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ESTRUTURAÇÃO MUSICAL

AULA 2

Prof. Alan Rafael de Medeiros


CONVERSA INICIAL

Prezado aluno, damos início, com este estudo, a uma introdução sobre
formas musicais presentes no contexto do século XVII, de extrema relevância
para o Ocidente musical. Verificaremos elementos constitutivos de obras
instrumentais, como fuga e variação, suítes orquestrais e sonatas, bem como o
concerto barroco. No que tange à música vocal, analisaremos a cantata e o
oratório, importantes meios de divulgação da música sacra desse período. Não
deixe de consultar esses conteúdos para aprofundar seus conhecimentos
musicais sobre o que foi produzido musicalmente no século XVII.

TEMA 1 – FUGA E VARIAÇÃO

Ao abordar a conjuntura das estruturas musicais que virão a seguir,


consideramos importante ter em mente a noção de que, quando um compositor
escreve uma peça musical, deve planejar seu trabalho com elevado grau de
detalhamento, tal qual um engenheiro ao projetar uma construção. O produto
resultante deve sempre possuir continuidade, equilíbrio e forma, e esse
equilíbrio, em Música, é avaliado na sua relação com o tempo.
A palavra “forma” é utilizada para descrever a maneira como o compositor
alcança esse equilíbrio ao dispor e ordenar suas ideias musicais, ou seja, trata-
se de como o compositor projeta e constrói sua música. Forma é entendidO
como a estrutura total de uma obra musical; entretanto, o compositor deve
preencher essa estrutura com detalhes interessantes (Bennett, 1986), e mais:
detalhes que sejam partilhados pelo contexto cultural do seu tempo, a fim de
dialogar com um repertório de possibilidades musicais familiares aos ouvintes e
aos demais compositores que partilhavam desses mesmos repertórios.

1.1 Fuga

A fuga pode ser entendida como uma peça polifônica (contrapontística)


que se fundamenta essencialmente na técnica da imitação, ou seja, a sucessão
de vozes (linhas melódicas) utiliza o material previamente apresentado pela voz
anterior. Esse é um tipo de estruturação musical escrita para três ou quatro
partes, que, conforme dissemos, são chamadas “vozes” (mesmo sendo escritas
para instrumentos), no sentido de linhas melódicas independentes. Poderíamos
indicar, por fim, que a fuga é um tipo de composição cuja elaboração formal
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consiste basicamente na insistente repetição de um tema e de sua imitação,
utilizando fragmentos livres entre suas repetições (Zamacois, 1979, p. 57).
O termo fuga atesta antes um estilo composicional ou um procedimento
que propriamente uma forma específica. O estilo fugado emergiu na segunda
metade do século XVII e na primeira do século XVIII, derivado de antecedentes
vocais como moteto, chanson e madrigal renascentistas, e de outros
instrumentais, como ricercare, canzona e fantasia; entretanto, seria efetivamente
consolidado na obra de J. S. Bach (Kohs, 1976).
A elaboração da fuga obedece à seguinte ideia: a obra musical é
estruturada com base em uma melodia relativamente curta, mas de importante
conteúdo musical, recebendo o nome de tema (ou ainda sujeito, motivo,
antecedente). Trata-se de uma ideia musical que serve de ponto de partida para
todas as fugas. Do mesmo modo, a importância do tema na fuga reside na sua
reexposição contínua, auxiliando o ouvinte a perceber sua presença ao longo da
construção formal da obra. O tema será apresentado, e posteriormente
reexposto de diferentes maneiras entre as diferentes vozes, em diferentes
tonalidades e modos, tratado por movimento contrário, movimento retrógrado,
aumentação e/ou diminuição, dependendo das escolhas que o compositor fizer.
Dada a relevância primordial do tema na construção de uma fuga, seria sensato
afirmar que esse estilo composicional é conduzido por uma ideia fundamental
(Forner; Wilbrandt, 1993).
Em relação à sua estrutura, a fuga apresenta um tema que será exposto
por cada uma das vozes, e depois será retomado em diferentes relações
intervalares, de maneira a criar uma polifonia imitativa. O tema principal sofrerá
derivações com variações de tonalidade, ritmo e demais processos indicados
acima, com o intuito de potencializar ao máximo as técnicas de variação de um
tema. Para finalizar, buscando-se justificar o caráter conclusivo da obra, há o
retorno à tonalidade e ao tema inicial.
Desenvolve-se em um esquema como o apresentado a seguir:

