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Introdução
Gardwen
A história de Sacerdotes se passa no mundo de Gardwen. É por esse mundo e por toda a vida que nele habita
que muitas batalhas são travadas, desde o princípio dos tempos. Como deve ser, Gardwen é um mundo de equi-
líbrio, onde bem e mau obrigatoriamente existem lado a lado. E é para tentar manter este equilíbrio que surgem
os Sacerdotes.
Os Elementos da Vida
O mundo de Gardwen é completamente regido por três Elementos da vida. Três Elementos sem os quais Gard-
wen não existiria.
O primeiro deles é a Alma, que propicia toda a vida que habita o planeta, alma que está presente desde o menor
inseto ao maior dos dragões. É a Alma também que garante o ciclo da vida, onde o indivíduo nasce, morre e
aguarda o momento certo para reencarnar em um novo corpo.
O segundo Elemento é o Tempo, que garante a continuidade e a história de Gardwen. Tempo que traz mudan-
ças, que preserva um passado de grandes mistérios e reserva um futuro desconhecido. O Tempo é fundamental
para qualquer ciclo, pois marca o inicio e o fim de cada um deles.
E o último dos três Elementos da vida é a Magia, responsável pelos maiores poderes e mistérios que perduram
sobre a face do mundo.
Os Protetores
Juntos esses três Elementos vêm trazendo prosperidade à Gardwen ao longo dos séculos. Mas com o passar do
tempo, inclusive os Elementos da Vida precisaram de proteção, e foi nesse momento que nasceram os proteto-
res.
Cada Elemento escolheu, dentre os humanos, aqueles que julgou serem os portadores de capacidades e habili-
dades essenciais para a sua própria proteção. Esses humanos receberam o nome de protetores e foram abençoa-
dos com a magia de seus Elementos.
Cada protetor possui um colar, e é esse colar que lhes propicia poder. Sem este objeto, o protetor fica incapaci-
tado de usar magia do seu Elemento, sendo assim, um simples humano novamente. Mas esses colares não ser-
vem apenas como fonte de poder; ele também representa o protetor e o identifica dentro da hierarquia elemen-
tar, que vai desde o Aprendiz, o protetor mais simples ainda em treinamento, até o Guardião, o mais importante
e poderoso representante de um Elemento.
A cada nível de habilidade e conhecimento que um protetor atinge, ele ganha um novo pingente para seu colar
e, quanto mais pingentes, mais forte e sábio é o protetor. Com nove pingentes, o protetor ganha um novo colar e
sobe na hierarquia elementar.
Cada Elemento conta com um certo número de protetores e é neles que confia inteiramente a sua segurança e
também a de Gardwen.
Domínios de um Elemento
Cada um dos três Elementos tem os seus próprios Domínios, e é nesses Domínios que vivem os seus protetores.
É uma dimensão paralela à Gardwen, que não pode ser mapeada em nenhum lugar do mundo, pois não está
nele. A única forma de se chegar a um Domínio é se utilizando de portais mágicos, mas somente os protetores é
que podem usar esses portais.
Ainda há muita coisa a ser dita sobre Sacerdotes, muitas coisas a serem explicadas e reveladas, mas todas elas
serão trabalhadas e apresentadas no decorrer da história…
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Capítulo 1 – Ataque aos Domínios do Tempo
Parte 1
“Concentrar, bloquear e manter. Concentrar, bloquear e manter…”.
Há duas horas Mifitrin repete estas três palavras em pensamento. Analisa cada uma delas junto com o procedi-
mento necessário para atingi-las, assim como seu tutor lhe ensinou hoje.
Estamos nos Domínios do Tempo.
Tempo. Este é o primeiro Elemento da Vida aqui mencionado. É ele que determina o agora, o que foi e o que
será. É o Tempo que marca o inicio e o fim de cada ciclo e é também o que garante a continuidade de qualquer
coisa que exista sobre Gardwen, inclusive ela própria. Assim como os demais, o Tempo é um Elemento tão
poderoso quanto misterioso, e não é menos fundamental para Gardwen que os outros. Na verdade os três Ele-
mentos devem coexistir em harmonia para que o mundo e a vida que nele habita sejam preservados. Nem mes-
mo os seus protetores conhecem o verdadeiro potencial do poder que este Elemento pode lhes conceder e talvez
esse poder nem chegue a ser revelado nessa história. Talvez. Nem mesmo o destino já escrito garante o que irá
acontecer, pois o destino, assim como tudo que existe, está sujeito a transformações… transformações que in-
clusive o Tempo desconhece.
Mifitrin é uma Aprendiz do Tempo, com três ciclos de tempo de vida, sendo que cada ciclo equivale a cinco
anos. Em seu rosto triangular carrega olhos grandes e azuis, olhos que são ao mesmo tempo infantis e severos.
Tem um corpo alto, meio desengonçado, sem nenhum traço de delicadeza.
Apesar de seus quinze anos apenas, sua infância há muito tempo ficou pra trás, uma infância que lhe foi bru-
talmente arrancada quando se tornou uma protetora do Tempo, recebendo uma carga em seus ombros cujo peso
até mesmo ela desconhece. Ao menos por enquanto. Isso pode parecer cruel, e de fato o é, mas é a conduta de
todo e qualquer protetor. Mifitrin é obstinada em aprender sempre mais, cada dia mais, e sua capacidade de
superação é o que lhe garantirá um grande poder.
Ela criou para si mesma uma conduta e um modo de vida que a diferencia de qualquer outro Aprendiz. É muito
severa, principalmente consigo mesma, e tão orgulhosa que não se permite perder e desistir. Mas esse seu modo
de vida diferenciado também lhe trás sofrimento. Tanto sofrimento que já perdeu a conta do número de vezes
que se surpreendeu chorando, chorando sozinha. Sempre sozinha…
Ela pretende tornar-se uma Feiticeira do Tempo e seu tutor é o respeitado Mago do Tempo Morton. Mifitrin é
muito persistente e corajosa, mas sabe que terá problemas com o que Morton lhe ensinou hoje.
Somente protetores que tenham um colar do Tempo podem entrar nos Domínios do Tempo e manterem-se ali, e
Mifitrin sabe muito bem disso. Mas o que ela aprendeu hoje se refere exatamente a como levar alguém sem
colar e mantê-lo dentro dos Domínios do Tempo.
Primeiro deve concentrar-se em seu colar e na pessoa que pretende levar para os Domínios; a concentração é
fundamental para que se possa controlar corretamente o fluxo de poder necessário para a realização do feitiço.
Depois deve dizer algumas palavras em pensamento para bloquear o portal e assim impedir que a pessoa seja
expulsa dos Domínios e, por último, deve manter o portal bloqueado. Em teoria é extremamente fácil, mas Mi-
fitrin sempre teve problemas com a concentração. A concentração é o seu grande ponto fraco, e talvez continue
sendo por muitos anos.
Suas costas já estavam doendo, mas ela persistia com a postura reta de sempre. Sentia o chão de tijolos bem
trabalhados sobre o qual estava sentada há duas horas. Suas mãos repousavam sobre as pernas cruzadas e seus
olhos mantinham-se insistentemente fechados e assim ficariam até que Morton viesse ao seu encontro, assim
como costumava fazer e também dissera que faria hoje. Mas duas horas era tempo suficiente para que todo o
seu corpo, que continuava imóvel, começasse a se queixar de dor e cansaço, mas sua persistência era muito
maior que isso. Ficaria dias na mesma posição caso Morton se atrasasse, mas ela conhecia a pontualidade de
seu tutor. Morton não costumava dizer quanto tempo a deixaria meditando, mas sempre chegava no momento
ideal.
Ela, como muitos outros Aprendizes, está no Pátio da Antúnia, meditando sobre os ensinamentos recebidos.
Todos se sentam à volta da Antúnia, que é uma árvore de beleza incomparável (ao menos para os protetores do
Tempo), frondosa, com grandes galhos e folhas que emitem uma suave luz quando se escurece. Ela floresce no
começo de cada ciclo de tempo, de cinco em cinco anos, e então é feito um grande ritual em sua homenagem,
pois ela enche de coragem e esperança os corações dos protetores do Tempo. A Antúnia fica no centro do pátio,
num espaço de terra não muito grande no interior de uma mureta feita dos mesmos tijolos do chão sobre o qual
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Mifitrin estava sentada. O pátio fica numa pequena depressão exatamente no centro dos Domínios, e cinco
escadas sobem em direções opostas para a saída do pátio.
Os Aprendizes do Tempo ficam meditando até que escureça e as folhas se iluminem, e quando eles se retiram, o
Guardião do Tempo vem de seu palácio e usa o seu colar para realizar o feitiço da Antúnia. Isso é feito porque o
poder dos colares do Tempo é extraído da Antúnia e quando o feitiço não é realizado os colares enfraquecem.
Se o feitiço não for realizado por algum tempo, os colares definham e morrem.
Já fazia alguns minutos que a concentração de Mifitrin havia se evaporado sem que ela se desse conta. Seus
pensamentos vagavam por dias de treinamento, dias em que ela e Morton saíam dos Domínios do Tempo para
treinar, sob sol ou chuva. Era disso que ela gostava, da ação, da prática, e não da meditação e teoria. Na verdade
ela odiava a meditação ainda mais do que odiava as aulas teóricas de simbologia, mesmo reconhecendo que
ambas eram importantes para ela. Estava se lembrando de um dos dias em que ela e Morton treinaram um duelo
de protetores quando…
— Mifitrin! – chamou uma voz e ela abriu os olhos assustada. – Percebo por sua respiração que não está con-
centrada. Já dominou o feitiço que lhe ensinei?
Era Morton.
Ela encarou aqueles olhos azuis, muito mais intensos que os dela. Olhos que enxergavam além, olhos que lhe
passavam a impressão de que o seu dono soubesse mais dela que ela mesma. Aquele olhar de Morton era pene-
trante, quase como se conseguisse penetrar em sua mente e saber o que ela estava pensando. Isso apenas com o
olhar. Morton tinha a aparência de um verdadeiro Mago. Cabelos compridos e aquele olhar… suas vestes e os
adereços e símbolos que carregava também não deixavam mentir sobre ele. Aquele era, de fato, um dos proteto-
res mais respeitados e influentes de toda Gardwen, e alguém que, com certeza, merecia todo esse respeito. Mor-
ton era muito sábio, era a ele que muitos recorriam em busca de conselhos, inclusive os Guardiões dos três E-
lementos da Vida. A determinação que Mifitrin tinha, de certa forma, foi herdada do Mago, pois ela sempre se
espelhou nele, na pessoa tão importante que era seu tutor. Morton já tinha muitos anos de vida, talvez quase dez
vezes a idade de Mifitrin, ela não sabia ao certo, mas não havia nenhum traço sequer de velhice em seu rosto ou
seu corpo. Na verdade ali só eram visíveis a experiência e a sabedoria conquistadas durante toda uma vida. Essa
era uma dádiva do Tempo para os protetores, uma vida além das expectativas de um simples humano. Morton
pode perfeitamente ser muito mais velho que o mais antigo ancião de Gardwen, e mesmo assim carrega a força
e determinação de um jovem. Assim são os protetores.
— Sim senhor – Mifitrin respondeu a pergunta de seu tutor ficando em pé. Seu corpo agradeceu à mudança de
posição após duas horas sentada como uma estátua. – Analisei e memorizei todos os procedimentos.
— Bom, vamos ver. Aguarde um momento – dizendo isso Morton tocou seu colar sobre o peito e desapareceu
instantaneamente. Ali no Pátio da Antúnia é onde fica o portal que liga os Domínios do Tempo à Gardwen;
Morton havia usado o portal para sair dos Domínios, por isso havia desaparecido tão repentinamente. Mas Mifi-
trin não entendeu o que ele faria. Aprendizes como ela só podem sair dos Domínios com autorização de seus
tutores, por isso raramente os Aprendizes saem. Mas Mifitrin é uma exceção, pois Morton a treinou diferente do
modo como os outros são treinados. Freqüentemente Morton a treina fora dos Domínios, e a leva para lugares
incríveis. Mifitrin duvidava que qualquer Aprendiz, mesmo dentre os mais experientes, conhecesse Gardwen
como ela conhecia. Para os Aprendizes, o mundo lá fora é sinônimo de desejo. Um Aprendiz que sai dos Domí-
nios passa dias contando suas histórias para os colegas, e eles as ouvem com admiração, mas Mifitrin não liga-
va para elas, pois sabia que as histórias eram inventadas. E ela podia afirmar isso com certeza, pois ela sim po-
dia dizer que conhecia Gardwen; ao menos acreditava nisso.
Poucos segundos se passaram e Morton reapareceu no mesmo lugar em que estava antes, tão repentinamente
quanto desaparecera.
— Olhe Mifitrin – disse ele abrindo sua mão e lhe mostrando uma pedra. Ela tentou compreender o que a pedra
significava, mas não tardou em perceber que a pedra era simplesmente isso: uma pedra sem qualquer importân-
cia. – Esta pedra não pertence aos Domínios do Tempo, portanto será expulsa assim que eu me desconcentrar
dela. Vou contar até três e então anularei o feitiço que a mantém aqui. Mas você não deve permitir que ela seja
expulsa, está bem? – Mifitrin concordou com a cabeça, então Morton voltou a falar: – Prepare-se! Um… – Mi-
fitrin concentrou-se em seu colar e na pedra nas mãos de Morton. – Dois… – começou a enunciar mentalmente
as palavras para bloquear o portal. – Três! – exatamente nesse instante Mifitrin iniciou o feitiço para manter a
pedra dentro dos Domínios do Tempo. Ela sentiu uma magia se manifestar em torno da pedra para expulsá-la
dali e isso a desconcentrou, fazendo assim com que a pedra fosse praticamente expulsa. Ela olhou para a pedra
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e viu que os contornos dela estavam enfraquecendo e logo estava transparente. Significava que o feitiço não
foi forte o suficiente para manter a pedra ali e o portal não estava completamente fechado. A pedra não estava
nem dentro nem fora dos Domínios, e lá fora com certeza era possível ver os fracos contornos da pedra tam-
bém. Estava num meio termo, entre um e outro, oscilando entre as dimensões; hora lá, hora cá, mas nem com-
pletamente lá nem cá. Estava no meio termo.
