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Universidade de São Paulo

Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas


Departamento de Geografia – Programa de Pós-
Graduação em Geografia Humana

Trabalho Final
Disciplina: “Urbanização e Reprodução do Espaço no Brasil”
Professor: César Ricardo Simoni Santos

Dárcio Antonio Argento


Mudança de paradigma: da acumulação fordista à acumulação flexível e seus reflexos na
produção do espaço

1.Objetivos

Este trabalho tem como um dos objetivos discutir a mudança de paradigma da


acumulação capitalista ao longo do século XX, partindo do modelo fordista de produção em
série estabelecido pela massificação da linha de montagem em direção a sobreposição de um
novo modelo de acumulação denominado ‘acumulação flexível’ (Harvey, p.135) pautado por
movimentos de autonomização das formas financeirizadas de capital com relação a produção
material estabelecida anteriormente. Nesse sentido e, partindo dessa nova dinâmica da
dominância de formas financeirizadas do capital, que vão ganhando autonomia a partir de
meados dos anos de 1970, o outro objetivo proposto é discutir como esse novo modelo põe e
repõe formas de produção do espaço. O objeto eleito para observar essas novas formas é
proliferação dos condomínios fechados ao redor da metrópole e suas possíveis relações com
essas formas especulativas de reprodução.

2.O fordismo como paradigma da reprodução no século XX

De forma geral, o fordismo é caracterizado como um ponto alto da racionalização da


produção de mercadorias no século XX. Se tivéssemos que eleger uma data simbólica para o
início do processo:

“...deve por certo ser 1914, quando Henry Ford introduziu seu dia de oito
horas e cinco dólares como recompensa para os trabalhadores da linha
automática de montagem de carros que ele estabelecera no ano anterior em
Dearbon, Michigan. Mas o modo de implantação geral do fordismo foi muito
mais complicado do que isso” (Harvey, 1992, p.122).
Se tomarmos 1914 como a data inaugural do modelo fordista de produção nos Estados
Unidos devemos considerar que o pleno estabelecimento desta nova engenharia de produção
deu-se algumas décadas mais tarde, especificamente após a II Guerra Mundial, quando a
produção de bens de consumo duráveis e não duráveis tomou a dianteira nos investimentos que
buscavam maior rentabilidade. O modelo fordista atendia com relativo grau de segurança e
eficiência as novas demandas de uma sociedade de massas que estava em franco processo de
urbanização no Ocidente capitalista e também e não menos importante no chamado bloco do
Leste que emulava formas de produção racionalizadas dentro do chamado “socialismo real”.
A base empírica do sistema fordista estava assentada no trabalho F.W. Taylor, Os Princípios
da Administração Científica, publicado alguns anos antes. Era um tratado que propunha m
maior rendimento do serviço do operariado da época, o qual era desqualificado e tratado com
desleixo pelas empresas. O estudo de "tempos e movimentos" mostrou que um "exército"
industrial desqualificado significava baixa produtividade e lucros decrescentes, forçando as
empresas a contratarem mais operários. O trabalho de Taylor baseava-se em alguns princípios
básicos, especificamente cinco (Taylor, 1911, p. 36):

 Substituir os métodos empíricos e improvisados (rule-of-thumb method)


por métodos científicos e testados (planejamento)
 Selecionar os trabalhadores para suas melhores aptidões e treiná-los para
cada cargo (seleção ou preparo)
 Supervisionar se o trabalho está sendo executado como foi estabelecido
(controle)
 Disciplinar o trabalho (execução)
 Trabalhador fazendo somente uma etapa do processo de montagem do
produto (singularização das funções)
O fordismo não se caracterizava apenas como uma forma excepcional de produção de
mercadorias que conheceu expressivos ganhos de produtividade, Henry Ford tencionava formar
uma força de trabalho de novo tipo, auto disciplinado, auto regulado, de acordo com os valores
tradicionais e familiares vigentes na sociedade estadunidense, em última instância um
consumidor em potencial antenado nas novidades da modernidade, enfim estava em jogo a
construção de uma nova psicologia estruturante da força de trabalho:

“O que havia de especial em Ford (e que, em última análise, distingue o


fordismo do taylorismo) era a sua visão, seu reconhecimento explícito de que
a produção em massa significava consumo em massa, um novo sistema da
força de trabalho, uma nova política de controle e gerência do trabalho, uma
nova estética e uma nova psicologia, em suma, um novo tipo de sociedade
democrática, racionalizada, modernista e populista” (Harvey, 1992, p.121).
O legado fordista despertou a simpatia dos países que conformavam o campo do
‘socialismo real’1. O líder comunista italiano Antonio Gramsci, jogado numa das prisões de
Mussolini, teceu elogios ao modelo fordista em seu Cadernos dos Cárcere, ele observou que o
americanismo e o fordismo equivaliam “ao maior esforço coletivo até para criar, com

1
Os termos ‘socialismo real’ foram aqui emprestados dos escritos do pensador Robert Kurz e dos postulantes da
corrente marxista chamada ‘Crítica do Valor’ reunidos na revista eletrônica EXIT. Para estes autores, o ‘socialismo
real’ equivale a uma etapa da modernização capitalista nos países periféricos do capitalismo denominada por este
grupo de ‘esforço retardatário de modernização’ ou mais singularmente pelo epíteto de ‘socialismo de caserna’
dado seu caráter autoritário. Os escritos sobre a interpretação dada pelo grupo a respeito do ‘socialismo real’ podem
ser encontrados em http://obeco.planetaclix.pt/
velocidades sem precedentes, e com uma consciência de propósito sem igual na história, um
novo tipo de trabalhador e um novo tipo de homem” (Gramsci, 2010, p.121).

Mas, ainda que o modelo fordista despertasse simpatia no Ocidente, no campo socialista
e nos países de industrialização recente, foi só a partir do término da II Guerra que ele pode ser
generalizado onde quer que houvesse um surto considerável de industrialização ou nos países
pioneiros da modernidade capitalista. Isto porque até meados do século XX sobreviviam formas
que se assemelhavam à ‘produção de ofícios’ ou estruturas arcaicas de produção. Foi necessário
que ocorresse uma destruição em massa das antigas formas de produção, proporcionadas pela
insanidade da guerra total somada a ascensão de governos autoritários –nazifascistas ou
congêneres- para que as antigas formas de produção fossem subsumidas pela grande indústria
num primeiro momento atendendo ao esforço de guerra. O nazifascismo caracterizou-se, entre
outras coisas, pela sua capacidade de generalizar a forma mercadoria e as novas técnicas de
produção oriundas do fordismo. A esse respeito Harvey aponta que no período entre guerras os
governos democráticos fracassaram, pelo menos aos olhos das massas desesperadas, em
retomar o crescimento pré-1929, dessa forma tornou-se:

“...atrativo de uma solução política em que os trabalhadores fossem


disciplinados em sistemas de produção novos e mais eficientes e em que a
capacidade excedente fosse absorvida em parte por despesas produtivas e
infraestruturas muito necessárias para a produção e consumo (sendo a outra
parte alocada para inúteis gastos militares). Não poucos políticos e intelectuais
(cito o economista Schumpeter como exemplo) consideravam os tipos de
solução explorados no Japão, na Itália e na Alemanha nos anos 30 (despidos
do apelo à mitologia, ao militarismo e ao racismo) corretos, e apoiaram o New
Deal de Roosevelt porque o viam precisamente sobre esta ótica” (Harvey,
1992, p.124).
A despeito dos grandes esforços dos Estados-nação e dos agentes econômicos, das
guerras, das revoluções e contrarrevoluções, dos sem número de ações que colaboraram para a
implementação do fordismo, ora pelo convencimento e aceitação tácita da classe trabalhadora,
ora a ferro e a fogo deitando abaixo formas tradicionais de produção e de vida, o fato é que a
lua de mel entre a reprodução ampliada e sua expressão fordista durou não muitos anos como
forma consagrada – obviamente que o modelo fordista se renova mantém-se como forma digna
de análises pormenorizadas ainda no século XXI e talvez por muito mais tempo – da
reprodução, entre duas e três décadas. Já nos anos de 1970, a reprodução ampliada do capital
destacará outras formas de reposição do valor que rivalizam e até superam as formas clássica
do fordismo: entre em cena o protagonismo da esfera financeira-especulativa.
3. A esfera financeira como motor da acumulação – década de 1970

