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IHU

ON-LINE
Revista do Instituto Humanitas Unisinos
Nº 464 | Ano XV
27/04/2015

ISSN 1981-8769
(impresso)
ISSN 1981-8793
(online)

Terceirização e
a acumulação
flexível
A radicalização da
flexibilidade estrutural do
mundo do trabalho

Giovanni Alves: PL 4330 - O tiro de misericórdia na


regulação do trabalho brasileiro
Graça Druck: Tentativa de burlar direitos trabalhistas
se manteve no decurso da história
Rodrigo Castelo: A salgada conta da crise econômica no bolso
dos trabalhadores

Bruno Cava: Marcus Vinicius De Matos: José Roque Junges:


Metrópole A vida humana como Uma leitura teológica a
como usina coadjuvante diante do partir de sinalizações do
biopolítica protagonismo da técnica Papa Francisco
Editorial

Terceirização e a acumulação flexível. A


radicalização da flexibilidade estrutural
do mundo do trabalho
A
aprovação do Projeto de to das ações trabalhistas com a
Lei 4330, pela Câmara aprovação do PL 4330.
dos Deputados, na se-
Ruy Braga, professor da Uni-
mana passada, que radicaliza a
versidade de São Paulo – USP,
possibilidade da terceirização do
considera que estamos diante de
trabalho inclusive na atividade-
um momento histórico de derro-
-fim das empresas e seu impacto
ta dos trabalhadores.
no mundo do trabalho é o tema
em debate na edição da IHU On- Completa esta edição um dos- A IHU On-Line é a revista do Instituto
-Line desta semana em que se siê sobre Jacques Ellul (1912- Humanitas Unisinos - IHU. Esta publi-
celebra o Dia do Trabalhador e 1994), autor de uma importante cação pode ser acessada às segundas-feiras
da Trabalhadora. obra donde destacamos o livro Le no sítio www.ihu.unisinos.br e no endereço
www.ihuonline.unisinos.br.
A radicalização da flexibiliza- Système technicien (Paris: Cal-
ção da legislação trabalhista, em mann-Levy, 1977), e que foi um A versão impressa circula às terças-feiras, a
última medida, torna possível a dos autores abordados na prepa- partir das 8 horas, na Unisinos. O conteúdo
ração para o XIV Simpósio Inter- da IHU On-Line é copyleft.
ideia da “corporação de um ho-
mem só”, afirmam pesquisadores nacional IHU Revoluções Tecno- Diretor de Redação
e pesquisadoras, de diversas áre- científicas, culturas, indivíduos Inácio Neutzling (inacio@unisinos.br)
as do conhecimento, que partici- e sociedades. A modelagem da
Jornalistas
pam da discussão. vida, do conhecimento e dos
João Vitor Santos - MTB 13.051/RS
2 Giovanni Alves, professor na
processos produtivos na tecnoci-
ência contemporânea. Marcus Vi-
(joaovs@unisinos.br)
Leslie Chaves – MTB 12415/RS
Universidade Estadual Paulista nicius De Matos, doutorando em (leslies@unisinos.br)
Júlio de Mesquita Filho – Unesp, Direito pelo Birkbeck College, Márcia Junges - MTB 9.447/RS
considera o PL 4330 o tiro de mi- na University of London, e Jorge (mjunges@unisinos.br)
Patrícia Fachin - MTB 13.062/RS
sericórdia na regulação do traba- Mialhe, professor na Unesp e na (prfachin@unisinos.br)
lho. Graça Druck, professora na Universidade Metodista de Pira- Ricardo Machado - MTB 15.598/RS
Universidade Federal da Bahia, cicaba – Unimep, descrevem a (ricardom@unisinos.br)
faz uma análise histórica das obra e o impacto do pensamento
Revisão
tentativas de enfraquecimento à de Jacques Ellul.
Carla Bigliardi
legislação trabalhista.
Podem ser lidos também os ar- Projeto Gráfico
O economista e professor da tigos de José Roque Junges, pro- Ricardo Machado
Universidade Federal do Estado fessor do PPG em Saúde Coletiva
do Rio de Janeiro Rodrigo Cas- da Unisinos, propõe uma leitura Editoração
Rafael Tarcísio Forneck
telo sustenta que o projeto de teológica dos dados do IBGE, que
austeridade econômica do Estado mostram uma diminuição do ca- Atualização diária do sítio
será pago pelos trabalhadores e tolicismo no Vale do Sinos, no Rio Inácio Neutzling, César Sanson, Patrícia
trabalhadoras. Vitor Filgueiras, Grande do Sul e no Brasil e de Fachin, Cristina Guerini, Fernanda Forner,
Bruno Cava, professor na Funda- Matheus Freitas e Nahiene Machado.
mestre em Ciência Política pela
Universidade Estadual de Campi- ção Casa de Rui Barbosa, no Rio
nas – Unicamp e auditor fiscal do de Janeiro, intitulado Metrópole
Ministério do Trabalho e Emprego como usina biopolítica O traba-
– MTE, analisa como o trabalho lho da metrópole: transforma-
escravo, no cenário brasileiro, se ções biopolíticas e a virada do
relaciona com a terceirização. comum na conjuntura brasileira Instituto Humanitas Unisinos - IHU
Av. Unisinos, 950
Ricardo Antunes, professor na A todas e a todos uma boa lei- São Leopoldo / RS
Unicamp, descreve a morfologia tura e uma excelente semana! CEP: 93022-000
do trabalho no Brasil e como a
Viva os trabalhadores e as Telefone: 51 3591 1122 | Ramal 4128
terceirização nos leva a condi-
trabalhadoras! e-mail: humanitas@unisinos.br
ções análogas à escravidão. An-
Diretor: Inácio Neutzling
dré Cremonesi, juiz do Tribunal Gerente Administrativo: Jacinto
Regional do Trabalho de São Pau- Crédito da foto de capa: Schneider (jacintos@unisinos.br)
lo, discute o inevitável aumen- Martin Teschner/Flickr Creative Commons

SÃO LEOPOLDO, 27 DE ABRIL DE 2015 | EDIÇÃO 464


Sumário
Destaques da Semana
6 Linha do Tempo
8 Destaques On-Line
9 BrunoCava: Metrópole como usina biopolítica - O trabalho da metrópole: transformações biopolíticas e
a virada do comum na conjuntura brasileira
13 Marcus Vinicius De Matos: A vida humana como coadjuvante diante do protagonismo da técnica
18 Jorge Mialhe: O tecnicismo como caminho à violência e à vingança coletiva

Tema de Capa
22 Giovanni Alves: PL 4330: o tiro de misericórdia na regulação do trabalho brasileiro
27 Graça Druck: Tentativa de burlar direitos trabalhistas se manteve no decurso da história
32 Rodrigo Castelo: A salgada conta da crise econômica no bolso e na vida dos trabalhadores e das
trabalhadoras
38 Vitor Filgueiras: Terceirização e trabalho escravo: níveis pandêmicos de precarização
43 Ricardo Antunes: O trabalho que estrutura o capital desestrutura a sociedade
3
51 André Cremonesi: Terceirização: a tendência é aumentar o número de ações trabalhistas
53 Ruy Braga: Aprovação do PL 4330 e o declínio do modelo desenvolvimentista

IHU em Revista
60 Agenda de Eventos
62 José Roque Junges: Diminuição do Catolicismo apontada por Pesquisa do IBGE: uma leitura teológica a
partir de sinalizações do Papa Francisco
65 Publicações
66 Sala de Leitura
67 Retrovisor

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IHU
ON-LINE

Destaques da
Semana
DESTAQUES DA SEMANA TEMA

Linha do Tempo
A IHU On-Line apresenta seis notícias publicadas no sítio do Instituto Humanitas
Unisinos - IHU no período de 20-04-2015 a 24-04-2015 que tiveram repercussão
nacional e internacional

A lei da terceirização A lei das Alerta do MPT-RJ:


é boa? Depende se terceirizações PL da terceirização
você é patrão ou vai passar no prejudica combate ao
funcionário Senado? trabalho escravo
A lei da terceirização é boa? O PL 4330 sofre resistência de Procuradores do Ministério Pú-
A resposta para essa pergunta Renan Calheiros, mas a bancada blico do Trabalho no Rio de Ja-
depende muito da posição no
patronal é o triplo da bancada neiro (MPT-RJ) alertam para os
mercado que você ocupa. Ela
sindical. Liderada por Eduardo impactos negativos que o Projeto
terá consequências diversas para
Cunha (PMDB), seu presidente, de Lei 4.330/2004 – que regula-
patrões e trabalhadores, e atin-
a Câmara dos Deputados empre- menta a terceirização – poderão
girá de forma diferente o setor
endeu a maior derrota ao gover- gerar no combate ao trabalho
público e o privado. De acordo
no Dilma Rousseff ao aprovar na escravo e no cumprimento das
com o texto aprovado na Câmara
noite de quarta-feira 22 os des- cotas para pessoas com defici-
6 na noite desta quarta, empresas
particulares podem terceirizar taques finais do Projeto de Lei ência. Caso aprovada, segundo
todas as atividades, tanto as 4330/04, autorizando as tercei- procuradores, a proposta repre-
atividades-meio (que são aque- rizações em toda a cadeia produ- sentará um retrocesso nas con-
las que não são inerentes ao ob- tiva de uma empresa. A proposta quistas trabalhistas.
jetivo principal da companhia), será agora apreciada pelo Sena-
A reportagem foi publicada por
quanto as atividades-fim, que do, onde deve passar por altera-
EcoDebate, com informações do
dizem respeito à sua linha de ções por pressão até do PMDB.
MPT-RJ, 22-04-2015.
atuação.
A reportagem é de Wanderley
Conforme explica a procurado-
A reportagem é de Gil Ales- Preite Sobrinho e publicada por
ra do Trabalho Guadalupe Couto,
si e publicada por El País, CartaCapital, 23-04-2015.
23-04-2015. integrante da Coordenadoria Na-
Ao contrário de Cunha, o presi- cional de Erradicação do Traba-
A advogada trabalhista e pro-
dente do Senado, Renan Calhei- lho Escravo (Conaete) do MPT,
fessora da PUC-SP Fabíola Mar-
ros (PMDB-AL), está reticente ao possibilitar a terceirização da
ques afirma que a nova lei da
com o projeto das terceiriza- atividade-fim das empresas, o PL
terceirização só é boa para o pa-
ções. “Aqui não passará”, afir- vai dificultar a responsabilização
trão, “que vai terceirizar sempre
mou Renan, convicto, na semana de grandes grupos pelo uso de
que isso lhe trouxer uma redução
de custos”. De acordo com ela, passada. Ele vem dizendo que trabalho escravo. Hoje, grandes
a medida trará economia na fo- seus correligionários, ao defen- empresas subcontratam empre-
lha de pagamento e nos encargos derem as terceirizações, traem sas menores para realizar seus
trabalhistas das empresas. o próprio partido. serviços.

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ly/1DrA1Tt ly/1boxhhX ly/1QrfreU

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DE CAPA IHU EM REVISTA

Vaticano confirma: ‘A Igreja precisa ouvir Porque a Igreja


Francisco visitará a voz do povo’, diz aceitará a
Cuba antes dos EUA novo presidente da “teoria do
em setembro CNBB gênero”

O Papa Francisco irá fazer uma O novo presidente da Confe- “A sexualidade (natureza) e o
parada em Cuba antes de sua ida gênero (cultura) não são sempre
rência Nacional dos Bispos do
necessariamente a mesma coi-
aos Estados Unidos em setembro, Brasil (CNBB), d. Sérgio da Ro- sa: se para a maioria dos seres
confirmou o Vaticano nesta quar- cha, arcebispo de Brasília, afir- humanos vale “sexo = gênero”,
ta-feira. Francisco – que recebeu mou nesta terça-feira, 21, que para outros sexo e gênero são
os créditos, tanto dos EUA quan- diversos, e isto porque o ser hu-
vai procurar ter com o governo
to de Cuba, por ajudar facilitar o mano é um fenômeno complexo
um diálogo produtivo, apresen-
começo da normalização das re- feito de um corpo biológico, de
tando proposições e sugestões,
lações entre os dois países – “de-
uma psique e de uma dimensão 7
em vez de apenas escutar. A en- espiritual, cujas relações não são
cidiu realizar uma parada à Ilha
trevista é de José Maria Mayrink, sempre lineares”, escreve Vito
antes de ir aos Estados Unidos”, Mancuso, teólogo italiano, em
publicada pelo jornal O Estado
anunciou o porta-voz vaticano artigo publicado no jornal Re-
de S. Paulo, 22-04-2015.
Federico Lombardi. ppublica, 20-05-2015. A tradução
Eis a entrevista. é de Benno Dischinger.
A reportagem é de Joshua J.
McElwee, publicada por National Segundo o teólogo italiano,
Nova presidência, nova CNBB?
“há homens que têm um corpo
Catholic Reporter, 22-04-2015.
Nós temos a continuidade da masculino e uma psique mascu-
A tradução é de Isaque Gomes
lina e são atraídos pelas mulhe-
CNBB nestes últimos quadriê-
Correa. res: há outros que têm um corpo
nios. É uma história muito bonita
Falando a jornalistas na Sala masculino e uma psique masculi-
que continua conosco. Não é que na e são atraídos pelos homens;
de Imprensa do Vaticano, Lom-
nós iniciamos uma nova etapa, há ainda outros que têm um cor-
bardi disse que detalhes da vi-
mas a CNBB deve sempre crescer po masculino e uma psique femi-
sita ainda estão sendo definidos nina de modo que interiormente
para cumprir a sua missão. Tere-
e que serão, provavelmente, pu- não se sentem homens, mas mu-
mos a tarefa que nos está sen- lheres; e os exemplos poderiam
blicados nos meses antecedentes
à viagem aos EUA. Mas o porta- do confiada pelo episcopado nas continuar” E pergunta: “Agora, a
condições que estamos vivendo questão é: como definir as pesso-
-voz acrescentou: “Sim, eu con-
hoje na Igreja e na sociedade, no as que entram nas últimas duas
firmo que haverá uma parada em
categorias? Enfermos? Pecado-
Cuba”. pontificado do papa Francisco.
res? Criminosos?”
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ly/1boy42y ly/1bozzxz ly/1Jv4HKv.

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

Destaques On-Line
Ao longo da semana, as Entrevistas Do Dia do sítio do IHU trataram do tema da
regulamentação da terceirização e da precarização do trabalho. Confira o que
também foi destaque nas Entrevistas

Mineradoras e igrejas. Uma parceria contraditória e


prejudicial às comunidades
Entrevista com Dário Bossi, padre comboniano, membro da rede Justiça nos
Trilhos e da Rede Brasileira de Justiça Ambiental.
Publicada em 20-04-2015
Disponível em http://bit.ly/1Fk1oDr
“As campanhas publicitárias das mineradoras fazem cada vez mais referência
aos valores, às culturas e explicitamente à religião, porque não conseguem mais
explicar o motivo de ritmos tão intensos e vorazes de extração e de agressão à Fonte imagem: www.ihu.unisinos.br
natureza”, diz missionário comboniano ao analisar a relação entre a Igreja e as
empresas de mineração. “As empresas mineradoras, além de tentarem mostrar que suas atividades extrativas
são sustentáveis e que seus lucros contribuem para proteger a natureza, agora estão tentando influenciar tam-
bém a sensibilidade religiosa e ética das pessoas e comunidades que podem chegar a criticar suas operações”,
8 adverte Dário Bossi, em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail.

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DE CAPA IHU EM REVISTA

ARTIGO

Metrópole como usina biopolítica


O trabalho da metrópole: transformações biopolíticas e a virada do comum na
conjuntura brasileira
Por Bruno Cava

Bruno Cava é graduado e pós-graduado em Engenharia de Infraestrutura Aero-


náutica pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica – ITA. Também é graduado em
Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ e mestre em Direito
na linha de pesquisa Teoria e Filosofia do Direito. É blogueiro do Quadrado dos
loucos e escreve em vários sites; ativista nas jornadas de 2013 e nas ocupas bra-
sileiras em 2011-2012; participa da rede Universidade Nômade e é coeditor das
revistas Lugar Comum e Global Brasil. Atualmente, é professor na Fundação Casa
de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. No último dia 13 de abril, foi conferencista no
Ciclo de Estudos Metrópoles, Políticas Públicas e Tecnologias de Governo. Terri-
tórios, governamento da vida e o comum, promovido pelo Instituto Humanitas
Unisinos – IHU.
Eis o artigo.

9
A metrópole é hoje a zona principal das confluên- no outro. Crise do socialismo, a falência do projeto
cias e dos conflitos, é o lugar em que adensam os de uma razão planificadora e esclarecida incorpora-
protestos, proliferam as ocupações, onde se dão as da historicamente no estado, ímpeto hegeliano tantas
reapropriações e a produção do espaço. Não apenas vezes repetido pelas esquerdas. Crise também da re-
as lutas em seu sentido mais premente, choque de presentação, na acepção mais abrangente do termo,
forças; como também no sentido da “reinvenção do da concatenação entre potência social e poderes insti-
cotidiano” (Michel de Certeau,1 dos pequenos gestos tuídos, da autonomia do político em que operam cada
do “habitar” (H. Lefebvre,2 microinsurgências, minús- vez com menos aceitação os governos, os partidos, os
culos e tímidos momentos de sabotagem e recriação. sindicatos e demais órgãos de estado, como também
Na metrópole, confluem todas as crises de hoje. A cri- crise da representação discursiva, do território, desde
se do capitalismo global, de recessão e austeridade o mais local até a crise geopolítica. Não seria crítica
num hemisfério, de crescimento sem desenvolvimento a aparição do Estado Islâmico no Oriente Médio, in-
classificável e tenebrosa anomalia, uma indevassável
1 Michel de Certeau (1925-1986): intelectual jesuíta francês. Foi falência da geopolítica na metrópole? Não seria pro-
ordenado na Companhia de Jesus em 1956. Em 1954 tornou-se um priamente crítica a aposta na formação de um bloco
dos fundadores da revista Christus, na qual esteve envolvido duran- alternativo que, à proeminência dos Estados Unidos,
te boa parte de sua vida. Lecionou em várias universidades, entre as põe fichas nas casas de Rússia e China, numa falsa
quais Genebra, San Diego e Paris. Escreveu diversas obras, dentre
as quais La Fable mystique: XVIème et XVIIème siècle (Paris: Gal- dialética, nostalgia infinda da Guerra Fria, porém per-
limard, 1982); Histoire et psychanalyse entre science et fiction (Pa- feitamente funcional ao capitalismo integralizado e
ris: Gallimard, 1987); La prise de parole. Et autres écrits politiques globalizado em sua face mais abertamente autoritá-
(Paris: Seuil, 1994). Em português, citamos A escrita da história (Rio
ria? Crise, sobretudo, socioambiental da metrópole:
de Janeiro: Forense Universitária, 1982) e A invenção do cotidiano
(Petrópolis: Vozes, 1998). Sobre Certeau, confira as entrevistas Michel desertos azuis da acidificação do oceano, amarelos
de Certeau ou a erotização da história, concedida por Elisabeth Rou- das obras faraônicas, brancos da camada de ozônio
dinesco, e As heterologias de Michel de Certeau, concedida por Dain nos polos, verdes dos eucaliptos.
Borges, ambas à edição 186 da IHU On-Line, de 26-06-2006, disponí-
vel em http://bit.ly/ihuon186. As mesmas entrevistas podem ser con- Nesta condição peculiaríssima em que estamos, que
feridas na edição 14 dos Cadernos IHU em Formação, intitulado Lefebvre chamaria, precisamente, de “zona crítica”,
Jesuítas. Sua identidade e sua contribuição para o mundo
moderno, disponível para download em http://bit.ly/ihuem14. surgem apreensões das crises em tom apocalíptico.
(Nota da IHU On-Line) Amuados com o real, refugiados em radicalidades
2 Henri Lefebvre (1901—1991): foi um filósofo marxista e sociólogo atoladas. Lamentando a dominação ultimada do ca-
francês. Estudou filosofia na Universidade de Paris, onde se graduou pitalismo, a pervasividade invencível de suas macro-
em 1920. (Nota da IHU On-Line)

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

estruturas — sejam elas a totalidade do espetáculo, a rós, com o que convém se relacionar bem, isto é, com
grande indústria cultural ou generalizados dispositivos a virtú. Gramsci4 falava de quando o velho já tinha
panópticos, o paradigma do campo, que sejam! — tal morrido mas o novo ainda não tinha nascido, um en-
mergulho na negatividade se identifica, pela via trans- tremeio barroco, temporalidade curiosa habitada por
versa, ao discurso do fim da história, encharcado do monstros. Estamos nessa zona intermédia, claro-escu-
inapelável triunfo das formas de dominação capitalis- ro de emergências e golpes termidores. E o monstro,
ta, doravante a tratar-se segundo as atenuantes dos como explica Barbara Szaniecki,5 pode ser “terreno de
direitos humanos, da gestão humanizada à esquerda, experimentação e de inovação — estético e político —
dos romantismos do lento, do local, do alternativo. fundamentalmente democrático”.
São teses defensivas, ou defensivamente alternativis-
Ao falar em emergência do comum, é preciso ter a
tas, que entram na contenda já com a derrota nos
consciência de que se está numa dobra de método e
lábios e as mãos atadas de utopias extemporâneas. As
práxis. Não existe propriamente um discurso sobre o
derrotas, aí, se convertem em derrotismo e dão o tom
comum que não seja — pretensamente ao menos — do
de uma geração que jamais atinge a akmé.
comum. Configura-se um campo problemático, jamais
O conceito de comum, nestas coordenadas, impli- categórico, em que a teorização sobre a práxis varia
ca a recusa de ficar na defensiva, de aguardar nas continuamente na medida em que as contingências se
sombras, de entrincheirar-se no mínimo existencial. sucedem, os atritos se distribuem, os embates aconte-
Está associado a práticas e processos que não podem cem… ou não, ou fugimos, tentamos de novo, erramos
ser reduzidos à (mera) resistência. Como se o traba- de novo. A crise pode afinal ter muitas saídas e o novo
lho dos direitos significasse se resumir à salvaguarda que emerge não é garantia de nada. Por isso mesmo
do que se tem, diante do avanço sem escrúpulos das precisa ser construído e disputado. O comum, demais,
formas do neoliberalismo, do capitalismo financeiro, está encarnado numa materialidade histórica. Não
e da reestruturação urbana e mundial que os acom- flutua pelas coisas nem se pode acomodar no céu es-
panha. Isto entrega de bandeja o desejo de mudan- trelado das ideias. A história, no caso, não é qualquer
ça, da sedução do novo, exatamente ao outro campo, história. Os poderes dominantes produzem uma his-
aquele que pretende converter a crise em economia toricidade que lhes é própria. Fazem isso mediante a
de crise, o estado em sua gestão e a vida na crise reconstrução do tempo como linha homogênea, entre
subjetivada como sofrimento psicossocial e constran- um passado fincado na origem e um presente redimido
gimento ao trabalho precário. São as várias panaceias pelos poderes que o sustentam. O futuro desse jeito
pós-históricas das cidades criativas, globais, inteligen- se escancara ao nada: já não há mais o que fazer se-
10 tes, blairianas. Mas nada temos a perder, senão nossa não a parte que cabe a você, esperar. É um tempo
própria capacidade de agir e criar. Para se contrapor, morto, inerente ao trabalho morto que constitui o ca-
entretanto, é preciso capacidade afirmativa e força pital (Marx). Sob o ponto de vista do capitalismo, ele
ofensiva. O comum, nesse sentido, implica assumir teria se originado pronto, como Minerva da cabeça de
a resistência não só como reação aos poderes, mas Zeus, com a revolução industrial: foi primeiro fabril,
como força criativa. O poder não deve ser moralizado depois da grande indústria e sociedade fordista, final-
por si e está, sempre, numa relação em que se exerce. mente se tornou capitalismo globalizado e financei-
O poder também suscita, produz, convoca, descontro- rizado, pós-fordista. História que privilegia continui-
la-se, chama resistências. A sociedade de controle de dades, cortes limpos e unidimensionais, totalidades,
que fala Gilles Deleuze3 só pode existir porque uma identidades, cada qual em seu lugar, um sentido linear
positividade de novos modos de viver e se relacionar e progressista das forças produtivas.
a precedem. Onde há biopoder, há biopolítica: pro-
A história do comum, que não existiu desde sempre,
dução de vida para fora das subjetivações impostas;
tem outra história. Tem preferência por descontinui-
surplus de trabalho vivo, para fora das capturas.
O comum está inserido na crise menos por sua ne- 4 Antonio Gramsci (1891-1937): escritor e político italiano. Com
gatividade, do que pela convergência de positividades Togliatti, criou o jornal L’Ordine Nuovo, em 1919. Secretário do Par-
tido Comunista Italiano (1924), foi preso em 1926 e só foi libertado
que se miscigenam. É o deserto que, longe de vazio, em 1937, dias antes de falecer. Nos seus Cadernos do cárcere, substi-
oculta um ecossistema complexo e nomadismos diver- tuiu o conceito da ditadura do proletariado pela “hegemonia” do pro-
sos, a altas velocidades e inesperados encontros. Tais letariado, dando ênfase à direção intelectual e moral em detrimento
excedências aceleram a crise e a disputam, para além do domínio do Estado. Sobre esse pensador, confira a edição 231 da
IHU On-Line, de 13-08-2007, intitulada Gramsci, 70 anos depois,
de sua infernal gestão. As excelências escandem do disponível para download em http://bit.ly/ihuon231. (Nota da IHU
fluxo laminar histórico um terreno possível de confli- On-Line)
to, desestabilizam os sentidos, multiplicam as dire- 5 Barbara Szaniecki: é graduada em Comunicação Visual pela École
Nationale Supérieure des Arts Décoratifs, mestre e doutora em De-
ções. Em suma, abrem o tempo cronológico ao kai-
sign pela Pontifícia Universidade Católica. Atualmente é coeditora das
revistas Lugar Comum, Global/Brasil e Multitudes. No momento, de-
3 Gilles Deleuze (1925-1995): filósofo francês. Assim como Fou- senvolve pesquisa de pós-doutorado intitulada “Tecnologias digitais e
cault, foi um dos estudiosos de Kant, mas tem em Bérgson, Nietzsche autenticidade: o estatuto da imagem fotográfica na linguagem visual
e Espinosa, poderosas interseções. Professor da Universidade de Paris contemporânea” na Escola Superior de Desenho Industrial da UERJ.
VIII, Vincennes, Deleuze atualizou ideias como as de devir, aconteci- É autora do livro Estética da Multidão. Concedeu a entrevista Mons-
mentos, singularidades, conceitos que nos impelem a transformar a tro e multidão: a estética das manifestações publicada nas Notícias
nós mesmos, incitando-nos a produzir espaços de criação e de produ- do Dia, de 15-07-2013, disponível em http://bit.ly/1DCbtHp. (Nota da
ção de acontecimentos-outros. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 27 DE ABRIL DE 2015 | EDIÇÃO 464


DE CAPA IHU EM REVISTA

dades, cortes sujos, lampejos, febres da madruga- “horizontalidade”, embora relevante para se criticar
da, fragmentos, singularidades. Reconstrói a memó- a verticalidade das formas organizativas, não pode ser
ria viva das transformações, o calor dos embates, a tornar um bem em si mesmo, como se fôssemos cons-
dureza das derrotas, os desencontros. É o ponto de truir a horizontalidade para então contemplá-la; além
vista do devir revolucionário (Deleuze): o continuum do que é preciso contornar qualquer caráter mítico à
da história se despedaça. Recompõe a história das lu- ideia de autonomia, na medida em que as formas de
tas do operariado fabril no século XIX, das revoluções vida hoje estão agudamente emaranhadas num tecido
proletárias da virada para o XX; das insurreições da de relações e interdependências.
sociedade fordista no ciclo de 1968 e nas revoltas an-
A genealogia do comum pode ser traçada, em pri-
ticoloniais; são as lutas, hoje, disseminadas pela me-
meiro lugar, no ciclo de lutas (sentido muito amplo!),
trópole. O comum aparece com a metrópole, quando
ou melhor, em dois, um ciclo longo e um curto, cuja
esta se torna a usina de geração do mundo, fabrica
memória viva se pode remontar. O ciclo longo dispara
mundi, usina biopolítica de que precisa o capitalis-
com a insurreição zapatista em 1994, hibridação en-
mo para vitalizar-se, e a resistência para superar-lhe.
Como diz Negri, da fábrica à metrópole, do operário tre guerrilha armada e midiática, política e estética,
ao trabalhador metropolitano dos serviços, do cui- indígena e devir-índio, local e global, devir-sul e pós-
dado, da saúde e da limpeza, do trabalho afetivo e colonialismo, formando um novo tecido criativo de re-
relacional, cognitivo e intelectual e cultural. Assim sistência a pautar toda a geração. O zapatismo se des-
como um dia a sociedade industrial industrializou a dobra numa sequência global de revoltas contra o ne-
agricultura, hoje o pós-industrial pós-industrializa a oliberalismo, leva à Seattle, Praga, Gênova, aos Dias
indústria e a agricultura. Os operários chão de fábrica de Ação Global, ao altermundismo e à primeira leva
não desaparecem, mas passam a ser inscritos no inte- dos Fóruns Sociais Mundiais - FSM, no Brasil e na Índia.
rior de circuitos informatizados, sistemas de automa- O ciclo curto irrompe com as revoluções árabes em
ção/gestão e grandes cadeias logísticas e financeiras. dezembro de 2010. Nada a ver com revoltas pelo pão,
A agricultura se transforma num negócio pautado pela que a tentam remeter a um caráter medieval, nem
bioengenharia, as patentes, a climatologia aplicada, com revoluções liberais contra o autoritarismo dinás-
megamodelos globais para otimizar os fluxos de pro- tico das ditaduras, que a colocam 200 anos no passado
dução, distribuição e consumo, num geopolítico “Con- europeu. Tais apreensões colonialistas contornam o
senso das Commodities” dependente de um batalhão fato que, de Túnis à Praça Tahrir,6 da Líbia ao Bahrein,
de diplomatas, empresários e intelectuais. as revoluções árabes foram lutas de novo tipo, na alta

A metrópole é a máxima condensação da produção


intensidade das redes, hibridações e positividades: 11
comum. Os ventos primaveris do Mediterrâneo leva-
de novo tipo, nas condições contemporâneas. O co- ram os esporos do norte da África ao sul da Europa,
mum é o nome dessa atividade. É essentia actuosa e onde pipocaram as 600 acampadas do movimento do
não coisa. Os bens comuns, ou commons, são somente 15 de Maio, que depois saltou o Atlântico provocando
uma concreção da atividade do comum, um momen- o Occupy Wall Street7 e milhares de ocupas pelo pla-
to estático do processo mais global de produção do neta inteiro. Depois, veio o Parque Gezi na Turquia, o
comum. Não há autonomia das expressões políticas levante da multidão de junho de 2013 no Brasil, a luta
do comum em relação à cooperação social e às re- da Maidan na Ucrânia, tantas escaramuças contra o
des colaborativas de que é composto. O político, aí, capitalismo globalizado por todo lado, até chegar na
não existe fora da expressão imediata das formas de sublevação dos guarda-chuvas em Hong Kong, 2015.
vida no interior do comum, que são necessariamente
múltiplas. O comum  é entretecido de singularidades A expressão do comum não se confunde, propria-
que cooperam entre si, ingressam em relação sem ce- mente, com a invenção de uma nova linguagem. Em-
der umas às outras o que lhes é mais singular, porque bora a linguagem seja, sem dúvida, uma dimensão
o singular é que mais ávida e vivamente produz. Nas importante da produção do comum, enquanto agen-
condições atuais de produção, qualquer tentativa de ciamento de enunciados. Mas não pode ser confun-
unificar o comum numa classe homogênea de sujeitos dido com uma ideologia, ou uma receita de fórmu-
termina por amputar a potência da composição, redu- 6 Praça Tahrir: Em português “Praça da Libertação” é a maior praça
zindo o máximo existencial que ele exprime em fór- pública no centro de Cairo, no Egito. Originalmente chamada Praça de
mulas vazias, bandeiras simbólicas, palavras de ordem Ismail, em honra a Ismail Paxá, vice-rei (quediva) do Egito no século
ou mínimos denominadores comuns. Isto não significa XIX, que comissionou o projeto arquitetônico do novo distrito central
da capital egípcia na década de 1860. Depois da Revolução Egípcia de
que o comum seja desorganizado, e somente é assim 1952, quando o Egito deixou de ser uma monarquia constitucional e
tachado sob a ótica estreita de formas de organização tornou-se uma república, a praça passou a se chamar midan al-tahrir,
que foram potentes no passado, doravante obsoletas praça da libertação. O local se tornou ainda mais notório após a Pri-
mavera Árabe. (Nota da IHU On-Line)
e perfeitamente servis às formas de dominação — que,
7 Occupy: série de protestos mundiais iniciados no dia 15 de outubro
agora, estão em décalage em relação às qualidades de 2011, a partir da ocupação de Wall Street, nos Estados Unidos, dan-
e virtudes da produção biopolítica. O comum é orga- do origem ao movimento Occupy. O movimento se espalhou por vá-
nizado, mas é uma organização de novo tipo (Hardt rias cidades do mundo, organizado por coletivos locais, organizações
de bairro ou movimentos sociais, os quais propunham alternativas
& Negri). É irremissivelmente Muitos e não Uno. O de desenvolvimento voltadas à preservação do planeta e ao consumo
conceito de “autogestão” está referenciado à reali- consciente de produtos, opondo-se à especulação financeira e à ga-
dade das oficinas e fábricas do século XIX, enquanto nância econômica. (Nota da IHU On-Line)

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

las, princípios ou procedimentos. O comum é mais do fábrica era a unidade mais produtiva daquela época,
que o que pode ser expresso pela linguagem, porque lugar e temporalidade de organização do proletariado;
ele pode ser figurado, sentido, intuído: ele é também a metrópole agora é a usina biopolítica, lugar e tem-
modos de sentir e modalidades de convivência. Está poralidade da organização da multidão. Negri aponta
no plano da troca de afetos, na relação entre corpos um deslizamento na obra de Rem Koolhaas,9 em es-
que, entre si, compõem-se de variadas maneiras. Es- pecial os livros Junkspace e Bigness. Em meio ao tea-
sencialmente potência social de compartilhamento, o tro desencantado das grandes cidades da atualidade,
comum se forma com os bons encontros que, intensi- mistura de dispersão esvaziadora e repetição de slo-
ficando-se entre si, produzem afetos. Afetos, aqui, no gans (criativa, inteligente, sustentável…), as teorias
sentido spinoziano, ou seja, associação de potências do arquiteto holandês dariam margem a uma dobra-
de existir, de viver, de fazer, que potenciam o conjun- diça, a uma virada surpreendente em meio às cidades
to sem transigir com o que nos faz únicos e diferen- “pós-existenciais” do capitalismo hoje. Um escape,
tes. Afetos, portanto, políticos, porque compõem os um vislumbre, que excede as formas dispersivas. É a
fluxos e redes de cooperação que enervam a metró- desmedida da metrópole. O corpo metropolitano es-
pole. Afetos que, uma vez cristalizados, formam há- capa da exaustão do modernismo e, ao mesmo tempo,
bitos democráticos, novos hábitos que se incorporam da atmosfera cínica da pós-modernidade. Nem otimis-
na vida comum e viram o inconsciente da metrópole. mo utópico que submete o real aos delírios da razão
De novo e de novo, num jogo de capturas e êxodos. A nem senso de impotência que nos nivela, sem apela-
densa trama de acontecimentos pequenos, menores, ção, ao biopoder. Nem mistificação racionalista nem
por vezes imperceptíveis, mas que no conjunto jorram derrotismo pós-moderno. Negri recorre ao Anti-Édipo
enorme riqueza social. O capital amolda-se, se torna (Deleuze & Guattari). As mesmas forças que precisam
cata-tudo. Porém o comum, diversamente do povo ou acelerar a produtividade urbana para sugar existên-
da nação, não pode ser capturado por uma disputa cia e girar o capital, precisam mantê-la sob controle,
de hegemonia. Nesse sentido, ele é pós-hegemonista para não serem engolidas pelos torvelinhos de excesso
(Jon Beasley-Murray).8 E não prescinde de instituições biopolítico: lutas, habitar monstruoso, reinvenção do
do comum formadas a partir de hábitos e afetos, ins- cotidiano da metrópole. A expressão social, política e
tituições novas ou que regenerem as existentes. Está cultural desse excesso tem uma natureza diferente,
longe de ser espontaneísta ou movimentista — como em relação às lutas pelo direito à cidade de outros
se fosse o absolutamente outro em relação à esfera contextos.
institucional.
A metrópole é antes desejo de autoprodução em vez
12 Toni Negri assume a metrópole como um conceito. de direito de participação; antes movimento consti-
A fábrica está para a metrópole, assim como o capita- tuinte em vez de meramente reivindicatório; antes
lismo industrial está para o capitalismo cognitivo. Se a comum biopolítico do que estado ou mercado; antes
rede transversal de singularidades do que localismo
romântico ou centralismo democrático.
8 Jon Beasley-Murray: é professor na Universidade de British Co-
lumbia, onde aborda áreas como Estudos Latino-Americanos onde
também é diretor do programa de Estudos Latino-Americanos. Pu- 9 Remment Lucas Koolhaas ou Rem Koolhaas (1944): é um ar-
blicou uma ampla literatura sobre América Latina, política e cultura, quiteto e teórico da arquitetura neerlandês. É professor de arquitetura
bem como sobre a teoria social e cultural. (Nota da IHU On-Line) e desenho urbano na Universidade Harvard. (Nota da IHU On-Line)

Referências
BEASLEY-MURRAY, Jon. Posthegemony: Political Theory HARVEY, David. Espaços de esperança. São Paulo:
and Latin America. University of Minnesota Press, 2010. Loyola, 2005.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Ar- KOOLHAAS, Rem. Junkspace. Manuels Payot,2011.
tes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2008.
___. Delirious New York. Monacelli Press, 1997.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. O anti-Édipo. São
MARX, Karl. Grundrisse. Fragmento das máquinas.
Paulo: Editora 34, 2010.
São Paulo: Boitempo, 2011.
DELEUZE, Gilles. Spinoza: filosofia prática. Perdizes:
Escuta, 2002. NEGRI, Toni; HARDT, Michael. Commonwealth. Har-
vard University Press, 2011.
LEFEBVRE, Henri. Direito à cidade. São Paulo: Cen-
tauro, 2001. NEGRI, Toni. Dalla fabbrica alla metropoli. Saggi po-
______. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora litici. Datanews, 2008.
UFMG, 1999. ______. 5 Lições sobre o Império. Rio de Janeiro:
GUEROULT, Martial. Spinoza. V. 1 [Dieu] e V. 2 DP&AEditora, 2003.
[L´Âme]. Paris: Aubier-Montaigne , 1997. SZANIECKI, Bárbara. Monstro e multidão: a estética
INDISCIPLINAR, blogue. Núcleo de estudos da UFMG/ das manifestações. Entrevista especial com Barbara
arquitetura. Szaniecki por IHU On-Line.