Concentre-se Mifitrin, dizia ela para si mesma. Concentre-se!
Logo os contornos da pedra foram ficando cada vez mais fortes e em poucos segundos a pedra estava comple-
tamente ali.
— Consegui senhor – disse ela contente, embora exausta. O feitiço estava consumindo muita energia sua e isso
a enfraquecia. Não sabia que a prática era tão difícil.
— Não Mifitrin, você ainda não conseguiu – disse Morton contrariando-a. – Você concretizou apenas os dois
primeiros passos do feitiço, e agora vem a parte que julgo ser a mais difícil para você. A terceira parte do feitiço
requer concentração e, se você concentrou-se o bastante no primeiro passo, será fácil manter a pedra aqui mes-
mo que seus pensamentos não estejam completamente voltados para ela. Faça o seguinte: ataque-me com uma
esfera de energia.
— Mas se eu utilizar meu colar para outro propósito o primeiro feitiço não será interrompido? – perguntou Mi-
fitrin duvidando de que seria capaz de realizar o que seu tutor lhe ordenou.
— Os feitiços simultâneos são uma prática muito difícil – disse Morton – mas é uma das virtudes dos grandes
protetores. Se você se concentrou o suficiente durante o primeiro passo do feitiço para manter a pedra aqui,
poderá me atacar sem grandes dificuldades.
Mifitrin, sem acreditar que seria capaz, concentrou-se em seu colar e conjurou uma esfera de luz anil. Aquela
esfera representava um feitiço de ataque, uma simples acumulação de magia; é uma técnica fácil de aprender,
tanto que até mesmo Aprendizes conseguem dominá-la, mas são usadas inclusive em grandes batalhas; o poder
da esfera varia de acordo com quem a usa e com o quanto de energia que gasta com ela. É algo como um ataque
padrão.
Mifitrin concentrou-se em seu colar e passou a transformar a energia do seu corpo em magia, através do poder
de seu colar, e logo a seguir acumulou essa magia criada formando a esfera que pairou diante dela. Enquanto
criava a esfera, os contornos da pedra voltaram a enfraquecer, mas quando a esfera foi concluída os contornos
voltaram ao normal. Mais com um movimento de sua mão do que com o seu próprio pensamento, ao contrário
do que Morton exigia que ela fizesse, Mifitrin atirou a esfera contra seu tutor. Não houve explosão, pois a esfe-
ra sequer chegou a tocar Morton; ele a fez desaparecer apenas tocando-a com uma das mãos, dissipando-a no
ar, transformando-se em flocos de luz que voaram para longe como se fossem levados pelo vento.
Mifitrin alegrou-se ao realizar o que Morton lhe pediu, mas abaixou a cabeça e fechou os olhos, pois estava
completamente exausta. Por mais simples que fosse o feitiço, como este mesmo que fizera, era sempre muito
exaustivo ao fazê-lo pela primeira vez e Mifitrin sabia disso.
Enquanto recuperava o fôlego, Mifitrin ouviu Morton rindo, então ergueu a cabeça e olhou para ele. Morton
estava rindo porque seu colar estava brilhando e não tardou para que um pequeno objeto fosse materializado
desse brilho. Mifitrin sorriu, pois sabia o que aquilo significava. Já havia visto aquele brilho outras quatro vezes
antes.
— Parabéns Mifitrin – disse o Mago parando de rir e pegando o pequeno objeto que ainda flutuava a sua frente.
– Este é o teu quinto pingente de Aprendiz e é muito merecido, pois se esforçou bastante.
Sempre que os Aprendizes, ou qualquer outro protetor, atingem um novo nível de aprendizado e experiência,
eles ganham pingentes que são concedidos pelos colares de seus tutores. Mifitrin pegou o pingente e colocou-o
na pedra de safira do seu colar. Havia outros quatro pingentes no colar. Com mais quatro pingentes estaria a um
passo de tornar-se uma Feiticeira do Tempo, assim como sempre desejou.
— Obrigada, senhor Morton – Mifitrin agradeceu finalmente. – Se não fosse pelo senhor jamais haveria conse-
guido chegar até aqui.
— Não Mifitrin. Eu apenas lhe ofereci meus ensinamentos. A pessoa responsável por você ser quem é hoje é
você mesma. Você chegou até aqui pelo seu próprio esforço…
Neste instante chegou mais alguém no Pátio da Antúnia e interrompeu a conversa entre Morton e sua pupila.
Era Arkas, o Mensageiro do Tempo. Arkas era mais velho que Mifitrin, mas não muito. Era alguém de pouca
confiança em si próprio, Mifitrin já percebera, mas tão determinado quanto ela. Morton sempre demonstrou
uma confiança especial por Arkas e, sempre que precisava dos serviços de um Mensageiro, era a ele que Mor-
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Mas agora preciso que você pratique mais o feitiço para manter algo nos Domínios. Talvez você precise man-
ter alguém aqui hoje!
Morton colocou a mão sobre seu colar e mais uma vez desapareceu. Mifitrin ficou imaginado quem Morton
disse que ela manteria nos Domínios do Tempo. Pensou que fosse o Mestre da Alma que Morton chamou, mas
não fazia sentido. Com certeza ele seria mantido pelo colar do Mensageiro Arkas. Morton reapareceu e nova-
mente trazia algo nas mãos, mas desta vez eram três folhas de alguma árvore de fora dos Domínios.
— Senhor – começou Mifitrin assim que ele chegou. – Já sou capaz de manter objetos, mas creio que meu colar
não seja forte o suficiente para manter alguém nos Domínios. Não ainda, não com apenas um dia de treino.
— Não se preocupe com isso Mifitrin, apenas treine. Essas folhas são parte de um ser vivo, portanto será mais
difícil mantê-las. Como o tempo é curto, estarei manipulando o tempo para que ele não passe para nós dois.
Preciso resolver uns assuntos e não poderei ficar com você. Lancei um feitiço do Tempo nas folhas e, se você
falhar, ele será ativado e você terá tempo para recomeçar o seu feitiço antes que as folhas sejam expulsas.
Dizendo isso ele colocou a mão sobre seu colar. Duas faixas de luz anil foram expelidas do colar; uma delas
atingiu Mifitrin e a outra voltou a Morton. Tudo a volta ficou parado, inclusive os outros Aprendizes que ali
estavam, ainda meditando à volta da Antúnia. O tempo estava travado para todos e, enquanto Morton não en-
cerrasse o feitiço, não escureceria, pois o tempo continuaria parado. Ele fez sinal para ela iniciar o feitiço para
manter as folhas ali, então se retirou do Pátio da Antúnia deixando-a com seu novo treinamento.
Mifitrin passou a concentrar-se nas folhas. Realmente era muito mais difícil com as folhas do que com a pedra.
O feitiço falhou logo no segundo procedimento e, como Morton disse que ocorreria, o tempo travou para as
folhas, dando tempo para Mifitrin reiniciar o feitiço. Durante as quatro tentativas seguintes Mifitrin não passou
do segundo procedimento. Passou a concentrar-se mais, e tirou de sua mente todos os pensamentos. Logo con-
seguia chegar ao terceiro procedimento mantendo uma das três folhas. Ela treinou durante horas até que conse-
guisse manter as três folhas pelo tempo que quisesse. Agora sim havia dominado o feitiço com perfeição. Duvi-
dava que seu colar já tivesse poder para manter alguém nos Domínios, mas sentia que ela tinha esse poder.
De repente sentiu o colar esquentar-se em seu peito e se assustou, mas logo ouviu Morton comunicando-se tele-
paticamente com ela. Em sua mente, ele a pediu que fosse até o pé da escadaria do Templo das esferas, que fica
no topo da montanha Arguelse. Era uma das poucas montanhas dentro dos Domínios do Tempo, mas era a mai-
or de todas. Mifitrin levantou-se e obedeceu ao seu tutor, saindo do Pátio da Antúnia e deixando todos os outros
Aprendizes imóveis para trás.
Correu o mais rápido que pôde em direção à montanha, mesmo isso não sendo necessário já que o tempo conti-
nuava travado. Contornou as Ruínas Milenares (grandiosas construções que se interligavam e se sobrepunham
umas às outras, onde os protetores do Tempo tinham seus aposentos) e seguiu até a montanha mais alta que
havia ali. Enquanto corria, Mifitrin se chocava com aglomerações de flocos de luz que flutuavam no ar. Esses
flocos são vestígios de magia que não se dissolveram completamente e ficam vagando pelos Domínios. Por
haver tanta magia sendo realizada a todo instante dentro de um Domínio, os vestígios acabam não se dissolven-
do por completo e assumem a forma de flocos de luz que ficam vagando pelo ar até se dissolverem definitiva-
mente. Quando chegou ao pé de Arguelse, Morton já estava esperando por ela.
— Vamos Mifitrin – disse ele. – Temos que chegar ao templo rapidamente. Você precisa saber o que está acon-
tecendo, por isso lhe contarei no caminho.
Começaram a subir correndo pelos inúmeros degraus que davam voltas pela montanha, e Morton começou a
contar a Mifitrin o que estava ocorrendo.
— Escute-me com atenção Mifitrin. Há alguns anos, o Mestre da Alma Nai-Kalimuns e eu começamos a pes-
quisar sobre uma lenda que falava sobre uma espada. Lembra-se o que lhe ensinei sobre as lendas?
— Sim – respondeu Mifitrin prontamente. – Muitas delas são conhecimentos que antigos sábios transformaram
em lendas para que nunca fossem esquecidos. Transformados em lendas, muitos saberiam, mas poucos chegari-
am a pesquisá-las profundamente para se tirar alguma conclusão.
— Isso mesmo – Morton confirmou. – Alguns acontecimentos nos levaram a pesquisar sobre essa espada. A
lenda diz que essa espada “tira a vida da vida”. Chegamos à conclusão de que se trata da espada Kentairen, e
Nai-Kalimuns interpretou o trecho “tira a vida da vida” como se a espada fosse capaz de assassinar almas. Com
absoluta certeza ela é um artefato mágico perigosíssimo.
“A lenda não foi feita somente para dizer o quão perigosa é a espada Kentairen. Um trecho no final da lenda é
um código e, após tempo tentando decifrá-lo, finalmente conseguimos. O código revela onde e quando ela foi
vista pela última vez e, possivelmente, é onde está escondida. O problema é que, há algum tempo, descobrimos
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— NÃO!
Mas não havia nada que a Aprendiz pudesse fazer.
As fagulhas dispararam a toda velocidade contra Morton, mas ele permaneceu-se imóvel com os braços aber-
tos. Quando as fagulhas atingiram seu tutor, Mifitrin fechou os olhos, pois não queria ver Morton ferido. As
fagulhas atravessariam todo o corpo de Morton e, se alguma delas atingisse o coração, o ataque seria letal.
Quando Mifitrin abriu os olhos, porém, não viu Morton ferido. Ele continuava do mesmo jeito, imóvel, com os
braços abertos e um sorriso confiante estampado no rosto; nenhuma fagulha havia atravessado seu corpo. As
últimas fagulhas ainda continuavam atacando-o quando ela olhou, mas Mifitrin percebeu que elas se desinte-
gravam antes de atingirem o Mago, apesar de ele não estar fazendo nada para se proteger. Mifitrin tentou en-
tender o que aquilo significava, mas por mais que pensasse não conseguia encontrar uma resposta. Com certeza
Morton poderia se proteger daquelas fagulhas, mas ele não fez nada para isso, não realizou feitiço algum, se-
quer tocou seu colar.
Assim que todas as fagulhas se desintegraram, ela se preparou para ver qual seria o próximo ataque, mas ele
não aconteceu. Eles apenas ouviram uma gargalhada. Uma gargalhada insana que gelou o coração da Aprendiz.
No exato local de onde os ataques foram conjurados, um homem apareceu. Suas vestes anis e majestosas e seu
belo colar indicaram quem ele era. Ao vê-lo, Mifitrin colocou automaticamente a mão direita sobre seu colar,
abaixou a cabeça e se curvou. Era Mirundil, o Guardião do Tempo.
Após cessar sua gargalhada insana, Mirundil olhou para Morton e disse:
— Faça como sua Aprendiz, Mago do Tempo, curve-se para mim.
Sem dar ouvidos ao que Mirundil disse, Morton olhou para sua pupila e ordenou:
— Levante-se Mifitrin. Ele não é digno do seu respeito. Ele é o traidor!
Mifitrin ficou confusa. Lentamente ela se levantou, parecendo nem reparar no que fazia, olhando confusa de
Morton para Mirundil. O Guardião do Tempo é o protetor mais importante de todos os Domínios do Tempo. É
ele quem controla tudo ali dentro e lá fora que tenha relação com o Tempo. Se ele é o traidor, então está tudo
perdido, pois ninguém se compara aos poderes dele, nem mesmo Morton. Mifitrin não sabia o que fazer ou di-
zer, então continuou olhando do Mago para o Guardião.
— Saia da nossa frente Mirundil – ordenou Morton com um tom de voz autoritário.
O Guardião riu mais ainda.
— Acha que pode me dar ordens, Mago? – perguntou ele ironicamente, mas então acrescentou num tom amea-
çador, sibilante: – Ajoelhe-se aos meus pés e implore por perdão.
