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“São Bernardo” – Análise da obra de Graciliano Ramos


São Bernardo, de Graciliano Ramos, sob a óptica de Lukács veja arquivo em PDF
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RESUMO: O artigo se propõe analisar o romance São Bernardo, de Graciliano
Ramos, com o amparo dos conceitos de representação e reflexo da realidade
do teórico húngaro Georg Lukács. Em Narrar ou descrever?,
Significado de Práxis
Práxis é uma palavra com origem no termo em grego praxis que significa conduta ou ação.
Corresponde a uma atividade prática em oposição à teoria.

Este termo é abordado por vários campos de conhecimento, como filosofia e psicologia,
que classificam práxis como uma atividade voluntária orientada para um determinado fim
ou resultado.

Vários pensadores mencionaram o conceito de práxis nas suas obras, como Karl Marx e
Jean Paul Sartre, este último na sua obra intitulada Critique de la Raison Dialectique
(Crítica da Razão Dialética).

A palavra práxis também pode remeter para um movimento de vanguarda da poesia


brasileira, que teve origem no início da década de 60 do século XX e que foi liderado por
Mário Chamie.

Práxis e Marx

As primeiras noções de práxis surgiram com Aristóteles, mas foi Karl Marx o responsável
pelo aprofundamento desta concepção.

Práxis é um conceito básico da filosofia marxista, que remete para a transformação


material da realidade. Segundo Aristóteles, a práxis é o fundamento da teoria, sendo que
para Marx a teoria deve estar incluída na práxis. De acordo com a visão de Karl Marx,
práxis remete para os instrumentos em ação que determinam a transformação das
estruturas sociais. Marx utilizou o conceito de práxis como uma crítica ao idealismo e
materialismo.

O pensamento marxista descreve práxis como uma atividade que tem a sua origem na
interação entre o homem e a natureza, sendo que esta só começa a fazer sentido quando o
homem a altera através da sua conduta.

A obra São Bernardo:


A obra São Bernardo, de Graciliano Ramos, foi publicada no ano de 1934 e é um
retrato da realidade do Brasil referente ao período em que fermentava a Revolução
de 1930 e desenvolvia-se a modernização do país, preconizada pelo Movimento de
1922. Graciliano apresenta o plano produtivo, a posse da terra mediada pela força e
pelo clientelismo, que tem como representantes do centro do poder rural o coronel,
que dá lugar ao capitalista/ fazendeiro, este pautado pela figura de Paulo Honório e
pela propriedade São Bernardo, o meio em que ainda se efetua a dominação e o
poder.
O romance é construído por duas veredas, dois
movimentos, onde, de um lado, há a trajetória da personagem
Paulo Honório, trajetória que o vincula como parte da
propriedade São Bernardo, a qual é incorporada a ele; de outro,
tem-se o livro de memórias do narrador-protagonista, onde este
“amarra as pontas da vida1 ”,
1 Expressão de Dom Casmurro, de Machado de Assis.
mas não une a meninice à
maturidade e sim sua ascensão e decadência; as duas
perspectivas convergem-se para o retrato do país, também em
transição.
O enredo aborda a história de um homem rude, que tinha
um intuito na vida: apossar-se das terras de São Bernardo, no
interior de Viçosa, Alagoas. A origem e a data de seu
nascimento são incertas, uma vez que ele é fruto do abandono
dos pais. Sua lembrança mais remota alcança a um cego que
lhe puxava as orelhas e à velha Margarida, que vendia doces:
“Se tentasse contar-lhes a minha meninice, precisava mentir.
Julgo que rolei por aí à toa. Lembro-me de um cego que me
puxava as orelhas e da velha Margarida, que vendia doces. O
cego desapareceu. A velha Margarida mora aqui em São
Bernardo” (p. 67,68).
Quando jovem, fora trabalhador braçal de São Bernardo,
propriedade então de Sebastião Padilha. Ganhava a irrisória
quantia de “cinco tostões por doze horas de serviço” com a enxada. Aos dezoito
anos acaba preso por matar um homem, João Fagundes. Segundo ele, este é seu
primeiro ato digno de referência. Permanece na prisão por “três anos, nove meses
e quinze dias”, nesse ínterim aprende a ler com Joaquim sapateiro, através de uma
bíblia protestante. Depois que sai da cadeia, seu único pensamento é ganhar
dinheiro. Por intermédio de uma troca de votos com o chefe político do local e
agiota, toma de empréstimo o valor de cem mil-réis, assim principia-se
sua ascensão.
Segundo aponta, de início o capital desviava-se, mas ele o perseguia
resolutamente:
Viajando pelo sertão, negociando com redes, gado, imagens, rosários, miudezas,
ganhando aqui, perdendo ali, marchando no fiado, assinando letras, realizando
operações embrulhadíssimas. Sofri sede e fome, dormi na areia dos rios secos,
briguei com gente que fala aos berros e efetuei transações comerciais de armas
engatilhadas (p. 69).
De volta à Viçosa, busca aproximação com o filho do antigo patrão, Luís Padilha,
que – diferente do que lhe ambicionava o pai e convinha a sua classe – não se
tornou doutor, mas sim um pândego emaranhado aos jogos e à bebida.
Paulo Honório tira vantagem da situação do herdeiro, empresta-lhe dinheiro a juros
e acaba adquirindo a antiga propriedade:
“Para evitar arrependimento, levei Padilha para a cidade, vigiei-o durante a noite.
No outro dia, cedo, ele meteu o rabo na ratoeira e assinou a escritura. Deduzi a
dívida, os juros, o preçoda casa, e entreguei-lhe sete contos e quinhentos e
cinquenta mil-réis. Não tive remorsos” (p. 81).
Ele, a princípio, tem dificuldades para recuperar a fazenda, abandonada por Padilha
e já avariada:
Naquele segundo ano houve dificuldades medonhas.
Plantei mamona e algodão, mas a safra foi ruim, os
preços baixos, vivi meses aperreado, vendendo macacos
e fazendo das fraquezas força para não ir ao fundo.
Trabalhava danadamente, dormindo pouco, levantando-
me às quatro da manhã, passando dias ao sol, à chuva,
de facão, pistola e cartucheira, comendo nas horas de
descanso um pedaço de bacalhau assado e um punhado
de farinha (p. 85).
Entretanto, alcança a estabilidade econômica. Com isso, e
já aos quarenta e cinco anos, pensa em um herdeiro para
perpetuação da propriedade, casando-se, assim, com a
professora, também de origem humilde, Madalena. O casamento
se configura, como os demais relacionamentos do protagonista,
como uma relação de interesse e de domínio, onde este busca
enquadrar a mulher como parte de sua propriedade. Madalena
não aceita o jugo e suicida-se.
Com a eclosão da Revolução e a modernização que exigia
novas máquinas e, principalmente, com o suicídio da mulher,
Paulo Honório cruza os braços frente à crise e vê a empreitada
de sua vida desmoronar. Ele acaba refletindo e tendo
consciência da brutalização que incorporou para atingir o
propósito de sua luta, brutalização esta que acabou por dominálo.
Paulo Honório é o retrato da reificação – própria do
capitalismo. É o exemplo da fusão entre sujeito e objeto, no
caso a propriedade. Candido destaca que São Bernardo era o
seu prolongamento: “Em Paulo Honório, o sentimento de
propriedade, mais que simples instinto de posse, é uma
disposição total de espírito, uma atitude complexa diante das
coisas. Por isso engloba todo o seu modo de ser” (1972, p. 22).
Candido aponta também que a frustração é o que
desencadeia a escrita de suas reminiscências:
O narrador sente que o homem que ele manifestou para o
mundo, e se desumanizou na conquista da fazenda São
Bernardo, no domínio sobre os outros, – que esse homem
era parte do seu ser, não o seu ser autêntico; mas que o
contaminou todo, inclusive a outra parte que não soube
trazer a tona e que avulta de repente ao seus olhos
espantados, levando-o a desleixar a fazenda, os negócios,
os animais, porque tudo “estava fora dele” (CANDIDO,
2006, p. 100).
Em São Bernardo forma e conteúdo confluem-se para
representar a realidade, ou, utilizando a designação de Lukács,
refletir a realidade social brasileira do período em transição. Na
obra, tem-se o caminho por que passou o novo fazendeiro: o
autor traça o percurso da acumulação de capital feita pelo
protagonista-narrador, que parte do trabalho rural na fazenda
até atingir o patamar de proprietário e desemboca na crise da
Revolução de 1930, onde este enverga – no entanto a promessa
de mudança mostrar-se-á utópica para além das linhas do
romance, uma vez que não significou uma ruptura radical da
estrutura social: o governo, ditatorial, de Getúlio Vargas ainda
representava as antigas classes rurais.
Sobre a Revolução de 1930, Raymundo Faoro, em Os Donos
do Poder (1958, p. 247), aponta:
Foram os acontecimentos e as ideias da fase pós-guerra
a 1924 que aglutinaram o ideário da revolução de 30 e da
situação dela emergente. Pode dizer-se que a ideologia
daquela quadra era vária e difusa, confundida com
elementos utópicos. Dela sairiam correntes socialistas,
fascistas e comunistas, caracterizando-se mais pelo não
à ordem existente do que pela definição do programa de
ação. Os revolucionários sabiam o que não queriam, mas
não sabiam o que querer. Desencantos, frias decepções e
ousados idealismos estruturaram-se sob a mesma
bandeira: o combate era contra as oligarquias estaduais
(...).
A travessia apresentada na obra é ancorada na narrativa
em primeira pessoa, em que a ação humana, tal qual apregoa
Lukács, possibilita o dinamismo que caracteriza a mudança –
mudança da personagem e mudança da sociedade. Toda a
composição de São Bernardo converge em uma representação
articulada, não fragmentada, do período, uma vez que Graciliano
almeja à unidade, à relação entre tema e linguagem,
personagem e narrativa, enfim, entre toda a composição do
romance que deve convergir para a representação realista de
sua época. Paulo Honório é um ser único, mas, ao mesmo
tempo, é símbolo de uma classe e de um momento histórico
brasileiro.
Lukács afirma na sua Introdução a uma Estética Marxista
(1968, p. 199) que:
A arte, contudo, jamais representa singularidades, mas
sim – e sempre – totalidades; ou seja, ela não pode
contentar-se em reproduzir homens com suas aspirações,
suas propensões e aversões, etc.: deve ir além, deve
orientar-se para a representação do destino destas
tomadas de posição em seu ambiente histórico-social.
Este ambiente existe artisticamente mesmo quando
aparece na obra ligado imediatamente ao homem que
existe por si só (...). De fato, todos os lineamentos do
homem, ainda que este seja representado isoladamente,
trazem em si os traços do seu destino, de suas relações
com os homens que o circundam, do êxito das tendências
