 — 286 1.115
179 Josino amável, que zeloso engrossas — CNI 448 1.176
180 Junto ao Tejo, entre os tenros Amorinhos — AMC 319 1.101
181 Lá onde o Fado impenetrável mora 2.049 — 237 1.059
182 Lá quando a Tua voz deu ser ao nada — LCP 383 1.146
183 Lambendo a região dos ares puros — T4 406 1.123
184 Lançado pela destra omnipotente — T4 407 1.123
185 Lembrou-se no Brasil bruxa insolente — T5 329 1.106
186 Li as catorze regras aos penachos, — LCP 312 1.098
187 Liberdade querida e suspirada — T5 335 1.163
188 Liberdade, onde estás? Quem te demora? — T5 334 1.148
189 Louca, cega, iludida Humanidade, 1.020 — 285 1.115
190 Lusos heróis, cadáveres cediços, 1.115 — 292 1.087
191 Mãe de chefes heróis, de heróis soldados — T5 445 1.129
247

192 Maga lira de Amor, que ao trácio vate — CNI 466 1.185
193 Magro, de olhos azuis, carão moreno 3.010 — 497 1.003
194 Mais que os esbirros o Varona esbirro — AMC 488 1.131
195 Marília, nos seus olhos buliçosos 1.011 — 138 1.010
196 Marília, se em teus olhos atentara 1.040 — 148 1.015
197 Mavorte, porque em pérfida cilada 1.006 — 134 1.008
198 Meia-noite seria; eu passeando 1.061 — 262 1.080
199 Melibeu me cantou, cantou-me Oleno — T4 481 1.171
200 Melizeu, o menor entre os nascidos — AMC 315 1.099
201 Mercenário pregão de cego andante — T5 506 1.171
202 Meu frágil coração, para que adoras 1.062 — 159 1.020
203 Meu ser evaporei na lida insana — T4 438 1.168
204 Meus dias, que já foram tão luzentes 2.063 — 377 1.161
205 Meus olhos, atentai no meu jazigo 1.110 — 178 1.030
206 Mil poetas enfáticos e ufanos 2.031 — 394 1.120
207 Mimo das graças te floresce o canto — CNI 449 1.177
208 Mimosa, linda Anarda, atende, atende 1.109 — 177 1.029
209 Minh’alma quer lutar com meu tormento 1.138 — 367 1.152
210 Minh’alma se reparte em pensamentos 2.006 — 206 1.044
211 Miseranda Inocência, és nome abstracto 1.132 — 364 1.150
212 Morreste, caro Aónio, puro amigo 3.018 — 402 1.117
213 Musa chorosa, que por terra estranha 1.071 — 280 1.090
214 Musa, não cantes bárbara proeza — 1791 388 1.164
215 Na acesa fantasia estou medindo 2.059 — 350 1.155
216 Na cena, em quadra trágico-invernosa — T5 500 1.110
217 Na ideia e coração te brilha o Nume — CNI 457 1.188
218 Não dês, encanto meu, não dês, Armia 2.032 — 224 1.053
219 Não disfarces, Marília; por Josino 1.066 — 161 1.021
220 Não mais, ó Tejo meu, formoso e brando — IB 271 1.199
221 Não presta Córidon, não presta Elpino 3.017 — 330 1.107
222 Não sinto me arrojasse o duro Fado 1.060 — 337 1.162
223 Não sou vil delator, vil assassino 2.023 — 370 1.156
224 Não temas, ó Ritália, que o choroso 1.118 — 182 1.032
225 Não tendo que fazer, Apolo um dia — AMC 322 1.103
226 Não, Marília; teu gesto vergonhoso 1.008 — 136 1.009
227 Nas horas de Morfeu vi a meu lado 2.057 — 347 1.154
228 Nascemos para amar; a Humanidade 2.042 — 232 1.057
229 Negra fera, que a tudo as garras lanças 1.011 — 139 1.010
230 Néscia, vil ignorância, injuriada — T4 381 1.158
231 Nesta, do feio opróbrio estância feia, 1.133 — 338 1.152
232 Neste horrendo lugar, onde comigo 2.071 — 397 1.164
233 Neste horrível sepulcro da existência 1.135 — 365 1.151
234 Nestóreos dias, que sonhava Elmano — IB 480 1.199
235 Nise mimosa, como as Graças pura 2.055 — 346 1.153
236 Nise, das Graças e de Amor tesoiro 1.136 — 190 1.036
237 No abismo tragador da Humanidade — CNI 436 1.179
238 No carro de marfim sentada a Lua 1.106 — 174 1.028
239 No etéreo prado a Lua apascentava 1.046 — 278 1.083
240 Noite, amiga de Amor, calada, escura — CS, T5 246 1.064
241 Nos campos o vilão sem sustos passa 1.072 — 360 1.138
242 Nos Elísios de Amor endeusada — CNI 470 1.181
243 Nos puros lares teus assoma, irado — IB 412 1.126
244 Nos torpes laços da beleza impura 2.046 — 234 1.058
245 O Céu não te dotou de formosura 2.011 — 210 1.046
248

246 O céu, de opacas sombras abafado 2.034 — 226 1.054


247 Ó Céus! Que sinto n’alma! Que tormento! 1.124 — 186 1.034
248 O corvo grasnador e o mocho feio 1.043 — 149 1.015
249 Ó Deus, ó Rei do Céu, do Mar, da Terra 1.030 — 276 1.079
250 Ó deusa, que proteges dos amantes 1.120 — 183 1.032
251 O Filho do Grão-Rei, que a monarquia 1.070 — 358 1.143
252 O Guarda-Mor da calva para baxo — AMC 485 1.130
253 O instrumento brutal da acção mais crua — T4 444 1.129
254 O ledo passarinho, que gorjeia 1.093 — 193 1.037
255 Ó lira festival, por mim votada — T4 411 1.125
256 O mundo a porfiar que o Franco é tolo, — LCP 310 1.097
257 Ó ninfa, que das graças melindrosas — CNI 427 1.177
258 O pesado rigor de dia em dia 2.068 — 396 1.159
259 Ó Rei dos reis, ó Árbitro do mundo, 1.057 — 356 1.143
260 Ó retrato da Morte, ó Noite amiga 1.0788 — 165 1.023
261 Ó Terra, onde os seus dons, os seus favores 2.035 — 194 1.038
262 Ó tranças, de que Amor prisões me tece 1.016 — 141 1.011
263 Ó trevas, que enlutais a Natureza 1.105 — 172 1.027
264 Ó triste malfadada Academia! — T5 326 1.105
265 Ó tu, consolador dos malfadados 2.069 — 239 1.060
266 Ó tu, que tens no seio a Eternidade 2.056 — 415 1.146
267 Ó vós que lamentais de Elmano a sorte 2.060 — 376 1.160
268 Oleno, meia-noite está caindo 1.112 — 180 1.031
269 Olha, Marília, as flautas dos pastores 1.047 — 152 1.017
270 Olhos suaves, que em suaves dias 1.013 — 255 1.075
271 Os garços olhos, em que Amor brincava 1.065 — 160 1.021
272 Os milhões de áureos lustres coruscantes 1.049 — 354 1.142
273 Os princípios morais por que governo 3.008 — 399 1.120
274 Os suaves eflúvios que respira 1.055 — 157 1.019
275 Para as sombras da morte aqui me ensaio 2.065 — 379 1.162
276 Pela porta de ferro, onde ululando 1.089 — 169 1.025
277 Pela voz do trovão corisco intenso — IB 382 1.196
278 Perdi tudo (ai de mim!), perdi Marfida 2.047 — 235 1.058
279 Perverso estragador da formosura 1.026 — 195 1.038
280 Piedoso Aurélio meu, carácter puro — CNI 447 1.175
281 Pilha aqui, pilha ali, vozeia autores — T5 298 1.113
282 Planta mimosa de louçãos verdores — CNI 425 1.186
283 Pode o tosco pincel, que mal sustento — LCP 241 1.061
284 Por casa Febo entrou co’um vil bugio — T4 328 1.106
285 Por esta solidão, que não consente 1.035 — 147 1.014
286 Por fofos escarcéus arremessado 1.022 — 257 1.077
287 Por indústria de uns olhos, mais brilhantes 2.007 — 207 1.044
288 Por terra jaz o empório do Oriente 1.029 — 287 1.091
289 Pouco a pouco a letífera Doença 1.037 — 431 1.167
290 Praias de Sacavém, que Lemnoria 1.076 — 266 1.074
291 Precavendo os vaivéns da instável Sorte — T4 440 1.127
292 Precisa o Globo, exige a Natureza — T5 410 1.122
293 Preside o neto da rainha Ginga — T5 320 1.102
294 Qual novo Orestes entre as Fúrias brada 1.019 — 274 1.142
295 Qual o avaro infeliz, que não descansa 1.023 — 258 1.078
296 Qual o itálico herói, o audaz Tancredo 2.061 — 396 1.165
297 Qual tropa regular, a fradaria — LCP 493 1.147
298 Quanto à que me rendeu jurava ufano 3.011 — 240 1.061
299 Quando abriste os gentis, serenos lumes — CNI 455 1.192
249

300 Quando Anália, o meu bem, que o Céu... 3.013 — 422 1.070
301 Quando meu coração de Amor vivia — T5 245 1.063
302 Quando na rósea nuvem sobe o dia 1.134 — 339 1.153
303 Quantas vezes, Amor, me tens ferido! 2.050 — 238 1.060
304 Quarta-feira, catorze do corrente — AMC 301 1.095
305 Que ideia horrenda te possui, Elmano? 2.016 — 215 1.048
306 Queimando o véu dos séculos futuros 2.036 — 371 1.145
307 Quem é este boneco empertigado — T5 505 1.133
308 Quem se vê maltratado e combatido 1.098 — 342 1.068
309 Quer ver uma perdiz chocar um rato 1.088 — 295 1.088
310 Quis, Marília gentil, cantar teu dia — T4 243 1.062
311 Raios não peço ao Criador do mundo 1.004 — 132 1.007
312 Rapada, amarelenta cabeleira — AMC 314 1.099
313 Ressurge vesgo e torto o grã Fred’rico — LCP 484 1.111
314 Rompe os ares peloiro sibilante 1.041 — 288 1.116
315 Sanhudo, inexorável Despotismo — T4 333 1.148
316 Se a minha lastimosa desventura 1.028 — 275 1.076
317 Se considero o triste abatimento 1.072 — 359 1.144
318 Se é doce no recente, ameno Estio 3.016 — 423 1.070
319 Se Elmano, a quem no plectro, Ente sagrado — CNI 456 1.187
320 Se eu pudera ir de tralha, ir à surdina — T4 502 1.170
321 Se na que, morna e lúgubre, murmura — IB 432 1.202
322 Se o Destino cruel me não consente 1.031 — 430 1.166
323 Se o Grande, o que nos orbes diamantinos — IB 437 1.196
324 Se te adornas de sã filosofia, 1.068 — 357 1.138
325 Se, vítima da ingrata e do tirano 2.039 — 229 1.055
326 Senhor, que estás no Céu, que vês na Terra 1.096 — 363 1.145
327 Ser prole de varões assinalados 1.091 — 282 1.090
328 Sobranceiro ao poder e às leis da Sorte 2.019 — 216 1.049
329 Sobre as ondas do túmido oceano — 1791 442 1.128
330 Sobre estas duras, cavernosas fragas 2.013 — 212 1.047
331 Sobre o degrau terrível assomava 2.045 — 393 1.119
332 Sobre os contrários o terror e a morte 1.084 — 281 1.085
333 Sonhei que a mim correndo o gnídeo nume 1.122 — 185 1.033
334 Sonhei que nos meus braços inclinado 1.063 — 263 1.082
335 Sonho cruel o espírito inquieto 1.137 — 366 1.151
336 Sonho, ou velo? Que imagem luminosa 2.037 — 227 1.054
337 Tão negro como a turba que vagueia 2.054 — 375 1.160
338 Temo que a minha ausência e desventura 1.027 — 144 1.013
339 Tenho assaz conservado o rosto enxuto 2.022 — 369 1.140
340 Tenta em vão temerária conjectura 2.017 — 420 1.069
341 Terno Paz, bom Maneschi, Aurélio... — IB 454 1.195
342 Toldado o foco à luz da fantasia — CNI 476 1.183
343 Tomo segundo à luz saiu das “Rimas — AMC 332 1.108
344 Tragado o peito de cruéis pesares 1.128 — 188 1.035
345 Tragédia de Tancreu, rei de Disúria — T4 299 1.092
346 Trastes cediços, móveis de outra idade — LCP 494 1.135
347 Tributo em ais no coração gerados 3.015 — 401 1.121
348 Triste quem ama, cego quem se fia 1.099 — 170 1.026
349 Tu de quantos dragões o Inferno encerra 1.090 — 361 1.139
350 Tu és meu coração, tu és meu nume — T4 244 1.063
351 Tu, França, que na ode és mar em... — AMC 325 1.104
352 Tu, Goa, in illo tempore cidade 1.086 — 291 1.086
353 Tu, maligno dragão, cruel harpia 1.087 — 251 1.064
250