— Pela última vez ordeno que saia de nossa frente – disse Morton desafiando-o.
— E se eu não sair, vai me atacar? – desta vez ele riu mais ainda. Nenhum protetor pode atacar seu Guardião,
pois os colares não funcionam contra eles. Morton não poderia utilizar nenhum feitiço que causasse prejuízo à
Mirundil, quanto mais feri-lo. Aquela era uma batalha perdida. O Guardião era completamente invulnerável à
eles. Mirundil olhou profundamente nos olhos desafiadores de Morton, então se irritou e gritou: – NÃO SAIO!
Assistirei a sua morte aqui nesses degraus.
Morton deu um discreto sorriso, o que deixou Mirundil ainda mais irritado, então disse calmamente, num sus-
surro quase inaudível:
— Por que não me mata você mesmo? Vai se acovardar e chamar seus nove Cavaleiros?
Mifitrin ainda estava atrás de Morton, mas estava ficando cada vez mais nervosa. Morton estava provocando
Mirundil cada vez mais, e ela sabia que essa não era a coisa mais sábia a se fazer. Se Mirundil resolvesse atacar,
nenhum dos dois seria capaz de se defender. Os dois seriam mortos ali mesmo, pois com toda certeza era isso o
que Mirundil pretendia fazer: matá-los.
Acalme-se Mifitrin, a Aprendiz ouviu em sua mente. Era Morton, e ele estava se comunicando telepaticamente
com ela. Conversar através de telepatia era algo muito simples, mas exigia calma. Mirundil poderia ouvir a
conversa dos dois facilmente, mas Morton estava conseguindo deixá-lo irritado a ponto de nem perceber que os
dois estavam se comunicando. Então essa era a razão para Morton querer deixá-lo irritado, para que ele não
percebesse que o Mago e sua pupila estavam se comunicando telepaticamente. Mesmo em tal situação, Mifitrin
não conseguiu deixar de sentir orgulho pelo seu tutor.
— Você é um covarde Mirundil. Não é digno de seu colar – Morton continuou provocando-o, mas Mifitrin ten-
tava concentrar-se e manter-se calma para poder ouvir o que Morton pretendia dizer.
— Implore por perdão, Mago – disse Mirundil materializando novas fagulhas de luz anil, tão perfeitamente
afiadas quanto as anteriores – ou sua Aprendiz pode sofrer as conseqüências…
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A coisa mais lógica para Mirundil fazer agora era matar Mifitrin. Assim ninguém estaria mantendo Morton
ali e ele seria expulso, mas agora ele sabia que era impossível ferir a Aprendiz enquanto ela estivesse em posse
do colar do Mago. Mas apesar de tudo isso, a situação não deixava de ser cômica e Mirundil riu mais do que
antes. Morton estava sem colar, portanto sem condição de se defender ou de atacar. Sem seu colar, um protetor
é incapaz de usar a magia do seu Elemento.
— O que pretende fazer agora, Mago? Render-se e esperar pela morte? Ou ainda pretende me atacar? Sem o
seu colar está impedido de usar magia, portanto o máximo que poderá fazer é me dar um soco, isto é, se eu
permitir.
Mifitrin entrou em pânico. Mirundil estava certo. Agora que estava sem colar, nada podia impedir Morton de
atacar o Guardião, mas sem o colar não poderia utilizar feitiços do Tempo para atacar. Estava completamente
indefeso e inofensivo.
Mas desta vez foi Morton quem riu. Riu tão alto que o riso de Mirundil foi abafado, e o Guardião ficou confuso
pela atitude sem sentido de Morton.
— Pensa que sou tolo? – o Mago perguntou seriamente, embora ainda sorrisse. – Pensa que sou tolo como to-
dos vocês? Sou um protetor do Tempo, mas não me limitei aos ensinamentos oferecidos por ele. Fui além, mui-
to além.
Dizendo isso Morton levantou suas duas mãos para o alto e sobre elas surgiu uma grande esfera de luz. Não era
uma esfera anil, como a realizada pelos protetores do Tempo, era uma esfera branca. Morton não estava utili-
zando magia do Tempo, estava utilizando magia pura, coisa que Mifitrin nunca viu alguém fazer.
— A Magia é um dos três Elementos da vida – explicou Morton – portanto qualquer um pode utilizar magia
pura. Qualquer pessoa, mesmo que não seja um protetor, pode utilizar magia, embora seja uma técnica muito
difícil de ser aprendida. Eu nunca fui escravo do meu colar, nunca dependi exclusivamente dele, e, como você
pode ver agora, isso se provou muito útil.
Morton era capaz de usar magia pura! Mifitrin estava tão surpresa quanto Mirundil, mas ela sentia alegria, ao
contrário dele, que se frustrara com a nova revelação. Morton sempre tinha controle sobre a situação, por mais
desesperadora que fosse. Ele sempre tinha uma carta na manga, sempre estava um passo a frente.
Morton abaixou os braços e os apontou para Mirundil; a grande esfera de energia branca voou a toda velocida-
de contra o Guardião. Mirundil apenas tocou seu colar e ativou uma manipulação do tempo, e, tanto Morton
quanto seu ataque, ficaram imóveis, travados no tempo. Mirundil sorriu, mas inesperadamente o tempo voltou a
correr normalmente, e a esfera alva atingiu-o no peito, explodindo, jogando-o vários degraus acima com o seu
poder.
Ele levantou-se e olhou assustado para Morton. Como a sua manipulação foi cancelada?
— Como eu te disse antes – disse Morton calmamente – não sou tolo. Sabia que você manipularia o tempo a
seu favor e, por isso, antes de eu entregar o meu colar para Mifitrin, ativei um feitiço. Você estava tão confiante
de sua vitória e tão insano que nem percebeu. O feitiço que eu ativei impede que manipulações sejam feitas por
algum tempo, coisa de Mago, se é que você me entende. O que importa é que agora estamos lutando de igual
para igual.
Mirundil recuperou-se do golpe recebido. Em seu rosto Morton reconheceu toda a fúria que sentia por ele, toda
a fúria que foi obrigado a esconder nos últimos anos para não ser desmascarado. Já fazia alguns anos que Mi-
rundil estava ajudando o inimigo e, desde que Morton percebeu, passou a frustrar todos os seus planos em se-
gredo. Agora que as máscaras haviam caído, porém, Mirundil poderia fazer com o Mago tudo o que desejou ter
feito a muito tempo. Desafiando-o com o olhar, disse:
— Agora é a minha vez de atacar.
Ele tocou seu colar e conjurou dois jatos de luz anil. Os jatos dispararam, dando voltas graciosas pelo ar, mas
sempre retomando seu curso e seguindo contra Morton. O Mago esperou até que os jatos estivessem perto o
bastante e conjurou um espelho em suas mãos. Não era um espelho comum, era um espelho feito por magia
pura. Um espelho de luz branca e, ainda assim, maciço. Era como se fosse formado por luz sólida. Mirundil
soube o que Morton pretendia fazer, mas os jatos de luz estavam tão próximos do Mago que ele não teve tempo
de impedi-los; os jatos bateram no o espelho de Morton e foram refletidos de volta para ele. Mas com um sim-
ples aceno de mão, Mirundil fez com que os jatos se chocassem no ar e, após uma explosão, os dois desaparece-
ram. Haviam se consumido um ao outro.
Morton e Mirundil se encararam por algum tempo, estudando-se como dois inimigos mortais no combate final,
depois de longos anos. Finalmente estavam ali, frente a frente, e somente um sairia vitorioso. Tinha de ser as-
SacerdoteS
13
com medo de se desconcentrar do colar de Morton e por isso continuou correndo no escuro. E mais uma vez
estava chorando sem que tivesse percebido. Chorando sozinha, sempre sozinha.
Mifitrin olhou para baixo. Já fazia muito tempo que ela estava correndo. Ela não podia mais ver a batalha entre
Morton e Mirundil, pois a escadaria a conduziu para outro lado da montanha. Ela olhou para baixo e viu que já
estava bem à frente da metade da escadaria, então não faltava muito para chegar até o Templo das esferas. Mas
ela quase não conseguia mais correr, estava muito fraca. Tentava manter sua respiração ritmada, sob controle,
ignorando o suor que escorria por sua testa, ignorando a dor em suas pernas que logo se recusariam a continua-
rem correndo, ignorando que seu próprio coração estivesse batendo tão rápido quanto as asas de um beija-flor,
prestes a explodir em seu peito. Continuou correndo, ignorando seu desespero e ignorando que seus olhos con-
tinuassem derrubando lágrimas.
Enquanto olhava para baixo viu muitas luzes, que pareciam vir de outra batalha. Percebeu que a batalha era no
Pátio da Antúnia, onde supostamente havia Guerreiros do Tempo enfrentando os demônios que Mirundil trou-
xera para dentro dos Domínios. Mifitrin não sabia se os demônios eram fortes, mas se eles derrotassem os
Guerreiros lá embaixo, viriam diretamente ao encontro dela e, com a velocidade que ela corria, era bem prová-
vel que os demônios a alcançassem antes de ela chegar ao Templo das esferas. Se isso acontecesse, ela morreria
ali mesmo, na escadaria da montanha, pois não teria forças nem mesmo para lutar. Devido suas condições físi-
cas e emocionais no momento, lutar estava fora de cogitação.
— Separem-se Guerreiros – ordenava Mikerinus lá embaixo. Ele é um General do Tempo e neste momento está
comandando a batalha contra os demônios no Pátio da Antúnia. – Ataquem pelos lados para cercá-los.
Os demônios eram fortes e ágeis, mas isso era compensado quando os Guerreiros usavam o tempo a seu favor,
ficando ainda mais velozes que os demônios.
Mikerinus é um dos melhores forjadores dos Domínios do Tempo, por isso seus homens estavam usando umas
das melhores armas e armaduras dentre todos os Guerreiros do Tempo. As armaduras eram resistentes, mas sua
leveza era incrível. As armas eram enormes clavas que Mikerinus forjou com um dos mais nobres metais mági-
cos: o arkio. Com toda certeza esses eram uns dos melhores Guerreiros dos Domínios do Tempo, mas agora
eram os únicos ali. O Guardião Mirundil mandou todos os outros Guerreiros e Generais em missões longe dos
Domínios, pois sabia que se todos estivessem ali os demônios teriam menos chance de roubar a esfera do Tem-
po. Com exceção desses Guerreiros, havia somente os Guerreiros que faziam parte da segurança do Templo das
SacerdoteS
15
Mikerinus sacrificou todas as suas forças para derrotar os demônios, mas seu sacrifício foi em vão. Agora
apenas Morton e Mifitrin estavam entre os demônios e o Templo das esferas, e nenhum dos dois era capaz de
detê-los.
Perdão meu amigo. Não fui capaz de cumprir a última promessa que fiz a você…
Morton ainda lutava bravamente contra Mirundil, mas suas forças estavam chegando ao fim, pois sem o seu
colar não podia realizar feitiços para recuperar suas energias. Mirundil não estava usando nem metade do seu
verdadeiro poder, mas ainda assim Morton estava em desvantagem. Ele era capaz de realizar muitos feitiços
com magia pura, mas nenhum deles era tão poderoso quanto os feitiços do Tempo que seu colar lhe permitia
usar.
Um protetor do Tempo pode ter um leve controle sobre uma força da natureza, mas Mirundil, sendo o Guardião
do Tempo, conseguia ter controle sobre a tempestade. Nuvens negras se formaram sobre a montanha Arguelse e
logo uma grande tempestade caía. A chuva e o vento eram fortes, mas Morton ainda tinha que se proteger dos
raios que Mirundil lançava sobre ele. A batalha estava ficando cada vez pior para o lado do Mago, e Mirundil
contentava-se com seu desespero. O jogo já parecia perdido.
Enquanto criava uma barreira para se proteger de um raio, Mirundil disparou um feixe de luz anil contra Mor-
ton e ele foi atingido no peito, sendo jogado vários degraus abaixo. O Guardião caminhou lentamente até ele e
um relâmpago iluminou seu rosto, revelando um sorriso diabólico e um olhar completamente insano.
— Chegou o seu fim, Mago Morton – disse ele triunfante. – Me causou muitos problemas nos últimos anos,
mas agora não entrará mais no meu caminho. Mas não se preocupe, pois logo sua Aprendiz se juntará a você. Já
dei ordens para os nove Cavaleiros a matarem e, nesse momento, eles estão seguindo para o Templo das esfe-
ras, onde sei que a encontrarão.
Morton não podia acreditar no que Mirundil dizia. Tempos atrás ele foi um dos homens mais respeitáveis den-
tro dos Domínios do Tempo, e esse foi um dos motivos por ser escolhido como Guardião do Tempo. Não podia
acreditar que um homem pudesse arruinar-se tanto por dentro a ponto de mandar assassinar uma garota. Mifi-
trin era uma Aprendiz com apenas quinze anos; que perigo ela representa para o Guardião do Tempo? Mas ain-
da assim ele queria que a garota fosse morta, e agora Morton sabia que Mirundil foi completamente seduzido
por Mon, sabia que agora não havia limites para ele.
Mirundil tocou levemente seu colar e conjurou uma espada formada de luz anil. Lentamente colocou a ponta
afiada da espada no pescoço de Morton, que continuava caído na escadaria, então sussurrou:
— Você é apenas o primeiro de muitos, não se preocupe. Todos que forem contra mim serão contra o meu se-
nhor e terão o mesmo destino.
