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Immanuel Wallerstein: Capitalismo Histórico &

Civilização Capitalista

Sumário

INTRODUÇÃO .......................................................................................................................................................................... 2
A MERCANTILIZAÇÃO DE TUDO: PRODUÇÃO DO CAPITAL..................................................................................................... 4
A POLÍTICA DE ACUMULAÇOM: A LUITA POLO LUCRO ........................................................................................................ 24
A VERDADE COMO ÓPIO: RACIONALIDADE E RACIONALIZAÇOM ........................................................................................ 41
CONCLUSOM: SOBRE O PROGRESSO E AS TRANSIÇONS ...................................................................................................... 54
INTRODUÇÃO

Na origem deste livro estivérom duas solicitaçons. A primeira surgiu no Outono de I980,
quando Thierry Paquot me convidou a elaborar um pequeno livro para umha colecçom editada
em Paris. Ele sugeriu-me “O Capitalismo” como tema. Manifestei-lhe a minha disponibilidade,
mas dixem-lhe que preferia o tema do “Capitalismo Histórico”.

Já muitos autores, marxistas e outros pensadores de esquerda, escrevêrom sobre o


capitalismo, no entanto, na maioria das obras, encontro limitaçons de dous tipos. Certas obras
circunscrevem-se a análises de tipo lógico-dedutivo: começam por definir o capitalismo na sua
essência, para, em seguida, analisarem a sua evoluçom em diferentes épocas e lugares. Um
segundo conjunto de textos centra-se nas supostas grandes transformaçons recentes do
sistema capitalista, utilizando todo o passado como umha chapa mitologizada, contra a qual
pode ser contrastada a realidade empírica do presente.

Na seqüência de todo o corpus da minha obra recente, pareceu-me relevante considerar


o capitalismo como um sistema histórico, quer no plano da sua evoluçom história, quer no nível
da sua realidade singular e concreta. Decidi entom descrever a realidade do capitalismo, e
caracterizar de modo preciso tanto os seus aspectos transitórios como os inalteráveis (de modo
a que se poda designar esta realidade com um único nome).

Como muitos outros, acredito que esta realidade é um todo integrado. Mas muitos
daqueles que manifestam esta opiniom socorrem-se dos argumentos que lhes permitem atacar
os oponentes polo seu alegado “economicismo” ou “idealismo” cultural, ou pola excessiva
ênfase dada a factores políticos ”voluntaristas”. Tais críticas tendem geralmente, por ricochete,
a cometer o pecado oposto daquele que elas próprias procuram suprimir. Por conseguinte,
tentei apresentar a realidade do capitalismo como um todo integrado, abordando em seguida
as suas manifestaçons concretas nas áreas económica, política e ideológico-cultural.

A segunda solicitaçom foi um convite do Departamento de Ciências Políticas da


Universidade do Hawai, para dar umha série de palestras. Aproveitei a oportunidade para
escrever este livro, com base naquelas palestras que decorreram na Primavera de 1982. A
primeira versom dos três primeiros capítulos foi apresentada no Hawai, e estou grato à
assistencia polos comentários e críticas entom feitas, as quais me permitírorn melhorar
consideravelmente a sua apresentaçom.

Visando introduzir algumhas melhorias ao texto inicial, elaborei posteriormente o quarto


capítulo. Durante as palestras, tinha tomado consciência de um problema de exposiçom: a
enorme força subterránea da fé na inevitabilidade do progresso. Apercebim-me também de que
esta fé viciava o nosso entendimento das alternativas históricas realmente viáveis. Decidim,
pois, tratar esta questom directamente.

Finalmente, umha breve referência a Karl Marx. Ele foi umha figura proeminente da
moderna história intelectual e política. Deixou-nos um enorme legado, conceptualmente rico e
moralmente inspirador. Porém, a afirmaçom de Marx, segundo a qual ele próprio nom era
marxista, deve ser interpretada literalmente, e nom como umha mera figura de retórica.

Contrariamente a muitos dos seus auto-proclamados discípulos, ele sabia que era um
homem do século XIX, e que a sua visom estava inevitavelmente circunscrita a essa realidade
social. Ao contrário de muitos, ele sabia que um modelo teórico só é compreensível e útil por
oposiçom a outro modelo teórico alternativo que, implícita ou explicitamente, pretende refutar; e
que é totalmente irrelevante por oposiçom a outros modelos, relativos a outros problemas,
baseados noutras premissas. Ao contrário de muitos, ele sabia que na sua obra existia umha
tensom (que, historicamente, nunca se verificou de facto) entre a exposiçom do capitalismo
enquanto sistema consumado e a análise da realidade concreta e quotidiana do mundo
capitalista.

Usemos pois os seus escritos da única forma sensata –como os de um camarada de


luita que conheceu tanto quanto pudo conhecer.
A MERCANTILIZAÇÃO DE TUDO: PRODUÇÃO DO CAPITAL

O capitalismo é essencialmente um sistema social histórico. Para compreendermos as


suas origens, o seu funcionamento ou as suas perspectivas actuais, devemos observar a sua
realidade concreta. Podemos, é claro, ten- tar sintetizar essa realidade num conjunto de
definiçons abstractas. Porém, nom faz sentido julgar e classificar a realidade com base nessas
abstracçons. Em alternativa, proponho que o capitalisrno seja descrito a partir da sua
expressom concreta, do seu funcionamento como sistema, do modo como evoluiu e da
situaçom a que nos conduziu.

A palavra capitalismo deriva de capital. Seria pois legítimo presumir que o capital é um
elemento-chave do capitalismo. Mas o que é o capital? Em certo sentido, trata-se apenas de
riqueza acumulada. Contudo, quando usado no contexto do capitalismo histórico, tem umha
definiçom mais específica. nom é apenas o conjunto de bens consumíveis, maquinaria ou
títulos de aquisiçom de objectos materiais sob a forma de dinheiro. É certo que, no capitalismo
histórico, o termo capital continua a referir-se a acumulaçons de esforços de trabalho anterior,
ainda nom utilizadas. Mas se fosse apenas isso, entom todos os sistemas históricos, desde o
Homem de Neanderthal, poderiam ser classificados como capitalistas, umha vez que em todos
eles existiu umha qualquer forma de acumulaçom de bens que consubstanciavam trabalho
anterior.

O que distingue o sistema social histórico a que chamamos capitalismo é o facto de,
neste sistema, o capital passar a ser usado (investido) de forma muito especial. Passou a ser
utilizado com o objectivo primário de auto-expansom. Neste sisterna, as acumulaçons
anteriores apenas som “capital” na medida em que som usadas com vista à obtençom de
acumulaçons ainda maiores. O processo foi sem dúvida complexo, mesmo sinuoso, como
veremos. Mas é a este objectivo, inexorável e peculiarmente auto-centrado, do detentor de
capital (acumulaçom exponencial de capital), e também às relaçons sociais necessárias para
se realizar esse objectivo, que podemos atribuir a designaçom de capitalista. É certo que este
objectivo nom era exclusivo. Ao processo produtivo estavam associados outros propósitos.
Contudo, em caso de conflito, que propósitos tendiam a prevalecer? Sempre que, num dado
período, a acumulaçom de capital assumiu prioridade sobre outros objectivos alternativos, há
justificaçom para caracterizar o sistema como capitalista.

Um indivíduo (ou um grupo) pode, é claro, decidir em qualquer altura que pretende
investir capital, com o objectivo de adquirir ainda mais capital. Mas, até umha dada época
histórica, teria sido muito difícil a esse indivíduo fazê-lo com sucesso. Nos sistemas anteriores,
o processo de acumulaçom do capital era longo e complexo, sendo quase sempre bloqueado
nurn ponto ou noutro. Isso acontecia mesmo nos casos em que existiam as condiçons iniciais –
a posse ou a concentraçom nas maos de alguns de um conjunto de bens ainda nom
consumidos. O nosso capitalista putativo teria obrigatoriamente de recorrer ao trabalho alheio,
o que implicaria a existência de pessoas que pudessem ser aliciadas ou compelidas a fazer
esse trabalho. Umha vez obtidos os trabalhadores e os bens produzidos, esses bens teriam de
ser comercializados, o que implicaria a existencia quer de um sistema de distribuiçom, quer de
um grupo de compradores, com os meios suficientes para adquirirem os bens. No ponto de
venda, os bens teriam de ser vendidos a um preço superior aos custos totais suportados polo
vendedor. Além disso, este diferencial teria de ser superior ao que o vendedor necessitava para
a sua própria subsistencia. Na nossa linguagem moderna, teria de existir lucro. O dono desse
lucro teria entom de ser capaz de o reter até surgir umha oportunidade razoável para o investir,
e todo o processo teria de se repetir ao nível da produçom.

De facto, antes dos tempos modernos, esta cadeia de processos (por vezes designada
circuito do capital), raramente era concluída. Desde logo porque, nos sistemas sociais
anteriores, muitos dos elos da cadeia eram considerados irracionais e/ou imorais polos
detentores da autoridade política e moral. Mas, mesmo sem a interferência directa destes, o
processo geralmente abortava, devido à ausência de um ou mais elementos do processo –
provisons monetárias acumuladas, força de trabalho a mercê do produtor, rede de
distribuidores, consumidores na qualidade de compradores.

Nos sistemas sociais anteriores, tais elementos estavam ausentes, por nom serem
“mercantilizados” ou serem-no de modo incipiente. Isto significa que o processo nom era
transaccionável através de um “mercado”. O capitalismo histórico implicou, pois, a
mercantilizaçom generalizada dos processos –nom apenas os processos de troca, mas
também os de produçom, de distribuiçom e de investimento– que até aí eram efectuados sem a
intervençom do “mercado”. E, no decurso desta procura de acumulaçom exponencial de
capital, os capitalistas procuraram mercantilizar mais intensamente estes processos sociais, em
todas as esferas da vida económica. Umha vez que o capitalismo é um processo auto-
centrado, daí decorre que nengumha transacçom social estava intrinsecamente impedida de
ser integrada no circuíto. É por estas razons que podemos afirmar que o desenvolvimento
histórico do capitalismo implicou um impulso para a mercantilizaçom de tudo.

Porém, nom bastava a mercantilizaçom dos processos sociais. Os processos de


produçom estavam interligados em complexas cadeias de mercadorias. Consideremos, a título
de exemplo, um produto típico, largamente produzido e vendido durante toda a experiencia
histórica do capitalismo –um artigo de vestuário. Para se produzir um artigo de vestuário, é
necessário, no mínimo, tecido, fio de coser, algum tipo de maquinaria e força de traba-lho. Mas,
por sua vez, cada um destes componentes tem de ser produzido. E os elementos que entram
na sua produçom tem também de ser produzidos. nom era inevitável –nem sequer freqüente–
que todos os sub-processos desta cadeia de mercadorias fossem mercantilizados. Na verdade,
como veremos, o lucro é geralmente maior mesmo quando nem todos os elos da cadeia estam
mercantilizados. O que é evidente é que, numha tal cadeia, existe um conjunto de
trabalhadores, numeroso e disperso, que recebe um determinado tipo de remuneraçom, que é
registada no balancete final como custos. Existe, também, um conjunto mais pequeno de
pessoas, igualmente disperso (operando, por norma, como entidades económicas autónomas),
que partilham de algum modo entre si a margem final da cadeia de mercadorias, que constitui o
diferencial entre os custos totais de produçom e o rendimento total realizado polo detentor do
produto final.

A existência de tais cadeias de mercadorias, ligando múltiplos processos produtivos,


levava a que, para o conjunto de todos os “capitalistas”, o grau de acumulaçom dependesse da
margem que pudesse ser criada, numha situaçom em que esta margem podia flutuar
consideravelmente. Porém, para cada capitalista particular, o nível de acumulaçom variava em
funçom de um processo de “competiçom”, em que maiores ganhos eram obtidos por quem
tivesse maior perspicácia de julgamento, maior capacidade para controlar a sua força de
trabalho, e melhor acesso aos condicionamentos politicamente decididos para operaçons
mercantis particulares (conhecidos geralmente como “monopólios”).

Isto criou umha primeira contradiçom fundamental no sistema. Enquanto o interesse de


todos os capitalistas, (considerados como umha classe), parecia ser o de reduzir todos os
custos de produçom, estas reduçons proporcionaram afinal, freqüentemente, confrontos entre
capitalistas particulares e, conseqüentemente, alguns deles preferírom aumentar a sua quota
parte de umha margem global menor do que aceitar umha reduçom da sua quota parte a troco
de um aumento da margem global, Além disso, havia ainda umha segunda contradiçom
fundamental. A manutençom dos fluxos de acumula çom crescente de capital, de
mercantilizaçom mais intensa dos processos e da produçom crescente de mercadorias
implicava, como um dos requisitos básicos, a existência de cada vez mais compradores. Ao
mesmo tempo, porém, os esforços com vista a diminuiçom dos custos de produçom reduziam
freqüentemente o fluxo e a distribuiçom de dinheiro, inibindo assim a expansom do universo de
promotores, necessária para concluir o processo de acumulaçom. Por outro lado, as
redistribuiçons do lucro global, de modo a permitir a expansom da rede de promotores,
reduziam freqüentemente a margem de lucro global. Assim, os empresários individuais vírom-
se numha situaçom ambivalente: em relaçom às suas próprias empresas, actuavam numha
direcçom (por exemplo, reduzindo os seus próprios custos laborais), e, enquanto membros da
sua classe, actuavam no sentido da expansom da rede global de consumidores (o que
implicava inevitavelmente, polo menos para alguns produtores, um acréscimo nos seus custos
laborais).

Deste modo, a economia capitalista tem sido governada polo intuito racional de
rnaximizar a acumulaçom. Mas o que era racional para os empresários nom era
necessariamente racional para os trabalhadores. E, mais importante ainda, o que era racional
para o conjunto dos empresários nom era necessariamente racional para todo e qualquer
empresário individual. Por conseguinte, nom basta afirmar que toda a gente prosseguia os seus
próprios interesses. Os interesses de cada pessoa impeliam-na freqüentemente, com toda a
“racionalidade” , a envolver-se em actividades contraditórias. O cômputo geral dos interesses
reais a longo prazo tornou-se entom extremamente complexo, mesmo se ignorarmos, por
agora, que a percepçom dos interesses individuais estava, de algum modo, conturbada e
distorcida por complexos véus ideológicos. De momento, e a título provisório, eu suponho que
o capitalismo histórico criou de facto um homo economicus. Todavia, devo acrescentar que
esse homo economicus era, quase inevitavelmente, um pouco confuso.

Havia, apesar de tudo, umha condicionante “objectiva” que limitava a confusom. Sempre
que um dado indivíduo (ou empresa) cometia constantes erros de julgamento económico, por
ignorancia, fatuidade ou preconceito ideológico, arriscava-se a nom sobreviver no mercado. A
bancarrota era o amargo fluído de limpeza do sistema capitalista, forçando permanentemente
todos os actores económicos a manterem-se no trilho certo, e pressionando-os a actuar de
modo a que, colectivamente, se produzisse ainda mais acumulaçom de capital.

O capitalismo histórico consistiu, portanto, num locus concreto e integrado de actividade


produtiva, situado no tempo e no espaço, e a incessante acumulaçom de capital tem sido o
objectivo económico ou a “lei” que governa ou prevalece nas actividades económicas
fundamentais. Nesse sistema social, aqueles que agiram de acordo com estas regras tiveram
tal impacto global, que criaram condiçons para que os outros se vissem forçados a conformar-
se com o padraom estabelecido ou a sofrerem as conseqüêencias. Nesse sistema social, o
ámbito destas regras (a lei do valor) tornou-se cada vez mais abrangente: os promotores de
tais regras tornárom-se cada vez mais intransigentes, e estas penetrárom cada vez mais no
tecido social, apesar de terem gerado umha oposiçom social mais forte e mais bem organizada.

A partir desta descriçom do capitalismo histórico, cada um de nós pode determinar


o locus concreto e integrado, situado no tempo e no espaço, a que esta realidade se refere. A
minha própria visom é a de que a génese deste sistema histórico se localiza na Europa dos
finais do século XV, que o sistema se foi expandindo até cobrir todo o Globo nos finais do
século XIX, e ainda hoje cobre todo o Globo. Sei que esta demarcaçom sumária das fronteiras
espácio-temporais levanta dúvidas em muitas mentes. Estas dúvidas som porém de dous tipos
distintos. Primeiro, há as dúvidas empíricas. A Rússia estava fora ou dentro da economia-
mundo europeia no século XVI? Em que altura, exactamente, o Império Otomano foi
incorporado no sistema mundial capitalista? Será que podemos considerar umha certa zona
interior de um certo Estado, num certo tempo, como estando verdadeiramente “integrada” na
economia-mundo capitalista? Estas questons som importantes em si mesmas. Mas também
som importantes porque, ao tentar respondê-las, somos obrigados a tornar mais precisa a
análise dos processos do capitalismo histórico. Mas este nom é o momento nem o lugar para
abordar essas numerosas indagaçons empíricas, que estám em contínuo debate e elaboraçom.

O segundo tipo de dúvidas refere-se a própria unidade de classificaçom indutiva que


acabo de sugerir. Há quem se recuse a aceitar que capitalismo pudesse ter existido antes de
emergir umha forma específica de relaçom social no local de trabalho –de um empresário
privado empregando trabalhadores assalariados. Há quem insista na ideia de que, quando um
Estado nacionaliza as suas indústrias e proclama a sua obediência às doutrinas socialistas,
isso é condiçom suficiente para subtrair esse Estado do sistema capitalista mundial.
Tentaremos abordar estas indagaçons teóricas, no decurso da nossa discussom. Porém,
abordá-las de forma dedutiva seria inútil, porque nom conduziria a um debate racional, mas
apenas a um confronto de crenças opostas. Consideraremo-las pois heurísticamente,
argumentando que a nossa classificaçom indutiva é mais útil que outras alternativas, porque
incorpora de forma mais simples e elegante aquilo que actualmente conhecemos sobre a
realidade histórica, e porque nos fornece umha interpretaçom desta realidade que nos permite
agir com mais eficácia sobre o presente.

Vejamos, pois, como o sistema capitalista tem funcionado realmente. Dizer que o
objectivo de um produtor é a acumulaçom de capital é igual a afirmar que ele tentará produzir o
máximo possível de um certo bem e vendê-lo com a maior margem de lucro possível. Mas terá
de ter em conta um certo número de condicionantes económicas que existem, como se di, “no
mercado”. A sua produçom total é forçosamente limitada pola disponibi- lidade, relativamente
imediata, de determinados factores, nomeadamente materiais, força de trabalho, clientes e
acesso a dinheiro para expandir a sua base de investimento. A quantidade de produçom
lucrativa e a margem de lucro que ele pode obter estam também limitadas pola capacidade de
os seus “competidores” oferecerem o mesmo produto a preços de venda mais baixos. Neste
caso, nom som todos os competidores existentes no mercado mundial, mas somente aqueles
que estam localizados na mesma área específica em que ele habitualmente vende (qualquer
que seja a área de mercado em apreço). A expansom da sua produçom será também
condicionada polo grau em que o acréscimo dessa produgao gera umha reduçom de preços no
mercado “local” que acabe por reduzir o lucro total realizado com a sua produçom total.
Tudo isto som condicionantes objectivas, ou seja, existem independente- mente de
eventuais decisons de um dado produtor ou de outros intervenientes no mercado. Estas
condicionantes som conseqüência do processo social total, que ocorre num espaço e num
tempo localizados. Adicionalmente, existem como é óbvio, outras condicionantes mais sujeitas
a manipulaçom. Os governos podem adoptar, ou terem já adoptado, diversas regras que, de
algumha forma, transformam as opçons económicas e, consequentemente, o cálculo do lucro.
Um dado produtor pode ser beneficiário ou vítima das regras existentes. Um dado produtor
pode procurar persuadir as autoridades políticas a modificar as regras em seu favor.

Como é que, geralmente, os produtores actuam, de forma a maximizarem a sua


capacidade de acumular capital? A força de trabalho tem sido sempre um elemento central e
qualitativamente significativo no processo de produçom. Em busca de acumulaçom, o produtor
está preocupado com dous diferentes aspectos da força de trabalho: a sua disponibilidade e o
seu preço. O problema da disponibilidade tem sido habitualmente colocado da seguinte forma:
as relaçons sociais de produçom baseadas em vínculos permanentes (mao-de-obra fixa ao
serviço de um dado produtor), poderiam ter baixo custo, se o mercado fosse estável, e se a
quantidade de mao-de-obra se mantivesse num nível óptimo durante um certo período. Mas, se
a procura do produto no mercado baixasse, a rigidez dos vínculos laborais impossibilitaria o
produtor de aproveitar as oportunidades de lucro.

Por outro lado, a fluidez da mao-de-obra tinha também desvantagens para os


capitalistas. A mao-de-obra instável era, por definiçom, umha mao-de- obra que,
necessariamente, nom estava sempre ao serviço do mesmo produtor. Para garantirem a sua
sobrevivencia, tais trabalhadores deveriam estar preocupados em garantir um nível de
remuneraçom média que lhes permi- tisse anular as variaçons de rendimento real. Isto é, os
trabalhadores tinham de ser capazes de ganhar o suficiente no emprego, para cobrir os
períodos em que nom recebiam qualquer remuneraçom. Consequentemente, o preço da mao-
de-obra variável, por hora e por indivíduo, era mais elevado do que o preço da mao-de-obra
permanente.