354 Tu, por Deus entre todas escolhida 1.081 — 362 1.144
355 Tu, que do grão cantor da Natureza — CNI 463 1.184
356 Tu, que na fouce de sanguíneo gume 2.015 — 214 1.048
357 Tu, que tão cedo aventurando as penas — CNI 451 1.191
358 Tu, que, em torpes desejos atolado 1.048 — 353 1.137
359 Tudo acaba: esse monstro carrancudo — TB 646 1.141
360 Um Ente, dos mais entes soberano — LCP 384 1.147
361 Un figuier non figuier, une plante non plante — T4 — 1.203
362 Ursulina gentil, benigna e pura 1.067 — 162 1.022
363 Usurpando um minuto a meu lamento 1.033 — 260 1.079
364 Vai-te, fera cruel, vai-te, inimiga 1.114 — 181 1.031
365 Vapor doirando, que me afuma os lares — IB 468 1.201
366 Vem, suspirada, carinhosa Armia 2.025 — 218 1.050
367 Vendo o soberbo Amor que eu resistia — 1791 196 1.039
368 Versos de Elmiro os tempos avassalam — CNI 471 1.180
369 Vinde, Prazeres, que por entre as flores 1.080 — 166 1.024
370 Vítima do rigor e da tristeza, 2.063 — 378 1.161
371 Vivem por i alguns de várias tretas, — AMC 306 1.093
372 Voai, brandos meninos tentadores, 2.030 — 223 1.052
373 Voaste, alma inocente, alma querida, 2.040 — 230 1.056
374 Volve a Peniche, ó zanga de Lisboa, — IFS 313 1.098
375 Vós, crédulos mortais, alucinados 2.020 — 369 1.139
376 Vós, ó Franças, Semedos, Quintanilhas, — T6 321 1.102
377 Vós, que de meus extremos sois a história 2.014 — 418 1.067

31. TEXTOS

31.1
[4] AUTOBIOGRAFIA
De cerúleo gabão não bem coberto,
Passeia em Santarém chuchado moço,
Mantido, às vezes, de sucinto almoço,
De ceia casual, jantar incerto;

Dos esbrugados peitos quase aberto,


Versos impinge por miúde e grosso;
E do que em frase vil chamam caroço,
Se o que, é vox clamantis in deserto;

Pede às moças ternura, e dão-lhe motes;


Que, tendo um coração como estalage,
Vão nele acomodando a mil pexotes.

Sabes, leitor, quem sofre tanto ultraje,


Cercado de um tropel de franchinotes?
É o autor do soneto: é o Bocage!

31.2
[4] Incultas produções da mocidade
Exponho a vossos olhos, ó leitores.
Vede-as com mágoa, vede-as com piedade,
251

Que elas buscam piedade, e não louvores.

Ponderai da Fortuna a variedade


Nos meus suspiros, lágrimas e amores;
Notai dos males seus a imensidade,
A curta duração dos seus favores.

E se entre versos mil de sentimento


Encontrardes alguns, cuja aparência
Indique festival contentamento,

Crede, ó mortais, que foram com violência


Escritos pela mão do Fingimento,
Cantados pela voz da Dependência.

31.3
[5] Chorosos versos meus desentoados,
Sem arte, sem beleza, e sem brandura,
Urdidos pela mão da Desventura,
Pela baça Tristeza envenenados:

Vede a luz, não busqueis, desesperados,


No mudo esquecimento a sepultura;
Se os ditosos vos lerem sem ternura,
Ler-vos-ão com ternura os desgraçados.

Não vos inspire, ó versos, cobardia


Da sátira mordaz o furor louco,
Da maldizente voz a tirania.

Desculpa tendes, se valeis tão pouco;


Que não pode cantar com melodia
Um peito, de gemer cansado e rouco.

31.4.
[7] Já sobre o coche de ébano estrelado
Deu meio giro a noite escura e feia;
Que profundo silêncio me rodeia
Neste deserto bosque, à luz vedado!

Jaz entre as folhas Zéfiro abafado,


O Tejo adormeceu na lisa areia;
Nem o mavioso rouxinol gorjeia,
Nem pia o mocho, às trevas costumado:

Só eu velo, só eu, pedindo à Sorte


Que o fio com que está minh’alma presa
À vil matéria lânguida, me corte.

Consola-me este horror, esta tristeza,


Porque a meus olhos se afigura a Morte
252

No silêncio total da Natureza.

31.5.
[17] Olha, Marília, as flautas dos pastores,
Que bem que soam, como estão cadentes!
Olha o Tejo a sorrir-se! Olha: não sentes
Os Zéfiros brincar por entre as flores?

Vê como ali, beijando-se, os Amores


Incitam nossos ósculos ardentes!
Ei-las de planta em planta as inocentes,
As vagas borboletas de mil cores!

Naquele arbusto o rouxinol suspira;


Ora nas folhas a abelhinha pára.
Ora nos ares, sussurrando, gira.

Que alegre campo! Que manhã tão clara!


Mas ah!, tudo o que vês, se eu não te vira,
Mais tristeza que a noite me causara.

31.6.
[21] Os garços olhos, em que Amor brincava,
Os rubros lábios, em que Amor se ria,
As longas tranças, de que Amor pendia,
As lindas faces, onde Amor brilhava;

As melindrosas mãos, que Amor beijava,


Os níveos braços, onde Amor dormia,
Foram dados, Armânia, à terra fria,
Pelo fatal poder que a tudo agrava.

Seguiu-te Amor ao tácito jazigo,


Entre as irmãs cobertas de amargura.
E eu que faço (ai de mim!) como os não sigo?

Que há no mundo que ver, se a formosura,


Se Amor, se as Graças, se o prazer contigo
Jazem no eterno horror da sepultura

31.7.
[22] Em veneno letífero nadando,
No roto peito o coração me arqueja;
E ante meus olhos hórrido negreja
De mortais aflições espesso bando:

Por ti, Marília, ardendo e delirando


Entre as garras aspérrimas da Inveja,
Amaldiçoo Amor, que ri, e adeja
Pelos ares, co’os Zéfiros brincando.
253

Recreia-se o traidor com meus clamores,


E meu cioso pranto... ó Jove, ó nume,
Que vibras os coriscos vingadores!

Abafa as ondas do tartáreo lume,


Que para os que provam teus furores
Tens inferno pior, tens o ciúme.

31.8.
[23] Ó retrato da morte! Ó Noite amiga,
Por cuja escuridão suspiro há tanto!
Calada testemunha de meu pranto,
De meus desgostos secretária antiga!

Pois manda Amor que a ti somente os diga,


Dá-lhes pio agasalho no teu manto;
Ouve-os, como costumas, ouve, enquanto
Dorme a cruel que a delirar me obriga.

E vós, ó cortesãos da escuridade,


Fantasmas vagos, mochos piadores,
Inimigos, como eu, da claridade!

Em bandos acudi aos meus clamores;


Quero a vossa medonha sociedade,
Quero fartar meu coração de horrores.

31.9.
[27] Importuna Razão, não me persigas;
Cesse a ríspida voz que em vão murmura,
Se a lei de Amor, se a força da ternura
Nem domas, nem contrastas, nem mitigas.

Se acusas os mortais, e os não abrigas,


Se, conhecendo o mal, não dás a cura,
Deixa-me apreciar minha loucura;
Importuna Razão, não me persigas.

É teu fim, teu projecto, encher de pejo


Esta alma, frágil vítima daquela
Que, injusta e vária, noutros laços vejo.

Queres que fuja de Marília bela,


Que a maldiga, a desdenhe; e o meu desejo
É carpir, delirar morrer por ela.

31.10.
[27] Ó trevas, que enlutais a Natureza,
Longos ciprestes desta selva anosa,
Mochos de voz sinistra, e lamentosa,
Que dissolveis dos fados a incerteza;
254

Manes, surgidos da morada acesa,


Onde de horror sem fim Plutão se goza,
Não aterreis esta alma dolorosa,
Que é mais triste que vós minha tristeza.

Perdi o galardão da fé mais pura,


Esperanças frustrei do amor mais terno,
A posse de celeste formosura.

Volvei pois, sombras vãs, ao fogo eterno;


E, lamentando a minha desventura,
Movereis à piedade o mesmo inferno.

31.6.
[28] Inda em meu frágil coração fumega
A cinza desse fogo em que ele ardia;
A memória da tua aleivosia
Meu sossego inda aqui desassossega.

A vil traição, que as almas nos despega,


Não tem cabal poder na simpatia;
Gasta o mar importuno a rocha fria,
Melhor que o desengano a paixão cega.

Bem como o flavo sol, que a Terra abraça,


Por mais que o vejo densamente oposto,
Atraído vapor fere, e repassa:

Tal, para misturar gosto e desgosto,


Na sombra de teus crimes brilha a graça,
Com que o pródigo Céu criou teu rosto.

31.7.
[30] Já no calado monumento escuro
Em cinzas se desfez teu corpo brando;
E pude eu ver, ó Nise, o doce, o puro
Lume dos olhos teus ir-se apagando!

Hórridas brenhas, solidões procuro,


Grutas sem luz frenético demando,
Onde maldigo o fado acerbo e duro,
Teu riso, teus afagos suspirando.

Darei da minha dor contínua prova,


Em sombras cevarei minha saudade,
Insaciável sempre, e sempre nova,

Té que torne a gozar da claridade


Da luz, que me inflamou, que se renova
No seio da brilhante eternidade.
255

31.8.
[36] GLOSANDO O MOTE
«Morte, Juízo, Inferno e Paraíso»

Em que estado, meu bem, por ti me vejo,


Em que estado infeliz, penoso e duro!
Delido o coração de um fogo impuro,
Meus pesados grilhões adoro e beijo.

Quando te logro mais, mais te desejo,


Quando te encontro mais, mais te procuro;
Quando mo juras mais, menos seguro
Julgo esse doce amor, que adorna o pejo.

Assim passo, assim vivo, assim meus fados


Me desarreigam d’alma a paz, e o riso,
Sendo só meu sustento os meus cuidados;

E, de todo apagada a luz do siso,


Esquecem-me (ai de mim!) por teus agrados
Morte, Juízo, Inferno e Paraíso.

31.9.
[45] Em sonhos na escaldada fantasia
Vi, que torvo dragão de olhos fogosos
Com afiados dentes sanguinosos
As tépidas entranhas me rompia.

Alva ninfa louçã, que parecia


A mãe dos Amorinhos melindrosos,
Raivosa contra mim, cos pés mimosos
Mais o drago faminto embravecia.

De mármore a meu pranto, a meu queixume,


Deste mal, deste horror sem dó, sem pena,
Via dos olhos meus sumir-se o lume.

Ah!, não foi ilusão tão triste cena:


O monstro devorante era o Ciúme,
A cruel que o pungia era Filena.

31.10. Sobre estas duras, cavernosas fragas,


[47] Que o marinho furor vai carcomendo,
Me estão negras paixões n’alma fervendo
Como fervem no pego as crespas vagas.

Razão feroz, o coração me indagas,


De meus erros a sombra esclarecendo,
E vás nele (ai de mim!) palpando e vendo
De agudas ânsias venenosas chagas.
256

Cego a meus males, surdo a teu reclamo,


Mil objectos de horror co’a ideia eu corro,
Solto gemidos, lágrimas derramo.

Razão, de que me serve o teu socorro?


Mandas-me não amar, eu ardo, eu amo;
Dizes-me que sossegue, eu peno, eu morro.

31.11.
[51] Há um medonho abismo, onde baqueia
A impulsos das paixões a Humanidade;
Impera ali terrível divindade,
Que de torvos ministros se rodeia.

Rubro facho a Discórdia ali meneia,


Que a mil cenas de horror dá claridade;
Com seus sócios, Traição, Mordacidade,
Range os dentes a Inveja escura e feia.