Ele recuou a espada alguns centímetros, apreciando o desespero no rosto do adversário; se preparou para cravá-
la de uma vez por todas no pescoço do Mago. Mas antes que fizesse isso, um mísero segundo antes que conse-
guisse eliminar o Mago, um abençoado segundo, uma esfera de luz anil foi disparada contra ele de alguns de-
graus abaixo. A esfera atingiu o peito de Mirundil, mas ele parecia não ter sofrido nada. Ele não pôde ver quem
o atacou, pois estava muito escuro, mas logo ele pôde ouvir passos subindo correndo pela escadaria. Pelo som
de passos pôde deduzir que eram duas pessoas que corriam ao seu encontro, duas pessoas que teria o prazer de
matar logo depois de acabar com Morton.
Mas logo outro ataque veio em sua direção, mas ele não era anil como um ataque do Tempo, era rubro. Mirun-
dil não teve tempo para se defender e foi atingido no peito. Morton esperava que Mirundil fosse jogado para
trás, mas ele ficou imóvel. Completamente imóvel!
— Morton – exclamou Arkas, o jovem Mensageiro do Tempo, estendendo uma mão trêmula e ajudando Mor-
ton a se levantar do chão. – Você está bem?
— Por muito pouco – respondeu Morton contente, abrindo um sincero sorriso. – Obrigado Arkas – e então o-
lhou para o homem que disparou o feitiço da Alma e disse: – Obrigado a você também, Kalimuns.
Mifitrin estava completamente exausta. Já fazia mais de uma hora que ela havia se separado de Morton, e por
mais que andasse não avistava o Templo das esferas. Sabia que o templo não devia estar longe, mas não sabia
se teria forças o suficiente para chegar até ele. Ainda se concentrava no feitiço para manter Morton, mas estava
muito cansada e com frio. Uma grande tempestade se formou de repente e Mifitrin temia que ela fosse resultado
Morton, Arkas e Nai-Kalimuns, o Mestre da Alma, deixaram o imóvel Mirundil para trás e subiram correndo os
degraus. Se Morton estivesse com seu colar poderia congelar o tempo e alcançar Mifitrin imediatamente, mas
Arkas não tinha forças para tanto. Ele era um ótimo Mensageiro, mas ainda assim inexperiente.
— O que fez a ele, Kalimuns? – perguntou Morton, referindo-se ao Guardião.
— Não se preocupe Morton – respondeu Nai-Kalimuns. – Apenas congelei sua alma. Em pouco tempo ele vol-
tará ao normal.
— Não me preocupo se ele está bem – disse Morton. – Estando vivo é que basta. O que quero saber é se ele
poderá dar ordens aos seus nove Cavaleiros, ou pior, se poderá trazer para dentro dos Domínios do Tempo o
grupo maior de demônios que se aproxima.
— Sinto te dizer Morton – respondeu Nai-Kalimuns – mas tenho certeza de que ele já deu ordens aos seus nove
Cavaleiros.
— Sim, isso eu sei – Morton respondeu, lembrando-se do que Mirundil lhe contou. – Os nove Cavaleiros já
estão atrás de Mifi… – ele iria dizer que os nove Cavaleiros estavam atrás de Mifitrin para matá-la, mas foi
então que se lembrou de algo óbvio. Mifitrin estava com o colar protetor e não poderia ser ferida, mas Mirundil
também sabia disso, então ele acrescentou: – Não, eu é que estou sendo caçado pelos nove Cavaleiros. Primeiro
Mirundil disse que mandou os Cavaleiros me matarem, depois disse que os mandou matar Mifitrin. Mas ele
sabe que Mifitrin não pode ser ferida, então creio que a segunda ordem nem tenha sido dada. Os Cavaleiros
ainda estão seguindo a primeira ordem…
Eles continuaram subindo pelos degraus enquanto pensavam, mas então Nai-Kalimuns continuou:
— E quanto a sua segunda preocupação, quanto ao fato de Mirundil poder trazer os outros demônios, acredito
que isso realmente seja possível. Não sei quanto tempo a alma dele ficará congelada, pois depende muito do
poder que ele tem, mas acredito que em menos de duas horas, quando aqueles demônios chegarem, Mirundil já
estará em condições de trazê-los para cá.
— Então por que não pegamos o colar dele? – perguntou Arkas como se fosse a coisa mais óbvia a se fazer.
— Não podemos fazer isso, Arkas – respondeu Morton de forma simples. – Sabe por que você não conseguiu
feri-lo quando lançou aquela esfera? Porque ele é o Guardião e nenhum protetor do Tempo pode feri-lo. Ele
nem chegou a sentir o seu ataque.
— Mas ainda assim poderíamos tê-lo matado – disse Arkas cheio de ódio. – Seria a morte dele em troca da vida
de muitos inocentes.
— Nenhum protetor é treinado para matar, Arkas – respondeu Morton repreendendo-o de forma um tanto quan-
to severa, mas ainda assim num tom de quem está ensinando algo importante – e você deve saber disso. Só po-
demos matar quando não há outra coisa a se fazer. E além do mais, não poderíamos tê-lo matado nem que qui-
séssemos. Quando um Guardião fica incapacitado de lutar, um feitiço automático é ativado, criando um escudo
de proteção invisível em torno dele. Ninguém pode fazer mal a ele enquanto ele estiver incapacitado de se de-
fender, nem ao menos roubar seu colar.
De repente Morton parou de correr e os outros dois também pararam. Nai-Kalimuns ia perguntar o motivo, mas
usou suas habilidades de Mestre e viu esse pensamento de Morton facilmente, então ficou quieto. Morton olhou
atentamente para Arkas, o jovem Mensageiro em quem sempre acreditou e estimou, então fez sua pergunta:
— Você sabe o que estamos fazendo, Arkas? Sabe para onde estamos indo e sabe o que enfrentaremos?
— Não senhor – respondeu Arkas prontamente. – Não sei exatamente o que estão fazendo, mas sei que estão
indo para o Templo das esferas para enfrentar os demônios que avistei.
— Então sabe o perigo que está correndo – disse Morton. – Ainda assim quer ir?
Arkas encarou aqueles olhos tremendamente azuis, penetrantes. Estava com medo, muito medo. Teria dito que
não, era a resposta mais lógica. Tinha que dizer não… mas não disse. Não conseguia dizer não quando estava
encarando aqueles olhos, não para a pessoa que sempre acreditou nele.
— Sim senhor – respondeu após meditar brevemente, mal acreditando no que dizia. – A guarda do templo está
com apenas sete Guerreiros e sei que eles não poderão deter os demônios. Não sei o quanto posso ajudar, mas
vou dar o máximo de mim.
Morton não disse nada. Apenas sorriu e voltaram a correr. Precisavam encontrar Mifitrin…
SacerdoteS
17
Capítulo 1 – Ataque aos Domínios do Tempo
Parte 2
A chuva e o vento batiam fortes contra o rosto de Mifitrin. Não era uma chuva normal; ela foi gerada pelos po-
deres de Mirundil, poderes que ele tem sobre as forças da natureza. Sobre a tempestade. Mas a chuva estava
enfraquecendo, assim como o vento; a batalha havia acabado. De um jeito ou de outro a luta entre Morton e
Mirundil havia acabado. De um jeito ou de outro…
Ela torcia para que Morton ainda estivesse vivo. Torcia para que seu tutor tivesse conseguido, embora muito
duvidasse, derrotar o Guardião do Tempo. Ela precisava acreditar nisso com todas as suas forças, precisava
realmente acreditar nisso. Se não fosse pelo pensamento de que Morton logo viria ao seu encontro, Mifitrin não
conseguiria mais. Não agüentaria. Iria parar de correr pela escadaria aparentemente infinita e sentar-se em um
de seus degraus. Então iria chorar. Passar horas chorando. Sozinha. Mais uma vez sozinha. Como sempre…
Mas apesar de tudo, ela alegrou-se ao avistar altos e decorados pilares de pedra no fim da escadaria. Passou
entre dois deles e avistou o Templo das esferas. Finalmente. Era grande e belo, no meio de frondosas árvores
tão grandes quanto ele. Era todo feito de pedra bruta, cheio de detalhes, e tão cumprido que corria para a outra
extremidade da montanha Arguelse, onde estava o precipício que seria tão lembrado por Mifitrin durante os
anos seguintes. Uma enorme e reforçada porta de carvalho de duas folhas, em estilo medieval, estava fechada, e
sete homens estavam postados a frente dela. Aquela era a proteção que o templo dispunha neste momento, uma
proteção reduzida propositalmente por Mirundil, que contava com apenas sete Guerreiros. Nenhum General.
Mifitrin caminhou até eles com suas últimas forças, mal podendo manter-se em pé. Antes de chegar aos Guer-
reiros ela cambaleou e caiu de joelhos, então um dos homens correu para ajudá-la. Ela estava trêmula de frio e
toda molhada por conta da tempestade criada pelo Guardião na montanha Arguelse. O Guerreiro logo percebeu
como ela estava debilitada, mas não pôde deixar de cumprir com a sua obrigação:
— O que deseja aqui, Aprendiz? – o Guerreiro perguntou apiedando-se da garota. Sua voz era firme, quase cru-
el, mas Mifitrin não deixou de reconhecer a bondade oculta nela.
Reuniu suas últimas forças para falar:
— Preciso falar imediatamente com Tarandil, Protetor das esferas – sua voz estava fraca, quase como um sus-
surro inaudível. Realmente o feitiço para manter seu tutor, sem colar, nos Domínios do Tempo estava exigindo
muito de suas forças.
— Não posso permitir – disse o Guerreiro com a mesma firmeza na voz. – Se deseja falar com Tarandil deve
ser algo importante, mas ele é que deve vir até você. Não posso permitir que entre no templo…
— Vim em nome do Mago Morton – ela interrompeu. Morton é muito influente e Mifitrin sabe que pode usar
isso ao seu favor. Realmente ser Aprendiz de um dos protetores mais importantes dos últimos tempos valia um
pouco de crédito. Infelizmente isso não funcionou com a guarda do templo.
— Sinto muito – o Guerreiro disse – mas não posso confiar em uma Aprendiz. Não que eu duvide de você, mas
você não tem autorização. Eu cumpro ordens. Não posso permitir que você entre no templo…
O braço direito de Mifitrin estava sendo segurado pelo Guerreiro, que a ajudava a se manter ao menos ajoelha-
da, mas a mão esquerda estava livre e ela a levou para baixo de suas vestes, sob pescoço. De lá puxou o colar de
Morton que ali estava oculto, então não precisou falar mais nada. Os olhos do Guerreiro brilharam de surpresa
ao analisarem o segundo dos dois colares que havia no peito da garota. O primeiro era o seu legítimo colar, de
Aprendiz, mas o segundo era inconfundível. Realmente pertencia a um Mago do Tempo.
— ABRAM A PORTA! – o Guerreiro gritou virando-se para seus companheiros com incrível velocidade, qua-
se sem hesitar dois segundos sequer. – Esta Aprendiz vem em nome de Morton!
Os outros Guerreiros hesitaram ainda menos. Com certeza todos eles deveriam estar seguindo as ordens daquele
que ajudara Mifitrin a se levantar. Três Guerreiros de um lado da porta. Três do outro. Unindo suas forças eles
tiraram a pesada trava que mantinha a porta fechada pelo lado de fora. Colocaram a trava a um lado e então
empurraram as duas folhas da porta, que se abriram para dentro, cada uma das folhas para um lado. Então fica-
ram em posição, imóveis, permitindo a entrada de Mifitrin.
Apoiando-se no homem ao seu lado, Mifitrin conseguiu ficar em pé, então seguiu a passos cambaleantes, sem-
pre sendo amparada pelo Guerreiro. Juntos avançaram por uma calçada de tijolos que seguia desde o final da
escadaria até o templo, onde havia outra escada de poucos degraus que finalmente dava acesso ao interior dele.
Mifitrin e o Guerreiro subiram pelos sete ou oito degraus, avançaram mais alguns passos e finalmente adentra-
ram o templo. Finalmente…
Ataque aos Domínios do Tempo
18
Após terem se afastado alguns passos da porta de carvalho, os seis Guerreiros que continuavam do lado de fora
do templo voltaram a fechar a porta. Mifitrin ouviu o pesado baque quando a trava voltou a ser colocada em seu
devido lugar. Estavam presos ali dentro. Ela reparou que do lado de dentro também havia suportes para se tran-
car a porta por aquele lado. Imaginou se a porta seria o bastante para manter os demônios afastados dela, mas
então se lembrou da dor que sentiu quando Mirundil os trouxe para dentro dos Domínios do Tempo e também
da expressão de medo e preocupação que Morton trazia em seu rosto desde o fim daquela tarde. Definitivamen-
te a porta não seria o bastante.
Mifitrin olhou para frente e, ainda sendo sustentada em pé pelo Guerreiro, olhou à sua volta. Já conhecia o lu-
gar, é claro. Estivera ali com Morton em outras oportunidades, embora fossem poucas. Mas gostava do lugar.
Estavam em um grande salão, prazerosamente quente. O chão era decorado por grandes peças de mármore re-
cortadas que traziam as cores branco e azul, e formavam figuras simétricas por toda a extensão do salão. Há dez
metros de altura, talvez menos, talvez mais, havia grandes mosaicos de vidro colorido distribuídos por toda a
parede, de ambos os lados. Durante o dia a claridade de fora passaria pelos vidros coloridos e mergulhariam o
grande salão em meio a luzes de todas as cores, mas agora era noite. Nenhuma luz vinha do lado de fora. O
salão era completamente iluminado por dezenas de archotes acesos nas paredes, um entre cada dois mosaicos
de vidro, e no teto havia grandes e magníficos candelabros acesos.