que movem sua vida interior. Assim, todo artista,
tomando como assunto (direta ou indiretamente) os
destinos dos homens, deve também tomar posições em
face deles.
O período em que o romancista alagoano escreve situa-se
entre os anos de 1932 e 1934. O momento é marcado pelo
crescimento dos movimentos sindicais e da regulamentação
das relações de trabalho e o início da Industrialização do país,
fatos que deram os primeiros passos na Era Vargas. Tais
eventos se chocaram com a mentalidade das oligarquias rurais.
Graciliano traz para obra alguns aspectos importantes desse
contexto, mostrando, ao longo de sua narrativa, a luta contra a
promessa de mudança do movimento revolucionário em curso
no tempo em que a trama se passa: final dos anos 20.
Por meio da obra, Graciliano Ramos reflete sua posição
diante do mundo em que está inserido. Ele faz parte dos artistas
empenhados que têm consciência da situação de país
subdesenvolvido e que rompem com a perspectiva, até então
apregoada, de país novo, ainda não realizado, mas com grandes
possibilidades de progresso:
(...) dada esta ligação causal de “terra bela-pátria
grande”, não é difícil ver a repercussão que traria a
consciência do subdesenvolvimento como mudança de
perspectiva, que evidenciou a realidade dos solos pobres,
das técnicas arcaicas, da miséria pasmosa das
populações, da sua incultura paralisante. A visão que
resulta é pessimista quanto ao presente e problemática
quanto ao futuro (...). Mas, em geral, não se trata mais de
um ponto de vista passivo. Desprovido de euforia, ele é
agônico e leva à disposição de lutar, pois o traumatismo
causado na consciência pela verificação de quanto o
atraso é catastrófico suscita reformulações políticas (...).
Daí a disposição de combate que se alastra pelo
continente, tornando a ideia de subdesenvolvimento uma
força propulsora, que dá novo cunho ao tradicional
empenho político dos nossos intelectuais (CANDIDO,
2006, p. 171).
Para Luckács, o grande escritor tem que observar a vida e
compreender que não pode se limitar à descrição de sua
superfície exterior e nem ficar limitado ao relevo, feito de modo
abstrato, dos fenômenos sociais. Ele deve captar a relação
íntima entre a necessidade social e os acontecimentos da
superfície, o que deve ser construído por entrechos que se
transformem em “síntese poética dessa relação”.
Este aspecto é analisado pelo autor alagoano, em Linhas
Tortas (2002), na crônica “O romance de Jorge Amado”, escrita
em 1935, quando discute a obra Suor. Graciliano aponta:
O livro do Sr. Jorge Amado não é propriamente um
romance, pelo menos romance como nós estamos
habituados a ler. É uma série de pequenos quadros
tendentes a mostrar o ódio que os ricos inspiram aos
moradores da hospedaria. Essas criaturas passam
rapidamente, mas vinte delas ficam gravadas na memória
do leitor. (...)
O Sr. Jorge Amado tem dito várias vezes que o romance
moderno vai suprimir o personagem, matar o indivíduo. O
que interessa é o grupo – uma cidade inteira, um colégio,
uma fábrica, um engenho de açúcar. Se isso fosse
verdade, os romancistas ficariam em grande
atrapalhação. Toda análise introspectiva desapareceria,
perderia a profundidade (2002, p. 91, 92).
Em “O fator econômico no romance brasileiro”, também de
Linhas Tortas (2002), Graciliano debate a crise no romance de
sua época e censura a falta de uma “observação cuidadosa dos
fatos” (2002, p. 246) por parte dos escritores seus
contemporâneos. Para o romancista alagoano, os autores
brasileiros se ocupam apenas com a política e deixam de lado
os meios de produção. O trabalho e o sustento parecem-lhes
“matéria desagradável”, repugnante. Sem os meios de produção
as obras apresentam meramente uma “humanidade
incompleta”, destaca ele.
Graciliano pretende-se à representação que apanhe o
todo, que traga os meios de produção para refletir o social e,
além disso, busca a caracterização de “tipos que se comportem
como toda a gente” e, ao cometerem atos drásticos, a
obrigação do escritor é acompanhar a personagem até esta
ação, entendendo sua motivação e não trazendo o
acontecimento para o texto unicamente como arranjo
indispensável ao desenvolvimento da história. Ele pontua ainda:
Está visto que não desejamos reportagens, embora
certas reportagens sejam excelentes. De ordinário,
entrando em romance, elas deixam de ser jornal e não
chegam a constituir literatura. É inútil copiar bilhetes,
pedaços de noticiário, recibos, anúncios e cartazes.
Mas se essas cópias nos desagradam, mais
desagradáveis achamos a imitação de obras exóticas,
que nenhuma relação tem conosco. Simulando horror
excessivo ao regional, alguns romancistas pretendem
tornar-se à pressa universais. Não há, porém, sinal de que
o universo principie a interessar-se pelas nossas letras,
enquanto nós nos interessamos demais por ele e
voluntariamente desconhecemos o que aqui se passa.
Para sermos completamente humanos, necessitamos
estudar as coisas nacionais, estuda-las de baixo para
cima. Não podemos tratar convenientemente das
relações sociais e políticas, se esquecemos a estrutura
econômica da região que desejamos apresentar em livro
(p. 250-251).
As críticas sobre o romance brasileiro da época são
articuladas na estrutura composicional de seus romances. É por
meio das ações da personagem, em São Bernardo, que o enredo
transcorre. Graciliano apresenta uma estrutura seca, objetiva,
concentrada no essencial, esta é dada pela perspectiva de
Paulo Honório, que transporta para a obra sua visão utilitária de
mundo. De todo modo, a narrativa é veloz, não apresenta pausas
que paralisem o fluxo da trajetória do narrador-protagonista.
Este destaca:
Concluiu-se a construção da casa nova. Julgo que não
preciso descrevê-la. As partes principais apareceram ou
aparecerão; o resto é dispensável e apenas pode
interessar aos arquitetos, homens que provavelmente não
lerão isto. (...).
Aqui existe um salto de cinco anos, e em cinco anos o
mundo dá um bando de voltas.
Ninguém imaginará que, topando os obstáculos
mencionados, eu haja procedido invariavelmente com
segurança e percorrido, sem me deter, caminhos certos.
Não senhor, não procedi nem percorri. Tive abatimentos,
desejo de recuar; contornei dificuldades: muitas curvas.
Acham que andei mal? A verdade é que nunca soube
quais foram os meus atos bons e quais foram os maus.
Fiz coisas boas que me trouxeram prejuízo; fiz coisas
ruins que me trouxeram lucro. E como sempre tive a
intenção de possuir as terras de S. Bernardo, considerei
legítimas as ações que me levaram a obtê-las (p. 96).
No romance de Graciliano Ramos, tudo é racionalmente
ligado ao interesse e aos negócios do proprietário. E por meio
da particularidade de Paulo Honório, tem-se o reflexo do social.
É por meio do embate entre este e Madalena ou entre ele e Luís
Padilha que o conflito se dá, conflito este que envolve os
empregados da fazenda, que são subjugados pelo primeiro e
provocados pelo último; em paralelo está o conflito entre o
protagonista e o pensamento social de Madalena, que se
solidariza com os dramas daqueles.
Ilumina-se, além disso, um embate que diz respeito à
formação social brasileira e que se caracteriza entre o novo
fazendeiro, afeito aos ideais capitalistas, e o antigo coronel,
que associa trabalho à escravidão, e, portanto, representa uma
aristocracia rural decadente. Neste quadro, Paulo Honório
supera sua condição de classe, mas imprime nesta elevação a
violência dos velhos mandatários e assume condutas
patriarcais, o que o coloca em um entremeio – entre o
capitalista e o antigo senhor colonial. É neste panorama que se
justificam “as liquidações sumárias de vizinhos incômodos, a
corrupção de funcionários e jornalistas” e a violência para com
os empregados (CANDIDO, 1972, p. 23), mas, apesar disso, o
crescimento do narrador-personagem é pautando também pelo
trabalho.
De outro lado têm-se as personagens de Mendonça e
Padilha, simbolizando as antigas oligarquias, contudo, este
último, como foi desprovido da posse das terras, muda de
patamar, torna-se empregado de Paulo Honório, e, deste modo,
acaba assumindo um confronto intelectual contra aquele que
lhe arrebatou a propriedade:
Era ateu e transformista. Depois que eu o havia
desembaraçado da fazenda, manifestava ideias
sanguinárias e pregava, cochichando, o extermínio dos
burgueses.
[...] Nesse ponto surgiu-me um pequeno contratempo.
Uma tarde surpreendi no oitão da capela (...) Luís Padilha
discursando para Marciano e Casimiro Lopes:
– Um roubo. É o que tem sido demonstrado