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DE CAPA IHU EM REVISTA

#DossiêEllul

A vida humana como coadjuvante


diante do protagonismo da técnica
Marcus Vinicius De Matos aborda a crítica de Jacques Ellul à técnica como
fim em si mesma
Por Andriolli Costa e Ricardo Machado

Para Jacques Ellul, a técnica foi o instrumentais e mais acerca de seus


conceito mais fundamental do século efeitos na produção de subjetividades.
XX. Ao pensar sobre a técnica, o teó- “Para Ellul, entretanto, esta relação
rico não a reduzia à noção instrumen- é inversa: é a técnica, aplicada como
tal do termo, mas, sim, à forma como princípio organizador da vida humana,
a sociedade se organiza em torno do que determina a organização da vida
tema. “Ele sustenta que a técnica, no social, econômica ou administrativa”,
século XX, assume as mesmas qualida- sustenta o entrevistado. “Acho que o
des e a importância daquilo que Marx Ellul explica isso dizendo que a técni-
descreveu como o capital, no século ca não persegue nenhum fim — como
anterior. Ou seja, vivemos em uma civi- justiça, por exemplo. Ela é puramente
lização que se desenvolve em torno da causal, e tem uma moral própria nos
13
técnica”, esclarece Marcus Vinicius De lançando ao que ele denomina de domí-
Matos, em entrevista por e-mail à IHU
nio da causalidade integral”, destaca.
On-Line. “E essa sociedade técnica é
uma sociedade onde o Estado vai, ine- Marcus Vinicius A. B. De Matos é dou-
vitavelmente, aumentar seu controle torando em Direito pelo Birkbeck Col-
sobre as pessoas”, complementa. lege (University of London), bolsista
CAPES de Doutorado Pleno no Exterior,
Ao pensar no âmbito da produção do
e professor substituto na School of Law
conhecimento, Marcus Vinicius De Ma-
da mesma instituição, onde leciona
tos argumenta que se houvesse uma
Legal Methods and Legal Systems. É
balança para medir o equilíbrio entre
mestre em Direito pela Universidade
as descobertas científicas e o preço
Federal do Rio de Janeiro - UFRJ e pes-
humano de sua aplicação, o primeiro
dado sempre seria o preponderante. quisador do Grupo de Pesquisas sobre
“Na sociedade técnica, todo tipo de Jacques Ellul. Desde 2010, colabora
atividade seria sujeita a essa racionali- com a realização dos Seminários Bra-
zação utilitarista. (...) A posição ‘cien- sileiros Jacques Ellul, tendo sido co-
tífica’ passaria a ser, às vezes, simples- ordenador da 4a edição do seminário,
mente negar a existência do que não realizado na Faculdade Nacional de Di-
depende de método científico — negar reito da UFRJ. Sua mais recente publi-
a existência de tudo aquilo que não cação é Direito, Técnica, Imagem: os
pode ser quantificado, ou que não é limites e os fundamentos do humano,
quantificável”, provoca. livro organizado em parceria com Jorge
Barrientos-Parra, e publicado pela Edi-
Discutir a técnica, segundo a inter-
tora Unesp, publicado em 2013.
pretação de Ellul, parece ser menos o
debate sobre seus efeitos puramente Confira a entrevista.

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

IHU On-Line - Quais são as crí-


ticas fundamentais de Jacques
Ellul ao controle estabelecido
pela sociedade tecnicista? Nesse
sentido, qual a importância da
A técnica, no século XX, assume as obra A técnica e o desafio do sé-
culo no conjunto do pensamento
mesmas qualidades e a importân- de Ellul?
cia daquilo que Marx descreveu Marcus Vinicius De Matos - Em
primeiro lugar, talvez seja impor-
como o capital, no século anterior tante explicar o que Ellul entende
como técnica. Para ele, a técnica
é o conceito mais fundamental,
IHU On-Line - Jacques Ellul pa- um campo acadêmico específico mais importante no século XX. É
rece ter despertado o interesse fica clara: ele começa sua carrei- algo que transcende a noção do
da Academia no Brasil nos últimos ra no Direito, quando produz uma tecnológico, a base sobre a qual
cinco anos. Na sua opinião, quais tese de doutorado sobre o instituto nossa sociedade se organiza. Ele
as razões para o interesse tardio do Mancipium no Direito Romano sustenta que a técnica, no sécu-
na obra do autor? — a possibilidade do pater fami- lo XX, assume as mesmas quali-
Marcus Vinicius De Matos - É lias vender aqueles que estavam dades e importância daquilo que
curioso, mas a obra do Ellul1 pas- sob seu poder como escravos — e Marx descreveu como o capital,
sou quase que despercebida pela depois vem a guerra, quando ele no século anterior. Ou seja, vi-
Academia no Brasil, até bem re- entra para a Resistência francesa, vemos em uma civilização que se
centemente. Eu mesmo ouvi falar organiza camponeses e estudantes, desenvolve em torno da técnica.
do autor, pela primeira vez, em e estuda teologia. A partir daí ele E isso tem implicações tanto no
um evento em São Paulo, em 2006, escreve muita coisa sobre teologia, campo da racionalidade quanto
numa palestra sobre Ecologia e Ati- anarquismo e marxismo. E essa tal- no da ética e da cultura: a ciên-
vismo Cristão. E esse exemplo tal- vez seja a parte do seu trabalho que cia e as instituições modernas vão
é mais conhecida, resgatada hoje passar a funcionar com os valores
14 vez explique uma das razões para
esse interesse tardio: é muito difí- por teólogos e estudantes e muito da técnica, digamos, principal-
cil colocar a obra de Jacques Ellul difundida por grupos cristãos e mo- mente a eficácia e a eficiência. E
toda dentro de um mesmo campo vimentos anarquistas — alguns dos a técnica também altera a própria
disciplinar, pela própria dimensão quais disponibilizam obras como forma como a humanidade com-
do pensamento do autor, e isso de “Anarquia e Cristianismo” na in- preende a si própria, se relaciona
certa maneira desafia o tipo de ternet. Agora, a parte da obra dele com a natureza, com o ambiente,
conhecimento que se produz no que talvez seja a mais interessante e com sua própria história — tudo
meio acadêmico que, no Brasil, é para a Academia, para a Universi- isso passa a ser diferente. E essa
extremamente disciplinar, tanto sociedade técnica é uma socie-
dade, é a terceira — que geralmen-
pela questão de aderência às áreas dade onde o Estado vai, inevita-
te se encaixa como Sociologia. Essa
de avaliação da pesquisa e da pós- velmente, aumentar seu controle
parte é que tem despertado mais
sobre as pessoas. Nesse sentido,
-graduação quanto em relação à interesse recentemente, sobretudo
“A Técnica e o Desafio do Sécu-
própria forma de ingresso na car- nas áreas da Comunicação e do Di-
lo” levanta muitas questões so-
reira. Basta lembrar que a maior reito. Mas, mesmo assim, fora dos
bre controle e Estado que vão ser
parte dos concursos públicos hoje limites disciplinares. Para se ter
desenvolvidas depois, por autores
fecham as áreas em si próprias, ideia, quando comecei a ler a obra como Michel Foucault2 e Gilles
exigindo dos candidatos título de dele fui procurar por A Técnica e o
graduação, mestrado e doutorado Desafio do Século (Rio de Janeiro: 2 Michel Foucault (1926-1984): filóso-
específico naquela área do conhe- Paz e Terra, 1968), sua obra mais fo francês. Suas obras, desde a História da
Loucura até a História da sexualidade (a
cimento. Então, se pensarmos na famosa, e não havia nem na biblio- qual não pôde completar devido a sua morte)
própria trajetória do Ellul, essa teca do Direito nem da de Ciências situam-se dentro de uma filosofia do conhe-
impossibilidade de aderência a Sociais da Universidade Federal do cimento. Foucault trata principalmente do
tema do poder, rompendo com as concep-
1 Jacques Ellul: nascido em Bordeaux, na Rio de Janeiro - UFRJ onde fiz meu ções clássicas do termo. Em várias edições,
França, o teólogo foi um dos líderes da resis- mestrado. Tive que ir buscar no sis- a IHU On-Line dedicou matéria de capa a
tência francesa durante a 2ª Guerra Mundial. tema e achei uma edição publicada Foucault: edição 119, de 18-10-2004, dispo-
Trabalha com tecnologia, fazendo uma apro- nível em http://bit.ly/ihuon119; edição 203,
ximação determinista e fatalista. Entre os li- no Brasil em 1968, pela editora Paz de 06-11-2006, disponível em http://bit.ly/
vros publicados está Anarchy and Christianity e Terra, na biblioteca do curso de ihuon203; edição 364, de 06-06-2011, in-
(Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing Matemática! E, pior, parece que eu titulada ‘História da loucura’ e o discurso
Co 1991), em que argumenta que o anarquis- racional em debate, disponível em http://
mo e o cristianismo têm as mesmas perspec- fui o terceiro ou o quarto leitor a bit.ly/ihuon364; edição 343, O (des)governo
tivas sociais. (Nota da IHU On-Line) retirar da estante. biopolítico da vida humana, de 13-09-2010,

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DE CAPA IHU EM REVISTA

Deleuze3. E isso é de certa for- va, a ciência precisa também ser de Hermínio Martins6. Eu penso que
ma intrigante, já que ambos co- organizada de maneira técnica, de é uma noção que, em termos de
nheciam Ellul, pelo menos como forma a produzir mais e de maneira corpo teórico, agora já é bastante
professor da Universidade de Bor- sempre mais eficiente. questionada — pela própria limi-
deaux, porém não o citam — pelo tação de tempo histórico em que
Na sociedade técnica, todo
menos não nos seus textos mais os autores a situavam, um perío-
tipo de atividade seria sujeita
famosos. do de aproximadamente 30 anos,
a essa racionalização utilitaris-
na virada do século XX para o XXI.
ta. Um exemplo claro e custoso
IHU On-Line - Em que medida os Assim, a sociedade do risco seria
disso seria a sujeição da própria
mesmos tipos de racionalidades uma sociedade em que a ciência,
ciência à técnica: para fugir de
e processos utilitaristas perpas- os riscos dos avanços científicos e
supostos arbítrios e subjetivida-
sam todos os campos das ciências industriais teriam se tornado in-
des, para escapar de julgamen-
modernas? calculáveis, imprevisíveis e globais
tos éticos, na ciência moderna é
— escapando ao controle do Estado
Marcus Vinicius De Matos - To- preciso reduzir tudo ao número.
Nacional e suas instituições. Essa
mando a noção de técnica no sen- A posição ‘científica’, passaria a
é uma caracterização da socieda-
tido que Ellul emprega, é possível ser, às vezes, simplesmente negar
de que depende fundamentalmen-
ver como a racionalidade técnica a existência do que não depende
te da divisão da modernidade em
vai passar a ser a base em cima da de método científico — negar a
duas: uma primeira, industrial,
qual a ciência moderna se desen- existência de tudo aquilo que não
nacional; e uma segunda moderni-
volve. Na caracterização que ele pode ser quantificado, ou que não
dade, ou pós-modernidade, quan-
faz da técnica há não apenas uma é quantificável.
do os avanços tecnológicos empur-
racionalidade própria, como tam- ram a humanidade para dentro do
bém o predomínio da artificialida- IHU On-Line - Quais são os ne- que se convencionou chamar de
de, do automatismo, do autocresci- xos entre a evolução da técnica Globalização.
mento e da autonomia da técnica. e os paradigmas da sociedade de
Ele constata isso ao comparar o risco e do estado de exceção? Para Ellul, entretanto, esta rela-
tempo em que as técnicas leva- ção é inversa: é a técnica, aplicada
Marcus Vinicius De Matos - A no- como princípio organizador da vida
vam para ser empregadas depois
ção de sociedade de risco foi bas- humana, que determina a organi-
de uma nova descoberta científica:
esse tempo diminui drasticamente
tante popular no meio acadêmico zação da vida social, econômica ou 15
no final do século passado, princi- administrativa. A técnica funciona
na virada do século XIX para o XX, e
palmente devido aos trabalhos de como indeterminador dos riscos e
continua diminuído, aparentemen-
sociólogos como Anthony Giddens4 da responsabilidade. Penso que tal-
te. Se houvesse uma balança em
e Ulrich Beck5 — e mesmo antes vez a relação fique mais clara no
que se pesasse a descoberta cientí-
deles, por exemplo, no trabalho próprio exemplo que o autor usa:
fica de um lado, e o preço humano
de sua aplicação, do outro, seria a construção de uma represa que,
como se o primeiro lado sempre depois de pronta, racha e inunda
4 Anthony Giddens: sociólogo inglês, foi
fosse determinante. A técnica é diretor da “London School of Economics
um município próximo. De quem
empregada porque existe. E pon- and Political Science” (LSE). É autor de 34 é a culpa, a responsabilidade? Do
to. Ou seja, o que ele descreve é obras, publicadas em 29 línguas, e de inú- político que decidiu pela constru-
meros artigos. Em 1985 foi cofundador da ção naquele local? Dos engenheiros
quase que um triunfo da utilidade “Academic Publishing House Polity Press”. É
e da racionalidade técnica sobre também conhecido como o mentor da ideia que planejaram a obra? Ou dos tra-
qualquer possibilidade de humani- da Terceira Via. Entre suas obras publicadas balhadores que a executaram? Os
zação da ciência. Até porque, para
em português citamos As Consequências da especialistas vão tentar encontrar,
Modernidade (Oeiras: Celta, 1992); Capita-
que a própria técnica se desenvol- através de critérios supostamente
lismo e moderna teoria social: uma análise
das obras de Marx, Durkheim e Max Weber técnicos, os indícios de responsa-
disponível em http://bit.ly/ihuon343, e edi- (Lisboa: Editorial Presença, 1994); Trans- bilidade. Mas essa é precisamente
ção 344, Biopolítica, estado de exceção e vida formações da Intimidade – Sexualidade,
nua. Um debate, disponível em http://bit.ly/ Amor e Erotismo nas Sociedades Modernas
ihuon344. Confira ainda a edição nº 13 dos (Oeiras: Celta Editora, 1996). (Nota da IHU 6 Hermínio Martins (1934): sociólogo
Cadernos IHU em Formação, disponível On-Line) português, autor, professor emérito da Uni-
em http://bit.ly/ihuem13, Michel Foucault. 5 Ulrich Beck: sociólogo alemão da Univer- versidade de Oxford (St Antony’s College) e
(Nota da IHU On-Line) sidade de Munique. Autor de A sociedade do investigador honorário do Instituto de Ciên-
3 Gilles Deleuze (1925-1995): filósofo risco. Argumenta que a sociedade industrial cias Sociais (Universidade de Lisboa). Entre
francês. Assim como Foucault, foi um dos criou muitos novos perigos de risco desco- suas obras, destacam-se Experimentum Hu-
estudiosos de Kant, mas tem em Bérgson, nhecidos em épocas anteriores. Os riscos manum — civilização tecnológica e condição
Nietzsche e Espinosa, poderosas interseções. associados ao aquecimento global são um humana (Relógio D’Água, Lisboa, 2011; Fino
Professor da Universidade de Paris VIII, Vin- exemplo. Confira na edição 181 da revista Traço, Belo Horizonte, 2012), Classe, status e
cennes, Deleuze atualizou ideias como as de IHU On-Line, de 22-05-2006, intitulada poder – ensaios sobre o Portugal contempo-
devir, acontecimentos, singularidades, con- Sociedade do risco. O medo na contempo- râneo (Imprensa de Ciências Sociais, Lisboa,
ceitos que nos impelem a transformar a nós raneidade, a entrevista exclusiva Incertezas 2006), Max Weber’s ‘Science as a vocation’
mesmos, incitando-nos a produzir espaços fabricadas, concedida por Beck. O material (com Irving Velody e Peter Lassman. Allen
de criação e de produção de acontecimentos- está disponível para download em http://bit. and Unwin, Londres, 1989), entre outras.
-outros. (Nota da IHU On-Line) ly/ihuon181. (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line)

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

uma característica da técnica: ela porquê dessa desconfiança através parlamentos — especialmente nos
torna impossível encontrar um res- de modelos e do uso de alegoria. casos das decisões relacionadas à
ponsável. Ou então, se pensarmos O Ellul propõe observar, no âmbi- segurança e economia — e se refle-
nos softwares de computador: ao to do Direito, uma relação entre o tiram em uma visão tecnicista da
iniciá-los, às vezes há uma quan- emprego de medidas de controle Política e do Direito, contribuindo
tidade tão grande de scripts, da- e exceção e a supressão das liber- para a consolidação do Estado de
dos em processamento e operação dades, que se desenvolveria den- Exceção como técnica de governo.
de outros softwares, que se torna tro de um paradoxo: quanto maior
extremamente difícil determinar o aperfeiçoamento dos métodos Estado de exceção
qual dos processos é o responsá- técnicos da polícia — de pesqui-
vel por um problema que eventu- sa e de ação —, maior o controle O Estado de Exceção seria a for-
almente ocorra — assim como fica sobre a sociedade, restringindo ma jurídica do controle biopolítico
enorme a possiblidade de ocorrer qualquer forma de liberdade; po- promovido pelos meios técnicos.
um problema qualquer. Mas hoje rém, maior a proteção contra os Finalmente é interessante observar
penso que a discussão fica mais criminosos, e maior a sensação de que ambos os autores vêm de uma
interessante quando aproximamos liberdade das pessoas. E é aí que reflexão teológica sobre a questão:
a concepção de Ellul de sociedade ele usa, de maneira alegórica, o Agamben, filósofo e pesquisador
técnica daquela que descreve o es- modelo do campo de concentra- medievalista, aborda o problema
tado de exceção. ção. Na visão dele o campo não foi do estado de exceção lançando-se
uma invenção tipicamente fascista sobre o “direito canônico”; de ma-
IHU On-Line - Qual a relação en- e nazista: ele existiu também na neira semelhante, Jacques Ellul —
tre o pensamento de Ellul e o de União das Repúblicas Socialistas jurista, sociólogo e teólogo — parte
Giorgio Agamben7, sobretudo no Soviéticas - URSS, na Polônia, na do direito romano para construir o
Bulgária; e do outro lado, existiu que descreve como sendo a “socie-
conceito de estado de exceção?
na França (na terceira república), dade técnica” e adota uma visão
Marcus Vinicius De Matos - Essa na Inglaterra (durante a guerra crítica da racionalidade técnica
é uma relação que eu tentei tra- dos Boers) e nos EUA. Para ele o que dominaria a política e o direito
çar na minha pesquisa de mestra- campo de concentração tem um na modernidade, calcando-se em
do. Penso que são dois autores que sentido mesmo administrativo: arcabouço teológico dialético. Se
16 desconfiam da política moderna,
capitalista, e que demonstraram o
decorre de uma concepção téc-
nica de polícia que leva à prisão
a preocupação de Agamben é um
Estado de Exceção viabilizado por
preventiva e à reeducação. As téc-
7 Giorgio Agamben (1942): filósofo italia- meios técnicos que se encontram
no. É professor da Facolta di Design e Arti nicas policiais se desenvolveriam,
entre o político e o jurídico, para
della IUAV (Veneza), onde ensina Estética, na visão dele, ao ponto de que to-
e do College International de Philosophie de
Ellul, são os próprios meios técni-
dos seriam vigiados — e os avanços
Paris. Formado em Direito, foi professor da cos que indeterminam a Política e
técnicos tornariam isso possível.
Universitá di Macerata, Universitá di Vero- o Direito, constituindo o Estado de
na e da New York University, cargo ao qual Por outro lado, isso só funcionaria
Exceção.
renunciou em protesto à política do governo com apoio da população, e através
estadunidense. Sua produção centra-se nas de técnicas que pouco se fizessem
relações entre filosofia, literatura, poesia IHU On-Line - De que maneira
e, fundamentalmente, política. Entre suas sentir, com métodos aperfeiçoa-
principais obras estão Homo Sacer: o poder dos de controle. a perspectiva de Ellul nos ajuda
soberano e a vida nua (Belo Horizonte: Ed. a pensar as técnicas de controle
UFMG, 2002), A linguagem e a morte (Belo Já em Agamben, que desenvol- e vigilância utilizados pela po-
Horizonte: Ed. UFMG, 2005), Infância e his- ve provavelmente a pesquisa mais lícia e pelo poder Judiciário no
tória: destruição da experiência e origem da
interessante sobre o dispositivo do Brasil?
história (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006);
Estado de exceção (São Paulo: Boitempo Edi- estado de exceção — que é a pos-
torial, 2007), Estâncias – A palavra e o fan- sibilidade de se suspender os direi- Marcus Vinicius De Matos - Pen-
tasma na cultura ocidental (Belo Horizonte: tos e garantias constitucionais dos so que, sem medo de errar, a gen-
Ed. UFMG, 2007) e Profanações (São Paulo: te pode dizer que as técnicas de
Boitempo Editorial, 2007). Em 04-09-2007, cidadãos para garantir a ordem e
o sítio do Instituto Humanitas Unisinos – a própria constituição — o campo controle e vigilância estão em ex-
IHU publicou a entrevista Estado de exceção aparece como um modelo de refe- pansão. No caso do Brasil, talvez
e biopolítica segundo Giorgio Agamben, com seja possível situar uma virada já
rencia, como uma zona de anomia
o filósofo Jasson da Silva Martins, disponível
em http://bit.ly/jasson040907. A edição 236 — ou de indistinção — entre o Direi- no século XXI, dentro do que seria
da IHU On-Line, de 17-09-2007, publicou a to e a Política. E é interessante ob- o nosso período democrático re-
entrevista Agamben e Heidegger: o âmbito servar que, para o segundo, o esta- cente. Talvez o ano de 2008 tenha
originário de uma nova experiência, ética,
política e direito, com o filósofo Fabrício
do de exceção também não é uma sido paradigmático nesse sentido.
Carlos Zanin, disponível em http://bit.ly/ prática de ditaduras absolutistas, Foi nesse ano que nós tivemos a
ihuon236. A edição 81 da publicação, de 27- mas de regimes democráticos. E, discussão sobre o uso indiscrimi-
10-2003, teve como tema de capa O Estado nado de escutas telefônicas — os
nesses regimes, o autor demonstra
de exceção e a vida nua: a lei política moder-
na, disponível para acesso em http://bit.ly/ que as decisões técnicas tomaram “grampos” — feitos pela Polícia
ihuon81. (Nota da IHU On-Line) o lugar das discussões políticas nos Federal - PF e pela Agência Bra-

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DE CAPA IHU EM REVISTA

sileira de Inteligência - Abin em são diz respeito ao caso da prisão nica como um meio que elimina os
cima do próprio Poder Judiciário, preventiva dos ativistas que iam fins, e se torna ela mesma o fim.
que seria justamente quem geral- fazer protestos durante o jogo fi- Acho que o Ellul explica isso di-
mente autoriza ou não essas me- nal da Copa do Mundo, no Rio de zendo que a técnica não persegue
didas. Eu me refiro aqui a um dos Janeiro e no Rio Grande do Sul. nenhum fim — como justiça, por
mais graves episódios, quando des- A polícia monitora as pessoas por exemplo. Ela é puramente causal,
cobriram as escutas telefônicas no redes sociais e pelo uso de celula- e tem uma moral própria nos lan-
gabinete do Presidente do Supre- res e gadgets, e, de repente, um çando ao que ele denomina de do-
mo Tribunal Federal – STF, que en- mínio da causalidade integral.
tão era o Ministro Gilmar Mendes.
No mesmo ano, temos ainda dois IHU On-Line - Em que sentido as
episódios marcantes: o primeiro ideias desse autor podem ajudar a
foi o início da utilização de pulsei- estabelecer uma crítica sobre os
ras e braceletes eletrônicos para o Para Ellul, en- problemas do Direito brasileiro?
controle de presos em regime de
progressão de pena e liberdade tretanto, esta Marcus Vinicius De Matos - Há
condicional, que foi colocada em relação é inver- perspectivas muito ingênuas de
soluções técnicas e tecnológicas
fase de teste no estado de Minas
Gerais — sem, contudo, aprovação sa: é a técnica, para problemas essenciais do Di-
reito, e penso que o trabalho do
parlamentar.
aplicada como Ellul é importante para contra-
O segundo foi a proposta de ins-
talação massiva de câmeras na se- princípio or- por essas concepções. Uma delas
é essa de que já falamos, que é o
gunda maior cidade do país, o Rio
de Janeiro. Na campanha eleitoral
ganizador da emprego de técnica e da tecnolo-
municipal daquele ano, lembro que vida humana gia pela polícia que vai acabar com
as práticas inquisitoriais, e que na
quatro dentre os cinco principais verdade acaba por nos entregar a
candidatos apontados como favori- uma expansão das medidas de ex-
tos nas pesquisas eleitorais incluí- grupo que organizava um protesto ceção, que se tornaram cotidianas
am em suas propostas de governo a
instalação de um amplo sistema de
— que poderia ou não ser violento na atividade policial. O outro é a 17
— é preso antes da realização do ilusão de que o emprego da tec-
vigilância na cidade, que ia desde evento. E esse caso fica ainda mais nologia vai resolver a burocracia e
a instalação de dezenas de milha- curioso, quando um morador de a morosidade do judiciário e, com
res de câmeras, até a compra de rua — que aparentemente nada ti- isso, produzir mais justiça. Essa é
avião não tripulado Israelense — os nha que ver com aquilo — também uma posição que eleva a técnica —
famosos drones — para monitorar é preso, mas no caso dele, em fla- e também a tecnologia — àquele
favelas. grante, ali na hora. Assim, depois lugar transcendental, quase sagra-
de revogada a prisão preventiva de do, capaz de resolver de maneira
Questionamento todo mundo, fica preso o morador eficaz aquilo que aparentemente
de rua, Rafael Braga Vieira, por- não tem solução prática. Ou me-
Creio que a obra do Ellul nos que simplesmente estava lá, com lhor, dar soluções práticas a pro-
desafia a tomar uma posição de material de limpeza na mão — que blemas que são complexos e teó-
questionamento desse impulso a polícia considerou como inflamá- ricos, éticos. Isso fica muito claro,
técnico. Tanto no caso das escutas vel, mas a perícia alegou que era por exemplo, se aproximarmos
telefônicas quanto no da implanta- diluído, para limpeza mesmo, sem a noção de sociedade técnica do
ção dos sistemas de vigilância, ou possibilidade de incendiar qual- Ellul com o trabalho de pesquisa
ainda, na utilização dos braceletes quer coisa. Esse é o tipo de caso empírica do Fernando Fontainha
eletrônicos em prisioneiros, o que que revela um intrincado proble- da FGV-Rio, que propõe a figura
chama a atenção não é a falta de ma: quase não há prisão fruto de do “juiz moderno”, empreende-
um debate político público sobre o
investigação no Brasil, a maior dor, observando discursos de juí-
tema. O que parece absolutamen-
parte das prisões é resultado de zes que propõem a informatização
te inusitado — sob a perspectiva da
flagrante. E daí, como vai se solu- do judiciário e dos tribunais quase
expansão e da unicidade da técnica
cionar isso? Nossa própria solução que como solução final — e única
na sociedade moderna — é a com-
vai ser acreditar na polícia cientí- — para a burocracia e morosidade
pleta aceitação dessas propostas de
fica como forma de legitimar o sis- da justiça. Porque se acredita que
vigilância para garantir o controle
tema? É isso que vai resolver todos os problemas são essencialmente
e a segurança, quase sem nenhuma
os problemas? E quando a perícia técnicos, e por isso só pode haver
oposição visível.
se mostra ineficiente, como nesse uma solução técnica. Essa é bem
Um exemplo mais recente sobre caso? Vai funcionar? São perguntas a essência da nossa civilização, na
o quão é necessário fazer a discus- que revelam esse problema da téc- visão do Ellul.

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

#DossiêEllul

O tecnicismo como caminho à


violência e à vingança coletiva
Jorge Mialhe aborda a ausência de valores como o maior risco de condução
humana à antropotécnica
Por Andriolli Costa e Ricardo Machado

A técnica explica tudo, ou quase tudo. “Para o técnico do direito, afirma Ellul,
Um dos pensadores mais provocativos ‘todo o direito depende de sua eficá-
do século XX, Jacques Ellul, discorda- cia (...) um direito não aplicado não é
va veementemente desta perspectiva. direito’”, sublinha. No entanto, pensar
“Para Ellul, uma sociedade que não a dimensão técnica de nossas socie-
tem mais valores nos quais acredite e a dades não corresponde a ignorarmos
eles se referencie será entregue à vio- seus possíveis e necessários avanços
lência e à vingança coletiva”, relembra tecnológicos, mas, sim, pensá-los na
Jorge Mialhe em entrevista por e-mail complexidade de sua emergência. “O
à IHU On-Line. Sua postura crítica se princípio da precaução tem servido de
voltava a uma certa deificação da téc- escudo contra os abusos da técnica e
nica e, para tanto, pensava a questão do produtivismo sem, contudo, repre-
historicamente em muitos aspectos, sentar um obstáculo à inovação. Nesse
inclusive na educação. “O que Ellul sentido, é importante esclarecer que
nos ensina é que a França, ‘luz da ci- o princípio da precaução não deve ser
18 vilização ocidental’, também fracassou interpretado como uma recomendação
no seu projeto educacional popular no sistemática de abstenção”, aponta.
período entre 1793 e 1815. Esse proje-
Jorge Luís Mialhe é bacharel em Di-
to civilizatório e educacional foi par-
reito e História pela Universidade de
cialmente copiado e transferido para o
São Paulo – USP, onde também fez mes-
Brasil no período Joanino e mantido no
trado em Direito Internacional. Rea-
Primeiro Reinado”, explica. “Tal como
lizou doutorado em História Social na
na França, que privilegiou a educação
USP e paralelamente na Université de
da sua elite, o Estado brasileiro menos-
Bordeaux III, Michel de Montaigne. Atu-
prezou a educação da maior parte da
almente é professor assistente-doutor
sua população que, em boa medida,
(efetivo, RTC) da Universidade Esta-
não teve acesso ao ensino primário e,
dual Paulista Júlio de Mesquita Filho
muito menos, ao ensino lycéen e uni-
- Unesp, campus de Rio Claro, e pro-
versitário”, complementa.
fessor doutor II do Curso de Mestrado
De acordo com o entrevistado, há, em Direito da Universidade Metodista
na perspectiva instrumental do direito, de Piracicaba - Unimep.
uma lógica muito modernista da técni-
Confira entrevista.
ca, que a correlaciona com a eficácia.