O sistema capitalista carrega premissas fundamentais para sua compreensão, uma delas
é sem dúvida seu movimento a partir de processos contraditórios. Inúmeros autores e
pesquisadores do pensamento marxista se detiveram na análise das contradições e do
movimento dialético de superação destas contradições. O período fordista conheceu suas
contradições e colocou-se em marcha rumo à superação destas contradições, mesmo que o
movimento não necessariamente tenha sido detectado in actu. Segundo Harvey:

“Em retrospecto, parece que havia indícios de problemas sérios no fordismo,


já em meados dos anos 60. Na época, a recuperação da Europa Ocidental e do
Japão tinha se completado, seu mercado interno estava saturado e o impulso
para criar mercados de exportação para seus excedentes tinha de começar”
(Harvey, 1992, p. 135)
Com o modelo técnico já estabelecido nos principais centros produtores de mercadorias o que
estava se desenhando era uma crise de superprodução, entretanto essa crise de superprodução
trazia novos complicadores que a diferia da crise clássica de superprodução ocorrida em 1929
que arrastou mercados em âmbito mundial. Com o desenvolvimento do fordismo e o aumento
exponencial da produtividade novas tecnologias foram inseridas no processo produtivo num
tempo recorde para os padrões até então conhecidos. Novas máquinas, maior controle da
produção, automatização das linhas de montagem, incremento da racionalização levaram à
produtividade, à capacidade de criação a patamares impensáveis ao mesmo tempo que a mão
de obra era dispensada ou trocada – sem que houvesse grande alarde por parte dos movimentos
operários, naquele momento impulsionado pelos bons ventos do Estado de bem estar social
europeu e suas expectativas de realização nos países de industrialização recente – pelo
incremento das máquinas produzindo uma curva decrescente na demanda solvável. A respeito
da troca da mão de obra (Capital variável) pela mecanização (Capital constante), Kurz ressalta
que:

“Pela primeira vez na história da modernidade, uma nova tecnologia é capaz


de economizar mais trabalho, em termos absolutos, do que o necessário para
a expansão dos mercados de novos produtos. Na terceira revolução industrial,
a capacidade de racionalização é maior do que a capacidade de expansão. A
eficácia de uma fase expansiva, criadora de empregos, deixou de existir. O
desemprego tecnológico da antiga história da industrialização faz seu retorno
triunfal, só que agora não se limita a um ramo da produção, mas se espalha
por todas as indústrias, por todo o planeta” (KURZ, 2003).

Outros fatores viriam a somar dentro do rol de contradições postas pelo fordismo.
Importante destacar dois movimentos que levam à aceleração do movimento que resultará na
prevalência do capital portador de juros – ou capital fictício – direcionando a acumulação para
a esfera da financeirização. Um deles refere-se ao fato dos lucros auferidos pelo complexo
petroleiro impulsionado pela demanda produtiva dos centros do capitalismo. Esta margem de
lucro apelidada de ‘petrodólares’ não contava com expectativas otimistas de reinvestimentos e
ampliação na indústria do petróleo, nem com a repatriação desse montante aos seus países de
origem, notadamente os Estados Unidos que entre os anos 60 e 70 apresentava taxas de juros
muito baixas para que houvesse estímulo da parte do capital privado nas aplicações correntes.
A solução encontrada foi manter esse volume de capitais em praça que, a partir daquele
momento, especializaram-se no tratamento dos petrodólares. Quanto a isso os petrodólares
foram expatriados para o mercado europeu especificamente para o Reino Unido:

“Essa reconstituição ocorreu graças a condições institucionais precisas, em


um dos centros históricos do capital portador de juros, o Reino Unido.
Enquanto o controle de câmbio atingia seu máximo, permitiu-se em 1958 a
criação como offshore na City de Londres – isto é, com estatuto próprio,
próximo ao de um paraíso fiscal - de um mercado interbancário de capitais
líquidos registrados em dólares, chamado “mercado de eurodólares"). Essa
será a primeira base de operação internacional do capital portador de juros.
Grandes empresas ajudaram a sua reconstituição, ao lado de bancos que
aproveitaram para começar a se internacionalizar. Muito antes do "choque do
petróleo", lucros não repatriados e também não reinvestidos na produção são
depositados em eurodólares pelas firmas transnacionais norte-americanas. O
afluxo de recursos não reinvestidos se acelera no início dos anos 70, à medida
que o dinamismo da “idade de ouro" se esgota” (Chesnais, 2005, p.38).
Esse é o primeiro impulso de valorização de uma massa significativa de capitais que não passa
necessariamente pela esfera da produção.