categoricamente pelos filósofos e vem nos livros. Vejam:
mais de uma légua de terra, casas, mata, açude, gado,
tudo de um homem. Não está certo.
Marciano, mulato esbodegado regalou-se, entronchandose todo e mostrando as
gengivas banguelas:
– O senhor tem razão, Seu Padilha. Eu não entendo, sou
bruto, mas perco o sono assuntando nisso. A gente se
mata por causa dos outros. É ou não é, Casimiro?
Casimiro Lopes franziu as ventas, declarou que as coisas
desde o começo do mundo tinham dono.
– Qual dono! Gritou Padilha. O que há é que morremos
trabalhando para enriquecer os outros.
Saí da sacristia e estourei:
– Trabalhando em quê? Em que é que você trabalha,
parasita, preguiçoso, lambaio?
– Não é nada não, Seu Paulo, defendeu-se Padilha,
trêmulo. Estava aqui desenvolvendo umas teorias aos
rapazes.
Atirei uma porção de desaforos aos dois, mandei que
arrumassem a trouxa, fossem para a casa do diabo.
– Em minha terra não, acabei já rouco. Puxem! Das
cancelas para dentro ninguém mija fora do caco (p. 110 e
115, 116).
O trecho apresenta claramente a posição das personagens
destacadas: Marciano, o empregado, é resíduo da escravidão, e
por isso, pela perpétua condição de excluído, marcado
historicamente pela falta de direitos e de educação, percebe a
desigualdade apontada pelo herdeiro colonial destituído, mas
não a entende direito; Casimiro Lopes, por sua vez, é o
cangaceiro fiel, não contesta hierarquia e nem propriedade; já
Padilha, incita os empregados às costas do rival, uma vez que
também depende dos favores deste.
A parte isto, situa-se o embate entre Paulo Honório e
Mendonça, o qual busca rebaixa-lo por meio de sua origem:
– Há por aí umas pestes que principiam como o senhor e
arrotam importância. Trabalhar não é desonra. Mas se eu
tivesse nascido na poeira, por que havia de negar?
Tentou envergonhar-me:
– Trabalhador alugado, hem? Não se incomode. O Fidélis,
que hoje é senhor de engenho, e conceituado, furtou
galinhas (p. 86).
O fazendeiro ascendente supera o antigo coronel, eliminao.
De outro lado está Madalena, que mantém com o marido
uma relação conflituosa, de oposição que passa pelo letramento
visto como negativo por Paulo Honório, uma vez que este não
tem educação formal, pelos valores humanitários que se
chocam com a mentalidade utilitária do capitalista e ancora no
confronto entre a estabilidade interior do homem racional e a
instabilidade das paixões que a mulher lhe desperta. Madalena,
que seria a perpetuação de sua propriedade, gerando o herdeiro
que lhe daria continuidade, mantendo a propriedade, torna-se a
ameaça para o mundo concentrado e concentracionista que ele
quer manter: “Sim senhor”, diz o narrador, “comunista! Eu
construindo e ela desmanchando” (p. 188).
O casamento, para o protagonista, era fundamental para
consolida-lo na posição de senhor, para perpetuar a posse das
terras por meio de um herdeiro:
Amanheci um dia pensando em casar. Foi uma ideia que
me veio sem que nenhum rabo de saia a provocasse. Não
me ocupo com amores, devem ter notado, e sempre me
pareceu que mulher é um bicho esquisito, difícil de
governar.
(...) Não me sentia, pois, inclinado para nenhuma: o que
sentia era desejo de preparar um herdeiro para as terras
de São Bernardo (p. 115).
Paulo Honório não é movido por paixões e amores. O
casamento é um negócio, um meio, como já dito, de consolidar
sua posição. Sendo assim, passa a imaginar a mulher que
correspondesse aos ideais para a procriação e a maternidade.
Busca, portanto, a mulher ideal com o objetivo prático do
matrimônio, mas, ao partir para tratar consórcio com a filha do
Dr. Magalhães, depara-se com Madalena, o oposto do
estereótipo físico da mulher fecunda: “Precisamente o contrário
da mulher que eu andava imaginando – mas agradava-me, com
os diabos. Miudinha, fraquinha. D. Marcela era bichão. Uma
peitaria, um pé de rabo, um toitiço!” (p. 124).
Madalena é uma moça bonita, pequena, fisicamente frágil,
mas com uma força interior que surpreenderia seu futuro
marido. Madalena representa a geração de mulheres que, não
sendo de família abastada, tem no magistério o meio de
ascensão e sobrevivência. Guacira Louro (2009) aborda em
Mulheres na sala de aula a transformação do magistério em um
trabalho feminino, segundo ela (2009, p. 453):
As jovens normalistas, muitas delas atraídas para o
magistério por necessidade, outras por ambicionarem ir
além dos tradicionais espaços sociais e intelectuais,
seriam também cercadas por restrições e cuidados para
que sua profissionalização não se chocasse com sua
feminilidade.
Foi também dentro desse quadro que se construiu, para a
mulher, uma concepção do trabalho fora de casa como
ocupação transitória, a qual deveria ser abandonada
sempre que se impusesse a verdadeira missão feminina
de esposa e mãe.
Madalena fora criada pela tia, D. Glória, com sacríficos e
muito trabalho. A proposta de casamento de Paulo Honório,
encarada por ele como negócio, o é também por ela, uma vez
que o casamento proporcionaria comodidade e descanso a ela e
também a sua tia. Portanto, assim como Paulo Honório, ela não
enxerga no casamento motivos românticos e deixa claro que
não sente amor pelo pretendente, mas aceita o negócio
oferecido pelo protagonista:
– Está aí. Resolvi escolher uma companheira. E como a
senhora me quadra... Sim, como me engracei pela
senhora quando a vi pela primeira vez...
(...)
– (...) A senhora, pelo que mostra e pelas informações que
peguei, é sisuda, econômica, sabe onde tem as ventas e
pode dar uma boa mãe de família.
(...)
– O seu oferecimento é vantajoso para mim, Seu Paulo
Honório, murmurou Madalena. Muito vantajoso. Mas é
preciso refletir. De qualquer maneira, estou agradecida
ao senhor, ouviu? A verdade é que sou pobre como Job,
entende?
– Não fale assim, menina. E a instrução, a sua pessoa,
isso não vale nada? Quer que lhe diga? Se chegarmos a
um acordo, quem faz um negócio supimpa sou eu (p. 146).
Com o casamento, Paulo Honório espera que Madalena
torne-se parte de sua propriedade, mas ela não aceita a
dominação e frustra as expectativas do marido. Além de não
aceitar passivamente a autoridade, depois de conceber o filho,
não é uma boa mãe, não é maternal e a criança arrastava-se,
caia e chorava sem atenção. De outro lado, Madalena tinha
ideias avançadas. Segundo o narrador, ela não era propriamente
uma intelectual, mas este julga que ela descuidava da religião,
era materialista, comunista e, portanto, não podia ser confiável,
tornando-se perigosa. A partir disso, nasce-lhe o ciúme –
“mulher sem religião é horrível. (...) Mulher sem religião é capaz
de tudo. (...) Misturei tudo ao materialismo e ao comunismo de
Madalena – e comecei a sentir ciúmes” (p. 189).
Os embates entre o casal passam, com isso, a ser
frequentes, porém, eles não têm vencedores. Madalena
sucumbe, suicida-se. Paulo Honório se desarticula, abate-se, e a
propriedade São Bernardo desmorona, mas em meio aos
escombros, cresce nele uma necessidade nova de construção –
reconstrução – de São Bernardo como livro de memórias: “no
momento em que se conhece pela narrativa, destrói-se
enquanto homem de propriedade, mas constrói com o
testemunho da sua dor a obra que redime” (CANDIDO, 1972, p.
24).
O romance de Graciliano Ramos, portanto, é característico
da sua posição frente ao mundo e frente à época em que se
situa; posição pautada pelo engajamento e pela consciência
social e literária, no entanto ele não se esgota no plano político,
está longe do panfletário. Ele é voltado a uma preocupação que
une técnica, forma e conteúdo e por isso permanece – com
força de javali, diria o poeta mineiro. Assim sendo, São Bernardo
dialoga com Lukács, sendo um exemplo de reflexo realista a
que o filósofo húngaro apreciaria.
______. Tese e Antítese. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.
FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: Formação do Patronato
Político Brasileiro. Rio de Janeiro, Porto Alegre, São Paulo:
Editora Globo, 1958.
LOURO, Guacira. Mulheres na sala de aula. In: DEL PRIORI, Mari
(org.); BASSANEZI, Carla (coord. de textos). História das
mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2009.
LUKÁCS, Georg. Ensaios de Literatura. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1965.
______. Introdução a uma estética marxista. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1968.
RAMOS, Graciliano. São Bernardo. São Paulo: Martins, 1972.
______. Linhas Tortas: obra póstuma. Rio de Janeiro, São Paulo:
Record, 2002.