Vê-se a Morte cruel no punho alçando


O ferro de sanguento ervado gume,
E a toda a natureza ameaçando;

Vê-se arder, fumegar sulfúreo lume...


Que estrondo! Que pavor! Que abismo infando!...
Mortais, não é o Inferno, é o Ciúme!

31.12.
[68] GLOSANDO O MOTE
«A morte para os tristes é ventura»

Quem se vê maltratado e combatido


Pelas cruéis angústias da indigência,
Quem sofre de inimigos a violência,
Quem geme de tiranos oprimido;

Quem não pode, ultrajado e perseguido,


Achar nos Céus, ou nos mortais, demência,
Quem chora finalmente a dura ausência
De um bem que para sempre está perdido,

Folgará de viver, quando não passa


Nem um momento em paz, quando a amargura
O coração lhe arranca e despedaça?

Ah!, só deve agradar-lhe a sepultura,


Que a vida para os tristes é desgraça,
A morte para os tristes é ventura.

31.13.
[85]
257

Camões, grande Camões, quão semelhante


Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!
Igual causa nos fez, perdendo o Tejo,
Arrostar co’o sacrílego gigante;

Como tu, junto ao Ganges sussurrante,


Da penúria cruel no horror me vejo;
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
Também carpindo estou, saudoso amante.

Ludíbrio, como tu, da Sorte dura


Meu fim demando ao Céu, pela certeza
De que só terei paz na sepultura.

Modelo meu tu és, mas... oh, tristeza!...


Se te imito nos transes da Ventura,
Não te imito nos dons da Natureza.

31.14.
[89] Adamastor cruel! De teus furores
Quantas vezes me lembro horrorizado!
Ó monstro! Quantas vezes tens tragado
Do soberbo Oriente os domadores!

Parece-me que entregue a vis traidores


Estou vendo Sepúlveda afamado,
Co’a esposa e co’os filhinhos abraçado,
Qual Mavorte com Vénus e os Amores.

Parece-me que vejo o triste esposo,


Perdida a tenra prole e a bela dama,
Às garras dos leões correr furioso.

Bem te vingaste em nós do afoito Gama!


Pelos nossos desastres és famoso.
Maldito Adamastor! Maldita fama!

31.15.
[114] Cesarões, Viriatos, Apimanos,
Vós que, brandindo vingadora espada,
Tentastes sacudir da Pátria amada
O vil, o férreo jugo dos Romanos.

Surgi, vede-a no sangue de tiranos


Inda piores outra vez banhada,
E a nossa liberdade edificada
No estrago dos intrusos Castelhanos.

Aos senhores do mundo armipontentes


Arrancastes, em bélica porfia,
Parte do loiro que lhe honrava as frentes;
258

Porém com milagrosa valentia


Os vossos memoráveis descendentes
Fizeram mais livraram-se num dia!

31.16. Em sórdida masmorra aferrolhado,


[137] De cadeias aspérrimas cingido,
Por ferozes contrários perseguido,
Por línguas impostoras criminado.

Os membros quase nus, o aspecto honrado


Por vil boca, e vil mão, roto e cuspido,
Sem ver um só mortal compadecido
De seu funesto, rigoroso estado;

O penetrante, o bárbaro instrumento


De atroz, violenta, inevitável Morte,
Olhando já na mão do algoz cruento.:

Inda assim não maldiz a iníqua Sorte,


Inda assim tem prazer, sossego, alento,
O sábio verdadeiro, o justo, o forte.

31.17.
[148] Liberdade, onde estás? Quem te demora?
Quem faz que o teu influxo em nós não caia?
Porque (triste de mim!), porque não raia
Já na esfera de Lísia a tua aurora?

Da santa redenção é vinda a hora


A esta parte do mundo, que desmaia.
Oh!, venha... Oh!, venha, e trémulo descaia
Despotismo feroz, que nos devora!

Eia! Acode ao mortal, que frio e mudo,


Oculta o pátrio amor, torce a vontade,
E em fingir, por temor, empenha estudo.

Movam nossos grilhões tua piedade;


Nosso númen tu és, e glória, e tudo,
Mãe do génio e prazer, ó Liberdade!

31.18.
[159] Aqui, onde arquejando estou curvado
À lei, pesada lei, que me agrilhoa,
De lúgubres ideias se povoa
Meu triste pensamento horrorizado:

Aqui não brama o Noto anuviado,


O Zéfiro macio aqui não voa,
259

Nem zune insecto alígero, nem soa


Ave de canto alegre, ou agoirado;

Expeliu-me de si a humanidade,
Tu, astro benfeitor da redondeza,
Não despendes comigo a claridade.

Só me cercam fantasmas da tristeza:


Que silêncio! Que horror! Que escuridade!
Parece muda, ou morta, a Natureza.

31.19.
[166] Ó ninfa, que das graças melindrosas
Tens na face a lindeza, o riso, as cores,
Na face mimos toda e toda flores,
Que é metade jasmins, metade é rosas!

Ninfa suave, para quem saudosas


Dou mágoas mil aos Zéfiros e Amores!
Tu gostas de meus ais, e dos louvores,
De extremado cantor, meu bem, tu gozas.

Em sons (pincéis febeus), em sons copia


Teu rosto um céu; do original o encanto
Eis n’alma em túmulo a imagem cria.

Eu vate, eu amador, não logro tanto;


Amor fogo me dá, Febo harmonia,
E és mais no coração do que és no canto.

31.20.
[168] Meu ser evaporei na lida insana
Do tropel de paixões, que me arrastava;
Ah!, cego eu cria, ah!, mísero eu sonhava
Em mim quase imortal a essência humana.

De que inúmeros sóis a mente ufana


Existência falaz me não doirava!
Mas eis sucumbe a Natureza escrava
Ao mal que a vida em sua origem dana.

Prazeres, sócios meus e meus tiranos!


Esta alma, que sedenta em si não coube,
No abismo vos sumiu dos desenganos.

Deus, ó Deus!... Quando a morte à luz me roube,


Ganhe um momento o que perderam anos.
Saiba morrer o que viver não soube.

31.21.
[202] Já Bocage não sou!... À cova escura
260

Meu estro vai parar desfeito em vento...


Eu aos Céus ultrajei! O meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura;

Conheço agora já quão vã figura,


Em prosa e verso fez meu louco intento:
Musa!... Tivera algum merecimento
Se um raio da razão seguisse pura.

Eu me arrependo; a língua quase fria


Brade em alto pregão à mocidade,
Que atrás do som fantástico corria:

“Outro Aretino fui... a santidade


Manchei!... Oh!, se me creste, gente impia,
Rasga meus versos, crê na Eternidade!”

Texto PONTES, Maria do Rosário. Manuel Maria Barbosa du Bocage: da poesia como
32 vida e do dilaceramento como destino. In: CARVALHO, João Soares de et alii.
História da Literatura Portuguesa. Lisboa: Alfa, 2002. v. 3, p. 495-503.

1. [495] [A] vertente alegorizante e até mesmo dramatizante da poesia bocagiana — que
tem muito a ver com a tendência alegórica da cultura de Setecentos e com o pendor visualista
da estética sadina — recupera essa necessidade de «teatralizar» a existência, essa vontade de
procurar em sucessivas máscaras (as tais «figurações plásticas animadas» de que fala Jacinto
do Prado Coelho) o invisível que o poeta pretende, a todo o custo, reproduzir. Os acentos
eminentemente lúgubres e sombrios representam então um universo subjectivo, presa fácil de
tormentos obsessivos e de forças demoníacas. Neste contexto, falta ainda à poesia de Bocage
uma verdadeira dimensão metafísica: aproximar-se-á então muito mais de Milton e de Dante
do que de Thomas Young. A «grandiloquência balofa do egotismo», que as palavras
pertinentes de Álvaro Manuel Machado referem, poder-se-á ler enquanto vontade barroca de
procurar substituir pelo excesso um vazio irremediável. Na «visão do obscuro», ela
constituirá, no entanto, uma etapa fundamental.
2. E, sem dúvida alguma, nos Sonetos que Elmano Sadino melhor consegue ultrapassar
a representação abstracta e alegórica da vida. Sem esquecer a leveza, a naturalidade e até
mesmo o substrato popular de algumas endechas e cançonetas (algumas odes anacreônticas
testemunharão ainda ampla graciosidade e fluidez melodiosa), naquelas composições o poeta
atingirá uma expressão tão autêntica, tão vivida e tão concreta da sua individualidade que
dificilmente se poderá encontrar algo que se lhe compare ao longo da escrita poética pré-
romântica. Talvez seja por isso que se apresenta relevante o esboço de índole comparativista
que Jacinto do Prado Coelho tece entre a poesia de Bocage e a de José Anastácio da Cunha.
Se é verdade que quase duas décadas separam os dois autores e que as tensões dramáticas
consubstanciadas na obra de Elmano quase se esbatem na do poeta de O Presságio (onde a
pureza de uma única paixão correspondida apenas se empenumbra com a ausência da amada,
a pressão das imposturas sociais [496] ou o fantasma da doença), não deve ser menosprezado
261

o facto de que o leitmotif amoroso encontra nestes românticos ante litteram uma amplitude
diferente da assumida pelos outros autores de finais do século XVIII.
3. Um lirismo mais impetuoso e emotivo, a tradução mais veemente e desassombrada
dos sentimentos, a denúncia de uma volúpia carnal em ânsias de misticismo, a concepção de
uma plenitude amorosa isenta dos grilhões impostos pelas leis sociais, uma linguagem que,
pela cadência rítmica e pela fluidez melódica, se torna mais rica de cambiantes expressivos,
eis alguns dos traços inovadores que permitirão criar um paralelismo entre Anastácio da
Cunha e Bocage. Porém, a distância entre os dois poetas aumenta a partir do momento em que
se multiplicam, em Elmano Sadino, as profundas lutas interiores: a criação poética
transforma-se então nesse diário de uma alma à procura da sua própria identidade, nesse
combate ingente contra forças paradoxais que tão depressa levam o ser ao encontro de uma
pureza inicial como o obrigam a reconhecer-se nos «abismos da luxúria» e nas «raivas do
instinto».
4. O ímpeto mais autêntico da lira bocagiana encontra-se então nos sonetos em que, sob
amplos acentos egocêntricos, o poeta denuncia a predilecção por um locus horrendus que,
figuração nocturna, tenebrosa e fantástica do interior anímico, simboliza um fatalismo
existencial patético, o absurdo de uma negatividade que isotopias temáticas tais como a
solidão, a morte, o ciúme, o desencanto, a inquietação religiosa e o sentimento de exílio
desejam reproduzir.
5. O delírio amoroso e erótico constitui a pedra-de-toque fundamental da poesia de
Elmano Sadino. Gertrúria, talvez a sua paixão mais autêntica e mais duradoura, salienta-se
entre uma pluralidade de femininos que servem de pretexto à dualidade do amor: tanto levam
o poeta a exaltar um amor puro, depurado de todas as imperfeições carnais, um amor
espiritual e divino, como o obrigam a antecipar a experiência baudelairiana de um sentimento
venal, pecaminoso e logo degradante. É que, não raras vezes, a uma concepção neoplatónica
do amor se oporá um desregramento sensorial (os traços eróticos e sensuais multiplicam-se)
cuja violência, frenesim e indisciplina, um estilo oratório — exclamativo, hiperbolizante e
apostrófico — não deixa de acentuar. Num soneto dedicado a Gertrúria o poeta exclamará (in
Bocage. Poesias, selecção do Prof. Guerreiro Murta, p. 38):

[...] Pelo céu, por teus olhos te assevero


Que ferve esta alma em cândidos amores,
Longe o prazer de ilícitos favores!
Quero o teu coração, mais nada quero [...] [Eu deliro, Gertrúria, eu desespero]

6. [497] Mas já noutro, ao auto-retrato se misturará, em irreverência confessional, a


apologia da inconstância amorosa, da impulsividade e da indisciplina sentimental (ibidem, p.
3):

[...] Incapaz de assistir num só terreno,


Mais propenso ao furor que à ternura;
Bebendo em níveas mãos por taça escura
De zelos infernais letal veneno:
Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades [...] [Magro, de olhos azuis, carão moreno,]

7. O universo erótico e sensual de Elmano Sadino oscila assim entre imagens celestiais
de um feminino — metamorfoseada em «reflexo talvez da luz divina», a figura de Ulina
perpetua a de Gertrúria, cujo «níveo colo» o poeta em sonhos beija e parece antecipar a de
Marília, apostrofada em sonetos onde se recria o topos setecentista da oposição
262