Com a cabeça baixa, Mifitrin viu seu reflexo no chão lustroso, um reflexo que dançava com a luz bruxuleante
das velas acesas. Então levantou a cabeça e olhou para o ponto extremo oposto do salão, o lugar que mais des-
pertava sua curiosidade. O que havia lá era algo simples, longe de chamar a atenção. Uma segunda porta de
carvalho, tão grande quanto a primeira. Mas não era a porta que tanto intrigava Mifitrin, era o que estava do
outro lado dela. O que havia lá? Mifitrin não sabia. Jamais atravessou a segunda porta. Logicamente as esferas
do tempo estavam guardadas lá, mas como era o lugar? Que aparência teria o recinto onde Tarandil, o Protetor
das esferas, passava dias sem sair? Que aparência teria o lugar que preservava todo o passado de Gardwen reti-
do em pequenas esferas de vidro? Isso era um mistério para Mifitrin, assim como para tantos outros dentro dos
Domínios do Tempo. Mas hoje ela irá descobrir, embora desejasse verdadeiramente que nada disso estivesse
acontecendo.
O Guerreiro que estava ajudando Mifitrin tocou levemente seu colar e ela percebeu que ele devia estar chaman-
do telepaticamente por alguém que estava do outro lado da porta. Um minuto depois a porta de carvalho abriu-
se e uma mulher saiu por ela, voltando a fechar a porta assim que passou. A mulher devia ter a mesma idade de
Arkas, o Mensageiro, mais ou menos um ciclo de Tempo a mais que Mifitrin. Quando a mulher se aproximou,
Mifitrin contentou-se, pois percebeu que a mulher era uma Feiticeira do Tempo, e assim poderia regenerar suas
forças.
— Por favor, Ivin – pediu o Guerreiro que estava com Mifitrin. A firmeza em sua voz continuava, mas a cruel-
dade com que se dirigiu a Mifitrin inicialmente havia morrido assim que ele colocou os olhos do colar de Mor-
ton. Estava mais agradável agora, mais amável, e ela ficava grata por isso. – Esta Aprendiz está muito fraca…
— Sim, Randus – a Feiticeira disse ao Guerreiro, fazendo um gesto de compreensão com a cabeça. Ivin, como
Randus a chamara, levou a mão direita ao colar que ficava sobre o peito seminu. Ivin usava as típicas vestes
sensuais de uma Feiticeira, como era de costume. Ao tocar seu colar uma energia quente de cor anil saiu dele e
envolveu o corpo de Mifitrin. Ivin estava usando um feitiço de regeneração na Aprendiz e ela sentiu seu corpo
encher-se de energia novamente. O frio e o cansaço passaram e Mifitrin pôde ficar em pé sozinha.
— Obrigada – ela agradeceu. Mas tão logo quanto sua energia retornou, assim também aconteceu com sua de-
terminação em cumprir a missão que Morton lhe incumbiu – Mas preciso ver Tarandil imediatamente!
— Já o chamei – disse o Guerreiro que agora Mifitrin sabia se chamar Randus. – Ele está vindo nos encontrar.
Poucos segundos se passaram e a segunda porta de carvalho voltou a se abrir. Por ela passou um homem alto e
forte. Mifitrin decepcionou-se ao ver que não era Tarandil, e sim um dos Cavaleiros do Guardião. Era Kathei-
los, o Cavaleiro-Líder, aquele que seguia exclusivamente as ordens de Mirundil. Ele usava sua bela armadura
real, indicando que ele era o principal responsável pela segurança do Guardião do Tempo. Ele era Katheilos, o
respeitado Cavaleiro-Líder. O melhor entre os nove. O mais forte entre os nove. E também o mais importante
entre os nove. Mifitrin sempre apreciou as habilidades de Katheilos, um exímio Cavaleiro de habilidades ímpa-
SacerdoteS
19
res. Sob os ensinamentos de Morton, Mifitrin se tornaria uma Feiticeira do Tempo, mas sempre que via Ka-
theilos em suas exibições de luta, sentia vontade de tornar-se uma Guerreira e lutar como ele.
O Cavaleiro não fechou a porta ao passar por ela, deixando-a entreaberta, embora não o suficiente para Mifitrin
conseguir ver o que havia lá dentro e saciar sua curiosidade; ele caminhou rapidamente ao encontro dela, Ivin e
Randus. A cada passo ouvia-se o som gerado pelo atrito do metal da bota de sua armadura com o chão de már-
more. Quando estava perto o suficiente, ele desembainhou uma bela e grande espada cristalina; sua lâmina pa-
recia ser feita simplesmente de gelo, nada alem disso, contendo apenas alguns símbolos antigos que Mifitrin
não se preocupou em tentar decifrar, pois sabia que não conseguiria fazê-lo. Já vira a espada diversas vezes,
inclusive muito de perto em certas ocasiões, e já tentara traduzir os símbolos em cada oportunidade que tivera.
Inutilmente. Não conhecia todos os símbolos que nela estavam. Na verdade não conhecia nem um terço dos
símbolos, que eram gravados em um curioso tom lilás sobre o gelo, ou cristal… fosse o que fosse.
Mas desta vez Mifitrin não teve sequer a oportunidade de olhar para os símbolos. Na verdade os símbolos fo-
ram em sua direção com uma velocidade incrível. Ninguém entendeu o que Katheilos estava fazendo, e este o
fez de forma tão rápida que Randus só entendeu o que estava acontecendo segundos após a cena. Ele levantou a
espada que já estava desembainhada e com ela atacou Mifitrin sem pensar duas vezes. Segurou o cabo da espa-
da com as duas mãos, levantou-a acima da cabeça e, no mesmo segundo, golpeou a garota com tal velocidade
que a lâmina da espada transformou-se em um borrão no ar. O ataque mataria Mifitrin…
Mataria se a tivesse atingido. Mas não atingiu. Felizmente ela estava com o colar de Morton ainda pendurado
ao pescoço, e este a protegeu mais uma vez. O poder do colar fez a lâmina parar a poucos centímetros da garo-
ta. Tão perto que ela chegou a sentir a lâmina a ponto de duvidar que fosse se salvar. A sua exceção, ninguém
entendeu por que ela não estava morta. Por que o Cavaleiro-Líder não conseguiu matá-la?
— O QUE ESTÁ FAZENDO? –Randus berrou furioso para o Cavaleiro, pondo-se a frente de Mifitrin para
protegê-la de um possível segundo ataque.
— Sou um Cavaleiro – Katheilos respondeu friamente, num tom de voz que combinava com a aparência som-
bria, apesar de bela, de sua espada. – Não posso recusar nenhuma ordem do Guardião. Meu colar não me per-
mite…
— O Guardião ordenou que você matasse esta Aprendiz? – a Feiticeira Ivin estava horrorizada.
— Sim – Katheilos confirmou. – Mirundil me ordenou que tentasse matá-la. Mas, caso eu não conseguisse,
deveria seguir outras ordens, e é isso que vou fazer agora.
Ele passou pelos três sem dizer mais nada, deixando-os confusos e assustados, então ficou de frente para a porta
do templo. Discretamente bateu na porta com o punho cerrado, o que parecia ser um código, e imediatamente
Mifitrin ouviu a trava da porta ser retirada do lado de fora. A porta foi aberta pelos Guerreiros. Katheilos saiu.
A porta voltou a ser fechada e travada.
— O Guardião enlouqueceu! –Ivin exclamou ainda horrorizada. Seus olhos não desgrudavam de Mifitrin que,
apesar de ser uma protetora do Tempo, não passava de uma criança. Ela tinha apenas quinze anos, mas estava
prestes a enfrentar coisas que nem mesmo Ivin imaginava. A tentativa de homicídio de Katheilos, ordenada por
Mirundil, não representava nada perto das coisas que ela ainda enfrentaria nesta noite.
— O que você fez, Mifitrin? – perguntou Randus afastando-se dela como se fosse uma pessoa perigosa e tocan-
do seu colar como se preparasse um ataque. – O que você fez de tão errado para receber tal punição?
Mifitrin olhou indignada para Randus. Não podia acreditar que ele estivesse dizendo aquilo, e não soube o que
responder. O Guerreiro estava a sua frente, com as mãos em seu colar, preparado para atacá-la. Sentiu-se mal
por alguém chegar a suspeitar dela a ponto de ameaçá-la. Mas não conseguiu sentir raiva de Randus por tal ati-
tude, afinal de contas, o Guerreiro também não podia acreditar que o Guardião do Tempo estivesse errado ao
mandar que a matassem. Randus ainda idolatrava Mirundil a tal ponto que jamais chegaria a duvidar de qual-
quer decisão que ele tomasse. Mas isso também está prestes a mudar… assim como aconteceu para Mifitrin.
— ELA NÃO FEZ NADA, RANDUS – gritou um homem muito alto e magro que estava parado diante da se-
gunda porta de carvalho, que havia sido aberta sem que ninguém percebesse. Desta vez era Tarandil, e Mifitrin
alegrou-se ao vê-lo. – Eu li os pensamentos de Katheilos e percebo agora que realmente o Guardião enlouque-
ceu. Ele trouxe demônios para dentro dos Domínios do Tempo e passou certas ordens para Katheilos que julgo
serem… cruéis demais.
Ivin e Randus ficaram paralisados com a notícia. Randus estava imobilizado por ouvir alguém tão respeitável
como Tarandil dizer uma coisa tão absurda sobre o Guardião do Tempo. Ivin, que tinha a mente mais aberta, já
aceitara o fato de Mirundil ser um traidor, por isso se preocupou em perguntar:
SacerdoteS
21
Enquanto Tarandil e os quatro Sábios conversavam nervosamente, sons do lado de fora do templo interrom-
peram a conversa. Houve uma batida na porta e a trava foi retirada mais uma vez, então a porta se abriu. O co-
ração de Mifitrin gelou, pois esperava ver os demônios entrando pela porta, mas felizmente ela estava engana-
da. Todos olharam assustados quando a primeira porta de carvalho se abriu, mas quem passou por ela foram os
seis Guerreiros, companheiros de Randus na proteção do templo, e estavam acompanhados do Mago Morton, o
Mensageiro Arkas e o Mestre da Alma Nai-Kalimuns. Mifitrin sentiu uma grande alegria ao ver que seu tutor
estava bem, mas não teve tempo de dizer coisa alguma, pois estavam todos muito agitados. Quando todos entra-
ram, a porta de carvalho foi novamente fechada e trancada, desta vez pelo lado de dentro. Pressentindo a bata-
lha que estava prestes a acontecer, os seis Guerreiros também ficaram dentro do Templo das esferas.
— Tarandil – disse Morton caminhando rapidamente até ele – entregue a esfera para Mifitrin.
— Sim Morton. Terei de buscá-la. Venha comigo Mifitrin.
Mifitrin acompanhou Tarandil e juntos atravessaram a segunda porta de carvalho. Finalmente ela estava sacian-
do sua antiga curiosidade.
Do outro lado da porta havia outro salão, pouco menor que o primeiro, mas este não era iluminado por archotes
ou candelabros. Na verdade não havia nenhuma vela sequer no aposento todo. Quando encontrou a fonte de luz,
Mifitrin sentiu um frio lhe percorrer por toda a espinha. Ficou muito surpresa com o que viu.
Uma Antúnia. Mais uma Antúnia. Não era aquela a qual os protetores do Tempo idolatravam, mas definitiva-
mente era uma delas. As grandes folhas da árvore é que iluminavam o lugar com seu brilho suave. Isso só já
bastava para impedir que o salão das esferas mergulhasse nas trevas durante cada noite.
Mifitrin sabia, é claro, que a Antúnia que estava no pátio no centro dos Domínios do Tempo não era a única ali
dentro. Na verdade havia mais algumas Antúnias espalhadas pelo Domínio, cada uma com a sua devida função.
Aquela sob a qual Mifitrin meditava todos os dias era a verdadeira fonte de poder do Tempo. Ela era maior que
esta que Mifitrin vislumbrava agora, muito maior é claro, pois aquela foi a primeira Antúnia à nascer. A árvore
viva mais antiga de toda Gardwen. Aquela Antúnia fornecia poder aos protetores do Tempo, por isso era tão
importante.
Mas havia outras e Mifitrin sabia muito bem. Outro exemplo de grande importância é a Antúnia que fica no
Palácio do Guardião. Aquela Antúnia representa o período de poder de um Guardião, o período de cada um
deles. Quando surge um novo Guardião, surge também um broto de Antúnia. Ele cresce, floresce e se fortalece
junto com o Guardião e, quando os tempos de um Guardião acabam para começarem os de outro, a Antúnia
também morre para dar lugar a um novo broto. Mifitrin não sabia disso, mas a Antúnia que está dentro do Palá-
cio do Guardião nesse momento, está morta há semanas, seca e sem nenhuma folha. Apesar de Mirundil ter
trancado seu palácio para que ninguém entrasse lá e encontrasse a árvore que representava o seu poder e domí-
nio sobre o Tempo morta, Morton já sabia. Morton vislumbrou a Antúnia morta há algum tempo e ainda se
lembra disso como se fosse ontem mesmo que chorara sobre os restos da árvore sem vida. Foi nesse momento
que resolveu por um fim na tirania de Mirundil o mais rápido possível, apressando os planos do destino. Não só
apressando o destino, como também alterando-o em diversos pontos.
No salão das esferas, a Antúnia ficava ilhada no centro do salão, com um pequeno espaço de grama à sua volta.
Mas havia uma grande fenda que a circulava, separando em dois círculos: o interno, no qual estava a árvore, e o
externo, no qual estava Mifitrin e Tarandil. Mas olhando bem, Mifitrin percebeu que não era uma simples fen-
da. Uma escada em espiral descia pela fenda, aprofundando-se e desaparecendo sob as profundezas do templo e
da montanha Arguelse.