Entenda os principais aspectos da obra


Personagens
Paulo Honório - personagem principal, natural de Viçosa. Depois de comprar a
fazenda São Bernardo, investe no seu desenvolvimento;
Luís Padilha - herdeiro da fazenda São Bernardo;
Casimiro Lopes - amigo de Paulo Honório;
Azevedo Gondim - jornalista local;
Padre Silvestre
Nogueira - advogado.
Ribeiro - contabilista;
Margarida - negra doceira que criou Paulo Honório;
Madalena - professora primária filha do juiz Magalhães.
– Leia a análise de São Bernardo

Criado por uma negra doceira, Paulo Honório foi um menino órfão que guiava um
cego e vendia cocadas durante a infância para conseguir algum dinheiro. Depois
começou a trabalhar na duro na roça até os dezoito anos. Nessa época ele
esfaqueia João Fagundes, um homem que se envolve com a mulher com quem
Paulo Honório teve sua primeira relação sexual. Então é preso e durante esse
período aprende a ler com o sapateiro Joaquim. A partir de então ele passa
somente a pensar em juntar dinheiro.

Saindo da prisão, Paulo Honório pega emprestado com o agiota Pereira uma
quantia em dinheiro e começa a negociar gado e todo tipo de coisas pelo sertão.
Assim, ele enfrenta toda sorte de injustiças, fome e sede, passando por tudo isso
com muita frieza e utilizando de meios antiéticos, como ameaças de morte e roubo.
Após conseguir juntar algumas economias, retorna a sua terra natal, Viçosa, com o
desejo de adquirir a fazenda São Bernardo, onde tinha trabalhado.

Para tanto, Paulo Honório inicia uma amizade falsa com Luís Padilha, herdeiro de
São Bernardo. Luís era um moço apaixonado por jogo, mulheres e bebida, e aos
poucos Paulo consegue conquistar a confiança dele. Inexperiente, Luís Padilha
começa a financiar projetos que não trarão sucesso incentivado por Paulo Honório,
que fazia tudo isso com a intenção de fazer Luís Padilha ficar falido
financeiramente. Tendo sucesso em seu plano, Paulo consegue comprar a fazenda
São Bernardo por um preço irrisório.

Com a ajuda de seu amigo Casimiro Lopes, Paulo Honório manda matar
Mendonça, fazendeiro vizinho, e consegue expandir os limites das terras da São
Bernardo. Através de empréstimos bancários, investe em máquinas e na plantação
de algodão e mamona. Para escoar seus produtos, Paulo Honório constrói estradas
e passa a se dedicar cada vez mais ao trabalho. E, para conseguir obter tudo isso,
ele comete as maiores injustiças e utiliza de todos os meios que puder, garantindo
impunidade através de uma grande rede de relacionamentos. Seus ajudantes são:
Gondim, o jornalista local; o padre Silvestre; e o advogado Nogueira, que manipula
os políticos locais.