IHU On-Line - Quais são os as- soluta (em uma determinada etapa Jorge Mialhe - Dentre as várias
pectos fundamentais nos quais de desenvolvimento) em todos os críticas (contra a propaganda e a
reside a atualidade do pensamen- campos da atividade humana”. sociedade de consumo, o esgota-
to de Jacques Ellul? mento dos recursos naturais e os
Jorge Mialhe - Destacaria, so- organismos geneticamente modi-
IHU On-Line - Quais são suas
bretudo, a crítica de Ellul à deifica- ficados, a “pasteurização” da cul-
ção da técnica entendida como “a críticas fundamentais ao mode- tura), uma delas tem se destacado
totalidade de métodos que racio- lo de sociedade na qual vivemos pela sua atualidade: a conivência
nalmente alcançam a eficácia ab- atualmente? com a escalada da violência, a des-

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DE CAPA IHU EM REVISTA

crença nas instituições e as suas mento de uma política educacional em boa medida, não teve acesso ao
consequências, como os recentes de Estado que atendesse as deman- ensino primário e, muito menos, ao
“justiçamentos”. Para Ellul, uma das do país, agora elevado à cate- ensino lycéen e universitário. As-
sociedade que não tem mais valo- goria de Reino Unido a Portugal e sim, Ellul nos apresenta alguns ele-
res nos quais acredite e a eles se Algarves. Verificam-se similitudes mentos que foram acriticamente
referencie será entregue à violên- entre as “políticas educacionais”, assimilados e reproduzidos em ter-
cia e à vingança coletiva. rae brasilis, com os mesmos vícios,
francesa e brasileira, no início do
século XIX, particularmente quanto pelos nossos governantes: elitismo
IHU On-Line - Quais são as re- e elevado grau de miopia das clas-
ferências e os elementos sobre a ses dominantes de ambos os países
história e a educação presentes no tocante à educação fundamen-
na obra de Jacques Ellul Histoi- tal dos seus povos.
re des institutions (Paris: Presses
Universitaires de France - PUF, Todo o direi- IHU On-Line - Qual é o movi-
2011)?
to depende de mento da técnica no direito des-
Jorge Mialhe - A obra oferece al- crita por Ellul em A técnica e o
gumas possibilidades de análise da sua eficácia desafio do século e que relações
história das instituições escolares (...) um direito podem ser estabelecidas com o
paradigma da “simplificação” de
francesas, sobretudo no período
contemporâneo. No quinto tomo não aplicado Morin3?
da Histoire des institutions, Ellul
nos apresenta vários aspectos das
não é direito Jorge Mialhe - Na visão de Ellul,
a principal tarefa da técnica jurí-
instituições escolares e de ensino. dica é “preparar os elementos que
Os verbetes écoles, enseignement, lhe são fornecidos pela função po-
faculté e université, referenciados ao amplo favorecimento do ensino
lítica, a fim de que o direito não
no seu índice remissivo, permitem superior e o descaso manifestado
permaneça mero verbalismo, letra
ao leitor avaliar a evolução das ins- pelos governos em relação ao ensi-
morta”. Abrange, assim, todo um
tituições de ensino na França, des- no primário em ambos os países. O
arsenal técnico concernente às
de a Revolução de 1789 até o final que Ellul nos ensina é que a Fran-
do século XIX. Por exemplo, sob o ça, “luz da civilização ocidental”,
provas, às sanções, às garantias, 19
entre outros elementos, cujo fim é
período napoleônico, a instrução também fracassou no seu projeto assegurar a consecução dos fins do
pública foi utilizada como instru- educacional popular no período en- direito. Conjugando-se, dentro do
mento de propaganda. Ela deve- tre 1793 e 1815. Esse projeto civi- universo jurídico, com fins sociais
ria contribuir para a formação da lizatório e educacional foi parcial- e com os conteúdos escolhidos po-
nação, funcionaria como a “mola
mente copiado e transferido para o liticamente (função política), bem
moral” do governo. Seu objetivo
Brasil no período Joanino1 e manti- como conferindo-lhes efetividade,
era transformá-la numa “máquina
do no Primeiro Reinado2. Tal como a técnica jurídica pode equilibrar-
poderosa no sistema político”, vol-
tada para a condução “dos espíri- na França, que privilegiou a edu- -se com a procura, inerente ao
tos pelo espírito”. Nesse sentido, cação da sua elite, o Estado brasi- direito, pela justiça. Porém, “no
o primeiro cuidado que teve Napo- leiro menosprezou a educação da momento em que a pura mentali-
leão foi o de centralizar o ensino, maior parte da sua população que, dade técnica, uma técnica em si,
notadamente com a lei de 1802. penetra de fora no mundo jurídico
1 Período Joanino: é uma fase da história
Por ela, todos os estabelecimentos brasileira correspondente, grosso modo, às 3 Edgar Morin (1921): sociólogo francês,
de ensino primário e secundário primeiras duas décadas do século XIX, quan- autor da célebre obra O Método. Os seis li-
deveriam reportar-se à Direção de do, ameaçada por Napoleão, a monarquia vros da série foram tema do Ciclo de Estu-
portuguesa, cujo titular era o rei Dom João dos sobre “O Método”, promovido pelo IHU
Instrução Pública do Ministério do VI, foi forçada a abandonar a metrópole e se- em parceria com a Livraria Cultura de Porto
Interior. guir para o Brasil, transferindo para esta en- Alegre em 2004. Embora seja estudioso da
tão colônia a administração de todo o império complexidade crescente do conhecimento
ultramarino português. Tal momento, de im- científico e suas interações com as questões
IHU On-Line - A partir dessas portância capital para o Brasil, recebe então o humanas, sociais e políticas, se recusa a ser
constatações, quais são os pon- nome do monarca português, pois representa enquadrado na sociologia e prefere abarcar
tos de convergência presentes na um importante passo rumo à futura indepen- um campo de conhecimentos mais vasto:
dência, em 1822. (Nota da IHU On-Line) filosofia, economia, política, ecologia e até
história da educação francesa e 2 Primeiro Reinado: é o nome dado ao biologia, pois, para ele, não há pensamento
brasileira nos períodos imperial período em que D. Pedro I governou o Brasil que corresponda à nova era planetária. Além
e republicano, na perspectiva da como Imperador, entre 1822 e 1831, ano de de O Método, é autor de, entre outras obras,
sua abdicação. O primeiro reinado compre- A religação dos saberes. O desafio do sécu-
História da Educação Comparada? ende o período entre 7 de setembro de 1822, lo XXI (Bertrand do Brasil, 2001). Confira a
data em que D. Pedro I proclamou a Indepen- edição especial sobre esse pensador, intitula-
Jorge Mialhe - No caso do Brasil,
dência do Brasil, e 7 de abril de 1831, quando da Edgar Morin e o pensamento complexo,
com a chegada da Corte portugue- abdicou do trono brasileiro. (Nota da IHU de 10-09-2012, disponível em http://bit.ly/
sa (1808), foi possível o estabeleci- On-Line) ihuon402. (Nota da IHU On-Line)

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

(...) abalos decisivos na vida social pelo docente que é o detentor do defendem posições próximas às da
se produzem.” Emerge, assim, o conhecimento e de sua razão, de desregulamentação da produção
que denominamos tecnicismo. Para forma unilateral, ordenada e hierar- de OGMs e do rebaixamento dos ní-
o técnico do direito, afirma Ellul, quizada, ao aluno “sem luz” mero veis de biossegurança, vinculados
“todo o direito depende de sua efi- objeto do processo. Isso, sem discus- ao princípio da precaução. Esse
cácia (...) um direito não aplicado sões, sem “desordem”, apenas um princípio tem sido cada vez mais
não é direito”. A explicação, tra- depósito: “Educa-se para arquivar o invocado na análise de problemas
zida por Ellul, sobre a invasão da que se deposita.” Tal simplificação relativos à alimentação e à saúde,
técnica no direito, leva-nos a visu- deve ser suplantada. Na perspec- tendo-se constituído como um dos
alizar uma grande coincidência en- tiva de Morin, para a superação da pilares do desenvolvimento sus-
tre esse movimento e o enfoque da simplificação, faz-se necessária uma tentável. O princípio da precaução
simplificação. Dessa forma, afirma mudança de enfoque, uma reforma tem servido de escudo contra os
Morin, transmite-se e perpetua-se, paradigmática no pensamento, com abusos da técnica e do produtivis-
na forma de dogma, um direito a assunção do paradigma da com- mo sem, contudo, representar um
simplificado e isolado, reduzindo e plexidade. O papel da educação obstáculo à inovação. Nesse sen-
compartimentando a si e ao mun- jurídica, nesse contexto, adquire tido, é importante esclarecer que
do. Faz-se, por conseguinte, com fundamental relevância, a partir da o princípio da precaução não deve
que as grandes questões humanas conjunção da reflexão técnica do ser interpretado como uma reco-
desapareçam frente aos problemas direito, a partir de uma perspectiva mendação sistemática de absten-
técnicos específicos. lógico-formal, com aquela emergida ção. Muito embora não seja perce-
de um olhar externo, como fenôme- bido dessa maneira, ele deve ser
IHU On-Line - Quais são as con- no social, histórico, econômico, filo- entendido como uma incitação à
sequências desse movimento na sófico e político — e por isso huma- ação. Ao contrário da máxima “na
educação jurídica e na formação namente contraditório. dúvida, abstenha-se”, o princípio
de técnicos “simplistas”? da precaução recomenda “na dúvi-
da, faça todo o possível para agir
Jorge Mialhe - O direito, ordenado IHU On-Line - Ainda a partir da
da melhor forma”. Essa atitude po-
e hierarquizado, é, na crítica de Pau- obra A técnica e o desafio do sé-
sitiva, de ação mais do que inação,
lo Freire4, transmitido verbalmente culo, quais são os nexos que po-
corresponde ao objetivo unânime
dem ser estabelecidos entre o
20 4 Paulo Freire (1921-1997): educador bra- desenvolvimento sustentável e o
de reduzir os riscos para o homem
sileiro. Como diretor do Serviço de Extensão e para o meio ambiente. O princí-
Cultural da Universidade de Recife, obteve paradigma da técnica?
pio da precaução não se resume na
sucesso em programas de alfabetização, de-
pois adotados pelo governo federal (1963).
Jorge Mialhe - Podemos citar, renúncia aos benefícios esperados
Esteve exilado entre 1964 e 1971 e fundou o por exemplo, o caso dos organis- do avanço tecnológico. Implica, na
Instituto de Ação Cultural em Genebra, Suí- mos geneticamente modificados verdade, a adoção de algumas me-
ça. Foi também professor da Unicamp (1979)
- OGMs. A Organização Mundial didas no intuito de prevenir incon-
e secretário de Educação da prefeitura de São
Paulo (1989-1993). É autor de A Pedagogia do Comércio – OMC está matizada venientes, possivelmente oriundos
do Oprimido, entre outras obras. A edição em princípios neoliberais e é for- do desenvolvimento não sustentá-
223 da revista IHU On-Line, de 11-06- temente influenciada pelos países vel. Nas palavras de Ellul, “o ho-
2007, teve como título Paulo Freire: pedago-
go da esperança e está disponível em http:// produtores de transgênicos. Alguns mem tem por vocação conservar e
bit.ly/ihuon223. (Nota da IHU On-Line) de seus agricultores e industriais cultivar o mundo sem exauri-lo”.

LEIA MAIS...
—— Eficiência, resultado, inovação – A questão da técnica em Jacques Ellul. Entrevista publica-
da na edição 400 da IHU On-Line, de 07-04-2014, disponível em http://bit.ly/1IevyJg;
—— Técnica. Ame-a ou deixe-a. Uma abordagem a partir de Jacques Ellul. Reportagem publica-
da nas Notícias do Dia, de 12-04-2013, disponível em http://bit.ly/1DsIpRg;
—— Jacques Ellul teve razão muito cedo? Artigo de Laurence Desjoyaux publicado nas Notícias
do Dia, de 07-07-2014, disponível em http://bit.ly/1A56Owd;
—— Cadernos IHU Ideias: 209ª edição - As possibilidades da Revolução em Ellul. Disponível em
http://bit.ly/1A570vm;
—— A liberdade vigiada: o homem prisioneiro de uma gaiola virtual. Artigo publicado nas Notí-
cias do Dia de 17-07-2009, disponível em http://bit.ly/1DCgUWK.

SÃO LEOPOLDO, 27 DE ABRIL DE 2015 | EDIÇÃO 464


DE CAPA

IHU ON-LINE

Tema de
Capa
DESTAQUES DA SEMANA TEMA

PL 4330: o tiro de misericórdia na


regulação do trabalho brasileiro
Segundo Giovanni Alves, a terceirização é um facilitador da fraude trabalhista e
contribui para a desefetivação da Justiça do Trabalho
Por Patricia Fachin

“Q uem diria, hein! Há algu-


mas décadas, a esquerda
criticava a CLT como uma
peça autocrática-fascista oriunda do go-
verno Vargas. Hoje, tornou-se um bote
Na entrevista a seguir, concedida por
e-mail, o sociólogo também comenta as
MPs 664 e 665, editadas pelo Congresso
no final do ano passado. Segundo ele, as
MPs devem ser entendidas como “medi-
salva-vidas de direitos trabalhistas em ex- das corretivas de direitos trabalhistas”,
tinção. Eis o sintoma da barbárie salarial e fazem parte dos ajustes fiscais anun-
que caracteriza o capital em sua fase de ciados pelo Ministério da Fazenda. “Elas
crise estrutural: o rebaixamento civiliza- não extinguem direitos, mas restringem e
tório”. O comentário é de Giovanni Alves dificultam seu acesso. Num cenário de de-
à IHU On-Line, ao analisar as causas que semprego crescente, restringir e dificul-
levaram à aprovação do PL 4330 e as pos- tar o acesso a direitos é perverso. Minha
síveis consequências caso a lei da tercei- crítica é que medidas que atingem direi-
rização seja aprovada. tos previdenciários e trabalhistas deviam
22 Giovanni Alves lembra que desde 1990, a ser negociadas com as centrais sindicais,
partir dos governos Collor e FHC, “ocorre mas não foram”, pontua.
um processo lento e progressivo de des- Giovanni Alves (foto abaixo) é profes-
monte da CLT”, e a aprovação do PL 4330 sor da Faculdade de Filosofia e Ciências
na Câmara dos Deputados “dá apenas o do Departamento de Sociologia e Antro-
‘tiro de misericórdia’ no modelo ‘rígido’ pologia da Universidade Estadual Paulista
de regulação do trabalho no Brasil, ade- Júlio de Mesquita Filho – Unesp, no cam-
quando-o às novas condições históricas de pus de Marília. Livre-docente em teoria
acumulação flexível do mercado mundial”. sociológica, é mestre em Sociologia e
Ele explica ainda que a terceirização e a doutor em Ciências Sociais pela Unicamp.
resistência do empresariado em ampliar É autor de, entre outras obras, Dimensões
direitos trabalhistas e reduzir jornada de da precarização do trabalho – Ensaios de
trabalho “fazem parte de um fenômeno sociologia do trabalho (Bauru: Projeto
mundial próprio da temporalidade históri- Editorial Praxis, 2013).
ca do capital em sua fase de crise estrutu-
ral — com nuances locais”. Confira a entrevista.

IHU On-Line - O que a aprova- do trabalho no Brasil? Para que ocorre um processo lento e progres-
modelo de trabalho estamos nos sivo de desmonte da Consolidação
ção do PL 43301 sinaliza acerca das Leis Trabalhistas - CLT. O Proje-
dirigindo não só com a aprovação
1 Projeto de Lei 4330/2004 ou PL 4330: do PL, mas considerando também to de Lei 4330 dá apenas o “tiro de
prevê a contratação de serviços terceirizados os baixos salários, a não redução misericórdia” no modelo “rígido”
para qualquer atividade de determinada em- de regulação do trabalho no Brasil,
presa, sem estabelecer limites ao tipo de ser- das jornadas?
viço que pode ser alvo de terceirização. Atual- adequando-o às novas condições
mente, a Súmula 331 do Tribunal Superior do Giovanni Alves - Desde 1990, históricas de acumulação flexível
Trabalho (TST), que rege a terceirização no a partir do governo Collor e FHC, do mercado mundial. Na verdade,
Brasil, proíbe a contratação para atividades-
nosso mercado de trabalho sempre
fim das empresas, mas não define o que pode está previsto para ser votado na Comissão de
ser considerado fim ou meio. O PL tramita Constituição e Justiça da Câmara no dia 13 de teve uma flexibilidade estrutural,
há nove anos na Câmara dos Deputados e agosto. (Nota da IHU On-Line) pelo menos desde 1964, quando

SÃO LEOPOLDO, 27 DE ABRIL DE 2015 | EDIÇÃO 464


DE CAPA IHU EM REVISTA

os militares instauraram o Fundo novo (e precário) mundo do traba- bem-vindo ao Inferno do Real (do
de Garantia do Tempo de Serviço - lho no capitalismo global — que nos capital do século XXI).
FGTS em troca da estabilidade no diga, hoje, o crescimento do “pre-
emprego. Na década de 1990, a ter- cariado” na Europa, Estados Unidos IHU On-Line - Quais os efeitos
ceirização e a flexibilização laboral e Japão e os baixos salários e os da terceirização para o trabalha-
disseminaram-se, atingindo hoje incipientes salários pagos na Ásia dor? Se aprovada, a lei irá atingir
cerca de 30% do mercado de traba- e na Índia. Enfim, com a vigência a todos os trabalhadores de modo
lho formal. Alta rotatividade labo- plena da terceirização alteram-se geral, não somente os que já têm
ral, baixos salários e informalidade as condições materiais — objetivas um trabalho mais precarizado?
estrutural compõem hoje o quadro e subjetivas — da luta de classes no
do mundo do trabalho precário, Brasil. O novo cenário de precarie- Giovanni Alves - Os estudos so-
quadro social que deve se agravar dade salarial deve provocar novas ciológicos e da economia do traba-
com a aprovação do PL 4330 que re- estratégias sindicais. Vai exigir que lho demonstram, há mais de vinte
gulamenta a terceirização. o sindicalismo rompa com práticas anos, que terceirização significa
burocrático-corporativas e organi- redução de salários – pelo menos
Superexploração da ze mais a classe trabalhadora no em 1/3; extensão da jornada de
força de trabalho plano horizontal. trabalho semanal (em pelo menos
5 horas); aumento de acidentes
O capital sempre provoca histo- do trabalho (com consequente au-
A aprovação do PL 4330 trata tão
ricamente o trabalho. Não adianta mento dos gastos previdenciários);
somente da afirmação do modelo
lamentar com nostalgia a debacle corrosão da identidade e represen-
social de superexploração da força
do fordismo-keynesianismo, como tação sindical; degradação dos ser-
de trabalho que caracteriza nossa
acontece hoje com certos compa- viços e qualidade dos produtos; es-
formação social capitalista. Por
nheiros social-democratas que não poliação de direitos historicamente
isso o falecido sociólogo alemão Ul-
percebem que, no modo de produ- conquistados (13º Salário, férias,
rich Beck,2 em 1999, ao constatar o
ção capitalista, principalmente no etc.); podemos salientar também
avanço da precariedade laboral na
capitalismo brasileiro, de extração aumento da corrupção, principal-
Europa, chamou-a “brasilianização
colonial-escravista, a precarização mente no setor público; provável
da Europa”. Antes, a Europa social
estrutural do trabalho é um traço aumento do trabalho análogo à
era exemplo para o Brasil, hoje é o
histórico ontogenético, e o capital, escravidão.
contrário: as relações de trabalho
no Brasil tornam-se modelos para o
na era de sua crise estrutural, re-
duz sua capacidade de preservar e Terceirização possui também um 23
mundo capitalista central, na me- recorte de gênero, pois deve atingir
ampliar conquistas civilizatórias.
dida em que o capital desmonta, mais as mulheres que os homens,
nesses países centrais, conquistas aumentando mais ainda a precarie-
históricas dos trabalhadores. En-
Capacidade de resposta
radical dade laboral entre o gênero femi-
fim, somos a vanguarda da barbá- nino. O pior do PL 4330 é que ele
rie salarial que caracteriza hoje o retira da empresa tomadora dos
Enfim, a lei da terceirização vai
2 Ulrich Beck: sociólogo alemão da Univer- exigir de nós reflexão crítica e ca- serviços a responsabilidade solidá-
sidade de Munique. Autor de A sociedade do pacidade de resposta radical, for- ria pelo pagamento dos salários,
risco. Argumenta que a sociedade industrial
çando os sindicatos a investirem 13º Salário, férias, quando a em-
criou muitos novos perigos de risco desco- presa fornecedora desses trabalha-
nhecidos em épocas anteriores. Os riscos mais na formação política dos qua-
associados ao aquecimento global são um dros sindicais e na perspectiva da dores deixa de cumprir suas obri-
exemplo. Confira na edição 181 da revista formação da consciência de clas- gações legais (a responsabilidade
IHU On-Line, de 22-05-2006, intitulada
se sob pena de eles irem à ruína da empresa será apenas subsidiária
Sociedade do risco. O medo na contempo- e não mais solidária, fazendo com
raneidade, a entrevista exclusiva Incertezas como instituição social relevante;
que o problema seja discutido com
fabricadas, concedida por Beck. O material ou educam-se as massas ou vivere-
está disponível para download em http://bit. base no Código Civil, no âmbito
mos no pior dos mundos possíveis.
ly/ihuon181. Leia também Indignados, entre da Justiça Comum, e não mais na
o poder e a legitimidade. Artigo de Ulrich Não podemos nos iludir — capita-
Justiça do Trabalho. Trata-se, por-
Beck publicado nas Notícias do Dia, de 11-11- lismo global é isso aí. Caso a lei
tanto, de um retrocesso de mais de
2011, disponível em http://bit.ly/1EwjNwe; da terceirização seja instaurada,
A Europa de Angela Merkel segundo Ulri- 70 anos, pois o STF desde 1941 re-
a resposta dos setores trabalhis-
ch Beck. Artigo publicado nas Notícias do conhecia que a competência para
Dia, de 25-03-2015, disponível em http:// tas e popular na sua luta contra a
julgar questões trabalhistas é a
bit.ly/1PLE9p4; BP, a Bastilha do petróleo? exploração deve adquirir cada vez
Justiça do Trabalho). A terceiriza-
Artigo de Ulrich Beck publicado nas Notícias mais um caráter político de médio
do Dia, de 05-07-2010, disponível em 05-07- ção é, portanto, um facilitador da
e longo prazo. Deve procurar uni-
2010 em http://bit.ly/1IeEA8W; A revolta da fraude trabalhista e contribui não
desigualdade. Artigo de Ulrich Beck publica- ficar a classe sob pena de a luta
apenas para o desmonte da CLT,
do nas Notícias do Dia, de 05-05-2009, dis- sindical não ter eficácia. Podería-
mas também para a desefetivação
ponível em http://bit.ly/1DPEtKW; Da fé no mos dizer a todos nós, brasileiros,
mercado à fé no Estado. Um artigo de Ulrich da própria Justiça do Trabalho.
Beck publicado nas Notícias do Dia, 26-04-
caso a terceirização se generalize,
2008, disponível em http://bit.ly/1OvcF9K. as mesmas palavras do personagem Todas essas tendências de de-
(Nota da IHU On-Line) Morpheus no filme Matrix (1999): gradação do trabalho existiam há,

SÃO LEOPOLDO, 27 DE ABRIL DE 2015 | EDIÇÃO 464


DESTAQUES DA SEMANA TEMA

pelo menos, 25 anos, pois a ter- tendência de equalização decres- nos parâmetros estruturais do ca-
ceirização era permitida nas ati- cente da taxa diferencial de explo- pital global.
vidades-meio conforme a Súmula ração — isto é, na medida em que
331 do TST. Como o PL 4330, que a referência-padrão da taxa média IHU On-Line - Como entender a
regulamenta a terceirização, per- de exploração do capital global aprovação do PL 4330 na Câmara
mite que ela seja adotada também é a China, existe uma poderosa dos Deputados na atual conjuntu-
nas atividades-fim, a barbárie sala- pressão do mercado mundial para ra, em que o Estado é administra-
rial tende a ampliar-se não apenas equalizar as taxas de exploração do pelo PT — Partido dos Traba-
no setor privado, mas, inclusive, de cada país capitalista às taxas de lhadores? O que essa aprovação
no setor público, tendo em vista exploração da China e Sudeste Asi- sinaliza sobre o partido e sobre a
a pressão pela redução dos gastos ático. Não é apenas o Brasil que so- atuação da “esquerda” no país?
com folha de pagamento, por con- fre essa ofensiva do capital global
ta do orçamento público contin- Giovanni Alves - Desde 2013,
— a vemos atuando há décadas nos
genciado. É necessário hoje que se quebrou-se o ovo da serpente,
países capitalistas centrais — União
crie, por exemplo, um Observató- criada pela própria dinâmica neo-
Europeia, EUA e Japão e depois na
rio da Terceirização em que possa- desenvolvimentista. O Congresso
América Latina. Portanto, a lei da
mos verificar onde ela está sendo Nacional eleito em 2014 é flagran-
terceirização e a resistência do
adotada e denunciarmos condições temente conservador sob hege-
empresariado em ampliar direitos
precárias de trabalho e fraude de monia das forças políticas reacio-
trabalhistas e reduzir jornada de nárias. Por exemplo, o deputado
direitos trabalhistas. trabalho, por exemplo, fazem par- Eduardo Cunha (PMDB-RJ), eleito
te de um fenômeno mundial pró- presidente da Câmara dos Deputa-
IHU On-Line - Como entender prio da temporalidade histórica do dos, representa o líder supremo das
que pautas importantes dos anos capital em sua fase de crise estru- forças conservadoras em aliança
1980, como redução da jornada tural — com nuances locais. com a direita reacionária. O PMDB,
de trabalho, direitos trabalhistas, pelo menos desde 2013, sofreu um
podem sofrer uma total rever- Terceirização no Brasil deslocamento político que implo-
são? O que está acontecendo com diu a frente política do neodesen-
o mundo do trabalho no Brasil? No caso do Brasil, o país do Fim volvimentismo. O governo Dilma
Quais são as causas e raízes desse do Mundo, os traços da “moder- eleito em 2014 está politicamente
fenômeno? Trata-se de um fenô- nização catastrófica” — aquela
24 meno mundial também? modernização incapaz de cumprir
paralisado. Alterou-se a correlação
de forças no Congresso Nacional
Giovanni Alves - É preciso en- promessas civilizatórias — são mais com a derrota contundente dos se-
tender a conjuntura do capitalismo evidentes. Está inscrito no nosso tores de esquerda, incluindo o PT.
global no qual o Brasil se insere. “DNA histórico”, a lógica da Casa A rigor, o governo é do PMDB e não
Hoje, nosso país é um dos impor- Grande e Senzala. Se o custo de do PT. Aliás, nunca foi um governo
tantes territórios periféricos de produção da força de trabalho de do PT, mas sim o governo de uma
acumulação de valor. Desde o go- um escravo fosse menor do que o coalizão neodesenvolvimentista,
verno Collor nos inserimos efetiva- custo de produção de um traba- onde a esquerda do PT sempre es-
mente na mundialização do capi- lhador assalariado terceirizado ga- teve isolada ou numa posição mi-
tal. O Brasil é hoje uma das áreas nhando um salário mínimo, nesta noritária. A direção majoritária do
privilegiadas de atração de investi- conjuntura de reação conservado- PT, lastro do lulismo, é que opera-
mentos externos e acumulação do ra, com certeza algum deputado va a frente neodesenvolvimentista,
capital no plano mundial. A pressão já teria proposto um PL abolindo a articulando com o PMDB e peque-
empresarial pela terceirização é Lei Áurea. Mas não — manter um nos partidos conservadores o pri-
compreensível pela necessidade escravo custaria hoje mais ao em- mado da governabilidade capaz de
do capital social total em aumen- presário do que empregar um tra- garantir o “reformismo fraco”, isto
tar a taxa média de exploração e balhador assalariado terceirizado. é, programas sociais de transfe-
incrementar a massa de mais-valia Enfim, o rebaixamento civilizatório rência de renda visando reduzir as
social no país, como condição para aprofunda-se no país com a crise desigualdades sociais e a pobreza
a retomada do crescimento da eco- do neodesenvolvimentismo, onde extrema.
nomia brasileira. forças políticas conservadoras se Entretanto, a inclusão social de-
aliaram às forças políticas reacio- pende do crescimento da economia.
Fenômeno mundial nárias de direita, comprometendo, O lulismo não funciona num cenário
deste modo, as trincheiras locais de conflito distributivo acirrado. A
O capital só investe na medida de resistência social e política à crise da economia brasileira da dé-
em que encontra condições fa- ofensiva do capital global, embora cada de 2010 corroeu as bases do
voráveis para explorar a força de os próprios governos neodesenvol- lulismo e implodiu a frente política
trabalho. Num cenário de aumen- vimentistas — Lula e Dilma — te- do neodesenvolvimentismo. Desde
to da concorrência internacional, nham operado nos seus governos, 2013, pelo menos, explicitam-se os
crise estrutural de valorização do com a lógica da governabilidade limites do neodesenvolvimentismo.
capital e afirmação histórica da baseada no choque de capitalismo Com o cenário de desaceleração

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DE CAPA IHU EM REVISTA

da economia, em parte devido à adversa ao Palácio do Planalto. Te- ocorrido com frações da burguesia
conjunção de efeitos do aprofunda- mos hoje um Congresso Nacional interna). Apesar de ser reeleita,
mento da crise mundial, o apagão plenamente favorável às pautas Dilma sofreu uma derrota políti-
de investimentos privados e esgota- políticas do empresariado, finan- ca fundamental, quando o PMDB,
mento do ciclo de crescimento via ciador dos políticos eleitos. É a partido-chave da governabilidade
oferta de crédito e consumo, e ain- nova maioria política conservado- neodesenvolvimentista, aliado com
da somando-se a desaceleração da ra sob hegemonia reacionária que setores reacionários, compôs uma
economia, o repique inflacionário, aprovou, por exemplo, na Câmara nova maioria política conservadora
presenciamos o aumento da insatis- Federal, o PL 4330. Outras pautas que elegeu o Presidente do Senado
fação das camadas médias urbanas, conversadoras e reacionárias estão e o Presidente da Câmara Federal.
incrementando-se a eficácia políti- à disposição para serem aprovadas:
No momento crucial da história
ca da ofensiva midiática da direita a redução da maioridade penal e a
da República, ressuscitou-se, de
reacionária que, desde 2003, golpe- Reforma Política mantendo finan-
modo piorado, o famigerado “Cen-
ava o setor dirigente majoritário do ciamento empresarial. De fato, o
trão” que na Constituinte de 1988
PT que articulava o lulismo — pri- grande empresariado articulou-se
atentou contra avanços progressis-
meiro com o “mensalão” e depois bem: decidiu jogar em duas fren-
tas na nova Constituição Federal.
com a Operação Lava Jato. tes políticas para aprovar a ter-
Enfim, o empresariado encontrou o
ceirização ampla e irrestrita: pri-
terreno político propício para fazer
Ofensiva mundial meiro, provocou no STF, instância
a Reforma Trabalhista do Século
conservadora da República quando
XXI.
Na verdade, 2013 é um ano de se trata de discutir questões traba-
ofensiva mundial da nova estraté- lhistas, pouco antes das eleições
gia política do Departamento de de 2014, uma “repercussão geral” IHU On-Line - Quais devem ser
Estado norte-americano: a dita (o ministro Fux deve se pronunciar as consequências da terceiriza-
“Primavera dos Povos”, a ofensi- se a terceirização deve ser — ou ção para a CLT?
va diplomática, política e militar não — ampla, geral e irrestrita). Giovanni Alves - A CLT vai se
contra Síria, Irã e depois Ucrânia, tornar um regime de contratação
a desestabilização de governos A negação de Dilma “nobre”. Quem diria, hein! Há al-
progressistas na América do Sul por gumas décadas, a esquerda criti-
vias de insuflar a inquietação das E depois, com a nova maioria po- cava a CLT como uma peça auto-
“classes médias” (Argentina, Bra- lítica conservadora-reacionária ad- crática-fascista oriunda do governo 25
sil, Venezuela, Equador e Bolívia) e quirida em 2015, os deputados, sob Vargas. Hoje, tornou-se um bote
depois a baixa estimulada do pre- pressão do empresariado, ressusci- salva-vidas de direitos trabalhis-
ço do barril de petróleo, atingindo taram no Congresso Nacional o PL tas em extinção. Eis o sintoma da
vorazmente economias fragilizadas 4330/2004, do ex-Deputado Sandro barbárie salarial que caracteriza o
da Venezuela e da Rússia, com- Mabel.3 Enfim, o empresariado uti- capital em sua fase de crise estru-
põem o quadro geopolítico da nova lizou as instâncias conservadoras da tural: o rebaixamento civilizatório.
ofensiva do Imperialismo. Portan- Nação — STF e Congresso Nacional Vivemos, hoje, no Brasil e no mun-
to, a nova reação conservadora- — para desmontar a CLT e a Justiça do uma crise civilizatória.
-reacionária no Brasil é sintomática do Trabalho, o que o Poder Execu-
da conjuntura geopolítica mundial, tivo da República não quis fazer em
onde “forças das trevas” internas fins de 2012, quando organizações IHU On-Line - Além da aprova-
e externas aproveitam as dificul- empresariais pressionaram a Presi- ção do PL 4330 na Câmara, no
dades estruturais intrínsecas das dente Dilma para “flexibilizar” os final do ano passado, a presiden-
novas experiências neodesenvol- direitos trabalhistas e ela se ne- te editou as MPs 664 e 665, que
vimentistas e pós-neoliberais, que gou. Foi a negação de Dilma em mudam as regras previdenciárias
não se alinharam aos interesses atentar contra direitos trabalhistas e trabalhistas. Pode nos explicar
do imperialismo norte-americano, que levou o grande empresariado, quais são as mudanças que ocor-
para desestabilizar os governos de- frações da burguesia interna, ex- rem a partir dessas MPs? Elas são
mocraticamente eleitos com amplo aliados do governo “lulista”, a adequadas ou não?
respaldo popular. romper com a coalizão neodesen- Giovanni Alves - As MPs 664 e 665
volvimentista (por exemplo, a can- são medidas “corretivas” de direi-
No Brasil, em 2014, pela quarta
didatura de Eduardo Campos/Mari- tos trabalhistas, sendo parte inte-
vez, a coalização neodesenvol-
na Silva — pelo PSB, ex-partido da grante do ajuste fiscal do Ministro
vimentista — com uma pequena
base do governo — e a “rebelião” Joaquim Levy. Elas não extinguem
diferença — derrotou a direita re-
do PMDB, em parte, pode ser ex- direitos, mas restringem e dificul-
acionária. Entretanto, na eleição
plicada pelo deslocamento político tam seu acesso. Num cenário de
parlamentar (Câmara dos Deputa-
dos e Senado), as forças conserva- desemprego crescente, restringir e
doras e reacionárias tiveram uma 3 Sandro Antonio Scodro ou como San- dificultar o acesso a direitos é per-
flagrante vitória, compondo uma
dro Mabel (1958): é um empresário e políti- verso. Minha crítica é que medidas
co brasileiro. É autor do PL 4330 de 2004 que
nova maioria política, parte dela que atingem direitos previdenciá-
possibilita a tercerização total das atividades
das empresas. (Nota da IHU On-Line) rios e trabalhistas deviam ser ne-

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

gociados com as centrais sindicais, ções sistemáticas de corrupção con- — apoiada pelas forças ocultas do
mas não foram. O ajuste fiscal não tra o PT, feitas pela Operação Lava imperialismo norte-americano —
foi discutido com o movimento sin- Jato, conduzidas pelo verdadeiro quer chegar ao governo do Brasil
dical e popular e com as instâncias Partido da Direita Reacionária (a de qualquer modo até 2018.
da sociedade civil organizada. Este mídia golpista), e a crise da econo-
Ao quebrar a coalizão neodesen-
foi o maior erro da presidenta Dil- mia brasileira, contribuíram para a
volvimentista, hegemonizando os
ma. Logo após ser eleita, não con- crescente inquietação social princi-
conservadores fisiológicos no Con-
versou com a sociedade brasileira palmente das “classes médias”.
gresso Nacional, principalmente
sobre a necessidade do ajuste fiscal o PMDB, e atrair setores da bai-
Na verdade, a conjuntura infer-
e não buscou construir caminhos xa classe média, que cresceu nos
nal do governo Dilma caracteriza-
concertados com os trabalhadores últimos anos, e inclusive setores
-se por dois deslocamentos políti-
e movimentos sociais, visando pe- trabalhistas organizados e popu-
cos e sociais muito sérios: primeiro,
nalizar no ajuste fiscal aqueles que os conservadores fisiológicos no lares, para o campo da reação li-
sempre ganharam neste país: o ca- Congresso Nacional passaram a ser beral, criaram-se efetivamente
pital rentista-parasitário. Enfim, o hegemonizados pela direita reacio- neste país as condições sociais e
governo Dilma conduziu a constru- nária; e depois, frações da baixa políticas para a virada neoliberal
ção do ajuste fiscal de forma ata- classe média e classe trabalhado- (o que não tinha ocorrido nos úl-
balhoada — ou míope. Preferiu um ra — setores populares — passaram timos dez anos). As perspectivas
ajuste fiscal pela direita — o que a ser hegemonizados pelo discurso para o trabalho devem ser de luta
não poderia ser diferente, tendo conservador-liberal ou reacionário, e reflexão, aproveitando a crise
em vista que o Ministro da Fazenda tendo em vista o desgaste do go- para elevar o nível de consciência
é um representante legítimo dos verno, acusado de ser um governo das massas. Não é fácil. Há muito
interesses do capital financeiro. de um partido corrupto (o PT) que tempo o PT perdeu a prática de
faz um ajuste fiscal impopular. luta e formação da consciência de
Carta aos Brasileiros II classe. Por outro lado, a militância
da esquerda socialista, parte dela
Temos em 2014, com Joaquim IHU On-Line - Com a aprovação
de oposição ao governo, é diminu-
Levy na Fazenda, a volta da Carta do PL 4330 e da atual situação
ta e irrelevante politicamente, não
aos Brasileiros II. Mas se Antonio Pa- do mundo do trabalho, quais as
conseguindo transformar o calor
locci era uma farsa em 2003, Joa- perspectivas acerca do trabalho
26 quim Levy é a tragédia. O lulismo é no Brasil?
das lutas sociais em luz — isto é,
esclarecimento das massas sobre
isso aí. Talvez expresse o que des- Giovanni Alves - As perspectivas uma conjuntura complexa com
crevemos acima: o governo Dilma não são promissoras. A última me- mil tons de cinza. Enfim, como di-
rendeu-se — visando conquistar a tade da década de 2010 será uma ria Marx, “Hic Rhodus, hic salta!”,
confiança do empresariado — às for- metade de “década infernal”. Te- isto é, eis os novos (e gigantescos)
ças conservadoras sob hegemonia nho dito que os limites do neode- desafios postos pelo capital para
reacionária. Mas o Governo Dilma senvolvimentismo devem produzir o mundo do trabalho organizado
(e Lula) está pagando e vai pagar cenários bizarros de fascismo so- e para a nossa esquerda socialis-
um preço alto por isso. Frações da cial por conta do alavancamento ta, provocada, nesse momento, a
“classe média” assalariada e in- da manipulação social que visa construir efetivamente uma nova
clusive da classe trabalhadora que derrubar o governo Dilma (um fas- frente política que consiga hege-
votaram nela, e tinham uma ava- cismo social meio carnavalesco, monizar os setores populares e
liação positiva de seu governo, pas- estúpido, bizarro, como tem sido atrair parcelas importantes de se-
sam hoje a compor-se com setores as manifestações dos “coxinhas” tores da baixa “classe média” para
conservadores e reacionários que e seus intelectuais orgânicos). Não um programa de desenvolvimento
pedem seu impeachment. As acusa- se iludam, a direita reacionária democrático nacional-popular.■

LEIA MAIS...
—— Manifestações. A crise de um modelo e a disputa de classes. Entrevista com Giovanni Alves
publicada nas Notícias do Dia no sítio do IHU, de 20-03-2015, disponível em http://bit.
ly/1aSZg93.
—— Ser-mercadoria num momento histórico de crise radical da forma-mercadoria. Entrevista
com Giovanni Alves publicada nas Notícias do Dia no sítio do IHU, de 26-04-2013, disponível
em http://bit.ly/1DenAJe.
—— Como enlouquecer seu chefe. Uma análise de Giovanni Alves publicada nas Notícias do Dia
no sítio do IHU, de 26-03-2007, disponível em http://bit.ly/1DC4qgX.

