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A globalização popular e o sistema

mundial não hegemônico*

Gustavo Lins Ribeiro

Introdução Feira do Paraguai, em Brasília, em barracas e até


mesmo nas calçadas de qualquer cidade?
Existem milhões de pessoas em todo o mun- Parte da definição de globalização popular refe-
do direta ou indiretamente envolvidas com o que re-se à participação de agentes sociais que, em geral,
denomino “globalização econômica de baixo para não são considerados nas análises sobre globaliza-
cima” ou “globalização popular”, como produtores, ção ou, quando são, figuram apenas como migran-
vendedores ou consumidores.1 Quem de nós nunca tes, ou “transmigrantes”. Na maioria das vezes, não
viu produtos “pirateados”, eletrônicos, roupas, bol- se leva em consideração a existência de um siste-
sas, tênis e brinquedos ou bugigangas globais sendo ma mais amplo, de escala global, cujas amplitudes
vendidos em mercados populares ou por vendedo- e interconexões várias podem ser estudadas. Os
res ambulantes, camelôs, em locais como o Saara, agentes sociais que me interessam são, para dizer
no Rio de Janeiro, a Rua 25 de Março, em São Pau- de maneira simples e direta, gente do povo. Existe
lo, o Shopping Oiapoque, em Belo Horizonte, a uma globalização econômica não hegemônica for-
mada por mercados populares e fluxos de comércio
* Uma primeira versão desse artigo foi lida na III Con-
ferencia Esther Hermitte, Instituto de Desarrollo Eco-
que são, em grande medida, animados por gente
nómico y Social, Buenos Aires, 24 nov. 2006. Agrade- do povo e não por representantes das elites. Uso o
ço aos meus colegas do Ides, em particular a Rosana adjetivo popular de forma análoga a Néstor Garcia
Guber, pelo honroso convite. Canclini, em seu clássico As culturas populares no
Artigo recebido em março/2010 capitalismo (1982). Parafraseando a García Cancli-
Aprovado em julho/2010 ni, posso dizer que as globalizações populares, mais
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tência de “um espectro que assombra a globaliza-


ção”, o espectro do crime organizado internacional
(2005, p. 2). Com o sugestivo subtítulo “O ataque
da pirataria, da lavagem de dinheiro e do tráfico à
economia global”, o livro de Naím apresenta uma
visão alarmista de como o “comércio global ilícito”,
que movimenta centenas de bilhões de dólares por
ano, representa uma ameaça à boa saúde da socie-
dade e do capitalismo contemporâneos. É curioso
que seu autor acabe por defender a tese, nada ne-
oliberal, de que a crescente debilitação dos Esta-
dos, provocada pela intensificação da globalização,
é fator primordial para o aumento das atividades
Feira do Paraguai (Brasília). Foto: Gustavo Lins Ribeiro ilícitas no mundo. Naím dá uma definição de “co-
mércio global ilícito” emblemática da interpretação
conservadora:
do que a globalização popular, “se configuram por
meio de um processo de apropriação desigual dos É o comércio que rompe as regras – leis, regu-
bens econômicos e culturais” do mundo globali- lações, licenças, impostos, embargos e todos os
zado por parte de “setores subalternos” (1982, p. procedimentos que as nações empregam para
62). Tais processos “são realizados pelo povo, que organizar os negócios, proteger seus cidadãos,
compartilha as condições gerais de produção, cir- levantar recursos e implementar códigos mo-
culação e consumo do sistema em que vive [...] ao rais. Inclui compras e vendas que são estrita-
mesmo tempo em que provê suas próprias estrutu- mente ilegais em todas as partes e outras que
ras” (Idem, ibidem). Há tanto uma interpenetração podem ser ilegais em alguns países e aceitas em
como uma interação conflitiva entre o popular e o outros. O comércio ilícito é altamente prejudi-
hegemônico (Idem, p. 63). cial, claro, para os negócios legítimos. Mas há
Os mercados, os fluxos e as redes de comér- exceções. Pois [...] há uma enorme área cinza
cio da globalização popular fazem parte do sistema entre transações legais e ilegais, uma área cinza
mundial não hegemônico. Em geral, suas ativida- que os comerciantes ilícitos têm usado em be-
des são consideradas ilegais, “contrabando”. Uma nefício próprio (2005, p. 2).
grande quantidade das mercadorias aí vendidas é
chamada de produtos piratas pelos poderes estabe- Para Naím, o “comércio global ilícito” floresce
lecidos. Essas atividades são ilegítimas do ponto de e triunfa em um mundo mais interconectado, com
vista dos poderosos, que as combatem em nome da fronteiras mais porosas e poderosas tecnologias
legalidade. Assim, é impossível entrar nessa arena (como a internet) em mãos de “civis”, com menos
sem primeiro tocar na discussão sobre o que é legal/ barreiras ao comércio e mais agentes não estatais
ilegal, lícito/ilícito. operando no cenário internacional. O presente é
o paraíso do contrabandista. O crime organizado,
apesar de crescentemente descentralizado e ope-
Legal/ilegal – Lícito/ilícito rando em rede, tem aumentado seu poder político,
chegando a tomar importantes parcelas dos Estados
Hoje, a “ilicitude global” chama a atenção por mais fracos. O autor considera que, apesar da anti-
sua escala e poder. Moisés Naím, editor da revista guidade das atividades ilícitas no plano internacio-
Foreign Policy, publicou, em 2005, Ilícito, um livro nal, a intensidade atual coloca o fenômeno em um
canônico da literatura conservadora dedicada a pro- novo patamar. Mesmo com o seu viés conservador
palar, no dizer de Abraham e Van Schendel, a exis- (o livro é vazado em uma linguagem em que o bem

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está sendo sufocado pelo mal), Naím deixa claro especialmente porque a diferença de preços é o fa-
que o sistema mundial não hegemônico só tende a tor determinante no comércio ilícito. Naím explora
crescer com o aumento da compressão do tempo- sua metáfora do claro/escuro:
espaço, das redes postas em ação pelo capitalismo
flexível e do enfraquecimento da capacidade de in- [...] quanto mais claro o ponto claro, mais altos os
tervenção e regulação dos Estados. O caráter sis- preços que esses bens ilícitos podem obter. Quanto
têmico do “comércio global ilícito” é explicitado mais escuro o buraco negro, mais desesperadas as
no livro quando o autor analisa a existência de um pessoas estarão para vender seus bens, suas mentes,
seu trabalho e até mesmo seus corpos aos trafican-
sistema formado por redes e nós. Em sintonia com
tes. Juntas, essas duas tendências criam diferenciais
sua visão negativa, Naím vê uma oposição global de preços cada vez maiores e, portanto, incentivos
entre dois polos que leva à colisão entre “pontos cada vez maiores para conectar buracos negros a
claros geopolíticos” e “buracos negros geopolíti- pontos claros (Idem, p. 265).
cos”. Os últimos são “os lugares onde as redes de
tráfico ‘vivem’ e desabrocham” (Idem, p. 261), po- A análise de Naím, por mais sofisticada e con-
dendo coincidir com (1) Estados-nação, onde não substanciada que possa parecer, incorre em proble-
existe o Estado de direito; (2) regiões fora da lei e mas típicos de interpretações destinadas a replicar a
anárquicas, internas a alguns países, como as áreas hegemonia existente. Em primeiro lugar, está mar-
montanhosas da Córsega e os estados mexicanos cada por um americanocentrismo imperial, como
da fronteira com os Estados Unidos; (3) áreas de se essa fosse a ordem natural das coisas. Não con-
fronteira, como o Triângulo de Ouro do Sudeste segue perceber, ou não se preocupa com isso, que
Asiático ou a Tríplice Fronteira na América do Sul; a dicotomia “ponto claro/buraco negro” tem sido
(4) sistemas de vizinhanças e localidades, como as historicamente construída em termos de relações
comunidades libanesas nas capitais da África Oci- desiguais de poder entre diferentes setores sociais,
dental; e (5) espaços na internet. A diferença entre econômicos, políticos e étnicos do sistema mundial
pontos claros e buracos negros geopolíticos não está que criam uma economia política global peculiar.
na presença ou na ausência de redes ilícitas, pois Além disso, as relações entre os pontos claros e os
estas “estão em todas as partes” (Idem, p. 263), mas buracos negros são por ele consideradas de maneira
na existência de capacidade cívica e estatal suficien- simplificada, ao subestimar o trânsito entre os dois.
te para se contrapor a elas. Para Naím, Por último, em um viés típico da análise dos pode-
rosos, o autor homogeneíza os atores, em especial
[...] um fator crucial – que dá aos buracos ne- os integrantes do que denomino sistema mundial
gros boa parte de sua potência – é sua capaci- não hegemônico. São todos, dos “sacoleiros” aos
dade de conexão especializada com os pontos membros de cartéis de droga, colocados no mesmo
claros. Uma região remota, primitiva e mal go- saco, imersos que estão em um universo cuja ca-
vernada – ou desgovernada – não é um buraco racterização como ilegal é tomada como natural e
negro geopolítico a não ser que possa irradiar moralmente óbvia.
ameaças a lugares distantes. As redes de comér- Na verdade, a questão dos limites entre o legal
cio que operam internacionalmente servem e o ilegal, questão à primeira vista pacífica, quando
como canais por meio dos quais tais ameaças se examinada mais de perto se revela mais complicada
movimentam de lugares remotos para o resto do que uma disputa entre honestos e desonestos,
do mundo (Idem, pp. 264-265). entre o bem e o mal, e acerca-se muito mais do pro-
blema histórico da distribuição desigual de poder
Em sua interpretação, pontos claros e buracos em um mundo econômica, política e culturalmente
negros mantêm relações e fazem parte de redes que diferenciado. Muitos dos agentes e corporações ca-
atravessam os Estados-nação. Quanto mais claro pitalistas que hoje supostamente são cumpridores
um ponto, mais atrativo será para as redes dos bu- da lei e se encontram pretensamente vulneráveis
racos negros oferecerem seus serviços e produtos, à voracidade de novos agentes econômicos ilegais,