Mifitrin olhou para o alto e vislumbrou o teto abobado. No centro do teto, na parte mais alta do salão, havia
uma minúscula esfera de vidro. Mas não era a única ali. Aquela esfera recebia algum destaque, mas todo o teto
estava repleto de pequenas esferas, que também desciam acompanhando as paredes do salão redondo. Próximo
ao chão não existia mais nenhuma esfera, mas Mifitrin logo percebeu que em torno da escadaria em espiral ha-
via tantas outras milhares de esferas. Milhões de esferas.
Tarandil seguiu para a escada e Mifitrin o acompanhou. Juntos desceram, dando voltas pela escada em espiral
que circundava a Antúnia lá em cima. Quanto mais desciam, mais escuro ficava e quase não conseguiam ver o
topo da escada que já havia ficado muitas voltas para trás; para cima. Mifitrin ficou encantada com as esferas.
Havia centenas de centenas delas na parede acompanhando a escadaria. Realmente pareciam feitas de vidro,
Do outro lado da porta de carvalho, Tarandil se juntou a todos os outros e entregou o colar de Morton. Todos
estavam apreensivos, olhando para a primeira porta do templo, que ainda estava fechada e trancada. Mas isso
não parecia ser um grande obstáculo para os demônios, pois conseguiam abrir enormes fendas na porta com a
força de seus punhos. Aqueles demônios não eram comuns. Eram da pior espécie que qualquer um deles já ha-
via visto. Cada vez mais fendas apareciam na porta e por elas era possível ver a terrível aparência dos demô-
nios. Pareciam feitos inteiramente por uma névoa negra, mas ainda assim pareciam sólidos. Não tinham rosto; a
única coisa que podia ser discernida na cara deles era uma boca, que gritava de fúria, num guincho indecifrável.
E havia também aquela sensação. Aquele peso que sentiam em seus corações com a simples presença dos de-
mônios. Aquele peso e aquela dor. Não chegava a ser insuportável, não completamente.
SacerdoteS
23
Quando a porta estava cheia de fendas, os demônios se afastaram um pouco, mas um segundo depois volta-
ram a toda velocidade e investiram contra a porta. A porta não suportou a força dos demônios juntos e rompeu-
se em inúmeros pedaços. Uma das folhas da porta caiu pesadamente no chão, mas metade da outra folha ficou
pendurada nas reforçadas dobradiças do templo, num ângulo que indicava que logo ela se juntaria a sua metade.
Agora estavam livres para atacar. Entraram no templo a toda velocidade, soltando seus terríveis guinchos de
ameaça. Guinchos que gelavam o coração e faziam a dor se intensificar um pouco mais.
Os quatro Sábios estavam a frente do resto do grupo. Estavam todos concentrados em um feitiço para expulsar
os demônios dos Domínios do Tempo. Juntos, eles tinham esse poder, assim como o Guardião. Os demônios
não pertenciam aos Domínios do Tempo, por isso podiam ser expulsos.
Um fio de luz anil ligou os quatro Sábios, que estavam lado a lado. Os demônios estavam há poucos metros… o
fio de luz se intensificou… os demônios saltaram para atacar… a luz do feitiço se intensificou para todo o tem-
plo e…
Apagou-se! O feitiço falhou.
Os demônios caíram sobre os quatro Sábios e estes foram jogados de costas no chão, mas então os outros vie-
ram para ajudar. Arkas, Ivin, Tarandil, Nai-Kalimuns, Morton, Randus e os outros seis Guerreiros correram
para ajudar.
— Por que o feitiço falhou? – Morton perguntou aos Sábios, enquanto começava a combater os demônios.
— Porque é o Guardião que está mantendo os demônios e ele utilizou uma grande energia para trazê-los – Tai-
glin respondeu. – Precisamos de um feitiço de expulsão mais poderoso que o feitiço que Mirundil usou para
trazê-los para cá.
— Precisaremos de tempo e concentração – Cronos entrou na conversa, simplificando a explicação do compa-
nheiro.
— Então façam isso – Morton lhes disse. – Nós manteremos os demônios afastados da segunda porta por en-
quanto.
Os quatro Sábios se teletransportaram para o outro lado da segunda porta, junto a Mifitrin. Eles formaram um
circulo entre eles sem dar atenção à garota que protegia a esfera, então iniciaram o feitiço de expulsão.
Todos estavam lutando do outro lado daquela porta e Mifitrin sentiu-se inútil ali, sem poder fazer nada para
ajudar. Ela podia ouvir barulhos da batalha de vez em quando, como uma explosão ou um grito, mas não podia
ver nada. Poderiam estar precisando da ajuda dela, mas ela não poderia descobrir. Para isso precisaria abrir a
porta e olhar do outro lado, mas se fizesse isso os demônios entrariam ali e pegariam sua esfera. A única coisa
que reconfortava Mifitrin era saber que até agora ninguém (ou nada) tocou na porta, então realmente os demô-
nios ainda não haviam vencido. E também havia o fato de Morton estar com o colar protetor; ele não poderia
ser ferido. Então eles ainda tinham alguma chance.
Do outro lado da porta, vários demônios vieram na direção de Morton; o Mago usou seu colar e conjurou um
cajado formado por luz anil, luz sólida. Assim que os demônios se aproximaram, Morton atacou-os com seu
cajado e, assim que eram atingidos, ficavam completamente imóveis. Morton estava utilizando o cajado para
trancar os demônios no tempo.
Nai-Kalimuns era o que mais sofria com a presença dos demônios. Ninguém entendia o motivo de todos esta-
rem se sentindo mal com a presença dos demônios, mas também não podiam negar o que sentiam. Nai-
Kalimuns não sabia o por que, mas ele era o que mais sofria com a presença deles. Quando eles estavam se a-
proximando, Kalimuns utilizou um feitiço da Alma. Era o feitiço das raízes de rozan; raízes rubras brotaram do
chão, abrindo fendas no chão de mármore para poderem crescer. Assim que pegavam suas vítimas, as prendiam
no ar, completamente imobilizadas, e tentavam estrangulá-las. Logo o Templo das esferas estava repleto de
raízes rubras que seguravam os demônios no ar, impedindo-os de atacar; raízes fortes que tentavam estrangular
seus inimigos até a morte, assim como eles mesmos gostavam tanto de fazer.
Tarandil estava ao lado de Nai-Kalimuns e, assim como Morton, ele conjurou uma arma com magia do Tempo.
Mas não era um cajado, como o de Morton, e sim um chicote. Um chicote comprido formado pela mesma luz
anil do cajado de Morton. Anil é a cor que representa o Tempo, da mesma forma que o rubro representa a Alma
e o alvo simboliza a Magia. Três Elementos, três cores… Com seu chicote anil, Tarandil conseguia manter os
SacerdoteS
25
explodiram em fragmentos minúsculos. Porém, quando as centenas de esferas terminaram de explodir e o
furacão se consumiu, Ivin e Arkas perceberam que os demônios não sofreram nada. Absolutamente nada. Com
raiva do golpe recebido, vários demônios avançaram contra eles, então Arkas tocou seu colar com a mão direi-
ta, e com a mão esquerda segurou o braço de Ivin. Ele usou o feitiço de teletransporte e os dois desapareceram
um segundo antes de serem pegos pelos demônios.
Arkas tentou teletransportá-los para longe da confusão mas, assim que reapareceram, estavam exatamente no
meio dos demônios, exatamente no meio da manada de inimigos. Aparentemente os demônios estavam acaban-
do com suas energias, e assim ele não conseguiam realizar direito seus feitiços. Vários demônios avançaram
contra eles e, no meio da confusão, acabaram se separando.
Ivin estava cercada por demônios e não sabia como poderia escapar. Foi então que ouviu um grito de Randus e
olhou para o alto. Uma chuva de flechas de fogo estava sobre ela e logo começaram a cair. As flechas atingiram
os demônios que a cercavam e o corpo deles foi incendiado. As flechas de fogo eram dos Guerreiros, pois a
força da natureza que eles dominam é o fogo. Mas mesmo as flechas não eram fortes o suficiente para derrota-
rem os demônios, que logo voltaram a atacá-la.
Uma nova chuva de flechas flamejantes apareceu, e Ivin teve uma idéia: ela não podia utilizar as forças da natu-
reza, mas poderia usar seus poderes para amplificar o poder de um ataque. Era a amplificação, uma habilidade
de Feiticeiros. Ela tocou seu colar e as flechas de fogo se juntaram no ar. As flechas se fundiram e formaram
um enorme águia de fogo, que voou pelo templo atacando os demônios. Mas tão logo quanto surgiu, a águia se
consumiu e desapareceu. Ivin viu que não foi o suficiente para derrotá-los; teve de fugir para não ser pega. Co-
mo estava cercada, ela utilizou seu colar e conjurou em si mesma grandes asas semelhantes às de morcego, e
assim pôde fugir pelo ar. Fugir, apenas isso. Essa foi a sua contribuição para aquela batalha. A sua grande aju-
da…
Enquanto tentava sair do meio do caos em que fora se meter, Arkas foi cercado. Três demônios se aproximaram
por lados opostos e ele não achou brecha para escapar. Tocou seu colar e se teletransportou, mas suas energias
estavam tão minadas que o mais longe que pôde ir foi dois metros. O máximo que conseguiu. Os demônios
prepararam o bote e saltaram sobre ele. Arkas fechou os olhos e tentou proteger o rosto mas…
Nenhum dos demônios chegou a tocar nele. Pelo menos não desta vez. Arkas abriu os olhos em tempo de ver os
três demônios parados no ar, mas só foi compreender o que o salvou quando focalizou Tarandil próximo a ele,
atrás de um dos demônios. Ele tinha sua mão direita aberta no ar; os dedos estranhamente contorcidos. Um se-
gundo se passou e ele moveu bruscamente a mão, liberando os dedos daquela posição que parecia tão dolorosa.
Os demônios obedeceram ao movimento e foram atirados no ar, cada qual para a direção de onde veio, caindo
de costas no chão de mármore do templo.
Fora a telecinese de Tarandil que salvara Arkas, a habilidade de mover as coisas apenas com a mente. E foi ao
ver a telecinese em ação que teve uma brilhante idéia. Tocando seu colar, Arkas criou um portal em forma de
arco à sua frente. Olhou para ele e viu árvores além…
A habilidade de Mensageiro, criar portal. Não importava para onde aquele portal levava, Arkas não teve tempo
para criar um portal para muito longe, mas ao menos ele levava para fora dos Domínios do Tempo e essa foi a
sua grande idéia para aquela batalha.
— Tarandil – ele gritou concentrado em seu colar para manter o frágil portal aberto. – Preciso da sua telecinese!
Tarandil entendeu imediatamente. Voltou a fazer gestos com a mão e quatro ou cinco demônios foram pegos
pela sua técnica. Contorcendo os dedos e fazendo movimentos bruscos, atirou os demônios para além do portal
e esses desapareceram em algum lugar fora dos Domínios do Tempo.
— Isso!
Arkas estava radiante. Fora sua aquela grande idéia, a sua grande ajuda naquela difícil batalha. Não precisariam
derrotar os demônios, apenas mandá-los para longe dali. Era só isso.
Tarandil novamente utilizou sua telecinese, mas desta vez apenas dois demônios foram pegos por sua habilida-
de. Está falhando. Ao mesmo tempo em que atirou os demônios pelo portal, outros três vieram e pularam con-
tra Arkas, que sequer chegou a vê-los para se defender. Caiu. Bateu o rosto no chão. Um filete de sangue escor-
reu de baixo dos seus cabelos suados pelo ritmo e tensão da batalha. Estava inconsciente.
Como o portal continuava aberto, os sete demônios expulsos puderam entrar nos Domínios do Tempo nova-
mente, voltando para a batalha. Primeiro se atiraram contra Arkas, todos eles. Tarandil assistiu a cena horrori-
zado. Não tinha forças para salvar Arkas. Os demônios pularam sobre ele e tentaram estrangulá-lo. Era isso o
Enquanto a batalha estava temporariamente suspensa, Morton aproveitou para esclarecer algumas coisas.
— Eles me atacaram, Kalimuns! – o Mago estava preocupado. As coisas estavam muito piores do que ele pode-
ria ter imaginado. Desde que viu a Antúnia morta no Palácio do Guardião passou a planejar um modo de derru-
bar Mirundil, mas percebia agora que não planejou o bastante. Dificilmente sairia vencedor naquele jogo.
— Eu vi, Morton, e é isso que me preocupa – Kalimuns encarava seu eterno amigo, tão preocupado quanto ele.
Ambos pareciam muito assustados, mas ninguém além deles entendia o que estava acontecendo. Kalimuns me-
ditou por um breve intervalo de tempo até que finalmente voltou a falar: – Agora eu compreendo porque eu
sofro tanto com a presença deles, sofro mais do que qualquer um de vocês. E também entendo porque eles pu-
deram te atacar. Esses demônios não têm alma!
Todos olharam confusos para Kalimuns, mas ninguém disse nada.
— Diferente de vocês – começou Kalimuns novamente – eu sou um protetor da Alma, e estou mais vulnerável
a ausência de alma. É por isso que sofro mais do que vocês com a presença deles.
Morton encarou Kalimuns por algum tempo sem dizer nada. Novos estrondos foram ouvidos e vários raios caí-
ram quando mais demônios tentaram passar pela linha traçada por Morton. Mais alguns segundos de silêncio e
Morton finalmente perguntou:
— Está sugerindo que estes demônios sejam os kenrauers da lenda?
SacerdoteS
27
— É a única resposta possível – o tom de Kalimuns era sombrio, pois aquilo confirmava o receio dos dois. –
Mas sim, acredito que estes sejam os kenrauers mencionados na lenda da espada Kentairen.
— O que são kenrauers? – Tarandil exigiu saber.