SÃO LEOPOLDO, 27 DE ABRIL DE 2015 | EDIÇÃO 464


DE CAPA IHU EM REVISTA

Tentativa de burlar direitos trabalhistas


se manteve no decurso da história
Graça Druck sustenta que a aprovação do PL 4330 implica inverter a relação
entre terceirizados e não tercerizados, podendo alcançar 90% dos trabalhadores
Por Patricia Fachin

D epois da aprovação do PL
4330 na Câmara dos Depu-
tados, no início do mês, no
dia 16-04-2015, o Supremo Tribunal
Federal – STF decidiu o futuro do Direi-
contratos por tempo determinado, sem
qualquer vínculo com o funcionalismo
público. Será uma forma de interme-
diação de mão de obra precarizada”.
E enfatiza: “Isto representa um golpe
to Administrativo e da Administração na educação pública do país, num con-
Pública Brasileira, autorizando que a texto em que a ‘palavra de ordem’ do
gestão de serviços públicos, a exemplo atual governo é ‘Pátria Educadora’”.
da administração de escolas públicas,
Na entrevista a seguir, concedida à
universidades estatais, hospitais, mu-
IHU On-Line por e-mail, Graça Druck
seus, poderá ser administrada por as-
faz uma análise histórica do surgimen-
sociações e fundações privadas quali-
to da CLT e explica que, embora ela
ficadas como “organizações sociais”. A
decisão está sendo criticada, inclusive
tenha representado, à época de seu
surgimento, uma “estratégia política e
27
no âmbito acadêmico, já que a partir
ideológica de Getúlio Vargas”, ela “in-
da normativa do STF, as universidades
corporou um conjunto de direitos so-
federais não precisam mais realizar
ciais e trabalhistas reivindicados pela
concurso público para contratar novos
classe trabalhadora”. Contudo, pon-
professores.
tua, “estudos mostram, desde aquele
Entre os pesquisadores contrários momento, que a reação do empresa-
à medida, Graça Druck explica que, riado brasileiro foi a de não aceitar,
nas áreas em que a gestão dos servi- não aplicar, de burlar e condenar o
ços públicos já vem sendo feita pelas enrijecimento dessa legislação”. Esse
Organizações Sociais, como na área da comportamento, esclarece, “que se
saúde, as pesquisas “têm mostrado o manteve no decurso da história” não é
quanto esse tipo de contrato precariza diferente do que “estamos presencian-
o trabalho e leva à perda de qualidade do no Congresso Nacional, com a vota-
nos serviços prestados à sociedade”. ção do PL 4330, no STF com a liberação
Conforme a medida for estendida às da terceirização no serviço público, nas
universidades, pontua, “isto vai levar ‘101 propostas de modernização traba-
ao fim dos concursos públicos para pro- lhista’ da CNI, cuja principal ‘proposta’
fessores e funcionários técnico-admi- é estabelecer o ‘negociado sobre o le-
nistrativos. Os resultados serão catas- gislado’, ou seja, o fim da CLT”.
tróficos para o ensino, a pesquisa e a
Graça Druck é doutora em Ciências
extensão produzidos nas universidades.
Sociais pela Universidade de Campinas
Atualmente, só é possível produzir co-
– Unicamp, com pós-doutorado na Uni-
nhecimento na universidade quando há
versidade de Paris XIII, França. Leciona
dedicação exclusiva dos professores da
Sociologia na Faculdade de Filosofia e
carreira, que têm estabilidade para de-
Ciências Humanas da Universidade Fe-
senvolver as pesquisas. Com o fim dos
deral da Bahia.
concursos e da carreira, ficarão pro-
fessores das organizações sociais, com Confira a entrevista.

SÃO LEOPOLDO, 27 DE ABRIL DE 2015 | EDIÇÃO 464


DESTAQUES DA SEMANA TEMA

IHU On-Line - Depois de 10 anos tecendo no Brasil, que viabilizou IHU On-Line - O que a aprova-
de tramitação do PL 4330 na Câ- a aprovação do PL num governo ção do PL 4330 na Câmara dos De-
mara, em que contexto histórico, que tem, teoricamente, como putados indica sobre quais serão
político e social se dá aprovação do pano de fundo, pautas dos traba- os rumos do trabalho no Brasil?
PL na Câmara dos Deputados? Quais lhadores, como o nome do parti-
Graça Druck - Veja, a aprovação
são, na sua avaliação, as motivações do sugere?
do PL 4330 gerou uma repercussão
que levaram a essa aprovação?
Graça Druck - O governo atual que não era esperada. Canalizou as
Graça Druck - Estamos vivendo de Dilma Rousseff, que venceu as atenções dos mais diferentes seg-
um contexto político muito difícil e, eleições, contou com o apoio de mentos da sociedade. Virou pauta
depois do golpe de 64 e do período amplos segmentos dos trabalhado- central de toda a imprensa. E o
da ditadura militar, penso que o atu- res brasileiros e de suas principais mais importante, gerou muita re-
al momento é um dos mais perigosos organizações políticas. Mas também sistência, crítica e mobilização. As
para a democracia brasileira e para foi fruto de alianças partidárias, a manifestações, inclusive com para-
o conjunto dos trabalhadores, pois chamada base aliada, cujos acordos lisações, do dia 15 de abril em todo
estamos diante de um movimento refletem uma postura conservado- o país conseguiram impactar o Con-
ou de uma “onda” extremamente ra, expressa na formação do novo gresso, que não conseguiu dar con-
conservadora, que ameaça direitos, ministério. Considero que a compo- tinuidade à votação das emendas.
conquistas e avanços sociais, procu- sição do governo já anunciava o que Há deputados que mudaram sua
rando golpear instituições típicas da hoje está se presenciando: a defesa votação. Há partidos que recuaram
democracia, desmoralizando-as e de um ajuste fiscal pela presidente de suas posições. Está ocorrendo
desrespeitando-as. Exemplo disso é e seus apoiadores como única alter- uma certa disputa entre a Câmara
o próprio Congresso Nacional, onde nativa para fazer frente a um novo e o Senado, entre o próprio PMDB.
foi votado o PL 4330. Um Congres- quadro da economia internacional, Há ainda um processo de negocia-
so de maioria conservadora, cujos que tem freado o crescimento eco- ção com o governo que, diga-se de
deputados votam sem conhecer e nômico. Neste plano, penso que os passagem, desnudou — através da
outros defendem, de forma cínica, governos do PT fizeram uma opção proposta do Ministro da Fazenda
a mando dos empresários que finan- e se tornaram reféns de uma ine- para que as empresas contratantes
ciaram sua eleição, que o PL 4330 xorabilidade da globalização e da pagassem diretamente os encar-
vai “legalizar” ou “garantir” direi- financeirização econômica, sem gos trabalhistas ao governo, para
28 tos para 12 milhões de trabalhado- buscar romper com a inserção su- que não perdesse arrecadação — o
res terceirizados hoje no país. bordinada do país nesse processo. quanto a terceirização é sonegado-
ra dos direitos dos trabalhadores.
Ora, esse número foi estimado Ao mesmo tempo, o PT per- Pois bem, considerando que após
por alguns estudos (do Dieese e deu base social, se distanciou dos a votação na Câmara ainda vai ao
CUT), nos segmentos formais da trabalhadores, foi envolvido em Senado, cujo presidente afirmou
economia. Não estão incluídos aí processos desgastantes, como o que a terceirização que retira di-
os que estão sem contrato e sem chamado “mensalão” e, mais re- reitos não passa naquela casa, e
carteira, ou seja, sem qualquer centemente, o caso da Petrobras. vai para a presidente da República,
proteção trabalhista. O que os de- Isto se refletiu sobre o tamanho das que pode vetar o projeto, ainda
putados defensores do PL 4330 não bancadas no Congresso. Vivemos não está definido o quadro. Se as
dizem é que a liberação da tercei- uma situação de grande fragilidade mobilizações continuarem podem
rização vai inverter completamen- do governo e do partido da presi- ainda impedir que o centro do PL
te a relação, pois poderá atingir dente, onde se evidenciam con- 4330 seja aprovado.
não os atuais estimados 17%, mas flitos internos e com a sociedade
80 ou 90% dos trabalhadores brasi- organizada, a exemplo da Central IHU On-Line - A terceirização é
leiros. O que explica a aprovação Única dos Trabalhadores, que não um fenômeno mundial?
agora, depois de várias tentativas pode mais manter uma defesa cega
sem sucesso, especialmente nos do governo Dilma, sem criticar o Graça Druck - Sim. Na forma como
últimos dois anos, por conta das ajuste fiscal e as medidas que im- vem se desenvolvendo é parte da
lutas e campanhas levadas por um plicam perda de direitos — como as reestruturação produtiva e da toyo-
conjunto de instituições da socie- medidas provisórias 664 e 665, que tização1 como forma de gestão do
dade (sindicatos, centrais, direito alteram as regras da concessão de 1 Toyotismo: modelo japonês de produção,
do trabalho, juristas, advogados, benefícios previdenciários e traba- criado pelo japonês Taiichi Ohno e implanta-
pesquisadores, etc.), é essa con- lhistas, entre eles a concessão do do nas fábricas de automóveis Toyota, após
juntura desfavorável e a nova com- seguro-desemprego. É um quadro o fim da Segunda Guerra Mundial. Na déca-
da de 70, em meio a uma crise de capital, o
posição do Congresso Nacional, difícil e com muitas contradições, modelo Toyotista espalhou-se pelo mundo.
que reflete a onda conservadora. idas e vindas, avanços e retroces- A idéia principal era produzir somente o ne-
sos num curto espaço de tempo, cessário, reduzindo os estoques (flexibiliza-
ção da produção), produzindo em pequenos
IHU On-Line - Como chegamos a vide o que ainda está ocorrendo na lotes, com a máxima qualidade, trocando a
esse momento? O que está acon- votação das emendas do PL 4330. padronização pela diversificação e produti-

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trabalho, onde as redes de subcon- rização na indústria petroquímica, instituições (a CNI, as federações
tratação/terceirização são elemen- atingindo setores nucleares das fá- estaduais, os seus representantes
to central, embora existam especi- bricas, a exemplo da manutenção no Congresso Nacional, etc.) de-
ficidades em cada país, por conta e mesmo operação, o que mudava fendem o fim da CLT, criticando-a
da força do movimento sindical e eram as novas formas utilizadas: como antiga, atrasada, rígida e que
das formas de regulação do Estado. cooperativas, pejotização, ONGs, impede a modernidade das rela-
Num quadro em que a economia está “empresa filhote”. ções trabalhistas. Leia-se: impede
comandada pela lógica financeira a flexibilidade para o capital ou
Os diversos setores pesquisados
sustentada no curtíssimo prazo, as a liberdade de fazer o que quiser
nos anos 2000 — bancários, call
empresas buscam garantir seus altos com os trabalhadores, sem o limite
centers, petroquímico, petrolei-
lucros, exigindo e transferindo aos ro, construção civil, além das em- de regulação pelo Estado, onde a
trabalhadores a pressão pela maxi- presas estatais ou privatizadas de “livre” negociação entre patrões e
mização do tempo, pelas altas taxas energia elétrica, comunicações e empregados seria a solução.
de produtividade, pela redução dos dos serviços públicos de saúde e Num quadro de fragilização e
custos com o trabalho e pela “vola- educação — revelam, além das es- fragmentação dos trabalhadores,
tilidade” nas formas de inserção e tatísticas que indicam o crescimen- com sindicatos fracos, sem organi-
de contratos. É o que sintetiza a ter- to da terceirização, as múltiplas zação ou até mesmo de fachada, dá
ceirização, que como nenhuma ou- formas de precarização dos traba- para entender a desfavorável rela-
tra modalidade de gestão, garante lhadores terceirizados em todas es- ção de forças que se estabeleceria.
e efetiva esta “urgência produtiva” tas atividades: nos tipos de contra- Em síntese, o avanço dessa ofensiva
determinada pelo processo de finan- to, na remuneração, nas condições patronal pela liberação da terceiri-
ceirização ao qual estão subordina- de trabalho e de saúde e na repre- zação e contra os direitos estabele-
dos todos os setores de atividade, sentação sindical. Retratam uma cidos pela CLT está questionando na
já que são também agentes e sócios evolução que eu caracterizo como essência a existência do Direito do
acionistas do capital financeiro. uma epidemia da terceirização, no Trabalho e pode, se vitoriosa, im-
quadro de uma precarização social por o seu fim enquanto um direito
IHU On-Line - A sua tese de dou- do trabalho que atinge todas as fundamental que nasceu através do
torado, defendida em 1995 e pu- atividades e todos os segmentos de reconhecimento da assimetria e de-
blicada em livro em 1999, já cha- trabalhadores, mesmo que de for- sigualdade entre capital e trabalho
mava atenção para o processo de ma hierarquizada. na sociedade capitalista. 29
terceirização no mercado de tra- Todas as pesquisas mostram o bi-
balho e teve como título “Tercei- nômio indissociável entre terceiri- IHU On-Line - Quando surgiu a
rização: (Des)Fordizando a Fábri- zação e precarização, pois ela — a CLT, teóricos que estudavam o
ca”. Que análise faz do processo terceirização — é a principal forma mundo do trabalho a criticavam
de terceirização no Brasil nesses de flexibilizar e precarizar o traba- na tentativa de ampliar direitos
últimos 20 anos? O que mudou lho hoje. E observe que este cresci- e reduzir a jornada. Como en-
no mercado de trabalho ao longo mento ocorre num quadro de regu- tender essa total reversão nos
desse tempo, considerando a am- lamentação através do Enunciado dias de hoje, em que a defesa da
pliação da terceirização? 331 que proíbe a terceirização na CLT parece ser a única alternati-
Graça Druck - Este livro analisou atividade-fim, um limite que não va para os trabalhadores? Nesse
resultados de uma pesquisa reali- impediu a epidemia. Imagine agora sentido, como vê as críticas que
zada no Polo Petroquímico de Ca- se aprovado na íntegra a essência foram feitas à CLT à época? Essas
maçari, que cobriu o universo das do PL 4330, que libera totalmente críticas ainda são válidas ou a CLT
fábricas no início dos anos 1990, a terceirização. se transformou, de fato, no ins-
onde a terceirização já era uma trumento de garantia de direitos
realidade. Dez anos depois (2005), IHU On-Line - Já é possível vis- dos trabalhadores?
realizamos outra pesquisa no Polo, lumbrar se com a aprovação da lei Graça Druck - A discussão e as
cujos resultados foram publicados da terceirização haverá impactos análises sobre a CLT na sua origem
no livro A Perda da Razão Social para a CLT? Que impactos seriam não a condenam, mas explicam
do Trabalho: terceirização e pre- esses?
que ela representou a estratégia
carização, pela Boitempo, organi- política e ideológica de Getúlio
Graça Druck - Considero que o
zado por mim e por Tânia Franco. Vargas à época. Por um lado, ela
principal impacto é político. Isto
Nesse período já se constatava um incorporou um conjunto de direitos
significa que a vitória do empresa-
crescimento vertiginoso da tercei- sociais e trabalhistas reivindicados
riado neste Projeto de Lei é a liber-
vidade. As relações de trabalho também fo- dade conquistada pelo capital para pela classe trabalhadora, a exem-
ram modificadas, pois agora o trabalhador precarizar legalmente o trabalho, plo do descanso semanal remu-
deveria ser mais qualificado, participativo
pois o Estado passa a permitir essa nerado, férias, 13º, estabilidade,
e polivalente, ou seja, deveria estar apto a
trabalhar em mais de uma função. (Nota da situação. Ora, todas as manifes- proibição do trabalho do menor,
IHU On-Line) tações de empresários e de suas que foram apresentados como uma

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“doação” de Vargas aos trabalha- desse processo, mostra, através manutenção, na área de tecnologia
dores, no contexto de uma ideo- de documentos das instituições da informação, logística, etc. que
logia trabalhista ou trabalhismo empresariais ou de declarações de empregam trabalhadores com alta
construída por ele e seus ministros. empresários, que mesmo antes da qualificação, através de contratos
No centro dessa ideologia, estava o CLT, no período anterior a 1930, no de prestação de serviços, cooperati-
não reconhecimento de que esses debate sobre a implantação de leis vas, consultorias. Todos sem vínculo
direitos eram aqueles pelos quais trabalhistas específicas (a exemplo e sem direitos. Um caso exemplar é
os trabalhadores lutavam desde o do direito a férias e da proibição na área de saúde, com os médicos,
pré-1930. Daí a ideia do “mito da do trabalho do menor), estas fo- enfermeiros; ou na área jurídica, no
doação” ou o “roubo da fala”, de ram condenadas e criticadas pelo caso dos advogados. Todos profissio-
que falam Angela de Castro Gomes2 empresariado, que por muitos anos nais que vivem em condições ex-
e Adalberto Paranhos, estudiosos resistiram à sua aplicação. Esse foi tremamente precárias porque são
desse momento histórico, dentre um comportamento que se mante- terceirizados, sem emprego e com
outros. Por outro lado, a CLT impôs ve no decurso da história no Brasil jornadas de trabalho sem limites.
a regulamentação dos sindicatos e que não difere do que hoje esta-
pelo Estado, condenando o sindi- mos presenciando no Congresso Na- IHU On-Line - Alguns sociólo-
calismo livre construído até então, cional, com a votação do PL 4330, gos apontam para precarização
e criando uma estrutura sindical no Supremo Tribunal Federal - STF, da terceirização em relação às
incorporada ao Estado, que os de- com a liberação da terceirização no mulheres, considerando que elas
finia como “órgãos de conciliação serviço público, nas “101 propostas têm salários inferiores aos dos
de classe” e que passam a funcio- de modernização trabalhista” da homens. Que impactos prevê em
nar como parte do aparelho estatal Confederação Nacional da Indústria relação ao trabalho feminino?
sob total controle do governo. Ape- - CNI, cuja principal “proposta” é
sar das resistências do movimento estabelecer o “negociado sobre o Graça Druck - Considero que a
operário a essa regulação, Vargas legislado”, ou seja, o fim da CLT. terceirização precariza o trabalho
conseguiu destruir os sindicatos li- dos homens e das mulheres. O que
vres, quando impôs que os direitos existe é uma desigualdade estru-
IHU On-Line - Que categorias ou
definidos pela CLT só seriam válidos tural entre o trabalho feminino e
que perfil de trabalhadores de-
para os trabalhadores cujos sindi- masculino imposto pela divisão
vem ser prejudicados por conta
30 catos fossem os oficiais, ou seja, da terceirização?
sexual do trabalho. Assim, as mu-
lheres continuarão em condições
criados pelo governo. É sobre essa
questão central da CLT que a críti- Graça Druck - Todos os traba- mais precárias dos que os homens,
ca dos estudiosos e de segmentos lhadores serão prejudicados, sem aprofundando essa situação com a
do movimento sindical se voltou. exceção. Mesmo que de forma di- liberação da terceirização.
ferenciada, como já se constata
No que se refere ainda aos direi-
hoje. Associar os trabalhadores IHU On-Line - Um dos pontos po-
tos estabelecidos pela CLT, estudos
terceirizados apenas aos que têm lêmicos do PL 4330 é a permissão
mostram, desde aquele momen-
menor qualificação não correspon- da terceirização na atividade-fim.
to, que a reação do empresariado
de à realidade. Isso vale tanto para A partir disso, se aponta para a
brasileiro foi a de não aceitar, não
a indústria como para os serviços. ampliação do número de traba-
aplicar, de burlar e condenar o en-
Isto é, há atividades complexas de lhadores como pessoas jurídicas.
rijecimento dessa legislação. Luiz
Werneck Vianna,3 outro estudioso discussão, http://bit.ly/Werneck200708, “Só Graça Druck - O PL 4330 libera
há um político no Brasil: o presidente da Re-
2 Leia a entrevista com Ângela Maria de Cas- pública”, em http://bit.ly/Werneck240808, a terceirização para qualquer tipo
tro Gomes “Vargas inverteu o jogo do poder Da fábrica para a selva. “A candidatura Ma- de atividade, ou seja, nenhuma di-
quando se matou”, publicada na edição 304 rina é uma mutação na política brasileira”, ferenciação entre atividade-meio e
da IHU On-Line, de 17-08-2009, disponível em http://bit.ly/Werneck200809, A busca
em http://bit.ly/1GoEhDP. (Nota da IHU por reconhecimento e participação política:
atividade-fim, como é hoje estabe-
On-Line) o combustível das manifestações http://bit. lecido pelo Enunciado 331; isto é,
3 Luiz Werneck Vianna: é professor-pes- ly/Werneck190613. Veja também, A política qualquer atividade, inclusive aque-
quisador na PUC-Rio. Doutor em Sociologia está viva na edição 192 de 21-08-2006, em
la que é própria ou especialidade
pela Universidade de São Paulo, é autor de, http://bit.ly/ihuon192; O PT no poder. 10
entre outros, A revolução passiva: iberismo e anos depois, “do ponto de vista da esquerda, da contratante, caindo por terra o
americanismo no Brasil (Rio de Janeiro: Re- tudo está por fazer”, publicada na edição 413 (falso) argumento do patronato de
van, 1997); A judicialização da política e das de 01-04-2013 da revista IHU On-Line. Leia que uma das principais justificati-
relações sociais no Brasil (Rio de Janeiro: Re- também A busca por reconhecimento e parti-
van, 1999); e Democracia e os três poderes no cipação política: o combustível das manifes- vas para a terceirização é a espe-
Brasil (Belo Horizonte: UFMG, 2002). Sobre tações. Entrevista com Luiz Werneck Vianna cialização ou focalização.
seu pensamento, leia a obra Uma sociologia in- publicada nas Notícias do Dia, de 19-06-2013,
dignada. Diálogos com Luiz Werneck Vianna, disponível em http://bit.ly/1KnphKj; e “A Mas também libera e legaliza a
organizada por Rubem Barboza Filho e Fer- cultura do ressentimento é venenosa”, afir- cascata de subcontratação, o que
nando Perlatto (Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2012). ma Werneck Vianna. Reportagem publicada tem sido objeto de denúncia e de
Confira as entrevistas exclusivas concedidas nas Notícias do Dia, de 11-11-2013, disponí-
por Werneck Vianna à IHU On-Line: Fascis- vel em http://bit.ly/1DsSbD4. (Nota da IHU fiscalização do Grupo Móvel de
mo: moralismo faz a política ficar de fora da On-Line) Erradicação do Trabalho Escravo,

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criado pelo Ministério do Traba- convenções coletivas, pois a força contra as Organizações Sociais - OS
lho e Emprego - MTE, formado por dos trabalhadores será menor. Isto, no serviço público. Esta possibilida-
auditores fiscais, procuradores do sem dúvida, exigirá outras estraté- de foi proposta quando da reforma
Ministério Público do Trabalho - gias de organização dos trabalha- do Estado, implementada no go-
MPT e da Polícia Federal - PF. Pois dores para além do modelo sindi- verno Fernando Henrique Cardoso
é exatamente através da ilimitada cal existente. As direções sindicais pelo então Ministro da Reforma do
cadeia de subcontratação que se têm que se repensar, redefinir suas Estado, Bresser Pereira. O uso de
encontra o uso do trabalho análo- ações. Especialmente o lugar que OS vem ocorrendo principalmente
go ao escravo, conforme divulgado ocupa a negociação com os pa- na área de saúde, no SUS, através
na imprensa e pelo Ministério do trões. Penso que as formas mais de contratos de gestão em admi-
Trabalho e Emprego - MTE, para o hegemônicas de atuação sindical, nistração de hospitais, laborató-
setor têxtil, construção civil, agro- hoje, precisam ser reinventadas. rios, cooperativas, onde o critério
negócios, dentre outros. de avaliação é quantitativo, para
IHU On-Line - Com a aprovação medir índices de produtividade. Os
Uma das principais propostas
do PL 4330, como ficam as demais profissionais e estudiosos da área
para pôr algum limite à terceiri-
pautas acerca da redução da jor- têm mostrado o quanto esse tipo de
zação, defendida pela maioria dos
nada de trabalho, licença-mater- contrato precariza o trabalho e leva
sindicatos e agentes do direito do
nidade de seis meses, licença-ma- à perda de qualidade nos serviços
trabalho — a responsabilidade so-
lidária —, é negada pelo PL, para ternidade para os pais, ampliação prestados à sociedade. No caso da
as empresas contratantes, mas de direitos? educação, setor no qual me insiro,
defende para o caso das terceiras isto vai levar ao fim dos concursos
Graça Druck - Até a aprovação públicos para professores e funcio-
que subcontratarem outras empre- final do PL 4330, ainda temos um
sas. Ou seja, é válida para as em- nários técnico-administrativos. Os
caminho a ser percorrido. E acho resultados serão catastróficos para
presas menores e subordinadas às que a atuação dos sindicatos e de-
contratantes que, teoricamente, o ensino, a pesquisa e a extensão
mais segmentos contrários precisa produzidos nas universidades. Atu-
estabelecem uma relação contra- continuar na linha do que foi feito
tual entre empresas, mas não acei- almente, só é possível produzir co-
nas mobilizações nacionais do dia nhecimento na universidade quando
ta que a mesma relação contratual 15 de abril. Ir às ruas, denunciar os
realizada entre a contratante e a há dedicação exclusiva dos profes-
parlamentares, paralisar as ativi-
contratada, isto é, também entre dades, amplificar a resistência. Isso
sores da carreira, que têm estabili-
dade para desenvolver as pesquisas.
31
empresas, estabeleça a responsa- é possível, se acreditarmos na for-
bilidade solidária. Com o fim dos concursos e da car-
ça do movimento social e não limi- reira, ficarão professores das orga-
Em síntese, não é só a questão tarmos a atuação através da nego- nizações sociais, com contratos por
da atividade-fim, embora esta seja ciação. Pois apenas negociar numa tempo determinado, sem qualquer
fundamental. conjuntura de ofensiva do capital e vínculo com o funcionalismo públi-
de forças de direita no país é, para co. Será uma forma de intermedia-
IHU On-Line - Outro ponto po- dizer o mínimo, perigoso. Por isso ção de mão de obra precarizada.
lêmico acerca dos riscos da ter- a mobilização é fundamental. Isso
vale para a defesa de todos os de- Isto representa um golpe na edu-
ceirização é o fim das convenções cação pública do país, num contex-
coletivas. Contudo, no ano pas- mais direitos dos trabalhadores.
to em que a “palavra de ordem”
sado, os garis do Rio de Janeiro do atual governo é “Pátria Educa-
conseguiram um aumento salarial IHU On-Line – Depois da apro-
dora”. A sintonia da extrema corte
histórico às margens do sindicato. vação do PL 4330, como avalia a
(o atual STF) com o empresariado
Por outro lado, com a terceiriza- decisão do STF de liberar a ter-
brasileiro é muito grande e não é
ção, já se sabe que a categoria ceirização nas áreas sociais do
por acaso que a ofensiva do capital
dos bancários, por exemplo, foi Estado, sinalizando o fim do con-
contra a CLT e na defesa da libera-
em certa medida desmantelada. curso público?
ção da terceirização através do PL
Que cenários vislumbra em rela-
Graça Druck - Por fim, mas não 4330 conta com o seu apoio, con-
ção às convenções coletivas?
menos importante, quando ainda forme demonstrado por esta deci-
Graça Druck - Um dos efeitos po- estava respondendo as questões são exatamente neste momento.
líticos mais importantes da tercei- dessa entrevista, fui (fomos todos) Penso que isso vai gerar uma forte
rização é a fragmentação dos cole- surpreendida com a decisão do STF mobilização, unindo os trabalha-
tivos de trabalho e a pulverização que decidiu liberar a terceirização dores do setor privado e público
dos sindicatos. Fraciona e discrimi- nas áreas sociais do Estado, ou seja, contra as ações que visam à preca-
na, cria trabalhadores de primeira permite o fim dos concursos públi- rização e à perda de direitos. Espe-
e de segunda categoria, incentiva cos para contratação de pessoal. ro que as organizações e os movi-
a concorrência entre eles e seus Esta é uma decisão após 17 anos, mentos sociais consigam responder
sindicatos. Ou seja, essa fragili- quando foi movida uma Ação Dire- a essa ofensiva. Depende de nossa
zação repercutirá fortemente nas ta de Inconstitucionalidade - Adin vontade política.

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A salgada conta da crise econômica


no bolso e na vida dos trabalhadores
e das trabalhadoras
O economista e professor Rodrigo Castelo argumenta que a escolha pela
austeridade econômica do Estado afetou principalmente os direitos e o
bolso da classe trabalhadora
Por Ricardo Machado

O pano de fundo da crise que o Bra-


sil vem atravessando diz respeito à
economia. No entanto, ela é atra-
vessada por inúmeras variantes que impac-
tam setores correlatos à pasta de Joaquim
radicalmente aos protestos mais recentes,
que ele classifica como reacionários. “Temos
a repressão contra as Jornadas de Junho,
completamente diferente dessas mobiliza-
ções reacionárias de rua em 2015, no qual
Levy e atingem diretamente o bolso da maior cidadãos tiram selfies com as forças repres-
parte da população, justamente a mais eco- sivas, inclusive apelando para um golpe mili-
nômica e socialmente vulnerável. “O governo tar”, critica.
tomou um determinado caminho para fazer o
O Brasil, em pleno século XXI, convive com
32 reajuste em decorrência da crise econômica.
uma cifra aterradora do trabalho infantil. “O
Escolheu o caminho da alta burguesia, que se
trabalho infantil ainda alcança 3,5 milhões
utiliza do Estado para repassar os custos da
de crianças e adolescentes, sendo que o nú-
crise capitalista aos trabalhadores”, avalia o
mero de mortes desse setor tem aumentado
professor e pesquisador Rodrigo Castelo, em
enormemente. O número de afastamento por
entrevista por telefone à IHU On-Line.
doenças do trabalho também é significativo,
“O ajuste fiscal previsto é da ordem de 70 pois tem um dado da Previdência Social de
bilhões de reais, e Joaquim Levy, sob ordem que entre 2006 e 2009 tivemos um aumento
expressa do Palácio do Planalto, está nego- de 2.100% nos afastamentos de trabalhadores
ciando pessoalmente no Congresso. E uma por questões de transtornos mentais”, expõe.
das principais medidas foi justamente essa “É hora de questionarmos profundamente o
retirada de direitos sociais dos trabalhado- modo de produção capitalista”, provoca.
res, que está condicionada nas MPs 664 e 665,
que vão fazer cortes no seguro-desemprego Rodrigo Castelo é graduado em Ciências
e nas pensões”, explica Rodrigo. Porém, de Econômicas pela Universidade Federal do
acordo com o entrevistado, essa política não Rio de Janeiro – UFRJ, onde também reali-
é nova e nem exclusiva do Partido dos Tra- zou mestrado e doutorado em Serviço Social.
balhadores, tratando-se da reafirmação da Atualmente é professor da Escola de Servi-
ideia de superávit primário que vem desde o ço Social da Universidade Federal do Estado
segundo mandato do ex-presidente Fernando do Rio de Janeiro - UniRio e pesquisador do
Henrique Cardoso, cumpridor da cartilha do Grupo de Trabalho da Teoria Marxista da De-
Consenso de Washington. pendência, ligado à Sociedade Brasileira de
Economia Política - SEP.
Ao pensar a atual conjuntura, Rodrigo re-
corda as Jornadas de Junho1 que se opõem Confira a entrevista.
de de temas como os gastos públicos em grandes eventos
1 Jornadas de Junho: Os protestos no Brasil em 2013 esportivos internacionais, a má qualidade dos serviços pú-
foram várias manifestações populares por todo o país que blicos e a indignação com a corrupção política em geral. Os
inicialmente surgiram para contestar os aumentos nas ta- protestos geraram grande repercussão nacional e interna-
rifas de transporte público,principalmente nas principais cional. A edição 191 do Cadernos IHU Ideias, #Vemprárua.
capitais. Em seu ápice, milhões de brasileiros estavam nas Outono Brasileiro?, traz uma série de entrevista sobre o
ruas protestando não apenas pela redução das tarifas e a tema, disponível em http://bit.ly/1Fr6RZj. (Nota da IHU
violência policial, mas também por uma grande varieda- On-Line)

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Levy2, sob ordem expressa do Pa-


lácio do Planalto, está negociando
pessoalmente no Congresso. E uma
das principais medidas foi justa-
O governo tomou um deter- mente essa retirada de direitos
sociais dos trabalhadores, que está
minado caminho para fazer condicionada nas MPs 664 e 665,
que vão fazer cortes no seguro-de-
o reajuste em decorrência da semprego e nas pensões. Na ver-
crise econômica. Escolheu o ca- dade é a reafirmação do superávit
primário que vem desde o segundo
minho da alta burguesia mandato do ex-presidente Fernan-
do Henrique Cardoso3, que segue a
cartilha do velho — mas ainda vi-
IHU On-Line – O que ocorre com riqueza produzida pelos trabalha- gente — Consenso de Washington4.
o trabalho no Brasil? dores, escudada pelos aparatos Nós temos, então, uma linha neo-
repressivos/legislativos do Estado liberal de continuidade desde FHC
Rodrigo Castelo – A despeito de
cada vez mais conservador. até o segundo governo Dilma, com a
análises superficiais sobre o mer-
cado de trabalho, o capitalismo manutenção do superávit primário
dependente é uma realidade con- IHU On-Line – O que são as cha- e de um amplo arcabouço jurídico,
temporânea no Brasil. A sua base madas “correções de distorções” como a Desvinculação de Receitas
estrutural são a superexploração que o governo aprovou ao sancio- da União e a Lei de Responsabili-
da força de trabalho e o subimpe- nar as MPs 664 e 665 no dia 30 de dade Fiscal, contingenciamento de
rialismo das empresas transnacio- dezembro de 2014? verbas e não execução de verbas
nais brasileiras. Isto ainda ocorre empenhadas no orçamento.
Rodrigo Castelo - O governo
porque a riqueza produzida pelos
tomou um determinado caminho
trabalhadores no nosso país tem IHU On-Line – De que forma a
para fazer o reajuste em decorrên-
que ser repartida entre as clas- diminuição dos direitos dos traba-
cia da crise econômica. Escolheu
ses dominantes internacionais e lhadores está relacionada ao pro-
o caminho da alta burguesia, que
nacionais, sendo estas últimas
se utiliza do Estado para repassar
jeto de austeridade econômica 33
subordinadas aos interesses do vigente no Brasil?
imperialismo. E para que a supe- os custos da crise capitalista aos
trabalhadores. O atual governo Rodrigo Castelo - Um dos prin-
rexploração da força de trabalho
brasileiro aposta que o baixo cres- cipais impactos sobre os direitos
ocorra, é necessária a escalada
cimento se dá pela retração de in- dos trabalhadores, com vigência
da coerção do Estado e de forças
vestimentos capitalistas no país, de mais de 15 anos de austerida-
paramilitares, militarizando-se
a questão social. Ou seja, a vio- internacionais e nacionais, e busca 2 Joaquim Levy (1961): engenheiro e eco-
lência como potência econômica, então retomar a confiança dos in- nomista brasileiro, é o atual Ministro da Fa-
vestidores sinalizando para a me- zenda do Brasil. É PhD em economia pela
para citarmos uma expressão em- Universidade de Chicago (1992), mestre
pregada por Marx1 nos seus estu- lhoria de determinadas variáveis em economia pela Fundação Getulio Var-
dos sobre a acumulação primitiva macroeconômicas. Uma delas é a gas (1987) e graduado em engenharia naval
continuação da realização do su- pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
do capital, é vigente no mundo (Nota da IHU On-Line)
da produção para a extração da perávit primário, visando garantir 3 Fernando Henrique Cardoso (1931):
mais-valia e a má distribuição da o pagamento da dívida pública aos sociólogo, cientista político, professor uni-
detentores dos seus títulos. Para versitário e político brasileiro. Foi o 34º
1 Karl Marx (Karl Heinrich Marx, 1818- Presidente do Brasil, por dois mandatos con-
1883): filósofo, cientista social, economista,
isso, o governo sinaliza para o mer- secutivos. Conhecido como FHC, ganhou no-
historiador e revolucionário alemão, um dos cado que vai ter liquidez no caixa, toriedade como Ministro da Fazenda (1993-
pensadores que exerceram maior influência prometendo um ajuste fiscal draco- 1994), com a instauração do Plano Real para
sobre o pensamento social e sobre os desti- combate à inflação. (Nota da IHU On-Line)
nos da humanidade no século XX. A edição
niano em relação aos gastos sociais. 4 Consenso de Washington: conjunto de
número 41 dos Cadernos IHU ideias, de Ele também acena com algumas medidas composto por dez regras básicas,
autoria de Leda Maria Paulani, tem como tí- medidas de aumento das receitas, formulado em novembro de 1989 por econo-
tulo A (anti)filosofia de Karl Marx, disponí- mistas de instituições financeiras baseadas
vel em http://bit.ly/173lFhO. Também sobre
mas estas estão em queda dado o em Washington d.C., como o FMI, o Banco
o autor, confira a edição número 278 da IHU baixo crescimento econômico. En- Mundial e o Departamento do Tesouro dos
On-Line, de 20-10-2008, intitulada A finan- tão, nessa balança para aumentar Estados Unidos, fundamentadas num tex-
ceirização do mundo e sua crise. Uma leitu- to do economista John Williamson, do In-
o superávit primário, que seria me-
ra a partir de Marx, disponível em http:// ternational Institute for Economy, e que se
bit.ly/ihuon278. Leia, igualmente, a entre- lhorar a arrecadação e diminuir os tornou a política oficial do Fundo Monetário
vista Marx: os homens não são o que pensam e gastos, o governo colocou o peso Internacional em 1990, quando passou a ser
desejam, mas o que fazem, concedida por Pedro sobre a diminuição dos gastos. O “receitado” para promover o “ajustamento
de Alcântara Figueira à edição 327 da IHU On- macroeconômico” dos países em desenvolvi-
Line, de 03-05-2010, disponível em http://bit. ajuste fiscal previsto é da ordem mento que passavam por dificuldades.(Nota
ly/ihuon327. (Nota da IHU On-Line) de 70 bilhões de reais, e Joaquim da IHU On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 27 DE ABRIL DE 2015 | EDIÇÃO 464