«cidade/campo» (de filiação horaciana e camoniana) e onde, em tom de apoteose bucólica e


primaveril, se desenham as metáforas de uma natureza exuberante e de uma plenitude
amorosa (ibidem, p. 43):

Olha, Marília, as flautas dos pastores


Que bem que soam, como estão cadentes!
Olha o Tejo, a sorrir-se! Olha, não sentes
Os Zéfiros brincar por entre as flores? [...] [Olha, Marília, as flautas]

8. Mas um dos mais belos sonetos de Bocage é, sem dúvida alguma, aquele em que se
desenha o paralelismo entre o despertar sensual da natureza (no alvor do Estio) e o excesso
amoroso: num bucolismo irrepreensível, surge, em beleza, a perífrase que longamente
descreve o paroxismo do amor (ibidem, p. 11):

[...] Mais doce é ver-te de meus ais vencida,


Dar-te em teus brandos olhos desmaiados
Morte, morte de amor melhor que a vida [Se é doce no recente, ameno Estio]

9. e imagens demoníacas e cruéis, como naquele poema em que o retrato da «ingrata Flérida
gentil» é dado em alegoria de pedras e metais preciosos, relembrando os artifícios cultistas e
conceptistas da estética barroca.
10. [498] Por vezes o rigor de Marília e a sua infidelidade sobrepõem-se ao sentimento
de exílio, à ausência de liberdade e de paz espiritual: a traição do feminino será um poderoso
motivo que, narcisicamente, reitera a ideia de que «[...] a frágil criatura / Raramente é feliz no
mundo errado [...]»405 (ibidem, p. 53); outras vezes, a evocação da luta feroz entre a razão e o
sentimento quer enfatizar a impotência da primeira face ao segundo. Cego e surdo, o ser
incorrerá nos tormentos amorosos mas tudo preferirá à existência tranquila e mediana (ibidem,
p. 17):

[...] Cego a meus males, surdo a teu reclamo,


Mil objectos de horror coa ideia eu corro,
Solto gemidos, lágrimas derramo.
Razão, de que me serve o teu socorro?
Mandas-me não amar, eu ardo, eu amo;
Dizes-me que sossegue, eu peno, eu morro. [Sobre estas duras, cavernosas fragas,]

11. Nalguns poemas, o tempo da tirania e da escravidão amorosas oscila entre a


antevisão de um futuro tenebroso e fatal — daí o apelo a Marília para que anule os terríveis
pressentimentos — e a recuperação de um passado que, embora permaneça em termos de
negatividade, não é suficientemente sombrio para que a lembrança da amada se veja anulada
(ibidem, p. 26):

Inda em meu frágil coração fumega


A cinza desse amor em que ele ardia;
A memória da tua aleivosia
Meu sossego inda aqui desassossega [...] [Inda em meu frágil coração fumega]

12. Noutros, a «Desesperação» e o «Sofrimento» tiranizam a alma do poeta,


transformada então em locus horrendus — os elementos tétricos e sombrios da natureza são
evocados de forma a salientar os traços hiperbólicos da dor. Deste modo se inicia um dos mais
405
p. 162: “Não sinto me arrojasse o duro fado” (Org.)
263

conhecidos sonetos bocagianos (ibidem, p. 27):

Oh trevas que enlutais a natureza


Longos ciprestes desta selva anosa,
Mochos de voz sinistra, e lamentosa,
Que dissolveis dos fados a incerteza;

[499] Manes, surgidos da morada acesa,


Onde de horror sem fim Plutão se goza,
Não aterreis esta alma dolorosa,
Que é mais triste que vós minha tristeza [...] [Ó trevas, que enlutais a Natureza,]

13. A revolta contra o vazio afectivo assume assim ímpetos de metamorfoses bem
sofridas: a própria Morte e a Noite, seu símbolo, acompanham outras figurações abismais de
uma instabilidade que conduz o «eu» poético à loucura e à autodestruição. Por exemplo, o
Ciúme assemelha-se a «[...] terrível divindade / Que de torvos ministros se rodeia» (ibidem, p.
30) [Há um medonho abismo, onde baqueia]: a Discórdia, a Traição, a Inveja, a Mordacidade
e a própria Morte o acompanham. Ou então, na quietude e no silêncio de um bosque deserto e
tenebroso, o poeta, suspirando pela morte, compraz-se nos tons lúgubres petrificantes da
natureza (ibidem, p. 31):

[...] Só eu velo, só eu, pedindo à sorte


Que o fio, com que está minha alma presa,
À vil matéria lânguida, me corte.

Consola-me este horror, esta tristeza:


Porque a meus olhos se afigura a morte
No silêncio total da natureza. [Já sobre o coche de ébano estrelado]

14. Por vezes um sonho é pretexto para antever a cumplicidade terrível entre o Amor e a
Morte: Eros sobrepor-se-á a Thanatos numa longa agonia e tirania amorosas. Outras vezes,
talvez sob a influência da poética dos túmulos e das ruínas, Emano evocará a visão elegíaca
de um sepulcro, ao querer antecipar a morte provocada pela indiferença de Armia. E se um
soneto fala da morte de uma formosa dama (servindo de eco ao célebre epicédio A Olinta,
onde a morte da amada é sugerida num misto de revolta e de apaziguamento, pois depura um
amor terreno e imperfeito e concede ao poeta a serenidade que só a crença no eterno pode
fazer antever, pormenorizando uma beleza outrora excelsa e entretanto petrificada pelo
terrível epílogo), noutras composições a morte é ainda o fim almejado para uma existência
atribulada: no Oriente, em terras de exílio, o «eu» poético, «Vítima triste da fortuna errante»,
dirige sucessivas apóstrofes à «amiga Morte» para que o livre «da mão pesada e forte / Que de
rastos [me] leva ao precipício!» (ibidem, p. 96) [Já por bárbaros climas entranhado,].
15. Da aliança entre o Ciúme, o Amor e a Morte surge então o arquétipo de uma
existência nefasta, traduzido numa multiplicidade de «figurações [500] abismais», onde —
como refere João Mendes — irão convergir termos de antropologia, isotopias monstruosas e
recorrências de um «acentuado tremendismo». O locus horrendus não se limitará a ser mero
topos literário: ele reproduz o profundo sentimento de desterro que um verso como «Expeliu-
me de si a Humanidade» congrega plenamente.
16. Os constantes apelos à razão e à liberdade revelar-se-ão impotentes na anulação da
experiência do vazio e da prisão: se a primeira permite que o poeta escape às falsidades de
Márcia, nem por isso deixa de ser «importuna», «ríspida» e «mesquinha» quando se trata de
Marília (ibidem, p. 52):
264

[...] Queres que fuja de Marília bela,


Que a maldiga, a desdenhe; e o meu desejo
É carpir, delirar, morrer por ela. [Importuna Razão, não me persigas;]

17. Quanto à segunda, apostrofada nas ânsias de seu liberalismo, herdeiro dos ventos
revolucionários que de França sopravam (ibidem, p. 116):

[...] Movam nossos grilhões tua piedade;


Nosso númen tu és, e glória e tudo,
Mãe do génio e prazer, oh Liberdade! [Liberdade, onde estás? Quem te demora?]

18. ou exigida numa invectiva contra o feroz despotismo que levara o poeta à prisão (ibidem,
p. 117):

Liberdade querida, e suspirada,


Que o despotismo acérrimo condena;
Liberdade, a meus olhos mais serena
Que o sereno clarão da madrugada. [Liberdade querida, e suspirada,]

19. ecoará ainda nos versos de um poema narrativo, Os Trabalhos da Vida Humana, que
descreve o «abismo do cárcere» e a experiência dos primeiros sofrimentos nesse «abismo da
existência» e no qual Óscar Lopes verá um impressionante documento da «[...] mais autêntica
ou, pelo menos, a mais comunicativa experiência bocagiana do báratro profundo [...]»
(«Bocage. Fronteiras de um Individualismo» in Ler e Depois. Crítica e Interpretação
Literária/I, Porto, Editorial Inova, col. Civilização Portuguesa, 1970, p. 156). Aliás, como
sugere o mesmo crítico, é no âmbito de um movimento de revolta e repúdio face ao poder
absoluto que se inscreve um dos aspectos revolucionários da libertinagem bocagiana:
precisamente aquele que se [501] manifesta contra a ideologia político-religiosa vigente,
denunciando e combatendo o fanatismo dos déspotas, num inconformismo que louva a
tolerância e o livre-pensamento, que saúda o autor de Émile [Rousseau] e os princípios da
Revolução Francesa, que vibra com as lutas napoleónicas e com os manifestos
enciclopedistas.
20. Como conciliar, pois, esta defesa dos ideais libertários com os inúmeros poemas
laudatórios com que procura atrair os favores de personalidades influentes e com os pedidos
que dirige aos que poderão interceder a favor da sua libertação? Como compreender que o
mesmo autor d’A Virtude Laureada — esboço de alegoria dramática que, escrito para ser
declamado em São Carlos, tecia os maiores elogios a Pina Manique e a D. Carlota Joaquina
— tenha escrito tantos sonetos contra o «danado Fanatismo» e seja o poeta que em Trabalhos
da Vida Humana ou num outro poema intitulado Na Prisão se insurge tão veemente e
peremptório contra a ausência de liberdade? Óscar Lopes falará de um «cúmulo da
autodemissão» projectado a partir daquilo a que chama ainda o «drama inerente ao
nacionalismo burguês»: é a distância que vai do «sentimento de libertação» referido por
Carlos Felipe Moisés à verdadeira liberdade de forma e de sentido. É ainda a distância que
parece separar os sonetos contritos dos últimos anos da vida (arrependimento real ou
fictício?), das imprecações satíricas que se levantam, constantes, contra aspectos de um
absurdo existencial que urgia delatar (ibidem, p. 199):

Já Bocage não sou!... À cova escura


Meu estro vai parar desfeito em vento...
Eu aos céus ultrajei! O meu tormento
265

Leve me torne sempre a terra dura

[...] Outro Aretino fui... A santidade


Manchei!... Se me creste, gente ímpia,
Rasga meus versos, crê na eternidade! [Já Bocage não sou!... À cova escura]

21. A irreverente vivacidade do estro bocagiano manifestar-se-á então a diferentes


níveis e tanto se espraia no interior de uma problemática religiosa onde convergem a dúvida
teológica e sentimentos anticlericais como se imiscui na veia cáustica que, ao longo dos
epigramas, verbera e mete a ridículo os médicos incompetentes, os «fradalhões», os velhos
agiotas, os nobres petulantes, os actores e outros. De improvisos caricaturais viverá, em
grande parte, a musa jocosa de Elmano Sadino. Porém, se um extenso poema como A Pena de
Talião [BOCAGE, 1968, p. 908-917] obedece apenas à vontade de corresponder aos
vitupérios de um «zoilo» que o insultara; se os sonetos contra a Nova [502] Arcádia e os
confrades — Aos Sócios da Nova Arcádia, Ao Padre Domingos Caldas Barbosa, A Belchior
Curvo Semedo — se limitam a reproduzir, em traços por vezes obscenos, as ridículas e
comezinhas questiúnculas literárias (recorde-se o célebre poema que descreve uma sessão na
Nova Arcádia: «Preside o neto da rainha Ginga / À corja vil, aduladora, insana: / Traz sujo
moço amostras de chanfana, / Em copos desiguais se esgota a pinga: / / Vem pão, manteiga e
chá, tudo à catinga; / Masca farinha a turba americana; / E o orangotango a corda à banza
abana, / Com gestos e visagens de mandinga [...]», ibidem, p. 102)406; se certas composições
recuperam apenas a aversão que o poeta sente pelos nativos de Goa e a hostilidade, tornada
por vezes extrema, contra os habitantes da índia («Lusos heróis, cadáveres cediços / Erguei-
vos dentre o pó, sombras honradas / Surgi, vinde exercer as mãos mirradas / Nestes vis, nestes
cães, nestes mestiços [...]», ibidem, p. 101)407, outros poemas oporão um tom satírico, mais
amplamente filosófico e social, às meras invectivas de carácter pessoal. Contra a falsa
religiosidade e a favor do livre arbítrio clamarão composições tão extensas como a célebre
Pavorosa Ilusão da Eternidade [epístola] e A Urânia [BOCAGE, 1968, p. 824-828, epicédio]:
em uníssono proclamam a crença num Deus de bondade e de misericórdia, um eclectismo
religioso, a primazia das leis naturais sobre as imposições da sociedade, a liberdade do ser
humano nas suas opções e atitudes.
22. Mas, na sua ânsia de irreverência, Elmano Sadino toca — sobretudo nos panfletos
libertinos — as raias de uma linguagem obscena e escatológica: o brejeiro e o grotesco dão-se
as mãos na denúncia não só de um vazio ontológico, mas ainda numa evidente exigência de
liberdade expressiva, bem oposta aos rígidos ditames da estética arcádica. E nem o próprio
poeta escapará aos traços de uma vulgaridade que, apesar de tudo, aproxima a poesia do real e
do vivido. Assim se inicia um segundo retrato do autor (in Bocage. Antologia Poética,
selecção e introdução por M. Antónia Carmona Mourão e M. Fernanda Pereira Nunes, Lisboa,
Ed. Ulisseia, «Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses», s. d., p. 126):