Com a fazenda em ótima situação, Paulo Honório contrata o Seu. Ribeiro para
cuidar das contabilidades, contrata Luís Padilha como professor e constrói uma
escola para alfabetizar os empregados e agradar ao governador do Alagoas. Além
disso, manda buscar a negra doceira que o havia criado, a velha Margarida,
arranjando moradia para ela na São Bernardo.

Um dia Paulo Honório percebe que precisa de um herdeiro para suas ricas terras e
por conta disso resolve se casar. Pensa nas filhas e irmãs de seus amigos, mas
nenhuma lhe agrada. Então, um dia conhece a professora primária Madalena na
casa do juiz Magalhães. Da mesma forma determinada como conseguiu obter e
administrar sua propriedade, Paulo Honório convence Madalena a se casar com
ele.

Após o casamento a moça e sua tia Glória mudam-se para a fazenda e o rico
fazendeiro vai percebendo que a rotina na São Bernardo começa a se alterar.
Madalena se interessa pela vida dos empregados e dá opiniões sobre as condições
precárias do professor Padilha, exigindo a compra de materiais escolares. Além
disso, ela passa a dividir as tarefas de escrituração com Ribeiro.
Paulo Honório, que imaginava Madalena como uma mulher frágil e normalista,
incomoda-se profundamente com o comportamento da moça e então começam as
brigas do casal, que evidenciam a personalidade violenta do fazendeiro. Não
conseguindo dominar a mulher como controlava todos, Paulo Honório se torna cada
vez mais agressivo com todos e revela um ciúme excessivo. Mesmo o nascimento
do filho não ameniza o ciúme que sente de Madalena e suas desconfianças de
traição.

Certa noite, o juiz Magalhães visita o casal e conversa animadamente com


Madalena. Isso deixa Paulo Honório com mais ciúmes ainda e ele fica se
atormentando durante a madrugada imaginando o prazer que um intelectual
poderia despertar na esposa. Comparando-se ao juiz, sente-se bruto e inculto e
chega à conclusão de que a traição era inevitável e Madalena grosseiramente.

No dia seguinte Paulo Honório vê a esposa muito abatida escrevendo uma carta
direcionada a Azevedo Gondim e novamente se descontrola exigindo explicações.
Ela então rasga a carta e o chama de assassino. Depois, ele se arrepende do que
fez, mas não esquecendo o insulto recebido, convenceu-se de que Padilha havia
contado algo para Madalena e resolve expulsá-lo. Porém, o professor diz que é fiel
e obediente a Paulo Honório e que ela deve ter ouvido as histórias por meio da
população local.

E assim Paulo Honório vai ficando cada vez mais paranoico em relação a suposta
infidelidade da mulher e se torturava ao som de passos imaginários durante a noite
e outros delírios. Enquanto isso, Madalena sofria e sua solidão só aumentava,
sentindo-se humilhada e sem dignidade. Por fim, perde o interesse pelo próprio
filho.

Um dia Paulo Honório, ao contemplar orgulhoso sua propriedade do alto da torre da


igreja, vê Madalena escrevendo. Ele desce, confere o trabalho dos empregados e
acha uma folha no chão. Lendo e relendo o trecho escrito, Paulo Honório tem
certeza que é uma carta endereçada para um homem e é tomado por intenso ódio.

Então ele sai atormentado à procura da esposa e a encontra na igreja com uma
aparência muito calma. Ele exige explicações, mas ela lhe diz muito desanimada
que o restante das folhas estava no escritório. Por fim, ela lhe pede perdão por
todos os aborrecimentos e diz que o ciúmes estragou a vida dos dois. Paulo
Honório passa a noite sozinho no banco da sacristia.
Chegando em casa no dia seguinte, ele ouve gritos e descobre que Madalena havia
se suicidado. Ela havia deixado sobre a bancada uma carta de despedida para o
marido, sendo que faltava uma página, justamente aquela que ele havia encontrado
no chão no dia anterior.

Após a morte de Madalena, D. Glória e Seu Ribeiro deixam a fazenda. Luís Padilha
junta-se aos revolucionários para lutar na Revolução de 30 e também deixa São
Bernardo. O juiz Magalhães é afastado do cargo e os limites da fazenda passam a
ser contestados judicialmente. Com tudo isso, Paulo Honório se encontra
abandonado.

Por fim, em meio a solidão e somente com a companhia de Casimiro Lopes e seu
cachorro, Paulo Honório escreve sua narrativa. Amargurado pelo passado, toma
consciência da desumanização por que passou enfrentando a dureza do sertão.
Incapaz de mudar, Paulo Honório busca algum sentido para a sua vida refletindo
sobre o passado e escrevendo sua história sentado à mesa da sala, fumando
cachimbo e bebendo café.

Lista de personagens
Paulo Honório: personagem central e narrador do livro. Homem rude e violento, dá
sua vida ao trabalho. Para conseguir o que quer, não mede esforços e nem meios,
vindo a praticar diversos atos antiéticos.
Negra Margarida: doceira que cuidou de Paulo Honório durante a infância.
Salustiano Padilha: ex-dono da fazenda São Bernardo e pai de Luís.
Luís Padilha: após a morte do pai herdou a fazenda, mas se entregou à bebida,
jogos e às mulheres. Vítima dos planos de Paulo Honório, vê-se endividado e é
obrigado a vender a fazenda.
Madalena: professora primária que fora criada pela tia. Casa-se com Paulo Honório.
Instruída e educada, tem opinião própria e forte, o que desagrada a seu marido.
Dona Glória: tia de Madalena.
Seu Ribeiro: senhor que trabalha na fazenda. Fica próximo de Madalena.
Joaquim Sapateiro: ensina Paulo Honório a ler na prisão.
Azevedo Gondim: jornalista amigo de Paulo Honório. Havia sido encarregado de
escrever as histórias do narrador, mas por utilizar uma linguagem mais erudita,
desentende-se com Paulo Honório.
Casimiro Lopes: amigo antigo de Paulo Honório, executa as ordens dele sem
pestanejar.
Mendonça: dono da fazenda Bom-Sucesso, é assassinado para que Paulo Honório
possa aumentar as áreas de sua fazenda.
Dr. Magalhães: juiz amigo de Paulo Honório.
Sobre Graciliano Ramos
Graciliano Ramos de Oliveira nasceu em Quebrangulo, Alagoas, em 27 de outubro de 1892. Terminando o
segundo-grau em Maceió, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde trabalhou como jornalista durante alguns
anos. Em 1915 volta para o Alagoas e casa-se com Maria Augusta de Barros, que falece em 1920 e o
deixa com quatro filhos.