DESTAQUES DA SEMANA TEMA

de fiscal, é a não concretização de IHU On-Line – De que forma os Petroquímico do Estado do Rio de
direitos sociais conquistados a du- trabalhadores pagarão a conta da Janeiro – Comperj.7 Nesta obra
ras penas na Constituição Federal economia de R$ 70 bilhões que o bilionária, alvo da operação Lava
de 1988. A Constituição é fruto de governo anunciou? Jato,8 empreiteiras trabalham com
um grande acordo costurado entre várias empresas terceirizadas, e
Rodrigo Castelo - O governo
as classes dominantes após as vitó- essas empresas, por conta da falta
anunciou que a meta do superávit
rias conservadoras do Centrão. Nas de repasse do governo pelas obras,
primário é de 1,2% do PIB. O gover-
disputas entre os constituintes, tomam como primeira medida a
no queria fazer 80 bilhões, o núcleo
deve-se fazer um balanço entre demissão dos seus trabalhadores,
político pediu para ficar em torno
as concessões dos dominantes aos que por sua vez protagonizam uma
de 50 e 60. Então, a proposta nego-
subalternos e as conquistas arran- das principais lutas operárias no
ciada está em torno de 70 bilhões.
cadas com muita luta política nas Brasil contemporâneo, fechando
Não sei qual vai ser o número exa-
ruas, fábricas e parlamentos. De inclusive a Ponte Rio-Niterói. Após
to, mas é o que está sendo nego-
todo modo, a Constituição Fede- este corajoso ato, foram recebidos
ciado. Na educação o impacto é de
ral tem um arcabouço jurídico que no Palácio do Planalto.
7 bilhões, o que paralisou diversas
permite vislumbrarmos medidas
atividades essenciais nas escolas, Então, observe: aumento do de-
importantes para os trabalhadores,
universidades e institutos fede- semprego, atraso no pagamento de
como, por exemplo, a seguridade
rais. Universidades como a UFRJ, a salários durante meses e a retirada
social e a educação pública. Mesmo
maior federal do país, não come- de antigos direitos sociais para fa-
o Brasil tendo um sistema híbrido
çaram suas atividades nos prazos zer o caixa do superávit primário
entre os setores público e priva-
definidos pelos seus calendários e garantir fluxo da renda do fundo
do nestas áreas, houve importan-
acadêmicos. No plano estadual, a público para o pagamento da dívida
tes conquistas que, vale ressaltar,
Universidade do Estado do Rio de pública. Além disso, temos o con-
muitas vezes nem saíram do papel.
Janeiro - UERJ e a Universidade Es- tingenciamento dos parcos recur-
Agora, com esses cortes orçamen-
tadual do Norte Fluminense - UENF sos das políticas sociais. Vamos ter
tários sistemáticos feitos ao longo
vivem uma situação calamitosa. E um rebaixamento ainda maior do
de 20 anos, percebemos que os
o Cederj6, consórcio que adminis- padrão de proteção social no Brasil
avanços jurídicos muitas vezes não
tra parte da educação a distância nesses próximos anos tendo em vis-
se concretizam em políticas so-
no Estado do RJ, está há meses sem ta essa política implementada.
ciais. Esse seria um elemento para
34 nos debruçarmos. Hoje em dia,
pagar os seus professores terceiri-
zados e já se fala em paralisações IHU On-Line - O que significa a
tendo em vista a privatização das
e até mesmo numa greve, o que se- escolha de um governo que se diz
políticas sociais, o Estado repassa
ria um marco na organização deste de “esquerda” em optar pela sal-
verbas e delega para organizações
segmento dos trabalhadores. vação da economia diminuindo os
não governamentais, Organização
da Sociedade Civil de Interesse Os impactos dos cortes já são direitos dos trabalhadores?
Público - Oscips,5 fundações, etc., visíveis. O primeiro é o aumento Rodrigo Castelo - O primeiro
as responsabilidades e a gestão do desemprego. Se o governo vai governo Lula foi eleito como uma
de direitos sociais, que, ao fim e gastar menos, significa que haverá alternativa rebaixada de contrapo-
ao cabo, se tornam mercadorias e menos investimentos em setores
excluem milhões de cidadãos de importantes da economia. Signi- 7 Complexo Petroquímico do Estado do
acessar bens básicos à sobrevivên- fica, também, que o governo vai Rio de Janeiro - Comperj: está localizado
cia humana. abrir menos concursos públicos. no município de Itaboraí, no Leste Flumi-
nense, ocupando uma área de 45 km², e terá
Ora, já percebemos desde o início como objetivo estratégico expandir a capaci-
de 2014 um aumento da taxa do de- dade de refino da Petrobras para atender ao
semprego de 5% para 7%. Podemos crescimento da demanda de derivados no
5 Organização da Sociedade Civil de In- perceber aí uma mudança de pa- Brasil, como óleo diesel, nafta petroquímica,
teresse Público ou OSCIP: é um título for- querosene de aviação, coque e GLP (gás de
necido pelo Ministério da Justiça do Brasil, tamar no desemprego nacional. O cozinha). A previsão de entrada em operação
cuja finalidade é facilitar o aparecimento de segundo ponto está nos atrasos sa- da primeira refinaria é agosto de 2016, com
parcerias e convênios com todos os níveis de lariais e, particularmente, no atra- capacidade para refino de 165 mil barris de
governo e órgãos públicos (federal, estadual petróleo por dia. (Nota da IHU On-Line)
e municipal) e permite que doações realiza-
so do pagamento dos terceirizados 8 Petrolão: apelido dado a Operação Lava
das por empresas possam ser descontadas no do governo. Vive-se a demissão em Jato. Realizada pela Polícia Federal do Brasil,
imposto de renda.1 OSCIPs são ONGs criadas massa e no atraso no pagamento cuja deflagração da fase ostensiva foi iniciada
por iniciativa privada, que obtêm um certi- dos trabalhadores do Complexo em 17 de março de 2014, com o cumprimen-
ficado emitido pelo poder público federal ao to de mais de uma centena de mandados de
comprovar o cumprimento de certos requisi- busca e apreensão, prisões temporária, pre-
tos, especialmente aqueles derivados de nor- 6 Consórcio Cederj: é formado por sete ventivas e conduções coercitivas, o objetivo é
mas de transparência administrativas. Em instituições públicas de ensino superior: apurar um esquema de lavagem de dinheiro
contrapartida, podem celebrar com o poder CEFET, UENF, UERJ, UFF, UFRJ, UFRRJ suspeito de movimentar mais de 10 bilhões
público os chamados termos de parceria, que e UNIRIO, e conta atualmente com mais de de reais na Patrobras. É considerado pela
são uma alternativa interessante aos convê- 30 mil alunos matriculados em seus 15 cur- Polícia Federal, como a maior investigação de
nios para ter maior agilidade e razoabilidade sos de graduação a distância. (Nota da IHU corrupção da história do País. (Nota da IHU
em prestar contas. (Nota da IHU On-Line) On-Line) On-Line)

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sição ao neoliberalismo no Brasil. propriação primária e secundária e Jirau12. Por fim, a ocupação mili-
Mas, antes de assumir o governo, o que sofrem os trabalhadores, bem tar de comunidades populares aqui
Partido dos Trabalhadores e a Cen- como da superexploração intensi- no Rio de Janeiro, tendo em vista
tral Única dos Trabalhadores - CUT ficada para gerar dividendos para a segurança nacional para a reali-
já haviam capitulado. Ao longo dos os detentores de ações e títulos da zação dos megaeventos, ocupações
anos 1990, o projeto democrático- dívida pública. essas que têm gerado diversos ca-
popular, hegemonizado pelo PT e sos de mortes, torturas e seques-
pela CUT, abandona qualquer de- Articulado organicamente ao tros pela Polícia Militar, amparados
fesa de um projeto socialista da consenso, temos a repressão con- pelos fuzileiros navais e pelo Exér-
classe trabalhadora para aderir ao tra as Jornadas de Junho, comple- cito nesses últimos anos.
chamado social-liberalismo, salpi- tamente diferente dessas mobiliza-
cado por elementos do antigo na- ções reacionárias de rua em 2015,
IHU On-Line – De que maneira
cional-desenvolvimentismo, hoje no qual cidadãos tiram selfies com
as mudanças no emprego, em que
chamado de neodesenvolvimentis- as forças repressivas, inclusive
houve aumento dos postos de tra-
mo. Isso se deu ao longo da déca- apelando para um golpe militar!
balho mais precários, evidenciam
da de 1990, não somente nos seus Além disso, temos o uso da Força
apenas uma mudança conjuntural
programas e documentos político- Nacional,9 autêntica guarda pre-
e não estrutural do mundo do tra-
ideológicos, mas também nas suas toriana do governo federal, nos
balho no Brasil?
práticas legislativas, governamen- canteiros de obras de importantes
tais e no sindicalismo participativo empreendimentos do Programa de Rodrigo Castelo - Marx falava
e cidadão, uma caricatura defor- Aceleração do Crescimento - PAC10 que os críticos da economia polí-
mada do sindicalismo autônomo e para reprimir as rebeliões de traba- tica precisavam ir além dos fenô-
classista que a CUT defendeu ao lhadores e movimentos indígenas, menos aparentes. No nosso caso,
longo dos anos 1980. Eles já assu- como ocorridas em Belo Monte11 precisamos ir além dos números do
mem preparados para implementar mercado de trabalho e adentrar-
9 Departamento da Força Nacional de
as políticas neoliberais, arrefecen- Segurança Pública ou Força Nacional
mos o reino oculto da produção.
do algumas delas e aprofundando de Segurança Pública - FNSP: criado em No ano de 2002, o índice de traba-
outras. Por exemplo, as privatiza- 2004, pelo então presidente Lula, e com sede lhadores informais era de 42,53% e
em Brasília, no Distrito Federal, é um progra- hoje em dia está em 32%. Esta que-
ções ocorrem frequentemente em ma de cooperação de Segurança Pública bra-
da, contudo, se estabilizou a par-
diversas áreas tanto na infraestru-
tura como nas áreas sociais, agora
sileiro, coordenado pela Secretaria Nacional
de Segurança Pública (SENASP), do Ministé- tir de 2014. Milhões de empregos
35
não mais com a venda direta dos rio da Justiça (MJ). (Nota da IHU On-Line) formais foram gerados no país ao
10 Programa de Aceleração do Cresci-
ativos públicos, mas fazendo as mento (PAC): Lançado em janeiro de 2007,
longo dos governos petistas, sendo
chamadas concessões público–pri- é um programa do Governo Federal brasileiro que 90% foram na faixa de até um
vadas. O fundo público entra com que engloba um conjunto de políticas econô- salário-mínimo e meio. Além dis-
micas, planejadas para os próximos quatro
o dinheiro e o privado entra tanto anos, e que tem como objetivo acelerar o cres- tler, dia 03-08-2011, disponível em http://
com a gestão como com os possí- cimento econômico do Brasil. (Nota da IHU bit.ly/ihu030811. (Nota da IHU On-Line)
veis lucros gerados. O alcance foi On-Line) 12 Usina Hidrelétrica de Jirau: usina
muito maior do que nos governos 11 Belo Monte: projeto de construção de usi- hidrelétrica em construção no Rio Madeira,
na hidrelétrica previsto para ser implementa- a 150 km de Porto Velho, em Rondônia. Foi
FHC. O PT entregou, de bandeja, do em um trecho de 100 quilômetros no Rio planejada para ter um reservatório de 258
direitos sociais até então intocados Xingu, no estado brasileiro do Pará. Planeja- km², capacidade instalada de 3.450 MW e
pela exploração capitalista. da para ter potência instalada de 11.233 MW, que faz parte do Complexo do Rio Madei-
é um empreendimento energético polêmico ra. A construção está a cargo do consórcio
Outro elemento importante que não apenas pelos impactos socioambientais “ESBR - Energia Sustentável do Brasil”, for-
que serão causados pela sua construção. A mado pelas empresas Suez Energy (50,1%),
se mantém é o brutal apassivamen-
mais recente controvérsia sobre essa usina Eletrosul (20%), Chesf (20%) e Camargo
to da classe trabalhadora. O Esta- envolve o valor do investimento do projeto Corrêa (9,9%). Sobre Jirau, confira a edição
do brasileiro conjuga elementos de e, consequentemente, o seu custo de geração. 39 dos Cadernos IHU em formação, in-
cooptação e de coerção. Do lado Saiba mais na edição 39 dos Cadernos IHU titulada Usinas hidrelétricas no Brasil: ma-
em formação, Usinas hidrelétricas no Bra- trizes de crises socioambientais, disponível
do consentimento passivo da classe sil: matrizes de crises socioambientais, em em http://bit.ly/ih0UqU, a Conjuntura da
trabalhadora, podemos pensar nos http://bit.ly/ihuem39; e nas entrevistas Semana. A rebelião de Jirau, disponível em
aumentos reais do salário-mínimo, publicadas no sítio do IHU: Belo Monte: a http://bit.ly/15LbSZT, e as entrevistas pu-
barreira jurídica, com Felício Pontes Júnior, blicadas no sítio do Instituto Humanitas
o aumento do emprego formal,
dia 26-04-2012, em http://bit.ly/ihu260412; Unisinos – IHU: Hidrelétrica de Jirau:
dos programas de transferência de Belo Monte. “O capital fala alto, é o maior palco de inadimplência trabalhista, com
renda, das cotas sociais nas uni- Deus do mundo”, com Ignez Wenzel, dia 28- Maria Ozânia da Silva, dia 14-03-2011, dispo-
versidades, etc. Do lado do con- 01-2012, em http://bit.ly/ihu280112; Belo nível em http://bit.ly/I1hg3h; “O conflito em
Monte e as muitas questões em debate, com Jirau é apenas o início do filme”, com Elias
sentimento ativo, temos a adesão Ubiratan Cazetta, dia 23-01-2012, em http:// Dobrovolski e João Batista Toledo da Silvei-
da aristocracia operária brasileira bit.ly/ihu230112; “Belo Monte é o símbolo do ra, dia 24-03-2011, disponível em http://
como gestores de políticas neolibe- fim das instituições ambientais no Brasil”, bit.ly/HXbnnm; Jirau e Santo Antônio: um
com Biviany Rojas Garzon, dia 13-12-2011; canteiro de revoltas, com Luís Fernando
rais e de fundos de pensão soldado-
em http://bit.ly/ihu131211; Não é hora de jo- Novoa Garzón, dia 06-04-2011, disponível
res do capital financeiro brasileiro, gar a toalha e pendurar as chuteiras na luta em http://bit.ly/HXbyyY. (Nota da IHU
responsável pelo alto grau de ex- contra Belo Monte, com Dom Erwin Krau- On-Line)

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so, tivemos um aumento absoluto sença desse tipo de trabalho nos IHU On-Line - Não é um proces-
da massa salarial e do consumo da grandes centros urbanos, como so binário. Existem as duas coisas
classe trabalhadora. É neste perí- nas confecções têxteis de grandes ao mesmo tempo. Correto?
odo que o governo cria o conceito cadeias comerciais, na construção
Rodrigo Castelo - Exatamente.
de nova classe média, uma com- civil em São Paulo, Minas Gerais e
O Brasil não sofre de ausência de
pleta vulgarização da economia e Rio de Janeiro, inclusive de obras
desenvolvimento capitalista. De-
da sociologia, no qual as classes so- do programa Minha casa, minha
pendência e subdesenvolvimen-
ciais se resumem a um quantitativo vida. Constata-se, portanto, um
to não são resultados da falta de
monetário. desenvolvimento desigual e com-
desenvolvimento. As agudas ex-
binado do capitalismo dependente
Por baixo desses números feti- pressões da nossa questão social
brasileiro, que conjuga processos
chizados, todavia, há uma realida- são decorrentes justamente das
ultramodernos de produção com
de que mostra a superexploração particularidades nacionais do de-
formas que se assemelham ao senvolvimento capitalista, aliadas
da força de trabalho. Houve um
pré-capitalismo. É uma realidade às determinações externas causa-
aumento real do salário-mínimo
ainda presente hoje no mundo do das pelo imperialismo e como as
em torno de 70%, mas devemos
trabalho brasileiro. classes dominantes brasileiras,
nos perguntar se o salário-mínimo
atende as necessidades dos traba- tanto as novas como as antigas,
lhadores. O Departamento Inter-
Terceirização se aliam ao capital estrangeiro. Ao
sindical de Estatística e Estudos invés de querermos promover mais
E, por fim, podemos também desenvolvimento, temos que ter
Socioeconômicos - Dieese calcula,
destacar que o aumento da ter- clareza que mais desenvolvimen-
de acordo com o capítulo dos direi-
ceirização no Brasil, caso esse PL to significa mais desenvolvimento
tos sociais da Constituição Federal,
4330 seja aprovado, impactará nos capitalista, o centro das causas do
que o salário-mínimo deveria ser
salários. Sabemos que os terceiri- problema.
de R$ 3.100 para atender as ne-
zados recebem em torno de R$ 500
cessidades básicas de uma família Nos últimos anos neoliberais,
a menos do que os formalmente
integrada por quatro pessoas. Ora, construiu-se um novo patamar do
contratados. E o tempo de traba-
o salário-mínimo brasileiro é um capitalismo dependente. O Brasil é
lho no emprego é de dois anos a
quarto disso. hoje a sétima economia do mundo
menos. Eles têm, ainda, jornada
e continuamos convivendo com ní-
36 Sobre a rotatividade do trabalho, de trabalho mais estendida, em
veis de miséria e pobreza enormes
estudos da Secretaria de Assuntos torno de três horas, se comparada
Estratégicos apontam que o Brasil à média dos contratados com car- e o mundo do trabalho apresenta
tem a maior taxa de rotatividade teira formal. E também os aciden- problemas estruturais como des-
do trabalho no mundo. Também te- tes e mortes: 80% das mortes que tacado anteriormente. Em suma,
mos dados dos órgãos públicos de acontecem no mundo do trabalho é preciso se colocar novas pergun-
aumento de acidentes de trabalho. se dão com trabalhadores terceiri- tas e fugirmos da ilusão do desen-
zados. Por trás da bela aparência volvimento capitalista: é hora de
O trabalho infantil ainda alcança
dos números, temos uma dura re- questionarmos profundamente o
3,5 milhões de crianças e adoles-
alidade do mundo do trabalho no modo de produção capitalista e
centes, sendo que o número de
Brasil. recolocarmos em tela o projeto
mortes desse setor tem aumentado
socialista, pulando a etapa demo-
enormemente. O número de afas- Em suma, temos uma remunera- crático-burguesa da revolução sem
tamento por doenças do trabalho ção da força de trabalho abaixo das deixar de dar conta das suas tare-
também é significativo, pois tem suas necessidades básicas, aumen- fas nacionais, agrárias, trabalhistas
um dado da Previdência Social de to e intensificação da jornada de e democráticas.
que entre 2006 e 2009 tivemos um trabalho no Brasil nos últimos anos.
aumento de 2.100% nos afastamen- E o quadro piorará, e muito, com o
tos de trabalhadores por questões IHU On-Line – Diante deste ce-
aumento da terceirização. nário, que alternativas são pos-
de transtornos mentais.
síveis à crise brasileira? De onde
IHU On-Line – Levando em viriam os recursos para garantir
Escravidão
conta toda essa complexidade os direitos dos trabalhadores?
do mundo do trabalho no Brasil,
Há ainda a situação do trabalho Rodrigo Castelo - O Fundo Pú-
estamos diante de um proces-
análogo ao escravismo no Brasil. blico brasileiro, que hoje está na
so civilizatório ou de barbárie?
Dentro das cadeias produtivas casa do trilhão, tem 45% de seus
Como podemos perceber estas
nacionais e internacionais do ca- recursos destinados ao pagamen-
características?
pital monopolista temos a pre- to da dívida pública. É algo na
sença desse tipo de trabalho. E Rodrigo Castelo - Dialeticamen- casa de 800 bilhões de reais. Os
vale ressaltar que isso não se dá te temos a produção da civilização juros, no Brasil, a despeito de um
somente em regiões periféricas e capitalista gerando a barbárie para afrouxamento da política mone-
rurais do Brasil. Tivemos a pre- a classe trabalhadora. tária no primeiro governo Dilma,

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ainda se mantêm altíssimos. É a Questão estrutural, não a luta autônoma e classista dos
maior taxa do mundo. No Brasil, macroeconômica trabalhadores.
nos últimos 20 anos, não se des-
Vale ressaltar, neste caso, que
montou a hegemonia das frações Ora, mudanças na hegemonia devemos promover imediatamen-
rentistas das classes dominantes, das frações do grande capital não te uma auditoria cidadã da dívida
embora se constate uma enorme se dão meramente com ajustes
pública brasileira. Os países que
interpenetração dos setores pro- na política monetária. A política
já fizeram isso geralmente abatem
dutivos, bancários e financeiros macroeconômica não é suficiente
em torno de 70% do estoque da dí-
dos grandes capitais. O rentismo para mudar questões estruturais.
vida pública. Se nós diminuirmos
Essas questões vão se dar com
garante a sua supremacia com o 70% da dívida brasileira, teríamos
deslocamento do bloco de poder
controle do Banco Central, Minis- uma consequente diminuição do
dominante das frações rentistas,
tério da Fazenda, Ministério do pagamento desses juros, e tal va-
aliadas dos setores produtivos,
Planejamento, Tesouro Nacional, para a classe trabalhadora. E, daí, lor poderia ser utilizado nas polí-
Casa Civil e até mesmo de gabine- podemos ter mudanças substanti- ticas sociais. Há dinheiro no fundo
tes do Palácio do Planalto. Assim, vas na política econômica. Não é a público: cabe à classe trabalhadora
tem assegurado o fluxo de parte gestão da política macroeconômica e seus aliados se articularem para
significativa do fundo público para que promoverá o rompimento com disputar esse quinhão. E não há
os seus cofres. o capitalismo dependente, mas sim tempo a perder!

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Terceirização e trabalho escravo:


níveis pandêmicos de precarização
Para Vitor Filgueiras os governos petistas não promoveram avanços na legislação
trabalhista e fortaleceram o despotismo patronal
Por Patricia Fachin

“N ão há surpresa em ter-
mos chegado a esse
momento após 12 anos
de gestão petista”, porque quando o
PT teve maior influência no Congres-
Na entrevista a seguir, concedida
por e-mail, Vitor Filgueiras comenta
ainda os efeitos da terceirização caso
o PL 4330 seja sancionado e enfatiza
que, com a aprovação das MPs 664 e
so, “leis que facilitam ou promovem a 665, “o governo está efetivamente
precarização do trabalho e reduzem di-
promovendo uma provável geração de
reitos sociais foram aprovadas”, afirma
trabalhadores que nunca terá acesso
Vitor Filgueiras à IHU On-Line.
ao seguro-desemprego”. De acordo
Auditor fiscal do MTE, Filgueiras tem com ele, “de todos os contratos firma-
acompanhado a investigação de casos dos em 2013, 41,2% foram encerrados
de trabalho escravo no país, especial- antes do fim do ano. A participação de
38 mente em setores da construção civil,
jovens entre esses desligados é 50%
da mineração, da siderurgia, ramos do
superior à participação de jovens en-
agronegócio, e informa que dos dez
tre os trabalhadores que permaneciam
maiores casos de flagrantes relaciona-
empregados no final do ano (27,9%
dos a trabalho escravo em 2014, apu-
contra 18,7%)”.
rados pelo MTE, “havia trabalhadores
terceirizados em oito casos, totalizan- Vitor Filgueiras possui doutorado em
do 384 trabalhadores contratados des- Ciências Sociais pela Universidade Fe-
sa forma. Em sete desses flagrantes, deral da Bahia – UFBA, mestrado em
todos os trabalhadores eram terceiri- Ciência Política pela Universidade Es-
zados”. De acordo com ele, nos últimos tadual de Campinas – Unicamp e gra-
anos, entre 2010 e 2014, o MTE apurou
duação em Economia pela UFBA. Atual-
4.183 casos de trabalhos submetidos à
mente é auditor fiscal do Ministério do
exploração; desse total, “3.382 eram
Trabalho e Emprego - MTE.
terceirizados, o que equivale a 81% do
total de trabalhadores vitimados”. Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como explica a Vitor Filgueiras - No plano ime- Não há surpresa em termos che-
aprovação do PL 4330 na Câma- diato, a aprovação do PL 4330 na gado a esse momento após 12 anos
ra dos Deputados, depois de 10 Câmara é corolário da iniciativa e de gestão petista. Durante os úl-
anos de tramitação no Congresso? empenho do presidente da casa, timos 12 anos, quando o PT pre-
Como chegamos a esse momen- consumada pela ampla hegemo- sidia ou tinha maior influência no
to, especialmente depois de 12 nia dos interesses empresariais Congresso, leis que facilitam ou
anos de gestão petista à frente entre os deputados, que, quando promovem a precarização do tra-
da presidência, com maioria no não financiados, são eles mesmos balho e reduzem direitos sociais
Congresso? empresários. foram aprovadas, como a reforma

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DE CAPA IHU EM REVISTA

O PT pouquíssimo contribuiu para


a melhoria da produção legislativa
em termos de proteção ao trabalho
nos últimos 12 anos, e ainda conse-
As forças de esquerda, em ge- guiu piorar a capacidade de efeti-
vação das normas pelo Estado.
ral, têm se mantido acuadas, Mas, sem tirar as responsabilida-
fragmentadas e fragilizadas, e des do PT, a aprovação do PL 4330
aqueles que se pretendem lide- é diretamente derivada da iniciati-
va do presidente da Câmara. A polí-
ranças contam, quase sempre, tica do PT na produção legislativa,
antes de perder a Câmara, foi con-
com pouca capacidade de mobili- traditória e evitou rasgar direitos
zação ou mesmo de interlocução explicitamente.

com a população trabalhadora Na atuação legislativa, a relação


entre uma guinada claramente à
direita do PT nas últimas décadas,
que com muita indulgência pode
da previdência, o trabalho avulso Câmara e no Senado, mas vetado ser caracterizada como contraditó-
fora dos portos e a possibilidade de pela Presidência após imensa pres- ria, e o fisiologismo como padrão
contratação de empregados sem são social. de vinculação com os demais parti-
anotação da Carteira de Trabalho e dos da “base”, ajuda a entender o
Previdência Social - CTPS por em- Contribuições atual estado das coisas.
pregador rural. ineficazes
É verdade que leis que flagran- IHU On-Line - A partir da apro-
As poucas contribuições progres-
temente retiram direitos, a exem- vação do PL na Câmara, que aná-
sistas em matéria legislativa dos
plo do chamado “negociado sobre lise é possível fazer acerca do
governos petistas, como a altera-
o legislado” e da própria libera-
ção do conceito de trabalho análo-
que está acontecendo no Brasil, 39
lização da terceirização, nunca acerca do papel da “esquerda” e
go ao escravo, em 2003, são subs-
foram votadas, inclusive porque sobre a atual situação do mundo
tancialmente ineficazes porque o
não tem sido típico das gestões do trabalho?
governo não garante condições mí-
petistas atender explicitamente Vitor Filgueiras - O que está
nimas de imposição da norma, vide
esse tipo de demanda empresarial acontecendo no Brasil, desde a
o número de Auditores Fiscais do
em prejuízo dos trabalhadores. As década de 1990, é uma crescente
Trabalho em atividade.
maiores iniciativas precarizadoras ofensiva do capital contra o traba-
dos governos petistas têm operado Em suma, os governos petistas lho. Essa ofensiva se dá em todos
muito mais via “acordões” (como praticamente não promoveram os planos, dentro e fora do Estado,
o selo da cana-de-açúcar e o acor- avanços na legislação que versa e vai desde a tentativa ou imple-
do com as grandes obras para evi- sobre proteção ao trabalho, e me- mentação de mudanças legislativas
tar greves) ou por omissão (como nos ainda contribuíram para forta- contra as normas que limitam a ex-
o grotesco desmantelamento do lecer o campo que propõe limitar ploração do trabalho, até o assé-
Ministério do Trabalho, cujo indi- o despotismo patronal no nosso dio, intimidação ou uso da violên-
cador mais contundente é o fato capitalismo. cia direta contra os trabalhadores
de haver 500 Auditores Fiscais do Assim, Eduardo Cunha1 e sua às instituições que existem para
Trabalho a menos, hoje, do que ha- turma, incluindo os tradicionais proteger minimamente o trabalho.
via em 1990, e de estarem vagos representantes dos interesses neo- A ofensiva também ocorre no
— simplesmente esperando pela liberais, como o PSDB, e o sindica- âmbito discursivo, onde os empre-
realização de um concurso — 1000 lismo pelego, encontraram terreno sários têm conseguido hegemoni-
cargos de Auditores). fértil para promover essa agressão zar e tornar senso comum grande
Um artigo inserido na Lei da Su- contra a classe trabalhadora con- parte da retórica que sustenta seus
per-Receita (chamado de Emenda substanciada no PL 4330. interesses. Desse modo, empresá-
3), em 2007, que proibiria que em- 1 Eduardo Cosentino da Cunha (1958): rios e seus representantes têm nor-
presas fossem multadas pelo Poder economista, radialista e político brasileiro malmente conseguido pautar e di-
Executivo por fraudar contratos evangélico. Atualmente, é deputado federal, rigir os debates eles que colocam,
pelo PMDB do Rio de Janeiro, e presidente da
de emprego (que são, em geral, Câmara dos Deputados desde 1º de fevereiro ficando os trabalhadores e suas re-
de terceirização), foi aprovado na de 2015. (Nota da IHU On-Line) presentações na defensiva.