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estão ou estiveram em uma posição onde a linha sobre as quais a sociedade está estruturada, a dinâ-
legal/ilegal tampouco é ou era respeitada (Nords- mica do seu poder político e de suas políticas eco-
trom, 2007). Qualquer visão que absolutize a rigi- nômicas, tanto quanto conjunturas econômicas e
dez e a eficiência desta linha, absolutiza, para fins percepções culturais sobre corrupção (Tullis, 1995,
ideológicos, a eficácia quase panótica, a honestida- apud Heyman e Smart, 1999, p. 5). Para enten-
de, a independência e a neutralidade totais da atua- der o que efetivamente ocorre, é preciso ir além de
ção do Estado, fato que não resiste a um escrutínio uma perspectiva negativa, baseada em um pretenso
sociológico e histórico maior. Como afirma Telles, monopólio moral da honestidade por parte de um
“o fato é que as relações incertas entre o lícito, o ile- segmento social. É preciso, no dizer de Heyman e
gal e o ilícito constituem um fenômeno transversal Smart, ir além do formalismo legal e político para
na experiência contemporânea” (2009, p. 156). reconhecer que “ilegalidade não necessariamente
Mas, nesta discussão, assim como em outras significa que as atividades são ilegítimas quando há
correlatas como, por exemplo, a da economia infor- hegemonias incompletas e práticas estatais parciais
mal, a entidade central em jogo é o Estado. São as e frequentemente comprometidas” (Idem, p. 8). A
elites estatais que têm, ao longo dos séculos, manti- análise histórica também tem demonstrado, em
do o monopólio da definição e da regulação da le- especial quando se trata dos primórdios do Esta-
galidade/ilegalidade. É efetivamente o que apontam do moderno e interventor, a forte relação entre o
trabalhos como o de Josiah Heyman e Alan Smart. Estado e redes violentas, tanto quanto o papel da
Para eles: predação na acumulação de capital (Idem, ibidem).
Ao mesmo tempo, apesar da crescente capacidade
A lei dos Estados inevitavelmente cria suas de impor a lei que acompanhou a consolidação dos
contrapartidas, zonas de ambiguidade e ilegali- Estados a partir do século XIX, “não há nenhuma
dade aberta. Submundos criminosos, piratas e razão para se supor que a capacidade do Estado de
quadrilhas, mercados negros, migrantes ilegais, impor obediência aumente sempre, ou que desafiar
contrabandistas e redes de extorsão são tópicos a lei seja um resultado temporário da ineficiência e
que causam uma certa atração sensacionalista de táticas inapropriadas da aplicação da lei” (Idem,
ou talvez desafiadora. Mas não existem sepa- p. 9). Para eles, o Estado moderno “não é feito ape-
rados do Estado, nem o Estado deles. Tendo nas de lei e ordem, mas é uma teia complexa do
se desenvolvido necessariamente conectadas, a legal e ilegal” (Idem, ibidem).
lei estatal e a sua evasão devem ser estudadas Das reflexões de Heyman e Smart destaco as
juntas [...] é interessante pesquisar as condições que apontam para a imperfeição, a incompletude e
sob as quais governos e práticas ilegais gozam o caráter processual do Estado e de sua dominação;
de algum tipo de simbiose e aquelas que resul- a inevitável geração de mercados de bens e serviços
tam em maiores ou menores graus de conflito ilegais em resposta às regulações oficiais estatais; a
(1999, p. 1). persistência de práticas ilegais e informais (como a
oferta de propinas e presentes); a atuação diferen-
A tentativa de caracterizar atividades ilegais em ciada dos agentes estatais concretos; a manipulação
termos morais ou restritos aos lucros extras que elas da legalidade, por parte de diferentes atores interna
gerariam é criticada, em especial, por Alan Smart. e externamente ao Estado; a consideração das prá-
Para ele existem diversos mecanismos centrais na ticas ilegais não como um estigma, mas como um
produção e na distribuição de bens e serviços ile- recurso utilizado por diferentes grupos em vários
gais, que incluem “a confiança interna a redes, ame- momentos, tendo em vista que a ilegalidade é uma
aças de uso de força, unir transações ilícitas a outras instância ou posição de um campo social típico do
legais, a legitimidade da transação, a importância da Estado moderno. São igualmente importantes suas
reputação para os empreendedores ilegais e sua de- conclusões sobre o caráter relacional das práticas ile-
pendência de funcionários e instituições corruptos” gais que sempre existem em um campo de relações
(Idem, p. 5). Além disso, há que incluir as formas sociais atravessado por classes sociais, pela presença

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do Estado e o acesso diferenciado a recursos sociais Entretanto, para o sistema de comércio ilícito há
e naturais. Ao mesmo tempo em que apontam para um terceiro fator crucial, marginal à dinâmica da
o entrelaçamento entre o legal e o ilegal e para a economia informal: o uso da violência. Em suma,
diversidade das práticas ilegais, afirmam que estas Souza distingue a economia informal da ilícita de
últimas não devem ser vistas como monopólio de acordo com as relações sociais diferenciadas caracte-
criminosos: “mercados ilegais, corrupção e fluxos rísticas de cada uma. Na informal, que se beneficia
não documentados de capitais são opções feitas por da omissão do Estado, prevalecem o “valor confian-
classes identificáveis, grupos regionais, grupos étni- ça” e certos princípios de reciprocidade; seus agentes
cos etc., em diferentes momentos” (Idem, p. 13). não ambicionam o domínio dos meios da violência.
Com efeito, as relações entre o legal e o ilegal Já na economia ilícita, confiança e reciprocidade
são multifacetadas e complexas, envolvendo inte- também estão presentes, mas prevalecem a violência
resses normativos, políticos e morais diversos. No ilegítima e a corrupção de agentes públicos. Aqui,
que diz respeito ao sistema mundial não hegemô- trata-se de uma violência instrumental racionaliza-
nico, sua compreensão pode ser enriquecida tam- da, “um meio que opera sob um relativo controle
bém por abordagens cujo foco se move nas frontei- nos negócios ilícitos e que coíbe certas condutas
ras entre a economia informal e a economia ilícita contraproducentes para o incremento da riqueza ilí-
(Sousa, 2004) e entre o ilícito e o ilegal (Abraham cita” (Sousa, 2004, p. 170). Para mim, então, uma
e Van Schendel, 2005). No processo de apresentar diferença fundamental entre o crime organizado
as distinções e as definições cruciais na construção global e a globalização popular refere-se à falta de
da noção de sistema mundial não hegemônico, centralidade, nesta última, da violência como fator
é preciso estabelecer uma distinção fina (a) entre regulador das atividades econômicas, em especial,
economia informal e ilícita e (b) entre o que é ile- no que diz respeito à validade dos contratos entre os
gal e ilícito. agentes econômicos.
Não é meu propósito entrar na vasta discus- Já Abraham e Van Schendel enfatizam a dife-
são sobre economia informal ou mercado informal. rença entre legal, “o que Estados consideram como
Nela encontra-se um debate com grande incidência legítimo”, e lícito, “o que as pessoas envolvidas em
sobre o que me ocupa aqui: o poder de regulação redes transnacionais consideram como legítimo”
do Estado; a consideração da legitimidade da práti- (2005, p. 4). Assim, muitos fluxos de pessoas, mer-
ca dos atores econômicos; a relação entre universos cadorias e informações são considerados ilícitos
formais e informais; o papel da confiança, das redes porque desafiam as normas das autoridades for-
sociais etc. Tampouco chamarei a globalização po- mais, mas são considerados lícitos pelas pessoas en-
pular de economia informal global, pois creio que a volvidas nas transações. Argumentam que há “uma
ênfase sobre hegemonia é mais esclarecedora das re- diferença qualitativa de escala e intenção entre as
lações em jogo. Para efeito dos meus objetivos neste atividades de quadrilhas internacionalmente orga-
artigo, é suficiente considerar a diferenciação entre nizadas e as múltiplas micropráticas que, apesar de
economia informal e economia ilícita que faz Ro- ilegais em um sentido formal, não são motivadas
sinaldo Silva de Sousa, pois permitirá deixar clara por uma lógica estrutural organizativa nem por um
a distinção central que faço entre crime organiza- propósito unificado” (Idem, ibidem).
do global e a globalização popular. Friso que o que Para analisar as linhas fluidas entre o lícito e
Souza chama de “economia informal” equivale para o ilícito no mundo de fluxos globais, Abraham e
mim, no plano global, à globalização popular. Para Van Schendel lançam mão das noções de “cadeias
Sousa o “sistema de comércio ilícito”, do qual faz de mercadorias” (trajetos percorridos pelos bens,
parte o narcotráfico, por exemplo, e a “economia da sua produção ao consumo) e de “espaços regu-
informal” compartilham duas características gerais latórios” (zonas nas quais conjuntos específicos de
para seu funcionamento: o uso da corrupção mais a normas ou regras, estatais ou sociais, são dominan-
importância do “valor confiança” e de certos prin- tes). Trata-se de uma opção interpretativa bastante
cípios de reciprocidade (Lomnitz, 1988, 1994). produtiva para pensar práticas transnacionais. Eles