De céruleo gabão, não bem coberto,


Passeia em Santarém chuchado moço,
Mantido às vezes de sucinto almoço,
De ceia casual, jantar incerto;

Dos esburgados peitos quase aberto,


Versos impinge por miúdo e grosso;
E do que em frase vil chamam caroço,
Se o quer, é vox clamantis in deserto: [...] [De cerúleo gabão não bem coberto,]

406
p. 102: Preside o neto da rainha Ginga.
407
p. 87: Lusos heróis, cadáveres cediços.
266

23. [502] No deserto nunca Bocage clamará. Uma arte poética tecida de sentimentos
patéticos, de angústias exacerbadas, de conflitos paradoxais e íntimos, de sonhos abortados,
de ânsias tão incontidas quão frustradas, e uma linguagem feita quer de cadências suaves e
harmoniosas quer de ritmos entrecortados e exclamativos, oscilando em uníssono com os
tumultos interiores e as irreverências anímicas, transformá-lo-ão num dos maiores (porventura
o maior) espíritos do Pré-Romantismo português. Nas suas indecisões de alma e nas suas
ambiguidades de escrita pulsam já laivos da diferença romântica408.

Texto CIDADE, Hernâni. Bocage. In: Lições de cultura e literatura portuguesa. 5. ed.
33 Coimbra: Coimbra, 1968. v. 1, p. 393-403. [456 p.]409

Manuel Maria Barbosa du Bocage (Elmano)


A indisciplina moral; o amor frenético; a obsessão da morte

1. [393] Quando Filinto, no seu desterro de Paris, recebeu as «Rimas» de Bocage,


traduziu a funda impressão que elas lhe haviam causado por estes versos:

Lendo os teus versos, numeroso [harmonioso] Elmano,


E o não vulgar conceito, e a feliz frase,
Disse entre mim: — Depõe, Filinto, a lira,
Já velha, já cansada,
Que este mancebo vem tomar-te os louros...

2. O poeta não precisava destes encómios para se fortalecer na orgulhosa


consciência do seu valor, porque, longe de em qualquer momento lhe faltar, antes por
vezes rompia com vivacidade bem agressiva. Mas pôde com eles gritar triunfalmente
aos adversários:

Zoilos, estremecei, rugi, mordei-vos!


Filinto, o grão cantor, prezou meus versos!
Sobre a margem feliz do rio ovante,
De onde, arrancando omnipotência aos Fados,
Universal terror vibrando em raios,
Impôs tropel de heróis silêncio ao globo,
O imortal corifeu dos cisnes lusos
Na voz da lira eterna alçou meu nome. (Odes, in fine). [Obras, 581]

3. Entre os dois poetas havia sensíveis diferenças de talento e técnica, origem das
escolas elmanista e jilintista em que se agruparam os versejadores que os seguiam. Sob
tais diferenças, porém, porque meramente formais, são bem vincados os traços que os
unem — e neste culto recíproco se [394] patenteiam. Bocage, como Francisco Manuel,
408
BOCAGE, Manuel Maria Barbosa du. Sonetos. In: Opera Omnia. In: Lisboa: Bertrand, 1969. v. 1, 245 p.
[376 sonetos]: 1. COMO O POETA SE RETRATA E JULGA A SUA OBRA (4 sonetos); 2. VIDA
SENTIMENTAL (132 sonetos); 2.1. O amor erótico (131); 2.2. O amor familiar (1); 3. A AVENTURA DO
ORIENTE (36 sonetos); 4. ELMANO NO «MONTE MÉNALO»: CONVÍVIO E LUTA (43 sonetos); 5. O
POETA PERANTE O MUNDO (70 sonetos); 5.1. Acontecimentos e indivíduos (45 sonetos); 5.2. Ideias morais
e religiosas (22 sonetos); 5.3. Ideias políticas (3 sonetos); 6. NO CÁRCERE (32 sonetos); 7. NA DOENÇA (9
sonetos); 8. COLEÇÃO DOS NOVOS IMPROVISOS DE BOCAGE NA SUA MOLÉSTIA (34 sonetos); 9.
IMPROVISOS DE BOCAGE NA SUA MUI PERIGOSA ENFERMIDADE (16 sonetos). (Org.)
409
BOCAGE, Manuel Maria Barbosa du. Obras. Porto: Lello & Irmão, 1968. 2050 p.
267

vive o torvo momento europeu e português da crise social que acompanhou a


transformação revolucionária do mundo. Na lira de um como de outro, há ecos da
grande tormenta — assim como nelas ressoam os inauditos acentos por que lá fora se
exprime a nova emotividade poética. E tal como a vida de Filinto, a de Bocage também
sofreu, como vamos ver, do rude embate entre as disciplinas tradicionais e as aspirações
revolucionárias.
4. Foi, na verdade, bem agitada a vida de Bocage. Nasceu em Setúbal, em 1765. A
mãe, francesa, deu-lhe o apelido que o honrava com o parentesco da poetisa M.me du
Bocage. Do pai, o advogado José Luís Soares Barbosa, poeta nas horas vagas, leitor de
Young, teria recebido, como ele diz... a sã doutrina... caudal cristão de métricos fulgores...
Órfão de mãe aos 10 anos, faltou-lhe a força suave que poderia corrigir-lhe a
irrequietude do temperamento. Aos 14 anos, deixa as aulas de latim e assenta praça no
regimento de Infantaria 7, aquartelado em Setúbal; dois anos volvidos, transita para
Lisboa, onde se matricula, não na Academia de Marinha, como se tem escrito, mas no
Curso de Guardas-Marinhas, que funcionava no Arsenal da Marinha; porventura para
seguir a tradição do avô materno, que da marinha francesa se havia passado para a
nossa, onde foi feito vice-almirante.
5. A severidade dos estudos da Sala do Risco, do Arsenal, desde logo preferiu a
frequência de Agulheiro dos Sábios, no Rossio. E esses primeiros cinco anos de Lisboa
em grande parte decorreram na boémia: tertúlias de café, arruaças, doestando frades,
nos outeiros, enfeitiçando freiras. Excitação quase permanente, no ambiente dos aplausos
desnorteadores — e também dos despeitos mordentes — que lhe advinham, uns e
outros, dos seus excepcionais talentos de improvisador, [395] tanto como das explosões
do seu impulsivismo e do seu orgulho.
6. Em 1786 parte para a Índia, com escala pelo Rio de Janeiro, onde teria ficado,
se o Vice-Rei Luís de Vasconcelos e Sousa tivesse acedido ao seu apelo:

Viver debaixo do teu jugo brando [...]


Oh que risonha, que benigna estrela!
Surdo o Fado a meus ais, a minhas mágoas,
Deste imenso [ameno] país me quer distante. Canção II. [Obras, 613]

7. Todavia, este percorrer dos velhos caminhos da glória do seu povo dilata-lhe o
peito. Acompanham-no duas presenças espirituais: Camões, a cada passo evocado nos
versos d’Os Lusíadas, que inspiram os próprios ou por eles são decalcados, e Gertrúria,
a quem escreve na Epístola I:

Vê que, entregue ao furor de horríveis Notos,


Vim, só por me fazer de ti mais digno,
A climas do meu clima tão remotos... [Obras, 794, “Cá do pé das
gangéticas...”]

8. Por uma portaria do Príncipe Regente, fora promovido a guarda-marinha para


os mares do Oriente, apesar de ter desertado do curso que para tal posto o preparava. Os
poemas que escreve na viagem dão expressão aos sentimentos que lhe inspiram a
resolução de se dignificar pela carreira das armas. Chega, porém, a Goa, frequenta a
Aula Real de Marinha, bate-se com valor que lhe merece elogios e a promoção a tenente
de Infantaria, mas não tarda que os espectáculos da decadência militar e moral lhe
entumeçam a veia cáustica. Assim sucedera a Camões; mas enquanto este mantivera o
equilíbrio que explica Os Lusíadas, Bocage volta logo à anarquia sentimental da
boémia. Colocado em Damão, logo [396] deserta para a China, onde, depois de viagem
268

na fome e na miséria, estacionou em Cantão e chegou a Macau. Dos próprios versos que
ali escreve, ficam evidentes a simpatia com que é recebido e a generosidade que lhe
facilita o regresso a Lisboa. Deste seu poder de sedução pessoal dá testemunho a página
que Lord Beckford escreveu sobre um encontro com o poeta, que mais do que nenhum
outro português impressionou o espírito do britânico frio e irónico.
9. Uma vez na capital, ganharam-lhe os talentos de poeta uma cadeira na Nova
Arcádia, mas, não tardou o inconformismo, do boémio e também a altivez do Sultão do
Parnaso, como foi chamado, a malquistá-lo com os confrades, entre os quais mete a
ridículo a Caldas Barbosa, alma da organização.
10. A esta poesia satírica, junta ele a que, contagiado da febre revolucionária,
alterna com versos religiosos; facécias da mais desbocada escatologia, intercalando-se
entre composições do mais comovido e puro lirismo. Preso, em 1797, como bota-fogo —
fogo de ideias subversivas do trono e do altar — conseguem-lhe os amigos converter o
crime político em manifestação heterodoxa, pelo que transita da prisão do Estado para a
Inquisição. Esta manda-o para ser doutrinado, para o convento das Necessidades, onde
lhe foi benéfica a exemplar actividade dos Oratorianos, tendo ali reavivado o francês, o
italiano e o latim e ei-lo, uma vez livre, ganhando honradamente, como tradutor, o pão
próprio e da irmã. Morre com pouco mais de 39 anos, depois de uma doença que lhe foi
longa expiação. Na quase permanente e aterrada perspectiva da morte, minado por um
aneurisma, toda a antiga combatividade abrandara em cordura, que o reconcilia com os
rivais e os inimigos, entre eles o próprio José Agostinho de Macedo, contra quem
escrevera a célebre sátira — Pena de Talião [Obras, p. 908-917] — ; e sobretudo o
reconcilia com Deus, nos dois sonetos — Meu Ser Evaporei na Lide insana... e Já Bocage
não Sou... [Obras, p. 439]
11. [397] A poesia de Bocage, em boa parte410, em seus remontados pairos de águia
ou assaltos de felino, é a expressão rítmica de todo este tumulto, íntimo e exterior, ao
mesmo tempo que são dum excepcional artista, com delicadezas de imaginação e
sensibilidade que Filinto não conhecia.
12. Foi a vida do poeta permanente conflito. Conflitos interiores entre os germes,
em fermentação, do seu filosofismo superficial e as raízes, bem fundas, da sua crença
católica; entre o seu nobre ideal moral e os instintos indisciplinados, que para tão longe
dele lhe desviaram a vida, de baixa boémia, tantas vezes; e conflitos de relação entre a
sua orgulhosa sobranceria e a «sociedade» onde tinha a situação... que da boémia lhe
derivava.
13. A todos estes conflitos, poderíamos acrescentar aquele que seria lícito chamar-
se o conflito estético, entre a fria rigidez dos moldes arcádicos e a fogosa impetuosidade
do seu temperamento romântico, se não houvéssemos de concluir da sua obra a mestria
rara com que nele Apolo vencia a Diónisos, com que lhe era possível meter e clarificar, na
geometria elos moldes da convenção, a torrente que em fervente cachão lhe brotava do
peito.
14. Bocage canta a Virgem Maria, numa poesia feita para ser lida na Nova Arcádia;
D. João VI merece-lhe uma ode encomiástica e a morte da Rainha Maria Antonieta
comove-o de compaixão e revolta, que exprime com formosa eloquência. Mas invectiva o
sanhudo, inexorável Despotismo, que sepulta a [398] razão no abismo [Obras, p. 333];
invoca a Liberdade, mãe do génio e prazeres [Obras, p. 334], ansiando por que a sua aurora
raie na esfera da Lísia, acudindo

... ao mortal que, frio e mudo,


Oculta o pátrio amor, torce a vontade,
410
Excluo, naturalmente, a de carácter menos pessoal, entre a qual as suas traduções, sem esquecer,
todavia, o que mesmo nestas marca a sua dedada. Põe-na em evidência o ensaio — Les Fables de
Bocage — do Prof. Damien Saunal, na «Miscelânea», já citada, que lhe foi consagrada.
269

E em fingir, por temor, empenha tudo.