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

As forças de esquerda, em geral, de contratação de trabalhadores, gulação da exploração e represen-


têm se mantido acuadas, fragmen- cinicamente confundido com divi- tação dos trabalhadores.
tadas e fragilizadas, e aqueles que são social do trabalho. Os traba-
Nas últimas décadas, as práticas
se pretendem lideranças contam, lhadores continuarão trabalhando
ilegais contra o direito do traba-
quase sempre, com pouca capa- para seus verdadeiros empregado-
lho praticadas pelos empregado-
cidade de mobilização ou mesmo res, só que em piores condições e
res atingiram níveis pandêmicos e
de interlocução com a população formalmente vinculados a pessoas
abarcam todos os aspectos da rela-
trabalhadora. interpostas.
ção de emprego.
As reações iniciais que têm Se terceirização não fosse instru-
O quesito saúde e segurança do
ocorrido contra o PL 4330 são mento de precarização do traba-
trabalho talvez seja o caso mais
alentadoras, mas ainda são muito lho, a previsão de responsabilidade
dramático, a começar pelo fato
incipientes. solidária pelos direitos trabalhis-
de que os empregadores adotam
tas entre empresas contratantes e
A situação do chamado mundo uma política deliberada de ocul-
contratadas, e a isonomia integral
do trabalho nas últimas décadas tamento dos agravos. A gestão da
de direitos entre os trabalhadores,
tem se caracterizado, predomi- força de trabalho no Brasil é pre-
inclusive de normas coletivas mais
nantemente, pela crescente pre- dominantemente predatória e isso
favoráveis, seriam as primeiras exi-
carização do trabalho. Mesmo com pode ser evidenciado por diversos
gências que as próprias empresas
a expansão do emprego e da for- indicadores.
fariam para o texto da lei.
malização, as condições de traba-
Uma mudança positiva no mun-
lho pioraram em vários aspectos,
do do trabalho brasileiro tem sido
tendo a terceirização contribu-
a recomposição do poder de com-
ído substancialmente para esse
pra do salário mínimo. Mesmo que
processo.
ainda longe do ideal, tem sido um

IHU On-Line - Caso o PL 4330


O que está acon- mecanismo relevante de distribui-
ção de renda.
seja aprovado, quais devem ser tecendo no Bra-
as perspectivas para o mundo do Em termos políticos, com ex-
40 trabalho no Brasil?
sil, desde a dé- ceção de eventos esparsos, como

Vitor Filgueiras - Com o tex- cada de 1990, é resistências e movimentos pontu-


ais, é difícil enxergar mudanças
to que foi aprovado, tudo indica uma crescente positivas para os trabalhadores
que os trabalhadores terceirizados nas últimas décadas. Mesmo as
continuarão a ter seus direitos des- ofensiva do ca- negociações coletivas, que nos úl-
respeitados, como já ocorre gene-
ralizadamente e é cientificamente
pital contra timos anos conseguiram recorren-
temente obter aumentos salariais
provado por inúmeras pesquisas. o trabalho superiores à inflação, estiveram a
Pior, a atual situação de precari- reboque do incremento do salário
zação, quando não de degrada- mínimo, sem conseguir alcançá-lo.
ção das condições de trabalho dos IHU On-Line - Nestes últimos 20
trabalhadores terceirizados, vai se anos em que a terceirização está
IHU On-Line - Quais são os indí-
legitimar, por conseguinte, será es- em pauta, que mudanças ocorre-
cios de que há uma relação entre
timulada e aprofundada. Não bas- ram no mundo trabalho e em que
terceirização e trabalho escravo?
tasse, haverá uma nova onda de medida elas foram positivas e ne-
Como caracteriza essa relação?
expansão da terceirização sobre o gativas para o trabalhador? Pode
mercado de trabalho, rebaixando nos dar alguns exemplos? Vitor Filgueiras - Em 2014, dos
as condições de trabalho e de vida dez maiores flagrantes de submis-
Vitor Filgueiras - Estamos vi-
do conjunto dos trabalhadores no são de trabalhadores a condições
vendo décadas de ofensiva patro-
país, incluindo desde redução de análogas à de escravos no Brasil,
nal contra os trabalhadores. Esse
salários até o aumento das mortes apurados pelo Ministério do Tra-
avanço abarca todos os aspectos
no trabalho. balho, havia trabalhadores tercei-
do chamado mundo do trabalho, e
rizados em oito casos, totalizando
A primeira onda de precariza- vai desde o processo e condições
384 trabalhadores contratados des-
ção ocorreu com a liberalização de trabalho (aumento do ritmo,
sa forma. Em sete desses flagran-
da terceirização das chamadas do estranhamento, do assédio, da
tes, todos os trabalhadores eram
atividades-meio, na década de quantidade e das formas de adoe-
terceirizados.
1990. Agora, com a liberalização cimento, reprodução de condições
total, milhões de trabalhadores se- degradantes) até as formas de re- Nos últimos cinco anos (2010 a
rão precarizados com esse artifício 2014), somados os dez maiores

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flagrantes de trabalho análogo ao formas e por meio de inúmeros que aspectos elas são positivas e
escravo detectados pelo Ministério instrumentos, estando na própria negativas para os trabalhadores?
do Trabalho em cada ano, 44 envol- raiz da terceirização nos moldes Vitor Filgueiras - Pelo que li,
viam terceirizados. Ou seja, quase do fenômeno hoje conhecido. Bas- especialmente da MP 665, que
90% desses 50 flagrantes. Nessas ta lembrar que a própria empresa versa sobre concessão do seguro-
ações apurou-se que, dos 4.183
que deu nome ao toyotismo era -desemprego, são medidas negati-
trabalhadores submetidos à explo- vas para os trabalhadores. Na MP
proprietária das pessoas jurídicas
ração criminosa, 3.382 eram ter- 665 consta o aumento do tempo
interpostas.
ceirizados, o que equivale a 81% do mínimo de vínculo de emprego for-
total de trabalhadores vitimados. mal necessário para o trabalhador
Esses dados são explicados pelo dispensado sem justa causa ter di-
fato de que a terceirização poten- reito a requerer alguma parcela de
cializa o despotismo patronal, seja seguro-desemprego.
tornando os trabalhadores indivi- Essa ofensiva se Objetivamente, foi retirado o
dualmente ainda mais vulneráveis,
seja dificultando a imposição de li-
dá em todos os direito trabalhista de receber uma
compensação pecuniária durante a
mites aos ditames empresariais por planos, dentro procura de outro emprego, de to-
ações coletivas ou por meio das
instituições de regulação do direito
e fora do Esta- dos aqueles que forem dispensados
com mais de seis meses de vínculo
do trabalho. do, e vai desde a de emprego, mas com menos de 18

IHU On-Line - Em que setores a


tentativa ou im- meses trabalhados num período de
dois anos (num primeiro pedido, e
relação entre terceirização e tra- plementação de menos de 12 meses num intervalo
balho escravo é recorrente?
mudanças legis- de 16, numa segunda requisição).
Vitor Filgueiras - Em quase to- O que o governo está efetivamen-
dos os setores onde há flagrantes
lativas contra as te promovendo é uma provável ge-
de trabalho análogo ao escravo, há normas que limi- ração de trabalhadores que nunca
41
relação com a terceirização. terá acesso ao seguro-desemprego.
tam a explora- Do todos os contratos firmados em
Dentre outros, estão entre os se-
tores com flagrantes de trabalha- ção do trabalho 2013, 41,2% foram encerrados an-
tes do fim do ano. A participação
dores terceirizados em condição de jovens entre esses desligados
análoga à de escravos: a constru- é 50% superior à participação de
ção civil, a mineração, a siderur- Terceirização é uma estratégia jovens entre os trabalhadores que
gia, transporte de valores, a pecu- de gestão da força de trabalho por permaneciam empregados no final
ária, a extração de sisal, fast food, um tomador de serviços. do ano (27,9% contra 18,7%).
vários ramos do chamado agro-
negócio: sucroalcooleiro, têxtil, Ela consiste no uso de um ente Mais de 2 milhões de trabalha-
fumo, plantação de tomate, pinus, interposto como instrumento de dores que acionaram o Seguro em
produção de suco de laranja, frigo- gestão da sua própria força de 2014 não teriam acesso ao be-
ríficos, fertilizantes. trabalho. nefício após a MP 665,2 conforme
anunciou o próprio Ministério do
O trabalhador terceirizado é par- Trabalho. Para um primeiro pedi-
IHU On-Line - Enquanto auditor
te do processo de acumulação do do, simplesmente metade dos tra-
fiscal do Ministério do Trabalho e
tomador do serviço (seja ele con- balhadores requerentes não teria
Emprego, o que tem percebido
siderado empregador ou não). É direito ao seguro-desemprego.
em relação à terceirização, na
prática? o tomador que gere, à sua conve- Se a MP for mantida, prova-
niência, com os instrumentos que velmente grande parte dos tra-
Vitor Filgueiras - Tenho percebi- calcular pertinentes, o processo de balhadores que entra agora não
do que terceirização não é o que
produção e trabalho da atividade completará 18 meses nos moldes
as empresas divulgam e as pessoas
realizada pelos terceirizados.
normalmente reproduzem. Há inú- 2 MP 665: dispõe sobre as novas regras para
acesso a benefícios previdenciários, como,
meras evidências de que a empresa por exemplo, o segundo acesso ao seguro-
contratante, longe de transferir a IHU On-Line - As MPs 664 e 665 desemprego somente após 12 meses de traba-
atividade para a terceirizada, con- têm gerado polêmicas entre aque- lho nos últimos 16 meses e, a partir daí, seis
meses de trabalho ininterruptos para outros
tinua a ter controle sobre ela. Esse les que apoiam e os que são con- acessos, mantida a carência de 16 meses entre
controle pode ocorrer de diversas trários. Qual sua avaliação? Em um e outro. (Nota da IHU On-Line)

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exigidos e nunca terá acesso ao favorável para todos os trabalha- de regulação das classes sociais no
Seguro, recrudescendo sua vul- dores envolvidos. Brasil, eles têm conteúdos diferen-
nerabilidade e precarização, em tes. Foi especialmente sobre a le-
benefício de um padrão de ges- IHU On-Line - Quando surgiu a gislação sindical prevista na CLT, e
tão da força de trabalho preda- CLT, teóricos que estudavam o seu controle sobre as organizações
tório e com limites cada vez mais mundo do trabalho a criticavam dos trabalhadores, que tradicional-
improváveis. na tentativa de ampliar direitos mente repousaram e até hoje se
e reduzir a jornada. Como en- direcionam as críticas dos agentes
tender essa total reversão nos mais progressistas.
IHU On-Line - O que se-
ria um projeto alternativo à dias de hoje, em que a defesa da A CLT mudou muito com a Consti-
terceirização? CLT parece ser a única alternati- tuição de 1988, que não recepcio-
va para os trabalhadores? Nesse nou grande parte dos artigos que
Vitor Filgueiras - Se tivesse que
sentido, como vê as críticas que versavam sobre organização sindi-
passar pelo Congresso a regula- foram feitas à CLT à época? Essas cal. A Estrutura sindical no Brasil é
mentação da terceirização (o que críticas ainda são válidas ou a CLT extremamente problemática, não
não necessariamente precisaria ser se transformou, de fato, no ins- dá para resumir o debate em pou-
feito), esta deveria ser no sentido trumento de garantia de direitos cas linhas.
de proibir a contratação de traba- dos trabalhadores?
lhadores por meio de figura inter- Quanto aos direitos dos traba-
posta, seja lá como se denominar o Vitor Filgueiras - A CLT, em sua lhadores previstos na CLT, ou em
intermediário. Ou seja, a terceiri- origem, tinha diferentes aspectos. qualquer outro diploma que im-
zação deveria ser proibida. Por um lado, previa direitos aos ponha limites ao arbítrio patro-
trabalhadores, como limitação de nal, serão sempre essenciais para
Isso não tem nada a ver com jornadas e períodos de descanso, limitar o potencial destrutivo do
proibir a divisão social do traba- que restringiam o poder patronal. assalariamento enquanto houver
lho entre verdadeiras empresas, Por outro lado, a CLT previa o con- capitalismo.
que sempre existiu e é inerente trole e repressão dos trabalhadores publicou o Dossiê Vargas, por ocasião dos 60
ao capitalismo. Terceirização não e das suas organizações coletivas. anos da morte do ex-presidente, disponível
42 é divisão do trabalho (uma empre-
A relação estreita entre direitos
em http://bit.ly/1na0ZMX. A IHU On-Line
dedicou duas edições ao tema Vargas, a 111,
sa distribui energia elétrica, outra
produz carros, etc.), mas assim é e formas de controle das organi- de 16-08-2004, intitulada A Era Vargas em
Questão – 1954-2004, disponível em http://
zações dos trabalhadores estava
deliberadamente confundida por bit.ly/ihuon111, e a 112, de 23-08-2004, cha-
no fato de que apenas os trabalha- mada Getúlio, disponível em http://bit.ly/
aqueles que defendem a terceiri- ihuon112. Na edição 114, de 06-09-2004, em
dores sindicalizados teriam acesso
zação, e desse modo argumentam http://bit.ly/ihuon114, Daniel Aarão Reis
aos direitos, e apenas quando o Filho concedeu a entrevista O desafio da es-
sua inexorabilidade.
sindicato fosse reconhecido pelo querda: articular os valores democráticos
Ainda sobre um projeto alternati- Estado. com a tradição estatista-desenvolvimentis-
ta, que também abordou aspectos do político
vo, nos casos em que a relação en- gaúcho. Em 26-08-2004, Juremir Macha-
A despeito de esses dois aspec-
tre empresas é duvidosa, ou seja, do da Silva, da PUC-RS, apresentou o IHU
tos integrarem um projeto maior, Ideias Getúlio, 50 anos depois. O evento
quando não está claro se é um caso
liderado por Vargas,3 de padrão gerou a publicação do número 30 dos Ca-
de gestão da força de trabalho in- dernos IHU Ideias, chamado Getúlio, ro-
termediada ou realmente relação 3 Getúlio Vargas [Getúlio Dornelles mance ou biografia?, disponível em http://
Vargas] (1882-1954): político gaúcho, nas- bit.ly/ihuid30. Ainda a primeira edição dos
entre empresas efetivamente au- cido em São Borja. Foi presidente da Repú- Cadernos IHU em formação, publicada
tônomas e verdadeiras interagindo blica nos seguintes períodos: 1930 a 1934 pelo IHU em 2004, era dedicada ao tema,
fora do mercado de trabalho, seria (Governo Provisório), 1934 a 1937 (Governo recebendo o título Populismo e Trabalho.
Constitucional), 1937 a 1945 (Regime de Ex- Getúlio Vargas e Leonel Brizola, disponível
aplicada solidariedade ampla entre ceção) e de 1951 a 1954 (Governo eleito po- em http://bit.ly/ihuem01. (Nota da IHU
as partes, isonomia e norma mais pularmente). Recentemente a IHU On-Line On-Line)

LEIA MAIS...
—— As reformas liberalizantes em pauta nas eleições presidenciais. Entrevista com Vitor Fil-
gueiras publicada nas Notícias do Dia no sítio do IHU, de 23-09-2014, disponível em http://
bit.ly/1Jd34km;
—— Terceirização e trabalho análogo ao escravo: coincidência? Artigo de Vitor Filgueiras publica-
do nas Notícias do Dia no sítio do IHU, de 15-06-2014, disponível em http://bit.ly/1Hmg32L.

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DE CAPA IHU EM REVISTA

O trabalho que estrutura o capital


desestrutura a sociedade
Ricardo Antunes examina a atual morfologia do trabalho e a possibilidade de um
regime contratual análogo à escravidão com o PL 4330
Por Ricardo Machado

“O PL 4330 é o mais viru-


lento e forte ataque do
empresariado aos direi-
tos do trabalho obtidos ao longo de um
século e meio de lutas.” Assim, de for-
gência dos governos Lula e Dilma. “O
PT foi, desde o início, um governo —
este foi o traço característico do PT e
de Lula no governo — da conciliação
nacional”, complementa. Ao pensar no
ma contundente, começa a entrevista futuro, Antunes propõe que o “projeto
com o professor e pesquisador Ricar- político terá que ter uma face indígena
do Antunes, que conversou com a IHU (...) no trabalho comunal e comunitá-
On-Line por telefone. “O PL 4330 é a rio indígena, da preservação da água,
terceirização global do trabalho. Então da natureza, dos bens, da fauna, da
quando os defensores dizem que a lei flora”, destaca. Por fim, aponta: “O
da tercerização vai garantir o trabalho trabalho que estrutura o capital deses-
é, naturalmente, um discurso falacioso trutura a humanidade”.
e falso. Esse projeto nasceu para redu- 43
zir salários, reduzir direitos, aumentar Ricardo Antunes possui mestrado e
a rotatividade, demitir mais facilmen- doutorado em Ciências Sociais, res-
te a classe trabalhadora. Estes são os pectivamente, pela Universidade Es-
fundamentos”, critica. tadual de Campinas – Unicamp e pela
Universidade de São Paulo - USP. Rea-
Na opinião do pesquisador, o discurso
lizou pós-doutorado na University of
de que a terceirização poderia trazer
Sussex, no Reino Unido, e obteve o tí-
maior especialização às empresas é
tulo de Livre Docência pela Unicamp,
pura ideologia e, ao contrário, fragili-
za os trabalhadores. “Um exemplo de onde atualmente é professor titular de
nossos dias é a crise da Petrobras, cuja Sociologia. É organizador de Riqueza
corrupção não foi criada pelos traba- e Miséria do Trabalho no Brasil (São
lhadores, mas deriva de uma simbiose Paulo: Boitempo Editorial, 2006), de
nefasta entre o grande empresariado Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil
e alguns setores da alta burocracia es- Vol. II (São Paulo: Boitempo Editorial,
tatal que aceitaram ser corrompidos”, 2013) e está lançando o livro Riqueza
pontua. Ricardo Antunes argumenta e Miséria do Trabalho no Brasil Vol. III.
que há uma movimentação no Con- É autor, entre outras obras, de O con-
gresso que se aproveita da crise polí- tinente do labor (São Paulo: Boitempo
tica atual para projetos que atendam Editorial, 2011), Adeus ao trabalho?:
o capital contra o trabalho. “A Câmara ensaio sobre as metamorfoses e a cen-
foi fechada para os representantes dos tralidade no mundo do trabalho (São
trabalhadores (que foram reprimidos) Paulo: Cortez, 2010) e Os Sentidos do
e aberta para os representantes do pa- Trabalho: ensaio sobre a afirmação
tronato (que foram bajulados); é um e a negação do trabalho (São Paulo:
desequilíbrio evidente, não houve se- Boitempo Editorial, 1999) — a última,
quer um equilíbrio formal”, sustenta. publicada também nos Estados Unidos,
Inglaterra/Holanda, Itália, Argentina,
Ao fazer tal análise, no entanto, o
Venezuela, Colômbia, Portugal e Índia.
pesquisador reitera que todo este pro-
cesso é resultado de uma certa negli- Confira a entrevista.

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

IHU On-Line - O que a aprova- em 1931 —, ou seja, somente em senvolvimento de atividades-fins,


ção do PL 4330 significa para o 1943, resultaram em todas as leis inerentes ou acessórias às ativi-
mundo do trabalho no Brasil? promulgadas nos primeiros 12 anos dades econômicas da empresa”.
de governo varguista, consolidadas O PL 4330 é a terceirização global
Ricardo Antunes – O PL 4330 é
na CLT. do trabalho. Então, quando os de-
o mais virulento e forte ataque do
fensores dizem que a lei da ter-
empresariado aos direitos do tra- A CLT tem um caráter bifronte.
ceirização vai garantir o trabalho
balho obtidos ao longo de um sécu- No seu lado claramente positivo,
é, naturalmente, um discurso fa-
lo e meio de lutas, desde meados que diz respeito à regulação do
lacioso e falso. Esse projeto nas-
do século XIX, quando a classe tra- trabalho, ela tem uma contribui-
ceu para reduzir salários, reduzir
balhadora brasileira — assalariada ção decisiva, pois foi uma respos-
direitos, aumentar a rotatividade,
e urbana, ainda incipiente — fez ta às reivindicações presentes nas
demitir a classe trabalhadora. Es-
suas primeiras greves tentando ob- greves da época: tratar de modo
tes são os seus verdadeiros e ne-
ter direitos que diziam respeito à equânime o conjunto da ação so-
fastos fundamentos. Essa coisa de
regulação do trabalho. A primeira cial protetora do trabalho de modo
que as empresas se especializam
greve que se tem notícia, de 1858 que haja, ao menos, um patamar
é, em grande medida, ideologia
(tento lembrar aqui de memória), mínimo de direitos obtidos. Mas é
pura. Se a terceirização realmen-
já era uma luta pelo direito ao tra- bom lembrar que a CLT excluía os
te qualificasse a força de traba-
balho regulamentado que passou trabalhadores do campo, o que era
lho, o que explicaria o fato de que
a ser uma pauta imperiosa da luta um compromisso de Vargas com o
os acidentes de trabalho ocorrem
trabalhadora. setor de onde ele era originário,
com mais intensidade nas ativida-
mas os trabalhadores urbanos pas-
des terceirizadas?
Consolidação das Leis do saram a ter direitos. A CLT se trans-
Trabalho formou naquilo que venho chaman- O primeiro ponto é que a apro-
do a atenção há algum tempo: em vação deste projeto significará o
Quando nós tivemos a Consoli- uma verdadeira “constituição do seguinte: rumo à terceirização glo-
dação das Leis do Trabalho - CLT,1 trabalho no Brasil”. Os trabalhado- bal. Segundo ponto, rasga-se a CLT
normalmente citada pela história res veem na CLT o próprio código como código do trabalho no Brasil.
44 oficial como uma outorga do go-
verno varguista, condensaram-se
protetor dos direitos do trabalho. Terceiro ponto, guardadas as di-
ferenças do tempo histórico, este
lutas importantes do operariado No capítulo sindical, entretanto,
projeto de lei equivale a uma re-
brasileiro desde os primeiros anos a CLT foi claramente coibidora e gressão à escravidão do trabalho no
do século XX. A greve geral de restritiva, ao instaurar o sindicalis- Brasil, a uma espécie de escravidão
1917 é um momento singular des- mo de estado no Brasil, com forte moderna típica de nosso tempo,
tas lutas. Eu pude estudar os anos ingerência estatal. onde a burla de nossos direitos, a
1930 a 1935, analisando todas as depressão salarial, a diminuição de
principais greves que ocorreram e
Terceirização Global tudo o que foi conquistado, o au-
foram noticiadas pela imprensa à mento do trabalho e, até mesmo,
O aspecto mais nefasto e mais
época. Estas greves reivindicavam a diminuição ou não representação
perverso do PL 4330 é que ele
melhores salários, descanso sema- sindical passam a ser impostos.
claramente acaba com os direitos
nal, salário mínimo, salários iguais Quando se diz que os sindicatos
do trabalho na medida em que,
para homens e mulheres, lutas que vão representar os trabalhadores
no seu Artigo 4º, permite “o de-
após quase uma década e meia — terceirizados de determinada em-
o Vargas2 começa seus decretos mada Getúlio, disponível em http://bit.ly/ presa é evidente que isto é falacio-
ihuon112. Na edição 114, de 06-09-2004, em so, porque o que leva à corrosão do
1 Consolidação das Leis do Trabalho http://bit.ly/ihuon114, Daniel Aarão Reis
(CLT): Decreto-Lei 5.452 de 1º de maio de Filho concedeu a entrevista O desafio da es- salário do trabalhador terceirizado
1943 (Nota do IHU On-Line) querda: articular os valores democráticos é, além dos itens que eu já lem-
2 Getúlio Vargas [Getúlio Dornelles com a tradição estatista-desenvolvimentis-
brei, a rotatividade nos postos de
Vargas] (1882-1954): político gaúcho, nas- ta, que também abordou aspectos do político
cido em São Borja. Foi presidente da Repú- gaúcho. Em 26-08-2004, Juremir Macha- trabalho e sua instabilidade, que
blica nos seguintes períodos: 1930 a 1934 do da Silva, da PUC-RS, apresentou o IHU dificulta enormemente sua organi-
(Governo Provisório), 1934 a 1937 (Governo Ideias Getúlio, 50 anos depois. O evento
Constitucional), 1937 a 1945 (Regime de Ex- gerou a publicação do número 30 dos Ca-
zação em sindicatos. O trabalhador
ceção) e de 1951 a 1954 (Governo eleito po- dernos IHU Ideias, chamado Getúlio, ro- não sabe quanto tempo ficará em
pularmente). Recentemente a IHU On-Line mance ou biografia?, disponível em http:// uma empresa, não sabe quanto
publicou o Dossiê Vargas, por ocasião dos 60 bit.ly/ihuid30. Ainda a primeira edição dos
anos da morte do ex-presidente, disponível Cadernos IHU em formação, publicada tempo a empresa durará, não sabe
em http://bit.ly/1na0ZMX. A IHU On-Line pelo IHU em 2004, era dedicada ao tema, quanto tempo o contrato com a
dedicou duas edições ao tema Vargas, a 111, recebendo o título Populismo e Trabalho. contratante vai perdurar. Há muita
de 16-08-2004, intitulada A Era Vargas em Getúlio Vargas e Leonel Brizola, disponível
Questão – 1954-2004, disponível em http:// em http://bit.ly/ihuem01. (Nota da IHU instabilidade. E quem ganha é sem-
bit.ly/ihuon111, e a 112, de 23-08-2004, cha- On-Line) pre o capital.

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DE CAPA IHU EM REVISTA

Corrupção e terceirização za, trabalhadores nos hotéis, os aliados. Esse pacto foi feito desde
trabalhadores que fazem comidas o governo Lula e vale também para
Um exemplo de nossos dias é a nos restaurantes. O modelo que se o governo Dilma e ele está corroído
crise da Petrobras, cuja corrupção quer implementar é o da “escra- pela base, hoje, com a rebelião do
não foi criada pelos trabalhadores, vidão moderna”, abarcando a po- PMDB.
mas deriva de uma simbiose nefas- pulação economicamente ativa do
Esse quadro de crise profunda
ta entre o grande empresariado e Brasil, que tem hoje em torno de
que mencionei se acentua pela
alguns setores da alta burocracia 100 milhões de trabalhadores aptos
crise mundial, ampliada pela di-
estatal que aceitaram ser corrom- e em disponibilidade para o traba-
minuição significativa do preço das
pidos. Ou seja, os trabalhadores lho, dos quais uns 40 milhões já
commodities, sendo que o modelo
estão fora disso, porém o resulta- poderiam ser convertidos em novos
de expansão do mercado interno,
do é a demissão em torno de 200 terceirizados, em novos escravos
que deu pulsão e força ao governo
mil trabalhadores e trabalhadoras modernos.
Lula, também se exauriu, porque
terceirizados, que estavam em em- os assalariados se endividaram. Por
presas terceirizadas que prestavam IHU On-Line – Qual o contexto conta de todos estes elementos
contratos para trabalhar nos can- político e social que faz emergir aqui tão somente indicados, este
teiros das obras da Petrobras. Isso uma legislação trabalhista tão modelo do PT ruiu, faliu comple-
ocorre porque não há a vigência do retrógrada? tamente. Neste momento, o PMDB,
regime da CLT, o que significa dizer percebendo um relativo vazio de
Ricardo Antunes – Um contexto,
que existem alguns constrangimen- poder coroado pelos equívocos do
primeiro, de crise profunda do go-
tos do empregador para demitir núcleo político de condução do go-
verno Dilma. Uma candidatura que
trabalhadores, como garantias, verno Dilma — e olha que com um
foi eleita em uma disputa difícil,
pagar direitos, justificar as demis- núcleo político desses quase não é
dizendo que não faria ajustes fis-
sões. O terceirizado, mesmo que a cais nem implementaria as medidas preciso ter inimigo externo — fez
legislação diga que vai contemplar defendidas por Aécio Neves ou Ma- com o que o Parlamento brasileiro
isso, na prática ela não vai fazer. rina Silva (se lembrarmos também (Câmara e Senado) transformas-
Vai burlar como vem burlando há dos debates do primeiro turno). Ela se a Presidente, que de conduto-
décadas. disse que nem que a “vaca tossis- ra se tornou uma dependente do
se” mexeria nos direitos dos traba- Parlamento. 45
Constituição silenciada lhadores, e sua primeira medida foi Isso se deflagrou a partir de dois
o ajuste fiscal, que afetou o seguro momentos: primeiro, a tentativa
A Constituição diz que o salário
desemprego, o abono salarial. Não do PT de ter candidatura própria
mínimo deveria garantir a dignida-
houve nenhuma medida, por exem- contra a candidatura à presidên-
de do trabalhador e da trabalha-
plo, da taxação das fortunas, de cia da Câmara de Eduardo Cunha;
dora, com alimentação, educação,
tributação mais dura e efetiva aos segundo, quando a Operação Lava
vestimenta, lazer, mas alguém
bancos. Estas medidas sintetizadas Jato indicava entre potenciais par-
imagina que com o salário mínimo
no plano Dilma-Levy, em seu ne- tícipes do esquema da Lava Jato os
de hoje (menos de R$ 800) seja
fasto ajuste fiscal, trouxeram um nomes de Renan Calheiros,3 pre-
possível ter uma sobrevivência que novo desgaste ao governo, adicio-
garanta a manutenção de uma vida sidente do Senado, e de Eduardo
nado ao desgaste anterior, causado Cunha,4 presidente da Câmara.
digna? Por certo, não. Se a Cons- pela corrupção na Petrobras.
tituição é burlada diuturnamente, 3 José Renan Vasconcelos Calheiros
o que não dizer deste projeto que A somatória dos dois, um re- (1955): é um advogado e político brasileiro,
troalimentando o outro, e con- atual presidente do Senado Federal do Bra-
estamos em via de ver consubstan- sil eleito pelo estado de Alagoas. Em 1989,
ciado contra a classe trabalhadora. siderando, inclusive, a prisão do filiado ao Partido da Reconstrução Nacional
secretário de finanças do Partido (PRN), Renan Calheiros assumiu a assessoria
dos Trabalhadores, o que adiciona de Fernando Collor de Melo, candidato à pre-
IHU On-Line - Que modelo de sidência da República. Em março de 1990, tão
mais combustível à questão da cor-
trabalho emerge deste cenário? logo tornou-se líder do governo no Congresso
rupção, leva a um terceiro ponto Nacional, Renan Calheiros divulgou o pacote
Ricardo Antunes – O modelo é sensível: o governo Dilma foi elei- de medidas baixado por Collor, entre as quais
destacava-se o confisco de parcela dos ativos
o da lei da selva do mercado. Há to com base no mesmo pacto de depositados em cadernetas de poupança. Em
12 milhões de terceirizados, que aliança, no mínimo esdrúxula, ca- maio de 1992, Renan Calheiros acusou PC de
vivem hoje em uma situação em paz de colocar deus e o diabo na comandar um “governo paralelo”. No mês
seguinte, afirmou que Collor tinha conheci-
que frequentemente não conhece- mesma mesa em que o PMDB tem o mento do esquema, e pediu o impeachment
mos os nomes destes trabalhado- papel de dar o respaldo majoritário do presidente. (Nota da IHU On-Line)
res nas empresas, principalmente para consolidar uma maioria parla- 4 Eduardo Cosentino da Cunha (1958):
é um economista, radialista e político brasi-
porque os terceirizados estão na mentar, sob condução de um gover- leiro. É evangélico e deputado federal, pelo
base — trabalhadores da limpe- no ultramoderado do PT e dos seus PMDB do Rio de Janeiro. Exerce o cargo de

SÃO LEOPOLDO, 27 DE ABRIL DE 2015 | EDIÇÃO 464


DESTAQUES DA SEMANA TEMA

Essas foram as duas gotas que fi- aconselhado para sair do Palácio que ele não seja ilegal. Golpe no
zeram o copo transbordar. O PMDB do Planalto em Brasília, pois cor- sentido que expliquei anteriormen-
de certo modo rompeu, de fato, o ria o risco até de ser preso pelos te, uma situação de crise política
seu pacto com o governo, com a militares golpistas, e optou por vir que cria uma maioria que permite
Dilma, e começou a tomar aquelas ao Rio Grande do Sul, onde teria “dar o bote”. Um golpe legitimado
medidas que deixavam o governo algum respaldo, o Congresso brasi- juridicamente; não houve nenhuma
Dilma com uma saia justa enorme. leiro decretou a vacância do cargo ruptura da legalidade na Câmara,
Foi corroída em poucos dias sua — o que foi uma mentira, porque mas houve o impedimento de um
base parlamentar e não parece que o Goulart não havia abandonado o debate público em uma questão
será fácil recompô-la. As dificul- cargo da presidência). tão vital como esta. É importante
dades para a aprovação do ajuste repetir: o Parlamento brasileiro,
Então, voltando ao argumento
fiscal, a brutal redução da maiori- hoje, é a instituição mais odiada
anterior, há a possibilidade de novo pela população, tem um nível de
dade penal e agora a aprovação do
“golpe”, agora contra a totalidade reprovação estrondoso.
PL 4330 são provas de até onde o
da classe trabalhadora. Tanto que a
Parlamento brasileiro — instituição
primeira aprovação, duas semanas
a mais odiada hoje pela população IHU On-Line - Nos governos Lula
atrás, do projeto nefasto do senhor
— é capaz de chegar. e Dilma a terceirização saltou de
Mabel, foi obtido a ferro, na mar-
4 milhões para 12,7 milhões de
Desfaçatez ra, como se diz no linguajar popu-
trabalhadores. Apesar da banca-
lar. E agora está sendo rediscutido,
da do PT ter votado contra o PL
É nesta contextualidade que inclusive, por quem o apoiou. Esse
4330, o que isso significa? Que
agora temos esta medida nefasta, é um projeto que precisa ser lido
contradições ficam evidentes?
a qual o empresariado brasileiro com cuidado e debatido, é inacei-
mostra toda a sua desfaçatez de tável que ele seja votado de um Ricardo Antunes – Ficam eviden-
classe, com grande apoio midiá- dia para o outro sem discussão. tes muitas contradições, vou tentar
tico, grandes canais de televisão A Câmara foi, como pudemos ver tratar de algumas das mais impor-
que praticam a terceirização glo- pelas televisões, fechada para os tantes. Primeiro, é evidente que
bal dando completa conivência. É representantes dos trabalhadores o PT, em nenhum momento, des-
46 estarrecedor que os debates na te- e aberta para os representantes do de que tomou posse em 2003, até
levisão só tenham um lado, o que patronato. Trata-se de um desequi- agora, abril de 2015, tomou medi-
argumenta ser favorável à terceiri- líbrio evidente, não houve sequer das que permitissem caracterizá-lo
um equilíbrio formal. Nós estamos como um governo de esquerda ou
zação, feito por “sociólogos das or-
na era do desequilíbrio, com as um governo que defenda os inte-
ganizações” que ganham polpudos
forças do capital impondo “goela resses da classe trabalhadora. O
sobressalários das empresas para
abaixo” e tendo a Câmara como PT foi desde o início um governo
as quais prestam consultorias.
um gendarme dos seus interesses. — este foi o traço característico do
Tudo isto leva o empresariado PT e de Lula no Governo — da con-
com a volúpia de quem percebe o Crise social e política ciliação nacional. O empresariado
momento de instigar o “golpe par- ganhou (e ganha) muito dinheiro e
lamentar” novamente. Um breve Esta crise social e política, sobre o Lula ganhou a confiança do em-
parêntese: o Congresso também a qual apresentei muitas dimen- presariado. Lula cansou de dizer
dá “golpes” dentro da formali- sões, é o que levou a este verda- que “nunca os banqueiros ganha-
dade institucional (quando João deiro “golpe parlamentar”, ainda ram tanto dinheiro aqui no Brasil
Goulart,5 na crise de 1964, foi como no seu Governo”. E ele está
Tavares, de 19-12-2006, em http://bit.ly/
presidente da Câmara dos Deputados des- ihu191206; João Goulart e um projeto de
certo! Mas o mesmo se poderia
de 1º de fevereiro de 2015. (Nota da IHU nação interrompido, com Oswaldo Munteal, dizer do agronegócio, cuja avalia-
On-Line) de 27-08-2007, em http://bit.ly/ihu270807. ção do Lula é a de que os donos
5 João Belchior Marques Goulart ou Jango Confira também as entrevistas com Lucília de
(1919-1976): presidente do Brasil de 1961 Almeida Neves Delgado intitulada O Jango
do agronegócio “são os verdadeiros
a 1964, tendo sido também vice-presidente, da memória e o Jango da História, publicada heróis do Brasil”, frase escandalo-
de 1956 a 1961 – em 1955, foi eleito com mais na edição 371 da IHU On-Line, de 29-08- sa que dá a dimensão da degrada-
votos que o próprio presidente, Juscelino Kubits- 2011, em http://bit.ly/ihuon371 e ‘’Dúvidas
chek. Seu governo é usualmente dividido em sobre a morte de Jango só aumentam’’, de
ção a que chegou o ex-líder ope-
duas fases: fase parlamentarista (da posse, 05-08-2013, em http://bit.ly/ihu050813. rário quando esteve na Presidência
em janeiro de 1961, a janeiro de 1963) e fase Veja ainda “João Goulart foi, antes de tudo, da República. E mais, nos governos
presidencialista (de janeiro de 1963 ao golpe um herói”, com Juremir Machado, de 26-08-
militar de 1964). Jango fora ainda ministro 2013, em http://bit.ly/ihu260813 e Comício do PT não houve a revisão de ne-
do Trabalho entre 1953 e 1954, durante o da Central do Brasil: a proposta era modi- nhuma privatização; o primeiro
governo de Getúlio Vargas. Foi deposto pelo ficar as estruturas sociais e econômicas do governo Lula ampliou o superávit
golpe militar do dia 1º de abril de 1964 e mor- país, com João Vicente Goulart, de 13-03-
reu no exílio. Confira a entrevista “Jango era 2014, em http://bit.ly/ihu130314. (Nota da primário, liberou os transgênicos,
um conservador reformista”, com Flavio IHU On-Line) privatizou a previdência pública.