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definem as “atividades criminosas transnacionais” Diante das dificuldades de encontrar soluções


como “formas de práticas sociais que intersectam universais para as contradições existentes entre o
dois ou mais espaços regulatórios e violam ao menos par legal/ilegal e o par lícito/ilícito, especialmen-
uma regra normativa ou legal” (Idem, p. 15). Como te no âmbito transnacional que atravessa as leis
se sabe, a produção, a circulação e o consumo de emolduradas pelos Estados-nação, Abraham e Van
mercadorias podem ocorrer em espaços circuns- Schendel constroem uma noção que, em última
critos ou atravessar diferentes espaços regulatórios. instância, tem sua definição determinada pelos cru-
Dessa forma, determinadas mercadorias que entram zamentos entre o lícito e o ilegal e entre o ilícito e
em determinados fluxos e atravessam certos espa- o legal: o (i)lícito. Interessam-se especialmente pelo
ços regulatórios podem se transformar de legais em cruzamento entre o lícito e o ilegal que cria um es-
ilegais ou vice-versa. Por exemplo, caixas de uísque paço onde o (i)lícito significa atividades “legalmen-
escocês podem ser produzidas e exportadas legal- te banidas mas socialmente sancionadas e protegi-
mente para um país, introduzidas e vendidas ile- das” (Idem, p. 22), como, acrescento, aquelas que
galmente em outro. A produção de folhas de coca animam a globalização popular, isto é as atividades
na Bolívia é outro exemplo interessante de como os dos “sacoleiros” e dos mercados populares de super-
sinais se transformam de acordo com espaços regu- logomarcas e gadgets globais. Em muitos contextos,
latórios diferentes. Se produzida em determinadas o “socialmente lícito” domina o “formalmente ile-
áreas do país e em quantidade específica, a folha de gal” como, exemplificam os autores, na venda, no
coca é legal e sua produção tida como legitimamen- Paquistão, de filmes indianos em DVDs. A visibili-
te direcionada ao consumo tradicional das popu- dade e o caráter rotineiro das atividades ilegais não
lações indígenas. Fora disso, sua produção é ilegal significam que o Estado deixe de reprimi-las, algo
e passa a ser suspeita de estar direcionada à cadeia que frequentemente é feito pela polícia em momen-
de mercadorias que leva ao consumidor de cocaína tos de elevado sentido de “missão cívica e pública”
(ver Sousa, 2006). A lavagem de dinheiro é vista (Idem, ibidem).
por Abraham e Van Schendel como um exemplo
de legalização nas transformações possíveis do par Uma advertência antes de prosseguir
lícito-ilícito. A conversão de drogas ilegais em di-
nheiro permite, por meio da lavagem, a movimen- Ao entrar em um universo de práticas e repre-
tação em fluxos lícitos. Para eles, “o que determina sentações sociais altamente permeado por valores
a legalidade e a ilegalidade em diferentes pontos da em que o bem e o mal são muitas vezes absolutiza-
cadeia de mercadorias é a escala regulatória especí- dos, a análise sociológica e antropológica corre o
fica em que o objeto se encontra” (2005, p. 17). Por risco de ser, em uma leitura conservadora, acusada
isso é importante identificar a “origem da autorida- de glamorizar o crime e satanizar o Estado. É claro
de regulatória” e, em consequência, “distinguir en- que, nestes contextos complexos e delicados, não
tre as origens política (legal e ilegal) e social (lícita se trata nem de uma coisa nem da outra. Reco-
e ilícita) da autoridade regulatória” (Idem, ibidem). nhecer que as linhas entre o legal e o ilegal são
Lícito/ilícito, então, dizem respeito muito mais às definidas por relações históricas de poder e pelo
percepções sociais do que à letra da lei. exercício de hegemonia não implica uma posição
relativista, onde tudo que é ilegal seja aceitável ou
Ao introduzir o conceito de legitimidade social que toda legalidade seja absurda. Neste universo,
ou licitude e contrastá-lo com legitimidade po- os dilemas da pesquisa antropológica crítica en-
lítica ou legalidade, procuramos ressaltar a na- contram-se no meio de várias tensões cujo fiel da
tureza politicamente derivada desta distinção e balança é o bom senso do pesquisador. Ao mesmo
suas bases morais-institucionais, no intuito de tempo em que não é possível absolutizar o Esta-
ajudar a desnaturalizar a Lei como a condição do e a legalidade, tampouco se pode romantizar
do sentido comum do espaço doméstico nacio- as práticas ilegais. A questão é bem resumida por
nal (Idem, p. 31). Heyman e Smart:

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Muito do que é ilegal é perigoso, e muito do referir à atividade de reprodução e venda de cópias
que é legal é razoável. Tanto a fraude financei- não-autorizadas de mercadorias valorizadas pelos
ra como a violência física devem ser proibidas, consumidores contemporâneos, especialmente as
processadas e punidas. O mero fato de que a superlogomarcas, isto é, cópias de grandes marcas
ilegalidade persista e frequentemente se entre- mundiais (Chang, 2004). A pirataria é uma ativi-
meie com o mundo legal e formal não justifica dade muito antiga e historicamente tem sido um
uma posição puramente relativista. Da mesma desafio e uma alternativa aos modos predominan-
forma, apesar de o Estado ser um instrumento tes de vida, trabalho e comércio:
de força organizada e de predação (impostos),
na medida em que incorpora elementos razoá- Apesar do grande risco da pessoa ser capturada
veis da lei, não se equipara inteiramente à força e executada pelos seus feitos, a pirataria foi uma
e à predação ilegais. Contudo, não podemos alternativa atraente a morrer de fome, tornar-
sustentar o inverso, isto é, que tudo que o Es- se um mendigo ou ladrão, ou servir, em condi-
tado formal faz é moralmente eficaz e que to- ções extenuantes, em um barco sem nenhuma
das as atividades ilegais são imorais e deveriam chance de recompensa financeira substancial
ser suprimidas. Isto não se sustenta nem no (Konstam, 2002, p. 9).
sentido empírico [...] nem no sentido moral.
Neste último caso, muitas atividades rotuladas A pirataria sempre foi um problema para os
como ilegais têm uma ampla vida legítima na poderes estabelecidos. Há registros da atividade de
sociedade (ou em grupos particulares) e, nestas piratas no Mar Mediterrâneo anteriormente à épo-
circunstâncias, a resposta estatal constitui má ca do Egito antigo (Idem, ibidem). Foi apenas quan-
legislação, incrementando a ilegalidade, in- do Roma conseguiu impor seu poder naval que as
cluindo aqui “guerras” de todos os tipos, que comunidades piratas do Mediterrâneo desaparece-
são moralmente piores do que a violação ori- ram. Mas claro que a pirataria não. Ela floresceu,
ginal. O trabalho acadêmico cuidadoso, que por exemplo, no século XVII e XVIII, a chamada
transcenda a suposição de que toda lei formal “era dourada da pirataria” (1690-1730), no Mar do
é boa e que toda ilegalidade é um “problema” Caribe, na costa atlântica da América, na costa da
a ser eliminado e, ao mesmo tempo, aponte o África Ocidental e no Oceano Índico (Idem, ibi-
balanço específico em cada caso, pode infor- dem). Há evidências de que comunidades piratas
mar as escolhas morais públicas que temos que em diferentes partes do mundo exerceram poder
fazer (1999, p. 21). econômico importante, inclusive transformando-se
em centros regionais. Thomas Gallant, por exem-
plo, considera que em vários lugares “empreende-
O sistema mundial não hegemônico dores militares, como bandidos e piratas, proveram
o tecido que articulou o interior rural a zonas eco-
Primeiramente, farei uma rápida consideração nômicas em desenvolvimento. Suas atividades faci-
histórica, quase uma digressão, para evitar um pro- litaram a penetração capitalista” (1999, p. 37). Até
blema comum quando o assunto é globalização: o presente, piratas modernos regularmente atacam
a tendência a crer de que se trata de fenômenos barcos que atravessam o mar do sul da China e as
novos que jamais aconteceram. Muitas das mer- costas da Somália.
cadorias que são vendidas no âmbito da globaliza- A existência de protossistemas mundiais não
ção popular são verdadeiros simulacros, para usar hegemônicos foi impulsionada pelo trabalho dos
a expressão de Jean Baudrillard, cópias com altos marinheiros que conectavam as terras do Novo
graus de perfeição. Na verdade, a produção de có- Mundo às da Europa, criando a circulação de ideo-
pias não autorizadas é uma atividade milenar. Alem panoramas diferentes daqueles das classes hegemô-
disso, não por acaso, a pirataria é, hoje, uma ex- nicas. Assim, ideias alternativas de sociedade, ba-
pressão comumente usada pelos poderosos para se seadas no comunismo primitivo do Novo Mundo,

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informaram várias utopias europeias séculos atrás (que muito possivelmente, na verdade com
(Linebaugh e Rediker, 2000, p. 24). Estes dois frequência, não incluem todo o globo). Este é
historiadores afirmam que quando, entre 1680 e um conceito-chave a considerar. Significa que
1760, se consolidou e se estabilizou o capitalismo quando falamos de “sistemas-mundiais” esta-
no Atlântico “o barco a vela – a máquina típica des- mos lidando com uma zona espaço/temporal
te período de globalização – combinava caracterís- que atravessa muitas unidades políticas e cul-
ticas das fábricas e da prisão. Em contraste, piratas turais, representando uma zona integrada de
construíram uma ordem social autônoma, demo- atividade e instituições que obedecem a certas
crática e multirracial no mar” (Idem, p. 328). regras sistêmicas (2006, pp. 16-17).
Como se vê, os proletários da expansão capi-
talista marítima (os marinheiros) e os agentes so- É justamente o que o sistema-mundial não he-
ciais que representavam uma ameaça aos interesses gemônico é: uma composição de várias unidades
hegemônicos estatais e privados por trás desta ex- localizadas em diferentes glocais conectados por
pansão (os piratas) estiveram historicamente en- agentes operando na globalização popular. Esta é
volvidos, em maior ou menor grau, e com maior formada por redes que operam de maneira articu-
ou menor eficácia, na construção de sistemas mun- lada e que, em geral, se encontram em diferentes
diais não hegemônicos. A antiguidade dos “pa- mercados que formam os nós do sistema mundial
drões de movimento, comércio e trocas que carac- não hegemônico. Essa articulação cria intercone-
terizam o tráfico ilícito” também é indicada por xões que dão um caráter sistêmico a este tipo de
Abraham e Van Schendel (2005, p. 5), que exem- globalização e faz com que suas redes tenham al-
plificam com transações mantidas durante séculos cance de longa distância. O sistema-mundial não-
por redes étnicas e de parentesco entre as costas hegemônico conecta muitas unidades no mundo
do Golfo Pérsico e Gujarat, na Índia. Tais situa- por meio de fluxos de informação, pessoas, merca-
ções mostram a complexidade das interconexões dorias e capital.
mantidas por diferentes populações ao longo do Se chamo este sistema de não hegemônico é
tempo, interconexões fundamentais para a criação porque existe um sistema hegemônico. 2 Na ver-
do sistema mundial. dade, os dois sistemas podem ser definidos pelas
Na antropologia, o livro clássico Europe and relações que mantêm entre si e guardam analogias
the people without history, de Eric Wolf (1982), é o com o que Naím (2005) chamou de buracos ne-
relato mais denso sobre os processos históricos de gros e pontos claros. O sistema hegemônico reflete
interconexões que criaram o sistema mundial. Mas, a lógica institucional e operativa dos detentores de
a noção de sistema mundial está associada direta- poder tanto no que diz respeito ao Estado como
mente ao livro de Immanuel Wallerstein publicado ao capital privado. Nas últimas décadas, o sistema-
originalmente em 1974: O moderno sistema-mun- mundial hegemônico tem sido dominado pelos in-
dial: agricultura capitalista e as origens da economia- teresses da globalização capitalista neoliberal. No
mundo européia no século XVI. Aqui, o uso que faço sistema hegemônico, que guarda relações íntimas
da noção de sistema-mundial é seletivo. Não está com o poder estatal, os agentes econômicos conse-
tão próximo à discussão sobre centro, periferia e guem gerar e manter a aparência para a sociedade
semiperiferia, importantes elementos da concepção como um todo de que detêm o monopólio da le-
wallersteiniana tomados de empréstimo da discus- gitimidade e legalidade das transações econômicas,
são sobre dependência. Do conceito de sistema- mesmo quando envolvidos ou surpreendidos em
mundial interessam-me muito mais os seguintes atividades ilegais. Um bom exemplo é o que acon-
aspectos destacados por Wallerstein: tece nos portos. Nos mais organizados e operacio-
nalmente capazes, apenas 5% da carga de contê-
[...] não estamos falando de sistemas, econo- ineres é efetivamente inspecionada (Nordstrom,
mias, impérios do mundo (todo), mas de siste- 2007). A imensa maioria do contrabando é, assim,
mas, economias, impérios que são um mundo realizada pelas corporações:

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A globalização popular e o sistema mundial não hegemônico  29