Quando há umha contradiçom –e temos aqui umha, mesmo no ámago do processo de


produçom capitalista–, podemos ter a certeza de que o resultado será um compromisso
histórico difícil. Vejamos o que de facto aconteceu. Em sistemas históricos anteriores ao
capitalismo histórico, a maior parte da mao-de-obra (nunca a totalidade) era fixa. Em alguns
casos, a força de trabalho do produtor era apenas ele próprio ou a sua família, logo, por
definiçom, fixa. Em alguns casos, a força de trabalho exterior a família de um produtor estava-
lhe vinculada através de diversas normativas legais e/ou consuetudinárias (incluindo diversas
formas de escravidao, servidao por dívidas, servidao, locaçom permanente, etc.). umhas vezes,
o vínculo era vitalício; outras vezes, era por períodos limitados, com umha opçom de
renovaçom. Mas tais limitaçons contratuais eram apenas efectivas se existissem alternativas
realistas no momento da renovaçom. Ora, a rigidez destes esquemas colocava dificuldades
nom apenas ao produtor concreto a quem a mao-de-obra estava vinculada, mas tarnbém aos
restantes produtores; dado que estes só podiam expandir as suas actividades se existisse
mao-de-obra disponível, nom fixa.

Como muitas vezes foi descrito, estas consideraçons estiveram subjacentes a


institucionalizaçom do trabalho assalariado: um grupo de pessoas permanentemente
disponíveis para serem empregados, pola melhor oferta possível. Designamos este processo
como funcionamento de um mercado de trabalho, e as pessoas que vendem o seu trabalho
como proletários. Nom afirmo nada de novo ao dizer que, no capitalismo histórico, houvo umha
proletarizaçom crescente da força de trabalho. Isto nada tem de inovador nem de
surpreendente. As vantagens do processo de proletarizaçom, para os produtores tenhem sido
amplamente documentadas. O que surpreende nom é ter existido tanta proletarizaçom, mas
sim ter existido tam pouca. Ao fim de quatro séculos de funcionamento deste sistema social
histórico, a quantidade de trabalho inteiramente proletarizado na economia-mundo capitalista
nom chega ainda, no total, a cinquenta por cento.

É claro que esta estatística depende de como se mede e daquilo que é medido. Se
usarmos as estatísticas oficiais dos governos sobre a chamada populaçom activa –
principalmente adultos masculinos que se declaram formalmente disponíveis para o trabalho
remunerado–, poderemos concluir que a percentagem de trabalhadores assalariados é
relativamente elevada (embora, a escala mundial, a percentagem seja inferior ao que a maioria
das proposiçons teóricas presumem). Se, contudo, considerarmos todas as pessoas cujo
trabalho, de umha maneira ou outra, é incorporado nas cadeias de mercadorias –incluindo
virtualmente todos os adultos femininos e umha larga proporçom das pessoas de idade pré-
adulta ou pós-adulta, isto é, os novos e os velhos–, entom a percentagem de proletários baixa
drasticamente.

Antes de apresentarmos as nossas estatísticas, analisaremos um outro aspecto. Será


conceptualmente útil rotular um indivíduo de “proletário”? Duvido muito disso. Na época do
capitalismo histórico, e nos sistemas históricos anteriores, os indivíduos normalmente viviam as
suas vidas no quadro de estruturas relativamente estáveis, de base doméstica, partilhando o
fundo comum de rendimentos correntes e capital acumulado do espaço doméstico. O facto de
a composiçom dos espaços domésticos variar constantemente, devido as entradas e saídas de
indivíduos, nom obsta a que podamos considerar esses agregados como unidades de cálculo
racional, em termos de remuneraçom e despesas. Para garantirem a sua sobrevivencia, as
pessoas contam com todo o seu rendimento potencial, independentemente da sua
proveniencia, e avaliam-no em termos das despesas reais que tem de fazer. Com um nível
mínimo de rendimentos, as pessoas procuram sobreviver; com um rendimento mais elevado,
procuram criar um estilo de vida que consideram satisfatório, e, finalmente, com um nível
superior de rendimentos, procuram entrar no jogo capitalista como acumuladores de capital.
Em qualquer dos casos, o agregado familiar era a unidade económica que permitia estas
actividades. O agregado familiar é normalmente umha unidade baseada nos laços de
parentesco, mas nem sempre foi assim, ou polo menos nom o foi exclusivamente. O agregado
familiar foi quase sempre co-residencial, mas esta faceta tende a diminuir a medida que a
mercantilizaçom prossegue.

Foi no contexto da estrutura doméstica que a distinçom social entre trabalho produtivo e
nom produtivo começou a ser imposta a classe trabalhadora. Na prática, o trabalho produtivo
acabou por ser definido como trabalho que traz dinheiro (sobretudo trabalho assalariado), e o
trabalho nom produtivo, como trabalho que, embora muito necessário, era mera actividade de
“subsistência” e, portanto, considerado como nom produtor de “excedente” que pudesse ser
apropriado por alguém. Este trabalho nom era mercantilizado ou, quando muito, correspondia a
umha pequena produçom de mercadorias. A distinçom entre géneros de trabalho estava
ancorada na criaçom dos respectivos papéis sociais específicos. O trabalho produtivo
(assalariado) tornou-se umha tarefa típica do adulto masculino/pai e, secundariamente, de
outros adultos masculinos (mais novos) do agregado familiar. O trabalho nom produtivo (de
subsistência) tornou-se umha tarefa típica do adulto feminino/mae e, secundariamente, de
outras mulheres, das crianças e dos idosos. O trabalho produtivo era realizado fora do lar, no
“local de trabalho”; o trabalho nom produtivo era efectuado dentro do lar.

As linhas de divisom nom eram entom absolutas, mas, durante o capitalismo histórico,
tornárom-se bem claras e compulsórias. Esta divisom do trabalho efectivo, segundo o sexo e a
idade, nom foi, é claro, umha invençom do capitalismo histórico. Provavelmente, sempre
existiu, quanto mais nom fosse porque, para certas tarefas, há pré-requisitos e limitaçons
biológicas (ligadas ao sexo, mas também a idade). Também nom foi o capitalismo que
engendrou a hierarquia familiar e/ou a estrutura doméstica. Isso já existia há muito.

A novidade introduzida polo capitalismo histórico foi a correlaçom entre a divisom das
tarefas e a valorizaçom do trabalho. Já existia a diferenciaçom do trabalho segundo critérios
etários e sexuais mas, com a emergencia do capitalismo histórico, o trabalho das mulheres (e
dos novos e idosos), sofreu umha constante desvalorizaçom, à par da concomitante
valorizaçom do trabalho dos homens adultos. Enquanto, noutros sistemas, os homens e as
mulheres desempenhavam tarefas específicas (mas normalmente equiparadas), no capitalismo
histórico o homem assalariado passou a ser considerado como “sustento da família” , enquanto
a mulher, trabalhadora doméstica, passou a ser vista como “dona-de-casa”. Assim, quando as
estatísticas nacionais –elas mesmas um produto do sistema capitalista–, começárom a ser
compiladas, todos os ”sustentadores” eram considerados elementos da populaçom activa,
enquanto nengumha dona-de-casa o era. Assim, o sexismo foi institucionalizado. Os aparelhos
legais e para-legais da distinçom e discriminaçom sexuais seguírom-se, logicamente, a esta
diferenciaçom básica na valorizaçom do trabalho.

Refira-se ainda que os conceitos de infáncia/adolescência prolongada e de


“aposentaçom” (por motivos alheios a doença ou a incapacidade), som também um produto
das estruturas familiares emergentes no capitalismo histórico. Tais fenómenos som geralmente
vistos como dispensas do trabalho de carácter “progressista”. Porém, segundo umha
caracterizaçom mais adequada, podem ser descritos como o resultado da redefiniçom dos
conceitos de trabalho e nom-trabalho. A instruçom prática das crianças e as variadas tarefas
dos reformados fôrom simplesmente rotuladas de “entretenimento”, e a desvalorizaçom dos
seus contributos laborais era o preço a pagar polo facto de estarem dispensados da
“penosidade” do trabalho “reaI”.

Como ideologia, estas distinçons contribuírom para que a mercantilizaçom do trabalho


prosseguisse de forma extensiva mas, ao mesmo tempo, limitada. Por exemplo, se
calculássemos quantos lares obtinham mais de cinqüenta por cento do seus rendimentos reais
(ou dos proventos totais, em todas as formas possíveis), através de trabalho assalariado fora
de casa, acho que ficaríamos espantados com a exigüidade da percentagem. Isto é válido
desde a emergência do capitalismo até os nossos dias, embora, provavelmente, essa
percentagern tenha crescido constantemente, acompanhando o desenvolvimento histórico da
economia-mundo capitalista.

Como explicar este fenómeno? nom me parece ser muito difícil. No pressuposto de que
um produtor que recorre ao trabalho assalariado prefere sempre, e em qualquer circunstancia,
pagar o mínimo possível, o nível mínimo de remuneraçom que os assalariados podiam aceitar
dependia do tipo de espaço doméstico em que viviam. Pondo a questom de modo mais
simples: para trabalho idêntico, a níveis identicos de eficiência, um traba- lhador de um
agregado familiar com umha alta percentagem de rendimento salarial (chamemos-lhe agregado
proletarizado), encontra-se num limiar monetário mais elevado –abaixo do qual acharia
manifestamente irracional fazer trabalho assalariado–, do que um trabalhador de um agregado
familiar com baixa percentagem de rendimento salarial (chamemos-lhe agregado semi-
proletarizado).
A razom desta diferença –que podemos denominar como limiar mínimo de salário
aceitável–, está relacionada com a economia de sobrevivência. Como os agregados
proletarizados dependiarn sobretudo de rendimentos salariais, estes tinham de fazer face aos
custos mínimos de sobrevivência e reproduçom. Contudo, quando os salários constituíam
umha parte menos importante do rendimento total do agregado, era freqüente que um indivíduo
aceitasse emprego a um nível de remuneraçom que contribuía menos do que a sua quota parte
proporcional (em termos de horas de trabalho), para o rendimento real doméstico, garantindo
ainda assim o ganho de algum dinheiro líquido (necessidade essa imposta muitas vezes por
lei). Em certos casos, esse mesmo emprego era aceite como alternativa a outras tarefas ainda
menos remuneradas.

Os agregados semi-proletarizados produziam outras formas de rendimento real –isto é,


basicamente, a produçom doméstica para autoconsumo e/ou venda num mercado local. Os
outros elementos do agregado, indistintamente do sexo ou da idade, ou os próprios
assalariados, nos seus tempos livres, criavam um excedente que baixava o limiar mínimo de
salário aceitável. Deste modo, o trabalho nom-assalariado permitiu a alguns produtores
remunerar a sua mao-de-obra a níveis mais baixos, reduzindo assim os seus custos de
produçom e alargando as suas margens de lucro. Assim, nom admira que, regra geral,
qualquer empregador preferisse ter como assalari- ados membros de agregados semi-
proletarizados. Se agora olharmos para a realidade empírica global, para todo o espaço-tempo
do capitalismo histórico, descobriremos que a localizaçom dos trabalhadores assalariados em
agregados semi-proletarizados (e nom em agregados totalmente proletarizados), tem sido a
norma estatística. Conceptualmente, o nosso problema foi subitamente invertido. Em vez de
explicarmos as razons da proletarizaçom, tivemos de explicar por que é que o processo foi tam
incompleto. Mas devemos ir ainda mais além e, inclusive, averiguar o seguinte: como é que a
proletarizaçom pode evoluir?

Diga-se desde já que é pouco provável que as pressons sócio-políticas da classe


empresarial tenham sido a principal causa da crescente proletarizaçom mundial. polo contrário,
os empresários deveriam ter muitos motivos para dificultar este processo. Em primeiro lugar,
como acabámos de ver, a transformaçom de um número significativo de agregados semi-
proletarizados em agregados proletarizados, numha dada zona, favorecia o aumento do nível
mínimo de salário real pago polos empregadores. Em segundo lugar, a proletarizaçom
crescente tinha, como veremos adiante, conseqüências políticas que, além do seu carácter
negativo para os empregadores, possuía um efeito cumulativo, produzindo aumentos salariais
ainda maiores, em algumhas zonas geográfico-económicas. Aliás, os empregadores estavam
tam pouco entusiasmados com a proletarizaçom que, além de promoverem a divisom do
trabalho segundo critérios sexuais e etários, encorajavam também (através do seu
envolvimento e da sua influência política), o reconhecimento de certas definiçons de grupos
étnicos, procurando ligá-las a certos papéis específicos na força de trabalho, com diferentes
níveis de remuneraçom real. A etnicidade criou umha crosta cultural que consolidou os padrons
estruturais dos agregados semi-proletarizados. A emergência desta etnicidade, ao criar
diferenciaçons na classe trabalhadora, foi um bónus político para os empregadores. Contudo,
creio que nom foi esse o objectivo inicial deste processo.

Para que podamos perceber como se deu o crescimento da proletarizaçom no


capitalismo histórico, temos de voltar a questom das cadeias de mercadorias, em que se
situam as múltiplas e específicas actividades produtivas. Temos de nos livrar da imagem
simplista de que o “mercado” é o local onde se encontram o produtor inicial e o consumidor
final. Sem dúvida, tais mercados sempre existírom e ainda existem, contudo, no capitalismo
histórico, estas transacçons mercantis constituíam umha pequena percentagem do todo, já que
a maior parte das transacçons envolviam trocas entre dous produtores intermédios situados
numha longa cadeia de mercadorias. O comprador comprava um “input”para o seu processo de
produçom. O vendedor vendia um “produto semi-acabado”, quer dizer, semi-acabado do ponto
de vista do seu uso final polo consumidor directo.

Nestes “mercados intermédios”, a luita polo melhor preço implicava um esforço do


comprador para obter do vendedor umha parte do lucro gerado a montante, nos processos de
trabalho da cadeia de mercadorias. Esta luita, é certo, era determinada pola relaçom entre a
oferta e a procura, situada no espaço e no tempo, mas nom apenas por esta relaçom. Em
primeiro lugar, como é óbvio, a oferta e a procura podem ser manipuladas mediante
constrangimentos monopolísticos, que tem sido a regra e nom meras excepçons. Em segundo
lugar, o vendedor pode influenciar a determinaçom do preço, através da integraçom vertical.
Em última análise, sempre que “vendedor” e “comprador” eram de facto a mesma firma, o
preço podia ser arbitrariamen- te definido em funçom de consideraçons fiscais ou outras, a
margem do jogo da oferta e da procura. A integraçom vertical, bem como o monopólio
“horizontal”, nom som fenómenos raros. Estamos, é claro, familiarizados com as suas
manifestaçons mais espectaculares: as companhias régias dos séculos XVI a XVIII, as grandes
casas mercantis do século XIX, as corporaçons multinacionais do século XX. Estas eram
estruturas globais, que procuravam englobar o maior número possível de elos de umha cadeia
de mercadorias particular. Mas, ainda mais comuns, tem sido os pequenos casos de
integraçom vertical, cobrindo apenas alguns (ou apenas dois) elos de umha cadeia. Parece
razoável considerar que, no capitalismo histórico, a norma estatística era a integraçom vertical,
e nom as situaçons mercantis em que vendedor e comprador eram verdadeiramente distintos e
antagónicos.
As cadeias de mercadorias nom se tenhem expandido geograficamente de modo
aleatório. Se as situássemos num mapa, verificaríamos que elas tenhem sido centrípetas. Os
seus pontos de origem tenhem sido diversos, mas os seus pontos de destino tendêrom a
convergir em poucas áreas. Ou seja, elas tenhem-se vindo a mover das periferias da
economia-mundo capitalista para os centros, ou núcleos. É difícil contestar isto, enquanto
verificaçom empírica. A verdadeira questom é: por que é que isto tem sido assim? Falar de
cadeias de mercadorias significa falar de umha vasta divisom social do trabalho que, no
decurso do desenvolvimento histórico do capitalismo, se tornou cada vez mais extensa,
geográfica e funcionalmente, tornando-se simultaneamente cada vez mais hierárquica. Esta
hierarquizaçom espacial da estrutura dos processos produtivos levou a umha
polarizaçom ainda maior entre o centro e as zonas periféricas da economia-mundo, nom
apenas em termos de critérios distributivos (níveis de rendimento real, qualidade de vida), mas,
sobretudo, nas sedes da acumulaçom de capital.

Quando este processo se iniciou, as diferenciaçons espaciais eram pequenas, e o grau


de especializaçom limitado. Contudo, no sistema capitalista, quaisquer diferenças que
existissem eram ampliadas, reforçadas e solidificadas (seja por razons históricas ou
ecológicas). Crucial neste processo era o recurso à força na determinaçom dos preços. É
verdade que o uso da força por umha das partes, nas transacçons mercantis (de modo a
melhorar o seu preço), nom foi umha invençom do capitalismo. A troca desigual é umha prática
antiga. O que foi notável no capitalismo, enquanto sistema histórico, foi o modo como esta
troca desigual pode ser ocultada. Na verdade, está tam bem ocultada, que mesmo os
oponentes declarados do sistema capitalista só começárom a desvendá-la, de forma
sistemática, após quinhentos anos de funcionamento deste mecanismo.

A chave para o ocultamento deste mecanismo central reside na própria estrutura da


economia-mundo capitalista, na aparente separaçom entre o plano económico (uma divisom
social do trabalho a escala mundial, com processos produtivos integrados, operando todos eles
para a incessante acumulaçom de capital), e o plano político (consistindo ostensivamente em
Estados soberanos, cada um dotado de competencia autónoma para decisons políticas dentro
da sua jurisdiçom e dispondo de forças armadas para alicerçar a sua autoridade). No mundo
real do capitalismo histórico, quase todas as cadeias de mercadorias de algumha importancia
atravessáram as fronteiras dos Estados. Isto nom é umha inovaçom recente. Foi assim desde o
início do capitalismo histórico. Ademais, a transnacionalidade das cadeias de mercadorias é
tam verdadeira no mundo capitalista do século XVI como no do século XX.

Como funcionou esta troca desigual? A partir de um qualquer diferencial real no


mercado, surgido quer pola escassez (temporária) de um processo de produçom evoluído, quer
por umha escassez artificial criada manu militari, os fluxos de mercadorias entre diversas áreas
passárom a basear-se no seguinte critério: a zona com o produto menos “escasso” “vendia”
esse produto a outra zona, a um preço que correspondia a um valor real (custo) mais elevado
do que um produto de igual preço que circulava na direcçomoposta. Deste modo, tinha lugar
umha transferência, de umha zona para outra, de parte do lucro total (ou mais-valia) produzido.
Esta é a situaçom típica da relaçom entre centro e periferia. Por extensom, podemos chamar a
zona perdedora umha “periferia” e a zona ganhadora um “centro”. Os nomes reflectem, de
facto, a estrutura geográfica dos fluxos económicos.

Encontramos imediatamente diversos mecanismos que, historicamente, contribuírom


para aumentar esta disparidade. Sempre que ocorria umha “integraçom vertical” de dous elos
quaisquer de umha cadeia de mercadorias, era possível desviar para o centro umha parte do
lucro total ainda maior do que a tinha sido possível até esse momento. Além disso, o desvio de
mais-valia para o centro concentrava capital e tornava aí disponíveis fundos para umha maior
mecanizaçom. Assim, os produtores das zonas centrais nom só ganhavam vantagens
competitivas acrescidas nos produtos existentes, como podiam criar sempre mais produtos
novos e escassos, com os quais se renovava o processo.

A concentraçom de capital nas zonas centrais gerou simultaneamente a base fiscal e a


motivaçom política para a criaçom de fortes aparelhos estatais, os quais, entre os seus
inúmeros propósitos, tentavam assegurar que os aparelhos estatais das zonas periféricas se
tornassem ou se mantivessem relativamente fracos. Podiam assim pressionar essas estruturas
estatais a aceitar, ou mesmo promover, umha maior especializaçom em tarefas inferiores da
hierarquia das cadeias de mercadorias, utilizando umha força de trabalho mais mal remunerada
e criando (reforçando) as adequadas estruturas domésticas que permitiam a umha tal força de
trabalho sobreviver nessas condiçons. Assim, foi o capitalismo histórico que criou os chamados
níveis históricos de salário, que se tornárom tam dramaticamente divergentes nas diferentes
zonas do mundo capitalista.

Ao caracterizar este processo como oculto, queremos com isso dizer que os preços
parecem ser negociados num mercado mundial, com base em forças económicas impessoais.
Em cada transacçom concreta, nom era preciso invocar o enorme aparato de força latente
(usado esporadicamente em guerras e na colonizaçom), para assegurar que essa troca fosse
desigual. O aparato militar só era utilizado quando surgiam fortes desafios num nível
determinado de troca desigual. Umha vez ultrapassada a fase de conflito político agudo, as
classes empresariais do mundo podiam fazer crer que a economia funcionava somente com
base nas consideraçons da oferta e procura, sem se tomar em conta como historicamente se
atingiu determinado ponto da oferta e da procura, nem que estruturas de coerçom sustentavam
nesse momento os diferenciais “normais” dos níveis salariais e da qualidade de vida real entre
as forças de trabalho no mundo.