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DE CAPA IHU EM REVISTA

No final do primeiro governo Lula do movimento sindical aceitaram a aprovado, se tornará um fenômeno
se tentou uma legislação trabalhis- terceirização e se vê até hoje que exponencialmente ainda mais am-
ta e sindical que era destrutiva e existem algumas centrais sindicais plo, pois se nós temos terceiriza-
que, por sorte, naquele momento que não têm compromisso com a ção de atividades de limpeza, res-
não passou. classe trabalhadora, que estão de- taurantes, transportes, há décadas
fendendo a terceirização, que tem — mas que eram atividades mar-
Mitos uma concepção patronal. ginais no passado —, passaremos
a enfrentar a terceirização total.
Em relação ao governo do PT, Sindicatos E é isso que é imperioso impedir.
portanto, o primeiro mito que é Atualmente vemos o setor público
preciso desmontar é de que se tra- Seria muito importante que os corroído por terceirizações que,
ta de um governo de esquerda. Ele sindicatos comprometidos com a aliás, é preciso dizer, não reduzem
sequer tentou ser um governo de classe trabalhadora definissem um custos, mas com muita frequên-
esquerda, foi um governo de coali- preceito: a proibição do trabalho cia aumentam as despesas e criam
zão e conciliação entre os setores terceirizado também nos sindica- polos potenciais de corrupção na
das grandes frações da burguesia tos seria um primeiro exemplo. empresa pública. Isso tudo cria nú-
financeira, contemplando também Se o sindicato de trabalhadores cleos privados de interesse ao lado
os setores industriais, do agrone- terceiriza trabalho, fica difícil ele do funcionalismo público e estão
gócio, a burguesia dos serviços, convencer o empresariado de que corrompendo funcionários públicos
bancos — todos tiveram uma “for- a terceirização é nefasta; os sindi- para poder ter uma vantagem recí-
ça” muito significativa nos gover- catos devem lançar uma campanha proca nessa terceirização do setor
nos do PT. pelo fim do trabalho terceirizado. estatal.
Então, por que se ampliou a Por que o projeto da tercei- No setor privado, as consequên-
terceirização? Por um duplo mo- rização passou? Porque o PT, no cias da terceirização são conheci-
vimento. Primeiro, há brechas na Executivo Federal, nunca se con- das há mais tempo. Este quadro
legislação brasileira que permitem substanciou como um governo dos todo faz com que estes segmentos
a terceirização, e quando o empre- trabalhadores e das trabalhado- de trabalhadores e trabalhadoras
ras. Em segundo lugar, porque a
sariado brasileiro tem uma brecha
legal, ele a implementa, seja a fer- pressão do empresariado é lenta,
terceirizados tenham uma grande
dificuldade de organização sindi-
47
ro quente ou a sangue frio. gradual, segura e, por fim, letal.
cal. Há depoimentos de trabalha-
Agora estamos no momento letal,
doras não terceirizadas que dizem
Está no Supremo Tribunal Federal agora eles querem dar o lance fi-
que, quando elas começam a con-
- STF, depois de ter sido discutido nal. Impor uma legislação que irá
versar entre si, criam momentos
pelo Tribunal Superior do Trabalho permitir, por exemplo, que os avi-
de sociabilidade e coágulos de so-
- TST, a solicitação de uma empre- ões brasileiros sejam pilotados por
lidariedade. No entanto, nas em-
sa questionando a divisão entre pilotos terceirizados, só para dar
presas terceirizadas, opera-se a
atividade-fim e atividade-meio, um exemplo chocante.
“lei da selva”, pois temendo em-
ou seja, a terceirização vem sendo
briões de organização interna dos
implementada pelo empresariado IHU On-Line – Em que medida trabalhadores e para evitar greves
praticamente em todos os setores, as transformações no mundo do dos terceirizados, transferem-se
empresas privadas e públicas, de trabalho são subsidiárias também os trabalhadores e as trabalhado-
maneira crescente. do enfraquecimento das coletivi- ras, separando em empresas dife-
Mas a questão que se coloca dades de massas, como os sindi- rentes para evitar a formação de
hoje é a seguinte: é preciso dizer catos, por exemplo? um núcleo primeiro de solidarie-
com todas as letras que a tercei- Ricardo Antunes – Esse enfra- dade. As empresas terceirizadas
rização, seja das atividades-meios, quecimento é decisivo. Primeiro, o dificultam a própria organização
seja das atividades-fins, é nefasta terceirizado roda de trabalho como dos trabalhadores no local de tra-
para a classe trabalhadora, ela in- se fosse uma roda de caminhão no balho, porque a rotatividade não
dignifica o trabalho ainda mais. A asfalto. Então, como se organi- para, qualquer trabalhador pode
classe trabalhadora já é aviltada za uma classe trabalhadora cuja sair de um espaço para o outro,
pela condição do assalariamento, taxa de rotatividade é altíssima? de uma empresa para outra etc.
da superexploração do trabalho, Como se organizam trabalhado- Tudo isso visa fraturar ainda mais
das burlas salariais. A terceiriza- res que lutam desesperadamente a classe trabalhadora entre os que
ção é tudo isso e mais um tanto por um emprego? Porque pior que têm sindicato e entre os que não
que já dissemos anteriormente. É o emprego selvagem, ainda mais têm sindicato. Isso visa, é eviden-
preciso que o movimento sindical nefasto, é o desemprego. A ter- te, enfraquecer a solidariedade,
seja mais corajoso; muitos setores ceirização, se esse PL nefasto for a organização e a representação

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

unitária dos trabalhadores e das rente daqueles, são vários aqui que compreender o sentido abrangen-
trabalhadoras. utilizam o conceito de precariado te, contemporâneo, heterogêneo e
para caracterizar o nível acentu- diferenciado que compõe a classe
IHU On-Line – Em contrapartida, ado de precarização dos extratos trabalhadora hoje.
em que medida o enfraquecimen- mais rebaixados do proletariado
to político de categorias do sé- brasileiro, por exemplo). Duas realidades
culo XX, como os sindicatos, são Portanto, uma coisa é defender
uma espécie de efeito colateral O conceito eurocêntrico de Mul-
a tese do proletariado como uma
do mesmo contexto social que faz tidão ou conceito eurocêntrico de
classe diferenciada e outra é con-
emergir movimentos sociais ca- precariado, como ele é concebido
ceber, como eu faço, o precariado
racterísticos do século XXI, como pelos autores europeus, ambos não
como a ponta mais explorada e
da Multidão? dão conta desta realidade. Dizer
precarizada da classe trabalhado-
que o precariado é uma classe nova
Ricardo Antunes – Multidão, ra. O conceito de Multidão, para
do Brasil que não tem a ver com
para mim, não tem o estatuto de substituir o conceito de classe, as-
a classe trabalhadora é um equí-
um conceito. Antonio Negri6 cria o sim como o conceito de precaria-
voco profundo, porque nós sem-
conceito de Multidão para mostrar, do para uma nova classe que não a
pre tivemos a classe trabalhadora
segundo ele, ou para tentar de- seja a trabalhadora, são absoluta-
precarizada no Brasil. Basta dizer
monstrar, que as classes não mais mente insuficientes, eurocêntricos
que a classe trabalhadora, antes
dão conta da realidade, e hoje terí- e não resolvem o problema. E es-
de ser classe trabalhadora assa-
amos um movimento, um polo mais tas minhas formulações aparecem
lariada, era classe trabalhadora
disforme, diferenciado, heterogê- detalhadas em meus livros mais
escravizada, era trabalho escra-
neo, que ele define como multi- recentes. Aliás, nas próximas se-
vo que tínhamos no Brasil. Desse
dão. Multidão para mim é uma des- manas devo lançar a edição de 20
modo, complexificou-se o conceito
crição, não um conceito. Não é por anos do livro Adeus ao trabalho?
de classe, ele se amplia, é preciso
acaso que também na Europa ga- (São Paulo: Ed. Cortez, 16ª Edição
pensar a dimensão de classe, gêne-
nhou corpo, a partir dos trabalhos, revista e atualizada, 2015), e ain-
ro, geração, etnia. Mas não recusá-
por exemplo, de Guy Standing7 da tenho a felicidade de ter tido
-lo, como aparece no conceito de
e vários outros, a ideia do preca- meu livro Os Sentidos do Traba-
48 riado. Mas a ideia do precariado, lho (São Paulo: Boitempo) publi-
multidão.

segundo estes autores europeus, cado em vários países, sendo que É preciso, também, pensar di-
estaria relacionada a uma nova o último foi na Índia. Neles tento mensões de classe que dizem res-
classe perigosa que não é mais nem compreender a classe trabalha- peito a opções sexuais, à questão
parte da classe trabalhadora (dife- dora hoje, o que denominei como étnica, etc. A classe trabalhadora
“classe-que-vive-do-trabalho”. brasileira, assim como parte da
classe trabalhadora norte-america-
6 Antonio Negri (1933): filósofo político Trata-se da classe que apresenta
e moral italiano. Durante a adolescência, na e em vários países da América
uma nova morfologia do trabalho
foi militante da Juventude Italiana de Ação Central, é uma classe trabalhadora
Católica, como Umberto Eco e outros inte- onde estão presentes o operaria-
de origem africana, negra. O so-
lectuais italianos. Em 2000 publicou o livro- do industrial, o operariado agríco-
-manifesto Império (5ª ed. Rio de Janeiro: cialismo latino-americano — se um
la, os trabalhadores de serviços,
Record, 2003), com Michael Hardt. Em se- dia houver socialismo na América
guida, publicou Multidão. Guerra e demo- mas também os trabalhadores da
Latina, e nós socialistas lutamos
cracia na era do império (Rio de Janeiro/São agroindústria, os trabalhadores dos
Paulo: Record, 2005), também com Michael por isso — terá que ter uma face
serviços industriais, de tal modo
Hardt – sobre esta obra, publicamos um arti- negra, africana, com sua cultura,
go de Marco Bascetta na 125ª edição da IHU que aí entram os metalúrgicos, os
com seus valores. O projeto políti-
On-Line, de 29-11-2004. O último livro da bancários, trabalhadores do culti-
“trilogia” entre os dois autores Commonwe- co terá que ter uma face indígena,
vo da cana, da produção e corte
alth (USA: First harvaard University Press é impensável o socialismo latino-
paperback, 2011), ainda não foi publicado em de aves e suínos para exportação,
-americano sem pensar nas comu-
português. (Nota da IHU On-Line) do call center (que são mais de 1,6
7 Guy Standing (1948): professor britânico nidades indígenas, no trabalho co-
milhão no Brasil — com alto compo-
de Estudos de Desenvolvimento na Escola munal e comunitário indígena, da
de Estudos Orientais e Africanos da Univer- nente de feminização da força de
preservação — que ninguém faz
sidade de Londres e co-fundador da Basic trabalho), da indústria hoteleira,
Income Earth Network (BIEN). Seu traba- como o índio — da água, da natu-
do comércio, de hipermercados.
lho é voltado para as áreas de economia do reza, dos bens, da fauna, da flora.
trabalho, política de mercado de trabalho, o Por exemplo, o “wallmartismo”
desemprego, a flexibilidade do mercado de passou a ser uma expressão usa- Trabalho imigrante
trabalho, políticas de ajustamento estrutural
e de protecção social. Leia Uma política para
da para definir este novo jovem
o paraíso. A nova classe perigosa publicada proletariado ultraexplorado que Vamos pensar no trabalho imi-
nas Notícias do Dia do IHU, de 13-06-2011, trabalha no setor de serviços (hi- grante que hoje é decisivo. Os tra-
disponível em http://bit.ly/1bjIqkg. (Nota da
IHU On-Line)
permercados). O nosso desafio é balhadores imigrantes que estão

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DE CAPA IHU EM REVISTA

na Itália, na Inglaterra, na Espa- sita e heterogênea que compõe a o celular ligado para estar sem-
nha, em Portugal, na Alemanha, na nossa classe trabalhadora que é pre “antenado” com o trabalho.
Suíça, na Argentina, no Brasil, são ampliada, com homens e mulheres É uma sociedade de luta por um
parte da classe trabalhadora des- que vivem da venda da sua força de trabalho que já não mais existe e
ses países e o polo mais ultraexplo- trabalho em troca de salário. Em se exaure da busca prometeica de
rado da classe trabalhadora global. um sentido muito amplo, a classe um trabalho que desapareceu. Nós
Por tudo isso, aqui somente indica- trabalhadora não vem diminuindo podíamos trabalhar hoje, algumas
do, eu não posso ser a favor de te- em escala global, mas aumentan- horas por dia, alguns dias da sema-
ses que no fundo querem descons- do. Para isso é preciso não ser eu- na e ter uma vida fora do trabalho
truir a classe trabalhadora, como rocêntrico, tem que olhar a Índia, dotada de sentido, mas isso é in-
quiseram também desconstruir o a China, os países asiáticos, a Amé- compatível com o que Robert Kurz8
trabalho. Tentaram desconstruir rica Latina, a África, para não di- chamou de “sociedade produtora
o trabalho e erraram. Tentaram zer o equívoco teórico, analítico e de mercadoria”, com o que István
desconstruir a classe trabalhadora conceitual que o trabalho não tem Mészáros9 denomina de “sistema
e também erraram. Tentaram des- mais relevância. de metabolismo social do capital”,
construir as lutas sociais do traba- ambos inspirados por Marx.
lho, uma vez mais erraram. IHU On-Line – Diante deste com- Assim, o imperativo do século XXI
plexo cenário, quais são os desa- é: qual é o novo modo de vida que
Professores fios para o mundo do trabalho no queremos construir? Quais são as
século XXI? nossas questões vitais hoje? O tra-
Por certo eu não compartilho
Ricardo Antunes – Resgatar os balho é uma questão vital. A pre-
com uma visão tradicional e vulgar
sentidos do trabalho, o que nos servação ambiental é uma questão
do marxismo que acha que só é tra-
obriga a desestruturar o capital. vital, não é um tema do futuro, nós
balhador o operário de macacão.
O professorado do ensino públi- Isso é, também, a principal con-
8 Robert Kurz (1943-2012): sociólogo e ensa-
co primário e secundário que vive clusão do meu livro Os Sentidos do ísta alemão, co-fundador e redator da revista
hoje uma intensa “exploração” do Trabalho. O trabalho que estrutura teórica Krisis - Beiträge zur Kritik der Wa-
trabalho — “exploração” no senti- o capital desestrutura a humani- rengesellschaft (Krisis - Contribuições para a
Critica da Sociedade da Mercadoria). A área
dade. Por exemplo, o trabalho ter-
do mais que econômico do termo,
com salários indignos em função ceirizado estrutura o capital, cria
dos seus trabalhos abrange a teoria da crise e
da modernização, a análise crítica do sistema
49
dos reajustes fiscais que fazem mais valor, mais riqueza privada mundial capitalista, a critica do Iluminismo
e a relação entre cultura e economia. É autor
com que a hora/aula do professor e desestrutura a humanidade. Na de O Colapso da Modernização (Rio de Janei-
da educação pública valha o preço contraposição, o trabalho que es- ro: Paz e Terra, 1993) e Os Últimos Combates
de um abacaxi — está sofrendo um trutura a humanidade, os trabalhos (Petrópolis: Vozes, 1998). A IHU On-Line en-
trevistou Kurz na 98ª edição, de 26 de abril
processo de proletarização de uma de bens socialmente úteis, sejam de 2004, sob o título A globalização deve se
profissão que tinha um atributo es- eles materiais ou imateriais, isto é, adaptar às necessidades das pessoas, e não
pecial. Qual era o atributo especial aqueles nós precisamos para nossa o contrário, disponível para download em
http://bit.ly/9fGZ4W. Na edição 161, de 24
do professor? Aquela atividade la- sobrevivência, nossos alimentos, de outubro de 25, Kurz concedeu a entrevista
borativa que tem no exercício do roupas, pinturas, esculturas, li- Novas relações sociais não podem ser cria-
intelecto o seu polo central, o que vros, obras de arte (em um sentido das por novas tecnologias, disponível para
download em http://bit.ly/cPi0xB. Confira,
inclusive Marx chamou, com uma amplo), este trabalho que estru- ainda, as entrevistas O trabalho abstrato se
lucidez que caracterizava sempre tura a humanidade tem que de- derrete como substância do sistema, publica-
a sua reflexão, de espaço dos tra- sestruturar o capital. E este é um da na edição 188 de 10-07-2006, disponível
para download em http://bit.ly/9XI3hj, e O
balhos imateriais, do intelecto. Os imperativo decisivo do século XXI. vexame da economia da bolha financeira é
professores nas escolas públicas também o vexame da esquerda pós-moderna,
no Brasil, na América Latina e em Imperativo do trabalho publicada na edição 278 da IHU On-Line,
de 21-10-2008, disponível para download
outras partes do mundo (em Por- em http://bit.ly/ZKvsnZ. Leia também uma
tugal, há alguns anos, houve uma O imperativo hoje é fazer com entrevista sobre seu legado, concedida por
importantíssima greve dos profes- que a vida no trabalho seja dotada Ricardo Antunes e Dieter Heidemann à IHU
de sentido para que a vida fora do On-Line, intitulada Um crítico da economia
sores das escolas públicas) estão política, publicada na edição número 400,
percebendo que seu trabalho inte- trabalho seja também dotada de de 27-08-2012, disponível em http://bit.ly/
lectual está sendo corroído e leva- sentido também. Quem se depau- NZa8ls (Nota da IHU On-Line)
pera, quem se destroça de 8 a 16 9 Istvan Mészáros: filósofo húngaro, consi-
do para o ralo junto com suas con- derado um dos mais importantes intelectuais
dições de trabalho cada vez mais horas no trabalho (com seu regime marxistas da atualidade. Professor emérito
precarizadas. de “metas”, produtividade, etc.) da Universidade de Sussex, na Inglaterra. Es-
chega em casa exausto. O que este creveu, entre outros, de Para além do capital.
Rumo a uma teoria da transição (Campinas-
Temos que compreender esse trabalhador faz quando chega em -São Paulo: Editora da Unicamp – Boitempo,
conjunto, essa dimensão compó- casa? Abre o computador e mantém 2002) e de Poder da ideologia (São Paulo:
Boitempo, 2004). (Nota da IHU On-Line).

SÃO LEOPOLDO, 27 DE ABRIL DE 2015 | EDIÇÃO 464


DESTAQUES DA SEMANA TEMA

estamos diante uma sociedade com rico? Sabemos que o Universo hoje industrialização destrutiva, tudo
energia fóssil, com produção des- não tem água para a humanidade, torna-se cada vez mais intenso.
trutiva, que visa eliminar ao invés é uma questão universal. Sabemos Tudo isso coloca como imperativo
de preservar. Quem poderia imagi- que o oxigênio vai desaparecer na crucial, qual o modo de vida que
nar há duas ou três décadas, salvo medida em que, das queimadas aos nós queremos para o século XXI?
os especialistas e estudiosos, que plantios de gado, da destruição do Responder a essa questão passa por
no Brasil haveria um ano sem água, campo à urbanização da vida ru- responder que trabalho nós neces-
especialmente no Sudeste mais ral, da favelização das cidades à sitamos para o século XXI.

LEIA MAIS...
—— “O governo Lula foi uma surpresa muito bem-sucedida para os grandes capitais”. Entrevista
com Ricardo Antunes publicada na edição nº 441, de 28-04-2014, disponível em http://bit.
ly/1Ed1M5Z;
—— As manifestações e a luta por outro modelo de democracia. Entrevista com Ricardo Antu-
nes publicada na edição nº 434 da IHU On-Line, em 09-12-2013, disponível em http://bit.
ly/1ikpd3v;
—— Manifestações expõem fragilidades e limites do projeto constitucional-republicano de de-
mocracia. Dossiê publicado na edição nº 428 da IHU On-Line, de 30-09-2013, disponível em
http://bit.ly/195lSQi;
—— “Não é a classe trabalhadora que irá pagar por uma crise cuja responsabilidade não é sua”.
Entrevista com Ricardo Antunes publicada no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, em
50
11-03-2009, disponível em http://bit.ly/19lqDBC;
—— “Um 1º de maio getulista em plena era lulista”. Entrevista com Ricardo Antunes publicada
no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, em 27-04-2008, disponível em http://bit.
ly/18HVgqt;
—— “Sindicalismo nunca dependeu tanto do Estado”. Entrevista com Ricardo Antunes publicada
no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, em 02-05-2008, disponível em http://bit.
ly/1bqAiXt;
—— Um crítico da economia política. Entrevista com Ricardo Antunes publicada na edição nº 400
da IHU On-Line, em 27-08-2012, disponível em http://bit.ly/RAn270812;
—— Fenomenologia do lulismo. Artigo de Ricardo Antunes publicado nas Notícias do Dia,
de 03-01-2007, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.
ly/1hHNcZA;
—— O migrante e os usineiros. Artigo de Ricardo Antunes publicado nas Notícias do Dia, de 12-
04-2007, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/ILEkCR;
—— O reencontro tardio de Lula com Getúlio. Artigo de Ricardo Antunes publicado nas Notícias
do Dia, de 03-08-2007, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://
bit.ly/ILDXs0;
—— “Entre Lula e Alckmin, não sei qual a opção menos nefasta”. Entrevista com Ricardo Antu-
nes publicada no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, em 10-10-2006, disponível em
http://bit.ly/18vKUYl.

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DE CAPA IHU EM REVISTA

Terceirização: a tendência é aumentar


o número de ações trabalhistas
O juiz André Cremonesi sustenta que a aprovação do PL 4330 só é capaz de
trazer benefícios às empresas e nenhuma vantagem aos trabalhadores
Por Patricia Fachin

S e o PL 4330, que propõe a regu-


lamentação da terceirização no
país, for transformado em lei,
a principal perda para os trabalhadores
será sentida em relação aos “direitos
normas coletivas de um sindicato que
congrega empresas de terceirização e
não aquelas aplicáveis de um sindica-
to que congrega as empresas tomado-
ras dos serviços”.
previstos nas convenções coletivas de
Na avaliação dele, após a aprovação
trabalho que regem os empregados das
do PL 4330 na Câmara dos Deputados,
empresas tomadoras dos serviços, as
na semana passada, o cenário para os
quais não serão aplicadas no caso de
trabalhadores é “péssimo” e tende a
terceirização de atividade-fim”, alerta
ser agravado pela “precarização e ba-
André Cremonesi em entrevista conce-
rateamento de mão de obra e uma en-
dida à IHU On-Line por e-mail.
xurrada de ações trabalhistas”. Segun-
O juiz do Tribunal Regional do
Trabalho de São Paulo explica que,
do ele, as mudanças previstas na lei e o
possível aumento do número de ações
51
com as mudanças na lei, a empresa trabalhistas implicarão “em inevitável
contratante direta “não será mais a atraso no tempo médio de prestação
empresa tomadora dos serviços ter- jurisdicional”.
ceirizados, mas, sim, uma empresa
André Cremonesi é graduado em Di-
de terceirização. Por óbvio que os
reito pelas Faculdades Metropolitanas
direitos trabalhistas previstos nas
Unidas - FMU e mestre em Direito pela
convenções coletivas de trabalho que
Pontifícia Universidade Católica de São
regem as empresas tomadoras não se-
Paulo – PUC-SP. Atualmente é Juiz titu-
rão aplicados nesse caso, posto que
lar da 5ª Vara do Trabalho do Tribunal
as convenções coletivas de trabalho
Regional do Trabalho da 2ª Região de
aplicáveis serão aquelas aplicáveis
São Paulo.
aos empregados das empresas ter-
ceirizadas. Ou seja, serão aplicadas Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como a aprovação IHU On-Line - Ao comentar André Cremonesi - O que eu quis
do PL 4330 na Câmara dos Depu- a aprovação do PL 4330, o se- dizer é que a empresa contratante
tados repercutiu no TRT de São nhor mencionou que as empre- direta não será mais a empresa to-
Paulo e no TST? sas provavelmente continuarão madora dos serviços terceirizados,
André Cremonesi - A primeira contratando seus funcionários mas sim uma empresa de terceiri-
questão é de difícil resposta, pois via CLT e que o grande proble- zação. Por óbvio que os direitos tra-
não posso falar pelo TRT da 2ª Re- ma a ser gerado caso o PL seja balhistas previstos nas convenções
gião, mas apenas por mim. Quanto aprovado é o fim das conven- coletivas de trabalho que regem
a mim, acho o projeto de lei um ções coletivas. Pode nos ex- as empresas tomadoras não serão
retrocesso que permitirá o barate- plicar que impactos vislumbra aplicados nesse caso, posto que as
amento de mão de obra. acerca desse ponto? convenções coletivas de trabalho

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

aplicáveis serão aquelas aplicáveis rização de atividade-fim como pela André Cremonesi - Normalmen-
aos empregados das empresas ter- via da “pejotização” ou do coope- te são verbas rescisórias não qui-
ceirizadas, ou seja, serão aplicadas rativismo, infelizmente. tadas, horas extras, diferenças
normas coletivas de um sindicato salariais por equiparação salarial,
que congrega empresas de tercei- IHU On-Line - Como vê o ponto direitos previstos em convenções
rização e não aquelas aplicáveis do PL 4330 que sugere que as em- coletivas de trabalho, indenização
de um sindicato que congrega as presas contratantes devem fisca- por danos morais, etc.
empresas tomadoras dos serviços. lizar se as empresas terceirizado-
Ainda não dá para constatar se o ras estão fazendo os pagamentos IHU On-Line - O que seria uma
prejuízo será total aos trabalha- trabalhistas e garantindo os bene- lei adequada a ponto de garantir
dores, pois os “destaques” ficaram fícios legais dos funcionários? segurança jurídica para funcioná-
para ser apreciados pela Câmara rios e empresas?
dos Deputados nesta semana. André Cremonesi - O fato de se
fixar na nova lei uma regra de que André Cremonesi - Pessoalmen-
haverá um desconto da fatura a ser te sou contra a terceirização, in-
IHU On-Line - Entre seus argu-
paga à empresa terceirizada a fim clusive da atividade-meio, embora
mentos, os empresários diziam
de repassar os valores do FGTS à esta seja tolerada pelo TST e, por
que a lei da terceirização não era
CEF e do INSS à Previdência Social óbvio, que acompanho o enten-
clara e que as empresas precisa-
não contemplam mais direitos tra- dimento da Suprema Corte Tra-
vam de segurança jurídica. O PL
balhistas do que os já existentes. balhista. Como conselho, diria às
4330 oferece segurança jurídica
Ou seja, o empregado terceirizado empresas tomadoras dos serviços:
para empresas e trabalhadores?
já tinha direito ao FGTS e ao repas- contratem empregados de forma
André Cremonesi – Penso que o se do INSS independentemente da direta e não por meio de empresas
projeto de lei, se transformado em alteração legislativa. de terceirização, ou pessoa jurídi-
lei, trará benefícios apenas e tão ca, cooperativa ou qualquer outro
somente às empresas terceiriza- meio que não a CLT.
IHU On-Line - Que novos pas-
das e às empresas tomadoras dos
sivos trabalhistas podem sur-
serviços e nenhuma vantagem aos IHU On-Line - O que a aprova-
gir com a aprovação da lei da
52 trabalhadores.
terceirização? ção do PL 4330 na Câmara dos De-
putados representa para o Direito
IHU On-Line - Quais são os André Cremonesi - É certo que o do Trabalho?
pontos do PL 4330 em que há mal maior é a possibilidade de ter-
ceirizar não a atividade-meio como André Cremonesi - O Projeto de
insegurança jurídica para os
previsto na Súmula 331 do TST, mas Lei nº 4330/04, se transformado
trabalhadores?
também a atividade-fim do empre- em lei, é um duro golpe nos direitos
André Cremonesi - A inseguran- endimento. Ainda que não se possa trabalhistas, em especial naqueles
ça gira em torno de uma contrata- mais falar em terceirização lícita direitos previstos nas convenções
ção cujo único objetivo é o barate- (atividade-meio) e terceirização coletivas de trabalho que regem os
amento da mão de obra, aliado ao ilícita (atividade-fim), ambas as empregados das empresas tomado-
fato de que essa perigosa abertura empresas serão demandadas em ras dos serviços, as quais não serão
na forma de contratação pode se Juízo para responder pelos créditos aplicadas no caso de terceirização
alastrar para outros tipos de con- trabalhistas dos empregados. Em de atividade-fim, exceto se um dos
tratação como, por exemplo, con- suma: atualmente a empresa to- “destaques” a serem apreciados
tratação por PJ (pessoa jurídica), madora dos serviços não pode ter- nesta semana alterar isso.
contratação por cooperativa, etc.
ceirizar atividade-fim, mas observa
todos os direitos dos seus empre- IHU On-Line - Que cenário vis-
IHU On-Line - Alguns especialis- gados. A partir da nova lei haverá lumbra para o trabalho no Brasil
tas chamam a atenção justamen- dificuldade nesse controle — posto caso a lei da terceirização seja
te para o fato de que a aprovação que todos serão terceirizados — e o aprovada?
da lei da terceirização aumenta- não pagamento dos direitos traba- André Cremonesi - O cenário é
rá o número de contratações de lhistas implicará a responsabilida- péssimo: precarização e baratea-
pessoas jurídicas. Quais as impli- de subsidiária da empresa tomado- mento de mão de obra e uma en-
cações desse processo? ra dos serviços. xurrada de ações trabalhistas. O
André Cremonesi - Não tenho aumento do número de ações tra-
dúvida de que a precarização de IHU On-Line - Quais os direitos balhistas implicará em inevitável
mão de obra se apresentará tanto postulados nas ações trabalhistas atraso no tempo médio de presta-
pela via de uma empresa de tercei- de funcionários terceirizados? ção jurisdicional.

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DE CAPA IHU EM REVISTA

Aprovação do PL 4330 e o declínio


do modelo desenvolvimentista
Na avaliação do sociólogo Ruy Braga estamos diante de uma derrota histórica
para os trabalhadores
Por Patrícia Fachin

S e a lei da terceirização for


aprovada, em cinco anos “ha-
verá uma inversão estrutural no
mercado de trabalho no Brasil”, afirma
Ruy Braga à IHU On-Line. A estimativa
ao encontro novamente dos interesses
históricos desses trabalhadores, que é
uma lei contra a demissão imotivada,
ou seja, certa estabilidade para estan-
car essa sangria que é a rotatividade do
do sociólogo é de que as 49 milhões de trabalho no Brasil”.
carteiras assinadas neste ano diminuam
para 15 milhões, e o número de 12,7 Para ele, o único modelo alternativo
milhões de trabalhadores terceirizados ao PL 4330 é “colocar fim às terceiri-
aumente para 28 milhões. Contrário à zações; precisamos de uma lei contra
aprovação da lei, Braga enfatiza que a demissão imotivada e precisamos
“se a terceirização acabasse de hoje distribuir o trabalho de maneira mais
para amanhã, seria possível criar um igualitária, ou seja, diminuir a jorna-
milhão de novos empregos no mercado da de trabalho sem a diminuição de
salários”.
53
de trabalho brasileiro formal”.
Na entrevista a seguir, concedida por Ruy Gomes Braga Neto é especialis-
telefone, Braga explica que o PL 4330 ta em Sociologia do Trabalho e lecio-
tramitou no Congresso Nacional duran- na no Departamento de Sociologia da
te os últimos dez anos em que ocorreu Faculdade de Filosofia, Letras e Ciên-
“o apogeu e o declínio de um mode- cias Humanas da Universidade de São
lo de desenvolvimento”. Segundo ele, Paulo – USP, onde coordenou o Centro
“nos 12, 13 anos de sucessivos gover- de Estudos dos Direitos da Cidadania –
nos petistas, a dinâmica da efetivação Cenedic. Publicou recentemente A pul-
e da ampliação de direitos trabalhistas são plebeia: trabalho, precariedade e
não esteve na pauta” e tampouco “se rebeliões sociais(São Paulo: Alameda,
fala, por exemplo, de uma lei para
2015) e é autor, entre outros, do livro A
reduzir a jornada de trabalho, a qual
política do precariado (São Paulo: Boi-
continua com a jornada de 44 horas;
tempo, 2012).
não se fala em uma lei que é absolu-
tamente necessária, urgente, que vai Confira a entrevista.

IHU On-Line - Durante os anos defesa da CLT como única alter- dora brasileira para seu projeto de
1980, teóricos do mundo do tra- nativa para os trabalhadores? Estado autoritário. Mas o que se
balho criticavam a CLT porque percebeu, na verdade, tendo em
Ruy Braga – O que precisamos
ela não permitia a ampliação de vista o avanço do conhecimento
compreender de início é o signifi-
direitos. Contudo, após a aprova- que se tem sobre a história do en-
cado histórico da CLT. Muitos disse-
ção do PL 4330, discute-se a de- tre guerras no Brasil, foi que a CLT
ram, em certo momento da histó-
fesa da CLT, e temas como redu- se tornou uma lei que foi o produto
ria intelectual brasileira, que a CLT
ção da jornada de trabalho, por de décadas de lutas sindicais e po-
havia surgido no regime varguista
exemplo, ficam de lado. Como pulares, inclusive com uma partici-
a fim de cooptar a classe trabalha-
entender essa total reversão e a pação dos setores médios da socie-

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

—, só que essa lei não está enrai-


zada na estrutura social. Então, os
trabalhadores se mobilizam exata-
mente para tentar aproximar esse
espírito da CLT das condições reais
Esse naufrágio do governo petis- de trabalho e é nesse processo que
ta, principalmente do governo advém uma dinâmica de conquistas
de direitos trabalhistas, como, por
Dilma Rousseff, coloca toda a es- exemplo, a conquista do 13º salá-
rio, do salário-mínimo, das férias
querda brasileira contra a parede remuneradas, uma série de con-
quistas que só foram fundamental-
mente possíveis porque se apoia-
ram sobre a CLT.
dade, que se enfrentaram contra A CLT foi um ponto chave para
relações sociais arcaicas, em gran- que o país consolidasse propria- Por isso, a CLT não deve ser ob-
de medida cristalizadas na Repúbli- mente um projeto moderno, não jeto de crítica, ela deve ser objeto
ca Velha, mas que deitavam raízes apenas de Estado, mas que tam- de admiração dos trabalhadores.
muito profundas na Sociedade Im- bém apontasse na direção de um Sei que existe esta tese da coopta-
perial e no sistema escravagista. projeto de modernização da sua ção, mas não advogo esta tese, não
própria estrutura social tendo a acho que a CLT foi um instrumento
Então, a CLT foi uma espécie de de cooptação, porque foi um ins-
industrialização à frente. Nesse
momento não apenas de moder- trumento de consolidação de lutas
sentido, digo que a CLT, historica-
nização das relações de trabalho, de classes, com limites, mas que
mente, é um marco imprescindível
mas de cristalização e consolida- foram progressistas na sua época.
do desenvolvimento brasileiro, ain-
ção de uma série de conquistas
da que ela, evidentemente, tenha
trabalhistas que se acumulam ao
muitos limites e limitações que di- IHU On-Line - Como fica a dis-
longo das décadas de 1920 e 1930.
zem respeito basicamente a esta cussão sobre outras pautas, como
Eu me lembro, por exemplo, da
tutela do Estado sobre os sindica- a redução da jornada de trabalho
grande greve de 1917, da luta te-
e ampliação de direitos a partir
54 nentista, das greves da década de tos, a esse controle sobre os traba-
da aprovação do PL 4330?
1930, que se multiplicaram com lhadores — o que, evidentemente,
muita importância, e a participa- é algo que produz o debate e que Ruy Braga – Infelizmente nes-
ção e a atuação dos sindicatos e deve ser efetivamente superado. se último período de 12, 13 anos
principalmente do Partido Comu- No entanto, do ponto de vista da de sucessivos governos petistas, a
nista na década de 1930; ou seja, proteção, da cristalização de direi- dinâmica da efetivação e da am-
há um conjunto de forças sociais tos, da constituição deste campo pliação de direitos trabalhistas não
gravitando em torno do mundo do legítimo de disputas em torno da esteve na pauta. O que ocupou de
trabalho que se organizam e con- questão do trabalho, a CLT, ain- fato a pauta do governo foram as
quistam a CLT como uma lei pro- da hoje, é imprescindível e, nes- políticas redistributivas ao estilo
priamente moderna para aquele se sentido, ela vai ao encontro do Programa Bolsa Família, o au-
período e que ao mesmo tempo dos interesses dos trabalhadores mento dos gastos sociais do gover-
viabilizava uma espécie de pro- em combinar melhorias na ren- no com aquela fatia da população
jeto de nação. Digo isso por quê? da, na qualificação e na proteção que está fora do mercado de traba-
Porque ao se promulgar a CLT, em trabalhista. lho. A dinâmica dos direitos traba-
1943, se tem na verdade a criação lhistas não esteve em pauta, a não
de um campo legítimo de disputas ser com a questão do Projeto de
IHU On-Line – A CLT ainda pode
em torno das questões do traba- Emenda Constitucional das empre-
ser criticada?
lho, das classes sociais, que foi gadas domésticas, que iguala os di-
rapidissimamente ocupado pelos Ruy Braga – Acredito que a CLT reitos trabalhistas delas aos demais
trabalhadores, não apenas os da- pode ser criticada por várias ra- trabalhadores, o qual ainda não foi
quela primeira onda de imigração zões, mas não pelas razões que regulamentado, mas que está sen-
europeia, sobretudo espanhóis, ela tem sido criticada contempo- do discutido. Com essa exceção,
portugueses e italianos, mas a CLT raneamente, que basicamente diz não houve de fato um impulso por
preparou aquela segunda onda de respeito à questão da proteção do parte do PT e, evidentemente, com
migração que foi a migração dos trabalhador, ao patamar mínimo a conivência da CUT na direção da
trabalhadores do Nordeste, das ci- de proteção ao trabalhador. Com- ampliação de direitos trabalhistas.
dades do interior de Minas Gerais preendo que a CLT cria, ao ser pro- Não se fala, por exemplo, de uma
para os centros urbanos, que se in- mulgada, uma situação histórica na lei para reduzir a jornada de traba-
dustrializavam muito rapidamente qual se tem a lei — isso que estou lho, a qual continua com a jornada
nesse período. chamando de um campo legítimo de 44 horas; não se fala em uma lei