1. Exposição: o sujeito é anunciado de maneira imitativa, em um padrão


tradicional; são apresentados os temas e os contrassujeitos (contrapontos
que recheiam as partes em que o tema será apresentado em outra voz).
A voz que recém-apresentou o tema (ou sujeito) segue na elaboração de
um contraponto (contrassujeito) que combine com o tema a ser
apresentado na voz seguinte, e isso se repete em todas as vozes. Há uma

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variação, entre cada exposição do tema, entre tonalidade da tônica
(primeiro grau) e da dominante (quinto grau).
2. Desenvolvimento (ou, ainda, “episódio” ou “divertimento”): derivações
múltiplas do tema feitas com materiais oriundos do tema ou do
contrassujeito, nas quais geralmente se evita a tônica, em uma contínua
expansão.
3. Recapitulação: alguma referência ao sujeito, na tonalidade inicial, próximo
ao fim, geralmente com uma pequena coda (do italiano, “cauda”, ou seja,
pequena extensão da obra no final).

Figura 1 – Estrutura da fuga

Fonte: Adaptado de Forner e Wilbrandt (1993, p. 273).

1.2 Variação

Assim como a fuga, a noção de variação parte da textura polifônica:


existem várias vozes dialogando na construção da estrutura musical. Em
especial, no que tange à música instrumental, o estilo tema e variações
encontrou cenário ideal de produção. Trata-se de uma obra que apresenta um
tema e suas sucessivas variações, contendo uma melodia inicial que serve de
mote para variações diversificadas.
Assim como a fuga, sua estruturação denota mais um estilo de
composição que propriamente uma forma delimitada. Caracterizava-se
prioritariamente pela apresentação de uma melodia que poderia ser repetida
com pouca ou nenhuma alteração, perpassada entre cada uma das vozes em
contraponto imitativo. Cada variação do tema poderia ser apresentada com
melodia distinta, permanecendo, em regra geral, na voz aguda; de maneira geral,
seriam o baixo e a figuração harmônica da música os elementos que
permaneciam inalterados.
Dentre os tipos de variação, Green (1979, p. 98) destaca dois estilos
prioritários:

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1. Variação contínua: baseada em um tema que engloba apenas uma ou
duas frases (geralmente abrangendo de quatro a oito compassos), com
cada variação sucedendo sem interrupções (Exemplos: Chaconne e
Passacaglia).
2. Variação seccionada: estruturada em um tema que apresenta usualmente
mais de um período, contendo uma pausa no fim desse tema, assim como
em cada variação. O representante mais significativo desse tipo de
variação se encontra nas composições dos Tema e Variações.

Grande parte dos compositores do século XVII usava os termos


passacaglia e chaconne indiscriminadamente, já que ambos caracterizam
danças lentas. Fato é que os dois estilos têm vários pontos em comum, já que
se baseiam em um tema de oito compassos que é insistentemente repetido,
apresentam compasso ternário e denotam variações contínuas, ou seja, sem
pausa entre o tema e cada variação. A diferença poderia residir na estruturação:
a chaconne sintetiza uma série de variações elaboradas sobre um esquema
harmônico e, em contrapartida, a passacaglia é construída com base em um
baixo ostinato (baixo que se repete insistentemente).
Já a canzona poderia ser entendida como uma derivação complexa das
adaptações da música vocal para instrumentos de cordas dedilhadas ou teclas
(daí o nome canzona, herdado da chanson francesa). Basicamente, consistia em
uma composição com textura polifônica para vozes, com partes contrastantes
entre si que mantinham o caráter imitativo presente na fuga. Com uma série de
seções contrastantes, cada uma se caracterizava por determinadas figuras
motívicas e, do mesmo modo, por vezes em diferentes relações rítmicas, de
andamento e de caráter.