Podemos agora retomar a questom da proletarizaçom e, mais concretamente, tentar


averiguar como foi possível a sua existencia. Lembremos a contradiçom fundamental entre o
interesse individual de cada empresário e o interesse colectivo de todas as classes capitalistas.
A troca desigual, por definiçom, serve esses interesses colectivos, mas nom serve muitos
interesses individuais. Decorre daí que aqueles cujos interesses nom eram irnediatamente
contemplados num dado momento (porque ganhavam menos que os seus competidores),
tentavam constantemente mudar as cousas em seu favor. Quer dizer, tentavam competir mais
eficazmente no mercado, quer tornando a sua própria produçommais eficiente, quer usando
influencias políticas para criar umha nova vantagem monopolista para si próprios.

A competiçom tenaz entre capitalistas foi sempre umha das digerentia specifica do
capitalismo histórico. Mesmo quando parecia voluntariamente restringida (por acordos de tipo
cartel), isso decorria do facto de cada competidor pensar que essa restriçom optimizava as
suas próprias margens. Num sistema caracterizado pola incessante acumulaçom de capital,
nengum participante se podia permitir relaxar este ímpeto constante de rendibilidade a longo
prazo, excepto correndo o risco de auto-destruiçom.

Assim, prática monopolista e motivaçom competitiva andárom sempre a par no


capitalismo histórico. Nestas circunstáncias, é evidente que nengum padrom específico
subjacente aos processos produtivos podia ser estável. Polo contrário, seria sempre do
interesse de um elevado número de empre- sários tentar alterar o padrao específico em
determinados contextos de espaço-tempo, sem ter em conta o impacto global de curto prazo de
um tal comportamento. A “mao invisível” de Adam Smith operava inquestionavelmente, no
sentido de que o mercado fixava constrangimentos ao comportamento individual. Mas só umha
leitura muito peculiar do capitalismo histórico poderia sugerir que o resultado tivesse sido
sempre harmonioso.

Em vez disso, o resultado tem-se assemelhado (novamente, com base na


observaçom empírica) a ciclos alternantes de expansons e estagnaçons do sistema global.
Estes ciclos tenhem envolvido flutuaçons de tal amplitude e regularidade, que é difícil nom
acreditar que sejam intrínsecos ao funcionamento do sistema. Se tal analogia é permitida,
estes ciclos parecem ser os mecanismos respiratórios do organismo capitalista, inalando o
oxigénio purificador e exalando o desperdício venenoso. As analogias som sempre perigosas,
mas esta parece singularmente adequada. Os desperdícios acumulados eram as ineficiências
económicas que, recorrentemente, se incrustavam politicamente através do processo de troca
desigual acima descrito. O oxigénio purificador era a distribuiçom mais eficiente de recursos
(mais eficiente no sentido de permitir maior acumulaçom de capital), permitida pola
reestruturaçom regular das cadeias de mercadorias.

Tudo indica que, de cinqüenta em cinqüenta anos, mais ou menos, os esforços de um


número crescente de empresários, para se apoderarem das operaçons mais lucrativas das
cadeias de mercadorias, gerárom desproporçons de investimento, a que chamamos, algo
enganosamente, superproduçom. A única soluçom para estas desproporçons tem sido umha
convulsom do sistema produtivo, dando origem a umha distribuiçom mais equilibrada. Isto
parece lógico e simples, mas as suas repercussons tem sido sempre massivas. Este processo
gerou, de cada vez que ocorreu, umha maior concentraçom das operaçons nos elos mais
refreados das cadeias. Isto levou a eliminaçom, tanto de alguns empresários como de alguns
trabalhadores (aqueles que trabalhavam para os empresários que faliram, bem como daqueles
que trabalhavam para empresários que aumentárom a mecanizaçom, de modo a reduzirem os
custos por unidade de produçom).

Umha tal mudança possibilitou também, a alguns empresários, “despromoverem” certas


operaçons na hierarquia da cadeia de mercadorias, permitindo-lhes assim aplicar fundos de
investimento e esforços nos elos inovadores das cadeias de mercadorias, os quais som mais
lucrativos, porque oferecem inicialmente produtos rnais “escassos”. A “despromoçom” de certos
processos na escala hierárquica tem também levado freqüentemente a umha parcial
recolocaçom geográfica dos processos produtivos. Esta recolocaçom geográfica decorre de
umha atracçom irresistível polas áreas de menor custo laboral, embora, do ponto de vista
destas áreas, a nova indústria geralmente acarrete umha subida do nível salarial de alguns
segmentos da sua força de trabalho. Neste preciso momento, estamos a assistir a umha
recolocaçom maciça, a escala mundial, da indústria automóvel, metalúrgica e electrónica. Este
fenómeno de recolocaçom tem sido parte integrante do capitalismo histórico desde o seu
começo.

Estes rearranjos tenhem tido três conseqüências principais. umha delas tem sido a
própria reestruturaçom geográfica permanente do sistema-mundo capitalista. No entanto,
embora as cadeias de mercadorias sofram reestruturaçons significativas, aproximadamente de
cinqüenta em cinqüenta anos, o sistema de cadeias de mercadorias hierarquicamente
organizadas tem prevalecido. Alguns processos produtivos particulares tenhem descido na
hierarquia, enquanto outros ascendem ao topo. E, ao longo do tempo, algumhas zonas
geográficas particulares tem acolhido processos de diferentes níveis hierárquicos. Assim, cada
produto tem tido o seu “ciclo de produto”, começando como produto central e acabando
eventualmente por se tornar produto periférico. Além disso, a posiçom de alguns locais tem
melhorado ou piorado, em termos de bem-estar relativo dos seus habitantes. Mas, para chamar
a estas mudanças “desenvolvimento”, teríamos primeiro de demonstrar ter havido umha
reduçom da polarizaçom no sistema. Empiricamente, isto parece nunca ter acontecido; polo
contrário, historicamente, a polarizaçom tem-se acentuado. Assim, pode dizer-se que estas
recolocaçons geográficas e de produtos tenhem sido verdadeiramente cíclicas.

Contudo, estas mudanças tivérom umha segunda conseqüência, bem diferente da


primeira. A “sobreproduçom” é umha expressom enganadora que, apesar de tudo, chama a
atençom para o facto de, a escala mundial, o dilema imediato ter residido sempre na
insuficiente procura efectiva de alguns produtos-chave do sistema. Era nesta situaçom que os
interesses das forças de trabalho coincidiam com os interesses de umha minoria de
empresários. As forças de trabalho procuraram sempre aumentar a sua quota do excedente, e
os momentos de quebra económica nom apenas ocasionaram frequentemente incentivos extra
imediatos, como também proporcionaram oportunidades especiais para prosseguir as suas
luitas de classe. Umha das maneiras mais eficazes e imediatas de as forças de trabalho
aumentarem o seu rendimento real tem sido a extensom da mercantilizaçom do seu próprio
trabalho. Freqüentemente, elas procuram substituir por trabalho assalariado as actividades
produtivas domésticas que correspondem a baixos níveis de rendimento real, em particular os
vários tipos da pequena produçom de mercadorias. A nível mundial, algumhas das forças mais
decisivas no apoio a proletarizaçom tem sido as próprias forças de trabalho. Elas tem
percebido, muitas vezes melhor do que os seus auto-proclamados porta-vozes intelectuais, que
a exploraçom, nos agregados semi-proletarizados, é bastante maior do que a exploragao nos
agregados plenamente proletarizados.

É nos momentos de estagnaçom que alguns proprietários-produtores –em parte


respondendo a pressons políticas da força de trabalho, em parte acreditando que mudanças
estruturais nas relaçons de produçom os beneficiarao relativamente aos concorrentes–,
juntárom forças, tanto na produçom como na arena política, para promoverem algures umha
maior proletarizaçom de um segmento limitado da força de trabalho. É neste processo que está
a pista principal para explicar o mesrno aumento da proletarizaçom, umha vez que, a longo
prazo, tal aumento tem conduzido a reduçom das margens de lucro na economia-mundo
capitalista.

É neste contexto que devemos considerar o processo de mutaçom tecnológica, a qual


tem sido menos o motor do que a conseqüência do capitalismo histórico. As principais
“inovaçons” tecnológicas tem consistido primariamente na criaçom de novos produtos
“escassos”, como tal altamente lucrativos, e, secundariamente, na criaçom de processos de
reduçom do trabalho. Servírom como respostas as depressons cíclicas, como modos de
apropriaçom das “invençons”, para que prosseguisse o processo de acumulaçom de capital.
Sem dúvida, estas inovaçons afectárom freqüentemente a organizaçom da produçom.
Historicamente, elas impulsionárom a centralizaçom de muitos processos produtivos (a fábrica,
a linha de montagem). Mas é fácil exagerar as mudanças ocorridas. Muitas vezes, tenhem sido
investigados os processos de concentraçom das tarefas físicas de produçom, sem se tomar em
consideraçom os processos de descentralizaçom concomitantes.

Isto é especialmente verdade, se tivermos em conta a terceira conseqüência das


mudanças cíclicas. Note-se que, dadas as duas consequencias já mencionadas, temos um
paradoxo aparente para explicar. Por um lado, falamos da contínua concentraçom da
acumulaçom de capital, num contexto histórico da polarizaçom da distribuiçom.
Simultaneamente, porém, falamos de um processo de proletarizaçom lento mas constante, o
qual, tal como defendemos, tem reduzido as margens de lucro. Umha forma fácil de resolver o
problema seria afirmar simplesmente que o primeiro processo é mais amplo que o segundo, o
que até é verdade. Mas, adicionalmente, a descida nas margens de lucro, provocada pola
crescente proletarizaçom, tem sido, entretanto, muito bem compensada por um outro
mecanismo, que actua em direcçom oposta.

Outra observaçom empírica imediata sobre o capitalismo histórico é a de que a sua área
geográfica se expandiu constantemente ao longo do tempo. umha vez mais, o ritmo a que
ocorreu este processo oferece a melhor pista para a sua explicaçom. A extensom da divisom
social do trabalho a novas zonas do capitalismo histórico nom ocorreu toda de umha só vez. De
facto, ocorreu em surtos periódicos, embora cada expansom sucessiva pareça ter tido um
alcance limitado. Indubitavelmente, parte da explicaçom está no próprio desenvolvimento
tecnológico do capitalismo histórico. Melhoramentos nos transportes, comunicaçons e
armamentos tornaram cada vez menos dispendioso incorporar regioes mais e mais afastadas
das zonas centrais. Mas esta explicaçom, quando muito, refere-se a umha
condiçom necessária mas nom suficiente deste processo.

Por vezes, tem sido afirmado que a explicaçom está na busca constante de novos
mercados, capazes de garantir os lucros da produçom capitalista. Porém, esta explicaçom,
contradiz pura e simplesmente os factos históricos. Geralmente, as áreas exteriores ao
capitalismo histórico eram compradoras relutantes dos seus produtos, em parte porque nom
“precisavam” deles –nos termos do seu próprio sistema económico–, e, em parte, porque,
freqüêntemente, nom dispunham de meios de troca suficientes para os adquirir. É claro que
houvo excepçons, mas, de um modo geral, foi o mundo capitalista quem procurou os produtos
das áreas exteriores, e nom o contrário. Quando determinados locais eram conquistados
militarmente, os empresários capitalistas queixavam-se regularmente da ausência de
verdadeiros mercados nesses locais, e operavam através dos governos coloniais, no sentido
de “criarem gostos”.

A explicaçom baseada na procura de mercados é simplesmente insustentável. Umha


explicaçom muito mais plausível é a procura de mao-de-obra de baixo preço. É um facto
histórico que virtualmente todas as novas zonas incorporadas na economia-mundo
estabelecêrom níveis de remuneraçom real situados hierarquicamente nos patamares salariais
mínimos do sistema mundial. Estas novas zonas nom possuiam praticamente agregados
totalmente proletarizados, e nom eram encorajadas a criá-los. Polo contrário, as políticas dos
Estados coloniais (e dos Estados semi-coloniais nas zonas incorporadas), pareciam ter sido
concebidas precisamente para promover a emergência do mesmo tipo de agregado semi-
proletarizado que, como vimos, tornava possível o limiar mínimo de salário aceitável. As
políticas estatais típicas envolviam a combinaçom de mecanismos de taxaçom –através das
quais todos os agregados eram forçados a envolver-se nalgumha forma de trabalho
assalariado–, com restriçons de movimentos, ou a separaçom forçada dos membros do
agregado, o que reduzia consideravelmente a possibilidade de proletarizaçom completa.

Se a isto acrescentarmos a observaçom de que as novas incorporaçons no sistema-


mundo do capitalismo tendiam a correlacionar-se com as fases de estagnaçom na economia-
mundo, torna-se claro que a expansom geográfica do sistema-mundo serviu de contrapeso ao
processo de proletarizaçom acrescida (redutor dos lucros), incorporando novas forças de
trabalho destinadas a semi-proletarizaçom. O aparente paradoxo desapareceu. O impacto da
proletarizaçom no processo de polarizaçom foi compensado –e talvez mais do que
compensado–, polo menos temporariamente, polo impacto das incorporaçons. E, considerando
a totalidade dos processos de trabalho, a percentagem dos processos de tipo fabril tem
aumentado menos do que geralmente se julga, se se tiver em conta o aumento constante do
denominador da equaçom.

Dedicámos muito tempo a delinear o modo como o capitalismo histórico tem operado
estritamente no campo económico. Podemos agora explicar o que levou a emergencia do
rapitalismo enquanto sistema social histórico. Isto nom é tam fácil como frequentemente se
pensa. A superfície, longe de ser um sistema “natural” –como alguns apologistas o tenhem
considerado–, o capitalismo histórico é patentemente absurdo. Acumula-se capital com vista a
acumular mais capital. Os capitalistas som como ratos brancos numha roda de azenha,
correndo cada vez mais depressa para poderem correr ainda mais depressa. No decurso do
processo, sem dúvida, algumhas pessoas viverám bem, mas outras viverám miseravelmente. E
com que nível de vida, e por quanto tempo, viverám aqueles que vivem bem?
Quanto mais penso sobre o assunto, mais ele me parece absurdo. Acredito que, do
ponto de vista material, a vasta maioria da populaçom mundial está objectiva e subjectivamente
pior do que em anteriores sistemas históricos. E, como veremos, acho que podemos considerar
que também estám politicamente pior. Estamos todos tam imbuídos da ideologia auto-
justificativa do progresso que este sistema histórico talhou, que até nos custa reconhecer as
vastas facetas negativas do sistema. Mesmo Karl Marx, um tam robusto e decidido
denunciador do capitalismo histórico, deu grande ênfase ao seu papel progressivo. Nisso nom
acredito mesmo nada, a menos que por “progressivo” se queira simplesmente qualificar aquilo
que sucede historicamente, e cujas origens se podem explicar por algo que o precedeu. O
balanço do capitalismo histórico, ao qual voltarei, é porventura complexo, mas os cálculos
iniciais, em termos de distribuiçom material de bens e de destinaçom dos recursos, é, do meu
ponto de vista, bastante negativo.

Se isto é assim, por que surgiu um tal sistema? Talvez, precisamente, para atingir este
fim. Haverá algo mais plausível do que umha linha de argumentaçom que afirma que a
explicaçom para a origem de um sistema reside na prossecuçom de um fim que foi de facto
atingido? Sei que a ciência moderna nos desviou da procura de causas finais e de todas as
consideraçons de intencionalidade (sobretudo porque elas som muito difíceis de demonstrar
empiricamente). Mas, como sabemos, a ciência moderna e o capitalismo histórico tenhem
estado em aliança estreita. Assim sendo, devemos suspeitar da autoridade da ciência
precisamente sobre esta questom: a rnodalidade do conhecimento das origens do capitalismo
histórico. Portanto, irei simplesmente delinear umha explicaçom histórica das origens do
capitalismo histórico, sem tentar expor aqui a base empírica para umha tal demonstraçom.

Em comparaçom com outras áreas do globo, a Europa dos séculos XIV e XV era a sede
de umha divisom social do trabalho que –em termos de forças de produçom, da coesom do seu
sistema histórico e do seu estado relativo de conhecimento humano–, constituía umha zona
intermédia: menos avançada que algumhas zonas, e mais evoluída que outras. Marco Polo,
recorde-se, oriundo de umha das sub-regions europeias mais desenvolvidas económica e
culturalmente, ficou positivamente cilindrado com o que encontrou nas suas viagens asiáticas.

A arena económica da Europa feudal atravessava umha crise muito profunda, gerada
internamente, que sacudia as suas fundaçons sociais. As suas classes dominantes estavam a
destruir-se mutuamente a um ritmo acelerado, enquanto o seu sistema fundiário (a base da sua
estrutura económica), se tornava lasso, sujeito a umha considerável reorganizaçom, no sentido
de umha distribuiçom muito mais igualitária do que até aí tinha sido normal. Além disso, os
pequenos camponeses estavam a demonstrar umha grande eficiência como produtores. Dum
modo geral, as estruturas políticas estavam a tornar-se mais fracas, e a sua preocupaçom com
as luitas intestinas dos politicamente poderosos significava que pouco tempo restava para
reprimir a força crescente das massas da populaçom. O cimento ideológico do catolicismo
estava sujeito a umha grande tensom, enquanto movimentos igualitários nasciam no seio da
própria Igreja. As cousas estavam verdadeiramente a cair aos pedaços. Se a Europa tivesse
seguido polo caminho que entom encetara, é difícil acreditar que os padrons da Europa feudal
da Idade Média, com o seu sistema de “ordens” altamente estruturado, pudessem ser
reconsolidados. Muito provavelmente, a estrutura social feudal europeia teria evoluído para um
sistema relativamente igualitário de pequenos produtores, nivelando por baixo as aristocracias
remanescentes e descentralizando as estruturas políticas.

Saber se isto foi bom ou mau, e para quem, é matéria especulativa de pouco interesse.
Mas é claro que esta perspectiva deve ter desconcertado e assustado os estratos superiores
da Europa, especialmente quando sentírom que a sua armadura ideológica estava também a
desintegrar-se. Sem sugerir que alguém tenha algumha vez verbalizado conscientemente um
tal projecto, podemos constatar manifestas diferenças, comparando a Europa de 1650 com a
de 1450. Em 1650, as estruturas básicas do capitalismo histórico, como sistema histórico
viável, tinham sido estabelecidas e consolidadas. A tendência para a igualitarizaçom dos
rendimentos tinha sido drasticamente revertida. Umha vez mais, os estratos superiores
detinham o controlo firme da situaçom, política e ideologicamente. Havia um nível
razoavelmente elevado de continuidade entre as famílias que, em 1450, formavam os estratos
superiores, e aquelas que os integravam em 1650. Ademais, se substituirmos 1650 por 1900,
veremos que a maioria das comparaçons com 1450 continua a ser válida. É só no século XX
que aparecem algumhas tendências significativas noutras direcçons, um sinal de que, como
veremos, o sistema histórico do capitalismo, após quatro ou cinco séculos de florescimento,
entrou finalmente em crise estrutural. Provavelmente, ninguém chegou a exprimir essa
intençom, mas parece que a criaçom do capitalismo histórico, como sistema social, fez reverter
dramaticamente umha tendência que os estratos superiores temiam, estabelecendo em seu
lugar umha outra que serviu ainda melhor os seus interesses. Isso será assim tam absurdo?
Apenas para aqueles que fôrom as suas vítimas.
A POLÍTICA DE ACUMULAÇOM: A LUITA POLO LUCRO

A incessante acumulaçom de capital, como fim em si, pode prima facie parecer um
objectivo socialmente absurdo. Porém, esta tese tem tido os seus defensores, que usualmente
alegam a existência de supostos benefícios sociais de longo prazo. Discutiremos mais tarde em
que medida estes benefícios sociais som reais. No entanto, independentemente de quaisquer
benefícios colectivos, é claro que a acumulaçom de capital gera um forte acréscimo do
consumo, por parte de muitos indivíduos (e/ou pequenos grupos). Se o acréscimo de consumo
melhora realmente a qualidade de vida dos consumidores, isso é outra questom, cuja análise
também deixaremos para mais tarde.

A primeira questom que iremos abordar é a seguinte: quem goza dos benefícios
individuais imediatos? Parece razoável afirmar que a maioria das pessoas nom fica à espera de
benefícios de longo prazo, em termos de melhoria da qualidade de vida individual ou colectiva,
para decidir se vale a pena luitar por benefícios individuais imediatos, que estám tam
obviamente disponíveis. Na verdade, isto tem sido o foco central da luita política no capitalismo
histórico, e é isso que queremos dizer ao afirmar que o capitalismo histórico é umha
civilizaçom materialista.

Ao longo dos tempos, no sistema mundial, considerado como um todo, as recompensas


para os mais bem-sucedidos tenhem sido grandes, e os diferenciais de gratificaçommaterial,
entre o topo e a base, também tenhem sido enormes, e sempre crescentes. Já demos conta
do processo económico que gerou esta polarizaçom da distribuiçom de recompensas.
Devemos agora dirigir a nossa atençom para o modo como as pessoas se comportaram no
interior de um tal sistema económico, no intuito de conseguirem recompensas para si próprias
e, conseqüentemente, de as negarem a outros. Devemos também ver como é que as pessoas
que fôrom vítimas da má distribuiçom se comportaram, com vista a minimizarem as suas
perdas e a transformarem este sistema, responsável por injustiças tam manifestas.