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DE CAPA IHU EM REVISTA

que é absolutamente necessária, de lado uma série de reinvindica- cia de ter que ir para defensiva,
urgente, que vai ao encontro no- ções históricas, deixando de lado uma vez que a direita tem avança-
vamente dos interesses históricos um investimento mais acentuado do e os setores médios conservado-
desses trabalhadores, que é uma na militância de base e assim por res têm atacado, têm ido para as
lei contra a demissão imotivada, diante. ruas, se mobilizado.
ou seja, certa estabilidade para
Os mesmos sindicatos “cutistas” Acredito que é possível, através
estancar essa sangria que é a rota-
que fazem e fizeram greve nesse de um processo de construção polí-
tividade do trabalho no Brasil.
último período são muitos; eles tica, renovar o projeto da esquerda
Não há propriamente essa agenda normalmente fazem greves, em brasileira, que efetivamente teria
sendo levada adiante pelas forças grande medida, contra os interes- de ser um projeto de esquerda
governistas, por forças de oposição ses da própria CUT em mobilizá- contra, fundamentalmente, essas
de esquerda que são minoria no ce- -los. É uma dinâmica complexa, políticas de austeridade, ajustes e
nário sindical e no cenário políti- ataques aos interesses dos traba-
co brasileiro. O que posso concluir lhadores que têm sido implemen-
disso tudo é que o PL 4330, caso tadas pelo governo federal, mas
seja finalmente aprovado e sancio- que seja capaz de reaglutinar um
nado, se inscreve nessa lógica de terceiro polo de oposição de es-
moderação sob o ponto de vista A CLT, histori- querda que fortaleça e seja capaz
das forças progressistas, em torno de inspirar, atrair os trabalhadores
da questão do trabalho, que estão camente, é um para uma pauta mais progressista.
dentro do governo, que acaba le-
vando a uma derrota histórica. Ce-
marco impres- É um trabalho de reconstrução de
esquerda que vai durar bastante
de-se tanto que, agora, esse pro- cindível do de- tempo.
cesso de ceder sempre e de nunca
avançar acabou por transformar-se
senvolvimen- IHU On-Line - É possível visu-
em uma derrota histórica para os to brasileiro alizar de onde poderia vir esta
trabalhadores. A rigor a PL aprova- renovação?
da significa o fim da CLT.
problemática, cheia de tensões, Ruy Braga - O cenário, tal como
IHU On-Line - Por que o tema do mas a rigor o que se vê é uma in- se apresenta hoje, envolve funda- 55
satisfação muito grande nas bases, mentalmente uma articulação de
trabalho não esteve em pauta nos
uma pressão sobre os sindicalistas partidos políticos de oposição de
governos petistas?
que atuam nas bases, uma negocia- esquerda, notoriamente o PCB,
Ruy Braga – É uma questão muito ção muito problemática com esses o PSTU e o PSOL em aliança com
sensível que atinge fundamental- sindicalistas que estão próximos novos movimentos sociais, como
mente os interesses de classe. Os ao governo, que assumem funções os movimentos sociais de luta pela
governos do PT não foram gover- no governo, nos fundos de pensão. moradia, o MTST, a frente de luta
nos de enfrentamento de interes- Enfim, é uma dinâmica sindical de por moradia, todos esses setores
ses de classe. Foram, ao contrário, conjunto muito mais complexa do que efetivamente estão protago-
governos de pacificação desses in- que se tinha no passado, mas sem- nizando ocupações nos centros das
teresses e reprodução dessas ten- pre apostando nessa via ou nessa cidades, que têm enfrentado as
sões. Evidentemente fizeram de direção da pacificação desses con- dinâmicas de expulsão dos traba-
tudo para evitar que se abrisse um flitos de classe. lhadores precarizados para as pe-
flanco muito largo de uma área de riferias mais longínquas da cidade,
atrito muito acentuada contra os juntamente com os sindicatos que
IHU On-Line - O que isso de-
interesses da burguesia brasileira. se colocam nessa perspectiva de
monstra em relação à esquerda
oposição de esquerda ao governo,
como um todo?
IHU On-Line - Isso se aplica à de defesa intransigente dos inte-
CUT e às centrais sindicais de Ruy Braga - Esse naufrágio do resses dos trabalhadores.
modo geral? governo petista, principalmente
Esse é um pouco o terreno da
do governo Dilma Rousseff, coloca
Ruy Braga - Sem dúvida nenhu- formação de uma nova coalizão
toda a esquerda brasileira contra
ma. A CUT se acomoda em um mo- que sustente um polo de esquerda,
a parede. Não é apenas uma der-
delo de sindicalismo de gabinete, alternativo a essa bipolaridade PT-
rota do PT; porque a derrota do
de negociação de pequenas con- -PSDB, e que se apoie fundamental-
PT influencia e contamina todas
cessões com a área do trabalho, ou mente sobre a aliança entre traba-
as demais forças políticas, prin-
a área do planejamento, ou a área lhadores precarizados de um lado,
cipalmente as forças políticas de
da Fazenda do governo. A CUT fi- sindicatos de outro, movimentos
oposição de esquerda, que fizeram
cou muito focada nessa negociação sociais, juventude, luta antiproibi-
oposição intransigente ao governo
com o governo federal, deixando cionista, setores que efetivamente
federal e agora se veem na iminên-
estão descontentes com esse atual

SÃO LEOPOLDO, 27 DE ABRIL DE 2015 | EDIÇÃO 464


DESTAQUES DA SEMANA TEMA

modelo de desenvolvimento, por- mento público, ou seja, um avanço te contratado —, o que significa,
que percebem seus limites com do rentismo, o aumento da taxa de entre outras, que aqueles bene-
mais contundência. juros, sequestro da dívida pública fícios, como o 13º, 1/3 de férias,
por poucos credores, poucas famí- tendem a se diluir e a se tornar
IHU On-Line - Quais são as ra- lias, etc.; e uma espoliação que se cada vez mais distantes. Imagina
zões de fundo que explicam a dá na base de um aprofundamento que um trabalhador não tercei-
aprovação do PL? O que está da espoliação urbana, ou seja, as rizado, diretamente contratado,
acontecendo no Brasil? Que mu- pessoas são cada vez mais desloca- fique dois anos como trabalhador
danças estão se dando no mundo das para mais distante dos centros contratado, com isso se tem aí
do trabalho e que favorecem esse urbanos e assim sucessivamente. dois salários-mínimos, férias, to-
tipo de medida? Com isso se tem, basicamente, dos os direitos garantidos; o tra-
uma dinâmica de espoliação que balhador terceirizado trabalha
Ruy Braga – O PL é de 2004 e vai progressivamente ocupando quatro meses e é demitido, fica
pega este período de 10 anos no espaço e se tornando mais impor- dois meses parado, volta, trabalha
qual se tem o apogeu e o declínio tante do que aquelas dinâmicas de
mais cinco meses, é demitido, fica
de um modelo de desenvolvimen- exploração do trabalho assalariado
três meses parado, volta ao mer-
to; ou seja, uma combinação entre que nós vimos no período passado.
um regime de acumulação apoiado cado e trabalha mais seis meses —
Vivemos um momento de transição
sobre a exploração do trabalho as- ou seja, aquilo que seria o 13º vai
que aponta para outro modelo, um
salariado barato com um modo de se diluindo porque ele nunca con-
sistema distinto, alternativo, não o
regulação que prima pela tentativa contrário, mas alternativo ao que segue completar os 12 meses que
de pacificação social, sobretudo estamos vendo hoje. garantiriam propriamente o 13º
tendo em vista a integração das dele. É um afastamento daqueles
lideranças tradicionais do movi- direitos que já são consolidados
mento social brasileiro ao aparelho para os trabalhadores diretamen-
de Estado. Esse modelo de desen- te contratados.
volvimento começa a claudicar do
ponto de vista econômico a partir A CLT se tor- Há uma série de implicações
também do ponto de vista da ar-
de 2009, 2010, com o processo de
nou uma lei que recadação: as empresas terceiri-
56 desaceleração econômico e a inte-
gração do Brasil no contexto da cri- foi o produto
zadas geralmente recolhem menos
tributos porque são menores. Há
se internacional que se reproduz, e
que de alguma maneira ainda está de décadas de empresas terceirizadas — que é a
regra basicamente — que não pa-
atuando nesse cenário mais global.
E, por outro lado, se tem um de-
lutas sindicais gam os direitos, às vezes recolhem,
safio a essa hegemonia lulista que e populares mas não os repassam para a União.
Há empresas que faliram e o tra-
se colocou no coração “desse modo
balhador não sabe nem onde está
de enrolação” dos conflitos de IHU On-Line - Quais são as impli- a sede dessa empresa, ou seja, o
classe no país nesse último perío- cações da aprovação do PL para a mercado de trabalho é desestrutu-
do, apoiado na pacificação social. CLT? Como a lei da terceirização, rado de uma forma que degrada o
Há uma espécie de deslocamento, caso aprovada, põe fim à CLT?
uma transição de um modelo de trabalhador e ao mesmo tempo de-
desenvolvimento que claudica a Ruy Braga – Há, por exemplo, as teriora as relações sociais em um
partir de 2009, 2010 e dá mostras negociações pelas categorias. Tra- sentido muito profundo.
muito contundentes de fadiga e balhadores diretamente contrata-
Esse aprofundamento da mercan-
posterior esgotamento. dos garantem, além da efetivação
tilização do trabalho é deletério do
de direitos, benefícios e uma série
Agora um novo modelo está sen- de conquistas que o terceirizado ponto de vista dos interesses da
do testado e transita de uma ên- não tem. O terceirizado tem mui- sociedade, porque haverá menos
fase na exploração do trabalho ta dificuldade de se associar sin- arrecadação, consequentemen-
assalariado barato — esses milhões dicalmente, de ser representado, te haverá uma queda nos gastos
e milhões de empregos que foram o que consequentemente implica sociais, um aumento no número
criados que pagam até 1,5 salário- um afastamento daqueles direi- dos acidentes de trabalho, um au-
-mínimo — para uma situação na tos, conquistas e benefícios que mento no número de mortes, uma
qual se tem um tipo de acumula- a categoria principal já alcançou. compressão da massa salarial, que
ção que se apoia principalmente O trabalhador terceirizado recebe significa menos consumo. Uma sé-
sobre a dinâmica da espoliação 30% a menos, trabalha três horas a rie de desdobramentos que, sem
social: espoliação de direitos é o mais, é submetido a uma dinâmica dúvida nenhuma, são deletérios do
que estamos vendo com as medi- de rotatividade de trabalho que é ponto de vista dos interesses da so-
das 664, 665 e o PL 4330; espolia- muito mais intensa — basicamente ciedade de uma maneira em geral
ção dos fundos públicos do orça- o dobro do trabalhador diretamen- e dos trabalhadores em especial.

SÃO LEOPOLDO, 27 DE ABRIL DE 2015 | EDIÇÃO 464


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IHU On-Line – Que cenário vis- inversão estrutural do mercado de terceirização é o “mundo cão” do
lumbra em relação ao número de trabalho no país. trabalho, não vejo nenhuma vanta-
trabalhadores terceirizados caso gem do ponto de vista dos interes-
a lei seja aprovada? IHU On-Line - O que seria um mo- ses da sociedade; vejo vantagens
delo alternativo à terceirização? do ponto de vista dos capitalistas,
Ruy Braga – Como ela foi apro-
dos empresários.
vada em primeira instância pela Ruy Braga – O trabalho não deve
Câmara, sim, haveria condições ser terceirizado. Não gosto de es- Um modelo alternativo seria:
de terceirizar todas as atividades, tar discutindo a regulamentação nós precisamos colocar um fim às
tanto no serviço público quanto na da terceirização, gostaria de es- terceirizações; precisamos de uma
iniciativa privada. Só que tudo isso, lei contra a demissão imotivada e
como foi feito de um modo muito precisamos distribuir o trabalho de
açodado, será objeto de contesta- maneira mais igualitária, ou seja,
ção jurídica, porque a Câmara se diminuir a jornada de trabalho sem
a diminuição de salários. Esse é o
antecipa à decisão do Supremo. Os
efeitos são estes: uma compres-
Aqueles bene- modelo alternativo; não vejo ou-
são do salário, uma ampliação do fícios, como o tra possibilidade de organizar as
relações de trabalho sem essas
número de horas trabalhadas, au-
mento de acidentes, aumento de
13º, 1/3 de fé- iniciativas, porque quanto mais es-
truturado o mercado de trabalho,
mortes, enfim, todos esses elemen- rias, tendem a quanto mais regulamentado, quan-
tos que são degradantes do ponto
de vista do trabalho. se diluir e a se to mais houver direitos, se terá
uma dinâmica mais virtuosa em
A implicação que estou preven- tornar cada vez termos de renda, em termos so-
do, caso o projeto tramite e seja
sancionado pela Presidência, é de
mais distante ciais e em termos de investimento
em tecnologia.
que em cinco anos haverá uma in- O empresário brasileiro histori-
versão estrutural no mercado de tar discutindo o fim da terceiriza- camente não investe em tecnolo-
trabalho no Brasil, na qual a maior ção. Se a terceirização acabasse gia porque se acomodou a explorar
parte do trabalho será terceirizada
e a menor parte será diretamente
de hoje para amanhã estaríamos
criando um milhão de novos em-
o trabalho barato. Se o trabalho 57
fosse efetivamente mais regulado,
contratada. Hoje se tem 49 mi- pregos no mercado de trabalho ele teria que lançar mão de inves-
lhões de carteiras assinadas com brasileiro formal, estaríamos crian- timentos em P&D e em tecnologia
12,7 milhões de trabalhadores ter- do uma dinâmica mais progressis- a fim de aumentar a produtivida-
ceirizados. Em cinco anos — essa é ta e mais virtuosa de proteção, de de; mas ele não faz isso porque fica
minha previsão — haverá algo em acesso a conquistas, benefícios, utilizando esse manejo degradante
torno de 28 milhões de trabalha- garantias, inclusive pensando o da força de trabalho, contratando
dores terceirizados, e o restante, próprio impulso que isso traria e demitindo, intensificando o tra-
alguma coisa em torno, talvez, de para um aumento no investimento balho na base do despotismo fabril,
15 milhões de trabalhadores, dire- em tecnologia. Eu gostaria de estar ou seja, tudo aquilo que é contrá-
tamente contratados. Então, acre- discutindo o fim da terceirização e rio das pressões por aumento de
dito que seja este o cenário, uma não sua regulamentação, porque a investimento em tecnologia.

LEIA MAIS...
—— A política do precariado no mundo do trabalho. Entrevista especial com Ruy Braga publi-
cada nas Notícias do Dia, de 27-04-2014, disponível em http://bit.ly/1JKpI0m;
—— A condição de insegurança é a regra do mundo do trabalho, hoje. Entrevista com Ruy
Braga publicada na Edição 416 da IHU On-Line, de 29-04-2013, disponível em http://bit.
ly/1bKIIl2;
—— O desmantelamento do estado de bem-estar social é o DNA do capitalismo. Notícias do
Dia 28-09-2012, disponível em http://bit.ly/VSYdd4;
—— A política do precariado e a mercantilização do trabalho. Revista IHU On-Line número
411, de 10-12-2012, disponível em http://bit.ly/Y0FNuS.

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IHU
ON-LINE

IHU em
Revista
DESTAQUES DA SEMANA TEMA

Agenda de Eventos
Confira os eventos que ocorrem no Instituto Humanitas Unisinos – IHU de 27-04-
2015 até 07-05-2015.

Oficina – Exercício e Acesso à Base de Dados do IBGE


(2ª edição)
Ministrante: Prof. MS Ademir Barbosa Koucher – Instituto Brasileiro de Geografia e
28/04 Estatística – IBGE
Horário: 9h às 12h
Local: Laboratório de Informática – B09 009
Saiba mais em http://bit.ly/1yuPTry

METRÓPOLES - Pegada Hídrica, transparência e


governança da água nas metrópoles brasileiras: desafios
e avanços
Conferencista: Profa. Dra. Vanessa Lucena Empinotti – Empinotti Ambiental / Uni-
versidade Federal do ABC – UFABC 29/04
60 Horário: 19h45min às 22h
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU
Saiba mais em http://bit.ly/1CIsn8y

IHU Ideias - Impactos da conjuntura brasileira atual no


mundo do Trabalho
Palestrante: Prof. Dr. Moisés Waismann – Unilasalle
30/04 Horário: 17h30min às 19h
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU
Saiba mais em http://bit.ly/1GmXriK

METRÓPOLES - Metrópoles e Multidão: das políticas


públicas às políticas do comum
Conferencista: Prof. Dr. Alexandre Fabiano Mendes – Universidade do Estado do
Rio de Janeiro – UERJ
07/05
Horário: 19h45min às 22h
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU
Saiba mais em http://bit.ly/1EvY35o

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Confira as publicações do
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61

Elas estão disponíveis na página eletrônica


www.ihu.unisinos.br

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

TEOLOGIA PÚBLICA

Diminuição do Catolicismo apontada


por Pesquisa do IBGE: uma leitura
teológica a partir de sinalizações do
Papa Francisco
Por José Roque Junges

O decréscimo do número de católicos é “um fato inevitável e vai continuar,


porque o contexto sociocultural da cristandade, que antes desenvolvia o expe-
riencial da fé, terminou, sendo necessário encontrar outros caminhos de fomentar
a verdadeira experiência mística de fé”, escreve José Roque Junges, doutor em
Teologia, professor e pesquisador do PPG em Saúde Coletiva da Unisinos.
Segundo ele, “a insistência no institucional doutrinário como substitutivo do
desaparecimento do contexto sociocultural da cristandade não é o caminho ade-
quado para suscitar verdadeiras convicções experienciais de fé. A religiosidade
popular tão apreciada pelo Papa Francisco é o tesouro experiencial da fé do povo
simples que é necessário valorizar”.
62 “A atitude serena diante desse decréscimo do percentual de católicos - afirma
o teólogo - é dizer que, num contexto não mais de cristandade, o número de per-
tença institucional já não interessa tanto, porque não é o ponto central. Apresen-
tar números pode ser algo ilusório. O que importa mais é a dimensão experiencial
das convicções de fé”. E ele conclui: “Diante de estatísticas religiosas, pode-se
dizer que não importa tanto o número de fiéis e de padres, mas a sua qualidade
humana e espiritual”.
Eis o artigo.

O programa ObservaSinos1 do Instituto Humanitas Com o caso do regime da cristandade, por obra e
Unisinos - IHU, no estudo “O Desenvolvimento das Re- graça da secularização iluminista, que proclamou a
ligiões e Religiosidades no Vale do Rio dos Sinos-RS” laicidade do Estado e da cultura, pela qual a religião
aponta para dados do IBGE de que o Catolicismo dimi- se tornava um assunto privado da consciência, não
nui acentuadamente no Vale do Rio dos Sinos, no Rio mais determinando os valores da sociedade, entendida
Grande do Sul e no País e aumentam as Igrejas Evangé- como secular, a Igreja Católica, como não tinha mais
licas Pentecostais e os sem Religião. Como interpretar um poder público na sociedade, reagiu, fechando-se
na autoreferencialidade do seu aspecto institucional e
e compreender esse fato? O ensinamento inovador do
na defesa do seu patrimônio moral e doutrinário. De-
Papa Francisco oferece pistas e sinalizações pertinen-
vido a esse fechamento, ela perdeu o seu foco evange-
tes para ajudar a entender essa diminuição do catoli-
lizador tensionado para o mundo e a sociedade, assu-
cismo e o que fazer diante dessa situação. mindo sempre mais atitudes condenatórias em relação
1 Observasinos: O Observatório da realidade e das Políticas Públicas a quem não era de seu redil. Essa atitude de fecha-
do Vale do Rio dos Sinos – ObservaSinos é um programa do Instituto mento e de condenação originou um dos pecados fun-
Humanitas Unisinos – IHU vinculado ao Centro de Cidadania e Ação
damentais da Igreja Católica, denunciado pelo Papa
Social – CCIAS /UNISINOS que objetiva dar vista aos indicadores so-
cioeconômicos e promover o debate sobre a realidade e políticas públi- Francisco, a sua autoreferencialidade que a levou a
cas da região. (Nota da IHU On-Line) longo prazo a uma esterilidade evangélica.

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DE CAPA IHU EM REVISTA

Essa reação autoreferencial da Igreja frente ao mun- conteúdo religioso é uma das contribuições mais origi-
do a levou a acentuar sempre mais o seu aspecto insti- nais e perspicazes do Papa atual em tomar o pulso da
tucional, expresso principalmente pela defesa do dou- Igreja para detectar as suas enfermidades e apontar as
trinário. Esse acento fez esquecer o mais importante causas dos seus escândalos.
na fé que é o aspecto experiencial, porque a adesão
Esse mundanismo aparece na busca de carreirismo
a Cristo é antes de nada uma experiência salvífica de
eclesiástico e na exterioridade narcísica das vestes e
fé e não uma doutrina. Por isso, que o Papa Francis-
dos gestos sem conteúdo espiritual, manifestado por
co acentua tanto a volta ao frescor e à experiência
atitudes clericais de orgulho e de rigorismos com total
do Evangelho. A doutrina desconectada do Evangelho
falta de misericórdia e sensibilidade pastoral para com
é estéril, o institucional eclesial sem a animação do
os fiéis cristãos. Por isso o Papa Francisco insiste tanto
experiencial da graça de Cristo é uma estrutura sem
que a Igreja deve ir para as fronteiras existenciais e
Espírito.
sociais para ser um hospital de campanha que atende
O Papa Francisco de nenhuma maneira quer mudar sem condenações e com compaixão, curando as feri-
a doutrina, o que ele tem em vista é mudar o foco de das da humanidade, disposta a sujar as mãos para as-
preocupação eclesial para o Evangelho e a dimensão sumir a atitude do samaritano.
experiencial da fé (parece algo obvio, mas já não o era
Essas pontuações do Papa Francisco ajudam a en-
mais), porque o puro acento no doutrinário pode ser
tender a causa do decréscimo do número de católicos.
ideologizado. A presença pública da Igreja não pode
Esse fato é inevitável e vai continuar, porque o contex-
ser uma ideologização de valores morais inegociáveis
to sociocultural da cristandade, que antes desenvol-
(como acontece com o uso ideológico da moral católi-
via o experiencial da fé, terminou, sendo necessário
ca que faz a direita política nos Estados Unidos), mas
encontrar outros caminhos de fomentar a verdadeira
o anúncio e o testemunho dos valores do Evangelho.
experiência mística de fé.
Por isso Francisco deixou de insistir no tema do abor-
A insistência no institucional doutrinário como subs-
to, porque o discurso estava ideologizado. Não é que
titutivo do desaparecimento do contexto sociocultural
ele seja a favor do aborto de nenhuma maneira, mas
da cristandade não é o caminho adequado para susci-
o discurso está totalmente ideologizado por velados
tar verdadeiras convicções experienciais de fé. A reli-
interesses de luta política, não sendo mais evangéli-
giosidade popular tão apreciada pelo Papa Francisco
co como deveria ser. Nisso consiste a revolução que o
é o tesouro experiencial da fé do povo simples que é
Papa atual está ocasionando na Igreja: colocar o acen-
to naquilo que é central e obvio para a fé cristã – os
necessário valorizar. O movimento carismático é um 63
exemplo de caminho espiritual inovador para suscitar
valores do Evangelho. Já dizia Karl Rahner2 que o cris-
convicções experienciais de fé.
tão do século XXI ou se tornará um místico ou deixará
de ser cristão. Se a resposta ao decréscimo de católicos não consis-
te em insistir no aspecto institucional doutrinário, mas
Outra tentação da Igreja frente ao mundo atual, de-
em acentuar a dimensão experiencial da fé, porque o
nunciada pelo Papa Francisco, é o mundanismo espi-
institucional é uma consequência do experiencial da
ritual expresso em formalismos clericais e ritualismos
graça, então é necessário explicitar em que consiste
litúrgicos sem conteúdo (a volta da missa em latim
proporcionar aos fiéis uma verdadeira experiência es-
por parte de certos padres jovens é um exemplo dis-
piritual de fé cristã. Consultando a Exortação Após-
so), porque faltos de verdadeira experiência espiri-
tólica Evangelii Gaudium do Papa Francisco pode-se
tual e mística. Essa denúncia de um mundanismo de
dizer que o essencial da fé cristã é acolher no coração
o amor de Deus e sua graça salvífica revelada em Jesus
2 Karl Rahner (1904-2004): importante teólogo católico do sécu-
lo XX. Ingressou na Companhia de Jesus em 1922. Doutorou-se em
de Nazaré. Essa experiência de sentir-se amado pelo
Filosofia e em Teologia. Foi perito do Concílio Vaticano II e professor Pai em Cristo produz frutos espirituais que são os in-
na Universidade de Münster. A sua obra teológica compõe-se de mais dicadores de uma fé autêntica e madura: paz interior,
de 4 mil títulos. Suas obras principias são: Geist in Welt (O Espíri- alegria serena, profunda humildade simplicidade de
to no mundo), 1939, Hörer des Wortes (Ouvinte da Palavra), 1941,
Schrifften zur Theologie (Escritos de Teologia). Em 2004, celebramos vida e amor aos pobres, dons vividos e amadurecidos
seu centenário de nascimento e a Unisinos dedicou à sua memória o num contexto comunitário eclesial. O que não pode
Simpósio Internacional O Lugar da Teologia na Universida- faltar numa verdadeira experiência espiritual cristã
de do século XXI. Veja Karl Rahner. A busca de Deus a partir da
é humildade e amor aos pobres e pequenos, porque
contemporaneidade, edição 446 da IHU On-Line, de 16-06-2014,
nossa edição mais recente sobre o assunto. Dez anos atrás, a edição essa era a prática de Jesus. Quem não aprecia e bus-
número 102, da IHU On-Line, de 24-05-2004, dedicou a matéria de ca incessantemente esses dons pela graça não é uma
capa à memória de seu centenário, em http://bit.ly/maOB5H. Neste pessoa de Deus.
meio tempo, a edição 297, de 15-06-2009, Karl Rahner e a ruptura do
Vaticano II, também retomou o tema e está disponível para download Duas tentações possíveis e comuns neste contexto
em http://bit.ly/o2e8cX. Além de diversos artigos sobre o pensamento
do teólogo ao longo do tempo, destacamos também o Cadernos Teo-
eclesial que necessitam discernimento espiritual. A
logia Pública n° 5, Conceito e Missão da Teologia em Karl Rahner, primeira é o rigorismo, seja ele qual for, que afasta as
do Prof. Erico Hammes, disponível em http://bit.ly/18XbPcU. Em pessoas de Deus, já dizia Santo Afonso de Ligório, e ex-
2014 a IHU On-Line publicou a edição 446 intitulada Karl Rahner. A pressa uma atitude mundana trasvestida de ortodoxia
busca de Deus a partir da contemporaneidade, disponível em http://
bit.ly/112CjfG. (Nota da IHU On-Line) religiosa, porque detrás dela existe orgulho e superio-

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

ridade que são uma tentação do mal travestida de luz central. Apresentar números pode ser algo ilusório. O
e uma obra do mau espírito em linguagem inaciana. que importa mais é a dimensão experiencial das con-
vicções de fé. Por isso o desafio é como trabalhar uma
A segunda é tornar as pessoas rezadoras e não pesso-
verdadeira pedagogia da fé que forma cristãos adultos
as orantes. O rezador multiplica orações que não con-
não clericalizados com convicções e liberdade interior.
vertem o coração, porque são rezas interesseiras de
cunho consumista. A pessoa orante acolhe no seu co- Nesse sentido, o aumento do número de participa-
ração a palavra de Deus que a converte e a faz mudar ções em cerimonias religiosas, muitas vezes motiva-
de vida por obra da graça e do amor de Deus. Para ela das pela pura busca de milagres, não é um sinal de
oração e vida tornam-se uma só realidade existencial. aprofundamento na fé, mas pode expressar uma visão
O grande desafio pastoral hoje é ajudar os cristãos a consumista da religião que não cria convicções. Assim
serem pessoas orantes místicas, profundamente inse- também o aumento do número de padres, quando não
ridas em suas realidades, movidas pelo amor miseri- existe uma rigorosa seleção e uma verdadeira forma-
cordioso de Deus e produzindo frutos de caridade para ção afetiva e espiritual, algo que o Papa Francisco
o mundo, como aponta a Gaudium et Spes. também está insistindo, pode ser enganoso e desen-
cadeador de futuros problemas. Portanto, diante de
A primeira atitude serena diante desse decréscimo
estatísticas religiosas, pode-se dizer que não importa
do percentual de católicos é dizer que, num contexto
tanto o número de fiéis e de padres, mas a sua quali-
não mais de cristandade, o número de pertença insti-
dade humana e espiritual.
tucional já não interessa tanto, porque não é o ponto

64

SÃO LEOPOLDO, 27 DE ABRIL DE 2015 | EDIÇÃO 464


DE CAPA IHU EM REVISTA

PUBLICAÇÕES

A racionalidade contextualizada
em Feyerabend e suas implicações
éticas: um paralelo com
Alasdair McIntyre
Cadernos IHU ideias, em sua 219ª
edição, traz o artigo A racionalidade
contextualizada em Feyerabend e suas
implicações éticas: um paralelo com
Alasdair McIntyre, de Halina Leal, dou-
tora em filosofia pela USP, palestrante
do XIV Simpósio Internacional IHU. Re-
voluções Tecnocientíficas, Culturas, In-
divíduos e Sociedades.

A crítica de Karl Paul Feyerabend ao


racionalismo universalista e a apresen-
65
tação de seu “anarquismo epistemoló-
gico” conduz a uma reflexão acerca das
possibilidades racionais da ciência den-
tro do contínuo razão-prática, no qual
é identificado o papel do sujeito cog-
noscente em condições epistemológi-
cas contextuais. Isto pressupõe noções
como liberdade, vontade e responsabi-
lidade individuais, as quais permitem
refletir acerca das implicações éticas
desta racionalidade científica contex-
tualizada. A ética das virtudes proposta
por Alasdair MacIntyre salienta a tradi-
ção de pesquisa racional, apresentando um sistema de justificação moral que
defende a existência de princípios dentro de tradições, nas quais a história
desempenha papel importante na compreensão da construção de valores de
ação. Tendo em vista características específicas da concepção epistemológica
de Feyerabend e da concepção ética de MacIntyre, o presente artigo tem por
objetivo analisar as possíveis aproximações entre os pensamentos dos dois auto-
res referidos, considerando o conceito de racionalidade expresso na abordagem
de cada um.

Esta e outras edições dos Cadernos IHU ideias podem ser adquiridas diretamente
no Instituto Humanitas Unisinos - IHU ou solicitadas pelo endereço humanitas@
unisinos.br. Ou, ainda, na versão digital, disponível em http://bit.ly/1GjHqak.

SÃO LEOPOLDO, 27 DE ABRIL DE 2015 | EDIÇÃO 464


DESTAQUES DA SEMANA TEMA

Sala de Leitura

CARRASCOZA, João Anzanello. Vendedor de sustos. São


Paulo: FTD, 2014, 64p.

Escrito pelo publicitário e professor de publicidade João Anzanello Carrascoza, o


livro Vendedor de Sustos valoriza as pequenas coisas do dia a dia, que passam des-
percebidas pelo nosso cotidiano sempre tumultuado de tarefas. A obra é composta
por cinco contos que abordam situações variadas: o menino que vive a alegria do
primeiro amor; o pote de ouro que descobre como alcançar o seu desejo; a diferença
entre possuir e fruir; a comunicação entre o menino e seu anjo; e o vendedor de um
produto inusitado: sustos.

Sérgio Trein é coordenador do curso de Publicidade e Propaganda da Unisinos.

66

FAIRCLOUGH, Norman. Language and Power. Harlow:


Longman, 1989, 259p.

A obra trata do uso da linguagem em relações sociais, desiguais por natureza. O


autor busca demonstrar o papel da linguagem na busca e manutenção do poder nas
relações sociais. Para isso, contextualiza o discurso como prática social vinculada à
busca ou manutenção do poder, determinado por estruturas sociais e atrelado a no-
ções de senso comum e manifestação ideológica.
A partir desses elementos, o autor desenvolve uma Teoria Crítica de Análise do
Discurso, cujo objetivo é criar um método próprio para desvendar as premissas ideo-
lógicas do discurso social. Algumas premissas da obra são fundamentais e estão muito
bem relacionadas entre si, tais como a noção de ideologia de Antonio Gramsci e as
ideias de Michel Foucault a respeito da relação entre discurso e poder.

Gabriela Mezzanotti é coordenadora dos cursos de Graduação e Especialização em


Relações Internacionais da Unisinos.

SÃO LEOPOLDO, 27 DE ABRIL DE 2015 | EDIÇÃO 464


DE CAPA IHU EM REVISTA

Retrovisor
Releia algumas das edições já publicadas da IHU On-Line.

A organização do mundo do trabalho e a modelagem de


novas subjetividades
Edição 416 - Ano XIII - 29-04-2013
Disponível em http://bit.ly/1jBMvNv
As novas configurações do mundo do trabalho, seus impactos na vida dos traba-
lhadores e das trabalhadoras e seus desafios para a organização e a luta da classe
trabalhadora, é o tema da edição 416 da IHU On-Line. Contribuem no debate Ruy
Braga, Mário Sérgio Salerno, José Roberto Montes Heloani, José Ricardo Ramalho,
Giovanni Alves, Elísio Estanque, Claudio Dedecca, Marcia de Paula Leite, Christian
Marazzi e Lucas Henrique da Luz.

O mundo do trabalho e a crise sistêmica do capitalismo


globalizado
Edição 291 - Ano IX – 04-05-2009
Disponível http://bit.ly/QyKJpA
67
“Vivemos uma crise sistêmica e ninguém sabe qual vai ser seu desfecho. Essa
incerteza radical, transformada numa crise de confiança é o que define, parado-
xalmente, a certeza quanto à dimensão única da crise”. A afirmação do cientista
político e doutor em História Social, pela Université de Paris I, Giuseppe Cocco, em
artigo publicado neste número da IHU On-Line abre as discussões sobre o impacto
da crise sistêmica do capitalismo flexível, financeirizado e global, sobre o mundo
do trabalho. Contribuem também para os debates Waldir Quadros, Dari Krein, Cle-
mente Ganz Lúcio, Cesar Sanson, Marcelo Ribeiro, Alain Lipietz, Dominique Méda
e Thomas Coutrot.

Trabalho. As mundaças depois de 120 anos do 1º de maio


Edição 177 - Ano VI – 24-04-2006
Disponível em http://bit.ly/1k77wD0
A edição de número 177 da IHU On-Line comemora os 120 anos de aniversário
do Dia do Trabalhador e da Trabalhadora. A partir dos acontecimentos do dia 1º de
maio de 1886, em Chicago, um momento importante na luta dos trabalhadores,
nesta edição são analisadas e descritas as novas dimensões do trabalho. Contri-
buem com o debate Leonardo Mello e Silva, Danièle Linhart, Yann Moulier Boutang,
Ursula Huws, contribuem na descrição dos traços característicos do trabalho no
mundo contemporâneo. Por sua vez, Marcio Pochmann e José Dari Krein, examinam
a especificidade brasileira do mundo do trabalho. A entrevista com Leila de Me-
nezes Stein, completa o tema de capa, considerando as mudanças do movimento
sindical norte-americano.

SÃO LEOPOLDO, 27 DE ABRIL DE 2015 | EDIÇÃO 464


O Instituto Humanitas Unisinos - IHU realiza no período de 19 a 21 de maio o II Colóquio Internacional
IHU – O Concílio Vaticano II: 50 anos depois. Mais informações em http://bit.ly/1BnsSRU.

A racionalidade IHU Ideias - Impactos da


contextualizada em conjuntura brasileira atual
Feyerabend no mundo do Trabalho
Cadernos IHU ideias, em A atividade IHU ideias é um espaço aberto e gratuito
sua 219ª edição, traz o artigo de discussão, análise e avaliação de questões que se consti-
A racionalidade contextuali- tuem em grandes desafios de nossa época.
zada em Feyerabend e suas
implicações éticas: um para-
lelo com Alasdair McIntyre,
de Halina Leal, doutora em
filosofia pela USP, palestrante
do XIV Simpósio Internacional
IHU.
A versão completa da pu-
blicação pode ser acessada
Data: Quinta-feira 30 de abril de 2014 às 17h30
em http://bit.ly/1Gf0wMs.
Palestrante: Prof. Dr. Moisés Waismann – Unilasalle
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU

twitter.com/_ihu medium.com/@_ihu

youtube.com/ihucomunica bit.ly/ihuon

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