TEMA 2 – SUÍTE E SONATA BARROCA

Estamos visualizando, neste momento, que a emancipação dos


instrumentos colocou aos compositores novos desafios de escrita e estruturação
musicais diversificadas que por vezes acabavam confundindo terminologias e
nomenclaturas. A criação de novos produtos musicais para a música
instrumental – já que antes era impensável a elaboração de música para
instrumentos cuja função não fosse exclusivamente o acompanhamento da voz
– possibilitou novas formas musicais e novas ferramentas composicionais.

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2.1 Suíte

Boa parte da música de teclas de fins do século XVII e início do século


XVIII foi composta no formato de suíte, isto é, um conjunto de músicas em ritmo
de dança. A estrutura mais conhecida, a variedade alemã, consistia no
agrupamento de quatro danças-padrão: allemande, courante, sarabanda e giga.
A cada uma dessas poderiam ser acrescidas uma rápida peça introdutória, e por
vezes uma ou mais danças facultativas, quer depois da giga, quer antes ou
depois da sarabanda.
As suítes, em todas as suas peças, possuem a mesma tonalidade e estão
dispostas na forma binária: duas seções, A e B, normalmente intercaladas entre
si. Entretanto, em alguns casos existe a recorrência da forma rondó (tema
principal que se alterna entre episódios distintos: A-B-A-C-A-D...), geralmente no
terceiro movimento da suíte (Bennett, 2007).
Dos quatro movimentos-padrão de dança, a allemande (de origem
provável alemã) é escrita geralmente em compasso binário relativamente rápido,
anacruse inicial e uma figuração rítmica elaborada em colcheias e semicolcheias
em todas as vozes. A courante (de origem francesa) geralmente se relaciona
tematicamente com a allemande, apresentada em compasso 6/4, dominada por
uma figuração de semínima pontuada nos primeiros dois e nos dois últimos
tempos de cada compasso (por vezes a courante francesa é substituída pela
corrente italiana, mais rápida, em fórmula de compasso 3/4). A sarabanda (dança
espanhola) se dá em ritmo lento e compasso ternário, em estilo mais homofônico
que as anteriores (textura vertical em que todas as vozes mantêm o mesmo
ritmo). A giga (de origem anglo-irlandesa), dança final da suíte, tornou-se
frequente na utilização de ritmo pontuado (12/8, 6/8), com incidência de saltos
melódicos amplos e movimento vivo e contínuo de tercinas. Geralmente ocorre
em estilo fugado (imitativo) e possui duas seções, com a segunda apresentando
o tema invertido da primeira (Grout; Palisca, 2007).

2.2 Sonata barroca

O termo “sonata” vem do latim sonare (soar); apesar de poder ser escrita
para instrumento solista, boa parte da sua produção inicial foi escrita para solista
com acompanhamento de contínuo. Lembremos que o contínuo era um
agrupamento executado por um instrumento grave com inclusão de instrumento