No capitalismo histórico, como é que as pessoas ou grupos conduzírom as suas luitas


políticas? A política consiste em mudar as relaçons de poder numha direcçom mais favorável
aos interesses próprios, redireccionando assim os processos sociais. O sucesso na política
depende da existência de alavancas de mudança, capazes de proporcionarem vantagem
máxima para um mínimo de investimento. A estrutura do capitalismo histórico tem sido tal, que
as alavancas mais eficientes do ajustamento político fôrom as estruturas estatais, cuja
construçom foi, como vimos, umha das realizaçons institucionais centrais do capitalismo
histórico. Nom é por acaso que o controlo do poder de Estado –a conquista do poder de
Estado, se necessário–, tem sido o objectivo estratégico central de todos os actores principais
da arena política, em toda a história do capitalismo moderno.

A importáncia crucial do poder estatal –mesmo quando definido de modo restritivo–,


para os processos económicos, torna-se evidente quando observamos de perto a maneira
como o sistema tem de facto operado. A jurisdiçom territorial era a primeira e mais elementar
componente do poder estataI. Os Estados tinham fronteiras, que eram determinadas
juridicamente, em parte por auto-proclamaçom, e em parte por reconhecimento diplomático de
outros Estados. É verdade que as fronteiras podiam ser –e fôrom-no freqüentemente–
contestadas; isto é, os reconhecimentos jurídicos das duas fontes (o próprio Estado e os outros
Estados), eram conflituantes. Estas diferenças eram resolvidas por arbitragem ou pola força (e
por umha possível aquiescência posterior). Muitas disputas sobrevivêrom, sob umha forma
latente, por longos períodos, embora poucas dessas disputas tivessem durado mais do que o
tempo de umha geraçom. O crucial era o pressuposto ideológico, permanentemente partilhado
por todas as partes, de que essas disputas podiam ser resolvidas e acabariam mesmo por ser
resolvidas um dia. O que era conceptualmente inadmissível, no moderno sistema de Estados,
era o reconhecimento explícito de jurisdiçons sobrepostas com carácter permanente. A
soberania, como conceito, era baseada no princípio aristotélico do terceiro excluído.

Esta doutrina jurídico-filosófica tornou possível a atribuiçom de responsabilidades, polo


controlo dos movimentos transfronteiriços. Cada Estado tinha jurisdiçom formal sobre as suas
próprias fronteiras e sobre os movimentos de bens, capital-dinheiro e força de trabalho através
delas. Por conseguinte, cada Estado podia, até certo ponto, modificar as modalidades em que
operava a divisom social do trabalho do mundo económico capitalista. Além disso, cada Estado
podia ajustar constantemente esses mecanismos, mudando as regras a que obedeciam os
fluxos dos diversos factores de produçom através das suas próprias fronteiras.

Normalmente, discutem-se estes controlos fronteiriços em termos de umha antinomia


entre a ausência total de controlo (comércio livre) e a ausência total de movimentos (autarcia).
Na verdade, para a maioria dos países, e na maioria das circunstáncias, a política estatal
situou-se algures entre estes dous extremos. Além disso, as políticas tem sido específicas e
diferenciadas para os movimentos de bens, capital-dinheiro e força de trabalho. De um modo
geral, os movimentos da força de trabalho tem sido mais restringidos do que os movimentos de
bens e de capital-dinheiro.

Do ponto de vista do produtor, a liberdade de movimentos era desejável, caso ele fosse
economicamente competitivo em relaçom com outros produtores do mesmo produto, no
mercado mundial. Porém, caso contrário, as várias barreiras fronteiriças, erguidas contra os
produtores rivais, podiam aumentar os custos destes últimos, beneficiando assim o produtor
que, sem isso, seria menos eficiente. umha vez que, por definiçom, num mercado em que havia
múltiplos produtores de um mesmo produto, a maioria era menos eficiente, tem existido umha
constante pressom a favor de restriçons mercantilistas ao livre movimento transfronteiriço. No
entanto, como os mais eficientes, apesar de estarem em minoria, eram relativamente ricos e
poderosos, tem havido umha constante contra-pressom pola abertura das fronteiras, ou, mais
especificamente, pola abertura de certas fronteiras. Assim, a primeira grande luita –umha luita
feroz e continuada– foi sobre as políticas fronteiriças dos Estados. Além disso, como qualquer
conjunto de produtores (mas particularmente os fortes e poderosos), era directamente afectado
polas políticas fronteiriças nom apenas dos Estados em que baseava fisicamente a sua
actividade económica (que podiam nom ser os Estados do quais eles eram cidadaos), mas
também de muitos outros Estados –alguns produtores tivêrom interesse em promover
objectivos políticos simultáneos em vários, por vezes, mesmo, em muitos Estados. A ideia de
que se deve restringir a participaçom política ao seu próprio Estado era profundamente
antitética para aqueles que promoviam a acumulaçom capitalista como um fim em si.

Umha maneira de modificar as regras relativas ao que pode e ao que nom pode cruzar
as fronteiras (e sob que condiçons), consistia em mudar as próprias fronteiras –através da
incorporaçom total de um Estado por outro (unificaçom, ansch1uss, colonizaçom), da conquista
de um território ou da secessom ou descolonizaçom. O facto de as mudanças de fronteira
exercerem um impacto directo nos padrons da divisom social do trabalho na economia-mundo,
tem sido um aspecto central da argumentaçom de todos os que apoiam ou contestam
determinadas alteraçons de fronteiras. Por seu turno, a circunstáncia de as
mobilizaçons ideológicas, focalizadas na definiçom de naçons, poder facilitar ou dificultar
determinadas alteraçons fronteiriças, tem conferido conteúdo económico imediato aos
movimentos nacionalistas, umha vez que as pessoas envolvidas tendem a realizar conjecturas
sobre políticas estatais específicas, decorrentes das projectadas mudanças fronteiriças.

O segundo elemento do poder estatal, com importáncia fundamental para as


operaçons do capitalismo histórico, foi o direito de os Estados determinarem, dentro da sua
jurisdiçom territorial, as regras que comandam as relaçons sociais de produçom, As estruturas
estatais modernas chamárom a si o direito de revogar ou corrigir qualquer conjunto de
relaçons em uso. Do ponto de vista jurídico, os Estados nom reconheciam quaisquer limites ao
seu poder legislativo, para além daqueles que eles próprios impunham. Mesmo as
Constituiçons que reconheciam formalmente certos limites, impostos por doutrinas religiosas ou
de direito natural, reservavam para um determinado corpo ou pessoa, constitucionalmente
definidos, o direito de interpretar estas doutrinas.
O direito de legislar sobre as modalidades de controlo do trabalho nom era, de modo
algum, umha questom meramente teórica. Os Estados usárom freqüentemente estes direitos,
implicando por vezes transformaçons radicais nos padrons existentes. Como seria de esperar,
os Estados legislárom, por forma a aumentarem a mercantilizaçom da força de trabalho,
abolindo várias instituiçons costumárias que restringiam os movimentos de trabalhadores de
um tipo de emprego para outro. Além disso, impugérom à força de trabalho obrigaçons fiscais
em dinheiro, o que freqüentemente obrigava certos trabalhadores a envolverem-se em trabalho
assalariado. Mas, por outro lado, como vimos, os Estados, pola sua actividade legislativa
desencorajavam com freqüência umha proletarizaçom completa, impondo limitaçons de
residência, ou obrigando o grupo de parentesco a prestar assistência aos seus membros.

Os Estados controlavam as relaçons de produçom. Primeiro legalizárom, depois


proibírom determinadas formas de trabalho coercivo (escravatura, prestaçom de serviço cívico,
remissom de dívidas, etc.). Também regulamentárom os contratos de trabalho assalariado,
incluindo as garantias e o conteúdo máximo e mínimo das obrigaçons recíprocas. Eles
decretárom limites à mobilidade geográfica da força de trabalho, nom apenas através das
fronteiras, mas também dentro delas.

Todas estas decisons estatais eram tomadas com o objectivo explícito de influenciarem
a acumulaçom de capital. Isso pode ser facilmente verificado, analisando os numerosos
debates que, em cada época, influenciárom a escolha das alternativas estatutárias e
administrativas. Ademais, os Estados dispendiam regularmente consideráveis energias na
imposiçom das suas estatuiçons a grupos recalcitrantes, em particular as forças de trabalho
recalcitrantes. Os trabalhadores raramente podiam ignorar os constrangimentos impostos as
suas acçons. polo contrário, a rebeliom dos trabalhadores –individual ou colectiva, passiva ou
activa–, provocava geralmente umha resposta repressiva imediata por parte dos aparelhos
estatais. É certo que, com o tempo, os movimentos organizados da classe trabalhadora fôrom
capazes de impor certas limitaçons à repressom, levando mesmo a alteraçons, em seu favor,
de algumhas regras vigentes. Mas estes movimentos obtinham tais resultados através,
sobretudo, da sua capacidade de influenciar a composiçom política dos aparelhos estatais.

Um terceiro elemento do poderio estatal tem sido o poder de criar impostos. A


tributaçom nom foi de modo algum umha invençom do capitalismo histórico; estruturas políticas
anteriores também usárom os impostos como fonte de rendimento para os aparelhos estatais.
Mas o capitalismo histórico transformou os impostos de dous modos. Em primeiro lugar, os
impostos tornárom-se a principal (de facto, quase a única), fonte regular de rendimento estatal,
tornando-se raras as cobranças irregulares através da força, a pessoas residentes dentro ou
fora da jurisdiçom formal do Estado (incluindo os tributos a outros Estados). Em segundo lugar,
considerando a percentagem dos impostos no valor total criado ou acumulado, estes
tornáromm-se um fenómeno em constante expansom no decurso do desenvolvimento histórico
da economia-mundo capitalista. Isto significa que os Estados tivérom um papel importante,
relativamente aos recursos que controlam, nom apenas porque esses recursos favoreciam a
acumulaçom de capital, mas também porque eram redistribuídos, entrando assim, directa ou
indirectamente, no processo de acumulaçom acrescida de capital.

A tributaçom foi um poder que atraiu hostilidade e resistência sobre a própria estrutura
estatal, que era vista como umha espécie de vilao impessoal, apropriador dos frutos do
trabalho de outrem. Há que ter em conta que, fora do governo, havia forças que pugnavam
pola criaçom de impostos específicos, para beneficiarem da sua redistribuiçom ou, permitindo
ao Governo criar economias externas, para melhorarem a sua posiçom económica e
penalizarem outros, de umha forma que fosse economicamente favorável ao primeiro grupo.
Resumindo, o poder de criar impostos era um dos meios mais imediatos polos quais o Estado
apoiava directamente o processo de acumulaçom de capital, favorecendo certos grupos e
discriminando outros.

Os poderes redistributivos do Estado som geralmente discutidos apenas em termos do


seu potencial equalizador. É este o lema do Estado-Providência. Mas a redistribuiçomtem sido,
de facto, muito mais utilizada como mecanismo de polarizaçom da distribuiçom de capitais, do
que como meio de convergência dos rendimentos reais. Existem assim três mecanismos
principais que favorecem a polarizaçom dos benefícios para além e em acréscimo a
polarizaçom resultante do funcionamento corrente do mercado capitalista.

Antes de mais, os governos, através dos impostos, reuniam largas somas de capital, que
posteriormente redistribuíam, através de subsídios oficiais, por pessoas ou grupos já grandes
detentores de capital. Estes subsídios tenhem consistido em puras dádivas, geralmente com a
justificaçom duvidosa de finalidade pública (envolvendo essencialmente pagamentos de
serviços sobre-avaliados). Mas tem também adquirido formas menos directas, como quando o
Estado suporta os custos da criaçom de um dado produto (supostamente amortizáveis por
futuras vendas lucrativas), custeando a preço simbólico actividades económicas de
empresários nom-governamentais, precisamente no ponto em que termina a fase onerosa de
pesquisa e desenvolvimento.

Em segundo lugar, através de meios de fiscalidade legais (e muitas vezes legítimos), os


governos reuniam largas somas de capital, transformadas posteriormente em objectos fáceis
de evasom em larga escala, ilegítima, mas tolerada. Ao longo do capitalismo histórico, este
desvio de fundos públicos, bem como os concomitantes procedimentos fiscais corruptos,
constituírom desde sempre umha fonte privilegiada de acumulaçom privada de capital.

Em suma, os governos tenhem redistribuído capital polos ricos, utilizando o seguinte


princípio: individualizaçom do lucro, através da socializaçom do risco. Ao longo de toda a
história do sistema capitalista, quanto maior o risco (e as perdas), mais provável a
intervençom dos governos, no sentido de impedirem as falências, e mesmo de ressarcirem das
perdas, ou polo menos evitar perturbaçons financeiras.

Enquanto estas práticas de redistribuiçom desigual tenhem sido a face envergonhada do


poder estatal (já que os governos se sentem embaraçados com ela e gostam de a ocultar), o
fornecimento e a disponibilizaçom de capital para despesas sociais tem sido abertamente
ostentado polos governos, e mesmo advogado como um papel essencial do Estado na
manutençom do capitalismo histórico.

Os avultados gastos com a reduçom dos custos de múltiplos grupos de


proprietários/produtores –isto é, a energia básica, os transportes e a infra-estrutura
informacional da economia-mundo–, tem sido largamente suportados por fundos públicos. Se é
verdade que a maioria das pessoas tirou algum benefício desse capital para despesas sociais,
já nom é verdade que todos tenham obtido igual proveito. Tais vantagens tem sido
desproporcionalmente maiores para aqueles que som já grandes detentores de capital,
enquanto que os seus custos som suportados por um sistema de tributaçom muito mais
igualitário. Assim, o capital para despesas sociais tem servido para promover acréscimos de
acumulaçom de capital e a sua concentraçom.

Finalmente, os Estados tenhem monopolizado (ou tem tentado monopolizar), as


forças armadas. Enquanto as forças policiais tenhem estado vocacionadas para a
manutençomda ordem interna (isto é, para levarem os trabalhadores a aceitar os papéis e as
recompensas que lhes som atribuídos), os exércitos tenhem servido para os produtores de um
Estado impedirem que os seus concorrentes de outros Estados invoquem a protecçom dos
seus próprios aparelhos estatais. Isto conduz-nos à última característica crucial do poder
estatal. Embora os tipos de poder utilizados por cada Estado sejam similares, o grau de
utilizaçom desses poderes varia significativamente. Os Estados organizam-se hierarquicamente
em funçom do respectivo poder efectivo, o qual nom pode ser medido polo tamanho e coesom
das suas burocracias e exércitos, nem polas suas formulaçonsideológicas acerca de si
próprios. A medida do seu poder tem sido a sua capacidade efectiva de concentrar capital
acumulado no seu território, por oposiçom aos Estados rivais. Esta capacidade efectiva implica
a capacidade para neutralizar forças militares hostis; a faculdade de decretar
regulamentaçons vantajosas para si (e impedir outros Estados de fazerem o mesmo); e a
aptitude de coagir as suas próprias forças de trabalho, comprometendo a capacidade de os
seus rivais fazerem o mesmo. A verdadeira medida da sua força é, a médio prazo, o sucesso
económico. O uso aberto da força, por parte do Estado, para controlar a força de trabalho
interna, além de ser umha técnica dispendiosa e desestabilizadora, é freqüentemente mais um
sinal da sua fraqueza do que do seu poder. Os aparelhos estatais verdadeiramente fortes
tenhem, de umha forma ou outra, conseguido controlar os trabalhadores, através de
mecanismos mais subtis.

Existem assim diversos meios, polos quais o Estado tem desempenhado um papel
crucial na máxima acumulaçom de capital. De acordo com a sua própria ideologia, era suposto
que o capitalismo envolvesse apenas a actividade de empresários particulares, livres da
interferência dos aparelhos estatais. Na prática, porém, isto nunca foi verdade em parte
algumha. É ocioso especular sobre o capitalismo, e se ele poderia ter florescido sem o papel
activo do Estado moderno. No capitalismo histórico, os capitalistas contárom sempre com a
possibilidade de utilizar os aparelhos estatais em seu proveito, das várias maneiras que
esboçamos.

Um segundo mito ideológico tem sido o da soberania estatal. O Estado moderno nunca
foi umha entidade política completamente autónoma. Os Estados fôrom formados e
desenvolvêrom-se como partes integradas num sistema inter-estatal, regido por um conjunto de
regras, dentro das quais os Estados tinham de operar, e um conjunto de legitimaçons, sem as
quais os Estados nom podiam sobreviver. Do ponto de vista dos aparelhos estatais de um dado
Estado, o sistema inter-estatal representou sempre constrangimentos à sua vontade. Estes
constrangimentos reflectírom-se nas práticas da diplomacia, nas regras formais sobre
jurisdiçons e contratos (o direito internacional), e nos limites estatuídos sobre como e em que
circunstáncias se pode conduzir a guerra. Todos estes constrangimentos vam contra a
ideologia oficial da soberania, A soberania, porém, nunca significou total autonomia. Este
conceito refere apenas a existência de limites à legitimidade da interferência de um aparelho
estatal nas operaçons de um outro.

As regras do sistema inter-estatal nom eram, obviamente, definidas por consentimento


ou consenso, mas pola vontade e capacidade de os Estados mais fortes imporem estas
restriçons, primeiro aos Estados mais fracos e, em seguida, entre si mesmos. Os Estados,
recordemo-lo, organizárom-se numha hierarquia de poder. A própria existência desta hierarquia
constituía a maior limitaçom à autonomia dos Estados. É verdade que a situaçom geral podia
resvalar, levando, até, ao desaparecimento total do poder dos Estados, na medida em que a
hierarquia tinha no seu topo umha pirámide e nom um planalto. Esta possibilidade nom era
meramente académica, já que a dinamica da concentraçom de poder militar conduziu a
recorrentes impulsos para transformar o sistema inter-estatal num império-mundo.

Se estes impulsos nunca tivérom sucesso no capitalismo histórico, foi porque a base
estrutural do sistema económico e os interesses claramente percebidos dos maiores
acumuladores de capital eram fundamentalmente opostos a umha transformaçom da
economia-mundo num império-mundo.

Em primeiro lugar, a acumulaçom de capital era um jogo em que existia um constante


incentivo para a competiçom, havendo assim umha constante dispersom das actividades
produtivas mais lucrativas. Deste modo, em qualquer momento, numerosos Estados tinham
tendência para possuir umha base económica que os tornava relativamente fortes. Por outro
lado, se é verdade que os acumuladores de capital utilizaram as estruturas do seu Estado para
os ajudarem na acumulaçom de capital, eles também necessitavam de exercer algum
controlo contra as estruturas do seu Estado. Com efeito, se o seu aparelho estatal se tornasse
demasiado forte, poderia, por razons de equilíbrio político interno, sentir-se tentado a dar
resposta a pressons igualitárias internas. Contra esta ameaça, os acumuladores de capital
necessitárom de contornar o poder do seu Estado, fazendo alianças com outros Estados. Esta
ameaça era apenas possível enquanto nom houvesse um Estado que dominasse o todo.

Estas consideraçons constituírom a base objectiva do chamado equilíbrio de poder, polo


qual os numerosos Estados fortes e medianamente fortes do sistema inter-estatal, em qualquer
altura, tendêrom a manter alianças (ou, se necessário, a mudá-las), de tal modo que nengum
Estado isoladamente pudesse conquistar todos os outros.

Podemas verificar que o equilíbrio de poder era mantido por algo mais do que a
ideologia política, analisando os três momentos em que um dos Estados fortes acedeu
temporariamente ao relativo domínio sobre os outros – um domínio relativo, a que podemos
chamar hegemonia. Os três momentos som: a hegemonia das Províncias Unidas (Holanda),
em meados do século XVII, a da Gram Bretanha, em meados do século XIX, e a dos Estados
Unidos, na segunda metade do século XX.

Em cada caso, a hegemonia surgiu após a derrota de um pretendente à conquista militar


(os Habsburgos, França, Alemanha). Cada hegemonia foi selada por umha “guerra mundial” –
um conflito continental massivo e altamente destrutivo, luitas intermitentes com a duraçom de
trinta anos, envolvendo todos os maiores poderes militares do seu tempo. Elas fôrom,
respectivamente, a Guerra dos Trinta Anos de 1618-48, as guerras napoleónicas (1792-1815) e
os conflitos do século XX, entre 1914 e 1945, os quais devem ser considerados com
propriedade como umha única e prolongada “guerra mundial”. Note-se que, em todos os casos,
o vencedor foi a principal potência marítima do período anterior à “guerra mundial”. Todavia,
para vencer a guerra, tivo de se transformar numha potência terrestre, de modo a vencer umha
potência continental historicamente forte, que parecia tentar transformar a economia-mundo
num império-mundo.

O principal factor da vitória nom era, porém, militar, mas sim económico: a capacidade
dos acumuladores de capital, sediados em determinados Estados, para vencerem todos os
concorrentes, nas três principais esferas económicas: produçom agro-industrial, comércio e
finanças. Especificamente, durante breves períodos, os acumuladores de capital no Estado
hegemónico eram mais eficientes do que os seus concorrentes sediados noutros Estados rivais
e, em conseqüência, conquistárom mercados, mesmo nas áreas “domésticas” destes últimos.
Todos estes períodos hegemónicos fôrom breves. Todos tivérom um fim, o qual se deveu mais
a razons económicas do que político-militares.