A situação da acumulação fordista apresenta seus primeiros sintomas de esgotamento


como coração e mente da acumulação propriamente nos anos 70, não significando, por isso,
que o modelo estava esgotado e em vias de desaparecimento como podemos notar
hodiernamente. Mas que a forma financeira rivalizaria com a produção material no movimento
de revalorização e não seria apenas o seu suporte no âmbito dos investimentos. A crise de
Bretton-Woods e a quebra do padrão ouro em 1971 – que não caberia analisar no escopo desse
trabalho – em substituição ao padrão fiduciário de conversibilidade das moedas acelerou o
processo de decolagem do capital portador de juros. Soma-se ao fim dos acordos de Bretton-
Woods o primeiro “choque do petróleo” movimento derivado do boicote e elevação atípica do
preço do barril por parte dos produtores da OPEP em retaliação ao apoio ocidental concedido à
Israel duante Guerra do Yon Kippur. Os “choques do petróleo” aprofundaram a busca liquidez
dos petrodólares no mercado de capitais e derivativos ao mesmo tempo que gerou paralisia na
produção, desemprego e o movimento conhecido como estagflação nos anos 70.
Além das mudanças na produção e das condições impostas por fatores geopolíticos,
outro movimento foi importante para a decolagem do capital portador de juros e a massificação
de um mercado de capitais e derivativos que levou progressivamente a decolagem da
acumulação financeira.

“Por acumulação financeira, entende-se a centralização em instituições


especializadas de lucros industriais não reinvestidos e de rendas não
consumidas, que têm por encargo valorizá-los sob a forma de aplicação em
ativos financeiros - divisas, obrigações e ações – mantendo-os fora da
produção de bens e serviços” (Chesnais, 2005, p.35).
Havia um outro movimento importante a ser considerado na escalada do capital portador de
juros. Além dos lucros não reinvestidos na esfera da produção e “desviados” para a esfera dos
mercados de capitais, uma parte não consumida da renda das famílias também fora canalizada
para aplicações financeiras, mais precisamente para planos de previdência privada ou seguros
de vida. Não por coincidência os fundos de pensão mantém-se como grandes investidores
institucionais. Esse respeito Chesnais afirma que:

“Correntemente designado pelo nome de "investidores institucionais”, esses


organismos (fundos de pensão, fundos coletivos de aplicação, sociedades de
seguros, bancos que administram sociedades de investimento) fizeram da
centralização dos lucros não reinvestidos das empresas e das rendas não
consumidas das famílias, especialmente os planos de previdência privados e a
poupança salarial, o trampolim de uma acumulação financeira de grande
dimensão. A progressão da acumulação financeira foi estreitamente ligada à
liberação dos movimentos dos capitais e à interconexão internacional dos
mercados dos ativos financeiros – obrigações públicas e privadas, ações e
produtos derivados.” (Chesnais, 2005, p. 36)

Cumpridas algumas etapas fundamentais, o capital portador de juros se consolidará a