A mídia e a cultura popular apontam obscu- midal. Para esses agentes sociais, o sistema mundial
ras organizações criminosas como os principais não hegemônico é um modo de vida e de conseguir
contrabandistas, mas, de fato, empresas legí- mobilidade social ascendente. Networking e inter-
timas e as corporações multinacionais são os mediações cimentam esta estrutura piramidal de
principais transgressores. Subfaturamento e fa- forma comparável ao que chamei de consorciação,
zer declarações falsas sobre as mercadorias em- um processo típico das articulações entre agentes
barcadas são ações básicas nesse negócio (Idem, transnacionais, nacionais, regionais e locais ao redor
pp. 119-120). de grandes projetos de infra-estrutura multibilioná-
rios (Ribeiro 1991; 2008). As atividades na base da
Já o sistema mundial não hegemônico nos leva pirâmide são o que chamo de verdadeira globaliza-
a outros raciocínios e pode ser definido de maneira ção de baixo para cima. Proveem acesso a fluxos de
análoga à minha interpretação sobre a globalização riquezas globais que de outra forma nunca chega-
econômica não-hegemônica (Ribeiro, 2006), uma riam aos segmentos mais vulneráveis de qualquer
categoria similar à de sistema mundial não hege- sociedade ou economia. Elas abrem um caminho
mônico, mas na qual a sistematicidade da globali- para a mobilidade ascendente ou a possibilidade de
zação popular não é o foco da questão. Denomino sobrevivência em economias nacionais e globais que
este sistema de não hegemônico e não de anti-he- não são capazes de prover pleno emprego a todos
gemônico, porque seus agentes não intencionam cidadãos. Estou interessado neste segmento do sis-
destruir o capitalismo global ou instalar algum tema não hegemônico e não nos seus escalões su-
tipo de alternativa radical à ordem prevalecente. É periores. De qualquer maneira, é necessário reiterar
não hegemônico porque suas atividades desafiam uma distinção crucial para a compreensão do siste-
o establishment econômico em todas as partes, nos ma mundial não hegemônico, aquela entre crime
níveis locais, regionais, nacionais, internacionais e organizado global e globalização popular.
transnacionais. Consequentemente, seus agentes O sistema mundial não hegemônico é formado
são retratados como uma ameaça ao establishment por dois tipos básicos de processos de globalização,
e sentem o poder das elites políticas e econômicas cujas fronteiras não são necessariamente nítidas
que querem controlá-los. São reveladoras as atitu- nem rígidas (ver discussão conceitual anterior, na
des que os Estados e as corporações têm com rela- segunda seção deste artigo). O primeiro é formado
ção a práticas do sistema não hegemônico. A maior pela economia ilegal global, aquela que envolve as
parte do tempo tais atividades são tratadas como atividades do crime organizado global. O segundo
assunto de polícia, sendo objeto de ação repressiva é formado pela economia (i)lícita global, aquela que
elaborada. O sistema mundial não hegemônico é envolve as atividades do que chamo de globaliza-
um universo enorme que envolve, sim, atividades ção popular e que são frequentemente considera-
ilegais, tais quais tráficos de pessoas e de órgãos, das ilegais pelo Estado e lícitas pela sociedade. Na
que precisam ser reprimidas. De toda forma, tra- verdade, são processos que podem se entrelaçar,
balhadores, como camelôs, cujo “crime” é trabalhar retroalimentar e manter relações hierárquicas. Por
fora dos parâmetros definidos pelo Estado, são uma exemplo, ainda que a atividade de globalização po-
parte expressiva da globalização não hegemônica. pular seja, do ponto de vista do Estado, caracteriza-
O sistema mundial não hegemônico está for- da como contrabando, é bastante diferente se con-
mado por diversos tipos de segmentos e redes que se sideramos o chamado “contrabando formiga” na
estruturam como uma pirâmide. No topo há esque- fronteira Argentina/Paraguai (Schiavoni, 1993) ou
mas de lavagem de dinheiro, atividades mafiosas, grandes esquemas de contrabando controlados por
todo tipo de corrupção. Não importa quão pode- quadrilhas organizadas. Assim, aquilo que em geral
rosos e elitistas sejam muitos dos agentes envolvidos é indistinto do ponto de vista do Estado, do meu
no sistema não-hegemônico, eles não podem atuar ponto de vista pode ser parte da economia (i)lícita
sozinhos. Há envolvimento maciço de pessoas po- global (da globalização popular) ou da economia
bres nos segmentos mais baixos dessa estrutura pira- ilegal global (do crime organizado).

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A importância das redes sociais no funcio- Dessa forma, o sistema está formado por uma
namento desse universo é destacada na literatu- rede intricada de nós, que são pontos de interco-
ra. Heyman e Smart formularam uma definição nexão entre vendedores e compradores. Tais nós
de “rede ilegal” útil para pensar a economia ilegal variam em tamanho e importância para a repro-
global. Trata-se, para eles, de uma “teia ordenada de dução do sistema, podendo ser desde pequenos
pessoas centradas em uma atividade ilegal”, redes aglomerados de barracas de camelôs destinados
que implicam, mas não necessariamente reque- a atender as necessidades de consumidores finais,
rem, “um mundo social alternativo ao Estado for- até megacentros, em grande medida destinados a
mal e legal”. Tais redes são vitais para as práticas intermediários, cuja influência econômica tem al-
ilegais dadas suas características de relações base- cance internacional, como os localizados em Du-
adas em mutualidade, confiança e trocas (1999, bai, nos Emirados Árabes Unidos, abastecendo di-
p. 17). Na minha perspectiva, as redes sociais ile- versos países europeus (Tarrius, 2007, apud Telles,
gais realizam suas práticas ilegais internamente a 2009), ou no “espaço social transfronteiriço” de
uma estrutura hierárquica em que prevalecem a Foz do Iguaçu – Brasil/Ciudad del Este – Para-
conspiração e o planejamento centralizado, assim guai (Rabossi, 2004; Machado, 2005, 2009).3 Há
como o uso da violência ilegítima. Se trocarmos também megacentros de alcance nacional, como a
o adjetivo “ilegais” por (i)lícitos, poderemos bus- Rua 25 de Março, em São Paulo (Schaden, 2005;
car, analogicamente, uma definição para pensar a Nascimento, 2006), e Tepito, na Cidade do Mé-
economia (i)lícita global. Assim, na globalização xico, que servem agentes da globalização popular
popular, operam as redes sociais (i)lícitas de forma operando em um raio que pode alcançar alguns
descentralizada, horizontal e baseadas em valores milhares de quilômetros e cruzar países. Tepito,
de confiança. As redes sociais (i)lícitas realizam suas por exemplo, el tianguis global (tianguis significa
práticas (i)lícitas sobre ou a partir de sistemas in- camelódromo em nahuatl, língua indígena ain-
formais previamente construídos por diásporas, da largamente falada no México) liga, via redes
redes migratórias ou formas típicas da economia migratórias, a Cidade do México a Los Angeles,
popular (feiras e seus sistemas de mercados asso- nos Estados Unidos (Alarcón, 2008). Há ainda
ciados, por exemplo). importantes centros de atuação regional ou local
Por outro lado, Naím chama a atenção para o como, na Colômbia, os San Andresitos (em alu-
caráter simultaneamente global e local das redes en- são à ilha caribenha e porto livre de San Andrés);
volvidas no que chamo de sistema mundial não he- no Brasil, as Feiras do Paraguai em Caruaru (Lyra,
gemônico e para a habilidade que têm de explorar,
com rapidez, sua mobilidade internacional, o que
em muito potencializa sua capacidade de escapar
ao controle dos Estados nacionais (2005, p. 34).
Além disso, é preciso enfatizar a flexibilidade dessas
redes. Como todas as redes sociais, as ilegais/(i)líci-
tas podem se unir e desfazer de acordo com as cir-
cunstâncias e seus interesses. Podem se desfazer, por
exemplo, quando uma atividade ilegal não é mais
necessária ou proveitosa. Grandes redes ou articu-
lações extensas de redes não são estritamente ne-
cessárias para realizar conexões de longa distância,
ou até globais. De fato, as mercadorias que fluem
internamente ao sistema mundial não hegemônico
podem mudar de mãos várias vezes, atravessando
vários espaços regulatórios, até chegarem aos con- Superlogomarcas em Tepito (Cidade do
sumidores finais. México) Foto: Gustavo Lins Ribeiro

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A globalização popular e o sistema mundial não hegemônico  31