Em cada caso, a tripla superioridade económica desfijo-se de encontro a duas


realidades inelutáveis do capitalismo. Primeiro, os factores que criavam umha maior eficiência
económica podiam ser copiados por outros –nom polos concorrentes mais fracos, mas por
aqueles que tinham capacidade mediana–, e os que aderiam tardiamente a um qualquer
processo económico tinham a vantagem de nom terem de amortizar investimentos mais
antigos. Em segundo lugar, a potência hegemónica tinha todo o interesse em manter umha
actividade económica ininterrupta e, assim, tendia a adquirir a paz social, através da
redistribuiçom interna. Com o tempo, isso levou a umha reduçom da sua competitividade,
pondo fim à sua hegemonia. A isso acresce que as “responsabilidades” militares alargadas,
terrestres e marítimas, tornárom-se um fardo económico crescente para o Estado hegemónico,
que nom podia manter o nível reduzido de despesas militares do período antes da “grande
guerra”.

Deste modo, o equilíbrio de poder –que constrangia tanto os Estados fortes como os
fracos–, nom era um epifenómeno político que pudesse ser facilmente desfeito. Estava
directamente ancorado no modo como o capital era acumulado no capitalismo histórico. O
equilíbrio de poder também nom decorria unicamente da relaçom entre aparelhos estatais,
porque os actores internos de qualquer dos Estados actuavam regularmente para além das
suas fronteiras, directamente ou por intermédio de alianças com actores noutros locais. Deste
modo, na análise da política dos Estados, a distinçom interno-externo é puramente formal e
nom ajuda a compreensom das luitas políticas.
Mas, de facto, quem luitava com quem? Esta nom é umha questom tam óbvia como se
poderá pensar, dadas as pressons contraditórias existentes no capitalismo histórico. A luita
mais elementar –e de algum modo a mais óbvia–, era a que opunha um pequeno grupo de
grandes beneficiários do sistema e o grande conjunto das suas vítimas. Esta luita é conhecida
por muitos nomes e sob muitas formas. Sempre que, num determinado Estado, há umha
demarcaçom clara entre os acumuladores de capital e a sua força de trabalho, estamos
perante aquilo a que se chama umha luita de classes entre o capital e o trabalho. Essas luitas
de classes ocorreram em dous locais –na arena económica (tanto no local de trabalho, como
no mais lato e amorfo “mercado”), e na arena política. É claro que, na arena económica, tem
havido um conflito de interesses directo, lógico e imediato. Quanto maior for a remuneraçom da
força de trabalho, menos mais-valia sobrará como “lucro”. É claro que este conflito tem sido
atenuado por consideraçons de longo prazo e de larga escala. Certos acumuladores de capital
e os seus assalariados tinham interesses comuns, por oposiçom aos seus congéneres
localizados algures no sistema. E, em certas circunstáncias, umha melhor remuneraçom da
força de trabalho podia reverter em proveito dos acumuladores de capital como lucro diferido,
por via de um acrescido poder de compra global na economia-mundo. De qualquer modo,
nenguma destas consideraçons podia escamotear o facto de que a divisom de umha
determinada mais-valia era umha operaçom de soma zero. Daí que, forçosamente, a tensom
tenha sido contínua. Consequentemente, essa mesma tensom encontrou expressom
continuada na competiçom polo poder político, dentro dos vários Estados.

Como sabemos, porém, o processo de acumulaçom de capital levou à sua


concentraçom em certas zonas geográficas. A troca desigual que lhe estivo subjacente tornou-
se possível graças à existência de um sistema interestadual hierarquizado, apesar de os
aparelhos estatais manterem algum poder (limitado) para alterar as operaçons do sisterna.
Considerando tudo isto, a luita entre os acumuladores mundiais de capital e a força de trabalho
mundial encontrou também considerável expressom nas tentativas de vários grupos, de certos
Estados mais fracos, para acederem ao poder, de modo a utilizarem o poder estatal contra
acumuladores de capital sediados em Estados mais fortes. Temos designado este fenómeno
como luita anti-imperialista. Sem dúvida, também aqui, a questom foi freqüentemente
obscurecida polo facto de as linhas internas, de cada um dos dous Estados envolvidos, nem
sempre terem coincidido perfeitamente com o subjacente alinhamento da luita de classes na
economia-mundo como um todo. Alguns acumuladores de capital, no Estado mais fraco, e
alguns elementos da força de trabalho, no Estado mais forte, vírom vantagens de curto prazo
na definiçom dos assuntos políticos em termos puramente nacionais, e nom em termos de
classe e naçom, Mas as grandes mobilizaçons e investidas de movimentos anti-imperialistas
nunca teriam sido possíveis –e, portanto, mesmo os objectivos limitados eram raramente
conseguidos– se, na luita , nom fosse usado, polo menos implicitamente, o conteúdo de classe,
como tema ideológico.

Já assinalámos também que o processo de formaçom de grupos étnicos estivo


directamente ligado a estruturaçom da força de trabalho em certos Estados, servindo como
mapa de posiçons nas estruturas económicas. Assim, onde este fenómeno ocorreu de forma
mais acentuada –ou onde as circunstáncias impugérom pressons agudas sobre a
sobrevivência–, o conflito entre os acumuladores de capital e os segmentos mais oprimidos da
força de trabalho assumiu a forma de luitas lingüístico-raciais-culturais, umha vez que estes
elementos definidores estám intimamente correlacionados com a pertença a umha classe.
Onde quer que isto tenha acontecido, falou-se normalmente de luitas étnicas ou nacionais. Tal
como no caso das luitas anti-imperialistas, estas luitas eram geralmente mal-sucedidas, sempre
que nom conseguiam mobilizar os sentimentos subjacentes a luita de classes, isto é, a luita
pola apropriaçom da mais-valia produzida no seio do sistema capitalista.

Nom obstante tudo isto, se prestarmos atençom unicamente a luita de classes (polo
facto de ser óbvia e fundamental), perderemos de vista umha outra luita política que, durante o
capitalismo histórico, absorveu polo menos tanto tempo e energia. Referimo-nos ao facto de o
sistema capitalista ter impelido todos os acumuladores de capital a luitarem uns contra os
outros. umha vez que o modo de promover a incessante acumulaçom de capital consistia na
obtençom de lucros, provenientes da actividade económica (contra os esforços competitivos de
outros), nengum empresário individual podia ser mais do que um aliado circunstancial de
qualquer outro empresário, sob pena de ser, pura e simplesmente, eliminado de cena.

Empresário contra empresário, sector económico contra sector económico, empresários


de um dado Estado ou grupo étnico contra empresários de outros Estados ou etnias –a luita
tem sido, por definiçom, incessante. E esta luita incessante assume constantemente umha
forma política, precisamente devido ao papel central dos Estados na acumulaçom de capital.
Por vezes, estas luitas dentro dos Estados tenhem-se circunscrito a questons pessoais nos
aparelhos estatais e a políticas concretas de curto prazo. Outras vezes, porém, tem incidido
sobre grandes questons “constitucionais” , que determinam as regras polas quais se regem as
luitas de curto alcance, e, em conseqüência, a possibilidade de umha facçom adquirir
ascendente sobre outra. Sempre que estas luitas fôrom de natureza “constitucional”, elas
requerêrom umha grande mobilizaçomideológica. Nestes casos, ouvimos falar de
“revoluçons” e “grandes reformas” , sendo atribuídos rótulos infamantes (e analiticamente
inadequados) a facçom derrotada. Na medida em que as luitas políticas em prol, por exemplo,
da “democracia” e da “liberdade” , contra o “feudalismo” ou a “tradiçom”, nom fôrom luitas das
classes trabalhadoras contra o capitalismo, fôrom entom essencialmente luitas pola
acumulaçom de capital, entre acumuladores de capital. Estas luitas nom opunham umha
burguesia “progressiva” a estratos reaccionários, já que eram luitas intra-burguesas.

É claro que o uso de palavras-de-ordem ideológicas “universalistas” , em favor do


progresso, tem sido politicamente útil –um modo de instrumentalizar a luita de classes em favor
de umha das partes beligerantes nas luitas entre acumuladores. Mas tal vantagem ideológica
tem sido freqüentemente umha arma de dous gumes, libertando paixons e dificultando a luita
de classes. Este foi, é claro, um dos dilemas recorrentes dos acumuladores de capital no
capitalismo histórico. Eles eram forçados, polo próprio funcionamento do sistema, a agir
solidariamente como classe, em favor dos seus interesses e contra os esforços dos
trabalhadores, mas eram também obrigados a luitar incessantemente uns contra os outros,
tanto na arena económica, como na política. Isto corresponde exactamente a umha
contradiçom do sistema.

Constatando a existência de luitas que, embora nom sendo luitas de classes, absorvem
bastante energia política, muitos investigadores concluírom que a luita de classes comporta
umha interpretaçom dúbia para a compreensom da luita política. Esta é umha inferência
curiosa. Seria mais sensato concluir que essas luitas, alheias a lógica de classe, isto é, luitas
entre acumuladores por vantagens políticas, comprovam a existência de umha séria fraqueza
estrutural na luita de classes que estes mantenhem entre si a escala mundial. Estas luitas
políticas podem ser definidas como luitas para moldar as estruturas institucionaís da economia-
mundo capitalista, de modo a construir um tipo de mercado mundial cujo funcionamento
favorece actores económicos particulares. O “mercado” capitalista nunca foi um dado, e muito
menos umha constante. Trata-se de umha construçom que foi regularmente recriada e
ajustada.

Em cada momento, o “mercado" de umha complexa interacçom dos quatro maiores


grupos de instituiçons: os vários Estados, ligados num sistema inter-estatal; as várias “naçons”
, as plenamente reconhecidas e as que luita vam por um tal reconhecimento público (incluindo
essas sub-naçons que som os “grupos étnicos” ), numha relaçom difícil e incerta com os
Estados; as classes, com contornos ocupacionais evolutivos e com graus oscilantes de
consciência; e, por fim, as unidades aglutinadoras de rendimento que constituem os
espaços domésticos, constituídos por pessoas envolvidas em múltiplas formas de trabalho e
obtendo rendimento de várias fontes, numha relaçom difícil com as classes.

Nesta constelaçom de forças institucionais, nom havia estrelas polares fixas. Nom havia
entidades “prirnordiais” que tendiam a prevalecer sobre as formas institucionais suscitadas
polos acumuladores de capital, em alternáncia com (e em oposiçom a) luita dos trabalhadores
para resistirem a apropriaçom do seu produto económico. As fronteiras entre diferentes
variantes de umha forma institucional, os “direitos” que ela podia legalmente e de facto
sustentar, variavam nas diferentes zonas da economia-mundo. Se um analista escrupuloso fica
confuso diante deste vortex institucional, ele pode seguir um rumo seguro lembrando-se que no
capitalismo histórico os acumuladores tinham como objectivo supremo a maximizaçom da
acumulaçom, e que, por conseguinte, as forcas de trabalho nom podiam ter um objectivo mais
elevado do que a sua sobrevivência e o alijar da sua carga. Com isto em mente, podemos
compreender razoavelmente a história política do mundo moderno.

Em particular, podemos começar a apreciar, em toda a sua complexidade, a natureza


circunlocutória, freqüentemente paradoxal ou contraditória, dos movimentos anti-sistémicos,
que emergiram no capitalismo histórico. Comecemos polo dilema mais elementar. O
capitalismo histórico funcionou no interior de umha economia-mundo, e nom no seio de um
Estado-mundo. Bem polo contrário. Como vimos, houvo pressons estruturais que militárom
contra a construçom de um Estado-mundo. Dentro deste sistema, sublinhámos o papel crucial
dos múltiplos Estados –as mais poderosas estruturas políticas mas, contudo, dotadas de um
poder limitado. Por isso, para as forças de trabalho, a reestruturaçom de determinados Estados
era a via mais promissora para melhorarem a sua posiçom, mas, simultaneamen te, umha via
de valor limitado.

Convém esclarecer o que entendemos por movimento anti-sistémico. A palavra


movimento implica umha acçom colectiva de natureza nom momentánea. De facto, em todos
os sistemas históricos conhecidos, houvo protestos ou levantamentos espontáneos. Eles
servírom de válvulas de segurança para a fúria acumulada; ou, por vezes, mais eficazmente,
como mecanismos que estabelecêrom algumha escassa limitaçom ao processo de exploraçom.
Geralmente, porém, a técnica da rebeliom funcionou apenas à margem da autoridade central,
particularmente quando a burocracia central passava por fases de desintegraçom.

A estrutura do capitalismo histórico mudou alguns destes dados. Estando os Estados


integrados num sistema inter-estatal, as rebelions e os levantamentos tinham geralmente
repercussons imediatas para além dos limites da jurisdiçom política ern que ocorriam.
Determinadas forças “externas” tinham fortes motivos para virem em ajuda dos aparelhos
estatais ameaçados. Isto tornou as rebelions mais difíceis. Por outro lado, a intrusom dos
acumuladores de capital –e, portanto, dos aparelhos estatais– na vida quatidiana dos
trabalhadores foi geralmente muito mais intensa durante capitalismo histórico do que nos
sistemas históricos anteriores. A incessante acumulaçom de capital conduziu a repetidas
pressons para reestruturar a organizaçom (e localizaçom) do trabalho, para aumentar o
montante de trabalho absoluto, e para promover a reconstruçom psicossocial das forças de
trabalho. Neste sentido, para a maioria dos trabalhadores de todo o mundo, a perturbaçom, o
dilaceramento e a exploraçom eram ainda maiores, Ao mesmo tempo, a disrupçom social
enfraqueceu o carácter mitigador dos modos de socializaçom, No cômputo global, os motivos
de rebeliom aumentárom significativamente, apesar de as suas possibilidades de êxito terem
talvez diminuído.

Esta tensom suplementar conduziu a grande inovaçom na técnica de rebeliom, ocorrida


durante o capitalismo histórico. Esta inovaçom consistiu no conceito de organizaçomestável.
Foi, somente, no século XIX que surgírom estruturas permanentes, burocratizadas, nas suas
duas grandes variantes históricas: movimentos laboral-socialistas e movimentos nacionalistas.
Os dous movimentos usavam umha linguagem universalista –basicamente a da
revoluçom francesa: liberdade, igualdade e fraternidade. Um e outro adoptárom a ideologia do
iluminismo –a inevitabilidade do progresso, isto é, da emancipaçom humana baseada em
direitos humanos inatos. Um e outro apelavam ao futuro contra o passado, ao novo contra o
velho, Mesmo quando a tradiçom era invocada, era-o como base para umha renascença.

Os dous tipos de movimentos tinham, é certo, objectivos diferentes e, inicialmente,


localizaçons distintas, Os movimentos laboral-socialistas rentrárom-se nos conflitos que
opunham os trabalhadores assalariados, urbanos e sem terra (o proletariado), aos donos das
estruturas económicas em que trabalhavam (a burguesia). Estes movimentos insistiam no facto
de a remuneraçom polo trabalho ser fundamentalmente inegualitária, opressiva e injusta. Era
natural que tais elementos emergissem primeiro nas regions da economia-mundo onde havia
umha significativa força de trabalho industrial, em particular na Europa Ocidental. Os
movimentos nacionalistas centrárom-se nos conflitos entre os numerosos “povos
oprimidos” (definidos em termos de características lingüísticas e/ou religiosas) e os
“povos” dominantes de umha dada jurisdiçom política. Os primeiros tinham, é claro, muito
menos direitos políticos do que os últimos, e também menos oportunidades económicas e
formas legítimas de expressom cultural. Estes movimentos insistírom em que os
“direitos” eram fundamentalmente inegualitários, opressivos e ínjustos. Era natural que tais
movimentos começassem por emergir nas regions semi-periféricas da economia-mundo –como
o Império Austro-Húngaro–, onde era mais evidente a distribuiçom desequilibrada dos grupos
etno-nacionais na hierarquia da força de trabalho.

Em geral, até recentemente, estes dous tipos de movimentos considerárom-se muito


diferentes um do outro, por vezes mesmo antagonistas. As alianças entre eles eram vistas
como tácticas e temporárias, Curiosamente, porém, estes dous tipos de movimentos
partilhárom desde o início certas características estruturais comuns. Em primeiro lugar, após
debates consideráveis, tanto os movimentos laboral-socialistas como os nacionalistas,
decidírom tornar-se organizaçons e adoptar como principal objectivo políti- co a tomada do
poder estatal (mesmo quando, no caso de certos movimen- tos nacionalistas, isso implicava a
criaçom de novas fronteiras estatais), Em segundo lugar, a decisom sobre a estratégia –a
tomada do poder estatal– fijo com que estes movimentos mobilizassem forças populares com
base numha ideologia anti-sistémica, ou seja, revolucionária. Eles eram contra o sistema
existente –o capitalismo histórico–, construído com base nas desigualdades estruturantes
capital-trabalho e centro-periferia, as quais estes movimentos se propunham derrubar.

Num sistema desigual, há sempre duas maneiras de um grupo subalterno procurar


superar a sua condiçom. Pode tentar reestruturar o sistema, de modo a que todos tenham igual
estatuto, ou pode simplesmente procurar subir de posiçom no sistema inegualitário. Como
sabemos, os movimentos anti-sistémicos, por muito que tenham centrado a sua estratégia em
finalidades igualitárias, incluírom sempre elementos cujo objectivo (inicial ou subseqüente) era
apenas promoverem-se a si próprios dentro da hierarquia existente. Os próprios movimentos
tiveram sempre consciência deste facto, mas preferiarn discutir este problema em termos de
motivaçons individuais: a pureza de intençons contra os traidores à causa. Todavia, como a
análise nos força a concluir que os “traidores a causa” eram omnipresentes em todas as
instáncias dos movimentos, somos levados a procurar umha explicaçom estrutural e nom
meramente motivacional.

A chave para o problema pode residir na decisom estratégica básica de considerar a


tomada do poder estatal como o objectivo central das actividades do movimento. Esta
estratégia tivo duas conseqüências fundamentais. Na fase de mobilizaçom, levou cada
movimento a entrar em alianças tácticas com grupos que nom tinham nada de “anti-sistémico”,
com o fim de atingir os seus objectivos estratégicos. Estas alianças modificárom a estrutura dos
próprios movimentos anti-sistémicos, ainda na fase de mobilizaçom. Mais importante ainda, a
estratégia acabou eventualmente por ter sucesso em muitos casos. Muitos movimentos
conquistárom parcialmente (ou mesmo totalmente) o poder estatal. Estes movimentos
vitoriosos fôrom entom confrontados com a realidade das limitaçons do poder estatal na
economia-mundo capitalista. Vírom-se entom constrangidos polo sistema inter-estatal a
exercerem o seu poder de tal modo que os objectivos anti-sistémicos”, que eram a sua razom
de ser, ficavam diluídos.

Isto parece tam óbvio que devemos interrogar-nos sobre o que teria levado esses
movimentos a basear a sua estratégia num objectivo tam ilusório. A resposta é bem simples:
dada a estrutura política do capitalismo histórico, nom tinham grande escolha. Nom parecia
existir urna estratégia alternativa mais promissora. A tomada do poder estatal prometia, polo
menos em parte, umha mudança no equilíbrio de poder entre os grupos em contenda. Por
outras palavras, a tomada do poder estatal representou umha reforma do sistema. As reformas
melhorárom de facto a situaçom, mas sempre através do reforço do próprio sistema.
Poderemos entom concluir que o papel dos movimentos anti-sistémicos no mundo, ao longo de
mais de cento e cinqüenta anos, consistiu simplesmente no reforço do capitalismo histórico
através do reformismo? Nom. E isto porque a política do capitalismo histórico é mais do que a
política dos diversos Estados. Tem sido também a política do sistema inter-estatal. Os
movimentos anti-sistémicos existírom desde o início nom apenas individualmente mas como
um todo colectivo, embora nunca organizado burocraticamente (as várias internacionais nunca
incluírom a totalidade destes movimentos). Um factor crucial na força de cada movimento tem
sido sempre a existência de outros movimentos. A existência de outros movimentos tem
garantido a cada um deles três tipos de apoios. O mais evidente é o apoio material. É útil, mas
tem porventura um significado reduzido. O segundo tipo de apoio som as manobras de
diversom. A capacidade de um qualquer Estado forte intervir contra um movimento anti-
sistémico localizado, por exemplo, num Estado mais fraco, foi sempre funçom do número de
questons da sua agenda política imediata. Quanto mais um determinado Estado se preocupava
com um movimento anti-sistémico local, menos capacidade tinha para se ocupar de um
movimento anti-sistémico distante. O terceiro e mais importante apoio está ao nível das
mentalidades colectivas. Os movimentos aprendêrom com os erros e fôrom encorajados polos
sucessos uns dos outros. E os esforços dos movimentos em todo o mundo afectárom o clima
político global –as expectativas e a análise das possibilidades.

À medida que os movimentos cresciam em número, em história e em sucessos tácticos,


pareciam mais fortes como fenómeno colectivo. E porque pareciam mais fortes eram-no
efectivamente. umha maior força colectiva em todo o mundo serviu como obstáculo às
tendências “revisionistas” dos movimentos instalados no poder estatal –nem mais, nem menos
do que isso e, para a desestabilizaçom do capitalismo histórico, o seu efeito foi maior do que a
soma dos efeitos fortificadores decorrentes da tomada do poder estatal polos sucessivos
movimentos individuais.