transição para ser o protagonista da reprodução ampliada a partir dos anos 70, firmando-se
como ator de primeira grandeza nos anos 80, forçando ajustes socioeconômicos por meio
de governos conservadores, primeiramente nos Estados Unidos (Ronald Reagan) e Reino
Unido (Margareth Thatcher) espraiando-se para as periferias do capitalismo: América
Latina e a onda ‘neoliberalizante” dos anos 90, Leste europeu também nos anos 90,
aproveitando o colapso do socialismo real, além dos ‘tigres asiáticos’ (Taiwan, Cingapura,
Coreia do Sul e Hong Kong). A China aparentemente resguardou-se da liberalização total
da sua economia conservando fortes traços da acumulação fordista, fato que muitos
analistas do campo econômico conectam aos crescimento vertiginoso da economia chinesa
nos anos 90 e 2000. Essas etapas podem ser resumidas da seguinte forma:
“A forma de mundialização nascida da liberalização financeira A
mundialização financeira foi preparada pelo mercado de eurodólares, depois
pela passagem a um regime de taxas de câmbio flexíveis após o colapso do
sistema de Bretton-Woods. O mercado de câmbio foi, assim, o primeiro a
entrar na mundialização financeira contemporânea. Ele permanece um dos
mercados onde os investidores institucionais continuam a manter parte de seus
ativos. Mas foram as medidas de liberalização e de desregulamentação de
1979-81 que deram nascimento ao sistema de finança mundializado tal como
o conhecemos. Elas puseram fim ao controle do movimento de capitais com o
estrangeiro (saídas e entradas), abrindo assim os sistemas financeiros
nacionais para o exterior” (Chesnais. 2005, p. 14)

4.Os reflexos da financeirização no mercado imobiliário e na produção do espaço

Estabelecida a nova etapa da reprodução ampliada sob a consigna do capital portador


de juros uma das frentes de remuneração desta modalidade de capital passou a ser o mercado
imobiliário. Vale lembrar que um montante significativo da renda não consumida das famílias
e dos lucros das companhias já estava sendo drenado para fundos de pensão, mercados de ações
e praças europeias especializadas em revalorizar o capital excedente da produção de petróleo.
Dessa forma surgem as ‘bolhas financeiras’, que correspondem à fase de acumulação
capitalista, a da “produção flexível”, quando assistimos a uma universalização da mercadoria:
arte, lazer, educação, cultura, serviços “afetivos”, saúde, religião, espaço e habitação, etc, nada
escapa à lógica da valorização abstrata. E essa valorização abstrata prescinde de bases materiais,
levando a um movimento intenso de intenções, de promessas de ganho que se assentam em
bases especulativas. O mercado imobiliário mostrou-se receptivo a esta lógica dado que as
possibilidades de valorizar espaços baseada na aposta e no marketing entram em ressonância
como um modelo de sociedade que espera a todo momento pelo novo. O espaço pode renovar-
se, multiplicar-se mais rapidamente que a produção de mercadorias tradicionais. A esse
respeito, Lefebvre nos adverte que:

“Aqueles que manipulam os objetos para torná-los efêmeros manipulam


também as motivações, e é talvez a elas, expressão social do desejo, que eles
atacam dissolvendo-as [...] é preciso também que as necessidades envelheçam,
que jovens necessidades as substituam. É a estratégia do desejo!”
(LEFÈBVRE, 1991, p.91).
Pensando nessa dinâmica de sócio espacial, observa-se que ocorreu aumento no preço
do solo urbano em algumas áreas da cidade para onde fluem incorporadoras e promotores
imobiliários em busca de estratégias que geram um mercado imobiliário cada vez mais
aperfeiçoado composto por residências bem projetadas, modernas arquiteturas, casas e
escritórios inteligentes, etc. A ação dos promotores imobiliários, engloba distintas atividades.
Primeiramente transformam capital-dinheiro em imóvel, neste caso temos os incorporadores e
a indústria de construção civil; levantam recursos monetários para o investimento focando a
construção e a compra. Aqui aparecem as instituições financeiras que também criam valores de
troca por meio das oportunidades de financiamentos. Temos ainda a figura dos intermediários
(corretores, planejadores de vendas, profissionais de propaganda, etc.) que comercializam e
obtém lucros ao transformar o capital-mercadoria em capital-dinheiro. O Estado é outro agente
que também tem seu papel fundamentado na reprodução das relações capitalistas e sua função
vai muito além de administrador das contradições capitalistas, pois legitima a acumulação.
Nesse caso, se entendemos o espaço geográfico como produto, condição e meio das relações
sociais de produção, não podemos mais atribuir ao Estado a simples tarefa de regulação do
espaço e, muito menos, admitir o espaço como um mero receptáculo da ação reguladora do
Estado.