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harmônico (cravo, alaúde, dentre outros), ou seja, tínhamos no mínimo dois
instrumentos mais o solista. Pelo número de instrumentistas envolvidos, a esse
tipo de sonata deu-se o nome de trio sonata.
A sonata barroca tinha inicialmente duas espécies: a sonata da câmera
(de câmara), destinada à execução em pequenas salas, e a sonata da chiesa
(de igreja), produzida para ser executada nesse espaço, no qual provavelmente
o contínuo era executado por órgão e fagote (Bennett, 2007). Os dois tipos
apresentavam a mesma estrutura, dividida em quatro movimentos, geralmente
na mesma tonalidade, com andamentos contrastantes (lento, rápido, lento,
rápido) e estrutura binária (A-B) em cada um deles. Enquanto a sonata de
câmara fazia uso de peças de dança, tal qual a suíte, a sonata da chiesa possuía
caráter mais sério, escrita geralmente no estilo de fuga.
Outro tipo de sonata menos recorrente seria a sonata para instrumento
solista – em especial, de teclas. Alessandro Scarlatti (1660-1725) foi
representativo nesse tipo de proposta, tendo escrito aproximadamente 550
sonatas para teclas; elas possuíam um único movimento e ambicionavam
demonstrar o virtuosismo do intérprete por meio do uso de trinados, de
passagens rápidas e de intervalos espaçados entre as teclas (Grout; Palisca,
2007).
A elaboração composicional gradativa de criar contraste com base na
inclusão, na mesma peça, de movimentos distintos e com características
rítmicas, motívicas e texturais distintas foi uma das relevantes contribuições da
estrutura formal da sonata barroca para a música do Ocidente. Tal é a
importância dessa estruturação que, como sabemos, esse tipo de procedimento
ainda é amplamente usado na música de concerto (Oliveira, 2008).

TEMA 3 – CONCERTO GROSSO E CONCERTO SOLISTA

Nesse momento, analisaremos a música instrumental de maiores


proporções. Trata-se de estruturas formais pensadas para conjuntos orquestrais
mais complexos que as formas visualizadas até então. Perceba como é
importante conhecermos o tipo de produção estrutural que dá suporte a uma
dada organização instrumental, pois, sem ela, muitas vezes perdemos a chance
de compreender a totalidade de uma manifestação musical, e por isso mesmo é
de extrema importância aprofundarmos nossos conhecimentos nesse aspecto.

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3.1 Concerto grosso

A palavra “concerto”, de acordo com Bennett (2007), pode ter sua raiz
etimológica oriunda tanto do italiano, no sentido de “consonância”, quanto da
tradição latina, que quer dizer “disputa”. A tradição musical do concerto remonta
às peças policorais do Renascimento, e seus desdobramentos nas noções de
oposição e contraste contribuíram significativamente para a consolidação do
concerto grosso enquanto estrutura formal dos séculos XVII-XVIII.
As principais obras do repertório de concerto grosso colocam em papéis
distintos dois conjuntos instrumentais: um pequeno grupo de solistas, chamado
concertino, composto geralmente por dois violinos e um cello, contra uma
orquestra de cordas denominada ripieno (recheio, pleno), ou tutti (todos). Ao
ripieno poderia ser incluído o baixo contínuo com o intuito de enriquecer a
harmonia e o preenchimento textural, ou, ainda, de apoiar o concertino em
algumas passagens (Bennett, 2007).
Uma das características do concerto barroco é o contraste existente em
diferentes níveis, obtidos por meio da intenção do compositor, entre seções que
alternavam dinâmica forte e dinâmica piano, muitas vezes conseguidas por meio
da diferença dos grupos de instrumentos maiores contra outro grupo menor de
solistas. Outra característica é a alternância entre o modo maior contra o modo
menor, fórmulas rítmicas rápidas contra fórmulas rítmicas lentas, com o intuito –
sempre – de gerar interesse musical no ouvinte. O termo concerto grosso passou
a denominar, por volta do início do século XVIII, peças orquestrais escritas para
uma orquestra e grupo de solistas, mas, em termos estruturais, pareciam trios
sonatas que poderiam ser executadas tanto por um agrupamento e três ou
quatro instrumentos quanto por um conjunto de 100 músicos (Sadie, 1994, p.
212).
Com base em seus desdobramentos, o concerto barroco acabou por se
consolidar enquanto estrutura formal orquestral mais importante do início do
século XVIII. Sinteticamente, permitia aos compositores a combinação de várias
aquisições formais recentes do século XVII: o estilo concertato (modelo que
priorizava o contraste), a textura de um baixo firme e voz soprano (a mais aguda
das linhas melódicas) ornamentados, a consolidação de uma obra longa com
base em andamentos separados e autônomos (Grout; Palisca, 2007).