Finalmente, um outro factor entrou em jogo. À medida que as duas variedades de


movimentos anti-sistémicos se difundírom (os movimentos laboral-socialistas, a partir de alguns
Estados fortes para todos os outros; os movimentos nacionalistas, a partir de algumhas zonas
periféricas em todas as direcçons), a distinçom entre os dous tipos de movimentos tornou-se
cada vez mais fluída. Os movimentos laboral-socialistas descobrírom que os temas
nacionalistas eram centrais nos seus esforços de mobilizaçom e no exercício do poder estatal.
Mas os movimentos nacionalistas descobrírom o inverso. De modo a mobilizarem e a
governarem efectivamente, eles tinham que considerar os interesses dos trabalhadores por
umha reestruturaçom igualitária. Quando os temas começárom a misturar-se, e as formas
organizativas diferenciadas tendêrom a desaparecer ou a fundir-se numha única estrutura, a
força dos movimentos anti-sistémicos –como entidade colectiva integrada mundialmente–
aumentou dramaticamente.

Umha das forças dos movimentos anti-sistémicos reside no facto de terem acedido ao
poder num largo número de Estados. Isto modificou a política corrente do sistema-mundo. Mas
esta força tem também sido umha fraqueza, já que os chamados regimes pós-revolucionários
continuárom a funcionar como parte integrante na divisom social do trabalho do capitalismo
histórico, Operárom assim, voluntariamente ou nom, sob a irresistível pressom para a
incessante acumulaçom de capitaI. As conseqüências políticas fôrom, internamente, a
continuaçom da exploraçom da força de trabalho, mesmo se de umha forma atenuada e
melhorada em muitos casos. Isto conduziu a tensons internas paralelas aquelas que se
encontram em Estados que nom som “pós-revolucionários” , criando condiçons para a
emergência de novos movimentos anti-sistémicos. A luita polo benefício económico tem sido
constante, tanto nestes Estados pós-revolucionários como em todo o lado, porque no seio da
economia-mundo capitalista os imperativos da acumulaçomoperárom em todo o sistema. As
mudanças na estrutura dos Estados alterárom a política de acumulaçom, mas nom fôrom ainda
capazes de lhe por fim.

No início deste capítulo, adiamos a resposta a umha questom: quam reais fôrom os
benefícios do capítalismo histórico? Quam consideráveis fôrom as melhorias na qualidade de
vida? Parece agora claro que nom há umha resposta sirnples. “Para quem?”, devemos
perguntar. O capitalismo histórico permitiu umha monumental criaçom de bens materiais, mas
também umha enorme polarizaçom das recompensas. Muitos beneficiárom enormemente, mas
muitos mais conhecêrom umha substancial reduçom do seu rendimento real e da sua
qualidade de vida. A polarizaçom foi também, é claro, espacial e, precisamente por isso, há a
ilusom de nom ter ocorrido em certas áreas. A geografia dos benefícios tem sofrido alteraçons
freqüentes, disfarçando assim a verdadeira natureza da polarizaçom. Mas em todo o espaço-
tempo do capitalismo histórico, a incessante acumulaçom de capital significou um incessante
alargamento deste fosso efectivo.
A VERDADE COMO ÓPIO: RACIONALIDADE E RACIONALIZAÇOM

O capitalismo histórico tem sido –sabemo-lo– prometaico nas suas aspiraçons, Embora,
historicamente, a mudança científica e técnica tenha sido umha constante da actividade
humana, foi apenas no capitalismo histórico que Prometeu, segundo David Landes, sempre
presente, pode ser “libertado” . A imagem colectiva básica que agora temos da cultura científica
do capitalismo histórico é a de que ela foi fundada por nobres cavaleiros contra a resistência
encarniçada das forças da cultura “tradicional” , nom-científica. No século xvIt, era Galileu
contra a Igreja; no século XX, é o “ modernizador” contra mullah. E, em todos os casos, diz-se
que foi a “racionalidade” contra a “superstiçom” e a “liberdade” contra a “opressom intelectual”
. Presume-se que isso foi paralelo (ou mesmo idêntico) à revolta, na arena da economia
política, do empresário burguês contra o aristocrata latifundiário.

Esta imagem básica de umha luita cultural, a escala mundial, tem como premissa oculta
a temporalidade. Presume-se que a “ modernidade” é temporalmente nova, enquanto a
“tradiçom” era temporalmente velha e anterior a modernidade. Na verdade, em certas versons
fortes deste imaginário, a tradiçom era a-histórica e, portanto, virtualmente eterna. Esta
premissa é historicamente falsa e, portanto, profundamente enganosa. As múltiplas culturas, as
múltiplas “tradiçons”, que florescêrom nas fronteiras espaqió-temporais do capitalismo histórico,
nom fôrom mais primordiais do que os seus múltiplos enquadramentos institucionais. Som, em
grande medida, umha criaçom do mundo moderno, e umha parte das suas
fundaçons ideológicas. Existírom, é claro, ligaçons entre as várias “tradiçons” e os grupos e
ideologias que precedêrom o capitalismo histórico, no sentido em que elas fôrom geralmente
erigidas a partir de materiais históricos e intelectuais pré-existentes. Além disso, a
afirmaçom dessas ligaçons trans-históricas desempenhou um papel importante na coesom de
certos grupos, nas suas luitas político-económicas dentro do capitalismo histórico. Mas se
quigermos compreender as formas culturais que estas luitas assumíom, nom podemos tomar
as “tradiçons” polo seu valor facial. Em particular, nom podemos assumir que as
“tradiçons” som, de facto, tradicionais.

Quem pretendia facilitar a acumulaçom de capital estava interessado em que a força de


trabalho fosse criada nos lugares certos, e mantida a níveis mínimos de remuneraçom. Já
assinalámos que os baixos níveis de remuneraçom, para actividades económicas periféricas na
economia-mundo, foram tornados possíveis pola criaçom de agregados em que o trabalho
assalariado desempenhava um papel secundário, enquanto fonte de rendimento. umha
maneira de criar tais agregados, isto é, de pressionar para que eles se estruturassem a si
próprios, foi a “etnicizaçom” da vida comunitária no capitalismo histórico. Por “grupos
étnicos” entendemos grupos numerosos de pessoas a quem estavam reservadas certas
ocupaçons/papéis económicos, vivendo em proximidade geográfica com outros grupos
similares. A simbolizaçom externa desta distribuiçom de tarefas laborais era a “cultura” distinta
dos grupos étnicos – a sua religiom, a sua língua, os seus “valores” e os seus padrons de
comportamento quotidiano.

Nom estou, obviamente, a sugerir que houvesse algo como um sistema de castas
perfeito no capitalismo histórico. Mas, considerando as categorias ocupacionais
suficientemente amplas, estou a sugerir que existe –e sempre existiu–, umha
correlaçom elevada entre etnicidade e ocupaçom/papel económico, nas várias zonas do
capitalismo histórico. Sugiro ainda que esta distribuiçom de tarefas laborais variou ao longo do
tempo, e que, quando variou, também variou a etnicidade –em termos de fronteiras e de
características culturais definidoras do grupo. Além disso, nom há qualquer correlaçom entre a
presente distribuiçom étnica das tarefas laborais e os padrons culturais dos supostos
antepassados dos actuais grupos étnicos, em períodos anteriores ao capitalismo histórico.

A etnicizaçom da força de trabalho, a escala mundial, tivo três conseqüências


importantes para o funcionamento da economia-mundo. Em primeiro lugar, tornou possível a
reproduçom da força de trabalho, nom no sentido de providenciar rendimento suficiente para a
sobrevivência dos grupos, mas no sentido de providenciar, a um número suficiente de
trabalhadores, em cada categoria, níveis apropriados de expectativas de rendimento, quer em
termos do seu montante total quer das formas que o rendimento doméstico tomaria. Além
disso, precisamente porque a força de trabalho estava etnicizada, a sua colocaçom era mais
flexível. A mobilidade ocupacional e geográfica em larga escala ficou facilitada pola etnicidade.
Sob a pressom de condiçons económicas em mutaçom, para alterar a distribuiçom da força de
trabalho, bastava que algum empresário tomasse a liderança no reposicionamento geográfico
ou ocupacional, sendo recompensado por isso. Tal reposicíonamento funcionava como um
impulso natural, levando a que os outros membros do grupo étnico mudassem a sua
localizaçom na economia-mundo.

Em segundo lugar, a etnicizaçom providenciou um mecanismo interno de treino da


força de trabalho, assegurando que umha grande parte da socializaçom de tarefas laborais
fosse feita dentro dos espaços domésticos etnicamente definidos, e nom a custa dos Estados
ou dos empregadores de força de trabalho.

Em terceiro lugar –e provavelmente o factor mais importante–, a etnicizaçom consolidou


a hierarquizaçom dos papéis ocupacionais/económicos, servindo como um guia de fácil leitura
para a distribuiçom de rendimentos, legitimada pola “ tradiçom”.
Este terceiro factor tivo múltiplas conseqüências, acabanda por constituir um dos pilares
mais importantes do capitalismo histórico: o racismo institucional. O significado deste racismo
tem pouco a ver com a xenofobia que existia em vários sistemas históricos anteriores. A
xenofobia era, literalmente, medo do “estranho” . O racismo, no capitalismo histórico, nom tem
nada a ver com “estranhos” . Bem polo contrário. O racismo foi o modo polo qual, dentro da
mesma estrutura económica, os vários segmentos da força de trabalho foram forçados a
relacionar-se uns com os outros. O racismo foi a justificaçom ideológica para a
hierarquizaçom da força de trabalho, assegurando umha distribuiçom de rendimentos
fortemente desigual. O racismo é o conjunto de postulados ideológicos, e de concomitantes
práticas consolidadas, que tivo como consequência a manutençom, ao longo do tempo, de
umha elevada correlaçom entre etnicidade e distribuiçom de tarefas, entre a força de trabalho.
Os postulados ideológicos assumiram a forma de alegaçons de que as características
genéticas e/ou “culturais” dos diversos grupos som a principal causa da diferenciaçom de
posiçons nas estruturas económicas. Todavia, a crença de que certos grupos eram
“superiores” a outros, em certas características relevantes para o desempenho económico,
apareceu sempre depois (e nom antes) da colocaçom desses grupos na hierarquia da força de
trabalho. O racismo foi sempre post hoc. Tem sido afirmado que aqueles que fôrom económica
e politicamente oprimidos som culturalmente “inferiores”. Se, por qualquer razom, os lugares na
hierarquia económica mudassem, os lugares na hierarquia social tenderiam a ajustar-se em
consonáncia (com algum atraso, é claro, já que demora sempre umha ou duas geraçons a
erradicar os efeitos de umha socializaçom prévia).

O racismo serviu como ideologia justificadora da desigualdade. Mas foi muito mais do
que isso. Serviu para socializar os grupos, levando-os a assumir o seu papel na economia. As
atitudes inculcadas (os preconceitos, o comportamento quotidiano, abertamente
discriminatório), servírom para que cada indivíduo, no seu próprio lar e no seu grupo étnico,
definisse os padrons de comportamento apropriados e legítimos, O racismo, tal como o
sexismo, funcionou como umha ideologia auto-limitadora, modelando as expectativas e
cerceando-as.

O racismo foi certamente nom apenas auto-limitador, mas também opressivo. Serviu
para manter na ordem os grupos subalternos, e para utilizar os grupos de posiçom média como
soldados Nom-pagos do sistema de polícia mundial. Deste modo, diminuíam acentuadamente
tanto os custos financeiros das estruturas políticas, como a capacidade dos grupos anti-
sistémicos para mobilizarem vastas populaçons, dado que, estruturalmente, o racismo colocava
vítimas contra vítimas.
O racismo nom era um fenómeno simples. Em certo sentido, havia umha linha divisória
básica a escala mundial, demarcando os estatutos relativos no sistema-mundo como um todo.
Era a linha da “cor”. A inclusom nas categorias de “ branco”, ou de estrato superior, tem sido, é
claro, um fenómeno social e nom psicológico, como parece evidente polas
posiçons historicamente variáveis que certos grupos (como europeus do Sul, árabes,
mestiços latino-americanos, e asiáticos orientais), ocupárom nas “linhas de cor” socialmente
definidas no mundo (e em cada país).

A cor (ou fisiologia), era umha marca facilmente utilizável, dado que é inerentemente
difícil de disfarçar. Foi este o critério utilizado, porque foi historícamente conveniente, dadas as
origens do capitalismo histórico na Europa. Mas, sempre que nom era conveniente, a cor foi
posta de lado ou substituída por outras características identificadoras. Em muitos locais, os
atributos de discriminaçom tornaram-se bastante complexos. Considerando o facto adicional de
que a divisom social do trabalho estava em constante evoluçom, a identificaçom étnico-racial
tornou-se umha base altamente instável para delinear as fronteiras dos grupos sociais
existentes. Os grupos formavam-se e desfaziam-se, mudando facilmente as suas auto-
definiçons (e eram facilmente percebidos por outros como tendo fronteiras diferentes). Mas a
volatilidade das fronteiras de qualquer grupo nom era incompatível com a persistência de umha
hierarquia dos grupos, isto é, da etnicizaçom da força de trabalho a escala mundial, sendo
mesmo, provavelmente, umha das suas funçons.

O racismo tem sido, assim, um pilar cultural do capitalismo histórico. A sua vacuidade
intelectual nom o impediu de desencadear terríveis crueldades. Contudo, nos últimos cinqüenta
a cem anos, devido à ascensom dos movimentos anti-sistémicos, a escala mundial, tem estado
recentemente sob ataque cerrado. Na verdade, o racismo hoje, nas suas variantes mais cruas,
sofre algumha deslegitimaçom a escala mundial. O racismo nom foi porém o único pilar
ideológico do capitalismo histórico. O racismo foi da maior importáncia na construçom e
reproduçom de forças de trabalho adequadas. A sua reproduçom, no entanto, era insuficiente
para assegurar a acumulaçom incessante de capital. Nom se podia esperar que as forças de
trabalho actuassem de forma eficaz e contínua, a nom ser que fossem dirigidas por quadros.
Por sua vez os quadros tiveram de ser criados, socializados, reproduzidos. A ideologia
primordial que operou na sua criaçom, socializaçom e reproduçom nom era a ideologia do
racismo. Era a do universalismo.

O universalismo é umha epistemologia. É um conjunto de crenças sobre o que é


cognoscível e como se pode conhecê-lo. A essência desta visom é a ideia de que existem
proposiçons gerais acerca do mundo –físico e social–, que som universal e permanentemente
verdadeiras, e que o objecto da ciência é a busca destas proposiçons gerais, de modo a
eliminar das suas formulaçons todos os elementos ditos subjectivos (isto é, todos os elementos
historicamente ancorados).

A crença no universalismo foi a pedra de toque na abóbada ideológica do capitalismo


histórico. Além de ser umha epistemologia, o universalismo é umha fé. Exige respeito e
reverência polo fenómeno da verdade (fenómeno ilusório, mas alegadamente real). As
universidades tem sido as oficinas da ideologia e também os templos da fé. A universidade de
Harvard exibe Veritas no seu brasom. Embora fosse comum afirmar que nom podemos
conhecer a verdade em definitivo – é isto que supostamente distingue a ciência moderna da
teologia medieval do Ocidente –, tornou-se também comum afirmar que a busca da verdade é
a razom de ser da universidade e, em sentido lato, de toda a actividade intelectual. Para
justificar a arte, Keats disse-nos que “a verdade é a beleza e a beleza é a verdade”. Nos
Estados Unidos, umha justificaçom política muito usada para legitimar as liberdades civis é a
de que a verdade apenas pode ser conhecida como resultado do jogo cruzado que existe no “
mercado livre das ideias”.

A verdade como ideal cultural funcionou como um ópio, talvez o único ópio verdadeiro
no mundo moderno. Karl Marx dixo que a religiom era o ópio das massas. Raymond Aron
retorquiu que as ideias de Marx eram, por sua vez, o ópio dos intelectuais. Há umha certa
perspicácia nestas duas estocadas polémicas. Mas haverá verdade onde há perspicácia?
Quereria aqui sugerir que o verdadeiro ópio talvez tenha sido a verdade, tanto a das massas
corno a dos intelectuais. Os ópios, é claro, nom som completamente maus, já que aliviam a
dor. Permitem as pessoas escapar as duras realidades, quando temem que o confronto com a
realidade apenas possa conduzir a umha perda inevitável, ou ao declínio. Apesar disso, muito
pouca gente recomenda os ópios. Nem Marx nem Raymond Aron o figérom. Na maioria dos
Estados, eles som legalmente interditos, para quase todas as finalidades.

A nossa educaçom colectiva ensinou-nos que a busca da verdade é umha virtude


desinteressada, quando de facto ela nom é mais do que umha racionalizaçom de interesses
próprios. A busca da verdade, proclamada como a pedra de toque do progresso (e portanto do
bem-estar), tem sido, no mínimo, consentanea com a manutençom de umha estrutura social
hierarquizada e desigual. Os processos envolvidos na expansom da economia-mundo
capitalista –a periferizaçom de estruturas económicas, a criaçom de estruturas estatais fracas,
condicionadas polo sistema inter-estatal–, implicárom um certo número de pressons ao nível
cultural: a proselitizaçom crista; a imposiçom de línguas europeias; a instruçom em certas
técnicas e costumes específicos; inúmeras alteraçons nos códigos legais. Muitas destas
mudanças foram feitas manu militari. Outras foram obtidas pola persuasom de “educadores”,
cuja autoridade era, em ííltima análise, apoiada pola força militar. É este o complexo conjunto
de processos que geralmente designamos de “ocidentalizaçom” (ou, ainda mais
arrogantemente, de “modernizaçom” ), e que foi legitimado polo desejo de partilhar, tanto dos
frutos como da fé na ideologia do universalismo.

Por detrás destas mudanças culturais impostas, havia dous motivos principais. Um era a
eficiência económica. Se se pretendia que certas pessoas desempenhassem determinados
papéis na arena económica, era necessário nom só ensinar-lhes as normas culturais
apropriadas, como também erradicar as normas culturais concorrentes. O segundo motivo tinha
a ver com a segurança política. Acreditava-se que, pola “ocidentalizaçom” , as elites das áreas
periféricas ficariam separadas das “massas” , e assim haveria umha menor probabilidade de se
revoltarem – ficando também menos aptas a apoiarem os promotores das revoltas, Isto
revelaria-se um monumental erro de cálculo, mas parecia entom plausível e, durante certo
tempo, funcionou bem. (Um terceiro motivo era umha hybris da parte dos conquistadores. Nom
quero polo de lado, mas nom é necessário invocá-lo para dar conta das pressons culturais, as
quais teriam sido igualmente fortes na sua ausência).

Enquanto o racismo serviu como mecanismo de controla mundial dos produtores


directos, o universalismo serviu para dirigir as actividades da burguesia de outros Estados, e
das classes médias de todo o mundo, para canais que maximizassem umha apertada
integracao dos processos produtivos, e o funcionamento pacífico do sistema inter-estatal,
facilitando assim a acumulaçom de capital. Isto requeria a criaçom de um quadro cultural
burguês mundial, que pudesse ser enxertado por variaçons “nacionais”, facto particularmente
importante, em termos de ciência e tecnologia, mas também no reino das ideias políticas e das
ciencias sociais.

O conceito de umha cultura “universal” neutra, na qual os quadros, na divisom mundial


do trabalho, seriam “assimilados” (o modo passivo é aqui importante), veio assim a tornar-se
um dos pilares da evoluçom histórica do sistema-mundo. A exaltaçom do progresso (e, mais
tarde, da modernizaçom), sintetizou este conjunto de ideias, que servírom mais como símbolos
de acatamento e integraçom nas camadas superiores mundiais do que como verdadeiras
normas de acçom social. A ruptura com as bases culturais e religiosas do conhecimento,
alegadamente estreitas, em favor de umha base supostamente transcultural e científica, serviu
como auto-justificaçom de umha forma de imperialismo particularmente perniciosa. Ela
dominou, em nome da libertaçom intelectual; ela impujo-se, em nome do cepticismo.

O processo de racionalizaçom, central no capitalismo, implicou a criaçom de um estrato


intermédio, constituído por especialistas em matéria de racionalizaçom, tais como
administradores, técnicos, cientistas e educadores. A própria complexidade, nom apenas da
tecnologia mas também do sistema social, tornou essencial que este estrato fosse amplo e se
expandixo com o tempo. Os fundos usados para o sustentar eram retirados da mais-valia
global, extraída polos empresários e polos Estados. Neste sentido elementar (mas
fundamental), estes quadros figérom parte da burguesia. A sua participaçom na partilha da
mais-valia obteve umha fórmula ideológica precisa no conceito de capital humano, forjado no
século XX. Tendo relativamente pouco capital real para transmitir como herança familiar, estes
quadros procurárom garantir a sua sucessom, obtendo para os seus filhos acesso preferencial
aos canais educativos que asseguram posiçom social. Este acesso preferencial foi
convenientemente apresentado como realizaçompessoal, supostamente legitimada por umha
“igualdade de oportunidades” de sentido restrito.

A cultura científica tornou-se assim o código fraternal dos acumuladores de capital no


mundo. Serviu, antes de mais, para justificar tanto as suas próprias actividades, como as
remuneraçons vantajosas de que desfrutavam. Promoveu a inovaçom tecnológica. Legitimou
umha eliminaçom drástica das barreiras a expansom da eficiência produtiva. Gerou umha
forma de progresso que, supostamente, seria de benefício para todos –se nom imediatamente,
polo menos a prazo.