As estratégias de emprego de capitais e ganhos de liquidez no mercado imobiliário ficou


evidente na bolha especulativa estadunidense dos anos 2000, após o estouro da última bolha
acionista das empresas pontocom. E ganhou notória visibilidade com a chamada crise do
subprime em 2008 e seu efeito cascata na economia mundial. Segundo Kurz:

“...o boom imobiliário especulativo começou exatamente quando acabou o


boom acionista; sobretudo nos Estados Unidos, mas também na Inglaterra.
Desde o fim da bolha acionista, os preços do imobiliário subiram cerca de
50% nos Estados Unidos e quase 25% na Inglaterra” (Kurz, 2003)

A bolha do mercado imobiliário estadunidense ocorreu sem que houvesse de fato uma
necessidade comprovada no déficit habitacional ou no crescimento demográfico. Outro dado
contraditório é que a maioria das transações de compra e venda de imóveis tinham o objetivo
de investimento e não de uso e ocupação do proprietário. Esta dinâmica de consumo incentiva
os investidores a comprar casas que supostamente obterão lucro em curto prazo, através de
aluguel, venda ou renegociação hipotecária. A recente bolha do mercado imobiliário americano,
que se assemelha ao modo de absorção da superacumulação através do deslocamento espacial
e temporal (HARVEY, 1992, p.171), parece dar continuidade à tendência histórica aqui
demonstrada: a ruptura entre a economia real e a produção de “capital fictício”. Fruto da busca
por lucros cada vez mais escassos como consequência do desenvolvimento das forças
produtivas, para alguns autores – Kurz, Harvey, Postone, Grespan, etc - talvez seja um forte
indicativo dos limites históricos de expansão do capitalismo. Desse modo, o capital fictício
materializado na produção e consumo do espaço e de outras mercadorias, nada tem a ver com
necessidades reais ou com uma demanda efetiva.
5.A dinâmica especulativa na produção do espaço urbano brasileiro e a patologia dos
condomínios

A dinâmica da produção do espaço no Brasil conheceu uma modificação acelerada e até


certo ponto dramática durante o século XX. Saindo de uma condição colonial no começo século
XIX, mas carregando um modelo de ocupação espacial pautado na grande propriedade
monocultora e no trabalho escravo durante grande parte deste século, muitas cidades brasileiras
serão alçadas à condição de metrópole abruptamente seguindo os passos de países que
conheceram processos de urbanização tardia e periférica que resultou dentro outras coisa no
grande fluxo de migrantes para as áreas de atração populacional. O caso brasileiro se singulariza
porque a grande massa de escravos libertos rumaram para cidades à procura de melhores
condições de vida. A esse respeito Odette Seabra destaca que:

“Quer se trate de metrópoles, de cidades médias ou pequenas, sabe-se que o


fenômeno urbano traduz as circunstâncias da urbanização da sociedade.
Tornou-se banal afirmar que no Brasil mais de oitenta por cento da população
vive em cidades e que, dentre os vinte por cento que vivem no campo, os
hábitos de vida urbana têm sido difundidos rapidamente. Impõe-se considerar
que, há menos de meio século, este era um País agrário e que entre os
anos trinta e setenta, período especialmente importante quanto à
estruturação do fenômeno urbano, constituiu-se um modo de vida a partir da
concentração da população nas cidades. (Seabra, 2004, p.182).
Os processos de ocupação e reprodução do espaço na metrópoles brasileiras foram
permeados de contradições típicas do modelo capitalista que toma as coisas, pessoas e modos
de vida como mercadorias. Por isso é importante considerar que “há um processo de
valorização do espaço, implícito nas relações sociais o qual, necessariamente, tem
que se territorializar para permitir alguma apropriação (Seabra, 2004, p.183). No
período enfatizado neste trabalho, que corresponde à mudança de paradigma da acumulação
com ênfase no capital portador de juros, a apropriação do espaço nas metrópoles -
especialmente no eixo Rio-São Paulo, mas também com bastante força na área metropolitana
destas e nos interiores dos recíprocos estados - reforçou uma tendência nascida nos anos 1960-
70 de auto segregação espacial das classes mais abastadas. Esta auto segregação fez e continua
atuando nas variações do preço da terras tornando-as bastante grandes. Isso ocorre devido a
aspectos localizacionais, tais como: “transporte, serviços de água e esgoto, escolas, comércio,
telefone, etc., e pelo prestígio social da vizinhança” (SINGER, 1979, pp.27). E também ao
prestígio social que “decorre da tendência dos grupos mais ricos de se segregar do resto da
sociedade e da aspiração dos membros da classe média de ascender socialmente” (SINGER,
1979, p. 27).
Boa parte dessas novas demandas foram espelhadas pelos padrões de vida e cultura
difundidas pelos Estados Unidos insistentemente no bloco capitalista pós-II Guerra como e que
ganhou o nome genérico de ‘american way of life2’ No rol de exigências desse modelo
americano de vida e de consumo, o habitar ganhou destaque com massificação das casas de
condomínios que atendia, reforçava e retroalimentava os desejos das classes mais abastadas
para auto segregar-se. Odette Seabra pontua que:
“Os condomínios fechados surgiram inicialmente em cidades
americanas. Em Los Angeles puderam se formar sem muros, com casas
implantadas em amplos jardins, propondo continuidade de paisagens;
elas próprias, sempre reconstruídas segundo o prazer estético em voga,
como veiculou amplamente a indústria cinematográfica.”