Trabalhando como prefeito de uma pequena cidade interiorana, foi convencido por Augusto Schmidt a
publicar seu primeiro livro, “Caetés” (1933), com o qual ganhou o prêmio Brasil de Literatura. Entre 1930 e
1936 morou em Maceió e seguiu publicando diversos livros enquanto trabalhava como editor, professor e
diretor da Instrução Pública do Estado. Foi preso político do governo Getúlio Vagas enquanto se preparava
para lançar “Angústia”, que conseguiu publicar com a ajuda de seu amigo José Lins do Rego em 1936. Em
1945 filia-se ao Partido Comunista do Brasil e realiza durante os anos seguintes uma viagem à URSS e
países europeus junto de sua segunda esposa, o que lhe rende seu livro “Viagem” (1954).

Artista do segundo movimento modernista, Graciliano Ramos denunciou fortemente as mazelas do povo
brasileiro, principalmente a situação de miséria do sertão nordestino. Adoece gravemente em 1952 e vem
a falecer de câncer do pulmão em 20 de março de 1953 aos 60 anos.

Suas principais obras são: “Caetés” (1933), “São Bernardo” (1934), “Angústia” (1936), “Vidas Secas”
(1938), “Infância” (1945), “Insônia” (1947), “Memórias do Cárcere” (1953) e “Viagem” (1954).

ANÁLISE
A perda da humanidade
Publicado em 1934, “São Bernardo” é tido como um dos maiores representantes da
segunda fase do Modernismo brasileiro. Nos anos conturbados das décadas de
1930 e 40, com crises econômicas, sociais e políticas em todo o mundo, os artistas
voltaram-se para as temáticas sociais. No Brasil, os romances dessa época tinham
um caráter regionalista, tratando principalmente dos problemas do Nordeste do
país, tais como a seca, os retirantes, a miséria e a ignorância do povo.

Porém, apesar do pano de fundo de “São Bernardo” ser os problemas do sertão,


Graciliano Ramos foi muito além disso, criando uma obra com uma densa carga
psicológica. Para alcançar sua ascensão social, Paulo Honório abre mão de sua
humanidade. Endurecido pelas dificuldades do meio onde vive, ele se torna um
homem rude, bruto e violento.

Narrado em primeira pessoa, todo o romance irá se desenvolver centrado em dois


planos diferentes: o Paulo Honório narrador e o Paulo Honório personagem. Esses
planos ficam evidentes através do tempo verbal utilizado na narrativa: o Paulo
Honório narrador é demarcado pelo uso do tempo presente; já o Paulo Honório
personagem é demarcado pelo tempo pretérito. O narrador irá se debruçar sobre
seu passado, tentando entender a si mesmo, ao mundo e como ele se relaciona
com esse mundo exterior.
O narrador expõe no primeiro capítulo como ele planejava contar sua história,
delegando funções para pessoas mais cultas. Porém, Paulo Honório descobre que
este método de escrita é falho, pois ninguém falava da forma como estava escrito e
ele não se via representado ali. A partir de então, ele mesmo resolve tomar a frente
e escrever suas próprias lembranças. Através desse processo metalinguístico de
exposição do projeto de escrita do livro, coloca-se o próprio ato de escrever em
discussão.

Porém, ao contrário do que se pode imaginar, a linguagem utilizada na narrativa


não é desconexa e nem tosca. Pode-se dizer, então, que há uma certa
inverossimilhança na obra, pois como um homem rústico, que se diz quase
analfabeto, iria escrever um texto tão bem escrito? Mas, apesar de esta crítica ser
pertinente, observa-se que a linguagem utilizada é extremamente enxuta e direta, o
que, além de ser típica do estilo do próprio Graciliano Ramos, combina com Paulo
Honório.

De origem humilde, Paulo Honório não mediu esforços para conseguir sua
ascensão social, utilizando muitas vezes de meios antiéticos, como ameaças,
assassinato e roubo. Sua visão de mundo é totalmente centrada em uma relação
de poder entre “opressor” e “oprimido”. Para ele, o que importa é “ter”. Essa visão
de mundo entra em choque com a de sua esposa, Madalena, que é da esfera do
“ser”, ou seja, ela não se preocupa com posses, mas com a qualidade e dignidade
humanas.

Por fim, Paulo Honório não consegue compreender o mundo de sua esposa e a
acusa de infiel e “subversiva”; por sua vez, Madalena não consegue resgatar Paulo
Honório de sua desumanidade. Sem sua esposa e abandonado também pelos
amigos, Paulo Honório assume em partes seus erros que levaram à tragédia que se
abateu sob a fazenda São Bernardo. Porém, ele joga a culpa de seu
endurecimento, de sua perda da humanidade no ambiente em que vive.

Comentário do professor
O prof. Marcílio Lopes Couto, do Colégio Anglo, lembra que “São Bernardo” é uma
obra narrada em primeira pessoa, onde o narrador também é a personagem central
da história: Paulo Honório. Este é um homem que se vê abandonado e resolve
refletir sobre seu passado e escrever um livro. Para tal, ele contrata especialistas,
mas, por não se ver refletido naquele português escrito de modo afetado, decide
escrever por si mesmo. Paulo Honório é um homem que vai acumulando coisas em
sua vida de modo frio, inclusive seu casamento com Madalena, e muitas vezes
antiético. Vivendo na esfera do “ter”, ele não consegue compreender sua esposa,
que é mais preocupada com o “ser”, e isso acaba destruindo seu casamento de
diversas formas, até que Madalena se suicida.

Assim, destaca o prof. Marcílio, “São Bernardo” é uma obra que mergulha na alma
humana no que ela tem de mais sombrio. Com uma decadência material e uma
fragmentação psicológica, Paulo Honório vai tentar quem ele é e porquê tudo aquilo
aconteceu. Dessa forma, mais do que tratar somente das questões sociológicas,
esta obra se aprofunda muito em discussões psicológicas. Além disso, o professor
destaca que ao contrário de Vidas Secas, que é narrado do ponto de vista do
oprimido (Fabiano), “São Bernardo” é narrado do ponto de vista do opressor, que é
Paulo Honório.