gerando um efeito de longo alcance. Os mercados


podem tanto ser pontos de articulação dessas re-
des como o lócus de articulação entre as atividades
da economia ilegal global e as da economia (i)líci-
ta global. Ciudad del Este, dada a sua magnitude,
é um exemplo claro disso, com a sua associação a
enormes e poderosos esquemas de lavagens de di-
nheiro e a presença de milhares de “sacoleiros”. A
Rua 25 de Março em São Paulo, também, dada a
sua dimensão (ainda que menor que Ciudad del
Este) é um ótimo exemplo de um mercado, um nó
do sistema mundial não hegemônico, que mostra
a presença de grandes atravessadores e miríades de
Relógios no Mercado da Seda (Xiu Shui) em Pequim. redes de “sacoleiros”. Cabe reforçar que há uma
Foto: Gustavo Lins Ribeiro. diferenciação interna neste universo, apresentan-
do-se sob a forma de uma estrutura piramidal es-
2005) e em Brasília (Souza, 2000; Figueiredo, tabelecida internamente às redes de transações en-
2001), a área do centro do Rio de Janeiro conhe- tre grandes e pequenos fornecedores, por exemplo.
cida como Saara, ou o Shopping Oiapoque, em Internamente a tal estrutura pode haver agentes e
Belo Horizonte (Vilas Bôas, 2009). Não podemos redes sociais envolvidos em diferentes momentos
deixar de incluir China Town, em Nova York, e o e aspectos de atividades econômicas lícitas, (i)líci-
famoso Mercado da Seda (Xiu Shui), em Pequim. tas e ilegais. Nada impede que se passe do sistema
O exemplo de Caruaru é particularmente interes- não hegemônico para o hegemônico e vice-versa.
sante dada a centralidade que há mais de 150 anos O sistema mundial não hegemônico pode servir
a feira da cidade possui internamente a um siste- como uma maneira de realizar acumulação primi-
ma regional que alcança muitas cidades de todo tiva de capital. Como tal, pode ser útil para um
o nordeste brasileiro. Além disso, mostra como capitalista individual como uma forma de acumu-
a existência prévia de um sistema migratório po- lar, em um determinado momento de sua traje-
pular, de pernambucanos para São Paulo, provê tória econômica, ou pode ser permanentemente
uma estrutura útil para as dinâmicas da globaliza- utilizado para tal fim. Entretanto, é preciso notar
ção popular (Lyra, 2005). Mercadorias trazidas de com Chang que
Ciudad del Este ou da Rua 25 de Março alimen-
tam a Feira do Paraguai, o setor de gadgets globais [...] a proliferação de produtos contra-feitos
da Feira de Caruaru, que, por sua vez, alimenta adota quase as mesmas rotas do capitalismo
uma grande quantidade de outras feiras menores global com táticas “glocais” de manobras até
e pequenos comerciantes nordeste afora. A Feira mais flexíveis e ágeis para escapar das batidas
do Paraguai, setor da Feira de Caruaru, permite nacionais. [...] Logo(marcas) falsas estão se es-
visualizar bem como a capilaridade do sistema palhando ubiquamente em todo o mundo e
mundial não hegemônico estende-se, por meio da estão constituindo, com sucesso, um mercado
globalização popular, chegando a lugares distantes global que simultaneamente duplica a criação
e inusitados. de redes do capitalismo e o desestabiliza como
Na verdade, estes nós do sistema mundial não uma sub-versão contra-feita (2004, p. 223).
hegemônico são mercados de maior ou menor en-
vergadura. Os mercados podem fazer o papel de A globalização popular está formada por nós,
elos entre diferentes fluxos mediante a articulação os mercados populares, e fluxos, as viagens. As-
de redes com objetivos semelhantes e em comum. sim como há nós maiores, há fluxos maiores ou
Assim, várias redes pequenas em extensão acabam menores que cobrem grandes ou pequenas dis-

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tâncias. Assim, as redes sociais transnacionais que


animam os fluxos internos ao sistema mundial
não hegemônico são compostas por migrantes de
vários tipos (ver Telles, 2009, pp. 159-160). Mui-
tos são verdadeiros comerciantes nômades globais
contemporâneos. A diáspora chinesa, a maior do
mundo contemporâneo, tem um papel funda-
mental na globalização popular que nela em gran-
de medida se apoia. Não por acaso encontram-se
cada vez mais migrantes chineses, em geral canto-
neses, associados ao comércio do sistema mundial
não-hegemônico (no caso de Lisboa, ver Mapril,
2002). A Galeria Pagé, por exemplo, o edifício
mais globalizado da Rua 25 de Março, em São San Andrecito da Rua 38 em Bogotá.
Paulo, está dominada pela presença chinesa, fato Foto: Gustavo Lins Ribeiro
que reflete a crescente influência desses migrantes
neste importante nó da globalização popular. A da região da Rua 25 de Março e para o estabele-
história da Rua 25 de Março (Nascimento, 2006) cimento de vínculos e práticas comerciais interna-
é ilustrativa de certas dinâmicas centrais do siste- cionais, com a resultante transformação daquela
ma como um todo. Aquela região paulistana foi, área em espaço urbano etnicamente diferenciado.
desde o final do século XIX, caracterizada pela pre- Desde finais da década de 1950, milhares de des-
sença sírio-libanesa que, a partir dos últimos anos cendentes de árabes também tornaram-se centrais
do século XX, passou a ser deslocada pela presença para o comércio da transfronteira Ciudad del
asiática, coreana e, sobretudo, chinesa. A diáspora Este/Foz do Iguaçu (Arruda, 2007). A migração
sírio-libanesa conforma a segunda mais importan- libanesa foi igualmente crucial no estabelecimento
te rede de agentes sociais para o sistema mundial de uma rede de San Andresitos, na Colômbia. Em
não hegemônico. Costurada ao longo de muito algumas situações, como na Rua 25 de Março,
tempo e baseada em redes de parentesco e amiza- em Ciudad del Este/Foz do Iguaçu e na região do
de, afinidade religiosa e política, a diáspora sírio- Saara, no Rio de Janeiro, a migração chinesa vem
libanesa foi relevante para a internacionalização deslocando a libanesa, gerando novas segmentações
étnicas e, potencialmente, novos conflitos interét-
nicos (Cunha, 2005). Em outras situações, como
nas Feiras do Paraguai em Brasília (Rocha, 2007)
e Caruaru, ou em Tepito (Alarcón, 2008), na Ci-
dade do México, também se nota uma crescente
presença chinesa. De fato, a globalização popular
pode ter se transformado no maior propulsor do
crescimento da migração chinesa no Brasil e em
outros países, como Argentina e México. Diáspo-
ras da envergadura da chinesa e da libanesa prove-
em uma base altamente orgânica para o desenvol-
vimento de atividades transnacionais, já que redes
migratórias podem propiciar confiança e previsi-
bilidade, como está implícito na noção chinesa de
guanxi, em um universo onde é baixa a capacidade
Galeria Pagé: o edifício globalizado da Rua 25 de Março de implementação da lei (ver Machado, 2009; Sil-
(São Paulo). Foto: Gustavo Lins Ribeiro va, 2008, 2009).

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A globalização popular e o sistema mundial não hegemônico  33

Algumas considerações sobre a esfera da produção zhen, Hong Kong e Guangzhou (Cantão) confor-
mam, provavelmente, a maior zona de produção de
Os trabalhos sobre aspectos específicos do mercadorias do sistema mundial não hegemônico,
sistema mundial não hegemônico concentram-se o começo de uma cadeia de mercadorias na qual os
fortemente na circulação de pessoas e mercadorias lucros se acumulam fantasticamente.
(ver, por exemplo, Machado, 2005, 2009; Nasci- Guangdong tem sido historicamente uma gran-
mento, 2006; Konstantinov, 1996; MacGaffey e de porta para o comércio com o mundo e para a
Bazenguissa-Ganga, 2000). O fato de, internamen- emigração formadora da diáspora chinesa. A im-
te a este universo, os mercados se destacarem expli- portância de Guangdong e de sua capital, Cantão,
ca-se por suas características de espaços públicos; como meio de contato com o Ocidente, levou os
neles é possível fazer pesquisa de campo. Falar desse portugueses a colonizarem Macau de 1557 a 1999.
sistema considerando também as unidades produti- Em 1841, também na foz do rio das Pérolas, os in-
vas que o compõem implica uma tarefa etnográfica gleses fundariam Hong Kong, um entreposto do
muito mais árdua. As fábricas não são exatamente império britânico. A soberania chinesa sobre Hong
espaços públicos. Ao contrário, como já indicava Kong seria devolvida em 1997. Hoje, Macau e
Marx (1977), os capitalistas fazem questão de dei- Hong Kong são Regiões Administrativas Especiais
xar fora do alcance dos olhos as transformações que da República Popular da China, de acordo com o
lá ocorrem. Isso é mais intenso quando se trata das modelo “um país, dois sistemas”. Mais importante
unidades de produção vinculadas à economia (i)lí- ainda para a compreensão desta área como centro
cita global. do sistema mundial não-hegemônico foi o fabuloso
Se fôssemos começar por onde as mercadorias desenvolvimento, na China Continental, de Shen-
são produzidas, centros fundamentais do sistema zhen que, em 1980, se tornou a primeira Zona Eco-
encontram-se na Ásia, em lugares como Taiwan, nômica Especial. Localizada há poucos quilômetros
Coréia do Sul, Singapura, Malásia e, em especial, de Hong Kong, na região econômica mais dinâmica
China. O fato de diferentes áreas da Ásia terem se da China, o delta do Rio das Pérolas, Shenzhen é
tornado o centro da produção das mercadorias do o coração do sistema produtivo das mercadorias da
sistema mundial não hegemônico relaciona-se, em globalização popular.
grande medida, com o poder da economia do Ja- Hong Kong e Shenzhen desenvolvem diferentes
pão, um dos maiores mercados de artigos de luxo. relações complementares. A ex-colônia britânica é
Taiwan, Coréia do Sul e Hong Kong, por exemplo, uma grande porta de entrada para os “sacoleiros” de
foram grandes centros produtores de mercadorias todo o mundo que, cada vez mais, adentram o ter-
falsas para o Japão. Entretanto, a China logo se ritório da China continental e vão a Shenzhen por-
tornou a principal fornecedora de produtos falsos tando vistos de um dia, adquiridos em Hong Kong,
para todo o mundo: “hoje, mesmo em Taiwan pro- para fazer suas compras em shopping centers como
dutos Louis Vuitton falsificados são ‘importados’ o de Luohu. Muitos destes “turistas-compradores”,
principalmente da China” (Chang, 2004, p. 230). uma designação simplificada dos praticantes do
Assim, este país não é apenas a menina dos olhos comércio de longa distância típico da globalização
da globalização hegemônica (ver, por exemplo, Gu- popular, podem fazer suas compras no que talvez
thrie, 2006), é também o centro da globalização seja o edifício mais globalizado do sistema mundial
não-hegemônica, da globalização popular. De fato, não hegemônico, Chungking Mansions, em Hong
qualquer pesquisa sobre a produção de bugigangas Kong (Mathews, 2008). Construído na década de
globais e de produtos “piratas” certamente teria 1960, são cinco blocos de 17 andares. Seus dois
que privilegiar a província de Guangdong, no sul primeiros andares são formados por lojinhas para
da China, onde o boom econômico das últimas dé- compradores de mais de cem nacionalidades, o
cadas tem se expressado também em uma enorme restante do edifício são restaurantes e pensões que
produção de produtos para os mercados da globa- abrigam “sacoleiros” provenientes especialmente da
lização popular.4 As cidades de Dongguan, Shen- Ásia, do Oriente Médio e da África.