Ele é o inimigo de hipócritas e frades, o exaltador de Napoleão, e chega a negar a


eternidade das penas na epístola célebre — Pavorosa ilusão da Eternidade — e a exprimir
de Deus um conceito que não podia ter o aplauso dos zelosos guardiões da Fé: O seu
Deus não era o Deus que horroriza a Natureza. / O Deus do fanatismo ou da impostura. Era
antes o Deus que consola a Humanidade, o Deus da Razão, [Obras, p. 384] criado pela
filosofia anticatólica do século XVIII.
15. Deste duplo pecado de liberalismo político e racionalismo religioso lhe resulta
a prisão e o retiro espiritual entre os Néris, seguido dos anos disciplinados no trabalho e
dedicação familiar. E ei-lo sustentando até a morte, na vida como na arte, um nível de
altas preocupações — posto que com várias intermitências. A verdade é que ninguém
com mais nobre elevação canta o amor — ele, que se confessa adorador de mil deidades
[Obras, 497]; à morte de sua irmã D. Maria Eugénia escreve um dos seus mais belos e
comovidos sonetos; pela que lhe resta cumpre gostosamente os deveres de irmão, de que
Tolentino se queria isentar (pág. 307); são cheios de ternura os versos que consagra ao
pai... E a obsessão da morte, que nenhum outro poeta havia tão vivamente sentido, que
nos traduz, senão o complexo em que se combinam, com anelos exasperados de
felicidades, os tormentos do seu desequilíbrio, as inquietações da sua vida interior, os
remorsos dos seus desatinos, os angustiantes receios perante as consequências deles, na
eternidade?
16. [399] À domesticidade, que para ninguém, no tempo, era aviltante, foi sempre
avesso o temperamento do poeta, que o amigo e contemporâneo Bingre qualificou de
verdadeiramente liberal, figadal inimigo da escravidão. Logo que as circunstâncias o
chamam aos deveres de piedade fraternal, pela saída do país de D. Leonor de Almeida,
em cuja casa vivia sua irmã. Bocage assume-os honradamente e vive do seu trabalho, até
o fim da vida. Isto fará adivinhar o doloroso constrangimento com que ele teria
composto versos: “Escritos pela mão do fingimento, / Cantados pela voz da
dependência;” [Obras, p. 129] e ainda a profunda verdade com que, afirmando com a
altivez de quem, por despeito, era chamado o Sultão do Parnaso: — Ígneas canções brotei
co’um Deus na mente! [“Agora que a seu lôbrego...”] — deverá ter escrito sobre os seus
versos, esta amargurada confissão: “Presa a tantos martírios, a Indigência / Os apura,
os irrita, os desespera.” [Obras, p. 861]
17. Era romântico, de facto, o seu temperamento.
18. Este desequilíbrio de que temos falado será suficiente para o demonstrar. Mais
impressionante revelação dele é, porém, o desbordamento em que se excede a sua
paixão, o frenesi que arrepia os seus amores e ciúmes, o gosto do macabro e a obsessão
da morte, a que já nos referimos — e particularmente a permanente expansão, pela
confidência, de uma vida interior e de relação, que não parece muito deformada pelas
liberdades poéticas.
19. Os versos escritos na prisão, que diferentes, na angústia que exprimem, da
quase serenidade dos versos de Gonzaga, [400] inspirados por situação análoga! A ânsia
de convivência a que o habituou a dissipação boémia, faz-lhe considerar o cárcere um
possível sepulcro da existência, e a tristeza do isolamento — Não ver terra, nem céu, nem
mar, nem gente — uma infernal tristeza. Anseia pela morte, pois nem Deus responde ao
seu apelo: “Por mais ardentes preces que lhe faço,/Meus ais não ouve o Númen
sonolento...”
20. Os frenéticos ciúmes não deixam de o atormentar, ali sobretudo — e com
aquela violência de sempre, a que se referem amigos e inimigos (Macedo). Nem ele
sabe sentir o amor de outro modo. Assim escreve:
270

A frouxidão no amor é uma ofensa,


Ofensa que se eleva a grau supremo;
Paixão requer paixão; fervor extremo
Com extremo e fervor se recompensa.

Vê qual sou, vê qual és, vê que diferença!


Eu descoro, eu fraquejo, eu ardo, eu gemo;
Eu choro, eu desespero, eu chamo, eu tremo;
Em sombras a razão se me condensa!... [Obras, 233]

21. O Delírio Amoroso [Obras, 602-605], O Ciúme [Obras, 595-598] são, entre
outros poemas de idêntico tema, inauditas explosões de veemência, raivas, anseios de
tortura, gritos de alma ferida que só se compraz no macabro e no horrível:

E vós, ó cortesãos da escuridade,


Fantasmas vagos, mochos piadores,
Inimigos, como eu, da claridade!

Em bandos acudi aos meus clamores!


Quero a vossa medonha sociedade!
Quero fartar meu coração de horrores! [Obras, p. 165]

22. [401] A morte, em casos tais, provoca o apelo angustiado, mas receoso, porque
a eternidade não é afinal — diz-lho a voz que vem do fundo dos séculos e ecoa na sua
alma cristã — uma pavorosa ilusão nem, como para Antero, a pacificação absoluta. Para
tal inquietação, é obsidiante a sua sombria presença, sugestiva de poesia que em
nenhum outro poeta anterior se entristecia de comparações como esta:

Velando está minha alma esmorecida,


Envolta nos horrores da tristeza,
Qual tocha que, entre túmulos acesa,
Espalha fria luz amortecida. [Obras, p. 204]

23. Mas não é apenas com tochas e túmulos e cortesãos da escuridade que se em
enumbra de romântica melancolia a poesia de Bocage. É uma suavidade de doçura
crepuscular que se derrama por quase toda a de assunto mais grave. Repare-se no soneto
que ele escolhe de Camões para recitar perante Lord Beckford 411 e este transcreve na
página que dedica a Bocage, que tanto o havia surpreendido: A formosura desta fresca
serra... E é de notar também aquele, de análoga tonalidade, que Olavo Bilac dentre os de
Bocage escolheu, para demonstrar que

foi ele o máximo cinzelador da métrica. A plástica da língua e do metro;


a perícia no ensamblar das orações e no escandir dos versos; a riqueza e
graça do vocabulário; o jogo sábio e às vezes inesperado das vogais e
consoantes dentro da harmonia da frase; a variação maravilhosa da
cadência; a sobriedade das figuras; a precisão e o colorido dos epítetos;
todos estes difíceis e complicados segredos da arte poética... esta
consciência, este gosto, [402] esta medida, este dom de adivinhação e de

411
«Italy, with Sketches of Spain and Port»: André Parreaux — Le Port dans l’oeuvre de Beckford,
Paris, 1935.
271

tacto, de que os artistas nos dão o privilégio — tudo isso coube a


Elmano, tudo isto se entreteceu no seu talento412.

24. Eis o soneto que encantou o parnasiano brasileiro:

Se é doce, no recente, ameno estio,


Ver toucar-se a manhã de etéreas flores,
E lambendo as areias e os verdores,
Mole e queixoso deslizar-se o rio;

Se é doce em inocente desafio


Ouvirem-se os voláteis amadores,
Seus versos modulando e seus ardores
De entre os aromas do pomar sombrio;

Se é doce mares, céus, ver anilados


Pela quadra gentil, de Amor querida,
Que desperta os corações, floreia os prados;

Mais doce é ver-te de meus ais vencida,


Dar-me em teus brandos olhos desmaiados
Morte, morte de amores, melhor que a vida. [Obras, p. 423]

25. Vem-lhe da educação clássica a perfeição formal desta, como de quase todas
as suas composições. Igual, pelo menos, a recebera Filinto Elísio e, todavia, cada um
deles é considerado chefe de escola poética que se opõe à outra — o elmanismo,
caracterizado pela fluência verbal e melódica, contra o filintismo, que se assinala pela
valentia da expressão. É que Bocage, além do fino ouvido musical, tinha o gosto do
arranjo, às vezes um pouco artificial, da anáfora, da simetria, da antítese. Mas não
impediam tais restos do formalismo anterior a intensidade comunicativa da sua dicção.
Por todas [403] as junturas da armadura neoclássica, às vezes, quase gongórica,
rebentava o fervor emocional dum temperamento da mais explosiva veemência romântica.
[Casa Bocage. Rua Edmond Bartissol, 12. Setúbal].

Texto ELÍSIO, Filinto. Poesias, sel., pref. e notas de José Pereira Tavares. Lisboa: Sá da
34 Costa, 1941. p. 44-45 e 209.

T 34.1
[44] Lede, que é tempo, os clássicos honrados;
Herdai seus bens, herdai essas conquistas,
Que em reinos dos romanos e dos gregos
Com indefeso estudo conseguiram.
Vereis então que garbo, que facúndia
Orna o verso gentil quanto sem eles
é delambido e peco o pobre verso,
Lede, que é grã cegueira esse descuido,
Antes bruteza! Mal se ganha o prêmio
Do alto saber, sem ímproba fadiga.
O meditado estudo aço é, que rijo
Fere do nosso engenho a aguda escarpa;
412
«Bocage — Conferência». Ed. da Renascença Portuguesa, Porto.
272

E os pensamentos de sutil anojo


[45] Faíscas são brilhantes, que ressaltam
Do batido fuzil aporfiado.
Se ousamos escrever, destas centelhas,
Ordenadas com próvido artifício,
Se compõe formosíssimo luzeiro
Ou astro, que nos rudes olhos fere
Do vulgo, e que a prudentes muito agrada.

T 34.2
[209]
Estende o manto; estende, ó noite escura,
Enluta de horror feio o alegre prado;
Molda-o bem co pesar de um desgraçado,
A quem nem feições lembram da ventura.

Nubla as estrelas, Céu, que esta amargura,


Em que se agora ceva o meu cuidado,
Gostará de ver tudo assim trajado
Da negra cor da minha desventura.

Ronquem roucos trovões, rasguem-se os ares,


Rebente o mar em vão noucos rochedos,
Solte-se o Céu em grossas lanças de água.

Consolar-me só podem já pesares;


Quero nutrir-me de arriscados medos,
Quero saciar da mágoa a minha mágoa.

Texto SILVA, António José da. Guerras do Alecrim e Mangerona. In: Obras Completas;
35 notas do Prof. José Pereira Tavares. Lisboa: Sá da Costa, 1958. v. 3, p. 173-189.

35.0. Síntese

Guerras do Alecrim e da Manjerona é uma peça composta por Antônio José da Silva. A
didascália da peça, que acompanha o título, declara tratar-se de uma “ópera joco-séria, que se
representou no Teatro do Bairro Alto de Lisboa, no Carnaval de 1737”. Fala-se em ópera
joco-séria porque, parodiando a ópera italiana, reclamava o apoio da música e do canto e era
representada por meio de “marionettes”. O título da peça se explica pelo costume, no século
XVIII, de as moças casadoiras se reunirem em blocos que tinham por insígnia uma flor. É o
seguinte o seu entrecho: dois caça-dotes, Gil Vaz e Fuas, procuram aproximar-se de duas
irmãs ricas, Clóris (alecrim) e Nise (manjerona), para isso utilizando, o primeiro, do seu
criado, Semicúpio. Este, arma os maiores estratagemas para introduzir o seu patrão na casa da
pretendida, mas acaba por se enamorar de Sevadilha, criada de Clóris. Entretanto, D.
273

Lancelote, tio das meninas, deseja casá-las com D. Tibúrcio, primo delas. No final, desfeitos
todos os equívocos, casam-se os pares e Semicúpio com Sevadilha.413

35.1. Texto

[173] CENA II

Câmara. Entram D. Nise, D. Clóris e Sevadilha.