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De maneira geral, a estrutura formal dos concerti grossi da virada do
século respeitam uma estrutura de três andamentos distintos e autônomos entre
si (rápido – lento – rápido). Os movimentos rápidos são geralmente elaborados
em andamento alegro, formalmente elaborado em estilo fugado (polifonia
imitativa entre as vozes), e o andamento lento oferece dois adágios semelhantes
elaborados em estilo lírico.

3.2 Concerto solista

No concerto solista, a principal especificidade em relação ao concerto


grosso reside exclusivamente no contraste evidenciado entre orquestra e solista.
A diferença entre tutti e solo se definia musicalmente, de maneira especial, pela
construção virtuosística para o solo, estrutura que será levada ao extremo nos
séculos seguintes.
Por si, a ideia de oposição delineia o conceito do “concerto solista”, já que
nesse formato temos um solista lançado contra a massa sonora do tutti. Esse
conceito gradativamente era fortalecido, e o compositor com certa frequência
acabava por fornecer ao solista passagens complexas e expressivas.
O concerto solista, tal como o concerto grosso, apresentava quase
sempre a estruturação formal dividida em três movimentos (andamentos)
distintos e autônomos: rápido – lento – rápido. De maneira semelhante, os
movimentos rápidos eram apresentados na forma de ritornelo (retorno), que se
traduz na volta ao tema inicial da obra, apresentado quase sempre pela
orquestra (tutti). O tema é tocado no início do movimento e é reiterado
posteriormente, completo ou não, após as partes do solista, executadas com
apoio de pequeno conjunto orquestral (Bennett, 2007).

TEMA 4 – CANTATA E ORATÓRIO

Vamos, neste momento, abordar aspectos da música vocal do século XVII


vinculados à música sacra: a cantata e o oratório. Ambos são desdobramentos,
em certa medida, do século da ópera, naturalmente influenciados no estilo
composicional por esta última – entretanto, elaboraram estratégias específicas
para sua concretização no contexto religioso.

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4.1 Cantata

Inicialmente, a cantata era um desdobramento monódico da canção, uma


variação estrófica extremamente simples, uma espécie de madrigal dramático
cantado por uma voz com acompanhamento de alaúde ou outro instrumento
solista, elaborada, em geral, sobre duas ou três árias. Ao longo do século XVII,
acabou sendo convertida em uma forma composta de várias seções
contrastantes, seguindo, nesse sentido, boa parte das estruturas formais desse
século.
Na segunda metade do século XVII, acabou por ser modelada na estrutura
convencional da cantata tal como a compreendemos, traduzida em recitativos e
áreas intercalados, normalmente dois ou três de cada, para voz solista com
acompanhamento de contínuo sobre um texto de caráter laudatório, amoroso,
na forma de narração ou monólogo.Com duração, no seu conjunto, de uma obra
de dez a quinze minutos, poderia ser compreendida como um trecho musical
destacado de uma ópera.
A principal diferença entre a cantata e a ópera reside no fato de tanto o
poema quanto a música, na cantata, serem concebidos em uma escala mais
intimista. Essa afirmativa se justifica pela execução em sala de menores
proporções, sem cenários ou figurinos teatrais, para um público relativamente
menor e mais seletivo do que o dos teatros de ópera. Em certa medida, é
possível indicar que a cantata atingia certa elegância e requinte artístico que não
teriam lugar em uma ópera. Justamente por seu caráter intimista, oferecia mais
oportunidades do que a ópera no que tange à experimentação musical (Grout;
Palisca, 2007).
No século XVIII, a cantata tornou-se uma peça essencialmente dramática,
abrangendo elementos musicais operísticos para alcançar tal dramaticidade.
Elencou maior encadeamento de números de árias e recitativos, destacando
trechos corais. Importante mencionar que, em países protestantes, a cantata
passou a ocupar lugar de destaque no culto religioso, sendo o estilo prioritário
na estruturação musical luterana, com participação de solistas, coros, utilização
de instrumentos – dentre eles o órgão – e de textos bíblicos (Kennedy, 2014;
Sadie, 1994).