A cultura científica era, porém, mais que umha mera racionalizaçom. Era umha forma de
socializaçom dos inúmeros quadros de todas as estruturas institucionais. Como linguagem
comum entre os quadros (mas nom entre os operários), tornou-se também um meio de consom
de classe para o estrato superior, limitando as possibilidades ou a extensom de actos
revoltosos, por parte dos quadros que poderiam a isso ser tentados. Além disso, era um
mecanismo flexível para a reproduçom destes quadros. Cobriu-se com o conceito hoje
conhecido por “meritocracia” , anteriormente “la carriere ouverte aux talents” . A cultura
científica criou um enquadramento que possibilitava a mobilidade individual, sem por em causa
a alocaçom hierárquica da força de trabalho. polo contrário, a meritocracia reforçou a
hierarquia. Finalmente, a meritocracia, como operaçom, e a cultura científica, como ideologia,
criárom véus que dificultárom a percepçom das operaçons subjacentes do capitalismo histórico.
A ênfase no carácter racional da actividade científica era a máscara para a irracionalidade da
acumulaçom incessante.

Universalismo e racismo podem parecer, à superfície, estranhos companheiros, se nom


mesmo doutrinas antagónicas –umha aberta, a outra fechada; umha igualizadora, a outra
polarizadora; umha convidando ao discurso racional, a outra encarnando o preconceito. No
entanto, como estas duas doutrinas se espalhárom e prevalecêrom concomitantemente com a
evoluçom do capitalismo histórico, devemos perscrutar os modos em que elas podam ter sido
compatíveis.
Havia a seguinte particularidade no universalismo: ele nom fijo carreira como umha
ideologia de circulaçom livre, já que era propagada por aqueles que detinham o poder político e
económico no sistema-mundo do capitalismo histórico. O universalismo foi oferecido ao mundo
como umha dádiva dos poderosos aos mais fracos. Timeo Danaos et dona ferentes! A dádiva,
ela própria, albergava o racismo, pois dava aos receptores duas opçons: aceitá-la, admitindo
assim que se estava num patamar inferior da hierarquia do saber estabelecido; recusar a
dádiva, privando-se assim de armas que poderiam servir para reverter a situaçom de poder real
desigual.

Nom é estranho que, mesmo os quadros que estavam a ser co-optados para
posiçons de privilégio fossem profundamente ambivalentes sobre a mensagem do
universalismo, vacilando entre a atitude de discípulo entusiástico e umha rejeiçom cultural,
causada pola repugnáncia em relaçom aos pressupostos racistas. Esta ambivalência era
expressa em múltiplos movimentos de renaissance cultural. A própria
palavra renaissance, amplamente usada em muitas zonas do globo, encarnava esta
ambivalência, Falando-se de renascimento, afirma-se umha era de antiga glória cultural, mas
também se reconhece a inferioridade cultural do momento. A palavra renascimento foi ela
própria copiada da história cultural específica da Europa.

Poderia-se pensar que, a escala mundial, os trabalhadores seriam mais imunes a esta
ambivalencia, já que nunca tinham sido convidados para cear a mesa dos senhores. De facto,
porém, as expressons políticas dos trabalhadores, dos movimentos anti-sistémicos, tem estado
profundamente imbuídas da mesma ambivalencia. Os movimentos anti-sistémicos, como já
sublinhámos, adoptaram a ideologia do Iluminismo, ela própria um dos principais produtos da
ideologia universalista. Deste modo, estes movimentos armárom a armadilha cultural em que
permanecêrom desde entom: procurárom minar o capitalismo histórico com estratégias e
objectivos de médio prazo, que derivavam das próprias “ ideias das classes dominantes” , que
eles tentavam destruir.

A variante socialista dos movimentos anti-sistémicos estava, desde o início,


comprometida com o progresso científico. Marx declarou que advogava o “socialismo científico”
, pretendendo distinguir-se de outros, que ele denunciou como “utópicos” . Os seus escritos
enfatizárom o carácter “progressivo” do capitalismo. A ideia de que o socialismo surgiria
primeiro nos países mais “avançados”, sugere um processo polo qual o socialismo cresceria a
partir do desenvolvimento do capitalismo, e em reacçom contra ele. Assim, a
revoluçom socialista, emularia e sucederia a “revoluçom burguesa” . Alguns teóricos
posteriores advogam mesmo a necessidade de os socialistas apoiarem a revoluçomburguesa
nos países em que ela ainda nom tivesse ocorrido.
As divergências posteriores, entre a Segunda e a Terceira Internacional, nom
envolvêrom desacordo quanto a esta epistemologia, que ambas partiIhavam. Na verdade, tanto
os social-democratas como os comunistas no poder tentárom dar grande prioridade ao
desenvolvimento dos meios de produçom. O slogan de Lenine “o comunismo é o poder
soviético mais a electrificaçom” , ainda recentemente era exibido em enormes dísticos, nas
ruas de Moscovo. umha vez no poder, estes movimentos –tanto social-democratas como
comunistas–, adoptárom os slogans de Estaline sobre “o socialismo num só país”, favorecendo
assim o processo de mercantilizaçom de tudo, essencial à acumulaçomglobal do capital. Dado
que permanecêrom ligados ao sistema inter-estatal – luitárom mesmo para permanecer nele
contra todas as tentativas para os expulsar–, eles aceitárom e promovêrom a realidade mundial
do domínio da lei do valor. O “homem socialista” assemelhava-se suspeitosamente a um
taylorismo exacerbado.

Houvo, é claro, ideologias “socialistas” que rejeitárom o universalismo do Iluminismo,


propondo diferentes modalidades “indígenas” de socialismo para as zonas periféricas na
economia-mundo. Dado que estas formulaçons eram mais do que mera retórica, elas pareciam
ser tentativas de substituir os novos espaços domésticos –a unidade-base do processo de
mercantilizaçom–, por entidades comunais mais vastas, que eram, argumentava-se, mais “
tradicionais” . Estas tentativas, mesmo quando sérias, revelárom-se quase sempre infrutíferas.
De qualquer modo, a maioria dos movimentos socialistas a escala mundial denunciava
geralmente estas tentativas como nom-socialistas, isto é, formas de um nacionalismo cultural
retrógrado.

À primeira vista, a modalidade nacionalista dos movimentos anti-sistémicos, dada a


centralidade das questons do separatismo, pareceu menos sensível à ideologia do
universalismo. Um olhar mais atento, porém, contraria esta impressom. É certo que o
nacionalismo tinha inevitavelmente umha componente cultural, com movimentos específicos a
advogarem o reforço das “tradiçons” nacionais, da língua nacional e, freqüentemente, da
herança religiosa. Mas seria o nacionalismo cultural um meio de resistência cultural às
pressons dos acumuladores de capital? De facto, dous dos elementos mais importantes do
nacionalismo cultural movêrom-se em direcçons opostas. Em primeiro lugar, o Estado, membro
do sistema inter-estatal, era geralmente a entidade escolhida como veículo promotor da cultura.
O Estado era freqüentemente investido de umha cultura “nacional” . Virtualmente em todos os
casos, isto acarretava distorsons (por vezes severas), das formaçons culturais. A afirmaçom da
cultura nacional, encaixotada num Estado, implicou inevitavelmente, em quase todos os casos,
a supressom das formaçons culturais. Sistematicamente, ela reforçou as estruturas do Estado
e, conseqüentemente, o sistema inter-estatal e o capitalismo histórico, enquanto sistema-
mundo.
Em segundo lugar, um olhar comparativo sobre as reformulaçons culturais de todos
estes Estados torna claro que, apesar de variarem na forma, tendêrom a ser idênticas em
conteúdo. Os morfemas das línguas diferírom, mas o léxico começou a convergir. Os rituais e
as teologias das religions do mundo podem ter sido revigorados, mas o seu conteúdo real
tornou-se menos diferenciado do que no passado. E o primado da cientificidade foi descoberto
sob muitos nomes diferentes. Em resumo, muito daquilo a que chamamos nacionalismo cultural
tem sido umha gigantesca charada. Mais ainda, o nacionalismo cultural, tal como a “cultura
socialista” , tem servido freqüentemente como bastiom da ideologia universalista do mundo
moderno, administrando-a aos trabalhadores, segundo formas que estes achárom mais
aceitáveis. Neste sentido, os movimentos anti-sistémicos servírom geralmente corno
intermediários culturais entre os poderosos e os fracos, viciando, em vez de cristalizar, as suas
raízes profundas de resistência.

As contradiçons inerentes aos movimentos anti-sistémicos, decorrentes da sua


estratégia de tomada do poder estatal e da sua tácita aceitaçom da epistemologia universalista,
tivérom sérias conseqüências para estes movimentos. Eles tivérom de lidar cada vez mais com
o fenómeno da desilusom, para o qual a sua principal resposta ideológica tem sido a
reafirmaçom da justificaçom central do capitalismo histórico: o carácter automático e inevitável
do progresso, ou, como era popular dizer-se na ex-U.R.S.S., da ”revoluçomcientífica e
tecnológica”.

Desde inícios do século XX e, com crescente veemência, desde os anos 60, o tema do
“projecto civilizacional” , como Anouar Abdel-Malek gosta de lhe chamar, começou a ganhar
força. Enquanto, para muitos, a nova linguagem das “alternativas endógenas” nom passa de
umha variante verbal dos velhos temas do nacionalismo cultural universalizante, outros vem
nesta concepçom um conteúdo epistemológico verdadeiramente novo. O “projecto
civilizacional” reabriu a questom sobre se a verdade trans-histórica existe realmente. Umha
forma de verdade, que reflectiu as realidades de poder e os imperativos económicos do
capitalismo histórico, floresceu e impregnou o mundo. Isso é verdade, como já vimos. Mas
como é que esta forma de verdade poderá esclarecer o processo de declínio deste sistema
histórico, ou a existência de alternativas históricas reais ao sistema histórico baseado na
incessante acumulaçom de capital? É aqui que reside a questom.

Esta nova forma fundamental de resistência cultural tem umha base material. As
sucessivas mobilizaçons dos movimentos anti-sistémicos, à escala mundial, fôrom recrutando
um número cada vez maior de elementos, económica e politicamente mais marginais ao
funcionamento do sistema, e menos susceptíveis de lucrar (ainda que eventualmente), com a
mais-valia acumulada. Ao mesmo tempo, as sucessivas desmitologizaçons destes movimentos
prejudicárom, elas próprias, a reproduçom da ideologia universalista no seu seio, e os
movimentos começárom assim a abrir-se a elementos que questionavam cada vez mais as
suas premissas. A partir de 1950, em comparaçom com o que era normal desde 1850, os
movimentos anti-sistémicos mundiais passárom a ser compostos por mais elementos de zonas
periféricas: mais mulheres, mais elementos de grupos “minoritários” (como quer que estes se
definam), e mais trabalhadores das secçons nom-qualificadas e mais mal remunerados. Esta
mutaçom ocorreu, tanto no mundo em geral, como em cada um dos Estados, tanto no conjunto
dos membros, como entre a liderança. Esta mutaçom na base social nom podia deixar de
alterar as predilecçonsideológico-culturais dos movimentos anti-sistémicos, a nível mundial.

Tentámos até aqui descrever como é que o capitalismo de facto funcionou, enquanto
sistema histórico. Os sistemas históricos, porém, som isso mesmo –históricos. Eles aparecem
e, eventualmente, desaparecem, como conseqüência de processos internos, nos quais a
exacerbaçom de contradiçons internas conduz a umha crise estrutural. As crises estruturais
som massivas, nom momentaneas. Elas levam tempo a manifestarem-se. O capitalismo
histórico entrou na sua crise estrutural nos começos do século XX e, provavelmente, assistirá
ao seu fim, como sistema histórico, algures no próximo século. O que se seguirá é ainda difícil
de prever. O que podemos fazer, desde já é analisar as dimensons da própria crise estrutural, e
tentar perceber em que direcçons a crise sistémica nos conduz. O primeiro aspecto desta crise,
e provavelmente o aspecto fundamental, é que estamos agora mais perto da
mercantilizaçom de tudo. Isto é, o capitalismo histórico está precisamente em crise, porque, na
prossecucao da incessante acumulaçom de capital, começa a aproximar-se daquele estado de
cousas que Adam Smith afirmou ser “natural” no homem, mas que, na verdade, nunca existiu
historicamente. A “propensom (da humanidade) para trocar, permutar e cambiar umha cousa
por outra” entrou em domínios e zonas previamente intocados, e a pressom para expandir a
mercantilizaçom sofre relativamente pouca oposiçom. Marx falou do mercado como sendo um
“véu” que oculta as relaçons sociais de produçom. Isto era apenas verdade no sentido em que,
em comparaçom com a apropriaçom local directa de mais-valia, a apropriaçom de mais-valia
no mercado indirecto (e, portanto, extra-local), era mais difícil de discernir e, portanto, de
combater politicamente polos trabalhadores de todo o mundo. Porém, em termos quantitativos,
o “mercado” operou através de umha medida geral –dinheiro–, e isto clarificou, em vez de
mistificar, tudo aquilo que estava a ser apropriado. Com base numha rede de
segurança política, os acumuladores de capital contavam que apenas parte do trabalho fosse
quantificado em dinheiro.

À medida que o trabalho se vai mercantilizando e que a gestom do agregado familiar


adquire um cunho vincadamente mercantil, o fluxo de mais-valia torna-se cada vez mais visível.
Em conseqüência, intensificárom-se as contra pressons políticas, enquanto a estrutura
económica se tornou, cada vez mais, o objecto directo da mobilizaçom social. Os
acumuladores de capital, em vez de tentarem acelerar a proletarizaçom, procuram retardá-la.
No entanto, nom conseguíram realizar integralmente este propósito, devido à contradiçom dos
seus próprios interesses, por serem, simultaneamente, empresários individuais e membros de
umha classe.

Isto é um processo contínuo, impossível de conter, enquanto a economia se basear na


incessante acumulaçom de capital. O sistema pode prolongar a sua longevidade, retardando
algumhas das actividades que o vam desgastando, mas a morte continua a aguardá-lo, algures
no horizonte. Umha forma de os acumuladores de capital prolongarem o sistema, foi impor-lhe
constrangimentos políticos, os quais forçárom os movimentos anti-sistémicos a seguir a via da
criaçom de organizaçons formais, visando a tomada do poder político. Eles nom tinham
qualquer alternativa, mas a estratégia era auto-limitadora.

Contudo, como vimos, as contradiçons desta estratégia criárom, elas próprias, umha
crise ao nível político. Nom se trata de umha crise do sistema inter-estatal, o qual continua a
funcionar muito bem, na sua missom primária de manter a hierarquia e conter os movimentos
de oposiçom. A crise política é a crise dos próprios movimentos anti-sistémicos. Com o atenuar
das diferenças entre movimentos socialistas e nacionalistas, e com a ascensom sucessiva
destes movimentos ao poder político (com todas as suas limitaçons), a generalidade destes
movimentos, a escala mundial, sentiu-se obrigada a reavaliar todas as suas devoçons,
decorrentes da análise originalmente feita no século XIX. Enquanto o sucesso dos
acumuladores criou umha excessiva mercantilizaçom, ameaçando o próprio sistema, o sucesso
dos movimentos anti-sistémicos na tomada do poder provocou um excessivo reforço do
sistema, desaconselhando a aceitaçom desta estratégia auto-limitadora, por parte dos
trabalhadores a nível mundial.

Finalmente, a crise é cultural. A crise dos movimentos anti-sistémicos, o questionamento


da sua estratégia básica, levou ao questionamento das premissas da ideologia universalista.
Isto aconteceu em duas arenas: nos movimentos, onde a busca de alternativas
“civilizacionais” é, pola primeira vez, levada a sério; e na vida intelectuaI, onde todo o aparelho,
erigido a partir do século XIV, está a ser lentamente posto em dúvida. Em parte, umha vez
mais, esta dúvida é o produto do seu próprio sucesso. Nas ciencias físicas, o próprio processo
de investigaçom, baseado no método científico moderno, parece por em causa a existência de
leis universais. Hoje em dia, há sugestons para inserir a “ temporalidade” nas ciencias. Nas
ciências sociais –em certo sentido um parente pobre, mas, a outro nível, a rainha (isto é, o
cume), das ciências–, o paradigma desenvolvimentista está a ser questionado na sua própria
essência.
A reabertura de problemas intelectuais é, pois, ao mesmo tempo, produto do sucesso e
das contradiçons internas. Mas é também o produto da pressom sobre os movimentos, eles
próprios em crise, para serem capazes de lidar (e luitar mais eficazmente), contra as estruturas
do capitalismo histórico, cuja crise é o ponto de partida de toda a actividade nova.

A crise do capitalismo histórico é freqüentemente descrita como umha transiçom do


capitalismo para o socialismo. Concordo com a fórmula, mas ela nom nos di muita cousa. Nom
sabemos ainda como irá funcionar umha ordem socialista, que seja capaz de reduzir
radicalmente as discrepáncias de bem-estar material e de poder real entre todas as pessoas.
Estados ou movimentos que se auto-proclamam socialistas oferecem pouca orientaçom para o
futuro. Som fenómenos do presente, isto é, do sistema-mundo do capitalismo histórico, e
devem ser avaliados dentro deste enquadramento, Como já indicámos, eles podem ser
agentes do fim do capitalismo, embora nom de um modo uniforme. Mas a ordem mundial do
futuro construirá-se devagar, segundo modalidades que dificilmente podemos imaginar, quanto
mais predizer. Por isso, a crença de que a ordem mundial futura será boa, ou apenas menos
má, é já de si umha profissom-de-fé. Quanto à actual, sabemos já que nom tem sido boa. E, à
medida que o capitalismo prosseguiu o seu rumo histórico, foi-se tornando, a meu ver –polo
seu próprio sucesso–, ainda pior, nom melhor.
CONCLUSOM: SOBRE O PROGRESSO E AS TRANSIÇONS

Se há umha ideia que caracteriza o mundo moderno, que é a sua pedra de toque, é a
ideia de progresso. Isto nom quer dizer que toda a gente acredite no progresso. No grande
debate ideológico entre conservadores e liberais, iniciado ainda antes da Revoluçom Francesa,
a essência da posiçom conservadora residia na dúvida de que as mudanças que ocorriam na
Europa e no mundo pudessem ser consideradas progresso, ou mesmo que o progresso
pudesse ser considerado um conceito relevante e significativo. Apesar disso, como sabemos,
fôrom os liberais que simbolizáram a época, e encarnárom o que se tornaria, no século XIX, a
ideologia dominante da economia-mundo capitalista (há muito existente).

Nom é surpreendente que os liberais acreditassem no progresso. A ideia de progresso


justificou toda a transiçom do feudalismo para o capitalismo. Ela justificou a quebra da
remanescente oposiçom a mercantilizaçom de tudo, e tendeu a subvalorizar os aspectos
negativos do capitalismo, com a justificaçom de que os benefícios ultrapassavam, de longe, os
prejuízos. Por conseguinte, nom surpreende que os liberais acreditassem no progresso.

O que é surpreendente é que os seus oponentes ideológicos, os marxistas –os anti-


liberais, os representantes das classes trabalhadoras oprimidas–, acreditassem no progresso,
polo menos com tanta paixom quanto os liberais. Sem dúvida, esta crença tinha para eles um
importante objectivo ideológico. Ela justificava as actividades do movimento socialista mundial,
com o argumento de que ele encarnava o rumo inevitável do desenvolvimento histórico. Além
disso, parecia muito inteligente abraçar esta ideologia, na medida em que ela usava as próprias
ideias da burguesia liberal para a confundir.

Havia infelizmente dous pequenos senons nesta aparentemente astuta (e certamente


entusiástica), profissom-de-fé secular no progresso. Enquanto a ideia de progresso justificava o
socialisrno, ela justificava igualmente o capitalismo. Nom se podiam cantar hossanas ao
proletariado sem antes tecer louvores a burguesia. Os famosos escritos de Marx sobre a Índia
oferecêrom ampla prova disto, como, aliás, também o próprio Manifesto Comunista. Por outro
lado, sendo o progresso medido de forma materialista (e poderiam os marxistas deixar de
assentar nisso?), a ideia de progresso podia ser utilizada –e tem-no sido, nos últimos cinqüenta
anos–, contra todas as “experiências socialistas” . Quem nom escuitou as condenaçons à ex-
U.R.S.S., com base no argumento de que o seu nível de vida é inferior ao dos E.U.A.? Além
disso, a despeito das bazófias de Krushchev, há poucas razons para acreditar que esta
disparidade deixará de existir dentro de cinqüenta anos.

A adopçom, polos marxistas, de um modelo evolucionista de progresso tem sido umha


enorme armadilha, como os socialistas, apenas recentemente, começárom a suspeitar. Esta
suspeita é, ela própria, um elemento da crise ideológica, que está associada a crise estrutural
geral da economia-mundo capitalista.

Pura e simplesmente, nom é verdade que o capitalismo, como sistema histórico, tenha
representado progresso, em relaçom com os vários sistemas históricos pré-existentes, que ele
destruiu ou transformou. Enquanto escrevo isto, eu próprio sinto o tremor que acompanha a
sensaçom de blasfémia. Eu temo a ira dos deuses, pois fum moldado na mesma forma
ideológica de todos os meus companheiros, e prestei adoraçom nos mesmos altares.