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34  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 25 N° 74

superlogomarcas e na presente capacidade de reali-


zar cópias tão perfeitas que se torna cada vez mais
difícil ou irrelevante identificar as diferenças entre
produtos falsificados e seus originais.
Em grande medida, os produtos “piratas” ba-
seiam sua enorme rentabilidade na produção de
cópias do que Hsiao-hung Chang (2004) chamou
de superlogomarcas para designar o conjunto de
marcas celebradas internacionalmente e que se tor-
naram símbolos globais de status privilegiado (Louis
Vuitton, Fendi, Victor Hugo, Armani, Dior, Gucci,
Nike, Adidas, Rolex, Ray-Ban, Sony e muitas ou-
tras). A superlogomarca está ancorada em um exce-
Chungking Mansions - o edifício mais globalizado do dente de valor excepcional, amplamente baseado em
sistema mundial não hegemônico (Hong Kong). seu valor simbólico, naquilo que representa como
Foto: Gustavo Lins Ribeiro símbolo de status para os consumidores. Este delta é
acrescentado a uma mercadoria pela manutenção do
Estas áreas da China têm uma história de pro- monopólio encarnado na propriedade da superlogo-
dução de cópias que começa ao menos no século marca. Manter, manipular e administrar superlo-
XIX (Machado, 2009). Copiavam-se bens ociden- gomarcas é um modo, praticado por grandes corpo-
tais para venda interna na China e, inversamente, rações, de possuir nichos exclusivos no mercado de
bens chineses para venda no Ocidente. No que diz símbolos globais de status e, em última instância, de
respeito à produção de mercadorias para o sistema incrementar enormemente seus rendimentos. Esses
mundial não-hegemônico, Chang chega a falar de nichos são estratégicos para a acumulação das firmas
“indústria global de contrafações” (2004, p. 224). A capitalistas. Assim, a pirataria significa uma ameaça a
(re)produção de cópias de superlogomarcas “ainda um dos núcleos duros da reprodução do capitalismo,
segue o modo tradicional de produção de mercado- qual seja, a detenção de direitos de propriedade sobre
rias, baseado na divisão e na exploração globais do determinadas mercadorias, uma vez que tais direitos
trabalho, no sistema de produção de fábrica e, mais permitem, justamente, a manutenção dos nichos.
especificamente, no agora mais do que conhecido A diferença entre o valor real do objeto especí-
sistema de terceirização pelo mundo afora” (Idem, fico e seu extraordinário valor simbólico excedente
p. 204). Na América do Sul, o Paraguai é um cen- é o que impulsiona o mercado de cópias de super-
tro produtor conhecido. No Brasil, há fabriquetas logomarcas, sempre vendidas, claro, a preços muito
de cópias de marcas famosas de tênis em Minas Ge- menores do que os “originais”. Além do não paga-
rais, por exemplo (Santos, 2008). mento de impostos, típico das economias informais,
o preço baixo das cópias vem de uma combinação
de fatores, entre os quais destaco a superexploração
Por que existe a globalização popular? de uma força de trabalho precarizada (em Shenzhen,
Originais e cópias por exemplo, são migrantes, em geral, recentemente
proletarizados, ver Machado, 2009); a não remune-
Mais além dos elementos já amplamente dis- ração de uma série de fatores que entram na compo-
cutidos na literatura sobre economia informal – sição do preço do bem de luxo, como, por exemplo,
como o não-pagamento de impostos, a ausência na indústria da alta moda, desfiles, revistas, publici-
de mecanismos de responsabilização nas transações dade e lojas sofisticadas; o uso do mercado formal
comerciais e de prestações de serviços, a vulnerabi- como campo de provas, isto é, fazer cópias apenas
lidade dos trabalhadores envolvidos – a globaliza- dos modelos de uma superlogomarca de maior su-
ção popular se apoia fortemente na existência de cesso de vendas.

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A globalização popular e o sistema mundial não hegemônico  35

As superlogomarcas, originais ou cópias, de- As cópias de superlogomarcas de roupas, sapa-


sempenham papel central na economia simbólica tos e acessórios estão perdendo o seu lugar de prin-
do luxo, numa época em que a distinção de status cipal fonte de lucros da indústria de produtos falsos
se confunde com a capacidade de possuir determi- para DVDs e programas pirateados. Isto é coerente
nados objetos e manipular imagens que conferem com a hegemonia do capitalismo eletrônico-infor-
aos consumidores identidades sociais diferenciadas mático e com sua flexibilidade interna, em especial
(Lima, 2008; Santos, 2008). As cópias permitem com sua capacidade de reprodução de cópias per-
manipulação consciente, por parte dos consumi- feitas, de simulacros. É cada vez mais simples co-
dores, dos jogos sociais baseados na distinção, que piar músicas, filmes, imagens, textos e outros ma-
são formas de criar, manter e reproduzir status. Em teriais protegidos por copyright, da internet ou de
última instância, isso significa formas de manipular outras fontes de tecnologia digital. As modificações
impressões nas interações sociais com fins muito introduzidas por novas tecnologias de reprodução
diversos, mas que acabam redundando em busca nos últimos anos são rapidamente apropriadas, não
de poder pessoal em uma sociedade individualista apenas por adolescentes no recesso de suas casas,
e consumista. mas por pessoas interessadas em fazer dinheiro em
A indústria de cópias engatilha uma disputa ruas e mercados do sistema mundial não hegemô-
pelo controle do extraordinário valor agregado pela nico. O sistema normativo que procura regular a
superlogomarca às mercadorias. Entretanto, o im- propriedade intelectual das superlogomarcas glo-
pacto da cópia sobre a indústria de bens autênticos bais e, em especial, de bens culturais capazes de ser
não é necessariamente negativo. Mario de Andra- reproduzidos eletronicamente, vai na contramão da
de já dizia que a cópia valoriza o original. De fato, inovação tecnológica contemporânea que permite
quanto maior o número de cópias, mais valorizado uma grande potencialização de indivíduos, redes, e
será o original, em especial, para um segmento cada de sua capacidade de fazer cópias. Ao não dar con-
vez mais restrito de connaisseurs, capazes de aferir ta das novas dinâmicas e das múltiplas e inventivas
autenticidade a objetos/símbolos verdadeiramente apropriações que constantemente são realizadas por
originais e, assim, portadores dos significados de milhões de pessoas em todo o mundo, o sistema
distinção social mais desejados. Na realidade, as normativo atual prefere criminalizar e estigmatizar
cópias subdividem-se em diferentes categorias. As tal universo. Assim, transformou-se em um empe-
de terceira linha são imitações burdas, com erros cilho para a liberação de uma gigantesca energia
grosseiros como a grafia errada da superlogomar- empreendedora e criativa localizada em diferen-
ca. As de segunda linha já são réplicas bastante ra- tes partes do globo e que termina por se realizar
zoáveis, enquanto as de primeira linha podem ser nas operações que, com frequência, ocorrem sob o
verdadeiros simulacros, cuja falsidade às vezes só é guarda-chuva do sistema mundial não hegemôni-
detectada por especialistas. O preço dos produtos co. Na prática, a “pirataria” revela o valor exceden-
vária de acordo com a qualidade da cópia. Corre a te absurdo que é agregado à mercadoria pela pro-
lenda que, em Shenzhen, existem fábricas que pro- priedade da superlogomarca. Como o capitalismo
duzem bens originais durante o dia e falsificados é baseado na apropriação socialmente sancionada
durante a noite. Neste caso, não haveria diferença de excedentes, ao denunciar este excedente extraor-
entre o original e a cópia a não ser a superlogomar- dinário, a “pirataria” tem um potencial subversivo
ca aderida ao primeiro. A crescente qualidade das que, como vimos, atinge um dos núcleos duros do
cópias bem pode ser o que atraiu consumidores de capitalismo, ao mesmo tempo em que se imbrica
classe média e classe média alta a fazer compras em contraditoriamente com ele, uma vez que se casa
nós do sistema mundial não hegemônico como o com as próprias necessidades de consumo, de (re)
Shopping Oiapoque, em Belo Horizonte, e a Feira produção de identidades sociais e da distinção sob a
do Paraguai, em Brasília. De qualquer modo, este é égide do capitalismo eletrônico-informático.
um mercado atravessado pela dinâmica da moda, o O impulso estrutural dado pelas tecnologias
que o torna certamente mais volátil e caprichoso. contemporâneas de reprodução e pelo aumento da