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4.2 O oratório

Elaborado em período semelhante ao da ópera, o oratório representa


importante estrutura de música vocal do século XVII. Seu nome é herdado do
local em que as primeiras composições foram apresentadas, o Oratório de São
Felipe de Néri, em Roma. Inicialmente os oratórios se assemelhavam em muito
à estrutura da ópera no que diz respeito à sua organização formal (recitativos,
árias, coros, com cenários, fantasias e interpretação teatral). De diferente nesse
contexto havia apenas a temática, baseada em textos sacros, geralmente
oriundos da Bíblia, habitualmente não litúrgicos.
Ao longo do século XVII, porém, os oratórios deixaram de ser encenados,
restando apenas sua apresentação musical, realizada em salas de concerto e
nas próprias igrejas. Apesar de não haver encenação, há uma intenção cênica
no oratório, convidando o ouvinte a imaginar o contexto narrado. Havia gradativo
distanciamento da prática da ópera, já que as representações dentro da Igreja
se tornavam cada vez mais restritas. Adequou-se, portanto, esse gênero similar,
que tentava compensar a ausência cênica com uma expressividade dramática
musical exacerbada.
Abundantemente utilizado, seja pela Igreja Católica, seja pela Protestante,
tem como característica a combinação de recitativos, árias e coros. Em oposição
à ópera, o oratório conta com a presença de um narrador, cantado,
frequentemente com texto em latim, apesar de nesse período também serem
elaboradas obras com idioma vernáculo. Os principais compositores de oratórios
do século XVII foram Giacomo Carissimi (1605-1674), Heinrich Schütz (1585-
1672) e, no século XVIII, o gênero ganhou fôlego nas mãos de Georg Friedrich
Häendel (1685-1759).
Do ponto de vista formal, assemelha-se, conforme indicado, à
estruturação da ópera, com aberturas e ritornelos instrumentais, seguidos de
recitativos e árias intercaladas, com interação entre canto solista, duos, trios e
coros. Dois gêneros prioritários de elaboração do oratório eram vigentes no
século XVII, e em certa medida permearam a produção de basicamente todos
os compositores do gênero: o oratorio volgare italiano, com duração de 30 a 60
minutos, elaborado em duas partes intercaladas com um sermão; e o oratorio
latino, em latim, organizado em uma única seção contínua.

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TEMA 5 – ATIVIDADE ANALÍTICA

Com o objetivo de detalhar um pouco mais a construção que caracteriza


um movimento (uma parte) do concerto, nesta atividade analítica verificaremos
a estruturação presente no Movimento III do Concerto a cinque do compositor
italiano Tomaso Albinoni. Nesta atividade, teremos a oportunidade de apreciar e
de visualizar didaticamente como um compositor pensa um movimento de um
concerto. Aproveitando a análise, revisitaremos o conceito de “imitação”, tão
utilizado na fuga e em outras peças polifônicas.
Quando um compositor constrói um movimento de uma obra, ele leva em
consideração duas questões prioritariamente: 1 – a estrutura geral da obra (sua
forma): a construção arquitetônica, o esqueleto musical com o qual trabalhará os
demais elementos estruturantes (melodia, ritmo, harmonia, textura, timbres etc.);
2 – o(s) tema(s) principal(is) que encabeça(m) a organização do material
musical. Esses temas tendem a ser melódicos, ou seja, melodias organizadas
que servirão de material básico para a construção do discurso, ampliados,
reduzidos e transformados insistentemente ao longo da peça musical,
justamente para criar coerência.
No que tange à estrutura geral, poderíamos dizer que se trata de uma
forma sonata simples e bastante pragmática, com apresentação dos temas em
todas as vozes, na tonalidade principal (dó maior) no que chamamos de
Exposição (parte 1 do movimento). Na parte 2, na estrutura da sonata conhecida
como Desenvolvimento, temos um trecho modulatório, em que as principais
tonalidades afirmativas seriam a relativa menor da tonalidade principal (no caso,
lá menor), além do mi menor. Esse trecho também apresenta fragmentos do
tema principal, justamente para que o discurso musical seja compreensível com
materiais já apresentados anteriormente. Aqui vemos, do mesmo modo, o
trabalho do compositor em enfatizar o contraste, tão importante para esse tipo
de produto musical, entre a parte A (exposição) – apresentada com o tutti
orquestral – e a parte B (desenvolvimento) – priorizada nos instrumentos solistas.
O retorno à estrutura inicial, na parte C, é conhecido como reexposição, e
oferece uma síntese do que foi apresentado anteriormente. Na obra em questão,
há consenso e união entre o tutti e os solistas. A reexposição reafirma a
tonalidade original (dó maior) e encaminha o movimento para a sua conclusão.