— São demônios sem alma… – respondeu Morton, mas foi interrompido por Kalimuns:
— NÃO! Não existe vida sem alma. Se alguma coisa não tem alma, ela é apenas um vazio, algo sem nenhuma
vontade própria. É apenas um vácuo da vida.
— Esses demônios têm vontade própria – exclamou Tarandil entrando na conversa. – Se não tivessem vontade
própria, por que estariam tentando nos matar para roubar a esfera do Tempo?
— Simples! – Kalimuns estava convicto do que dizia. – Há um pedaço de alma em cada um deles, um minúscu-
lo fragmento de uma alma. Nosso inimigo foi capaz de partir sua alma em inúmeros pedaços e colocá-las em
vácuos da vida para que pudesse controlar esses vácuos. Isso é que são os kenrauers: vácuos da vida com parte
da alma de alguém, assumindo a vontade desta pessoa.
— A lenda menciona como podemos derrotá-los? – a pergunta de Tarandil era a que todos queriam fazer, a
maior esperança deles.
Kalimuns não disse nada. Apenas abaixou a cabeça e ficou quieto. Todos compreenderam o seu silêncio: esta-
vam enfrentando demônios invencíveis, impossíveis de se derrotar.
Um novo estrondo foi ouvido, e um raio derrubou outra parte do teto quando caiu sobre um kenrauer que tentou
cruzar a linha.
— Nossa única esperança é que os quatro Sábios consigam expulsar os demônios dos Domínios do Tempo –
disse Morton. – Se eles não conseguirem, seremos derrotados e os demônios pegarão a esfera do Tempo. Se
isso acontecer o inimigo conseguirá a espada Kentairen e tudo estará perdido.
— Quem é o inimigo? – perguntou Ivin se aproximando de Morton. – E que espada é essa? O que ela tem de
tão perigosa?
Morton não respondeu. Apenas os mais sábios tinham conhecimento sobre o inimigo e apenas Morton e Kali-
muns sabiam profundamente sobre a espada Kentairen. Estas respostas não precisariam ser dadas agora.
— Eles estão enfraquecendo meus poderes – Morton se preocupava com seu feitiço, olhando para os kenrauers
que não desistiam de tentar cruzar sua linha no chão. – Logo poderão passar pela linha. Preparem-se. Precisa-
mos agüentar mais um pouco. Acredito que logo os quatro Sábios terminem o feitiço para expulsá-los.
Agora tudo se resumia nisso. Agora sabiam que não havia como derrotar aqueles demônios e isso era a pior
coisa que poderia acontecer na batalha. A desesperança é a ruína de qualquer um. A desesperança por saber que
lutavam por uma batalha perdida era algo que os enfraquecia. Sabiam que o que importava agora não era derro-
tar os demônios, sabiam que não era possível, o que importava era agüentar apenas mais algum tempo até que
os quatro Sábios estivessem preparados para expulsar os demônios dos Domínios do Tempo. Isso era tudo o
que importava agora, precisavam ganhar tempo.
Os sete Guerreiros, incluindo Randus, ficaram de frente para a linha de Morton, um ao lado do outro. Todos
apontaram suas flechas de fogo para o alto, e passaram a se concentrar em um feitiço juntos. Estavam acumu-
lando muita energia naquele golpe, e Morton ficou preocupado.
— O que vão fazer? – o Mago perguntou.
Randus, que estava exatamente no meio da formação, olhou para Morton e disse:
— É nossa última tentativa. Se não conseguirmos, estará tudo nas mãos de vocês.
Os kenrauers estavam cada vez mais furiosos, e um atrás do outro tentavam atravessar a linha imposta por Mor-
ton. Vários raios caiam sobre eles, e o templo já estava completamente sem teto, pois seus destroços estavam no
chão.
— Acabou – sussurrou Morton assustado, e a linha no chão desapareceu. Os kenrauers avançaram, mas nenhum
raio caiu do céu…
Nesse instante os sete Guerreiros atiraram suas flechas para o alto. No ar elas se juntaram e formaram uma i-
mensa bola de fogo. A quantidade energia que estavam concentrando naquele golpe era assustadora. Mesmo
inexperiente como era, Ivin foi capaz de reconhecer um feitiço de sacrifício.
— METEORO! – os sete Guerreiros gritaram juntos, e a enorme bola de fogo caiu sobre os kenrauers. O ataque
fez o templo todo tremer. A própria montanha Arguelse tremeu com o impacto. Uma enorme cratera foi aberta
no chão. Todo o chão de mármore trincou-se; as trincaduras percorreram pelas paredes, condenando a estrutura
do Templo das esferas. Estilhaços de mármore voaram contra eles como balas, ferindo-os. Muita poeira foi le-
Mifitrin estava ficando impaciente. Não sabia há quanto tempo estava ali, mas sentia um grande desejo de abrir
a porta e se juntar aos outros. A pequena esfera quente e verde ainda estava segura em sua mão. Ela queria mui-
to saber o que estava acontecendo do outro lado da porta. Ouvia os guinchos dos demônios, e sempre que isso
acontecia sentia uma pontada de dor em seu coração. Várias vezes sentiu a energia de ataques poderosos sendo
utilizados, e assustou-se quando Morton começou a atacar com os raios. E agora, há apenas alguns segundos,
sentiu o templo todo tremer (ou melhor, a montanha toda), mas não sabia que ataque fora utilizado. Com certe-
za várias pessoas fizeram aquele ataque juntas, pois alguém sozinho não seria capaz de fazer algo tão poderoso,
nem mesmo Morton.
Mifitrin observava os quatro Sábios. Eles continuavam imóveis e com os olhos fechados, formando um círculo
de luz anil entre eles. Mifitrin tentou perguntar o que aconteceu do outro lado da porta, mas eles nem a ouvi-
ram. Estavam em estágio supremo de concentração e não podiam ser perturbados.
Ela estava sentada no chão, apoiando as costas na grande porta de carvalho. Não via a hora de aquilo tudo aca-
bar para ela poder se juntar aos outros. Mas foi então que aconteceu…
Estava distraída em seus pensamentos quando algo atravessou a porta ao lado da cabeça dela, quase tocando seu
rosto. Ela se levantou assustada e se afastou da porta. Foi só então que percebeu que aquilo era o braço de um
demônio, que tentava destruir a porta com seus punhos. Logo vários demônios estavam atacando a porta, abrin-
do enormes fendas com os punhos. Mifitrin não soube o que fazer. Temeu que todos tivessem sido derrotados.
Mas então ela ouviu a voz de Morton e se alegrou. Seu tutor ainda estava lutando para proteger a porta, e havia
mais pessoas com ele. Mas parecia que nenhum deles era capaz de impedir os demônios de atacarem a porta.
Parecia que nenhum deles tinha mais forças para isso.
Cada vez mais fendas eram abertas na grande porta de carvalho e Mifitrin podia ver a terrível aparência dos
demônios através delas. Ela ouvia os gritos de Morton e Tarandil, tentando fazer o possível para afastar os de-
mônios da porta, mas era impossível. Poucos segundos depois a porta explodiu em uma nuvem de fragmentos e
estilhaços, e os demônios entraram no salão das esferas. Mifitrin tentou fugir, mas os demônios a alcançaram e
passaram por ela sem lhe fazer nada, então ela parou de correr, confusa por não ter sido atacada. Os quatro Sá-
bios nem perceberam o que aconteceu, pois continuavam concentrados no feitiço para expulsar os demônios.
Mas os kenrauers também não atacaram os Sábios. Estavam decididos a pegar a esfera, e não queriam se atrasar
mais. Desceram correndo as escadas, um atrás do outro, em uma grande confusão e, pouco tempo depois, Mifi-
trin ouviu seus gritos de raiva. Obviamente haviam chegado onde a esfera deveria estar e perceberam que ela
não estava mais lá.
Mifitrin apertou a esfera em sua mão e correu ao encontro de Morton, mas em poucos segundos os demônios já
estavam de volta. Tentou esconder a esfera entre suas mãos, mas lembrou-se do que Tarandil disse. A esfera
SacerdoteS
29
não estava visível na mão da Aprendiz, mas o único objetivo dos kenrauers agora era pegar a esfera e, neste
momento, eles viviam unicamente para isso. Eles souberam onde ela estava assim que olharam para Mifitrin
pela segunda vez.
— Corra! – Morton sussurrou sem forças. Mifitrin olhou para ele e se assustou com o desespero nos olhos de
Morton. – Não podemos fazer mais nada. Corra. Fuja com a esfera.
Mifitrin não queria fugir, mas sabia que era necessário. Ela desviou os olhos de Morton e viu os demônios cor-
rendo em sua direção, então decidiu que precisava mesmo fugir. Morton entrou na sua frente e ficou entre ela e
os kenrauers, então ela se virou começou a correr.
Mifitrin olhou para trás e viu Ivin, Tarandil, Morton e Kalimuns, todos tentando atrasar os demônios, mas eles
já não tinham forças; alguns demônios passaram por eles e vieram na direção dela. Mifitrin viu os sete Guerrei-
ros inconscientes, caídos no chão um ao lado do outro, então deu a volta na cratera e seguiu para a saída do
templo.
Mas os kenrauers estavam muito perto e Mifitrin olhou para trás. Não havia como fugir, ela sabia disso. En-
quanto corria, tropeçou em um destroço do teto e caiu. A esfera escapou-lhe de sua mão, caindo e rolando pelo
chão do templo. Assim que viram a esfera pela primeira vez, os kenrauers ficaram mais indomáveis que antes e
correram numa velocidade incrível. Numa fúria incrível. Passaram por Mifitrin para pegar a esfera, desespera-
dos, mas neste exato momento todo o chão do templo encheu-se de pequenas esferas verdes, idênticas a de Mi-
fitrin, e os demônios ficaram confusos, sem saber qual pegar. Mifitrin também ficou confusa por um momento,
mas então olhou para trás e viu Ivin voando até ela com suas asas de morcego. A Feiticeira havia criado a ilusão
de várias esferas para confundir os demônios, mas na realidade só havia uma. É claro que só havia uma.
— Vai – gritou Ivin enquanto se aproximava voando de Mifitrin. A Aprendiz se levantou e correu pegar a ver-
dadeira esfera. Assim que a encontrou, os kenrauers avançaram contra ela, mas antes que pudessem pegá-la,
Mifitrin foi erguida no ar. Ivin estava a estava carregando e juntas voavam em direção a saída do templo.
— Obrigada – disse Mifitrin.
— Ainda é cedo para agradecer – a voz da Feiticeira expressa medo. – Esses demônios estão acabando com a
minha magia. Não vou agüentar por muito tempo…
Mas antes de terminar a frase, as asas de Ivin desapareceram por causa da presença dos kenrauers e juntas caí-
ram no chão. Estavam muito alto e Mifitrin machucou a perna quando caiu. Os demônios correram até elas;
Ivin levantou-se, ficando mais uma vez entre os demônios e a garota. Seu corpo era tudo o que tinha agora para
atrasar os demônios e estava disposto a usá-lo.
— CORRA!
Mifitrin esforçou-se para conseguir ficar em pé e correu o mais rápido que pôde em direção à saída, mesmo
estando mancando por conta da perna machucada. Um segundo depois ela ouviu um grito e olhou para trás. Ivin
estava inconsciente no chão e três demônios corriam contra ela. Tentou fugir, mas não pôde, e os demônios
caíram sobre ela. Decidida a não perder a esfera, Mifitrin fechou a mão com toda força que tinha. O kenrauer
tentou estrangulá-la. Desta vez ninguém poderia salvá-la. Tentou usar algum feitiço, mas não conseguia fazer
isso sem tocar o colar, e os kenrauers deixaram-na completamente imobilizada. Sentiu dentes afiados tentando
arrancar-lhe os dedos que se mantinham fechados sobre a minúscula e tão importante esfera.
Quando já não tinha esperanças de escapar, Mifitrin viu uma lâmina cristalina passar sobre sua cabeça e atingir
o kenrauer, jogando-o para longe. Mais dois golpes e os outros dois kenrauers também foram tirados de cima de
Mifitrin, guinchando de dor. Por um segundo foi capaz de ver os símbolos de cor lilás sobre a lâmina que apa-
rentava ser de gelo, os mesmos símbolos lilases que nunca conseguiu traduzir.
Ela levantou-se e viu seu salvador. Era um dos Cavaleiros, empunhando sua espada cristalina. Havia oito Cava-
leiros ali, os oito Cavaleiros que os Sábios chamaram para ajudar. Mifitrin nem podia acreditar que estavam ali,
finalmente. Estavam salvos! Os oito Cavaleiros passaram por ela, então ela voltou a correr para fora do templo,
mesmo sem achar que isso ainda fosse necessário.
Ela saiu do templo pela primeira porta, despedaçada, e sentiu o ar frio da noite batendo em seu rosto. Seguiu
correndo até a escadaria para poder descer, mas desceu apenas alguns degraus e viu que havia alguém subindo.
Era Katheilos, o Cavaleiro-Líder. Aquele que não recebia ordem dos Sábios e que obedecia apenas o Guardião
Mirundil. Katheilos já havia tentado matar Mifitrin quando ela chegou ao Templo das esferas, mas naquela oca-
sião ela estava com o colar protetor de Morton e não foi ferida.
Mas desta vez era diferente; não estava com o colar de seu tutor, estava completamente desprotegida.
— Estamos salvos! – Tarandil sussurrou quando viu os oito Cavaleiros chegando ao Templo das esferas. – Es-
tamos salvos…
Vários kenrauers avançaram contra os Cavaleiros, mas guinchavam de dor quando eram atingidos por suas es-
padas cristalinas.