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capacidade de se comunicar e viajar para distintos competindo entre si, já que “Estados vizinhos fre-
lugares leva a crer que a globalização popular pros- quentemente têm pontos de vista diferentes sobre a
seguirá consolidando-se e estreitando, heterodo- lei e a licitude”. Eles exemplificam com as fronteiras
xamente, os elos entre os diversos nós do sistema entre Índia, Bangladesh, China e Miamar e mencio-
nam os cassinos e as compras através de fronteiras
mundial não hegemônico.
como ocorrências comuns.
4 Boa parte do que segue baseia-se em Machado
(2009).
Notas

1 Há anos, com estudantes da Universidade de Bra-


sília, pesquisamos o que chamo de “outras globali- Bibliografia
zações políticas e econômicas”, formas de globaliza-
ção de baixo para cima (Ribeiro, 2006, 2006a, 2007, Abraham, Itty & Schendel, Willem Van
2009, 2009a, 2009b). Neste artigo, interessam-me (2005), “Introduction: the making of illicit-
apenas as “outras globalizações econômicas”. Muitas ness”, in Schendel e Abraham (orgs.), Illicit flo-
das informações aqui presentes relacionam-se com os ws and criminal things, Bloomington, Indiana
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University Press, pp. 1-37.
Nascimento (2006); Rocha (2007); Santos (2008);
Lima (2008).
Alarcón, Sandra. (2008), El tianguis global. Ci-
dade do México, Universidad Iberoamericana.
2 Esta definição funde dois conceitos de economia po-
lítica marxista. O primeiro, sistema mundial, ao qual
Arruda, Aline Maria Thomé. (2007), A presen-
já me referi, e o segundo, de hegemonia, de inspiração ça libanesa em Foz do Iguaçu (Brasil) e Ciudad
gramsciana. Por hegemonia, entendo o exercício na- del Este (Paraguai). Dissertação de mestrado,
turalizado e silencioso do poder, a naturalização, pelos Centro de Pesquisas e Pós-Graduação sobre as
diferentes grupos e classes sociais que formam uma Américas, Universidade de Brasília.
sociedade, das formas socialmente apropriadas de re- Chang, Hsiao-hung. (2004), “Fake logos, fake
produção da vida social. theory, fake globalization”. Inter-Asia Cultural
3 A noção de espaço social transfronteiriço (Jimenez Studies, 5 (2): 222-236.
Marcano, 1996) permite entender as relações sociais, Cunha, Neiva Vieira da. (2005), “Libaneses &
culturais, políticas e de parentesco que os agentes chineses: sucessão, conflito e disputa numa rua
sociais desenvolvem em áreas fronteiriças, onde a de comércio do Rio de Janeiro”. Trabalho apre-
fronteira opera como um aparato taxonômico com-
sentado na VI Reunião de Antropologia do
plexo e bastante flexível. Muita da flexibilidade que
Mercosul, Montevidéu, 16 a 18 de novembro
os agentes sociais experimentam em zonas fronteiri-
ças se deve à ineficiência dos agentes do Estado ou à de 2005.
sua conivência com outros agentes sociais que ope- Figueiredo, Breno Einstein. (2001), “De fei-
ram internamente ao espaço transfronteiriço. Uma rantes da feira do Paraguai a micro-empre-
vez que os espaços sociais transfronteiriços colocam sários”. Trabalho de conclusão de curso de
em xeque a lógica classificatória do Estado-nação, os graduação. Departamento de Antropologia,
maiores dentre eles são, em geral, universos transna- Universidade de Brasília.
cionais propensos a ser territórios globais fragmenta- Gallant, Thomas W. (1999), “Brigandage, pi-
dos, conectados aos circuitos globais de pessoas, bens racy, capitalism, and state-formation: trans-
e informação. As fronteiras são frequentemente reco-
national crime from a historical world-system
nhecidas como lugares onde os limites do poder do
perspective”. In: Josiah McC. Heyman (org.),
Estado são postos em xeque por agentes da globaliza-
ção popular (Abraham e Van Schendel, 2005, p. 14; States and illegal practices. Oxford/Nova York,
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típico para o desenvolvimento do (i)lícito, fato fa- ras populares en el capitalismo. México, Nueva
vorecido pela “interseção de múltiplas autoridades” Imagen.

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A globalização popular ECONOMIC GLOBALIZATION La mondialisation


e o sistema mundial não FROM BELOW THE NON- populaire et le systÈme
hegemônico HEGEMONIC WORLD SYSTEM mondial non hÉgÉmonique

Gustavo Lins Ribeiro Gustavo Lins Ribeiro Gustavo Lins Ribeiro

Palavras-chave: Transnacionalismo; Pira- Keywords: Transnationalism; Piracy; Mots-clés: Transnationalisme; Piratage,


taria; Falsificações; Contrabando. Counterfeits; Smuggling. Falsifications; Contrebande.

Existe uma globalização econômica não- There is an economic non-hegemonic Il existe une mondialisation économique
hegemônica formada por mercados po- globalization made up of street markets non hégémonique formée par les mar-
pulares e fluxos de comércio animados, and trading flows that are animated by chés populaires et les échanges commer-
em grande medida, por gente do povo e actors of the lower classes and not by the ciaux animés, en grande partie, par des
não por representantes das elites. Essas elites. These activities are considered as personnes ordinaires et non par des re-
atividades são consideradas ilegais, “con- illegal, as “smuggling.” The commodi- présentants des élites. Ces activités sont
trabando”, e as mercadorias, produtos pi- ties traded are often classified as piracy. considérées illégales, de la «contrebande»,
ratas. Tais redes comerciais são ilegítimas In consequence, the trading networks et les marchandises, des contrefaçons. De
do ponto de vista dos poderosos, que as are seen by the powerful as illegitimate tels réseaux commerciaux sont illégitimes
combatem em nome da legalidade. Este and are confronted with repression in du point de vue des de ceux qui détien-
artigo discute o que é legal/ilegal, lícito/ the name of legality. I thus debate what nent le pouvoir, qui les combatent au
ilícito, lançando mão da noção de (i)lí- is legal/illegal, licit/illicit and make use of nom de la légalité. Cet article aborde la
cito para dar conta das ambivalências e the notion of the (il)licit to tackle with question de ce qui est légal/illégal, licite/
das contradições neste domínio. Cunho a the ambivalences and contradictions of illicite, sans considérer la notion de (il)
noção de sistema mundial não-hegemô- this domain. I offer the notion of some licite pour comprendre les ambivalences
nico, analiticamente dividido em duas non-hegemonic world system, analyti- et les contradictions dans ce domaine. Je
esferas interconectadas: o “crime organiza- cally divided into two interconnected propose la notion de système mondial
do global” e a “globalização popular”. Por spheres: the “global organized crime” and non hégémonique, analytiquement divisé
fim, faço considerações sobre as razões da the economic globalization from below. en deux sphères interconnectés: le “crime
existência da globalização popular e a for- Lastly, I make some considerations on mondial organisé” et la “mondialisation
mação do preço de suas mercadorias. why economic globalization from below populaire”. En conclusion, je présente
exists and how the price of its commodi- mes considérations sur les raisons de
ties is made up. l’existence de la mondialisation populaire
et le prix de ses marchandises.

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