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Quanto ao tema principal, isso fica evidente na exposição: perceba como
o sujeito (nome dado ao tema principal de uma melodia que será reaproveitada
ao longo da obra) é insistentemente apresentado em todas as linhas melódicas
da orquestra. No primeiro compasso, nos violinos I nos é apresentado o tema,
ou sujeito.

Figura 2 – Trecho de Concerto a cinque, de Tomaso Albinoni

Fonte: IMSLP, S.d.

Veja o movimento melódico: começa no primeiro grau da escala de dó


maior, faz um movimento melódico rápido em semicolcheias, partindo do terceiro
grau da escala, e chega a colcheias repetidas de sol, quinto grau da escala. Aqui
temos um claro movimento de arpejo enfatizando as notas do acorde de dó
maior. No segundo compasso temos um arpejo: Dó – Sol – Dó – Sol, nos tempos
três e quatro, com notas fortes enfatizando o lá seguido de movimentos rápidos
em sol – fá, que nos levam ao quarto compasso, representados por bordaduras
centradas nas notas mi e dó, respectivamente. Temos, ao considerar o
movimento todo desses três compassos, uma afirmação do acorde de dó maior,
o que naturalmente configura a tonalidade do movimento como um todo. Perceba
como nos compassos seguintes esse tema será repassado (imitado) nas demais
vozes da orquestra, primeiramente nos violinos II, depois nas violas I, depois nos
graves, representados pelos cellos, para então, por fim, ser apresentado nas
violas II.
É importante perceber como pequenas partes do tema serão destacadas
do tema principal e reutilizadas ao longo do movimento. Analise algumas figuras
melódico-rítmicas do tema e procure-as, em especial no desenvolvimento dessa
forma sonata. Elas são fundamentais, como informado anteriormente, para a
compreensão da estrutura geral que vai gerar sentido à obra como um todo e,
nesse caso, dar coerência ao movimento do concerto.

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na prática

Como exercício prático, é extremamente importante identificarmos


aspectos constituintes em dado estilo musical.
Nesta abordagem, verificaremos a estrutura formal do ritornelo presente
no terceiro movimento (Outono) da série As quatro estações do compositor
italiano Antonio Vivaldi. Vivaldi escreveu mais de 500 concertos dos tipos grossi
e solista – sem dúvidas um compositor consciente do uso dos recursos formais
do seu tempo.
Verifique o tema “A caça” presente no início o movimento:

Figura 3 – Outono (As quatro estações): Tema “A caça”

Fonte: Bennett, 2007, p. 43.

Saiba mais
Para embasar sua apreciação, ouça a música no link a seguir:
<https://www.youtube.com/watch?v=HNpoqEcl7UA>. Acesso em: 30 ago. 2019.

Estamos indicando a você, aluno, que essa música se encontra


formalmente elaborada na estrutura de ritornelo, que, conforme verificamos, é o
recurso que reapresenta o tema principal a cada repetição da orquestra.