Os Cavaleiros eram os responsáveis por executar as principais ordens do Guardião, além de protegê-lo, portanto
eram uns dos protetores mais poderosos. Havia protetores do Tempo que podiam controlar a água, mas apenas
os Cavaleiros do Tempo eram capazes de controlar uma força da natureza mais avançada que a água: o gelo.
Os Cavaleiros apontaram suas espadas para o céu, e imediatamente começou a nevar através do teto destruído
do templo. Depois tocaram suas espadas no chão, e uma cobertura de gelo apareceu sobre o mármore trincado,
estendendo-se para todos os lados e cobrindo tudo com um tapete de gelo com alguns centímetros de espessura.
Morton, Tarandil e Kalimuns eram os únicos que se mantinham em pé após a batalha e apenas observavam as
habilidades dos Cavaleiros, admirados. Os trinta kenrauers avançaram contra os Cavaleiros, mas eles apenas
atacavam com suas espadas, e aos poucos os kenrauers foram recuando. Pouco a pouco os Cavaleiros consegui-
ram cercar os kenrauers, formando um círculo em volta deles. Com todos os kenrauers entre eles, os Cavaleiros
fincaram suas espadas no chão, e enormes colunas de gelo se ergueram a frente, como se brotassem do chão;
assim os kenrauers ficaram presos no centro do salão. O feitiço Prisão de Gelo, exclusivo dos Cavaleiros do
Tempo.
— Obrigado – disse Tarandil correndo até eles. – Se não fosse por vocês não poderíamos vencer.
Os Cavaleiros se reuniram e se aproximaram de Morton.
— Mago Morton – disse um deles sem esconder o grande respeito que tinha pelo Mago. – O Guardião Mirundil
está completamente insano. Passou-nos muitas ordens, que só não precisamos cumprir graças à intervenção dos
quatro Sábios. Mas acredito que Katheilos ainda esteja sendo obrigado a seguir as ordens dele.
— Que ordem vocês receberam?
— Muitas delas – respondeu o mesmo Cavaleiro. – A primeira delas foi a de matar os quatro Sábios, mas por
sorte não pudemos encontrá-los. Depois recebemos a ordem de abrir caminho para que os demônios chegassem
até aqui. Mas graças aos quatro Sábios não precisamos cumprir a última ordem.
— E qual é ela? – perguntou Morton.
O Cavaleiro deu um longo suspiro e encarou o Mago do Tempo, então respondeu:
— Matá-lo!
Morton não disse nada, pois já imaginava que os Cavaleiros estavam encarregados de matá-lo. Na verdade tinha
plena certeza disso.
— Morton – exclamou Kalimuns correndo até o Mago. – Mirundil já se libertou do meu feitiço de congelar a
alma. Não sei há quanto tempo isso aconteceu, mas agora sei que ele já está livre.
— Vocês sabem onde ele está? – perguntou Morton virando-se para os Cavaleiros.
— No Pátio da Antúnia – respondeu um deles.
— Será mais fácil para ele se estiver lá – sussurrou Morton compreendendo. – O portal que liga os Domínios
do Tempo ao resto de Gardwen fica no Pátio da Antúnia. Será mais fácil trazer os demônios que estão lá fora se
ele estiver lá.
— Mas nós podemos derrotá-los – disse um dos Cavaleiros, mas foi interrompido por Morton:
— Não, não podem. Aqui enfrentaram apenas trinta kenrauers, mas a manada que Mirundil pretende trazer tem
pelo menos duzentos deles. Será impossível vencê-los…
Antes de Morton terminar a frase, ouviram os gritos dos kenrauers e olharam para onde eles estavam presos. As
colunas de gelo que os prendiam começaram a se trincar, e em pouco tempo foram destruídas. Até mesmo a
magia dos Cavaleiros estava sendo consumida pela presença dos kenrauers. Eles acabavam com a magia ao
redor deles; nenhum tipo de magia, por mais forte que fosse, por mais pura que fosse, resistia a presença deles.
— O que faremos agora? – perguntou Tarandil quando todas as colunas de gelo estavam em pedaços.
— Agora? – Morton repetiu a pergunta. – Nada! Não há nada que possamos fazer.
SacerdoteS
31
Mas então alguém apareceu. Os quatro Sábios se teletransportaram de volta para o primeiro salão e ficaram
em volta dos demônios. O círculo de luz anil que se formava entre eles e passou a envolver os kenrauers tam-
bém, que logo ficaram imóveis.
— IMPÉTUE NORREN! – gritaram os quatro Sábios juntos.
O círculo de luz anil que os envolvia passou a brilhar intensamente e se expandiu para todo o templo. A cada
segundo a luz ficava mais forte e ninguém pôde enxergar nada. Quando a luz se apagou, todos ficaram conten-
tes em ver que os kenrauers haviam desaparecido. Os Sábios conseguiram expulsá-los dos Domínios do Tempo.
— Agora sim, Ivin – Morton sussurrou olhando carinhosamente para o corpo inconsciente da Feiticeira ainda
caído no chão. – Vencemos!
Os quatro Sábios ficaram de joelhos assim que o feitiço se concretizou. Haviam gastado muita energia. Morton
virou-se para Tarandil e disse:
— Convoque alguém que possa regenerar as forças de Ivin e dos Guerreiros, e também peça que alguém saia
dos Domínios e procure pelo corpo de Arkas. Ele ainda deve estar desacordado, então devem trazê-lo para den-
tro para que receba os devidos cuidados.
— Farei isso – respondeu Tarandil prontamente. Então Morton virou-se para Kalimuns:
— Precisamos de você para enfrentar o Guardião. Você e eu desceremos até o Pátio da Antúnia junto com os
Cavaleiros e impediremos Mirundil de trazer os outros demônios para dentro…
Kalimuns soltou um grito de dor e levou a mão até o peito. Até mesmo suas pernas cambalearam.
— Tarde demais – ele disse ainda com uma dor insuportável no peito, que logo todos sentiram também. – Eles
já estão chegando.
— O quê? – Kalimuns nunca viu tal expressão de medo no rosto de Morton durante toda a sua vida.
— Sinto que eles já estão no portal – Kalimuns apertava o peito com força. A presença do exército de kenrauers
que chegava fazia com que ele sentisse muita dor, muito pior da dor que sentiu ao ser submetido aos trinta ken-
rauers. O exército que chegava agora não tinha comparações. Era um exército de medo, crueldade e desespe-
rança. – São muitos… Mirundil já está tentando trazê-los para dentro. Há no mínimo duzentos kenrauers, e já
estão chegando. Estão no Pátio da Antúnia e estão vindo para cá…
— MORTON! – Tarandil gritou de repente. – ATRÁS DE VOCÊ!
Morton virou-se em tempo de se desviar de um golpe de espada. Era Katheilos, o Cavaleiro-Líder, e ninguém
havia reparado que ele estava no templo também. Havia entrado sorrateiramente.
— Perdoe-me Morton – Katheilos desculpou-se enquanto preparava-se para um novo golpe – mas recebi ordens
do Guardião para matá-lo.
Com a ausência dos kenrauers os poderes de Morton foram voltando rapidamente. Assim ele conjurou o cajado
de luz anil e passou a se defender dos golpes de Katheilos com o cajado.
— Cronos – disse Morton se dirigindo a um dos Sábios, mas sem se desconcentrar do duelo com Katheilos. –
Quais as chances de expulsarem os kenrauers que Mirundil trouxe para dentro dos Domínios?
— Nenhuma – respondeu Cronos imediatamente. – No momento nossos poderes estão debilitados por causa
dos kenrauers, e usamos muita energia. Não temos força para enfrentar o Guardião e impedir que ele traga to-
dos os kenrauers.
Quanto mais o tempo passava, mais a energia de Morton se regenerava e mais fácil ficava para ele se defender
dos golpes de Katheilos. Por algum tempo ele apenas ficou se defendendo dos golpes do Cavaleiro-Líder, pen-
sando no que faria a seguir. Mas por mais que pensasse não encontrava outra maneira. Só havia um jeito de
impedir que os kenrauers chegassem ao templo. Só um. E era aquele que ele tanto temia. Aquele que Kalimuns
e ele tanto discutiram.
— Kalimuns – Morton finalmente tomou sua decisão. Aquele era o único jeito. – Fale-me tudo sobre alma-
guardiã.
Kalimuns assumiu uma expressão mortificada com o pedido. Aparentava querer fugir daquele assunto a todo
custo.
— Isso não vem ao caso agora, Morton – respondeu ele esquivando-se do assunto. – O que precisamos fazer
agora é pedir ajuda aos protetores da Alma e da Magia…
— Kalimuns – Morton o interrompeu. – Nós dois sabemos que não poderemos enfrentar o exército de kenrau-
ers que está chegando e, além do mais, não há tempo. Preciso que me conte tudo sobre alma-guardiã.
SacerdoteS
33
Kalimuns não disse nada, apenas concordou com a cabeça, sentindo um imenso orgulho pela decisão que seu
grande amigo estava prestes a tomar. Tumbar podia não saber o que Morton iria fazer, mas Kalimuns sabia.
Kalimuns conhecia Morton muito bem e sabia que ele estava disposto a se sacrificar.
— Não poderemos terminar nossa batalha, Katheilos – disse Morton atacando o Cavaleiro-Líder com o cajado e
jogando sua espada cristalina no chão. Morton saiu correndo em direção a saída do Templo das esferas e usou
um feitiço do Tempo para passar sobre a enorme cratera no chão do templo. Assim que chegou a porta, ele o-
lhou para trás e disse:
— Adeus – então saiu correndo para nunca mais voltar.
Mifitrin estava sentada numa pedra a beira do precipício, na parte de trás do templo. Brincava distraidamente
com a pequena esfera do Tempo, que fazia deslizar de uma mão para a outra. De repente ouviu passos e ficou
em pé, assustada, mas alegrou-se ao ver que quem corria em sua direção era Morton. O Mago continuou cor-
rendo até ela e, assim que chegou perto, segurou-a pelo braço e atirou-se no precipício junto com Mifitrin.
Mifitrin gritou enquanto caia no precipício com Morton, sem entender o que estava acontecendo. O vento batia
forte em seu rosto e seus cabelos esvoaçavam-se pelo ar. Morton não lhe disse nada; ela o viu tocando seu colar
e depois disso viu apenas um clarão de luz anil, e tudo mudou.
Não estava mais caindo. Estava novamente sentada na pedra à beira do precipício, brincando com a esfera entre
seus dedos. Ela viu Morton correndo em sua direção, exatamente como aconteceu segundos atrás, e então ficou
em pé. Mas desta vez foi diferente. Morton parou de correr e não se atirou no precipício junto com Mifitrin.
— Senhor Morton – ela exclamou assustada. – O que está acontecendo?
— Mifitrin – Morton falou – escute-me com atenção. Nesse momento há duzentos kenrauers subindo as escada-
rias da montanha Arguelse, e logo chegarão aqui. O único meio de expulsá-los agora é selando os Domínios do
Tempo, mas a única forma disso acontecer é a alma-guardiã do Tempo abandonar o mundo corpóreo.
— E quem tem essa alma? – perguntou Mifitrin preocupada.
— Eu!
Mifitrin perdeu o chão. Sentiu que caía pelo precipício novamente, embora continuasse no mesmo lugar.
— Não, senhor Morton. O senhor não pode morrer…
— É a única maneira, Mifitrin. Se aqueles kenrauers chegarem ao templo não poderemos enfrentá-los e eles
matarão a todos nós. Eles pegarão esta esfera que está em suas mãos e, se conseguirem a espada Kentairen, es-
tará tudo perdido. O mau se alastrará pelo mundo todo. Você não tem noção do inimigo que estamos enfrentan-
do, Mifitrin, nem da magia que ele utiliza.
Mifitrin estava chorando, mas ouvia tudo em silêncio.
— Mifitrin, sempre te treinei diferente do modo que os outros Aprendizes são treinados por seus tutores. Nunca
se esqueça de tudo o que lhe ensinei, e não se limite aos ensinamentos oferecidos por seu tutor ou por seu colar;
vá além. Quero que você seja Aprendiz do Mestre Kantus, ele te aceitará e te tornará uma excelente Sacerdotisa
do Tempo.
Mifitrin abraçou-o e chorou profundamente. Não dava atenção às coisas que ele lhe pedia, queria apenas abra-
çá-lo. Tê-lo entre seus braços e não solta-lo mais. Era como se, ao fazer isso, não fosse mais perdê-lo. Mas ela
estava ciente do que Morton faria, o conhecia perfeitamente bem para saber que as coisas não aconteceriam de
outra maneira. Não aceitou o fato de perder seu tutor, mas sabia que nada que fizesse poderia alterar o rumo que
as coisas tomaram. Não aceitou, mas compreendeu.
— Obrigada, senhor Morton, por tudo o que me ensinou.
— Mifitrin, você sabe como é importante para mim. E eu sei que no futuro será importante para muitos. Tum-
bar é o Vidente e não sabe disso, mas ele sabe que o que farei hoje mudará o destino de muitos, e um deles é o
seu, Mifitrin. Essa guerra ainda não terminou, e tenho certeza de que participará da vitória quando estiver pre-
parada. Só lamento por não ter a oportunidade de te ver crescer e tornar-se uma mulher forte e corajosa, mas
faço o que é necessário agora, Mifitrin. Adeus, minha querida Aprendiz…
Ela tentou dizer algo, mas sua voz ficou presa na garganta, então apenas abraçou-o mais forte ainda.
De repente ela viu um clarão de luz anil e tudo voltou a mudar. Estava novamente caindo no precipício com seu
tutor. Morton estava caindo pouco abaixo dela, e ela viu quando ele tocou seu colar e utilizou um feitiço para
SacerdoteS