Os alunos devem ficar atentos à questões que dizem respeito à caracterização


de Paulo Honório, pois ele não diz quem é ou como ele é de forma direta, mas sim
através da narrativa. Ou seja, ele não fala de seus próprios defeitos, mas através
de sua relação com o mundo a seu redor pode-se depreender como é Paulo
Honório. Por fim, por mais que a linguagem de Paulo Honório possa soar
inverossímil, pois tem um certo rebuscamento para quem se considera
semianalfabeto, a forma que ele escreve é fiel a sua personalidade. Isso porque a
linguagem é “sem enfeites”, seca, direta e reduzida ao essencial, o que combina
com a personalidade de Paulo Honório, que é um homem rude e seco, e também
com o próprio estilo de Graciliano Ramos, finaliza o prof. Marcílio.

Publicado por Graciliano Ramos em 1934, São Bernardo é um clássico da segunda


fase da literatura modernista. Através do romance, dividido em trinta e seis
capítulos, ficamos conhecendo o protagonista Paulo Honório e a dura vida no
interior do nordeste brasileiro.

Resumo
Paulo Honório decidiu escrever um livro para contar a sua história. O personagem
assim se apresenta ao leitor:

"Começo declarando que me chamo Paulo Honório, peso oitenta e nove quilos e
completei cinquenta anos pelo São Pedro. A idade, o peso, as sobrancelhas
cerradas e grisalhas, este rosto vermelho e cabeludo, têm-me rendido muita
consideração. Quando me faltavam estas qualidades, a consideração era menor."

A princípio pediu ajuda a alguns amigos, dividiriam as tarefas para compor o


trabalho, por fim percebeu que estava sozinho nessa empreitada. Criado sem pai
nem mãe - que nem sequer colocaram os nomes na sua certidão de nascimento -
Paulo Honório cresceu ajudado por um cego e pela velha Margarida, uma doceira.
Trabalhou na roça até os dezoito anos, quando cometeu o primeiro crime.

Encantou-se por Germana, que depois meteu-se com João Fagundes. Paulo
Honório então esfaqueou João Fagundes e ficou preso três anos, nove meses e
quinze dias. Na cadeira aprendeu a ler com o Joaquim sapateiro, que tinha uma
Bíblia. Ao sair da cadeira vagabundeou mundo afora, tendo uma vida cigana,
caminhando e fazendo negócios de terra em terra. Sempre frio e calculista, nunca
se esquivou de usar a violência quando julgou ser preciso.

Até que Paulo Honório resolveu se estabelecer na propriedade São Bernardo, já


havia trabalhado lá anos antes. O antigo dono das terras, Salustiano Padilha, fez de
tudo para ver o filho Luís doutor, o que não aconteceu. Paulo Honório resolveu ir
atrás do herdeiro. Percebendo a inocência do rapaz e a sua dificuldade em lidar
com o álcool e com o jogo, cravou amizade e foi lhe emprestando dinheiro. Por fim,
conseguiu comprar a propriedade que tanto desejava.

Já dono do latifúndio, Paulo Honório começou a ter problemas com o vizinho,


Mendonça, que acabou por mandar assassinar. Desse modo, incorporou as terras e
aumentou assim a sua propriedade. São Bernardo ao fim de algum tempo passou a
dar lucros e nosso protagonista achou que era hora de conceber um herdeiro.

Casou-se com Madalena, que se mudou para a fazenda, e levou consigo a tia
Glória. O casamento logo deu sinais de problemas, Paulo Honório já nas nas
primeiras discussões sentia-se ameaçado pela cultura da mulher. Tudo piorou com
a chegada do filho do casal. A situação se degradou de tal maneira que Madalena
deu cabo da própria vida.

Por fim, Paulo Honório, viúvo, foi abandonado por Glória (tia da então esposa), pelo
contador, por Padilha e pelo Padre Silveira. Isolado e solitário, a alternativa
encontrada pelo protagonista foi compor o livro que lemos, onde ficamos
conhecendo a trágica história da sua vida.

Personagens principais
Paulo Honório
Protagonista da história. Frio e violento, Paulo Honório teve uma relação peculiar
com aqueles que o rodearam.

Margarida
Negra, doceira, ajudou a criar Paulo Honório quando era pequeno.
Madalena
Professora, casou-se com Paulo Honório e foi viver com ele em São Bernardo.

Glória
Tia de Madalena, esposa de Paulo Honório, mudou-se com o casal para São
Bernardo.

Ribeiro
Contador e guarda-livros de Paulo Honório. Teve um passado abastado, era feliz,
culto, justo, fora considerado major, mas acabou perdendo tudo.

Luís Padilha
Herdeiro da fazenda São Bernardo, embora sem qualquer talento para mantê-la.
Acabou se afundando em dívidas e perdendo a propriedade para Paulo Honório.

Mendonça
Foi assassinado por Paulo Honório (quem de fato executou o crime foi o guarda-
costas Casimiro Lopes).

Azevedo Gondim
Jornalista amigo de Paulo Honório.

Casimiro Lopes
Fiel guarda-costas de Paulo Honório, descrito com "corajoso, laçá, rasteja, tem faro
de cão e fidelidade de cão."

Tempo, espaço e narrativa no livro São Bernardo


Publicado em 1934, o romance de Graciliano Ramos se passa em Viçosa, Alagoas,
no interior do nordeste. A narrativa é feita em primeira pessoa pelo próprio
protagonista Paulo Honório.

Muitas vezes o personagem dirige-se diretamente ao leitor, como é o caso da


passagem abaixo, retirada do capítulo um:

"João Nogueira queria o romance em língua de Camões, com períodos formados


de trás para diante. Calculem."

A adaptação cinematográfica do livro


São Bernardo virou filme no ano de 1971 graças ao diretor de Leon Hirszman. O
filme foi muito celebrado pela crítica e abocanhou diversos prêmios, entre eles o de
melhor ator (Othon Bastos) no Festival de Gramado, o de melhor filme, diretor, ator
(Othon Bastos) e atriz (Isabel Ribeiro) no Prêmio Air France de 1973 . Ganhou
também a Coruja de Ouro de melhor diretor e atriz coadjuvante (Vanda Lacerda). O
longa metragem foi gravado em Viçosa (interior do Alagoas), terra onde viveu o
escritor durante muitos anos.

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