1. Você consegue ouvir as repetições do tema principal? Em que momentos


elas ocorrem?
2. Essas repetições são apresentadas do mesmo modo ou existem
variações?
3. Além do ritornello, o que você identifica de importante nesse movimento
da obra? Ele obedece às estruturas formais do concerto barroco? Quais
os contrastes (dinâmica, intensidade, modo maior e menor etc.)?

Lembre-se de apreciar o movimento mais de uma vez, buscando elaborar


um esquema tentando identificar como o compositor construiu a lógica desse
andamento da música. Esse exemplo nos ajuda a identificar a intenção dos
compositores vinculados a estruturas musicais definidas, contribuindo para a
compreensão de eles estavam comprometidos com a ampliação do repertório
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musical de sua época, seguindo as estruturas formais oferecidas por dado estilo
musical. Confronte o esquema que você elaborou com o de seus colegas,
buscando conclusões coletivas sobre cada um dos pontos apresentados na
apreciação dessa obra.

FINALIZANDO

Como você pôde verificar, estudamos grande parte das formas musicais
presentes no século XVII. Foi possível perceber que, conforme temos dito
insistentemente, essas formas encontram eco nos gêneros produzidos por
compositores antecessores, abrindo caminho para novas experiências musicais
oportunizadas pelos avanços ocorridos na ciência da música e nos processos
composicionais então vigentes.
Diferentemente do estudo anterior, confirmamos que os instrumentos
musicais passaram a ser mais uma possibilidade composicional nas mãos dos
compositores, já que antes da Era Moderna a música prioritariamente precisava
do suporte da voz para ser considerada de alto grau de elaboração. Com a gama
cada vez maior de instrumentos a utilizar enquanto fonte de inspiração para a
composição, naturalmente as próprias formas musicais passaram por um
processo gradual de desenvolvimento, e nesse sentido podemos citar a fuga, o
tema e variações, as suítes e a própria sonata para teclas. Todos esses gêneros
passaram por uma revisão das práticas anteriores e foram naturalmente
potencializados em função das novas práticas musicais do século XVII e início
do XVIII.
Por fim, analisamos a influência da ópera no cenário sacro, quando da
utilização de vários de seus recursos dramáticos, musicais e cênicos no contexto
religioso. É inegável a contribuição dos recursos musicais operísticos na
caracterização da dramaticidade necessária para dar vazão aos textos bíblicos
utilizados em cantatas e oratórios do século XVII. Mesmo quando boa parte
desses recursos foi banida dos gêneros em questão, podemos indicar que a
herança deixada pelo processo composicional das óperas caracterizou, e ainda
caracteriza, o que entendemos por oratório e cantata, gêneros vocais sacros de
extrema relevância no cenário musical.

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REFERÊNCIAS

BENNETT, R. Forma e estrutura na música. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

_____. Uma breve história da música. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

FORNER, J; WILBRANDT, J. Contrapunto creativo. Barcelona: Labor, 1993.

GREEN, D. M. Form in Tonal Music: An Introduction to Analysis. 2, ed. Austin:


Harcourt Bace Jovanovich College Publishers, 1979.

GROUT, D; PALISCA, C. História da música ocidental. Lisboa: Gradiva, 2007.

KENNEDY, M. Cantata. The Oxford Dictionary of Music, 2nd ed. Oxford Music
Online. Oxford University Press. Disponível em:
<http://www.oxfordmusiconline.com/subscriber/article/opr/t237/e1772>. Acesso
em: 25 ago. 2019.

KOHS, E. B. Musical Form: Studies in Analysis and Synthesis. Boston:


Houghton Wifflin, 1976.

OLIVEIRA, R. Forma e estrutura na música ocidental: uma introdução a algumas


das formas mais recorrentes na música europeia dos séculos XVII e XVIII.
Revista Modus, ano II, n. 10, Belo Horizonte, mai. 2012, p. 45-57.

SADIE, S. Dicionário Grove de música. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.

ZAMACOIS, J. Curso de formas musicales. 4. ed. Barcelona: Editorial Labor,


1979.

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