Umha das dificuldades na análise do progresso reside no carácter unilateral de todas as


medidas propostas. Diz-se que o progresso científico e tecnológico é inquestionável e
alucinante, o que é certamente verdade, em especial na medida em que a maioria do
conhecimento técnico é cumulativo. Mas nunca se discutiu seriamente sobre a quantidade de
conhecimento perdido, por via da vassourada mundial imposta pola ideologia universalista. Ou,
se o fazemos, categorizamos este conhecimento perdido como mera(?) sabedoria. No entanto,
ao simples nível técnico da produtividade agrícola, temos vindo a descobrir ultimamente que os
métodos de acçom humana abandonados há um século ou dous (um processo imposto polas
elites iluminadas sobre as massas atrasadas), necessitarn freqüentemente de ser reabilitados,
porque se verifica serem mais eficazes. Mais importante ainda, descobrimos nas próprias
“fronteiras” da ciência evoluída tentativas de reinserçom de premissas triunfantemente
afastadas há um século, ou mesmo há cinco séculos atrás.

Tem-se dito que o capitalismo histórico transformou o poder mecánico da humanidade.


Cada input de energia humana foi recompensado com out-puts sempre crescentes de
produtos, o que é também certamente verdade. Mas nom calculamos em que medida a
humanidade reduziu ou aumentou os inputs totais de energia, que as pessoas, individual ou
colectivamente, em toda a economia-mundo capitalista, fôrom chamadas a investir, seja por
unidade de tempo ou por ciclo de vida. Poderemos estar assim tam seguros de que o fardo, a
nível mundial, durante o capitalismo histórico, ficou menos pesado do que em sistemas
anteriores? Há muitas razons para duvidar disso, como o comprova a incorporaçom, polos
nossos superegos, da compulsom ao trabalho.

Tem-se dito que, em nengum outro sistema histórico, as pessoas tivérom condiçons de
vida tam confortáveis, ou tivérom um leque tam amplo de experiências de vida alternativas
como o que possuem no presente sistema. umha vez mais, esta afirmaçom soa a verdadeira. A
ela nos conduzem as comparaçons que regularmente fazemos com os modos de vida dos
nossos antecessores imediatos. E contudo, ao longo do século XX, tem surgido
sistematicamente diversas dúvidas neste domínio, como indicam as referências, agora
freqüentes, a “qualidade de vida”, e as preocupaçons crescentes com a anomia, a alienaçom e
as doenças mentais. Finalmente, tem-se dito que o capitalismo histórico trouxo urn aumento
maciço nas margens de segurança humana –contra acidentes, morte por perigos endémicos
(os quatro cavaleiros do Apocalipse), e contra a violência errática. umha vez mais, isto é
incontestável a umha pequena escala (apesar dos perigos recentemente descobertos da vida
urbana). Mas, mesmo até agora, será isto verdade a umha escala maior, mesmo omitindo a
espada de Dámocles da guerra nuclear?

É no mínimo pouco evidente que no mundo actual haja mais liberdade, igualdade e
fraternidade do que havia a mil anos atrás. Poderia-se possivelmente argumentar que a
verdade é o oposto. Nom procuro pintar como um idílio os mundos anteriores ao capitalismo
histórico, eram mundos de pouca liberdade, pouca igualdade e pouca fraternidade. A única
questom é se o capitalismo histórico representou progresso ou regressom nestes domínios.

Nom pretendo falar de umha medida comparativa de crueldade. Isto seria difícil de
discernir, um pouco lúgubre até, embora haja poucas razons para se ser entusiasta quanto aos
registos do capitalismo histórico nesta área. O mundo do século XX pode orgulhar-se de ter
exibido alguns talentos inusuais e refinados nestas artes antigas. Nem falo do galopante e
totalmente incrível desperdício social que decorre da competiçom pola incessante
acumulaçom de capital, um nível de desperdício que começa a tornar-se irreparável.

Prefiro basear a minha argumentaçom em consideraçons materiais, nom sobre o futuro


social, mas sobre o período histórico actual da economia-mundo capitalista. O argumento é
simples, ainda que ambicioso. Quero defender umha tese marxista, que os próprios marxistas
ortodoxos tendem a enterrar por vergonha: a tese do empobrecimento absoluto (e nom apenas
relativo), do proletariado.

Ouço já os sussurros amigáveis. “Certamente, nom pode estar a falar a sério; com
certeza quer dizer empobrecimento relativo... Nom está o trabalhador industrial muito melhor
hoje do que em 1800?” O trabalhador industriaI sim, ou polo menos muitos trabalhadores
industriais. Mas os trabalhadores industriais continuam a ser umha fracçomrelativamente
pequena da populaçom mundial. Umha maioria esmagadora das forças de trabalho no mundo,
que vivem em zonas rurais ou se movem entre estas e os bairros de lata urbanos, estam pior
que os seus antecessores de há cinco séculos atrás. Comem pior, e tem certamente umha
dieta menos equilibrada. Embora tenham maiores probabilidades de sobreviver ao primeiro ano
de vida (devido aos efeitos da higiene social promovida para proteger os privilegiados), duvido
que a esperança de vida da maioria da populaçom mundial à idade de um ano seja maior que
anteriormente; suspeito que a verdade é o oposto. Eles trabalham mais arduamente, sem
qualquer dúvida –mais horas por dia, por ano, por vida. E umha vez que fazem isto por umha
remuneraçom total inferior, a taxa de exploraçom subiu muito marcadamente.

Serám eles social e politicamente mais oprimidos, ou mais explorados


economicamente? Isto é mais difícil de analisar. Como Jack Goody umha vez disse, as ciências
sociais nom possuem euforímetros. A maioria das pessoas, nos sistemas históricos anteriores,
viviam em pequenas comunidades e possuíam formas de controlo social que decerto
constrangiam as escolhas humanas e a variabilidade social. Sem dúvida, muitos viram nisso
um fenómeno de opressom activa. Os outros, que estavam mais satisfeitos, pagárom polo seu
bem-estar com umha visom estreita das possibilidades humanas.

Como todos sabemos, a construçom do capitalismo histórico implicou umha constante


diminuiçom (e, por vezes, a total eliminaçom), do papel destas pequenas estruturas
comunitárias. Mas o que é que colocou em seu lugar? Em muitas áreas, e por longos períodos,
o papel das estruturas comunitárias foi assumido polas “ plantaçons” , isto é, polo controlo
opressivo de estru- turas político-económicas em larga escala, controladas por “ empresários” .
Das “ plantaçons” da economia-mundo capitalista –baseadas na escravatura, no trabalho
prisional, na partilha de colheitas (forçada ou contratual), ou no trabalho assalariado–
dificilmente se pode dizer que deram maior expressom a “individualidade” . As
“plantaçons” podem ser consideradas um modelo excepcionalmente eficaz de extracçom de
mais-valia. Sem dúvida, elas já existiam anteriormente, mas nunca antes tinham sido usadas
tam extensamente para a produçom agrícola –ao contrário das minas e da construçom de infra-
estruturas em larga escala, as quais, porém, envolveram de umha maneira geral, muito menos
pessoas, em termos globais.

Mesmo na ausência de umha determinada forma de controlo directo e autoritário da


actividade agrícola (aquilo que acabámos de etiquetar como “plantaçons” ), que substituísse as
anteriores e mais lassas estruturas comunitárias de controlo, a desintegraçom das estruturas
comunitárias, nas zonas rurais, nunca era vivida como umha “libertaçom”. Na verdade, ela era
sempre acompanhada (ou mesmo, freqüentemente, causada), por um controlo crescente, por
parte das estruturas estatais emergentes, as quais estavam cada vez menos dispostas a deixar
o produtor directo entregue aos seus processos de decisom autónomos e locais. Todo o
esforço foi no sentido de forçar um aumento do conteúdo de trabalho e da
especializaçom desta actividade laboral (o que, do ponto de vista do trabalhador, enfraqueceu
a sua posiçom negocial e aumentou o seu tédio).

E isto nom foi tudo. O capitalismo histórico desenvolveu um enquadramento ideológico


de humilhaçom opressiva, que nunca existiu anteriormente, e a que hoje chamamos sexismo e
racismo. Deixem-me ser claro: em sistemas históricos anteriores, como já notámos, tanto a
posiçom dominante do homem sobre a mulher como a xenofobia generalizada, eram comuns,
mesmo virtualmente universais. Mas, no capitalismo histórico, o sexismo era mais do que a
posiçom dominante do homem sobre a mulher, e o racismo mais do que a xenofobia
generalizada.

O sexismo era a relegaçom da mulher para o reino do trabalho nom produtivo,


duplamente humilhante, dado que o trabalho que lhes era exigido foi intensificado, e o trabalho
produtivo tornou-se, pola primeira vez na história humana, a base de legitimaçom de um
privilégio. Isto criou umha dupla amarra, que tem sido indissolúvel na economia-mundo
capitalista.

O racismo nom era o ódio ou opressom de um estrangeiro, de alguém exterior ao


sistema histórico. Polo contrário, o racismo era a estratificaçom da força de trabalho dentro do
sistema histórico, tendo como objectivo manter os grupos oprimidos dentro do sistema, e nom
expulsá-los. Ele serviu de justificaçom para a baixa remuneraçom do trabalho produtivo,
definindo o trabalho com a remuneraçom mais baixa como trabalho de menor qualidade. Como
isto aconteceu ex definitio, nenguma mudança na qualidade do trabalho poderia ter outra
consequência que nom a de mudar a forma da acusaçom. E contudo, a ideologia proclamou a
oferta de umha recompensa de mobilidade social para o esforçoindividual. Esta dupla amarra
era igualmente indissolúvel.

Tanto o sexismo como o racismo eram processos sociais, em que a “biologia” definia
posiçons. umha vez que a biologia era, em qualquer sentido imediato, socialmente imutável,
tínhamos umha estrutura que era socialmente criada, mas que nom estava sujeita ao
desmantelamento social. Isto, é claro, nom é inteiramente verdade. O que é verdade é que o
sexismo e o racismo nom podiam, (e nom podem), ser desmantelados, sem se desmantelar
todo o sistema histórico que os criou, e cujo funcionamento os manteve em momentos cruciais.

Assim, tanto em termos materiais como psíquicos (sexismo e racismo), houvo


empobrecimento absoluto. Em relaçom ao consumo do excedente social, isto implicou, é claro,
um “abismo” crescente entre o estrato superior, de dez a quinze por cento, e o resto da
populaçom. Esta nossa explicaçom para o aumento do abismo é corroborada em três factos.
Primeiro, a ideologia da meritocracia tem funcionado verdadeiramente, tornando possível umha
considerável mobilidade social, mesmo a mobilídade de grupos étnicos/ocupacionais
específicos da força de trabalho. Isto ocorreu, todavia, sem transformar significativamente as
estatísticas gerais da economia-mundo, já que a mobilidade individual (ou de subgrupo), foi
contrariada por um aumento da dimensom do estrato inferior, quer pola incorporaçom de novas
populaçons na economia-mundo, quer por taxas diferenciais de crescimento demográfico.

Umha segunda razom, que nos impede de ver este abismo crescente, é o facto de a
análise histórica e sociológica se ter concentrado naquilo que se tem passado nas classes
médias– isto é, nesses dez a quinze por cento da populaçom da economia-mundo, que
consumiam umha mais-valia superior a que produziam. Dentro deste segmento, tem havido, de
facto, umha aproximaçom relativamente dramática entre o topo (menos de um por cento da
populaçom), e as camadas verdadeiramente “médias” , ou quadros (o resto dos dez a quinze
por cento). Nos últimos séculos do capitalismo histórico, grande parte das políticas
“progressistas” resultárom numha paulatina diminuiçom da distribuiçomdesigual da mais-valia
mundial, no interior deste pequeno grupo que a tem partilhado. Os gritos de triunfo deste sector
“médio” , a propósito da reduçom da sua distanciaçom em relaçom ao um por cento da topo,
tem ajudado a ocultar a dimensom da abismo crescente entre eles e os restantes oitenta e
cinco por cento.

Finalmente, há umha terceira razom para que o fenómeno do abismo crescente nom
tenha sido central nas nossas discussons colectivas. É possível que, nos últimos dez a vinte
anos, sob a pressom da força colectiva dos movimentos anti-sistémicos mundiais –e a
aproximaçom das assimptotas económicas–, tenha havido umha reduçom da
polarizaçomabsoluta, embora nom da relativa. Mesmo isto deve ser afirmado cautelosamente,
e colocado no contexto dos cinco séculos de desenvolvimento histórico em que se verificou um
aumento da polarizaçom absoluta.

É crucial discutir as realidades que acompanhárom a ideologia do progresso, porque,


sem isso, nom podemos analisar inteligentemente as transiçons de um sistema histórico para
outro. A teoria do progresso evolucionário envolveu nom apenas a assunçom de que o sistema
posterior é melhor do que o anterior, mas também a assunçom de que um novo grupo
dominante substituiu um grupo dominante anterior. Assim, além de o capitalismo ser um
progresso sobre o feudalismo, este progressa era essencialmente adquirido polo triunfo –o
triunfo revolucionário–, da “burguesia” sobre a “aristocracia latifundiária” (ou “elementos
feudais”). Contudo, se o capitalismo nom era progressivo, que sentido terá o conceito de
revoluçom burguesa? Houvo umha única revoluçom hurguesa, ou ela surgiu de múltiplas
formas?

Já vimos que é errada a imagem do capitalismo histórico, como tendo surgido através do
derrube da aristocracia passadista por umha burguesia progressista. Em vez disso, umha
imagem mais correcta é a de que o capitalismo histórico foi criado por umha aristocracia
latifundiária, que se trans formou a si própria em burguesia, porque o velho sistema estava em
desintegraçom. Em vez de deixarem a desintegraçom continuar até um fim incerto, eles
mesmos se empenharam numha radical cirurgia estrutural, de modo a manterem e expandirem
significativamente a sua capacidade de explorar os produtores directos.

Se esta nova imagem está correcta, ela alterará radicalmente a nossa percepçom da
presente transiçom do capitalismo para o socialismo, da economia-mundo capitalista para
umha ordem-mundo social. Até agora, a “revoluçom proletária” tem sido modelada, mais ou
menos, a semelhança da “revoluçom burguesa” . Tal como os burgueses derrubárom a
aristocracia, também o proletariado derrubaria a burguesia. Esta analogia foi o conceito central
em que sempre se baseou a acçom estratégica do movimento socialista mundial.

Se nom existiu umha revoluçom burguesa, quererá isso dizer que nom houvo nem
haverá nunca umha revoluçom proletária? De maneira nengumha –pensámos nós–,
independentemente da forma (lógica ou empírica), como encaremos a questom. O que isso
quer dizer, contudo, é que devemos tratar a questom das transiçons de um modo diferente.
Primeiro devemos estabelecer a distinçom entre mudança por desintegraçom e
mudança controlada. É o que Samir Amin designou pola distinçom entre “decadência” e
“revoluçom” , entre o género de “decadência” que ele afirma ter ocorrido na queda do império
romano (e que, segundo ele, ocorre também agora), e essa mudança, muito mais controlada,
que ocorreu na passagem do feudalismo para o capitalismo.

Mas isto nom é tudo. É que, como acabámos de dizer, as mudanças controladas (as
“revoluçons” de Amin), nom som necessariamente “progressivas” . Deste modo, é necessário
distinguir entre o género de transformaçom estrutural, que deixa intacta (ou inclusive agudiza),
a realidade da exploraçom do trabalho, e um outro, que acabaria com este tipo de
exploraçom ou, polo menos, reduziria-a radicalmente. Isto significa que a questom política do
nosso tempo nom é a de saber se haverá ou nom umha transiçom do capitalismo histórico para
qualquer outra coisa, Isso é tam óbvio, quanto possamos estar certos de qualquer assunto. A
questom política do nosso tempo é a de saber se esta outra cousa –o resultado da transiçom–,
será, de um modo fundamental, moralrnente diferente do que temos agora. Se haverá
progresso, portanto.

O progresso nom é inevitável –estamos a luitar por ele. E a forma que esta luita está a
tomar nom é a do socialismo contra o capitalismo. É antes entre a transiçom para umha
sociedade relativamente livre de classes sociais e a transiçom para um novo modo de
produçom, baseado em classes (diferente do capitalismo histórico, mas nom necessariamente
melhor).
Para a burguesia mundial, a opçom nom é entre a manutençom do capitalismo histórico
e o suicídio. A sua opçom efectiva é entre, por um lado, umha posiçom “conservadora”, que
resultaria na contínua desintegraçom do sistema e, conseqüentemente, na sua
transformaçom numha ordem mundial ainda incerta, mas, provavelmente, mais igualitária; e,
por outro lado, umha tentativa arrojada de tomar o controlo do processo de transiçom, no qual a
burguesia, ela mesma, se revestiria de roupagens “socialistas” , tentando criar um sistema
histórico alternativo, que deixaria intacto o processo de exploraçom da força de trabalho
mundial, para benefício de umha minoria.

É à luz destas alternativas políticas reais, abertas a burguesia mundial, que devemos
avaliar a história, tanto do movimento socialista mundial, como dos Estados onde os partidos
socialistas chegárom ao poder, de umha forma ou de outra.

A primeira cousa a recordar, neste tipo de apreciaçons, é que o movimento socialista


mundial –na verdade, todos os tipos de movímentos anti-sistémicos, como todos os Estados
revolucionários e/ou socialistas –, foi, ele próprio, um produto integral do capitalismo histórico.
Ele nom era umha estrutura externa ao sistema histórico, mas um produto dos seus processos
internos. Assim, ele reflectiu todas as contradiçons e constrangimentos do sistema, Nom podia
(nem pode), ser de outro modo.

Os seus erros, as suas limitaçons, os seus efeitos negativos, fam parte do balanço do
capitalismo histórico, nom de um outro hipotético sistema histórico, de umha ordem socialista
mundial ainda inexistente. A intensidade da exploraçom do trabalho nos Estados
revolucionários e/ou socialistas, a negaçom de liberdades políticas, a persistência do sexismo e
do racismo, todos estes fenómenos tem muito mais a ver com o facto de estes Estados
continuarem a localizar-se em zonas periféricas e semi-periféricas da economia-mundo
capitalista, do que com propriedades peculiares a um novo sistema social. As poucas migalhas
que, no capitalismo histórico, sobrárom para as classes trabalhadoras, concentrárom-se
sempre em áreas centrais. Estas desproporçons ainda se mantenhem.

A avaliaçom, tanto dos movimentos anti-sistémicos como dos regimes que eles
ajudáram a criar, nom pode pois ser feita em termos das “sociedades justas” , que eles tenham
ou nom criado. Eles só podem ser correctamente avaliados, se inquirirmos sobre o seu
contributo, na luita mundial, para que a transiçom do capitalismo seja orientada para umha
ordem mundial socialista igualitária. Aqui, a contabilidade é necessariamente mais ambígua,
devido ao funcionamento dos próprios processos contraditórios. Todas as iniciativas positivas
provocaram conseqüências, tanto positivas como negativas. Cada enfraquecimento do sistema,
num dado sentido, fortalece-o noutros sentidos. Mas nom necessariamente em graus
equivalentes! Toda a questom reside nisto.

Nom há dúvida de que a maior contribuiçom dos movimentos anti-sistémicos ocorreu


nas suas fases de mobilizaçom. Organizando rebelions, transformando as consciências, eles
tem sido forças libertadoras; e a contribuiçom de cada movimento, neste domínio, tem-se
tornado maior com o tempo, graças aos mecanismos de retorno da aprendizagem histórica.

Quando esses movimentos assumiram o poder político em estruturas estatais, o seu


desempenho nom foi o melhor, porque as pressons (tanto de fora como de dentro dos próprios
movimentos), para que mudassem os seus propósitos anti-sistémicos, aumentaram
geometricamente. Apesar disso, isto nom significou um balanço totalmente negativo para tais
“reformismos” e “revisionismos” . Os movimentos no poder ficárom, de certo modo, prisioneiros
políticos da sua ideologia, e portanto sujeitos a pressom organizada dos produtores directos,
dentro do Estado revolucionário e dos movimentos anti-sistémicos fora dele.

O verdadeiro perigo surge precisamente agora, enquanto o desenvolvimento do


capitalismo histórico se aproxima da sua plenitude –a expansom contínua da
mercantilizaçom de tudo, a força crescente da pléiade mundial de movimentos anti-sistémicos,
a racionalizaçom continuada do pensamento humano. É esta plenitude do desenvolvimento
que poderá precipitar o colapso do sistema histórico, o qual tem florescido, precisamente,
porque a sua lógica tem sido realizada apenas parcialmente. E é precisamente no momento (e
porque) o sistema está em colapso, que a carruagem das forças de transiçom parecerá cada
vez mais atractiva e, conseqüentemente, o desenlace será cada vez menos certo. A luita pola
liberdade, igualdade e fraternidade é prolongada, camaradas, e o local da luita será, cada vez
mais, dentro da própria família mundial das forças anti-sistémicas.

O comunismo é utopia, isto é, lugar nengum. É o avatar de todas as nossas escatologias


religiosas: a vinda do Messias, a segunda vinda de Cristo, o nirvana. Nom é um projecto
histórico, mas umha mitologia corrente, O socialismo, polo contrário, é um sistema histórico
realizável, que pode um dia ser instaurado no mundo. Nom há interesse num “socialismo” que
reclama ser um momento “temporário” de transiçom para a Utopia, Há interesse apenas num
socialismo concretamente histórico que, enquanto sistema histórico, maximize a igualdade e a
equidade, aumente o controlo da humanidade sobre a sua própria vida (democracia), e liberte a
imaginaçom.

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