Sevadilha. Ai, senhora, que ainda não creio que estamos em casa, pois vimos mais tarde, não
nos acha o senhor velho!
D. Clóris. Em boa nos metemos!
D. Nise. Nunca tal nos sucedeu; que te parece, D. Clóris, a porfia daqueles homens em nos
querer conhecer?
Sevadilha. Sim, senhora, como se nós fossemos suas conhecidas.
D. Clóris. E a facilidade com que se namoram logo estes homens, é o que mais me admira!
[174] Sevadilha. Pois o maldito do Criado, que tanto se meteu comigo, como piolho por
costura!
D. Clóris. Que te veio dizendo?
Sevadilha. Mil despropósitos misturados com várias finezas esfarrapadas.
Sai Fagundes com o manto apanhado no braço
Fagundes. Ainda esses Alecrins, e mangeronas, hão de dar nos narizes a muita gente.
D. Nise. Que diz, Fagundes?
Fagundes. Digo que bem escusados eram estes sustos: ora, digam-me, senhoras, se seu tio
viesse, e as não achasse em casa, que seria de mim?
D. Clóris. Não falemos nisso, que ainda estou a tremer.
Fagundes. Apostemos, que isso foram conselhos desta senhora, que aqui está?
Sevadilha. Apelo eu, que testemunho! Olhe o diabo da mulher, parece, que me te tomado à
sua conta!
Fagundes. Coitada, como se desconjura!
Sevadilha. Ainda por amor dela me hei de ir desta casa.

Sai D. Lancerote

D. Lancerote. Fagundes, depressa vá deitar mais um ovo nos espinafres, que aí vem meu
sobrinho D. Tibúrcio, já que sou tão desgraçado que por mais meia hora não chega depois de
jantar.
Fagundes. Eu vou, meu senhor, mas cuido que o noivo a estas horas comerá novilho. (Vai-se)
[175] D. Lancerote. Agora, minhas sobrinhas, é chegado o vosso esposo; não tenho que
encomendar-vos o modo com que o haveis de tratar.
D. Clóris. Já vem tarde. (À parte)
D. Nise. Veremos a cara a este noivo. (À parte)
Sevadilha. Pois dizem que é um galante lapuz. (À parte)

413
“Guerras do alecrim e manjerona foi, inicialmente, representada no carnaval de 1737. Possui duas partes: a
primeira com quatro cenas, e a segunda, com sete. A linguagem realista dos criados, utilizando-se do latim
macarrônico e de um linguajar arrevesado, tem o intuito de ridicularizar o preciosismo barroco e revelar a
falência desses valores. Trata-se de uma comédia de intriga e de costumes em torno de dois fidalgos pobres que
tentam o casamento com as sobrinhas de um tio abastado. As peripécias da ação são conduzidas pelo humor
ferino do gracioso da peça, o criado Semicúpio. Sua proposta visa a satirizar certas convenções artísticas do
tempo e é a única obra do Judeu que aborda tema contemporâneo: a moda de uma pretensa guerra de flores entre
os grupos ou ranchos de namorados da Lisboa joanina.” (PEREIRA, Paulo Roberto (org.). As comédias de
Antônio José, o Judeu. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 35-36)
274

Sai D. Tibúrcio com botas, vestido ridicularmente.

D. Lancerote. Amado sobrinho, dá-me os braços. É possível que veja a um filho de meu
irmão!
D. Tibúrcio. Sim, senhor; mas primeiro mande vossa mercê ter cuidado naquelas choiriças
que vem no alforje, não as dizime o arrieiro, que tem em cada não cinco aguirrapantes.
D. Lancerote. Isso me parece bem, seres poupado; eu vou a isso. (Vai-se).
D. Clóris. Que te parece, Nise, a discrição do noivo?
D. Nise. Muito bom princípio leva.
Sevadilha. Parece que o seu gênio mais se casa com o alforje. (À parte)
D. Tibúrcio. As primas não são más; porém a moça me toa mais. (À parte)

Sai D. Lancerote
D. Lancerote. Sossegai, sobrinho, que já tudo está arrecadado.
D. Tibúrcio. Agora sim; amado tio meu, por cujos humanos aquedutos circula em nacarados
[176] li|cores o sangue de meu progenitor, permiti, que os meus sequiosos lábios calculem
esses pés, dedo por delo.
D. Lancerote. Levantai-vos; sois discretos, meu sobrinho; pois vosso pai era um pedaço
d’asno, Deus me perdoe.
D. Tibúrcio. Não está mais na minha mão; em abrindo a boca me chovem os conceitos aos
borbotões.
D. Lancerote. Falai a vossas primas, e minhas sobrinhas, D. Nise e D. Clóris.
D. Tibúrcio. Eu vou a isso.

SONETO

Primas, que na guitarra da constância


tão iguais retinis no contraponto,
que não há contraprima nesse ponto,
nem nos porpontos noto dissonância.
Oh, falsas não sejais nesta jactância;
pois quando atento os números vos conto,
nessa beleza harmônica remonto
ao plectro da felina consonância:
Já que primas me sois, sede terceiras
[177] de meu amor, por mais que vos agaste
ouvir de um cavalete as frioleiras;
se encordoais de ouvir-me, ó primas, baste
de dar à escaravelha em tais asneiras,
que enfim isto de amor é um lindo traste.

D. Lancerote. Também sois Poeta, meu sobrinho?


D. Tibúrcio. Também temos nosso entusiasmo, senhor tio, isto cá é veia capilar e natural.
D. Lancerote. Oh! Quanto me pesa que sejais Poeta, pois por força haveis de ser pobre.
D. Tibúrcio. Agora, senhor, eu sou um rico Poeta. Pois, primas, que dizeis da minha
eloquência? Não me respondeis?
D. Clóris. Os Anjos lhe respondam.
D. Nise. Aí não há mais que dizer.
D. Tibúrcio. Ah, senhor tio, essa rapariga é cá da obrigação da casa?
D. Lancerote. É moça da almofada.
275

D. Tibúrcio. Não é mal estreada; e que olhos que tem! Benza-te Deus!
Sevadilha. Quer Deus que trago um corninho por amor do quebranto.
D. Lancerote. Eu cuido, Sobrinho, que mais vos agrada a criada, do que a noiva.
D. Tibúrcio. Tudo o que é desta casa me agrada muito.
D. Lancerote. Agora vamos ao intento: Sabereis, minhas Sobrinhas, que vosso primo D.
Tibúrcio, filho de meu irmão D, Tifônio e de dona Pantaleoa Redoldã, a qual também era irmã
de vosso pai, e meu irmão D. Blianis, vem a eleger uma de vós outras para esposa, pela mercê
que me faz; que [178] a ser possível casar com ambas, o fizera sem cerimônia, que pra mais é
o seu primor.
D. Tibúrcio. Por certo que sim, e não só com ambas, mas até com a criada; pois, como digo,
desejo meter no coração tudo o que dor desta casa.
D. Lancerote. Eu o creio, meu sobrinho; nisso saís a vosso Pai.
D. Clóris. Não vi maior asno! (À parte)
D. Nise. Nem eu maior simples! (À parte)

Diz dentro Semicúpio

Semicúpio. Quem merca o alecrim?


D. Clóris. Ó Sevadilha, chama a esse homem do alecrim; anda depressa.
Sevadilha. Entrou no fadário! (À parte)
D. Lancerote. Sobrinho, não estranhais este excesso de minha sobrinha; porque haveis de
saber, que há nesta terra dois ranchos. Um do alecrim, outro da mangerona, e fazem tais
excessos por estas duas plantas, que se matarão umas às outras.
D. Tibúrcio. E vossa mercê consente, que minha primas sigam essas parcialidades?
D. Lancerote. Não vede que é moda, e como não custa dinheiro, bem se pode permitir?
D. Tibúrcio. Bem sei que isso são verduras da mocidade, mas contudo não aprovo.
D. Lancerote. E a razão?
D. Tibúrcio. Não sei.
[179] D. Clóris. Vossa mercê como vem com os abusos do monte, por isso estranha os estilos
da Corte.
D. Nise. Calai-vos, mana, que ele há de ser o maior apaixonado que há de ter o alecrim e a
mangerona.
D. Tibúrcio. Se eu enlouquecer, não duvido.

Sai Semicúpio com um molho de alecrim ao ombro


Semicúpio. Quem quer o alecrim?
D. Clóris. Anda pra cá: tem mão, não o ponhas no chão.
Semicúpio. Pois aonde o hei de pôr?
D. Clóris. Aqui no meu colo: ai, no chão o meu alecrim? Isso não.
Semicúpio. A real e meio, por ser para vossa mercê?
D. Clóris. Põe aí cinqüenta molhos.
Semicúpio. Pelo que vejo, esta é D. Clóris. (À parte) Eis aí tem todos os molhos; reparta lá
com a senhora, que suponho também quererá o seu raminho.
D. Nise. Ai, tira-te para lá, homem, com esse mau cheiro.
Semicúpio. Já sei, que esta é a da mangerona de D. Fuas. (À parte)
D. Tibúrcio. Bem haja, minha prima, que não é destas invenções.
D. Lancerote. Porque é da mangerona, por isso aborrece o alecrim.
[180] D. Tibúrcio. Resta-me que vossa mercê também tenha algum rancho.
D. Lancerote. Olhai vós, não deixo cá de mim para mim de ter minha parcialidade.
Semicúpio. Ora demos princípio à tramóia. (À parte). Ai, senhores, quem me acode?
D. Lancerote. Que tens, homem?
276

Semicúpio. Ai, ai, confissão.

Sai Semicúpio estrebuchando, fingindo um acidente

D. Clóris. Coitado do homem! Que tens? Que te deu?


D. Nise. Tão venenoso é o teu alecrim, que mata a quem o traz?
D. Lancerote. Olá, tragam água.

Saem Fagundes e Sevadilha com uma quarta


Sevadilha. Ai, senhores, que isto é acidente de gota coral!
Semicúpio. O coral dos teus lábios que acidentes não fará? (À parte)
D. Lancerote. A unha de grão besta é boa para isto.
D. Tibúrcio. Puxem-lhe pelos dedos, que também é bom remédio.

D. Lancerote, D. Tibúrcio, Sevadilha e Fagundes pegam em Semicúpio, e este com o


estrebuchamento fará cair a todos

D. Lancerote. Mostra cá o dedo.


Semicúpio. Agradeço o anel. (À parte)

[181] D. Tibúrcio. E a força que tem o selvagem!


Sevadilha. Eu não posso com ele.
Semicúpio. Lá vai o dedo polegar cos diabos? Eu estou capaz de tornar a mim, antes que me
deixem despedaçado.
D. Lancerote. Borrifa-o, Fagundes.
Fagundes. Ora deixem-no comigo. (Borrifa-o).
Semicúpio. Pó diabo! E o que fedem os borrifos da velha! A maldita parece que tem apostema
no bofe.
D. Nise. Não se cansem, que ele não torna a si tão cedo.
Semicúpio. Essa é a verdade.
Fagundes. Mas, pelo sim pelo não, eu lhe vazo esta quarta; que quando Deus quer, água fria é
mezinha.
Semicúpio. Valha-te o diabo, que me deitaste água na fervura! Eu não tenho mais remédio,
que aquietar-me, senão virá como remédio algum pau santo sobre mim. (À parte)
Fagundes. Senhores, ele está mais sossegado depois da água, venham jantar que a mesa está
posta.
D. Lancerote. Vai buscar o meu capote, e cobre-o que está tremendo o miserável.
Semicúpio. É maravilha, que um miserável cubra ouro. (À parte)
D. Tibúrcio. Aquilo são convulsões; mas bom é cobri-lo por amor do ar.

Sai Fagundes com um capote

Fagundes. Eis ai o capote; se ele o babar, babado ficará.


[182] Semicúpio. Anda, tola, que não me babo. (À parte)

D. Lancerote. Tu, Sevadilha, tem sentido neste homem, enquanto jantamos; vinde, Sobrinho.
(Vai-se).
D. Tibúrcio. Vamos, que tenho uma fome horrenda. (Vai-se)
D. Nise. É galante figura o tal meu primo. (Vai-se).
D. Clóris. Fagundes, agasalha esse alecrim. (Vai-se).
Fagundes. Tanto me importa; se fora mangerona, ainda, ainda. (Vai-se).
277

Sevadilha. Só isto me faltava, ficar eu guardando a este defunto!