No começo eles foram considerados apenas como:


“...uma resposta ao esvaziamento das áreas centrais. Hoje, já se sabe, estão
muito mais relacionados a um modo de vida sobre o qual certas empresas que
visam organizar o cotidiano e com isso acabam modulando a atividade de
morar.”
No entanto,

‘Trata-se de ações e projetos que se apresentam como necessários para


proporcionar a evasão da cidade com muita idealização do bucólico, contra o
universo concentracionista da cidade, contra o barulho e a fadiga, propondo o
cultivo do seu próprio jardim, entre tantos outros apelos. Assim, os novos
hábitos de morar tornavam-se realidade, de tal forma que o deslocamento da
classe média para loteamentos residenciais foi natural e prazeroso, porque
alimentado por um imaginário capaz de propugnar que a vida fora da cidade
oferecia qualidade superior.” (Seabra, 2004, pp.195-196)
De certa forma, os condomínios de casas e de apartamentos responderam algumas
demandas importantes da forma social contemporânea. Em termos psicossociais atenderam
satisfatoriamente aos desejos de indivíduos que aspiravam ao isolamento, seja por expectativas
correspondentes ao prestígio social, ao ‘american way of life’ ou aos apelos por mais segurança.
Seja pela suposta proximidade à natureza ou pelo atual culto ‘das coisas simples da vida’ ainda
que cultuar coisas simples da vida signifique desembolsar razoáveis somas de dinheiro as quais
a imensa maioria da população não dispõe. Do ponto de vista da especulação, novos terrenos
foram adquiridos a baixos preços, loteamentos foram feitos e vendidos com a promessa do
cumprir as expectativas acima citadas. Os lotes foram adquiridos, as foram construídas por

2
“Esse conceito está atrelado ao consumo e a um padrão de família, de beleza, de gênero e de regras do que você
tem que ter e ser para ser bem-sucedido” (Cunha, 2017, pp.15)
promotores imobiliários e revendidas por valores maiores. Ou simplesmente os indivíduos
construíram e venderam a suas casas mirando outros locais mais prestigiados.

Junto com o boom dos condomínios emergiu uma forma de viver condizente com este
espaço e com as expectativas que os moradores esperam encontrar neste lugares, uma lógica
conformada sob novos padrões que a diferem do espaço público, da rua, da praça, do bairro,
etc. Os espaços públicos levam, quase inevitavelmente, ao encontro do outro, do diferente,
realmente e como potencialidade. Essa outra nova lógica pauta-se pelo encontro dos iguais, ou
supostamente, pelo menos dentro do campo das expectativas de quem se muda para os espaços
fechados e segregados. Há uma tendência desejante que os muros dos condomínios cerquem
aqueles que sejam ‘duplos’, ‘triplos’ de si, informados dentro dos mesmos padrões
comportamentais, assim:

“A lógica da forma “condominante”, que não se reduz à vida nos


condomínios de luxo, pode ser minimamente definida como a lógica da
suspensão das limitações dentro de um dado limite: cercamos uma área com
um muro e, dentro dele, nenhum muro à vista. O ponto crucial aqui é que a
divisão entre o mundo e o condomínio é de ordem diferente das divisórias que
desaparecem dentro do cercamento, poiso muro pende mais para um lado: a
divisão que separa o público do privado só nomeia o que é privatizado,
relegando o que é excluído à anomia, enquanto que as divisórias suspensas
dentro do condomínio não tem função de nomeação, apenas organizam
relações internas ao espaço do já conhecido. Essa divisão do espaço entre mal-
estar externo e bem-estar interno tem como consequência fazer o estranho
coincidir com o estrangeiro: se alguma coisa “não se encaixa”, então é porque
ela não é daqui –venha a perturbação de além-muro ou da casa do vizinho”
(Tupinambá, 2015, pp 71-72).

Em suma o condomínio tende a proporcionar o encontro com a angústia, mas é uma


angústia difícil de ser descrita por que os muros, ao contrário da lei, não delimita
especificamente que é o ‘estranho’. Num primeiro momento o estranho é quem não mora no
condomínio, o sujeito já rotulado pelo estranhamento. No entanto, o estranho passa a ser aquele
que não se comporta dentro das expectativas prometidas, nem o sujeito que estranha é seguro
da sua adequação dentro de regras não inscritas. Garantidas as expectativas mínimas, a paz, a
segurança, a tranquilidade, a vida próxima à natureza e o afastamento do cotidiano caótico surge
a dúvida se estamos dentro dos padrões esperados da vida ‘condominante’: a moradia
normalmente obedece a padrões arquitetônicos pré-definidos, mas todo o resto pode vir a ser
uma questão meramente competitiva, há uma certa indeterminação do mal-estar que é
acentuado pela lógica do ideal. Já que penetramos no terreno ideal resta-nos imaginar que o
ideal é uma miragem, uma utopia, aqui uma utopia de felicidade. Os condomínios propõem que
a felicidade é uma questão de leis, e que assim tudo funcionaria. Se não funcionasse, o único
antídoto seriam leis mais duras, fortes e radicais, até que a lei seja torcida a ponto de mostrar
sua impotência em produzir felicidade. Segundo Dunker:
“...quando a pessoa muda para o condomínio, tudo parece em ordem, mas há
“o cheiro do ralo”, como no filme de Heitor Dhalia, a dizer o contrário. A
consequência é uma hipertrofia de regulamentos. É quando o síndico cria leis
dentro das leis. Resultado: este sujeito que busca a liberdade no condomínio
se descobre em uma prisão. Ele está condenado a viver entre iguais. E, entre
iguais, as pequenas diferenças se ampliam violentamente. É quando surgem
as conversas e as curiosidades entre vizinhos. É o narcisismo das pequenas
diferenças de que fala Freud.” (Dunker, 2015)

A lógica ‘condomiante’, identificada por Dunker, espraia-se por outros espaços que
prometem o encontro dos iguais, mas não podem garantir comportamentos iguais, vai-se
configurando uma violência surda que explode aqui e acolá de tempos em tempos porque a vida
torna-se intolerável quando a expectativa é viver entre iguais.

6.Referências Bibliográficas:

CHESNAIS, François, A finança mundializada: raízes sociais e políticas, configuração, consequências,


Boitempo: São Paulo, 2015.

CUNHA, P. R. F. DA, American Way of Life - consumo e estilo de vida no cinema dos anos 1950, São
Paulo: Intermeios, 2015.
DUNKER, Christian, Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros.
Buenos Aires: PsicoMundo, 2016.
GRAMSCI, Antonio, Cadernos do cárcere, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
HARVEY, David, Condição pós-moderna, São Paulo: Edições Loyola, 1992.
KURZ, R. A Segunda Bolha. Neues Deutschland, Berlin, Jun. de 2003. Disponível em: <
http://obeco.planetaclix.pt/rkurz137.htm >. Acesso em: 21 fev. 2007.
LEFÈBVRE, H. A Vida Cotidiana no Mundo Moderno. São Paulo: Ática, 1991.
SEABRA, Odette, Território do uso: cotidiano e modo de vida, São Paulo: CIDADES. v. 1, n. 2,
2004.
TAYLOR, F.W, Princípios da administração científica, São Paulo: Atlas, 2009.

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