Semicúpio. Vejamos quem é esta Sevadilha, que ficou por minha enfermeira. Ai que suponho
que é a menina do malmequer, que lá traz um no cabelo. Vamo-no erguendo, por ver se nos
quer bem. (Vai-se erguendo).
Sevadilha. Deite-se, deite-se. Ai, que o homem tem frenesis! Acudam cá.
Semicúpio. Cala-te, Sevadilha, não perturbes esta primeira ocasião de meu amor.
Sevadilha. Deixe-se estar coberto.
Semicúpio. Bem sei, que o calafrio de meu amor é tão grande, que se pode cobrir diante d’El-
Rei; mas confesso-te que já não posso aturar o gravame deste capote.
Sevadilha. Ai, que o homem está louco e furioso!
Semicúpio. A fúria com que te ausentas me faz enlouquecer; não fujas, Sevadilha, que eu sou
[183] aquele sujeito do malmequer, e tão sujeito aos teus impérios, que sou um criado de
vossa mercê.
Sevadilha. Eu te arrenego, maldito homem! Tu és o desta manhã?
Semicúpio. Cuidavas que não havia saber modo para ver-te?
Sevadilha. Queres que vá chamar a D. Clóris, ou D. Nise?
Semicúpio. Logo irás chamar a D. Clóris, mas primeiro atende à chama de meu amor que se o
fogo tem línguas, e as paredes tem ouvidos, bem pode a dura parede de teu rigor escutar a
labareda em que me abraso: muita coisinha te poderia eu dizer; porém a ocasião não é para
isso.
Sevadilha. Nem eu estou para essoutro.
Semicúpio. Eu o dissera, que o teu malmequer não é para menos.
Sevadilha. Nem a tua pessoa é para mais.
Semicúpio. Pois isso é deveras? Olha, que desconfio.
Sevadilha. Bem aviada estou eu! Bom amante tenho! Bonito eras tu para aturar vinte anos de
desprezos, como há muitos que aturam, levando com as janelas nos narizes, dormindo pelas
escadas, aturando calmas, sofrendo geadas, apurando-se em Romances, dando descantes,
feitos estátuas de amor no templo de Vénus, e contudo estão muito contentes da sua vida; e
assim para que me buscas?
Semicúpio. Para que me desenganes, se me queres, ou não.
[184] Sevadilha. Pergunta-o ao malmequer, que ele to dirá.
Semicúpio. Se eu o tivera, aqui, fizera esta experiência.
Sevadilha. E onde está o que eu te dei?
Semicúpio. Lá o tenho empapelado, que cuido que o ar mo leva.
Sevadilha. Assim te leve o diabo.
Semicúpio. Levará que é muito capaz disso. Pois em que ficamos? Bem me queres, ou mal me
queres?
Sevadilha. Apanha aquele malmequer, que está junto àquela porta, e pergunta-lho, que ele to
dirá.
Semicúpio. Pois acaso nas folhas do malmequer, estão escritos os teus amores, ou os teus
desdéns?
Sevadilha. Da mesma sorte que a buena dicha na palma da mão.
Semicúpio. Eu vou apanhar o dito malmequer. (Vai-se)
Sevadilha. Quem me dera que ficasse em malmequer para o fazer andar à prática!

Sai Semicúpio com um malmequer

Semicúpio. Eis aqui o malmequer: ora vamos a isso; que se há flores que são desengano da
vida, esta o será do amor. Sevadilha, toma sentido, vê se fica no bem-me-quer.
Sevadilha. Isto é como uma sorte.
Semicúpio. Queira Deus não se converta o malmequer em azar. Tem sentido, Sevadilha:
278

Amor, [185] se sai a coisa como eu quero, eu te prometo um arco de pipa, e uma venda nos
Romulares em que ganhes muito dinheiro.

Canta Semicúpio a seguinte ÁRIA

Oráculo de amor,
propício me responde
nas ânsias deste ardor;
bem me queres, mal me queres,
bem me queres, mal me queres,
Mal me queres, disse a flor.
Ai de mim, que me quer mal
teu ingrato malmequer!
Acabou-se o meu cuidado.
Que mais tenho que esperar?
Vou-me agora regalar,
levar boa vida, comer e beber.

Sai D. Clóris

D. Clóris. Oh! Quanto folgo que já estejas bom!


Semicúpio. E tão bom que parece que nunca tive nada.
D. Clóris. Com que saraste?
Semicúpio. Com o mesmo mal; porque também há males que vêm por bem.
D. Clóris. Que dizes, que te não entendo? Estás louco?
[186] Semicúpio. Meu amo ainda o está mais do que eu, desde que te viu assim por maior esta
manhã; e assim para significar-te a tremendíssima eficácia de seu amor, aqui me manda a teus
pés, minto, aos teus átomos, para que com os disfarces do alecrim possa merecer os teus
agrados.
D. Clóris. Sevadilha, põe-te a espreitar não venha alguém.
Sevadilha. Sim Senhora. Arrelá como ardil do homem! (Vai-se)
D. Clóris. E quem é esse teu ano que tanto me adora?
Semicúpio. É o Senhor D. Gilvaz, cavalheiro de tão lindas prendas, como verbi gratia
Londres e Paris.
D. Clóris. Que ofício tem?
Semicúpio. Há de ter um de defuntos, quando morrer.
D. Clóris. E enquanto vivo, em que se ocupa?
Semicúpio. Em morrer por vossa mercê.
D. Clóris. Fala a propósito.
Semicúpio. Senhora, meu amo não necessita de ofícios para manter os seus estados, porque
tem várias propriedades consigo muito boas; além disso tem uma quinta na semana, que fica
entre a quarta e a sexta, tão grande que é necessário vinte e quatro horas, para se correr toda.
D. Clóris. Quanto fará toda de renda?
Semicúpio. Não se pode saber ao certo; sei que tem várias rendas em Flandres, e outras em
Peniche, e estas bem grossas; também tem um foro de fidalgo, e um juro de nobreza.
D. Clóris. Basta que é fidalgo?
Semicúpio. Como as estrelas, que as vê ao [187] meio-|dia, e as estas horas não vê outra coisa;
e certamente lhe posso dizer que é tão antiga a sua descendência, que diz muita gente, que
descende de Adão.
D. Clóris. Se isso é assim, talvez, que me incline a quere-lo para meu esposo.
Semicúpio. Venha a resposta, senhora, que meu amo está esperando com língua de palmo.
D. Clóris. Pois ouve o que lhe hás de dizer.
279

Canta D. Clóris a seguinte

ÁRIA

Dirás ao meu bem,


que não desconfie,
que adore, que espere,
que não desespere,
que à sua firmeza
constante serei.
Que firme eu também
a tanta fineza
amante, constante
extremos farei. (Vai-se)

Semicúpio. Vencido está o negócio; mas o capote do velha cá não há de ficar por vida de
Semicúpio; que se a ocasião faz o ladrão, hei de sê-lo por não perder a ocasião. ( Vai-se com o
capote).

Sai Sevadilha

Sevadilha. Espera, homem, onde levas o capote? E foi-se como um cesto rosto? Ai, mofina
[188] desgra|çada, que há de ser de mim se meu amo não achar o seu rico capote?

Sai Lancerote

D. Lancerote. Já sarou o homem, Sevadilha?


Sevadilha. Sim, Senhor.
D. Lancerote. Já se foi?
Sevadilha. Sim, Senhor.
D. Lancerote. Guardaste o capote?
Sevadilha. Ai é ela. (À parte)
D. Lancerote. Não ouves? Guardaste o capote?
Sevadilha. Qual capote?
D. Lancerote. O meu.
Sevadilha. Qual meu?
D. Lancerote. O meu de Saragoça.
Sevadilha. Ah sim, o capote do homem do alecrim?
D. Lancerote. Qual homem?
Sevadilha. O do acidente.
D. Lancerote. Tu zombas?
Sevadilha. Zombaria fora, o homem levou o capote.
D. Lancerote. O meu capote?
Sevadilha. Eu não sei, se ele era de vossa mercê, o que sei é que o homem do alecrim levou
um capote, com que estava coberto.
D. Lancerote. E como o levou?
Sevadilha. Nos ombros.
D. Lancerote. O meu capote furtado?
Sevadilha. Pois nunca se viu furtar um capote?
D. Lancerote. Não, bribantona, que era um [189] ca|pote aquele que nunca ninguém o furtou.
Oh, dia infeliz, dia aziago, dia indigno de que o Sol te visite com os seus raios!
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Sevadilha. Santa Bárbara!


D. Lancerote. Tu, descuidada, hás de por para ali o meu capote, ou do corpo to hei de tirar.
Sevadilha. Como mo há de tirar do corpo se eu o não tenho?
D. Lancerote. Desta sorte.

Cantam D. Lancerote e Sevadilha a seguinteÁRIA A DUO

D. Lancerote. Moça tonta, descuidada,


Sevadilha. Há mulher mais desgraçada / Neste mundo? Não, não há.
D. Lancerote. Se não dás o meu capote, / Tua capa hei de rasgar.
Sevadilha. Não me rasgue a minha capa.
D. Lancerote. Dá-me, moça o meu capote.
Sevadilha. Minha capa.
D. Lancerote. Meu capote.
Ambos. Trata logo de o pagar.
D. Lancerote. Meu capote assim furtado!
Sevadilha. Meu adorno assim rasgado!
Ambos. Que desgraça!
D. Lancerote. Contra a moça
Sevadilha. Contra o velho
Ambos. A justiça hei de chamar! / Meu capote donde está? (Vão-se).

Texto PEREIRA, Paulo Roberto (org.). As comédias de Antônio José, o Judeu. São Paulo:
36 Martins Fontes, 2007. p. 329-330.

[329] Guerras do alecrim e manjerona é considerada, com justiça, a obra-prima de


Antônio José. Sua atualidade se deve à crítica aos desregramentos dos costumes sociais
através da sátira, que funciona como desdobramento especular da realidade social e moral de
seu tempo. São cenas memoráveis — já observaram vários críticos —, nas quais o escritor
nada fica a dever a Molière. É o caso dos disfarces utilizados pelo criado Semicúpio, na cena
em que aparece travestido de mulher, ou naquela em que surge como médico a socorrer d.
Tíbúrcio, o tio das moças casadouras; ou ainda na que, enganando todas as outras
personagens, aparece como “o bacharel Petrus in cunctis, juiz de fora daqui, com alçada na vara
até o ar”. Para isso, Antônio José utiliza uma linguagem maleável, em que sobressai o
emprego do trocadilho, do latim macarrônico, do rebuscamento de termos com fim satírico,
de expressões aparentemente doutorais, de conceitos sobre a sabedoria popular, fazendo de
Guerras instrumento de renovação da dicção literária portuguesa da primeira metade do século
XVIII. Há um vasto emprego de expressões populares, ditos, frases que são dignas de realce, a
confirmar como sua linguagem rompeu as fronteiras entre o erudito e o popular.
A lição que fica de Guerras do alecrim e manjerona é a sátira aos costumes sociais.
Nada escapa à crítica ferina do humor chistoso de Antônio José: o nobre fanfarrão que busca
sair da miséria pelo casamento; o burguês endinheirado que é avarento; o criado esperto que,
para sobreviver, precisa roubar; o desregramento dos costumes, com os namorados que [330]
entram à noite nos quartos das moças; a sujeira e o perigo da cidade, com a violência dos
vadios; a desconfiança na justiça e na medicina. A ópera Guerras do alecrim e manjerona,
além de ser a mais representada do repertório de Antônio José, é também a sua peça que teve
mais edições. No século XVIII, ainda em vida do Judeu, foi impressa pela primeira vez em
1737, na tipografia de Antônio Isidoro da Fonseca. Mais tarde, em 1770, apareceu outra, sem
local, data e nome do autor. No século XIX também se publicaram as Guerras em duas
ocasiões: uma, que representa a primeira edição brasileira de uma obra do Judeu, estampada
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na cidade do Rio de Janeiro em 1847, e a outra, impressa em Lisboa em 1888. No transcorrer


do século xx, publicou-se pelo menos uma dezena de edições das Guerras do alecrim e
manjerona, que mencionamos em nossa bibliografia.
Essa comédia de costumes, sem perder a atualidade e rindo dos poderosos, analisa a
falência e a futilidade de certas instituições da época para se transformar no grande espelho do
tempo. Daí que, em seu cômico libertador ante a intolerância, Guerras do alecrim e
manjerona confirma o desvelar da máscara do poder. E, ao problematizar o cotidiano de
acordo com o lema do poeta Jean Santeuil, “castigat ridendo mores” ["rindo corrige os
costumes”], revela que seu riso era uma heterodoxia que colocava sob suspeita a ordem
social.

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